PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓTLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras
ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM
NO TRIBUNAL DO JÚRI
Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli
Belo Horizonte 2011
Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli
ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM
NO TRIBUNAL DO JÚRI
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes
Belo Horizonte 2011
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Paulinelli, Maysa de Pádua Teixeira P328a Argumentação e performatividade da linguagem no tribunal do júri /
Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli. Belo Horizonte, 2011. 261f. : Il. Orientador: Paulo Henrique Aguiar Mendes Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Oratória forense. 2. Tribunal do juri. I. Mendes, Paulo Henrique
Aguiar. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 347.965.45
Maysa de Pádua Teixeira Paulinelli
ARGUMENTAÇÃO E PERFORMATIVIDADE DA LINGUAGEM NO TRIBUNAL DO JÚRI
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.
________________________________________________
Paulo Henrique Aguiar Mendes (Orientador) - PUC Minas
______________________________________________
Helcira Maria Rodrigues de Lima - UFMG
_______________________________________________
Hugo Mari - PUC Minas
______________________________________________
Miracy Barbosa de Sousa Gustin - UFMG
______________________________________________
William Augusto Menezes - UFOP
Belo Horizonte, 28 de março de 2011.
Dedico este trabalho ao meu pai, Euwaldo, que “tão cedo partiu desta vida descontente”, e ao meu filho, Pietro, que já está para chegar...
AGRADECIMENTOS
“Meu poema é um tumulto:
a fala que nele fala outras vozes
arrasta em alarido estamos todos nós
cheios de vozes que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz (...)” (Ferreira Gullar)
Minha tese é um “tumulto”: “a fala que nela fala outras vozes arrasta em alarido”...
vozes que transbordam e, livres, caminham por si próprias... Entre todas as vozes presentes,
de alguma maneira, nas páginas que seguem, nomeio e agradeço especialmente:
Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes que, durante o período
de elaboração deste trabalho, representou para mim a voz do saber acadêmico e da excelência
profissional, que observo no modo como concilia as atividades de pesquisador à prática
docente. Agradeço por sua disponibilidade, pelas orientações que me levaram a descobrir
caminhos por mim ignorados, pelas palavras de incentivo e pela gentileza.
Ao Prof. Dr. Hugo Mari, “monumento de dignidade e respeito”, agradeço pelas lições
de Linguística, pelas contribuições que deu a este trabalho no Exame de Qualificação e pelos
braços que encontro sempre abertos.
Aos Profs. Drs. William Menezes e Helcira Maria Rodrigues de Lima, agradeço pela
interlocução privilegiada, pela amizade e pelo respeito.
Aos membros da Comissão Examinadora, agradeço por me honrarem com sua
participação na apreciação de meu trabalho.
À Prof.ª Dr.ª Maria Ângela Teixeira Paulino, pela coordenação de meu estágio de
docência no Projeto Oficinas de Leitura e Produção de Textos... tão profissional e, ao mesmo
tempo, tão doce e gentil com seus estagiários.
Às funcionárias da Secretaria do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
Minas, Vera Lúcia Mageste, Berenice Viana de Faria, Rosária Helena de Andrade e seus
auxiliares, agradeço pela presteza, competência e gentileza na realização do trabalho
burocrático.
Aos colegas com quem cursei as disciplinas de Doutorado, entre os quais destaco a
amiga e parceira Adriana: voz de gente firme, determinada, que me resgata dos devaneios e
me traz de volta à realidade acadêmica.
Entre as vozes do cotidiano, agradeço: ao meu marido, Márcio, a voz predileta; ao
meu filho do coração, Gabriel, a quem eu pensava ensinar alguma coisa quando, na verdade, o
mestre sempre foi ele; à minha mãe, Cirlene, por nos ter educado em meio às letras; aos meus
irmãos, Simone, Aloysio e Claryssa, de quem tanto me orgulho, agradeço pelo exemplo; aos
cunhados-irmãos, Rodrigo, Dalila, Paulo e Teresinha, pela amizade; à tia Irani, pelo carinho e
atenção; à prima Josiane, por me hospedar em sua casa tantas vezes e com toda delicadeza; ao
sobrinho Cauã, pela renovação da esperança.
À amiga Geralda Cristina, pelo apoio técnico na formatação deste trabalho e,
principalmente, por cultivar nossa amizade desde tempos imemoriais... voz e ouvidos que me
trazem conforto, descanso, desabafo.
Por fim, agradeço à CAPES, pelos recursos materiais que me possibilitaram
desenvolver esta pesquisa.
Já não vivi em vão
Já escrevi bem
Uma canção.
A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?
Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.
(Fernando Pessoa)
RESUMO
Neste trabalho, propõe-se uma reflexão acerca do domínio discursivo jurídico e de suas
características constitutivas, as quais lhe outorgam uma conformação particular no interior do
vasto território das práticas de linguagem. Por se tratar de um domínio amplo, composto por
inúmeras vertentes e ramificações, realizou-se um recorte e optou-se por trabalhar com uma
área específica de sua ocorrência: o discurso judicial processual penal de competência do
Tribunal do Júri. O objetivo pretendido foi, fundamentalmente, o de construir um discurso
explicativo dessa vertente, por meio da avaliação: 1) de aspectos relativos às suas condições
enunciativas; 2) da orientação argumentativa encontrada nos diversos gêneros produzidos
pelos sujeitos que participam de uma relação processual (Juiz, Promotor, Defensor, auxiliares
da Justiça, entre outros); 3) do inter-relacionamento entre esses gêneros e 4) das atividades
sociais produzidas como resultado final da tramitação do processo. Para isso, selecionou-se
um caso de interação no meio judiciário, que consistiu em um processo movido pelo
Ministério Público em face de uma mulher, sob a acusação de que ela teria praticado o crime
de autoaborto. Considerando-se que a dinâmica em que se constrói o discurso processual
penal só pode ser compreendida nos limites impostos pelo quadro institucional do qual
emerge essa produção discursiva, adotou-se como hipótese de pesquisa a observação de que
os atos de fala definem e designam os gêneros discursivos, além de contribuírem para sua
orientação argumentativa; cada sujeito processual, em uma situação de interação linguageira
travada nos limites de um processo judicial, produz conjuntos de gêneros no desempenho de
suas atividades profissionais; diversos conjuntos de gêneros se articulam para a formação de
sistemas de gêneros que, por sua vez, compõem um domínio discursivo e realizam alterações
na realidade social. Como procedimento metodológico, inicialmente, identificaram-se os
principais sujeitos que atuaram no processo analisado, os conjuntos de gêneros que eles
empregaram no desempenho de suas atividades e a forma como esses conjuntos se
entrelaçaram para compor um sistema de atividades. Em seguida, procedeu-se a uma análise
pontual das peças processuais mais importantes produzidas pelo órgão de acusação (Promotor
de Justiça), pela defesa (Advogado) e pelas instâncias decisórias (Juiz de Direito e
Desembargadores). Essa análise pontual implicou a reflexão acerca das condições
enunciativas próprias de cada peça. Delimitadas as condições enunciativas, partiu-se para a
descrição dos atos de fala mais representativos de cada proferimento, pela aplicação dos
postulados da Teoria dos Atos de Fala, com a explicitação do ponto de realização do ato,
modo, condições de conteúdo proposicional, condições preparatórias e condições de
sinceridade. Finalmente, buscou-se correlacionar a força ilocucional dos atos de fala à
orientação argumentativa dos proferimentos, com vista à explicação das relações entre
linguagem e ação no corpus selecionado. Concluiu-se que, na medida em que são produzidos
e lançados aos autos todos esses proferimentos que, ao final, formam uma rede dialógico-
argumentativa, a verdade acerca da conduta imputada à ré é construída e reconstruída pelos
sujeitos processuais.
Palavras-chave: Discurso jurídico. Tribunal do Júri. Performatividade da linguagem. Gêneros.
Argumentação.
ABSTRACT
This study proposes a reflection on the legal discursive area, as well as on its constituent
characteristics, which provide a particular conformation within the vast territory of language
practices. Due to its broad domain, composed of several aspects and ramifications, a cut was
made and the choice was to research a specific area of their occurrence, in which the legal
discourse of penal jurisdiction of grand jury outlines. This study essentially aimed to build a
speech to explain that specific strand, by means of evaluating: 1) aspects of its conditions of
utterance, 2) the argumentative orientation found in the various genres produced by the
subjects participating in a procedural relationship (Judge, prosecutor, defender, legal
assistants), 3) the interrelationship between these genres, and 4) social activities produced as
the final outcome of the proceedings. To develop this discussion, a short case was selected,
which consisted of a lawsuit filed by prosecutors against a woman accused of committing the
crime of self-induced abortion. Considering that the discourse of criminal procedure can only
be understood within the limits imposed by the institutional framework arisen from this
discourse production, the research hypothesis adopted was the observation that speech acts
define and designate genres, in addition to contributing to the argumentative orientation; each
subject procedure produces sets of genres in the performance of their professional activities;
several sets of genres articulate to form genre systems that, in turn, comprise a discursive field
and perform changes in social reality. The following methodological procedures were
adopted: first of all, the main subjects who worked in the process analyzed were identified, as
well as the sets of genres they employed in carrying out their tasks and how these sets are
entwined to form a system of activities. Then, important pleadings produced by the
prosecutor, lawyer and judges were analyzed. This analysis involved the discussion about
utterance conditions of each pleading. After that, the description of more representative
speech acts of such utterances was prepared by applying the postulates of the Speech Acts
Theory, with the explanation of the illocutionary point of the act, propositional content,
sincerity conditions and preparatory conditions. Finally, the attempted was to correlate the
illocutionary force of speech acts with the argumentative orientation of the statements, so as
to explain the relationship between language and action in the corpus.
Keywords: Legal discourse. Grand Jury. Performativity of language. Genres. Argumentation.
RÉSUMÉ
Cette étude propose une réflexion autour du domaine du discours juridique et les
caractéristiques constitutives lui octroyant une conformation particulière dans le vaste
territoire des pratiques langagières. Compte tenu de l’étendu de ce champ, composé de
nombreux aspects et ramifications, on a effectué un découpage et choisi de se consacrer à une
partie spécifique de sa manifestation, celle où le discours judiciaire de la juridiction pénale de
la Cour d’Assises se produit. L'objectif envisagé à travers l’élaboration de cette étude était
essentiellement celui de construire un discours explicatif de ce courant et d’évaluer: 1) les
aspects relatifs à ses conditions d'énonciation ; 2) l'orientation argumentative trouvée dans les
différents genres produits par les sujets participant à une relation procédurale (Juge, Avocat
du Parquet, Procureur, Assistants de justice, entre autres), 3) la relation entre ces genres et 4)
les activités sociales découlant de la procédure. Pour développer cette réflexion, on a choisi
un cas d'interaction dans le milieu judiciaire, constitué d'un procès intenté par le Parquet
contre une femme accusée d’avoir commis le crime de l’auto-avortement. Estimant que la
dynamique dans laquelle le discours de la procédure pénale se construit ne peut être comprise
que dans les limites imposées par le cadre institutionnel dont cette production de discours
relève, on a adopté comme hypothèse de recherche l'observation selon laquelle les actes de
langage définissent et décrivent les genres discursifs et contribuent également, à leur
orientation argumentative; chaque sujet procédural, dans une situation d'interaction langagière
établie dans les limites d'une procédure judiciaire, produit des ensembles de genres dans
l'exercice de ses activités professionnelles qui s'assemblent pour former des systèmes de
genres qui, à leur tour, intègrent un champ discursif et effectuent des changements dans la
réalité sociale. On a adopté les procédures méthodologiques suivantes: d'abord, on a identifié
les principaux sujets qui ont agi dans le procès analysé ainsi que les divers ensembles de
genres utilisés dans l'accomplissement de leurs tâches et la manière dont ces ensembles se
sont entrelacés pour former un système d'activités. Ensuite, nous avons procédé à une analyse
ponctuelle des plus importants actes procéduraux produits par le Parquet (Avocat du
Parquet), par le défenseur (Avocat) et par les grandes instances (Juges et Juges du Tribunal).
Cette analyse a suscité la discussion sur les conditions d'énonciation de chaque pièce
procédurale. Après avoir délimité les conditions d'énonciation, on a réalisé la description des
actes de langage les plus représentatifs de tels prononcements, en appliquant les postulats de
la théorie des actes de langage révélant ainsi, lors de la réalisation de l'acte, le mode, les
conditions de contenu propositionnel, les conditions préparatoires et les conditions de
sincérité. Enfin, on a corrélé la force illocutoire des actes de langage et l'orientation
argumentative des énoncés, afin d'expliquer la relation entre le langage et l'action dans le
corpus sélectionné.
Mots-clés: Le discours juridique. Cour d’Assise. La performativité du langage. Genres.
Argumentation.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Gêneros do discurso na retórica aristotélica.......................................... QUADRO 2 Tipologia de Argumentos...................................................................... QUADRO 3 Argumentos quase-lógicos.................................................................... QUADRO 4 Argumentos fundados sobre a estrutura do real................................... QUADRO 5 Argumentos que fundam a estrutura do real......................................... QUADRO 6 Hipótese explicativa do funcionamento do domínio discursivo jurídico........................................................................................................................ QUADRO 7 Conjunto de gêneros e atividades do Juiz de Direito............................ QUADRO 8 Conjunto de gêneros e atividades do Promotor de Justiça.................... QUADRO 9 Conjunto de gêneros e atividades do Defensor..................................... QUADRO 10 Esquema representando os principais atos e documentos produzidos no Processo/corpus..................................................................................................... QUADRO 11 Esquema representando as modalidades do Domínio Discursivo Jurídico....................................................................................................................... QUADRO 12 Esquema representando os atos e peças processuais selecionados para análises................................................................................................................ QUADRO 13 Componentes do ato de fala................................................................ QUADRO 14 Condições enunciativas do RIP........................................................... QUADRO 15 Componentes de um ato de fala no prólogo do RIP............................ QUADRO 16 Componentes de um ato de fala no desenvolvimento do RIP............. QUADRO 17 Componentes de um ato de fala no desfecho do RIP.......................... QUADRO 18 RIP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades............................ QUADRO 19 Condições enunciativas da Denúncia.................................................. QUADRO 20 Componentes de um ato de fala no prólogo da Denúncia................... QUADRO 21 Componentes de um ato de fala no desenvolvimento da Denúncia.....................................................................................................................
34
43
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139
142
QUADRO 22 Componentes de um ato de fala no desfecho da Denúncia................. QUADRO 23 Denúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades................... QUADRO 24 Condições enunciativas das Alegações Finais do Ministério Público........................................................................................................................ QUADRO 25 Componentes de um ato de fala no relatório das Alegações Finais do MP.......................................................................................................................... QUADRO 26 Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais do MP............................................................................................................... QUADRO 27 Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP............................................................................................................... QUADRO 28 Alegações Finais do MP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades.................................................................................................................... QUADRO 29 Condições enunciativas das Alegações Finais da Defesa.................... QUADRO 30 Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa.......................................................................................................... QUADRO 31 Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa.......................................................................................................... QUADRO 32 Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP............................................................................................................... QUADRO 33 Alegações Finais da Defesa - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades.................................................................................................................... QUADRO 34 Condições enunciativas da Sentença de Pronúncia............................. QUADRO 35 Componentes de um ato de fala no relatório da Sentença de Pronúncia.................................................................................................................... QUADRO 36 Componentes de um ato de fala no fundamento da Sentença de Pronúncia.................................................................................................................... QUADRO 37 Componentes de um ato de fala no dispositivo da Sentença de Pronúncia.................................................................................................................... QUADRO 38 Sentença de Pronúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades.................................................................................................................... QUADRO 39 Condições enunciativas do Acórdão....................................................
143
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QUADRO 40 Discurso relatado no Acórdão.......................................................... QUADRO 41 Condições enunciativas do depoimento de R na Delegacia de Polícia......................................................................................................................... QUADRO 42 Condições enunciativas do interrogatório de R pelo Juiz de Direito... QUADRO 43 Condições enunciativas do depoimento de R diante do Conselho de Sentença...................................................................................................................... QUADRO 44 Condições enunciativas da Sentença terminativa................................ QUADRO 45 Componentes de um ato de fala assertivo na Sentença terminativa.... QUADRO 46 Componentes de um ato de fala declarativo na Sentença terminativa. QUADRO 47 Componentes de um ato de fala diretivo na Sentença terminativa......
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206
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214
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216
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 2 A ARGUMENTAÇÃO EM PERSPECTIVAS ............................................................ 2.1 A arte retórica, o jogo dialético e a erística dos sofistas........................................... 2.2 A Nova Retórica: uma lógica dos juízos de valor..................................................... 2.3 A argumentação no discurso...................................................................................... 2.4 Percursos de uma teoria da argumentação na língua.............................................. 3 LINGUAGEM, AÇÃO E O CARÁTER INSTITUCIONAL DA ATIV IDADE DISCURSIVA ................................................................................................................... 3.1 Bourdieu e a sociologia dos campos........................................................................... 3.2 O contraponto discursivo à sociologia dos campos................................................... 3.3 A dimensão institucional do discurso jurídico.......................................................... 3.3.1 As relações entre os fatos institucionais no nível dos atos de fala........................... 3.3.2 As relações entre os fatos institucionais no nível dos gêneros discursivos............. 3.3.3 As relações entre os fatos institucionais no nível dos domínios discursivos organizados por sistemas de gêneros................................................................................. 3.4 O Processo Penal em uma visão sistêmico-institucional.......................................... 3.4.1 Os sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros............................................... 3.4.2 Os sistemas de gêneros.............................................................................................. 4 EM TORNO DO CORPUS: ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA... 4.1 Apresentação do corpus............................................................................................... 4.2 Critérios de seleção...................................................................................................... 4.3 Hipótese e Justificativa................................................................................................ 4.4 Objetivos....................................................................................................................... 4.4.1 Objetivo geral............................................................................................................. 4.4.2 Objetivos específicos...................................................................................................................................
4.5 A posição do discurso processual penal no domínio discursivo jurídico................ 4.6 Nota sobre o Tribunal do Júri.................................................................................... 4.7 Aborto: entre o “ser” e o “dever ser”........................................................................ 5 O PROCESSO PENAL EM UMA VISÃO SISTÊMICO- INSTITUCIONAL: UMA PROPOSTA TEÓRICO- METODOLÓGICA DE ABORDAGEM DO CORPUS............................................................................................................................. 5.1 Divisão metodológica do Processo.............................................................................. 5.2 Peças selecionadas para análise.................................................................................. 5.3 Categorias e procedimentos de análise......................................................................
18
23 28 35 48 53
60 62 64 67 73 77
82 84 84 89
92 92 92 94 96 96 96 97 102 106
113 113 115 116
6 ANÁLISE DO CORPUS................................................................................................. 6.1 A Fase Policial.............................................................................................................. 6.1.1 O Relatório de Inquérito Policial.............................................................................. 6.1.1.1 Prólogo.................................................................................................................... 6.1.1.2 Desenvolvimento.................................................................................................... 6.1.1.3 Desfecho.................................................................................................................. 6.1.1.4 Considerações......................................................................................................... 6.2 O Juízo Singular: da Denúncia à Sentença de Pronúncia....................................... 6.2.1 A Denúncia................................................................................................................ 6.2.1.1 Prólogo.................................................................................................................... 6.2.1.2 Desenvolvimento.................................................................................................... 6.2.1.3 Desfecho.................................................................................................................. 6.2.1.4 Considerações......................................................................................................... 6.2.2 A Defesa Prévia.......................................................................................................... 6.2.3 As Alegações Finais do Ministério Público.............................................................. 6.2.3.1 Relatório................................................................................................................. 6.2.3.2 Fundamento........................................................................................................... 6.2.3.3 Requerimento......................................................................................................... 6.2.3.4 Considerações......................................................................................................... 6.2.4 As Alegações Finais da Defesa................................................................................. 6.2.4.1 Relatório................................................................................................................. 6.2.4.2 Fundamento........................................................................................................... 6.2.4.3 Requerimento......................................................................................................... 6.2.4.4 Considerações......................................................................................................... 6.2.5 A Sentença de Pronúncia.......................................................................................... 6.2.5.1 Relatório................................................................................................................. 6.2.5.2 Fundamento............................................................................................................6.2.5.3 Dispositivo.............................................................................................................. 6.2.5.4 Considerações......................................................................................................... 6.3 Sequência típica executada após a Pronúncia: movimentos de uma rotina forense................................................................................................................................. 6.4 Fase Recursal (do Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão)....................................6.4.1 O Acórdão...................................................................................................................6.4.1.1 A ementa............................................................................................................... 6.4.1.2 A súmula............................................................................................................... 6.4.1.3 O voto.................................................................................................................... 6.4.1.4 Análise argumentativa do Acórdão: quadro institucional, doxa, premissas.... 6.5 Preparação para a Sessão de Julgamento..................................................................6.6 A Sessão de Julgamento...............................................................................................6.6.1 Aborto, direito e justiça: considerações sobre orador, auditório, elementos dóxicos e provas do discurso, a partir do veredicto do Conselho de Sentença................. 6.6.1.1 O depoimento na Delegacia de Polícia................................................................. 6.6.1.2 O depoimento diante do Juiz de Direito.............................................................. 6.6.1.3 O depoimento diante do Conselho de Sentença..................................................
119 119 122 124 126 130 131 134 137 139 142 143 145 146 147 148 150 154 155 155 157 157 160 161 162 164 166 168 169
172 176 177 179 180 180 181 200 201
203 206 208 208
6.6.1.4 Considerações......................................................................................................... 6.7 A Sentença.................................................................................................................... 6.7.1 Considerações............................................................................................................ 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... REFERÊNCIAS................................................................................................................. APÊNDICES...................................................................................................................... ANEXOS.............................................................................................................................
210 213 216
218
223
233
241
18
1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho, elaborado segundo a perspectiva teórico-metodológica da linha de
pesquisa “Enunciação e Processos Discursivos”, propomos uma reflexão acerca do domínio
discursivo jurídico e de suas características constitutivas, as quais lhe outorgam uma
conformação particular no interior do vasto território das práticas de linguagem.
Como se trata de um domínio muito amplo, composto por inúmeras vertentes e
ramificações, optamos por trabalhar com uma área específica de sua ocorrência, na qual se
delineia o discurso judicial processual penal de competência do Tribunal do Júri.
A fim de concretizar essa reflexão, partimos do estudo de um caso de interação no
meio judiciário, para que, a partir das observações realizadas nessa situação particular,
pudéssemos construir hipóteses explicativas do funcionamento discursivo no Júri Popular. O
caso concreto a que nos referimos é um processo movido pelo Ministério Público em face de
uma mulher, sob a acusação de que ela teria praticado o crime de autoaborto.
Para a abordagem aqui intentada, nosso trabalho foi estruturado em três partes: a
primeira delas reservada à exposição das linhas teóricas adotadas; a segunda, voltada a
aspectos metodológicos de composição e abordagem do corpus e a terceira e última parte
destinada às análises.
Da primeira parte do trabalho, constam, assim, dois capítulos de natureza teórica: “A
Argumentação em Perspectivas” e “Linguagem, Ação e o Caráter Institucional da Atividade
Discursiva”.
Como nosso foco de análise está voltado para o funcionamento discursivo da
argumentação no domínio jurídico, elaboramos, em “A Argumentação em Perspectivas”, uma
resenha sobre os estudos desenvolvidos em torno dessa temática, reconstruindo os percursos
trilhados desde os primeiros tempos, no mundo clássico, até as pesquisas mais
contemporâneas no âmbito dos estudos linguísticos.
A abordagem dos modelos teóricos desde sua origem filosófica nos parece interessante
porque, no discurso judicial, o quadro argumentativo instaurado é tributário da dialética, na
medida em que se assemelha a um jogo, no qual dois oponentes – acusação e defesa – travam
uma disputa, segundo um sistema de regras rígidas e predeterminadas, com vistas a persuadir
o Juiz de Direito. A este último cabe a faculdade de dizer sobre o vencedor do conflito.
É também tributário da retórica, já que os oponentes não têm a pretensão de
demonstrar a verdade factual, mas apenas de reconstruí-la de modo que se torne verossímil
19
perante o julgador. Para esse fim, utilizam-se de raciocínios e estratégias que também estão
sujeitos à coerção legal.
Apropriando-se, em maior ou menor extensão, dos fundamentos retóricos e dialéticos
da argumentação, as teorias contemporâneas seguem caminhos diversos, algumas mais
voltadas para o semantismo da língua, outras para o estudo das relações entre linguagem e
ação. Entre tais modelos, discorremos brevemente sobre a Teoria da Argumentação na
Língua, de Ducrot e seus colaboradores, a Pragma-Retórica, de Marcelo Dascal, e a Pragma-
Dialética, de van Eemerem e o grupo de Amsterdã.
No capítulo seguinte, ainda na parte dedicada à revisão teórica, tratamos da dimensão
institucional do discurso jurídico.
Ao iniciarmos as investigações sobre o domínio discursivo jurídico, especialmente na
modalidade “discurso judicial processual”, encontramos na literatura várias referências a seu
atributo de performatividade, com ênfase na propriedade de realizar ações pelo proferimento
de determinados enunciados, sob certas condições. Assim, para se executar um ato de fala
com força ilocucional capaz de realizar ações, aquele que o profere deve deter certa posição
institucional, ou autoridade reconhecida, em relação ao que diz e a quem diz, da mesma forma
que as circunstâncias discursivas devem ser adequadas para esse tipo de pronunciamento.
Especialmente em um discurso argumentativo, como é o caso de nosso corpus, a
performatividade da linguagem é construída paralelamente e em associação às estratégias
argumentativas.
Na tentativa de explicar como o discurso jurídico adquire o atributo de
performatividade, evidenciamos, neste capítulo, como as relações entre os fatos institucionais
travadas nesse domínio criam uma dinâmica discursiva peculiar. Essa dinâmica é observada
quando partimos do nível inferior de busca de consenso pragmático (composto pelos atos de
fala), passando pelos gêneros discursivos, até alcançar o nível superior, onde sistemas de
gêneros se articulam para a produção de fatos sociais.
Considerando que a interpretação dessa dinâmica poderia ser utilizada com fins
metodológicos, empreendemos uma primeira abordagem de nosso corpus, identificando os
principais sujeitos que atuaram no processo analisado, os conjuntos de gêneros que eles
empregaram no desempenho de suas atividades e a forma como esses conjuntos se
entrelaçaram para compor um sistema de atividades.
Na segunda parte do trabalho, foram dispostos dois capítulos de natureza
metodológica: “Em torno do corpus: aspectos metodológicos da pesquisa” e “O Processo
20
Penal em uma visão sistêmico-institucional: uma proposta teórico-metodológica de
abordagem do corpus”.
O capítulo intitulado “Em torno do corpus: aspectos metodológicos da pesquisa” foi
elaborado com a finalidade de descrever o corpus e de explicitar os critérios empregados para
sua seleção; apresentar hipótese, justificativa e objetivos pretendidos; mostrar a posição
ocupada pelo discurso processual penal no interior do domínio discursivo jurídico e tecer
considerações sobre aborto e Tribunal do Júri no Brasil.
Adotamos como hipótese de pesquisa a observação de que os atos de fala definem e
designam os gêneros discursivos, além de contribuírem para sua orientação argumentativa;
cada sujeito processual, em uma situação de interação linguageira travada nos limites de um
processo judicial, produz conjuntos de gêneros no desempenho de suas atividades
profissionais; diversos conjuntos de gêneros se articulam para a formação de sistemas de
gêneros que, por sua vez, compõem um domínio discursivo e realizam alterações na realidade
social.
De maneira sintética, podemos dizer que essa pesquisa se justifica devido às próprias
características do discurso judicial, cuja natureza conflitual e problematizante faz com que a
produção discursiva engendrada nos tribunais seja um terreno fértil para os estudos
argumentativos. No Júri Popular, dada a tradição ritualística seguida pela instituição, essas
características são ainda mais evidentes. Como argumentar é, basicamente, agir sobre o outro
por intermédio da linguagem, parece produtivo relacionar a pesquisa sobre os quadros da
argumentação à investigação das condições para a ação discursiva.
O objetivo geral do trabalho é o de refletir sobre as características peculiares do
domínio discursivo jurídico, definindo sua situação no território das práticas de linguagem.
Como objetivos específicos, buscamos, entre outros: construir um discurso explicativo
do discurso judicial processual penal do Tribunal do Júri, por meio da avaliação de aspectos
relativos a suas condições enunciativas e à orientação argumentativa encontrada nos diversos
gêneros produzidos pelos sujeitos que participam de uma relação processual, do inter-
relacionamento entre esses gêneros e das atividades sociais produzidas como resultado final
da tramitação de um processo; delimitar as condições enunciativas próprias de cada etapa
processual, assim como dos atos e proferimentos selecionados para análise; refletir sobre a
performatividade da linguagem no âmbito do discurso judicial processual penal; correlacionar
a força ilocucional dos atos de fala à orientação argumentativa dos proferimentos; analisar a
estrutura argumentativa dos gêneros que compõem o processo selecionado como corpus e
21
discutir os conceitos de doxa, representações sociais, topoï e seus correlatos e sua função no
discurso argumentativo de natureza jurídica.
Por considerarmos que toda atividade discursiva é tributária dos quadros institucionais
e formais nos quais se desenvolve, também nos pareceu importante esclarecer qual a posição
ocupada pelo discurso processual penal, do qual nosso corpus é representante, no interior do
domínio discursivo jurídico. Nesse sentido, procedemos a uma descrição do funcionamento
do Júri Popular e da configuração que esta instituição assumiu, em nosso país, nos dias atuais.
Ainda nesse capítulo, direcionamos nosso olhar para a compreensão acerca de como o
aborto é encarado pela sociedade e encampado pelo direito pátrio, quando então observamos a
existência de contradições entre o universo do “ser” e do “dever ser”. Diante desse estado de
coisas, questionamos a razão de nosso ordenamento preconizar que se leve a julgamento, na
Tribuna Popular, um crime cuja ocorrência se dá na esfera mais íntima de um ser humano.
Caminhamos, assim, para a reflexão acerca do crime de aborto no Brasil, procurando
entender como os estereótipos circulantes, o imaginário social criado em torno da interrupção
voluntária da gravidez, a crença religiosa de que a vida humana é sagrada porque originária de
Deus, enfim, como essa forma de pensar, fundada na moral cristã, interferiu no julgamento
aqui analisado. Julgamento no qual uma mulher foi levada à tribuna pela suposta prática de
um procedimento realizado na esfera mais íntima de sua existência, ligado à disponibilidade
de seu corpo e do que nele se encerra, prática a respeito da qual não há consenso nem no
campo do direito, nem na moral e muito menos na religião.
No capítulo seguinte, “O Processo Penal em uma visão sistêmico-institucional: uma
proposta teórico-metodológica de abordagem do corpus”, procedemos, inicialmente, a uma
divisão metodológica do Processo em 7 etapas, levando em consideração as condições
enunciativas próprias de cada uma delas. A saber: Fase Policial, Juízo Singular (da Denúncia
à Decisão de Pronúncia); Sequência típica executada após a Pronúncia; Fase Recursal (do
Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão); Preparação para a Sessão de Julgamento; Sessão de
Julgamento e Sentença.
De cada uma dessas etapas, selecionamos para análise, segundo os critérios
explicitados no referido capítulo, peças e atos processuais que consideramos mais
representativos, como: o Relatório de Inquérito Policial; a Denúncia; as Alegações Finais do
Ministério Público; as Alegações Finais da Defesa; a Sentença de Pronúncia; a sequência de
carimbos para publicidade da Sentença de Pronúncia; o Acórdão; o depoimento prestado pela
ré na sessão de julgamento (em contraposição aos depoimentos que ela prestou em outras
fases do processo) e, finalmente, a Sentença que extinguiu o feito.
22
As categorias de análise foram aquelas retiradas das teorias de argumentação
apresentadas no capítulo teórico, atos de fala e gêneros, além de outras que se fizeram
necessárias e foram explicitadas ao longo das análises. Dessa forma, é sob uma perspectiva
discursiva, aliada a contribuições da Teoria dos Atos de Fala e dos gêneros como forma de
interação social, que se insere a proposta teórico-metodológica de abordagem de nosso
corpus.
Na última parte do trabalho, intitulada “Análises”, submetemos as peças selecionadas
à investigação, aplicando a elas as categorias já mencionadas. O objetivo buscado nessa fase
de nosso trabalho era o de revelar as características linguístico-discursivas de cada peça
processual, sobretudo no que respeita às condições enunciativas do proferimento, às
estratégias argumentativas desenvolvidas por seu produtor e à função desempenhada por ela
no sistema de atividades que é o Processo Penal.
Por último, nas “Considerações finais”, registramos uma reflexão geral acerca das
análises desenvolvidas ao longo deste estudo, lembrando que, com vistas a traçarmos
conclusões mais amplas e confiáveis sobre o domínio discursivo jurídico, buscamos articular
os dados linguísticos aos conhecimentos provenientes da literatura jurídica, apoiando-nos,
para isso, em autores do campo do Direito, como Ferraz Jr. (1997), Mirabete (2001) e Bittar
(2009), entre outros.
23
2 A ARGUMENTAÇÃO EM PERSPECTIVAS
Em nosso trabalho, propomo-nos a elaborar uma delimitação linguístico-discursiva do
domínio discursivo jurídico. Para isso, selecionamos como um de nossos objetos de
investigação a estrutura argumentativa dos proferimentos produzidos ao longo do processo
judicial ora assumido como corpus. Torna-se necessário, então, estabelecer o que se entenderá
por argumentação nos limites de nosso texto. Entretanto, este é um campo aberto, vasto e
complexo, sujeito aos influxos de uma multiplicidade de disciplinas, o que faz dessa
necessidade de posicionamento uma tarefa árdua para o pesquisador.
Iniciando nossa reflexão a partir da dimensão filosófica do termo, acreditamos que
seja útil apresentar uma primeira distinção entre duas categorias que se assemelham, sem se
confundir, e a partir dessa particularização, podemos extrair consequências importantes para a
compreensão da atividade de argumentar.
Filiados a uma concepção retórica, encontramos uma oposição constitutiva entre
argumentação e demonstração: esta está para a lógica, assim como aquela está para a retórica
e a dialética.
A lógica, conforme Plantin (2002), é a ciência da transferência correta da verdade de
enunciado a enunciado. Enquanto a demonstração se materializa à imagem de um cálculo
matemático, onde uma premissa verdadeira é relacionada a outra premissa verdadeira e, ao
final, chega-se a uma conclusão igualmente verdadeira, a argumentação, por sua própria
natureza, rompe com essa estrutura de raciocínio e opera uma abertura nesse circuito fechado
à influência do social.
Na argumentação, uma premissa verossímil, relacionada a outras premissas
verossímeis, permite que se chegue a uma conclusão também verossímil. O critério de
verossimilhança é subjetivo, de forma que seu preenchimento demanda a avaliação da
qualidade das premissas pelo público almejado. Decorre desse critério a diferença
fundamental entre as duas categorias: a argumentação se realiza em função de um público,
que tem o poder de decidir sobre o que é verossímil ou não. A demonstração é o que é, por
isso prescinde da adesão de um auditório. Em tese, ela porta em si mesma a verdade.
O sucesso de uma argumentação, portanto, está atrelado à opinião do outro. Por isso, é
preciso que o locutor disponha de premissas fortes e que saiba gerenciar técnicas linguageiras
que lhe possibilitem alcançar a razão e os sentimentos de seu público, o que se traduz pelo
24
conceito de persuasão. A lógica não se importa em persuadir, mas para a argumentação, essa é
matriz de todo o processo.
Assumimos, assim, a hipótese de que todo ato de argumentar parte de premissas
verossímeis e chega a conclusões verossímeis, ou seja, o que parece mais razoável para atingir
um auditório. Para essa finalidade, os oradores administram um repertório de técnicas e
estratégias mais ou menos racionais, sem jamais prescindir, contudo, do elemento emocional.
Mesmo nesse espaço flexível, existem princípios e regras a serem observados e qualquer
forma de violação implica a desqualificação do orador e até mesmo da própria argumentação.
Estabelecida essa primeira distinção, ainda há muito o que se pontuar acerca desse
processo de gerenciamento de técnicas linguageiras a fim de se promover a persuasão de um
auditório, assim como a respeito da situação em que esse processo tem lugar.
O ato de argumentar encontra espaço em todos os lugares onde exista a abertura para a
dúvida e para o conflito, onde não se disponha de uma verdade definitiva acerca de um dado.
Essa abertura faz com que a argumentação seja do interesse de diversas áreas do
conhecimento humano, como o Direito, a Sociologia, a Filosofia e as Ciências da Linguagem,
embora apenas recentemente tenha alcançado o estatuto de objeto legítimo de investigação
nesse último domínio.
De acordo com Plantin (2002), deve-se a Ducrot e seus colaboradores1, a retomada do
interesse pelos estudos da argumentação, a partir dos anos de 1970, em um momento em que
as Ciências da Linguagem ainda experimentavam a influência do estruturalismo de Saussure,
mesmo que de forma já bastante mitigada. Ao privilegiar o estudo da língua como um
sistema, essa perspectiva implicava que o uso fosse excluído do campo da investigação
científica. Amossy (2005b) relata que, na medida em que a utilização da linguagem em
contexto não podia ser objeto de uma pesquisa legítima, a dimensão retórica escapava
necessariamente ao trabalho dos linguistas.
A argumentação retórica só retorna à cena de forma indireta, através dos estudos da
filosofia analítica anglo-saxônica, quando então se consolida uma tendência de se estudar não
somente o sistema da língua, mas também o enunciado em contexto. Atribui-se a Austin
(1970) o mérito de conceber a noção de ato ilocucional, onde uma ação é atrelada a uma
palavra, e de ato perlocucional, que consiste em produzir um efeito sobre aquele a quem se
dirige. Essa concepção de linguagem como ato dotado de uma força permite a retomada de
uma tradição retórica secular cujo interesse estava perdido. Em torno dessa concepção de
1 Entre eles, podem ser citados Jean-Claude Anscombre, Marion Carel e P. Racah.
25
Austin de que o dizer implica um fazer, desenvolveu-se a Pragmática, a qual designa menos
uma disciplina precisa que um modo de apreensão da linguagem.
No momento em que se iniciava essa revitalização nos estudos da argumentação, a
Análise do Discurso estava voltada para questões políticas e ideológicas, na esteira de
trabalhos propostos por pensadores como Althusser, Deleuze, Foucault, Lacan e Pêcheux.
Plantin (2002) esclarece que a Análise do Discurso preconizada nessa época instala a política
na teoria do discurso, considerando que as noções de sujeito, de sentido, de escolha e de
intenção, fundamentais para a retórica aristotélica assim como para a Nova Retórica de
Perelman, eram consideradas excessivamente tradicionais, conservadoras, reacionárias, por
derivarem de uma visão de mundo clássica. A rejeição a essas noções constituía, portanto, um
ato político fundador.
Partindo das considerações filosóficas a respeito da argumentação e aliando-as aos
elementos próprios das Ciências da Linguagem, as teorias da argumentação propostas desde
então, que não são poucas, desenvolveram seus fundamentos e implicações, cada qual
elegendo pontos de interesse específicos e trabalhando com orientações diferentes,
apropriando-se do conhecimento legado pelos clássicos e criando ramificações que podem,
em graus diferentes, contribuir para o entendimento da argumentação no seu sentido mais
amplo.
Como as teorias da argumentação são muitas e têm trajetórias longas, optamos por
apresentar em nosso trabalho uma síntese programática de algumas delas, as quais
acreditamos que serão de grande utilidade para a consecução dos objetivos aqui propostos de
caracterização do domínio discursivo jurídico, começando por um breve relato sobre a
dimensão filosófica da argumentação, representada pela retórica, pela dialética e pela erística,
pois em maior ou menor extensão, todas as teorias posteriores apropriaram-se dos preceitos
clássicos.
Discorremos, em seguida, sobre a Nova Retórica, de Perelman, que ao retornar à
tradição clássica e recuperar fundamentos da retórica e da dialética, elabora um trabalho novo,
grandioso, de importância inquestionável para o pesquisador que se propõe a analisar um
discurso de natureza jurídica.
Na sequência, apresentamos o trabalho de Ruth Amossy, cujos esforços têm sido
direcionados no sentido de propor uma articulação dos postulados da Nova Retórica aos
instrumentos de uma análise linguística de viés discursivo, com avanços consideráveis para as
pesquisas em argumentação.
26
Como contraponto ao modelo de procedência perelmaniana, partimos para a Teoria da
Argumentação na Língua, de Ducrot, para mostrar a originalidade de um modelo construído à
deriva da tradição retórica, que se propõe a explicar a argumentação no interior de um sistema
do qual se pretende excluir qualquer referência extralinguística.
A exposição dessas teorias não obedece, necessariamente, a um critério cronológico,
pois sua principal finalidade é a de evidenciar, em cada um dos modelos selecionados, os
fundamentos retóricos, dialéticos, semânticos e pragmáticos da argumentação. Esclarecemos,
também, que a preferência pela exposição dessas teorias não significa, contudo, que deixamos
de considerar a importância de outras formulações, ou mesmo de autores que têm se dedicado
ao estudo da argumentação. Trata-se apenas de uma opção metodológica.
Assim, reconhecemos a importância, por exemplo, da obra de Toulmin (1993) que,
paralelamente a Perelman, nos final dos anos de 1950, propõe um modelo dedicado ao estudo
da argumentação sob uma perspectiva pragmática, orientada para sua descrição na prática
jurídica.
Bem mais contemporaneamente, no âmbito dos estudos da vertente francesa de
Análise do Discurso, Charaudeau (1992) desenvolve um modelo em que a argumentação é
compreendida como um modo de organização do discurso, assim como os modos descritivo,
narrativo e enunciativo. Identifica-se uma semelhança entre esse modelo e o de Perelman no
que diz respeito ao quadro em que se instala a argumentação, que é sempre conflitual,
portanto, na linha da retórica do conflito.
Lembramos também os modelos de inspiração lógica, como a Lógica Informal,
desenvolvida a partir da década de 70, na América do Norte. Contrariamente à lógica
matemática, essa corrente tem por objeto os raciocínios desenvolvidos em situações reais da
vida cotidiana, com a preocupação de elaborar instrumentos capazes não apenas de descrever
os tipos de argumentos, mas de avaliá-los conforme um critério racional. O modelo adquire,
assim, contornos de uma teoria normativista da argumentação, ao propor que os indivíduos
adotem uma atitude crítica frente aos argumentos – o critical thinking (AMOSSY, 2006).
Nesse empreendimento normativista, a Lógica Informal parte para o estudo dos paralogismos,
que são considerados violações às normas de um diálogo racional.
No final dos anos de 1960, Grize se filia a esse movimento de contestação à lógica
formal e propõe a construção de uma abordagem da argumentação conhecida como Lógica
Natural, que se afasta do modelo anteriormente citado por não adotar a perspectiva
normativista.
27
Também influenciados pelos axiomas do critical thinking, van Eemeren, Grootendorst
e o grupo de Amsterdã lançaram as bases de uma teoria – a Pragma-Dialética – que prega o
debate racional como forma de solução de conflitos. A racionalidade, nesse sentido, implica
que os participantes da relação discursiva realizem intervenções em conformidade com um
sistema de regras compartilhadas entre eles. Nesse território, a argumentação é postulada
como uma atividade verbal e social da razão, constituída como um processo dialógico de
resolução de conflitos. Seu objetivo é fazer com que um auditório aceite uma posição
controversa como válida, oferecendo, para isso, um amplo arsenal de proposições destinadas a
justificar, ou refutar, esta posição diante de um juiz racional.
Da dialética, os pragma-dialeticistas recuperaram a figura da interação verbal como
um jogo especulativo, no qual um participante sustenta uma tese e outro a ataca com todos os
argumentos possíveis, sendo considerado vencedor aquele que conduzir o adversário ao
silêncio. Da pragmática, apropriaram-se das contribuições da Teoria dos Atos de Fala, ao
assumirem a concepção de que o dizer pode constituir um fazer. Segundo Amossy (2006),
eles tomaram para si a noção de força ilocucional, que designa ações como prometer, acusar,
interrogar, etc. Em decorrência, postulam que a argumentação consiste em um ato de
linguagem complexo, que se expande sobre um conjunto de enunciados e engloba os atos de
fala elementares em função da comunicação, sendo que a análise da construção e do emprego
desse ato se dá em um quadro de diálogo, destinado a resolver os conflitos de opinião.
A fim de descrever as condições que possibilitam o jogo do diálogo racional, os
criadores da Pragma-Dialética estatuem uma espécie de “contrato de argumentação”, no qual
está prevista uma série de regras a serem observadas pelos participantes da interação verbal,
sendo que qualquer transgressão a elas corresponde a impedir que a verdade ética da troca
argumentativa se estabeleça.
As regras a serem observadas são as seguintes: os participantes não devem opor
obstáculo à expressão ou ao questionamento de pontos de vista; toda parte que expõe uma tese
é obrigada a defendê-la, se seu adversário assim solicita; a crítica a uma tese deve se restringir
estritamente a seus limites; uma tese somente pode ser defendida por meio de argumentos
relativos a ela; uma pessoa pode defender uma tese mediante premissas implicitamente
reservadas; considera-se que uma tese é defendida de maneira condizente quando são
empregados argumentos oriundos de um ponto de vista comum; considera-se que uma tese foi
sustentada de maneira conclusiva se a defesa ocorre por meio de argumentos pelos quais um
esquema de argumentação comumente aceito encontra sua aplicação concreta; os argumentos
usados em um debate devem ser válidos ou sujeitos à validação pela explicitação de uma ou
28
várias das premissas implícitas; o fracasso de uma sustentação implica que seu protagonista
retire sua tese e, finalmente, os enunciados não devem ser vagos, incompreensíveis, confusos
ou ambíguos.
De outra parte, interessado na relação entre linguagem e ação, Dascal constrói a Teoria
conhecida como Pragma-Retórica: uma teoria calcada em princípios retóricos, complementada
por elementos de pragmática, especialmente da versão conversacional de Grice (1976),
abrangendo em seus domínios o ethos e o pathos sob uma perspectiva argumentativo-
cognitiva. Com isso, no ponto de vista do autor, a retórica ganharia status de teoria cognitiva
coerente, ao receber contribuições da pragmática e da psicologia cognitiva, ao passo que a
pragmática se beneficiaria com uma ampliação de sua abrangência explicativa, que agora daria
conta de lidar com interações de cunho mais persuasivo do que apenas informativo. Essa
função explicativa incluiria em seu conteúdo o estilo e a organização referentes às relações
interativas, assim como os aspectos concernentes às emoções dos ouvintes e ao caráter dos
falantes.
Uma contribuição importante de Dascal (2005) para os estudos da argumentação no
discurso é a concepção de um ethos que comporta duas dimensões, uma tematizada e outra
projetada. Nesse sentido, a construção das imagens de si no discurso se realiza em dois níveis
distintos: em um primeiro nível, mais superficial, em que aparece o ethos tematizado, no qual o
enunciador faz uma demonstração explícita de seu caráter (conteúdo declarado das
proposições) e, em um nível mais profundo, o ethos projetado pelo comportamento discursivo
do enunciador (conteúdo implícito das proposições), que produz influências sobre a opinião
que os ouvintes guardam acerca da validade de seus argumentos.
Há ainda os pesquisadores que se dedicam aos fundamentos da argumentação, sem
construir, contudo, um modelo ou um corpo teórico no sentido a que nos referimos até esse
momento, mas que muito têm contribuído para o avanço dos estudos da argumentação. Entre
eles, podemos citar Meyer, Breton, Chabrol, Doury, Plantin, Moeschler, Eggs, entre outros.
Na sequência, iniciamos nosso movimento de retorno às origens.
2.1 A arte retórica, o jogo dialético e a erística dos sofistas
O nascimento da retórica é tradicionalmente atribuído ao siciliano Córax e remonta ao
século V a.C., a um período histórico caracterizado pela transição de um governo tirânico para
29
um regime democrático. Nesse período, inúmeros conflitos judiciários foram travados por
cidadãos que, despojados de seus bens pela tirania, recorriam à justiça na tentativa de reavê-
los. Contudo, não se conhecia a figura do profissional da advocacia como se conhece nos dias
atuais, de forma que os cidadãos que buscassem a solução de seus conflitos no judiciário,
deveriam providenciar por si mesmos a sustentação de suas teses.
Atentos a essa crescente necessidade prática de elaboração discursiva, Córax e seu
discípulo Tísias, por volta de 465 a.C., lançaram o primeiro tratado metódico sobre a arte da
palavra – um manual que apresentava, de forma didática, lições de como bem sustentar uma
tese em juízo, com vistas a vencer qualquer demanda.
Nesse momento, a retórica, entendida como a arte de persuadir, adquiria cada vez mais
prestígio, pois existia uma crença de que aquele que dominasse suas técnicas seria capaz de
convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. Portanto, naquele contexto judiciário, a praxis
indicava que a causa vencedora em um conflito judicial não tinha que ser necessariamente a
mais justa, mas com certeza, a mais eficientemente sustentada em juízo, o que permite a
observação de que a retórica não argumenta a partir do verdadeiro, mas do verossímil.
Da Sicília, então dominada pelos gregos, a retórica migrou para Atenas e lá encontrou
terreno fértil para o desenvolvimento de seus postulados, com o florescimento da polis grega,
onde as decisões políticas eram tomadas mediante ampla participação popular, em debates
coletivos organizados para que as pessoas pudessem exercer seu direito de livre opinião e
expressão, no interior de um quadro institucional dotado de leis.
Considerando esse contexto em que nasceu e se desenvolveu a retórica, torna-se
plenamente compreensível o realce que os pesquisadores dão a seu caráter sociocultural de
instrumento prático de exercício da cidadania que, segundo Amossy (2006), permitia tanto a
boa marcha da justiça, pelo manuseio da controvérsia, como o bom funcionamento da
democracia, pela prática da palavra pública.
Paralelamente à retórica, desenvolveu-se também na Antiguidade clássica o programa
conhecido como erística dos sofistas. Nesse domínio, a persuasão do outro pela linguagem é
um alvo a ser alcançado a qualquer custo. Percebe-se, assim, uma semelhança entre retórica e
sofística no que diz respeito aos objetivos pretendidos, mas o repertório de estratégias
permitidas por esta última é bem mais amplo. Ambas têm em comum a utilização de técnicas
discursivas com vistas à persuasão, mas o campo de atuação da Sofística para a consecução
desses fins é bem mais maleável e dispensa qualquer compromisso com a verossimilhança.
30
“Mercenários da palavra”, quando se tratava de conquistar o assentimento do outro a
uma determinada tese, os sofistas colocavam em cena todo o seu arsenal de técnicas
persuasivas, sem a preocupação de buscar um fundamento racional para as coisas.
Assim, para vencer um debate e deixar o alocutário sem réplica, o discurso elaborado
por um locutor sofista não precisava ser verdadeiro e nem mesmo verossímil, só tinha que ser
eficaz. Essa busca da vitória a qualquer custo, desvinculada de um ideal de verdade, rendeu
inúmeras críticas aos sofistas desde sempre, mas, segundo Reboul (2004), não se pode deixar
de reconhecer as contribuições filosóficas que essa forma de pensar legou paras os modelos de
análise argumentativa desenvolvidos posteriormente.
Nesse sentido, atribui-se à erística dos sofistas a concepção de que a verdade não passa
de um acordo entre interlocutores: acordo final, que resulta da discussão e, ao mesmo tempo,
acordo inicial, sem o qual a discussão não seria possível. Para Emediato (2001), os sofistas
foram hábeis em extrair do discurso toda sua potencialidade, pela exploração da dimensão
polissêmica das palavras e da instrumentalização da linguagem para os fins de persuasão.
No que diz respeito à opinião de Platão, a retórica não gozava de maior prestígio que a
erística. Para ele, a retórica não passava de uma manipulação desenfreada e imoral das
técnicas argumentativas com o intuito de subverter a verdade absoluta e universal que existe a
respeito de cada coisa. Platão acreditava que, enquanto técnica instrumental de conteúdo
impreciso, ela poderia ser usada indiferentemente para atingir objetivos sublimes ou nefastos.
Assim, dialética e retórica são consideradas formas opostas de persuasão. A dialética, mais
nobre, é definida como um diálogo em que dois participantes buscam a verdade, com
intervenções breves. A retórica, esvaziada aqui de qualquer importância teórica, consiste em
mera prática mundana, cujo intuito é divertir e agradar ao povo, utilizando o discurso contínuo
onde é fácil a dispersão.
É interessante observar que a dialética nem sempre desempenhou o nobre papel de
“raciocínio a favor da filosofia e da ciência”. Reboul (2004) relata que a primeira dialética foi
justamente a erística dos sofistas, considerada uma arte da controvérsia que permitia o triunfo
até mesmo do absurdo ou do falso. Essa concepção de dialética a serviço do verdadeiro deve-
se a Sócrates e a Platão, que a transformaram no próprio método da filosofia.
Para Aristóteles, a dialética não está a serviço nem do verdadeiro nem do falso, mas
sim do provável, e é isso que a diferencia da demonstração filosófica e científica. Ela é
simplesmente um jogo, cuja finalidade é vencer. Contudo, esse jogo deve ser jogado
respeitando-se estritamente as regras da lógica. Sejam as premissas certas, prováveis ou falsas,
o raciocínio deve ser correto. Essa é a pedra angular que a diferencia da erística dos sofistas.
31
Com essa hipótese, Aristóteles divergiu de seu mestre Platão que, segundo Reboul
(2004), exaltava a dialética e desprezava a retórica. Na filosofia aristotélica, uma e outra estão
em um mesmo plano. Ambas são capazes tanto de provar uma tese quanto o seu contrário;
ambas são universais, no sentido de não serem ciências, mas técnicas que buscam identificar o
que cada caso tem de persuasivo; ao contrário da erística dos sofistas, as duas são capazes de
fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente (a dialética entre silogismo
verdadeiro/sofisma e a retórica entre o realmente persuasivo/logro); por fim, tanto uma quanto
a outra utilizam dois tipos idênticos de raciocínio argumentativo, que são a indução e a
dedução.
As afinidades entre as duas técnicas são tantas e tão decisivas que quase nos fazem
crer que se trata de uma só disciplina. Contudo, Reboul esclarece que a retórica é uma
aplicação da dialética:
Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes, mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialética é apenas um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. (REBOUL, 2004, p. 39).
Além do esforço de reabilitação da retórica, atribui-se ainda a Aristóteles a
sistematização dos estudos sobre os meios de persuasão, na Antiguidade, em quatro
dimensões argumentativas: a Demonstração, a Retórica, a Sofística e a Dialética. A “Arte
Retórica” é apenas uma parte dos estudos sobre a argumentação. Em suma, tanto a retórica
quanto a dialética são para Aristóteles faculdades de fornecer argumentos e não há
subordinação de uma em relação à outra. A Sofística é definitivamente relegada a plano
inferior (MENEZES, 2004).
Afirma-se que, durante a Idade Média, a retórica novamente perde o status adquirido
pela decodificação de Aristóteles, o que encontraria justificativa na moral cristã em vigor no
mundo medieval, que pregava um conceito absoluto de verdade. Para Reboul (2004),
contudo, a retórica desenvolveu-se durante todo esse período, tanto na literatura profana como
na pregação da Igreja, embora tenha se verificado um declínio no que respeita ao discurso
deliberativo. Autores como São Jerônimo (340-420), Santo Agostinho (354-430) e Isidoro de
Sevilha (560-636) podem ser citados como expoentes da retórica medieval.
Mudanças fundamentais ocorrem no interior do programa retórico com o advento da
Idade Moderna. Sob o impulso da racionalidade científica, promoveu-se uma cisão entre
dialética, cujo raciocínio foi plenamente identificado com o cientificismo em voga, e retórica,
32
agora esvaziada da concepção de discurso com vistas a persuadir, para reduzir-se ao estudo
dos meios de expressão ornados e agradáveis da Poética, como explicamos a seguir.
Ocorre que, na antiguidade clássica, a retórica é decomposta em quatro partes, pelas
quais se acreditava que um sujeito passasse ao longo de seu esforço de construção de um
discurso, a saber: invenção, disposição, elocução e ação.
A “invenção” engloba a concepção inicial do discurso, com a pesquisa acerca do
conteúdo e dos argumentos relativos ao tema trabalhado. A atividade de “disposição” consiste
em organizar as matérias do discurso, para estruturar seu conteúdo de acordo com um roteiro
objetivo e preciso. A “elocução” refere-se à preocupação com o estilo do discurso, manifesta
pela busca de adequação entre as palavras e os pensamentos do locutor. Nessa parte, incluem-
se as figuras de estilo. Por fim, a “ação” constitui a passagem do pensamento ao exercício da
palavra pública, com o ajuste da voz e da postura corporal.
Amossy (2006) esclarece que a referida cisão entre retórica e dialética acarretou ao
pensamento retórico a perda progressiva da invenção e da disposição, revertidas à conta da
lógica. A organização que sustenta os raciocínios e os lugares comuns dos quais eles se
nutrem, foram transportados do domínio da retórica para o da dialética. A elocução, por seu
turno, perdeu grande parte de sua relevância, como consequência do espaço menor ocupado
pela palavra oral na sociedade contemporânea. Assim, o que era uma arte da palavra eficaz
transformou-se em um tratado sobre figuras de estilo, especialmente a metáfora e a
metonímia.
No século XVII, Descartes lança a concepção de dúvida metódica, segundo a qual se
considera falso tudo o que não é verdadeiro, incluído aí o verossímil, de onde parte o
raciocínio retórico. Posteriormente, o positivismo, seguindo a esteira de Descartes, condenou
a retórica em nome da verdade científica, enquanto o romantismo a rejeitou em nome da
sinceridade. Nesse mundo dominado pelo racionalismo, não havia lugar para uma forma de
raciocínio assentada no provável, em prejuízo do certo e do verdadeiro. Em vez de ocupar-se
com a retórica e com opiniões enganadoras, acreditava-se que seria mais proveitoso para o
homem buscar o conhecimento da verdade, com amparo na filosofia de cunho racional.
A partir daí, a retórica viveu um período de esquecimento quase completo, para ser
novamente recuperada somente a partir dos anos de 1960, juntamente com o desenvolvimento
dos meios de comunicação de massa e a consolidação dos Estados democráticos.
Na atualidade, confirma-se esse movimento de revitalização dos estudos retóricos, já
que seus postulados encontram-se em perfeita consonância com o mundo contemporâneo, por
situarem-se no terreno da controvérsia, do debate, do verossímil e do opinável. De acordo com
33
Mosca (2001), seus mais legítimos representantes são, hoje em dia, os discursos jurídico,
político e publicitário, na medida em que mobilizam mais intensamente os recursos previstos
pelas possibilidades do sistema retórico.
Apreendido o sentido ao qual a palavra “retórica” nos reporta, restam algumas
considerações a respeito de três questões pontuais que merecem atenção especial: a primeira
delas diz respeito à dimensão linguageira da retórica aristotélica; a segunda, ao conceito de
topoï para Aristóteles e, por último, as relações entre auditório e gêneros oratórios.
Em primeiro lugar, como se afirmou, a Retórica concebe a argumentação como o ato
de destinar a palavra a um auditório, submetendo a ele teses não necessariamente verdadeiras,
mas verossímeis e razoáveis. Segundo Amossy (2006), essa característica da retórica se
justifica porque interessa a ela o que faz parte do humano, não da lógica, e o que resulta do
homem é sempre da ordem do verossímil, do opinável, do plausível, raramente pertence à
verdade demonstrável ou demonstrada.
Nesse território, onde a verdade absoluta não pode ser garantida, a retórica encontra
seu lugar, permitindo ao homem desenvolver raciocínios e comunicar-se com segurança
relativa, garantida por normas mínimas de racionalidade. Por isso, ela é exercitada em todos
os domínios onde se delibera com liberdade para se chegar a uma decisão, não com
fundamento em uma verdade absoluta, mas sobre o que é razoável.
Amossy (2006) afirma que, da própria delimitação do objeto da retórica clássica,
sobreleva sua dimensão linguageira: trata-se de um discurso que só tem razão de existir no
interior de um processo de interação, onde um locutor se amolda à imagem do alocutário, a
fim de agir sobre o seu espírito. Portanto, Aristóteles já postulava o dizer como fazer, muito
antes do advento da Pragmática.
Trata-se, ainda, de uma atividade verbal que mobiliza técnicas e estratégias para
atingir seus fins de persuasão, por acreditar na capacidade de raciocínio do auditório, tanto
que, em grego, a palavra logos designa “razão”. Em Aristóteles, o logos repousa
essencialmente sobre duas operações que são, respectivamente, o entimema, ou silogismo
oratório, e o exemplo, ou indução oratória. O primeiro é um silogismo incompleto, defeituoso,
que procede da dedução. O exemplo repousa sobre uma analogia e procede da indução, que
opera da passagem do particular ao geral.
Entretanto, não se pode perder de vistas que o logos não é para Aristóteles mais que
um dos polos da empresa de persuasão retórica: o logos (apelo à razão por meio dos
argumentos), juntamente com o pathos (procedimentos que visam a suscitar as paixões do
34
auditório) e o ethos (caráter moral que o orador deve apresentar no próprio discurso), compõe
uma tríade probatória fundamental.
Lembramos que, para Aristóteles, “as provas de persuasão fornecidas pelo discurso
são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras no modo como se
dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece
demonstrar.” (ARISTÓTELES, 1998, p. 105).
Outra questão relevante é a do papel ocupado pelos topoï nos estudos aristotélicos. A
retórica clássica reconhece na palavra uma força capaz de fazer os homens mudarem seus
pontos de vista por meios não coercitivos, durante uma interação verbal, na qual se recorre
apenas a instrumentos linguageiros. Para Aristóteles, essa ação de um homem sobre a vontade
do outro só é possível graças à incidência de topoï, ou seja, para garantir a adesão do
alocutário às opiniões que lhe são apresentadas, o locutor se apoia em topoï como porto
seguro de seu projeto de persuasão, na medida em que é mais fácil angariar a concordância do
outro quando se parte de um esquema previamente admitido por ele, sobre o qual é possível
fundar um acordo.
A posição ocupada pelo conceito de auditório na retórica clássica também é um ponto
a ser sublinhado. Perelman (1987) observa que Aristóteles classifica os discursos em três
grandes gêneros oratórios, a saber, o deliberativo, o judiciário e o epidíctico, de acordo com as
funções que os auditores têm de desempenhar em cada um deles: deliberar, julgar ou
simplesmente usufruir, como espectador, do desenvolvimento oratório.
Retomaremos esta questão dos gêneros em outro momento de nosso trabalho, mas a
fim de apresentar sinteticamente a concepção que Aristóteles desenvolveu sobre o assunto,
apresentamos um quadro adaptado de Reboul (2004), no qual estão relacionados os tipos de
auditório a que se dirigem os gêneros de discurso, o tempo a que se referem, os atos
praticados por seu intermédio, os valores que lhes servem como norma, os raciocínios e os
topoï desenvolvidos predominantemente em cada um:
OS TRÊS GÊNEROS DO DISCURSO
Gênero Auditório Tempo Ato Valores Argumento-tipo Topoï
Judiciário Juízes Passado Acusar
Defender Justo
Injusto Entimema (dedutivo)
Real Irreal
Deliberativo Assembleia Futuro Aconselhar
Desaconselhar Útil
Nocivo Exemplo (indutivo)
Possível Impossível
Epidíctico Espectador Presente Louvar
Censurar Nobre/vil Belo/feio Amplificação
Mais Menos
Quadro 1: Gêneros do discurso na retórica aristotélica Fonte: Elaborado pela autora a partir de Reboul (2004)
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Estabelecidas as bases sobre as quais se desenvolveu o estudo da argumentação na
Antiguidade clássica, partimos agora para a exposição do legatário mais ilustre,
contemporaneamente, de toda essa tradição filosófica: Chaïm Perelman.
2.2 A Nova Retórica: uma lógica dos juízos de valor
Em 1958, Perelman publica, juntamente com Olbrechts-Tyteca, uma compilação dos
estudos que vinha desenvolvendo acerca das técnicas discursivas empregadas a fim de se
promover, ou reforçar, a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas. Esses
estudos, elaborados no âmbito da Escola de Bruxelas, representaram uma tentativa de
recuperação dos postulados da retórica e da dialética para a análise argumentativa, ao mesmo
tempo em que se constituíram como forma de oposição à concepção cartesiana de razão e de
raciocínio.
A denominação Nova Retórica atribuída por Perelman a sua teoria da argumentação,
além de homenagear a tradição clássica em que foi inspirada, mostra a preocupação do autor
em deixar clara a aproximação existente entre sua nova teoria e a retórica aristotélica, onde
buscou matéria prima para a criação de seus postulados. A preferência por esse título também
pode ser explicada em virtude do caráter essencialmente dialógico da teoria perelmaniana,
presente ao longo de toda sua obra, onde ganham relevo o papel constitutivo do alocutário na
situação de interação verbal e a tipologia de auditórios.
Por outro lado, poderia se questionar porque não empregar a denominação Nova
Dialética, se boa parte do conteúdo da Nova Retórica concerne às provas que Aristóteles
chama de dialéticas (Tópicos) e, por esse motivo, aparentemente, houvesse uma maior
aproximação do novo modelo à dialética. O uso da terminologia dialética, contudo, poderia
acarretar confusões, devido aos vários significados que foram adicionados a esse termo no
decorrer do tempo. O mesmo não se dá com a palavra retórica, que caiu em desuso por longo
período.
Entretanto, o principal motivo da aproximação entre a teoria da argumentação de
procedência perelmaniana e a retórica aristotélica é a ênfase no fato de que é em função de um
auditório que qualquer argumentação se desenvolve, pois a ideia de adesão e de espíritos aos
quais se dirige um discurso, tão importante para a abordagem de Perelman e Olbrechts-
Tyteca, é também preocupação central na retórica antiga. Para Amossy (2002), se Perelman
36
prefere denominar seu trabalho de retórica em vez de dialética, não é senão em virtude da
relação constitutiva da palavra ao auditório.
Apesar da menção explícita à retórica, é errôneo pensar que sua obra limita-se a uma
releitura dos clássicos gregos e latinos. Na verdade, ao se apropriar dos elementos oriundos
desses modelos, Perelman constrói um domínio original, coerente com as peculiaridades de
seu tempo e conectado às inovações que as ciências da linguagem apresentavam no mesmo
período em que desenvolvia suas pesquisas.
Em alguns aspectos, seu trabalho chega a ultrapassar os limites dessa retórica antiga.
Em outros, o restringe, na medida em que não desenvolve alguns pontos, como por exemplo,
o aspecto da eloquência, já que o foco na compreensão do mecanismo do pensamento justifica
uma maior preocupação com as técnicas de raciocínio do que com a maneira pela qual se
efetua a apresentação pública do discurso, no que se refere aos seus elementos não verbais. O
interesse pelas técnicas argumentativas, contudo, justifica-se em função do resultado obtido
por meio delas. O objeto de análise da teoria da argumentação perelmaniana, portanto, é
composto pelos recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos, com ênfase na
técnica que utiliza a linguagem para persuadir e convencer.
Apesar da grandiosidade da obra de Perelman e de seus esforços de revitalização da
tradição clássica, comenta-se que o impacto do lançamento do Tratado foi reduzido e sua
influência muito limitada no cenário linguístico dos anos de 1960 e 1970. Plantin (2002)
esclarece que a ênfase conferida pelo autor ao gênero judiciário e ao discurso filosófico fez
com que sua pesquisa agradasse especialmente aos círculos especializados de filósofos do
direito, e que ficasse circunscrita a esse meio.
Uma das preocupações centrais de Perelman é a de evidenciar que existem outras
formas possíveis e igualmente válidas de pensamento que não só o raciocínio lógico. A crença
na superioridade da lógica foi um dos fatores responsáveis pelo esquecimento quase completo
da retórica por longos períodos, o que para Perelman era inaceitável. Por isso, em sua obra,
parte de uma concepção de que, entre a demonstração científica e a demonstração arbitrária
das crenças, há uma lógica do verossímil, representada pela argumentação. Assim como
Aristóteles, Perelman entende que o campo da argumentação é o campo do verossímil, do
plausível, do provável.
A fim de ressaltar as características particulares da argumentação e os problemas
inerentes a seu estudo, Perelman apresenta uma distinção inicial entre demonstração e
argumentação, de onde resultam consequências sociológicas fundamentais para o pensamento
que irá desenvolver ao longo de toda sua obra:
37
A argumentação é essencialmente comunicação, diálogo, discussão. Enquanto a demonstração é independente de qualquer sujeito, até mesmo do orador, uma vez que um cálculo pode ser efetuado por uma máquina, a argumentação por sua vez necessita que se estabeleça um contacto entre o orador que deseja convencer e o auditório disposto a escutar. (PERELMAN, 1987, p. 235).
Observa-se aí que a atenção para a forma como os argumentos são recebidos pelos
alocutários desloca o olhar do pesquisador do eixo da produção para o eixo da recepção do
discurso, pois é necessário que o orador desenvolva sua argumentação na medida adequada
para atingir um determinado auditório, o qual apresenta características muito próprias e
diferenciadoras, resultantes do tempo e do espaço nos quais ele se constitui.
Ainda no âmbito da dimensão sociológica da argumentação, encontramos em
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) a reflexão sobre os requisitos necessários para a
instalação de um debate. Assim, para que uma argumentação se desenvolva, é necessário o
preenchimento de determinadas condições prévias. Uma delas, e considerada de fundamental
importância, é a formação de uma “comunidade intelectual” interessada na discussão de
determinado assunto. Em outras palavras, é preciso que exista um interesse mútuo na
abordagem de uma polêmica; que o sujeito argumentante tenha autoridade ou legitimidade
para assumir o posto de orador e que aqueles a quem se dirige estejam dispostos a formarem
uma opinião – ou modificarem a que já têm – sobre determinado assunto. Se a questão é tida
como “fora de discussão” para uma das partes, não há como se instalar a argumentação.
Podemos extrair desse ponto uma informação fundamental sobre uma característica da
argumentação, também presente na retórica clássica, que é a existência inicial de teses
conflituosas a serem discutidas. Definindo a argumentação na “contradição discursiva”, temos
que, além de linguageira, situada, afetiva, figurativa e metafórica, ela é também
problematizante (PLANTIN, 2002).
A sociedade, através de suas instituições, estabelece regras para a convivência entre os
indivíduos, que regulamentam, inclusive, as formas pelas quais uma conversa pode ser
iniciada. A título de ilustração, Perelman (1987) fala “nas instituições judiciárias e políticas,
na organização das Escolas e das Igrejas, nas festas nacionais ou religiosas que,
periodicamente, permitem evocar determinados assuntos diante de certos auditórios”.
(PERELMAN, 1987, p. 236).
Em algumas instâncias, o exercício da argumentação é monopólio de pessoas ou de
organismos especialmente habilitados para isso de modo que, para poder tomar a palavra, é
mister possuir uma qualidade, ser membro ou representante de um grupo. Perante certos
auditórios, os problemas de habilitação são minuciosamente regulamentados. Em um processo
38
judicial, por exemplo, para exercer a prerrogativa da palavra nos autos, é necessário que o
locutor seja um advogado, um Promotor, ou ainda, que esteja investido do poder institucional
de julgar, como o Juiz de Direito.
O exercício eficaz da argumentação pressupõe ainda uma linguagem comum, sem a
qual o contato das mentes é irrealizável. Ao contrário da demonstração, em que normalmente
se emprega uma língua artificial, como a álgebra ou a química, por exemplo, a argumentação
desenrola-se sempre em língua natural.
Considerar a argumentação em seu âmbito sociológico implica, como já se afirmou,
reconhecer que nesse terreno os raciocínios são desenvolvidos por um locutor em função de
um alocutário, nomeados respectivamente por Perelman, de orador e auditório, a exemplo da
denominação que essas duas instâncias receberam na retórica clássica.
Aliás, um elemento central da Nova Retórica é a concepção de que toda argumentação
se desenvolve em função do auditório, ao qual ela se dirige e ao qual o orador deve se adaptar.
O auditório, em Perelman, é sempre uma construção do orador e essa construção se dá por
meio de um jogo de imagens. Ainda assim, é preciso que essa construção idealizada seja o
mais próxima possível da realidade, pois uma imagem inadequada do auditório, resultante de
erro, de ignorância ou de um discurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais
desagradáveis consequências para o projeto de persuasão.
Perelman verifica que há uma relação estreita entre a qualidade do auditório e a
qualidade da argumentação, ao contrário do que defende Aristóteles, para quem quanto mais
científico for um discurso, mais distante ele está da retórica:
Para ele [Aristóteles], quanto mais um discurso é científico, mais é demonstrativo e mais se afasta da retórica, salvo quando se trata de discutir os princípios de cada disciplina [...] Mas, segundo o nosso ponto de vista, existe argumentação desde que o discurso não seja redutível a um cálculo. Então, no caso de um meio especializado, quer se trate de cientistas, de juristas, de adeptos de uma ideologia ou de uma religião, é indispensável conhecer o conjunto das crenças, das aspirações e das regras sobre o qual existe um acordo e em relação ao qual todo o recém-chegado tem de ser iniciado. (PERELMAN, 1987, p. 237).
Os auditores visados em um discurso argumentativo podem variar quanto ao sexo, à
idade, à instrução, ao temperamento, enfim, podem estar sujeitos a divergências de ordem
política, econômica, social, etc. Verifica-se, assim, a existência de uma tipologia de
auditórios, compostos por membros que não compartilham necessariamente dos mesmos
modos de ver e de dizer. Nesses casos, o orador deve renovar habilmente seu repertório de
argumentos, apelando também a valores, crenças e ideais distintos, de forma a alcançar o
maior número possível de mentes. Segundo Amossy (2002), a empresa da persuasão se
39
mostra especialmente perigosa, e também mais interessante, quando o auditório possui
membros cujos pontos de vista são diferentes.
O conceito de auditório comporta também variações de ordem quantitativa, partindo
do próprio orador, que se divide em dois na deliberação íntima, até o conjunto dos seres
capazes de razão, quando então é denominado auditório universal. Este parece ser, no campo
da teoria da argumentação de procedência perelmaniana, o mais nobre dos auditórios a serem
conquistados. Para alcançar sua adesão, é preciso manejar argumentos os mais próximos
possíveis da verdade e da lógica. Parece-nos que se trata, na verdade, de um ideal
argumentativo2: “aqueles que se dirigem ao auditório universal não podem supor como
admitidos senão fatos objetivos, verdades incontestáveis, valores universais, supostamente
admitidos por todos os seres razoáveis e competentes.” (PERELMAN, 1987, p. 240).
A relação entre orador e auditório fundamenta-se na instauração de um acordo prévio,
que é o ponto de partida de toda argumentação. Havendo uma comunidade de espíritos
interessada no debate de determinada questão, a instalação de um acordo entre o orador e o
auditório é o primeiro passo para que se possa ter a argumentação, pois o enunciador só pode
desenvolver seu projeto de persuasão conectando seus argumentos a teses já admitidas pelos
ouvintes, sob pena de ser sumariamente rejeitado.
Esse acordo tem por objeto ora o conteúdo das premissas explícitas, ora as ligações
particulares utilizadas, ora a forma de servir-se dessas ligações. Por outro lado, a própria
escolha das premissas e sua formulação, com os arranjos que comportam, estão impregnadas
de valor argumentativo e se configuram como uma preparação para o raciocínio que, mais do
que uma introdução dos elementos, já constitui um primeiro passo para a sua utilização
persuasiva.
Escolher as estratégias mais adequadas é fundamental porque a adesão é suscetível de
maior ou menor intensidade, uma vez que o assentimento tem seus graus e uma tese, quando
admitida, pode não prevalecer diante de outras, se a intensidade da adesão for insuficiente.
Assim, mesmo concedida a adesão inicial, esta poderá ser negada mais adiante, pois a
qualquer momento o auditório pode discordar do que o orador lhe apresenta. Pode também
desconfiar do conteúdo das premissas ou ainda se mostrar insatisfeito com o caráter
tendencioso de apresentação das mesmas.
2 A figura do “auditório universal” nos parece uma idealização porque todo auditório é histórico, temporal, particular, diferente de outros auditórios no que diz respeito à sua constituição, competência, inclinações, paixões e preconceitos. Dessa forma, a postulação de que um discurso qualquer goze de validade universal só pode ser compreendida nesse sentido de “ideal argumentativo”.
40
As premissas sustentadas pelo orador e previamente admitidas pelos auditores poderão
ser do senso comum ou, ainda, próprias aos integrantes de uma determinada disciplina
(científica, jurídica, filosófica ou teológica) e terão estatuto epistemológico variável: ora se
tratará de afirmações elaboradas no seio de uma disciplina científica, ora de dogmas, ora de
crenças do senso comum, ora de preceitos ou de regras de conduta aprovados, ora, pura e
simplesmente, de proposições que foram admitidas pelos interlocutores num estágio anterior
da discussão.
Perelman (1987) lembra que determinados auditórios possuem objetos de acordo
próprios, que podem ter natureza ideológica ou profissional. Assim, supõe-se que o homem de
fé admite os dogmas da religião que professa, enquanto o Juiz de Direito aceita as normas de
direito que deve aplicar aos casos que lhe são submetidos.
Entre os objetos dos acordos de crença ou de adesão que podem servir de premissas –
intitulados objetos de acordo – há duas categorias: a do real, que comportaria os fatos, as
verdades e as presunções, e a do preferível, incluídos aí os valores, as hierarquias e os lugares.
A concepção de real varia conforme as opiniões filosóficas aceitas, mas, na
argumentação, o real se caracteriza por uma pretensão de validade para o auditório universal.
É que, nesse território, o objetivo e o universalmente válido não se definem como em uma
ontologia ou em uma epistemologia, por meio de critérios intrínsecos. Aqui, o objetivo e o
universalmente válido “[...] estão ligados a reações do auditório universal ou, pelo mesmo,
àquilo que o orador presume destas reacções.” (PERELMAN, 1987, p. 240).
Argumentos baseados em fatos, verdades e presunções postulam, na medida do que é
possível em um domínio como a argumentação, um estatuto de proximidade com a realidade
objetiva. Por isso, dispensariam, a princípio, o orador de produzir provas para intensificar a
adesão quanto a eles.
Em oposição aos argumentos que versam sobre o real (fatos, verdades e presunções),
podem ser capitulados aqueles que se fundam no que é preferível: os já referidos valores,
hierarquias e lugares, que nos determinam as escolhas não em consonância com uma realidade
preexistente, mas conforme um ponto de vista determinado, que só podemos identificar com o
de um auditório particular, por mais amplo que seja.
Na argumentação, os valores funcionam como os mais importantes objetos de acordo
entre o orador e o auditório na formulação das premissas, pois aqueles que partilham um
conjunto de valores comuns se colocam mais receptivos às teses defendidas pelo orador. Estar
de acordo com um valor é, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), admitir que um ser
ou um ideal deva exercer uma influência determinada sobre a ação e as disposições à ação,
41
sem considerar, contudo, que esse ponto de vista se aplica a todos, uma vez que não há como
se impor juízos que dependem da valoração de cada sujeito.
Por serem relativos, instáveis e controversos, os juízos de valor e as hierarquias foram
condenados pelos positivistas, que pretendiam que os raciocínios fossem isentos desses
elementos de incerteza. Nos campos jurídico, político e filosófico, contudo, fica claro que os
oradores recorrem a esses elementos durante todo o discurso argumentativo, a fim de motivar
o interlocutor a fazer certas escolhas em prejuízo de outras. Para Reboul (2004), nos domínios
da argumentação, é impossível renunciar a esses juízos, pois noções fundamentais de inocente
ou culpado, belo ou feio, útil ou nocivo e outras, são sempre formuladas em termos de valor.
A adesão em torno de valores se dá com intensidade variável de indivíduo para
indivíduo e de grupo para grupo. Depreende-se, então, que os valores se sujeitam a uma
hierarquia, que garante uma ordenação de tudo o que está submetido ao princípio que a rege:
“enquanto os valores indicam uma atitude favorável ou desfavorável a respeito daquilo que é
assim qualificado, as hierarquias indicam expressamente os valores hierarquizados”
(PERELMAN, 1987, p. 242).
Perelman (1987) leciona que entre os valores, há uma distinção digna de nota, que é a
que opõe valores abstratos, como a verdade e a justiça, a valores concretos, como a Igreja, os
Estados e outros. O valor concreto é aquele ligado a um ser, a um grupo ou a uma instituição
considerada em sua individualidade. Uma mesma argumentação pode se fundamentar,
conforme as circunstâncias, ora nos valores concretos, ora nos abstratos. Geralmente, os
concretos são utilizados para fundar os abstratos, mas o movimento contrário também pode
ser observado.
Para fundamentar valores ou hierarquias, ou reforçar a intensidade da adesão que eles
suscitam, é possível relacioná-los a outros valores ou hierarquias, mas pode-se também
recorrer a premissas gerais, chamadas lugares. Há os lugares comuns (gerais), que são
afirmações muito amplas acerca do que se supõe valer mais em qualquer domínio, e os
lugares específicos, que determinam o que vale mais em um domínio particular.
Apresentadas as condições iniciais para a instauração de um debate argumentativo,
propomos uma primeira tentativa de interpretação de um processo judicial, como o que
compõe nosso corpus, à luz dos postulados da Nova Retórica.
Pensamos que, de um lado, o processo judicial de natureza penal é construído à
semelhança de um jogo retórico/dialético, onde os oponentes, constituídos pela figuras da
acusação e da defesa, lançam suas teses na tentativa de alcançar a adesão de um auditório
particular, representado pela figura do julgador (ou do Corpo de Jurados, no Tribunal do Júri).
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Esse jogo se desenrola no interior de uma instituição que dita regras tanto quanto à condição
de quem pode desempenhar o papel de jogador, como para o próprio funcionamento da
partida. Assim, como já afirmamos, a palavra, em um Processo Penal, é prerrogativa do Juiz
de Direito, do Promotor, do advogado e, em algumas situações, das pessoas chamadas a
colaborar com a efetivação da Justiça, como peritos, testemunhas, escreventes, etc. O réu, que
é o principal interessado no resultado desse embate discursivo, só pode se manifestar
pessoalmente em momentos processuais bem específicos, como os interrogatórios diante do
Juiz e do Corpo de Jurados. Na maior parte das vezes, é o Defensor quem fala em seu nome.
De outro lado, como a verdade factual não é dada previamente na situação processual,
e talvez não seja alcançada nem mesmo ao final dos debates, as atividades de acusação e
defesa tomam corpo em um ritual retórico em que, na falta de uma demonstração rigorosa, a
única alternativa possível para as partes é buscar tudo o que seu ponto de vista comporta de
verossímil e, durante o jogo do contraditório, exercitar habilmente estratégias discursivas com
vistas a persuadir o julgador da verossimilhança de suas teses.
Para a instância julgadora, cabe o encargo de se posicionar favorável ou
contrariamente a uma ou outra parte, já que o Estado não pode se furtar à prestação
jurisdicional. Nesse papel de acatar uma ou outra tese, o julgador, na verdade, constrói uma
nova versão para os fatos, resultante de sua atividade interpretativa, e é essa a versão que
adquire valor de verdade, graças à força da instituição judiciária.
Retomando Perelman, temos que, para alcançar a adesão de um auditório às suas teses,
o orador deve estar munido de um repertório eficaz de técnicas argumentativas, a partir das
quais desenvolverá seus raciocínios e conduzirá o raciocínio dos auditores. Essas técnicas se
apresentam sob dois aspectos diferentes: ora assumem a forma positiva de processos de
ligação, ora a forma negativa de processos de dissociação. A forma positiva consiste na
criação de um vínculo de solidariedade entre teses que se procuram promover e as teses já
admitidas, enquanto o aspecto negativo busca romper a solidariedade existente entre as teses
já admitidas e as que se opõem às teses do orador (PERELMAN, 1987).
Entre os processos de ligação, encontram-se três grandes grupos, que são os
argumentos quase-lógicos, os argumentos fundados sobre a estrutura do real e os argumentos
que fundam a estrutura do real.
Os argumentos quase-lógicos constroem-se à imagem de princípios lógicos. Por sua
estrutura, assemelham-se aos raciocínios formais e mostram uma preocupação do orador em
construir um pensamento preciso e bem elaborado. Contudo, por desenvolverem-se em língua
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natural e por estarem sob o influxo da controvérsia, são passíveis de interpretações distintas, o
que os afasta de seu ideal de formalização.
Os argumentos fundados sobre a estrutura do real, por sua vez, são construídos não a
partir do que é o real, no sentido ontológico, mas a partir do que o auditório acredita, isto é,
daquilo que ele toma por fatos, verdades ou presunções.
Já os argumentos que fundam a estrutura do real operam por indução, estabelecendo
generalizações e regularidades, propondo modelos, exemplos e ilustrações a partir de casos
particulares.
O quadro abaixo relaciona esses três tipos de argumentos aos seus subtipos:
PROCESSOS DE L IGAÇÃO
TIPOS DE ARGUMENTOS SUBTIPOS DE ARGUMENTOS
Argumentos quase-lógicos
(construídos à imagem de princípios lógicos)
Contradição, incompatibilidade, ironia, ridículo, identidade, definição, regra de justiça, quase matemáticos (transitividade, divisão, dilema, ad ignorantiam)
Argumentos fundados sobre a estrutura do real
(no sentido do que o auditório acredita ser o real)
Sucessão, argumento pragmático, finalidade (desperdício, direção, superação), coexistência (essência, pessoa – autoridade, argumento ad hominem), duplas hierarquias, argumentos a fortiori (“com maior razão”)
Argumentos que fundam a estrutura do real (operam por indução)
Exemplo, ilustração, modelo, comparação, argumento pelo sacrifício, analogia, metáfora
Quadro 2: Tipologia de Argumentos Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)
Como se vê, cada espécie de técnica argumentativa comporta uma série de tipos de
argumentos. A fim de não nos prolongarmos excessivamente na discussão de cada um deles,
organizamos os principais tipos de argumentos e suas definições correlatas em quadros
sintéticos e adaptados.
No quadro transcrito a seguir, listamos os argumentos quase-lógicos e sua definição:
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ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS
SUBTIPOS DE ARGUMENTOS DEFINIÇÃO
Contradição - verifica-se quando alguém sustenta, ao mesmo tempo, uma proposição e sua negação, no interior de um sistema próximo do formal
Incompatibilidade
- assemelha-se à contradição, mas, enquanto aquela pressupõe um formalismo ou um sistema de noções unívocas, esta é sempre relativa a circunstâncias contingentes, relacionadas a leis naturais, fatos particulares ou decisões humanas
Ironia
- figura pela qual “dá-se a entender o contrário do que se diz”; argumentação indireta, que sempre supõe conhecimentos complementares acerca dos fatos
Ridículo
- consiste em admitir momentaneamente uma tese oposta àquela que se quer defender, em desenvolver-lhe as consequências, em mostrar a incompatibilidade destas com o que se crê e passar daí à verdade da tese que se sustenta; o ridículo provoca o riso
Identidade
- toda atividade de conceitualização e classificação implica a redução de certos elementos ao que há neles de idêntico ou intercambiável; essa redução será quase-lógica quando a identificação de seres, de acontecimentos ou de conceitos não for totalmente arbitrária ou evidente, dando espaço, assim, ao desenvolvimento de uma argumentação
Definição
- trata-se de um procedimento de identificação, pois pretende estabelecer uma identidade entre o que é definido e o que define, de tal modo que seja possível substituir um pelo outro no discurso; impõe um determinado sentido em detrimento de outros
Regra de justiça
- requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou situações integradas numa mesma categoria; por ela, os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados do mesmo modo; é ela que permitirá apresentar sob a forma de argumentação quase-lógica o uso do precedente
Transitividade - é a propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos “A e B”, “B e C” e “A e C”; trata-se do silogismo retórico
Divisão - divide-se o todo – a tese por provar – em partes, e, depois de mostrar que cada uma delas tem a propriedade em questão, conclui-se que o todo tem essa mesma propriedade
Dilema
- raciocínio que prova que os dois termos de uma alternativa levam à mesma consequência, sendo esta a tese
Quase matemáticos
Ad ignorantiam - mostra que todos os casos possíveis devem ser excluídos, salvo um, que é justamente a tese por provar, cuja admissão se pede por falta de coisa melhor
Quadro 3: Argumentos quase-lógicos Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)
45
Na sequência, listamos os argumentos fundados sobre a estrutura do real e a definição
sintética de cada um:
ARGUMENTOS FUNDADOS SOBRE A ESTRUTURA DO REAL
TIPO DE ARGUMENTO DEFINIÇÃO
Sucessão
- pode-se argumentar constatando uma sucessão constante nos fatos e deles inferindo um nexo causal, não como um raciocínio demonstrativo, mas buscando estabelecer um juízo de valor
Pragmático
- permite apreciar um ato ou um acontecimento em função de suas consequências favoráveis ou desfavoráveis, ou seja, para apreciar um acontecimento, deve-se reportar a seus efeitos; desempenha papel fundamental na argumentação e é desenvolvido, na prática, sem grandes dificuldades
Desperdício
- justifica o desprezo por um ato ou objeto porque ele implica desperdício de recursos; relaciona-se com o sentimento de uma oportunidade que não se pode perder ou um meio que existe e do qual é preciso servir-se
Direção
- consiste em rejeitar uma coisa, mesmo admitindo que em si é inofensiva ou boa, porque ela serviria de meio para um fim que não se deseja; desperta no auditório o temor de que uma ação nos envolva num encadeamento de reações indesejadas; o precedente fundamenta um direito, enquanto a direção prevê um fato
Finalidade
Superação
- parte da insatisfação inerente ao valor: nunca ninguém é bom demais, justo demais, desinteressado demais; o ideal inacessível mostra em cada conquista um trampolim para uma conquista superior, num progresso sem fim
Essência
- consiste em explicar um fato ou em prevê-lo a partir da essência cuja manifestação é ele; tem alcance ético
- argumento de autoridade: consiste na citação de uma fonte confiável para deixar uma tese mais consistente; essa fonte pode ser um especialista no assunto, dados de instituição de pesquisa, uma frase dita por um líder político ou um pensador, enfim, uma autoridade no assunto
Coexistência (extraem-se argumentos
da relação de coexistência entre as
coisas)
Pessoa
(aplicação da essência; baseia-
se no nexo entre a pessoa e seus
atos) - argumento ad hominem: é o argumento de autoridade invertido; consiste em refutar uma proposição recorrendo a uma personalidade odiosa
Duplas hierarquias
- consiste em estabelecer uma escala de valores entre termos, vinculando cada um deles aos de uma escala de valores já admitida
Argumentos a fortiori (“com maior razão”) - desdobramento das duplas hierarquias Quadro 4: Argumentos fundados sobre a estrutura do real Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)
46
No quadro seguinte, constam os argumentos que fundam a estrutura do real e sua
definição sintética:
ARGUMENTOS QUE FUNDAM A ESTRUTURA DO REAL
TIPO DE ARGUMENTO DEFINIÇÃO
Exemplo - fundamenta o real pelo recurso a um exemplo, permitindo,
com isso, a realização de uma generalização; é o argumento
que vai do fato à regra (indução)
Ilustração
- é um exemplo que pode ser fictício e cuja função não é
provar a regra, mas dar-lhe “presença na consciência” e
reforçar assim a adesão; enquanto o exemplo deve ser
incontestável, a ilustração pode ser duvidosa, mas deve
causar forte impressão na mente do auditório
Modelo - é um exemplo dado como digno de imitação; podem servir
de modelo pessoas ou grupos cujo prestígio valoriza os atos
Comparação - cotejam-se vários objetos a fim de avaliá-los um em
relação ao outro, permitindo justificar um dos termos a partir
dos demais
Argumento do sacrifício
- é um tipo de comparação; consiste em estabelecer o valor
de uma coisa ou de uma causa pelos sacrifícios que são ou
serão feitos per ela
Analogia
- raciocinar por analogia é construir uma estrutura do real
que permita encontrar e provar uma verdade graças a uma
semelhança de relações; trata-se de estabelecer uma
similitude de estruturas, cuja fórmula genérica é A está para
B assim como C está para D
Metáfora
- a metáfora condensa uma analogia; argumenta
estabelecendo contato entre dois campos heterogêneos,
ressaltando um elemento em comum em detrimento dos
outros, por enfatizar uma semelhança e mascarar diferenças
Quadro 5: Argumentos que fundam a estrutura do real Fonte: Perelman (1987), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Reboul (2004), Teixeira (2007)
A dissociação das noções, em oposição às técnicas de ligação, consiste em recusar-se o
estabelecimento de uma associação aceita como válida em um momento anterior do debate
argumentativo. “A experiência, real ou mental, a modificação das condições de uma situação
e, mais especialmente, em ciências, o exame isolado de certas variáveis, poderão servir para
provar a falta de ligação.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 467). Assim,
47
busca-se separar as noções em pares hierarquizados, como aparência/realidade, meio/fim,
letra/espírito, saber/ignorância, belo/feio, verdade/mentira, virtude/vício. Com isso, a
dissociação modifica profundamente as realidades que desliga, dirimindo incompatibilidades
e adquirindo o caráter de convincente e duradoura.
Para a eficácia da argumentação, é essencial, portanto, que o orador conheça este
conjunto de técnicas de associação e dissociação, pois, ao contrário do lógico ou do
matemático, que agem no interior de um sistema de elementos fechados, o orador retira seus
argumentos de um celeiro indeterminado, composto por teses do senso comum ou de uma
disciplina especializada, que podem produzir maior ou menor intensidade de adesão. Tais
técnicas, fundadas em procedimentos indutivos e dedutivos, encontram sua razão de ser no
jogo interlocutivo e se desenvolvem em função das finalidades persuasivas da argumentação.
Ilustrando essa observação, tomamos novamente como exemplo o caso delineado em
nosso corpus. Em um processo judicial, a partir de premissas extraídas da lei, da doutrina e da
jurisprudência, os operadores do direito constroem raciocínios hipotético-dedutivos, a fim de
demonstrarem que o ato concreto praticado pelo réu se subsume (ou não) ao disposto
genericamente na lei. Nesse ponto, a argumentação jurídica se aproxima mais de um
raciocínio lógico. Entretanto, essa pretensa racionalidade também obedece a uma finalidade
persuasiva, pois a tese só será tida como “verdadeira” se conquistar a adesão do julgador.
Assim, em nosso corpus, o trabalho do Promotor é o de mostrar que a conduta,
teoricamente, praticada pela ré – introduzir uma sonda em seu útero para destruir o feto ali
alojado – enquadra-se na conduta genericamente tipificada na primeira parte do artigo 124 do
Código Penal (autoaborto), enquanto a tarefa do Defensor é a de levantar hipóteses que
possam negar a prática do ato abortivo (através da alegação de que não havia nos autos prova
sequer da gravidez da ré, por exemplo), ou então encontrar justificativas legais (ou
socialmente aprovadas) para o ato.
Perelman sempre foi alvo de críticas por conferir à sua teoria da argumentação um
caráter excessivamente lógico, racionalizante e, também, por não desenvolver um estudo
sistematizado sobre o papel das emoções e do caráter do orador na empresa de persuasão.
Examinando o Tratado da Argumentação (1996), constatamos que, no bojo das três partes
que compõem a obra (Os Âmbitos da Argumentação, O Ponto de Partida da Argumentação e
As Técnicas Argumentativas), há apenas referências esparsas ao ethos e ao pathos. De fato, o
foco de Perelman encontra-se bastante voltado para o estudo do logos.
Outro elemento que parece gerar certa rejeição por sua obra nos meios linguísticos é o
fato de que Perelman é um jusfilósofo e, como tal, traz para seus estudos influências do
48
campo da Filosofia e do Direito. Até mesmo os exemplos apresentados por ele ao longo de
seus escritos são retirados de corpora bem diferentes dos usados na Linguística: o Tratado da
Argumentação é pleno de citações de filósofos e de juristas. Tudo isso provoca um
estranhamento, ou uma “não-identificação”, dos linguistas para com Perelman.
Apesar desse conflito aparente de posições entre um domínio e outro, vemos, na
atualidade, um esforço de vários estudiosos das Ciências da Linguagem para desmistificar a
obra perelmaniana, movimento que tem a sua frente Ruth Amossy, que busca aliar a dimensão
filosófica da argumentação, especialmente em sua vertente neo-retórica (Perelman), a uma
dimensão linguístico-discursiva, com vistas à criação de um método de análise argumentativa.
Dessa forma, seria possível unir a análise das técnicas argumentativas fornecidas pela
retórica, como o entimema, a analogia, a definição, as figuras de estilo, à análise dos meios
particulares encontrados nos recursos da língua, da arte, do estilo, como a paráfrase, o encaixe
de vozes narrativas, o ritmo, etc.
Em seguida, tecemos algumas considerações acerca das pesquisas de Ruth Amossy.
2.3 A argumentação no discurso
Ao discorrermos sobre o trabalho de Amossy, optamos por abordá-lo sempre em
paralelo com Perelman, pois, a nosso ver, sua produção faz mais sentido quando analisada na
confluência dos estudos retóricos com os estudos linguísticos, já que a autora parte das duas
fontes para elaborar seu programa de pesquisa. Por isso, apresentamos as conclusões de
Amossy em cotejo com Perelman, sem deixar de explicitar as contribuições da autora para
uma redefinição da retórica perelmaniana como um dos ramos da linguística do discurso, ao
fornecer-lhe instrumental teórico-metodológico adequado ao estudo concreto do discurso
argumentativo.
A primeira observação colocada por Amossy (2005b) consiste em solucionar uma
questão de delimitação dos campos de interesse da retórica e da Análise do Discurso. A
retórica, nesse sentido, se interessaria apenas por discursos com propósito persuasivo
declarado, enquanto a Análise do Discurso abriga estudos de corpora de natureza mais
diversa, a fim de apanhar a articulação entre uma organização textual e um dispositivo de
enunciação tributário de uma situação social. Existiria também uma divergência quanto aos
49
objetos de estudo de uma e outra área: enquanto a retórica focaliza as técnicas argumentativas,
a Análise do Discurso estuda todo discurso no quadro de troca onde ele se desenvolve.
Amossy (2005b) argumenta, então, que o pesquisador deve estar atento ao que ela
chama de visée argumentativa e dimensão argumentativa: se considerarmos a interação verbal
como um jogo de influências recíprocas, podemos entender que todo discurso tende a agir
sobre o parceiro, incitando-o a ver e pensar de um certo modo, a partilhar um ponto de vista.
Mas nem todos os discursos possuem um mesmo objetivo. Um discurso eleitoral ou
publicitário, um manifesto, uma carta aberta se constroem em torno de uma “visée
persuasiva”, da qual o auditório é bem consciente, ao passo que textos literários não buscam
diretamente a persuasão, embora indiretamente comportem também uma orientação
argumentativa, na medida em que apresentam uma certa visão de mundo.
Com essa hipótese, Amossy (2005b) defende um alargamento do campo de
abrangência da retórica, que, aliada à Análise do Discurso, não precisaria se restringir ao
estudo de corpora onde há a presença explícita de uma dissensão, bem como a existência
declarada de um proponente e de um oponente. Isso não significa, contudo, que não é
necessário o conflito; apenas exclui-se a obrigatoriedade do conflito declarado.
Se admitirmos a distinção entre dimensão e visée argumentativas, de acordo com a
autora, podemos estender a análise argumentativa a corpora tradicionalmente olvidados pela
retórica, para submetê-los a uma avaliação em termos de interação e de eficácia. Abre-se
também a possibilidade de pensar que existem meios de agir sobre o outro que não são
reportados nos catálogos de técnicas argumentativas. Como afirma Amossy:
[Os discursos] tanto utilizam a seu modo as técnicas argumentativas descritas nos tratados de argumentação e nos manuais de retórica – como entimema, analogia, definição, figuras de estilo etc – como empregam meios particulares encontrados nos recursos da língua, da arte da narrativa ou do estilo – como o parenthèse, o discurso reportado, o encaixe de vozes narrativas, o ritmo, a escritura branca, etc. Aos tipos de argumentos e às figuras retóricas se juntam assim os numerosos e diversificados meios verbais. (AMOSSY, 2005b, p. 167, tradução nossa)3.
A análise argumentativa resultante desse amálgama entre retórica e Análise do
Discurso não imporia restrições, inclusive, à utilização dos instrumentos fornecidos pela
Teoria da Argumentação na Língua, de Ducrot e seus colaboradores, no que se refere,
3 Tantôt ils utilisent à leur façon les techniques argumentatives décrites dans les traités d’argumentation et les manuels de rhétorique – comme l’enthymème, l’analogie, la définition, les figures de style, etc. Tantôt ils emploient des moyens particulariers puisés dans les ressoursces de la langue, de l’art du récit ou du style – comme la parenthèse, le discours rapporté, l’emboîemente des voix narratives, le rythme, l’écriture blanche, etc. Aux types d’arguments et aux figures rhétoriques se joignent ainsi des moyens verbaux nombreux et diversifiés.
50
sobretudo, aos elementos que garantem a ligação entre enunciados e que conferem a eles sua
dimensão argumentativa, a saber, os conectores e os topoï pragmáticos (AMOSSY, 2005b).
Amossy (2002) postula que a obra de Perelman já se encontra bastante adaptada aos
recursos da linguística do discurso nas suas vertentes enunciativa e pragmática, no que se
refere à atenção dada à situação de enunciação, à função do alocutário, ao saber comum e aos
pressupostos que autorizam a interação verbal, assim como à eficácia da palavra definida em
termos de ação. Identifica, assim, na obra de Perelman a presença da concepção do quadro
enunciativo de Benveniste, ao apresentar e desenvolver sua Nova Retórica não como sistema
à maneira estruturalista, mas como uma situação de troca entre parceiros no discurso, que
visa, em ultima instância, à ação de um sobre o outro, pela palavra.
Para a autora, a retórica, da qual se alimenta Perelman, e também a linguística da
enunciação, analisam a linguagem “em situação”, na sua dimensão intersubjetiva, onde o eu
implica um tu, mesmo quando este não esteja explicitado por marcas linguísticas. Em suma,
na perspectiva retórica, adotada pela Nova Retórica, todo enunciado é necessariamente
direcionado no sentido do alocutário, com vistas a orientá-lo nos modos de ver e de pensar. O
sujeito falante aciona o aparelho formal da enunciação não só para se comunicar, mas também
para agir sobre o indivíduo a quem se dirige.
Outro ponto observado por Amossy (2002) é o de que, no Tratado da Argumentação,
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) afirmam que todo o processo argumentativo, desde a
escolha das premissas até as palavras empregadas pelo orador no seu projeto de persuasão, é
sujeito à incidência de valores, tanto que a argumentação, para eles, é uma lógica dos juízos
de valor. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) também se referem, no Tratado, à escolha da
qualificação e à apresentação dos dados do discurso. Eles mostram que, na seleção de epítetos
e de qualificações para um determinado objeto, há uma clara orientação argumentativa.
Assim, chamar a Revolução Francesa de “sangrenta revolução” revela claramente um
propósito e uma direção argumentativa.
Essa incidência dos valores e, consequentemente, da subjetividade na língua, é
estudada de forma mais pontual pela linguística, através da pesquisa dos procedimentos
linguísticos (shifters, modalizadores, termos avaliativos, etc.) pelos quais o locutor imprime
sua marca à enunciação, se inscreve na mensagem e se situa em relação ao outro. Essa marca
pode ser encontrada pela análise linguística dos substantivos axiológicos (positivos ou
negativos), dos adjetivos afetivos (aqueles que enunciam, ao mesmo tempo, uma propriedade
51
do objeto que eles determinam e uma reação emocional do sujeito falante diante desse objeto),
dos verbos ocasional ou intrinsecamente subjetivos4.
Nesse sentido, segundo Amossy (2002), a Nova Retórica teria se adiantado em alguns
aspectos aos trabalhos da semântica pragmática de Anscombre e Ducrot, que propuseram a
definição do sentido da palavra tendo em conta sua orientação argumentativa.
Uma questão que perpassa o trabalho de linguistas e neo-retoricistas é o
reconhecimento do papel constitutivo do alocutário. Um dos postulados centrais da Nova
Retórica é a necessidade de adaptação do orador a seu auditório. Amossy (2002) reconhece
que, sob uma mesma perspectiva, Nova Retórica e Ciências da Linguagem se interrogam
sobre as modalidades de inscrição do alocutário no discurso, se bem que a reflexão linguística
sobre esse ponto seja ancorada nos trabalhos da vertente francesa de Análise do Discurso,
especialmente nos estudos de Pêcheux (1969), bem mais que nas teorias da argumentação.
Embora não faça menção expressa a Bakhtin, essa preocupação de Perelman com o auditório
mostraria os influxos do dialogismo em sua obra.
Perelman observa que o tipo de auditório visado determina quais as melhores técnicas
argumentativas a serem empregadas pelo orador. Em função de suas características, os
auditórios podem ser classificados como particular ou universal, homogêneo ou heterogêneo,
simples ou compósito. As Ciências da Linguagem, segundo Amossy (2002), se preocupam
menos com a natureza do auditório e mais com os modos de presença do alocutário na
comunicação, de forma que estabelecem classificações quanto às instâncias de recepção em
função do grau de presença e de atividade, em trabalhos desenvolvidos sobretudo por
Goffman (1967).
Na teoria da argumentação perelmaniana, o discurso se apóia sobre as crenças e as
opiniões em voga no meio social. Como já se afirmou, para começar a desenvolver uma
argumentação, o orador deve estabelecer antes um acordo prévio com o auditório, sendo que
para Perelman, esse acordo repousa sobre os fatos (aquilo que é considerado como tal), as
verdades (aquilo que o público entende como verdade) e as presunções (que se cuidam válidas
em função das normas admitidas). A partir dessas bases, o orador pode prosseguir em seu
discurso argumentativo apoiando-se em técnicas de ligação e de dissociação, em função dos
esquemas lógico-discursivos que desfrutam de largo reconhecimento, até a generalização.
Perelman se apropriaria assim dos lugares comuns de Aristóteles, ou topoï, com pequenas
4 De acordo com Kerbrat-Orecchioni (1999), os verbos "ocasionalmente subjetivos" exprimem uma disposição do sujeito, que pode ser favorável ou não, diante do processo enunciativo, enquanto os verbos "intrinsecamente subjetivos" implicam uma avaliação que tem sempre como fonte o sujeito da enunciação.
52
alterações, e insistiria no papel persuasivo dos lugares do preferível (valores, hierarquias e
lugares).
Amossy (2002) explicita que essa abordagem dos topoï busca determinar os grandes
esquemas lógico-discursivos que articulam e modelam os raciocínios, mostrando que sua
força de convicção depende, em parte, dos lugares comuns sobre os quais eles se edificam. A
pragmática, que se interessa igualmente pelas premissas e pelos tópicos implícitos sobre os
quais se fundam os enunciados ou os encadeamentos de enunciados, busca também
reencontrá-los na materialidade linguística.
Enfim, ao fundamentar a arte da persuasão no bom uso dos tópicos, Perelman, na
visão de Amossy (2002), adianta os trabalhos da linguística contemporânea, especialmente da
Semântica e da Pragmática que, sob ângulos diversos, estudam a pressuposição, as
implicações e os topoï que asseguram o encadeamento dos enunciados e seu impacto na
interação. Nessa perspectiva, os trabalhos de Perelman evidenciam a importância dos
fundamentos do discurso argumentativo, a saber: dos tópicos, da doxa, do conhecimento
partilhado do senso comum, no qual o locutor se fundamenta para construir desde as
premissas iniciais até a conclusão, tudo isso discursivamente orientado para a persuasão de
um auditório5.
De acordo com Amossy (2006), a retórica ligou estreitamente o uso da palavra
persuasiva ao lugar sócio-institucional de sua produção e circulação, como se depreende da
distinção que fez entre os gêneros judiciário, deliberativo e epidítico. Tanto a retórica como a
Análise do Discurso colocam o gênero em posição capital. Contudo, ao analisar a obra de
Perelman, Amossy aponta que os discursos literário, filosófico, político e jurídico são
abordados como extratos, fragmentos extraídos alheatoriamente de um substrato maior, ao
qual parecem não dever sua própria essência. Nesse sentido, afirma-se que Perelman não
explora as modalidades argumentativas próprias aos diferentes gêneros do discurso. Os
esquemas de pensamento que sustentam a argumentação, bem como os procedimentos de
ligação e ruptura que podem ser mobilizados nas situações mais diferentes, seriam por ele
analisados sem se levar em conta a variação de um regime discursivo a outro. (AMOSSY,
2005b).
Nesse aspecto, em sua proposta de análise argumentativa, a autora se aproxima mais
da Análise do Discurso, para quem cada gênero adota as modalidades de persuasão verbal que
5 Voltaremos a tratar da questão dos topoï , com mais profundidade, no capítulo das Análises.
53
lhe são mais convenientes. Assim, considera que a argumentação se encontra em uma relação
de dependência com o domínio do qual ela emerge e com gênero no qual se insere:
Não tentamos influenciar um júri no curso de um processo como tentamos fazer eleger um candidato em uma campanha eleitoral, ou fazer partilhar nossas opiniões por um amigo em uma conversação familiar, ou suscitar a reflexão do leitor sobre um estado do mundo em um texto romanesco. (AMOSSY, 2005b, p. 167)
Para Amossy (2005b), as estratégias argumentativas que a retórica clássica relaciona
ao logos, ao ethos e ao pathos são em boa parte modeladas pelo gênero de discurso. No que
diz respeito ao logos, por exemplo, a autora entende que o grau de formalização do raciocínio,
assim como a escolha e o agenciamento dos argumentos, diverge manifestamente de um
quadro a outro, mesmo se a tese defendida pelo locutor é similar.
Quanto ao pathos, a autora defende que o quadro genérico dita as modalidades de
apelo às emoções, sua intensidade e até a sua legitimidade (em uma carta de amor, é comum
um tom fortemente afetivo por parte do locutor, ao contrário de um artigo científico,
tradicionalmente pouco afeito às emoções).
Quanto ao ethos, Amossy (2005b) postula que cada gênero compreende uma
distribuição prévia dos papéis que modelam o dispositivo de enunciação, para o qual não se
pode negar a importância do estatuto do locutor e do quadro institucional no qual ele profere
sua palavra. A eficácia da palavra depende também da posição daquele que a detém e do grau
de legitimação que ele desfruta no seu meio social. A legitimidade do locutor, sua posição
social e institucional e sua reputação desempenham, na visão da autora, um papel bastante
importante na troca argumentativa, embora não sejam tudo.
Neste tópico, apresentamos uma proposta de uma teoria da argumentação no
discurso, fundada no modelo da retórica clássica e complementada pelos recursos da Análise
do Discurso. No tópico seguinte, finalizando o capítulo sobre teorias de argumentação,
abordamos um modelo que se coloca como um contraponto semântico-estrutural à concepção
retórica e neo-retoricista. Trata-se da Teoria da Argumentação na Língua, de Oswald Ducrot.
2.4 Percursos de uma teoria da argumentação na língua
De acordo com Plantin (2002), deve-se a Ducrot a retomada do interesse pelos estudos
da argumentação, a partir dos anos de 1970, no cenário da pesquisa linguística francesa.
54
Para Ducrot e seus colaboradores, que iniciam seus trabalhos embebidos da
perspectiva semântica e estrutural, a argumentação é partidária da competência linguística,
ocupando posição, portanto, ao lado da língua. É possível observar, já a partir da influência do
estruturalismo sob esse modelo teórico, a distância que o separa das teorias clássicas sobre a
argumentação que, em geral, entendem que a argumentatividade não é uma competência da
língua, no sentido que Saussure dá ao termo, mas tipicamente uma competência da palavra, do
discurso.
Ducrot compreende a argumentação como o estudo das orientações semânticas e dos
encadeamentos de enunciados. As pesquisas desenvolvidas em torno dessa concepção
passaram por estágios diferentes, cada qual com suas especificidades teóricas e
metodológicas, até que o modelo adquirisse os contornos que apresenta na atualidade. Esses
estágios resultaram na associação de diversas nomenclaturas aos trabalhos desenvolvidos,
como Neo-Estruturalismo, Semântica Argumentativa, Teoria da Argumentação na Língua,
Teoria dos Topoï e Teoria dos Blocos Semânticos. Em nosso trabalho, optamos por empregar
a denominação Teoria da Argumentação na Língua (TAL).
Inicialmente, Ducrot procurou estabelecer uma ligação entre a linguagem e a lógica,
tentando descrever o que seria “a lógica da linguagem”. Em uma perspectiva tradicional, a
argumentação teria a seguinte formulação: um sujeito falante produz o enunciado A como
argumento para justificar um outro enunciado C, em sequências do tipo A logo C. Aqui, a
língua, considerada como conjunto de frases semanticamente descritas, não desempenha um
papel fundamental na argumentação. Ela fornece, por um lado, os conectores que estabelecem
uma relação argumentativa entre A e C, ao mesmo tempo em que intervêm na passagem do
fato F para C.
Tradicionalmente, esse movimento argumentativo é atribuído a critérios lógicos,
psicológicos, retóricos e sociológicos, exteriores à língua, que fazem parte da situação
discursiva. O modelo de Ducrot recusa essa compreensão tradicional, por entender que a
argumentação pode estar diretamente determinada pela frase e não simplesmente pelo fato F
que o enunciado da frase veicula. Esta compreensão permite a postulação da hipótese de que a
argumentação está na língua, nas frases e, mais ainda, que as próprias frases são
argumentativas, pois a especificação dos caminhos que o interlocutor deve seguir para
compreender os enunciados vem das próprias frases. Entre essas especificações, Ducrot
interessa-se pelas variáveis argumentativas, que indicam ao intérprete do enunciado que ele
deve atribuir ao locutor uma estratégia argumentativa determinada.
55
Foi essa observação que balizou a edificação da Teoria da Argumentação na Língua
(doravante TAL), cuja hipótese central é de que as frases possuem um valor argumentativo
em si mesmas, por isso a significação dos encadeamentos argumentativos é possível a partir
dos enunciados. Como o valor semântico da frase está contido em instruções que determinam
a intenção argumentativa a ser atribuída a seus enunciados, a frase indica como se pode, e
como não se pode, argumentar a partir deles.
Considera-se, assim, que a relação argumentativa está intrinsecamente ligada à língua,
de forma que é impossível derivar qualquer conclusão de um conhecimento extralinguístico. É
justamente esse o ponto central de elaboração da TAL, segundo a qual estados físicos e
psicológicos são incapazes de explicar por que, em enunciados do tipo “são só oito horas”,
podemos encadear conclusões que não seriam pertinentes a enunciados do tipo “são oito
horas”.
Para explicar a possibilidade de movimento de um argumento (A) a uma conclusão
(C), buscou-se então a noção aristotélica de topoï, adaptando-a como garantia para os
encadeamentos discursivos pelos quais se opera a ligação conclusiva entre enunciados.
Amossy (2006) identifica nesse ponto um momento de harmonização entre a retórica
aristotélica e a semântica pragmática, no qual Ducrot integraria plenamente a dimensão
retórica na linguística. Para Ducrot, os topoï ou operadores do senso comum6, são
determinantes do ato de argumentar, pois ao mesmo tempo em que garantem a constante
regulação do sentido, sustentam a organização do discurso, conferindo a ele coesão e
coerência7 (SARFATI, 2002).
Assim, entende-se que, em uma enunciação, o locutor dá as indicações sobre o
caminho argumentativo que escolheu e o alocutário tenta reconstruir um itinerário a partir
dessas indicações que lhe foram fornecidas. Essas indicações são os topoï, que permitem
operar uma escolha entre vários caminhos possíveis. Os topoï funcionariam, portanto, como
princípios gerais que servem de apoio ao raciocínio, embora não se constituam como o
raciocínio propriamente dito. Utilizados como objeto de um consenso no seio de uma
comunidade mais ou menos vasta, eles não precisam ser explicitamente referidos por um
locutor, que não assume sua autoria.
6 Expressão utilizada por Sarfati (2002) para designar os topoï. 7 Uma decorrência fundamental da formulação do modelo teórico de Ducrot é a de que os topoï se encontram no nível lexical, de forma que a significação de um lexema é o conjunto de topoï que autoriza a aplicação. Haveria, assim, uma estruturação tópica do léxico.
56
Algumas considerações a respeito dos topoï na TAL merecem ser sublinhadas: não se
pode utilizar uma língua – na medida em que ela comporta operadores argumentativos –
senão quando se tem a sua disposição e se pressupõe a existência de topoï; ainda que a
utilização da língua exija que se disponha de topoï, ela não determina o conteúdo específico
destes topoï. A mesma língua pode ser utilizada por coletividades que admitem topoï
contrários; contudo, a existência de topoï reconhecidos pela coletividade é indispensável.
Uma outra noção, intimamente relacionada à de topoï, adquire valor fundamental
nessa teoria: a de conectores. Atuando no nível do percurso que o interlocutor pode percorrer
para ir do enunciado à conclusão, os conectores impõem condições sobre as formas tópicas
mobilizadas em um enunciado. Por isso, eles têm o poder de interditar o acesso a certos
caminhos, restringindo assim o número de topoï aplicáveis.
Sob essa perspectiva, a significação de uma frase é o conjunto dos topoï cuja aplicação
ela autoriza, a partir do momento em que a frase é enunciada. Como exemplo, podemos
pensar que, ao qualificar uma compra como dispendiosa ou econômica, o locutor pode estar
constituindo uma situação não necessariamente circunscrita a uma zona de preço, mas ligada
à aplicação de topoï relativos a outros valores, como status social. Observamos, contudo, que
o emprego de determinados conectores seria capaz de definir, com mais certeza, a quais
valores o locutor estaria se referindo.
Outra consideração a respeito dos topoï nos trabalhos de Ducrot é a de que todo ato de
argumentação e toda orientação argumentativa de um elemento semântico implicam que
sejam convocados topoï graduais. Em outras palavras, os topoï compreendem predicados
passíveis de serem graduados, como inteligente, grande, rápido, trabalhador, etc. A relação
argumento + conclusão é gradual por natureza, pelo fato de que um argumento é mais ou
menos forte para uma conclusão dada. Conhecer o sentido de uma palavra é saber quais topoï
lhe estão fundamentalmente relacionados. À proporção que um item lexical convoca um topos
(ou vários topoï), ocorre a graduação, a qual se encontra no nível da imagem que o topos
selecionado dá ao item lexical. Observemos o exemplo canônico:
Está fazendo calor, então vamos à praia.
Nesse caso, as formas tópicas (+ calor , + ir à praia) são concordantes e representadas
pela formulação (+P, +Q).
Já no exemplo seguinte:
Está fazendo calor demais para ir à praia.
As formas tópicas (+ calor, - praia) são discordantes e representadas por (+P, -Q).
57
Admitir, entretanto, que os topoï originam-se em um espaço extralinguístico,
representando esquemas socioculturais, estereótipos ou ideologias, representa um problema
em uma teoria que se propõe a estudar a argumentação de forma não-referencialista. Ducrot
busca então uma reformulação, a fim de mostrar que a descrição de um segmento S são os
encadeamentos evocados por S, ou seja, que pertencem ao semantismo intrínseco de S.
Emediato (2001) relata que Ducrot encontrou a seguinte solução: reconhecer a
existência de uma distinção entre topoï ou encadeamentos extrínsecos (ligados a certos
conhecimentos de mundo) e topoï ou encadeamentos intrínsecos (ligados à própria
significação das palavras).
Em Está fazendo calor, então vamos à praia, estamos diante de um topos extrínseco,
que só pode ser compreendido em função do contexto.
Já em Pedro é rico, ele pode comprar tudo que quiser, verifica-se a ocorrência de um
topos intrínseco, ou seja, o semantismo da palavra “rico” compreende ter dinheiro em
quantidade suficiente para custear a aquisição de muitos bens.
Elegendo os topoï intrínsecos como o paradigma de seus estudos, Ducrot acredita ter
solucionado o paradoxo que contaminava a Teoria da Argumentação na Língua.
Em um estágio mais recente de seus estudos, Ducrot tem trabalhado com a noção de
blocos semânticos. Nessa nova fase da teoria, a hipótese central é a de que há uma
interdependência radical entre os diferentes segmentos de um encadeamento. Essa
interdependência não tem natureza lógica ou veritativa, mas é fundamentada em um substrato
intrínseco à própria argumentação.
Nesse contexto, o encadeamento argumentativo existe não para justificar uma
afirmação a partir de outra afirmação já admitida, mas para qualificar uma coisa ou uma
situação pelo fato de que ela serve de suporte para uma certa argumentação (DUCROT,
2004). Parece-nos que, com essa concepção, Ducrot pretende retirar o aspecto inferencial até
mesmo dos topoï extrínsecos.
Propomos, a partir dos dados apresentados aqui, uma reflexão a respeito do
relacionamento da TAL com outras linhas de pesquisa, especialmente com as teorias de
argumentação de fundamento retórico e pragmático.
Para Sarfati (2002), a Nova Retórica, de Perelman, e a TAL, de Ducrot, têm em
comum a constituição, cada qual em um contexto epistemológico distinto, de uma legitimação
da reflexão sobre os mecanismos do discurso cotidiano, em reação ao logicismo e ao neo-
positivismo.
58
Não obstante, percebemos que a definição de argumentação na TAL, consolidada
como um encadeamento de enunciados conduzidos para certa conclusão, se distancia
consideravelmente dos domínios da retórica. Conforme já discutimos em outras passagens, a
questão central para as pesquisas retóricas é a linguagem como meio de persuasão. A teoria de
Ducrot, diferentemente, não parece se interessar pela análise de técnicas de persuasão.
Quando a TAL trabalha com os topoï e os operadores argumentativos que permitem o
encadeamento dos enunciados na língua, aponta-se que sua abordagem desses elementos se
daria de forma pontual e ascritivista.
Há que se ponderar ainda que a TAL foi desenvolvida com base em dados restritos e
utilizando-se de convenções impregnadas de apriorismos técnicos muito específicos, de forma
que Ducrot e seus colaboradores permaneceram, durante muito tempo, isolados de outras
correntes de pesquisa, como a Análise do Discurso, que em seus primórdios era conhecida por
seu apelo fortemente sociopolítico, e a própria Nova Retórica, completamente imbuída dos
princípios do classicismo.
Por fim, resta considerar que Ducrot (2002) acredita que seus trabalhos recentes sobre
os encadeamentos argumentativos na língua abrem uma perspectiva diferente para a retórica
clássica, cuja concepção tradicional, para o autor, daria primazia à prova pelo logos. Esse
logos, contudo, enfraquecido por buscar conteúdo no senso comum, nas crenças
compartilhadas no meio social, deveria buscar reforço pelo recurso ao ethos e ao pathos, que
são os verdadeiros responsáveis pela eficácia persuasiva. Portanto, o logos retórico é uma
ilusão. Em conclusão, Ducrot afirma que a verdade não pode ser encontrada na argumentação,
como conclusão das premissas, mas somente através da crítica reflexiva de um discurso.
Por todos esses aspectos aventados, lançamos a seguinte indagação: a Nova Retórica e
a TAL são estruturalmente incompatíveis entre si e, mais ainda, não podem ser conjuntamente
aplicadas para a análise linguística de um corpus?
A Nova Retórica é um modelo teórico de base eminentemente filosófica, cujas
categorias, devido a seu alto grau de abstração, apresentam dificuldades práticas de
operacionalização. Parece-nos que, a fim de viabilizar a análise linguística de um corpus,
pode ser interessante aliar os postulados filosóficos de Perelman às contribuições pontuais da
TAL, sobretudo no que diz respeito aos operadores argumentativos, aos marcadores de
pressuposições, aos modalizadores, que revelam a atitude do locutor perante o enunciado que
produz, e os índices de polifonia.
Delineado o quadro teórico nos limites do qual inserimos a análise argumentativa de
nosso corpus, iniciamos, no capítulo seguinte, uma discussão a respeito das relações entre
59
linguagem, complexo institucional e performatividade, necessária às finalidades de
abordagem do discurso processual penal que propomos neste trabalho.
60
3 LINGUAGEM, AÇÃO E O CARÁTER INSTITUCIONAL DA ATIV IDADE
DISCURSIVA
Nosso objeto de investigação – o processo movido pela Justiça Pública, em face de
uma mulher, para apuração de suspeita de autoaborto – encontra-se circunscrito no âmbito de
um amplo domínio discursivo que toma corpo no território das práticas de linguagem: o
discurso jurídico.
Como observa Mendes (2007)8, a caracterização mais rigorosa dos domínios
discursivos, de um ponto de vista teórico, é extremamente importante para a qualidade dos
trabalhos desenvolvidos na linguística da enunciação/discurso, ainda que represente um
grande desafio para os pesquisadores, por exigir um trabalho interdisciplinar sistemático com
outras áreas do conhecimento, como a Sociologia, a História, a Psicologia, a Comunicação
Social, a Ciência Política, a Etnometodologia, o Direito, a Filosofia.
Trata-se, enfim, de uma investigação relevante e, ao mesmo tempo, desafiadora:
Os pesquisadores da lingüística da enunciação ou do discurso acabam circunscrevendo seus objetos de estudo no âmbito daquilo que chamamos de ‘discurso político’, ‘discurso jurídico’, ‘científico’, ‘publicitário’, ‘jornalístico’, ‘literário’, ‘religioso’, ‘filosófico’ etc. O fato é que essas ‘noções’ muito difusas não caracterizam algo que dominamos teoricamente. (MENDES, 2007).
Neste capítulo, buscamos elaborar uma caracterização um pouco mais segura do
domínio discursivo jurídico, pontuando alguns de seus aspectos que nos parecem muito
peculiares. Essa caracterização implicou, inicialmente, a investigação de sua dimensão
institucional.
Muitos autores já se dedicaram à tentativa de compreensão das relações entre
linguagem e instituição, cada um deles partindo de fundamentações teóricas tecidas em
campos diferentes de investigação e chegando a conclusões também heterogêneas.
Na “sociologia dos campos”, por exemplo, cujo expoente mais ilustre é Pierre
Bourdieu, encontramos a discussão sobre as relações entre linguagem e complexo
institucional voltada para a questão da eficácia da palavra. Bourdieu defende a hipótese de
que a força ilocucionária das palavras não pode ser encontrada nelas mesmas, ou seja, a
eficácia da palavra não está em sua substância propriamente linguística, mas na adequação
8 Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes, em proposta de formação do grupo de estudos para Análise de Discursos Institucionais - linguagem, ação e poder, do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas.
61
entre a função social do locutor e seu discurso. Em outros termos, a eficácia da palavra não
depende do que ela enuncia, mas daquele que a enuncia e do poder do qual ele está investido
aos olhos do público. Destaca-se aqui a relevância do estatuto pessoal dos sujeitos, assim
como da autoridade institucional usufruída por eles (autoridade individual e institucional do
orador – a reputação de sua família, seu estatuto social, o que se sabe de seu modo de vida,
etc) para se alcançar uma finalidade por meio do discurso.
Ao abordar as relações entre linguagem e instituição, colocando esta última como
realidade exterior àquela, o sociólogo dirige seu foco de análise para as condições
institucionais a serem preenchidas a fim de que um discurso de autoridade seja reconhecido.
Mais ainda, a discussão é encaminhada para as condições a serem preenchidas para que a
própria instituição funcione.
Recentemente, os escritos de Bourdieu têm sido fonte de inspiração para estudiosos da
linguagem, sobretudo no âmbito dos estudos ethóticos.
Maingueneau (1997), situado no campo de investigações da Análise do Discurso,
aponta o fato de que, por muito tempo, os estudos discursivos teriam privilegiado a análise
dos diversos corpora sem levar em conta os atos de enunciação que os havia tornado
possíveis, como se tais fatos fossem apenas um conjunto de “unidades destacáveis” e não uma
dimensão constitutiva do discurso. Como sintomático dessa forma de pensar, a noção de
instituição recebia nas Ciências da Linguagem uma interpretação restritiva, que se aplicava
apenas à língua, e não ao discurso. Em sentido oposto, este autor propõe-se a rearticular a
questão da cena enunciativa e, ao mesmo tempo, aprofundar a discussão sobre o caráter
institucional da atividade discursiva – a linguagem como ação institucionalizada –, abordando
o complexo institucional associado à enunciação de qualquer discurso.
Amossy (2005a, 2005b, 2006), cuja perspectiva teórica apresentamos no capítulo
antecedente, aborda a eficácia da palavra por meio da articulação entre discurso,
especialmente na modalidade argumentativa, e complexo institucional. A autora reconhece o
valor, no dispositivo enunciativo, do estatuto do locutor e do quadro institucional no qual ele
profere sua palavra, por entender que tal dispositivo depende também da posição daquele que
tem a palavra e do grau de legitimação de que goza no espaço social onde circula. Contudo,
recusa a concepção de Bourdieu de que a palavra retira sua eficácia unicamente da autoridade
do locutor.
Finalmente, encontramos em Searle (1976, 1995c) a hipótese de que as regras dos atos
de fala, assim como as regras de um jogo, têm natureza constitutiva. Nesta construção teórica,
considera-se que a linguagem é uma forma de comportamento intencional regido por regras,
62
as quais são da mesma ordem das regras de futebol: aquelas são responsáveis pelas
regularidades apresentadas na linguagem, enquanto estas dão conta das regularidades
apresentadas em uma partida de futebol. Essa hipótese prevê o papel das instituições como
pressuposto necessário para que as regras adquiram sentido. Encontramos ainda em Searle
(1976) a questão do estatuto dos interlocutores relacionada à força ilocucionária de um ato de
fala, ou condições preparatórias para que este ato seja desempenhado com sucesso.
Nos tópicos seguintes, aprofundamos um pouco mais a discussão sobre as relações
entre linguagem, discurso e instituições segundo os autores explicitados acima, tomando
como fio condutor do raciocínio a questão do complexo institucional articulado à
performatividade da palavra.
3.1 Bourdieu e a sociologia dos campos
De maneira bem sintética, as incursões de Bourdieu pelas Ciências da Linguagem
parecem ter se desenvolvido como uma reação à linguística de procedência saussuriana,
recusada pelo sociólogo por buscar apenas no funcionamento interno da língua as explicações
necessárias para a compreensão dos diferentes posicionamentos dos sujeitos em uma dada
situação de comunicação. Essa preocupação estruturalista teria gerado uma ruptura entre o
estudo da língua e suas condições sociais de produção, reprodução e circulação, acarretando,
com isso, uma busca inútil do poder da palavra na própria palavra.
Segundo Bourdieu (2008), esse poder estaria em uma posição exterior ao verbo, na
medida em que as trocas simbólicas não se reduzem à relação de mera comunicação de
conteúdos, ou seja, falar não é somente transmitir uma informação. Quem fala quer ser
ouvido, obedecido, respeitado e para isso, deve ocupar, na estrutura social, determinada
posição que garanta à sua alocução o atributo de legitimidade. Por isso, afirma o autor que:
[...] todos os esforços para encontrar na lógica propriamente lingüística das diferentes formas de argumentação, de retórica e de estilística, o princípio de sua eficácia simbólica, estão condenados ao fracasso quando não logram estabelecer a relação entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo. (BOURDIEU, 2008, p. 89).
Para Bourdieu (2008), não se pode explicar linguisticamente o princípio da lógica e da
eficácia da linguagem institucional desprezando o fato de que a autoridade de que se reveste a
63
linguagem “vem de fora”, é exterior ao orador. Dessa forma, parece claro que o autor desloca
para o campo da autoridade a discussão acerca do poder da palavra.
Em outros termos, a eficácia das manifestações performativas, segundo Bourdieu,
seria um desdobramento de um poder que reside nas condições institucionais de sua produção
e recepção. Eficácia equivaleria, assim, a uma questão de autoridade. E uma característica
fundamental do discurso de autoridade é, no sentido proposto por Bourdieu, a necessidade de
reconhecimento.
Se comparado à força da autoridade, o papel da linguagem é bastante limitado na visão
do sociólogo:
Pode-se dizer que a linguagem, na melhor das hipóteses, representa tal autoridade, manifestando-a e simbolizando-a. Há uma retórica característica de todos os discursos institucionais, quer dizer, da fala oficial do porta-voz autorizado que se exprime em situação solene, e que dispõe de uma autoridade cujos limites coincidem com a delegação da instituição. As características estilísticas da linguagem dos sacerdotes e professores e, de maneira mais geral, dos quadros de quaisquer instituições, tais como a rotinização, a estereotipagem e a neutralização, derivam da posição ocupada num campo de ocorrência por esses depositários de uma autoridade delegada. (BOURDIEU, 2008, p. 87-88).
A explicação para a possibilidade de um sujeito agir mediante palavras em relação a
outros sujeitos encontrar-se-ia, em última análise, no capital simbólico concentrado por ele, de
forma que os locutores que detém maior capital simbólico estão habilitados a impor as regras
de produção e de aceitação das formas linguísticas tidas como adequadas.
Por fim, o autor entende que o reconhecimento implica também a cumplicidade por
parte dos que se subordinam, devido à atuação dos mecanismos sociais capazes de produzir
tal cumplicidade:
A autoridade da língua legítima reside nas condições sociais de produção e reprodução da distribuição entre as classes do conhecimento e do reconhecimento da língua legítima e não no conjunto das variações prosódicas e articulatórias definidoras da pronúncia refinada como sugere o racismo classista, e muito menos na complexidade da sintaxe ou na riqueza do vocabulário, quer dizer, nas propriedades do próprio discurso. (BOURDIEU, 2008, p. 93).
Ao refletirmos sobre o discurso jurídico, sobretudo quando enfocamos as condições
enunciativas dos proferimentos produzidos nesse domínio, nos deparamos com essa
problemática de considerar, ou não, o estatuto pessoal dos interlocutores como condição
suficiente para o sucesso de determinados atos de fala por eles executados. Se pensarmos
como Bourdieu (2008), somos levados a assumir a hipótese de que a eficácia da palavra
64
proferida por Juízes, Promotores e Advogados deriva do fato de estarem investidos de um
estatuto social. A investidura é importante, nesse caso, porque
[...] transforma ao mesmo tempo a representação que a pessoa investida faz de si mesma, bem como os comportamentos que ela acredita estar obrigada a adotar para se ajustar a tal representação. Pode-se compreender nesta lógica o efeito de todos os títulos sociais de crédito ou de crença – o que os ingleses denominam credentials – os quais, a exemplo do título de nobreza ou do título escolar, multiplicam de maneira duradoura o valor de seu portador ao multiplicar a extensão e a intensidade da crença em seu valor. (BOURDIEU, 2008, p. 100).
Contudo, se nos situamos na perspectiva discursiva, nossa compreensão da questão da
investidura caminha no sentido de considerar que o estatuto é relevante, mas a legitimidade do
locutor é construída também por meio de seu discurso. Em Maingueneau e Amossy
encontramos a fundamentação para esse modo de pensar.
Antes de iniciar a abordagem acerca da perspectiva discursiva, acreditamos ser
conveniente lembrar que o pensamento de Bourdieu tem inspirado trabalhos na Análise do
Discurso principalmente em torno da noção de ethos. Nessa vertente, postula-se a integração
do ethos retórico ou pragmático, fundado na eficácia da palavra, ao ethos formulado segundo
a hipótese de Bourdieu, na qual se defende a necessidade de levar em conta a posição do
locutor como ser empírico no campo em que ele se situa (político, intelectual, literário ou
outro).
3.2 O contraponto discursivo à sociologia dos campos
Diferentemente da sociologia dos campos, em uma perspectiva que alia Pragmática e
Análise do Discurso, a eficácia da palavra é pesquisada no interior da troca verbal, relegando-
se a um segundo plano os rituais exteriores à prática linguageira. Nesse domínio, interessam
os dispositivos de enunciação, as relações entre um dizer, um dito e uma instituição, ou seja, a
possibilidade de uma articulação entre linguagem e instituição, e não esta última considerada
isoladamente.
Em torno dessa possível articulação, destacamos os trabalhos de Maingueneau (1997,
2008) e de Amossy (2005a, 2005b, 2006).
Maingueneau (2008) direciona seus esforços na tentativa de articular, no nível do
discurso: enunciado e enunciação, linguagem e contexto, fala e ação, instituição linguística e
65
instituições sociais. Para essa articulação, parte de um conceito fundamental, que constitui a
pedra angular de seu pensamento: o conceito de formação discursiva, tomado de empréstimo
de Foucault (2000), na Arqueologia do saber. A partir desse conceito, Maingueneau (1997)
estabelece inclusive a abrangência do termo discurso em sua teoria, que seria o conjunto de
enunciados produzidos a partir de uma certa posição, bem como o sistema de restrições que
permite analisar as especificidades desta superfície discursiva. Em relação a essas restrições, o
autor afirma que:
Este mesmo sistema de restrições pode ser considerado uma espécie de ‘competência’, no sentido chomskiano, ou seja, um conjunto de regras capazes de produzir uma infinidade de enunciados, realizados ou não, a partir da posição enunciativa estudada. A esta fonte de deslizamentos semânticos, acrescenta-se o que diz respeito aos elementos que supostamente entram na delimitação do ‘discurso’: para alguns, apenas os enunciados são integrados, enquanto outros levam em conta o complexo institucional que está associado à sua enunciação. (MAINGUENEAU, 1997, p. 23).
Maingueneau pode ser incluído no conjunto dos que levam em consideração o
complexo institucional como elemento de delimitação do discurso, tanto que em seus
trabalhos, propõe-se a reelaborar a questão da cena enunciativa e, ao mesmo tempo,
aprofundar a discussão sobre o caráter institucional da atividade discursiva, tratando, assim, a
linguagem como ação institucionalizada.
Na obra Gênese dos Discursos, Maingueneau (2008) aborda a imbricação entre um
discurso e uma instituição em termos de um sistema de restrições semânticas situadas além do
enunciado e da enunciação. Trata-se de uma semântica global, responsável por restringir, em
um determinado domínio discursivo, as temáticas abordadas, o vocabulário, as instâncias de
enunciação, a intertextualidade. Esse sistema permitiria que os discursos fossem analisados
juntamente com a rede institucional que a enunciação, a um só tempo, supõe e torna possível.
A partir dessa concepção, o autor afirma que:
Se se constata que a mudança de dominação discursiva num campo é acompanhada também de uma mudança correlativa dos espaços institucionais, e que tal mudança é pensável em termos de semântica global, isso significa que também nesse nível não há transformação gradual dos enunciadores de um discurso em enunciadores de outro discurso por uma série de microevoluções, mas substituição do conjunto de uma população de enunciadores, de uma rede de produção-difusão etc... de um certo tipo por outros. (MAINGUENEAU, 2008, p. 121).
Maingueneau (2008) aponta alguns fatores que podem auxiliar na identificação do
funcionamento de um complexo institucional, como um todo, e seu inter-relacionamento com
a discursividade. Incluem-se aí o organograma de uma instituição, as regras que governam as
66
instituições nas quais se desenvolve determinado discurso, sua organização espacial, o modo
de enunciação de sua formação discursiva, o conteúdo dos proferimentos, o laço semântico
essencial de um funcionamento institucional, os modos de difusão desenhados pela própria
rede institucional.
Diante de suas constatações sobre a relação entre semântica do discurso e instituição, o
autor é levado a se distanciar da concepção de instituição como “suporte” para enunciações,
ou ainda, de um esquema fixo em que as instituições seriam a causa e o discurso, seu reflexo.
Assumindo hipótese contrária, Maingueneau (2008) afirma que as enunciações devem ser
consideradas de acordo com a mesma dinâmica das instituições onde são produzidas, pois “a
organização dos homens aparece como um discurso em ato, enquanto o discurso se
desenvolve sobre as próprias categorias que estruturam essa organização”.
(MAINGUENEAU, 2008, p. 128).
O modo como Maingueneau compreende as relações entre discurso e instituição
apresenta desdobramentos também para seus estudos sobre gêneros e sobre ethos.
No que diz respeito aos gêneros, observa-se uma passagem da concepção que
identifica os gêneros segundo suas características formais e adota-se uma concepção
institucional, na qual forma e condições de enunciação se fundem.
Para Maingueneau (1997), um gênero discursivo sujeita-se a condições de natureza
comunicacional e de natureza estatutária. As condições comunicacionais são aquelas
relacionadas à forma oral ou escrita, aos suportes e circuitos de difusão. As condições
estatutárias, por sua vez, afinam-se com a questão da legitimidade do lugar que o enunciador
ocupa no processo enunciativo, ou o tipo de estatuto que o enunciador genérico deve assumir
para tornar-se sujeito de seu discurso:
[...] não é por terem dado prova de competência que determinados indivíduos da população detêm o discurso médico, mas porque o exercício deste discurso pressupõe um lugar de enunciação afetado por determinadas capacidades, de tal forma que qualquer indivíduo, a partir do momento que o ocupa, supostamente as detém. (MAINGUENEAU, 1997, p. 37).
Neste ponto, a colocação de Bourdieu (2008) de que a eficácia da palavra é uma
questão de autoridade é deslocada para o plano da enunciação. Diferentemente do sociólogo,
Maingueneau (2008) entende que os próprios enunciadores definem seu “estatuto” e seu
“modo de enunciação”, inscrevendo a si e a seus enunciatários em uma certa posição social,
marcando sua relação com um determinado saber e legitimando sua fala. Parece claro que,
para Maingueneau (1997, 2005, 2008), esse fenômeno tem lugar no próprio discurso. O
67
discurso é o lugar onde ocorre a atribuição de estatutos. Nesse contexto, o ethos surgiria como
componente essencial da eficácia da palavra, relacionando-se ao estatuto do locutor, mas
encontrando sua legitimidade no discurso.
Em seguida, encaminhamos a discussão para a dimensão institucional do domínio
discursivo jurídico, no qual se insere nosso corpus.
3.3 A dimensão institucional do discurso jurídico
Neste tópico, ainda abordando as relações entre linguagem, discurso e instituições,
tentamos elaborar uma hipótese explicativa da dimensão institucional do discurso jurídico,
tomando como base a teoria da construção da realidade social, elaborada por Searle (1995b).
Mendes (2006) dá a essa teoria contornos mais concretos e valiosos para os objetivos
de nossa pesquisa, ao evidenciar como as relações entre os fatos institucionais do discurso
jurídico se materializam em níveis, mais ou menos profundos, de busca de consenso
pragmático:
a) o nível inferior, dos atos de fala;
b) o nível intermediário, dos gêneros do discurso e
c) o nível superior, do domínio discursivo.
Para a abordagem de cada um desses três níveis de busca de consenso pragmático, nos
apoiamos na Teoria dos Atos de Fala (Austin, 1990; Searle e Vanderveken, 1983; Mari, 2001)
e nos trabalhos de Bazerman (2005) e Travaglia (2002), entre outros.
Percebemos que, com a articulação desses postulados teóricos, poderíamos traçar uma
gradativa ampliação do nosso campo de análises, explicando, com isso, a dinâmica em que se
constrói o discurso processual penal no interior do domínio discursivo jurídico.
Assim, assumimos a hipótese de que os atos de fala definem e designam os gêneros
discursivos, além de contribuírem para sua orientação argumentativa; cada sujeito processual,
em uma situação de interação linguageira travada nos limites de um processo judicial, produz
conjuntos de gêneros no desempenho de suas atividades profissionais; diversos conjuntos de
gêneros se articulam para a formação de sistemas de gêneros que, por sua vez, compõem um
domínio discursivo e realizam fatos sociais. Com isso, obtivemos a seguinte representação:
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HIPÓTESE EXPLICATIVA
Atos de Fala
Conjuntos de Gêneros
Sistemas
de Gêneros Domínio
Discursivo Fatos Sociais
Quadro 6: Hipótese explicativa do funcionamento do domínio discursivo jurídico Fonte: Elaborado pela autora
De acordo com Searle (1995b), o domínio discursivo jurídico pode ser caracterizado
pelo relacionamento dos fatos institucionais que o constituem. O que seriam, então, esses
fatos institucionais, cujas relações intrínsecas constituem e caracterizam o campo jurídico,
assim como o político, o religioso ou qualquer outro campo discursivo?
Os fatos institucionais são, para Searle (1995b), uma subcategoria especial dos fatos
sociais. Fato social é qualquer fato que envolva intencionalidade coletiva. Os fatos
institucionais, além da intencionalidade coletiva, requerem instituições humanas especiais
para sua existência, especialmente, a linguagem. Os fatos sociais e sua subcategoria existem
em oposição aos fatos brutos, que não dependem de quaisquer instituições para existirem,
nem mesmo da instituição da linguagem, e precisam dela apenas para que possam ser
declarados.
A realidade social, que está intrinsecamente associada à existência de uma
comunidade que partilha um conjunto de crenças, de valores ou de bens simbólicos, é criada
por um dispositivo de produção de fatos institucionais, ao qual Searle (1995b) denomina
“poderosa máquina de geração de realidade social”9.
O funcionamento dessa “máquina” apóia-se em um movimento contínuo e próprio do
universo humano, no qual os sujeitos, por meio da intencionalidade coletiva, atribuem
funções a objetos ou fenômenos que não as possuem previamente, criando, com isso, um fato
novo – um fato institucional – que só existe e se mantém em virtude do consenso humano.
A intencionalidade coletiva é um fenômeno biologicamente primitivo, que de forma
alguma pode ser reduzido à somatória de intencionalidades individuais. O elemento crucial na
intencionalidade coletiva é o senso de fazer (querer, acreditar, etc) algo juntos, e a
intencionalidade individual, que cada pessoa tem, é derivada da intencionalidade coletiva de
que todos partilham.
9 [...] powerful engine in the generation of social reality (Searle, 1995b, p. 51).
69
O papel por ela desempenhado nesse processo de criação da realidade social é tão
importante que a própria definição de fato social, segundo Searle, está atrelada à
intencionalidade coletiva. Para o autor, qualquer fato que envolva intencionalidade coletiva é
um fato social. E ainda: “a forma mais simples de fatos sociais envolve formas simples de
intencionalidade coletiva.” (SEARLE, 1995b, p. 37, tradução nossa)10.
A respeito do segundo componente do aparato de construção de fatos institucionais – a
imposição de funções a entidades – Searle (1995b) explica que é uma característica própria de
seres conscientes a capacidade de atribuir funções a objetos e outros fenômenos que, por suas
propriedades, não possuem tais funções. O autor ressalta que essas funções nunca são
intrínsecas e que são atribuídas relativamente aos interesses dos usuários.
Em outras palavras, a função é desempenhada apenas como um assunto de cooperação
humana, e este é, segundo Searle, um elemento crucial na criação de fatos institucionais. Esse
tipo de imposição de funções constitui, assim, um passo além daquelas situações que
envolvem a imposição coletiva de funções a objetos cujas características inerentes permitem
que eles desempenhem tal função, como um pedaço de madeira utilizado como assento ou
uma vara usada como alavanca:
O movimento radical que nos leva de fatos sociais simples, como este que nós estamos sentados juntos em um banco ou estamos tendo uma queda de braço, a fatos institucionais como dinheiro, propriedade e casamento, é a imposição coletiva de função a entidades que – ao contrário de alavancas, bancos e carros – não podem desempenhar as funções somente em virtude de sua própria estrutura física. (SEARLE, 1995b, p. 41, tradução nossa)11.
Retomando o raciocínio de Searle, o elemento chave na criação de fatos institucionais
é, então, a imposição de um estatuto coletivamente reconhecido a uma entidade cuja estrutura
física é apenas arbitrariamente relacionada ao desempenho da função. Trata-se do movimento
de atribuição de “funções-estatuto”. Como ilustração, Searle lembra o caso do dinheiro,
especialmente a evolução da moeda corrente em papel.
Esse movimento de atribuição de funções-estatuto a determinadas entidades é
representado pela forma geral “X (fato bruto) vale como Y (função-estatuto atribuída por
intencionalidade coletiva) em C (contexto que se traduz pela rede integrada de relações com
outros fatos institucionais)”. Em outras palavras, o termo X é um objeto ou fenômeno que se
10 The simplest forms of social facts involves simple forms of collective behavior. 11 The radical movement that gets us from such simple social facts as that we are sitting on a bench together or having a fistfight to such institutional facts as money, property, and marriage is the collective imposition of function on entities which – unlike levers, benches and cars – cannot perform the functions solely by virtue of their physical structure.
70
torna Y ao receber determinadas funções por via da imposição coletiva, em um contexto C,
ressaltando-se, mais uma vez, que o estatuto e a função que o acompanha vão além das puras
funções físicas brutas que podem ser atribuídas a X:
A aplicação da regra constitutiva introduz as seguintes características: o termo Y deve atribuir um novo estatuto que o objeto não tinha ainda apenas em virtude de satisfazer o termo X; e deve haver um acordo coletivo, ou pelo menos aceitação, tanto na imposição desse estatuto à coisa referida pelo termo X como sobre a função que segue com esse estatuto. (SEARLE, 1995b, p. 44, tradução nossa)12.
Para exemplificar a atuação de regras constitutivas de fatos institucionais no domínio
jurídico, podemos pensar em uma situação em que X (pedaço de papel com certos caracteres)
vale como Y (resumo de uma decisão judicial produzida por um colegiado de juízes ou,
simplesmente, Súmula) em um contexto C (Justiça brasileira).
O autor acrescenta ainda que a forma de atribuição de uma nova função-estatuto, que
como já se afirmou, pode ser representada pela fórmula “X conta como Y em C”, em algumas
situações, adquire uma configuração política, razão pela qual a fórmula ganha status
normativo. Isso é demonstrado pelo fato de que a regra geral cria a possibilidade de abusos
que não podem existir sem a regra, sendo que essa possibilidade de abuso é característica de
fatos institucionais.
Outra informação relevante é a de que a atribuição de função-estatuto pode ser
desdobrada de maneira iterativa, ou seja, podem ser atribuídas novas funções a objetos que já
tinham alguma outra função. No exemplo apresentado acima, podemos pensar que aquela
súmula agora é X e que, através do movimento de imposição de funções-estatuto, transforma-
se em Y (uma “Súmula vinculante”) no mesmo contexto C, da Justiça brasileira. A esse
respeito, Mendes (2008) complementa que “essas funções reiteradas historicamente podem
formar sistemas complexos de estruturas imbricadas e hierarquizadas, através do tempo”.
Traçando uma analogia com o que representam as Medidas Provisórias para o Poder
Executivo, conforme exemplo de Mendes (2008), esclarecemos o que são as chamadas
“súmulas vinculantes” para o Poder Judiciário: um tipo de ato de linguagem produzido por
julgadores, no interior de processos judiciais, que faz parte do gênero discursivo Acórdão e
que, no contexto institucional da Justiça brasileira, adquire foros de lei, passando a vincular,
ou obrigar, a decisão dos juízes de primeira instância como se lei fosse. Convém enfatizar
12 So the application of the constitutive rule introduces the following features: The Y term has to assign a new status that the object does not already have just in virtue of satisfying the X term; and there has to be collective agreement, or at least acceptance, both in the imposition of that status on the stuff referred to by the X term and about the function that goes with that status.
71
que, apesar de vincular como lei, a súmula é produzida por um Poder que, no sistema de
Direito adotado pelo Brasil, não tem entre suas atribuições a faculdade de legislar, por isso
esse instituto tem gerado grande polêmica em meio aos estudiosos do Direito.
Pode-se inferir, então, de maneira sintética, que as instituições, ou os fatos
institucionais, são criados a partir de regras constitutivas, que têm a notação “X conta como Y
no contexto C” e que se opõem a regras meramente regulativas, que apenas regulam
atividades que já têm existência anterior às regras. Por exemplo, a regra: “dirija do lado da
mão direita da via” regula a direção; mas a direção existe antes da regra. As regras
constitutivas são aquelas que não apenas regulamentam, mas que também criam a
possibilidade de existência de certas atividades, como regras de xadrez, por exemplo: mais do
que regulamentar um jogo que já existe, elas criam a possibilidade de se jogar xadrez
(SEARLE, 1995b).
O autor chama a atenção para a postura dos sujeitos diante da realidade social,
afirmando que a atitude que nós temos diante do fenômeno é em parte constitutiva do
fenômeno. Acreditar que “algo é algo”: essa é uma característica notável dos fatos sociais,
que não encontra análogo entre os fatos físicos. Não obstante, o processo de criação de fatos
institucionais pode ocorrer sem que os participantes estejam conscientes de que isso está
acontecendo de acordo com a fórmula canônica. Primeiro porque nós nascemos e crescemos
em uma sociedade e recebemos suas instituições. Segundo porque os participantes não
precisam estar conscientemente atentos quanto à forma de intencionalidade coletiva pela qual
eles estão impondo funções a objetos.
Outro ponto a ser ressaltado é o de que existe uma relação especial entre imposição de
funções-estatuto e linguagem, e essa relação é tão estreita que se afirma que o elemento
linguístico é parte constitutiva dos fatos institucionais. Em outras palavras, a linguagem
aparece como fator essencial não apenas para a representação desses fatos, mas para sua
criação e manutenção. A título de ilustração, o autor mais uma vez apresenta o exemplo do
dinheiro: “as etiquetas que são partes da expressão Y, como a etiqueta ‘dinheiro’, agora são
parcialmente constitutivas do fato criado” (SEARLE, 1995b, p. 52)13. Desse modo, um grande
número de fatos institucionais pode ser criado pela explicitação de proferimentos
performativos (declarativos).
A linguagem desempenha ainda outros papéis no quadro dos fatos institucionais. Em
primeiro lugar, a linguagem é epistemologicamente fundamental. A complexidade das
13 The labels that are a part of the Y expression, such as the label “money”, are now partly constitutive of the fact created.
72
instituições sociais requer linguagem para sua representação e comunicabilidade, pois sendo
os fatos inerentemente sociais, devem ser comunicáveis. E a linguagem é um meio de
comunicação pública. Como afirma Searle:
Porque o nível Y da mudança de X para Y na criação de fatos institucionais não tem existência apartada de sua representação, nós precisamos de um meio de representar isso. Mas não há um meio natural pré-linguístico de representar, porque o elemento Y não tem características naturais pré-linguísticas em adição ao elemento X que poderia prover os meios de representação. Então precisamos ter palavras ou outros meios simbólicos de performatizar a mudança de X para Y. (1995b, p. 69-70)14.
Investigando as características do domínio discursivo político, Mendes (2008)
observou que as relações entre os fatos institucionais que compõem esse domínio, assim como
qualquer outro, podem ser estruturadas em três níveis de complexidade, em termos das regras
pragmático-normativas que as constituem e a partir da integração de convenções psicossociais
e linguístico-enunciativas.
Para o autor, o primeiro nível, e mais elementar, concebido como um nível inferior de
consenso pragmático entre os interlocutores, é constituído pelos atos de fala, ou atos de
linguagem, na perspectiva assumida pela Teoria dos Atos de Fala.
O segundo nível, ou nível intermediário de busca de consenso pragmático, refere-se “à
rede de situações de comunicação, de gêneros situacionais ou de micro-contratos de
comunicação que se articulam de maneira imbricada e hierarquizada em função de um
terceiro e último nível”, denominado pelo autor de nível superior de busca de consenso
pragmático, que se refere ao campo do domínio discursivo.
Nas palavras do autor:
Os atos de linguagem elementares são articulados e encadeados sob a forma de gêneros discursivos, que são ‘modelos públicos’ de práticas de linguagem, ou ainda, dispositivos sócio-cognitivos de comunicação historicamente construídos, que configuram atos de linguagem de um nível superior de complexidade, a exemplo dos textos representativos de um comício, de uma entrevista ou debate eleitoral, de um projeto de lei, de uma propaganda de governo ou campanha, de uma reunião ministerial ou parlamentar, de um panfleto ou cartaz de protesto, de fóruns de discussão, apenas para citar alguns gêneros cuja rede hierarquizada constitui grande parte daquilo que chamamos de campo ou domínio discursivo político. (MENDES, 2008, p. 15).
14 Because the Y level of the shift from X to Y in the creation of institutional facts has no existence apart from its representation, we need some way of representing it. But there is mo natural prelinguistic way to represent it, because the Y element has no natural prelinguistic features in addition to the X element that would provide the means of representation. So we have to have words or other symbolic means to perform the shift form the X to the Y status.
73
Nos tópicos seguintes, traçando uma analogia entre as observações reunidas por
Mendes (2008) quanto ao domínio discursivo político, tentaremos explicar as relações entre
os fatos institucionais, segundo os três níveis de busca de consenso pragmático, no campo do
discurso jurídico, buscando com isso uma melhor caracterização desse domínio discursivo.
3.3.1 As relações entre os fatos institucionais no nível dos atos de fala
Para compreender as relações entre os fatos institucionais do domínio jurídico no nível
dos atos de fala, ou atos de linguagem, é preciso estabelecer, inicialmente, em que sentido
compreende-se tal conceito.
Atribui-se à tradição anglo-saxônica o desenvolvimento do modelo conhecido como
Teoria dos Atos de Fala (TAF), no interior do qual o conceito de ato de fala é formulado a
partir de uma tentativa de se estabelecerem relações integradas entre o uso da linguagem e a
realização de ações. Desenvolvida a partir dos trabalhos de Austin, Searle e Vanderveken, em
uma perspectiva teórica sobre a qual se desenvolveu a pragmática, a TAF promoveu também
um deslocamento do conceito de enunciação em voga, por conceber a linguagem como
atividade, forma de ação linguística entre interlocutores. Esse deslocamento de perspectiva
ocorreu na medida em que:
Mudando-se a concepção de linguagem, passa-se de uma semântica representacional (centrada na questão do verdadeiro e do falso), para uma semântica discursiva: o enunciado produzido em determinadas circunstâncias pela pessoa apropriada [...] torna-se discurso – ele não pode ser descrito independentemente do contexto e das convenções sociais e culturais que regem sua enunciação. (BRANDÃO, 2002, p. 65).
Na obra Speech Acts: an essay in the philosofy of language (1976), Searle defende a
hipótese de que falar uma língua é performatizar atos de acordo com regras, já que uma
língua, em seu entender, pode ser considerada como uma realização convencional de uma
série de regras constitutivas. Dessa forma, atos de fala seriam atos caracteristicamente
executados pelo proferimento de expressões, em consonância com estes conjuntos de regras
constitutivas.
Ao tomar o ato ilocucionário como unidade de análise, considerando aqui sua força
ilocucionária e seu conteúdo proposicional, o autor conclui que existem apenas cinco
categorias gerais de atos ilocucionários, que se traduzem em cinco maneiras de usar a
74
linguagem. Essas cinco maneiras primitivas de uso natural da linguagem correspondem àquilo
que um falante pretende realizar com o seu proferimento, por isso são chamadas por Searle de
propósito ilocucionário. Por meio delas, “dizemos às pessoas como as coisas são (Assertivos),
tentamos levá-las a fazer coisas (Diretivos), comprometemo-nos a fazer coisas
(Compromissivos), expressamos nossos sentimentos e atitudes (Expressivos) e provocamos
mudanças no mundo através de nossas emissões linguísticas (Declarações)”. (SEARLE,
1995a, p. 10).
Desenvolvendo o raciocínio de Searle, Mendes (2004) afirma que:
[...] há apenas cinco maneiras primitivas de uso natural da linguagem, que se traduzem pelos pontos assertivo, diretivo, comissivo, declarativo e expressivo, os quais se desdobram em múltiplas possibilidades de modos de realização do ponto, em função de certas condições de sucesso – a saber, as condições de conteúdo proposicional, preparatórias e de sinceridade – e de suas respectivas direções de ajuste da proposição em relação ao mundo e vice-versa, que orientam as condições de satisfação dos atos. (MENDES, 2004, p. 29).
Dessa forma, temos que os propósitos ilocucionários se traduzem por cinco pontos de
realização de um ato, que são o assertivo, o comissivo, o diretivo, o declarativo e o
expressivo.
Assim, um ato que se realiza no ponto assertivo reporta um estado de coisas que
preexiste à sua enunciação. Nesse ponto, a linguagem desempenha o papel de apenas
descrever o estado de coisas, que independe dela. A linguagem retrata a visão do locutor, por
isso o fato relatado é passível de julgamento quanto ao valor de verdade. Na medida em que
um ato que se realiza no ponto assertivo pretende descrever um estado de coisas já existente,
sua direção de ajustamento é a de palavra-mundo.
Um ato realizado no ponto comissivo projeta uma ação futura do locutor, que poderá
ser realizada em seu próprio favor ou em favor de seu alocutário. A linguagem cria entre os
interlocutores um laço de compromisso. É fundamental, contudo, que o locutor seja capaz de
realizar a ação intentada. Tem uma direção de ajustamento mundo-palavra, pois implica a
realização de ações representadas no conteúdo proposicional desses atos, a serem
desencadeadas num tempo futuro ao da enunciação.
No ponto diretivo, o ato projeta uma ação futura a ser desempenhada pelo alocutário,
ou seja, o locutor propõe uma ação, que não será realizada por ele próprio, mas pelo outro. O
pressuposto é o de que o alocutário seja capaz de realizar a ação e que esta não lhe seja
prejudicial. Assim como o comissivo, tem direção de ajustamento mundo-palavra.
75
No ponto declarativo, o ato cria um estado de coisas a partir da enunciação de um
locutor, sendo a linguagem condição necessária para isso. O estado de coisas instaurado não
pode ser avaliado como falso ou verdadeiro, mas por outros valores que se associam ao status
de quem o profere. O pressuposto é o de que o locutor esteja investido de algum tipo de
autoridade. Esse ato possui dupla direção de ajustamento, porque instaura um estado de coisas
a partir de sua enunciação.
Um ato que se realiza no ponto expressivo representa um estado psicológico do
locutor. A linguagem serve de parâmetro para mostrar se o gesto do locutor em relação ao
alocutário é de aproximação/distanciamento, cortesia/repulsa, engajamento/indiferença, etc.
Avaliações sobre a natureza do estado de coisas são suspensas em nome da interação e do teor
protocolar de sua ocorrência. O pressuposto é o de que o locutor seja capaz de expressar um
sentimento ou de usar um protocolo apropriado. Atos realizados no ponto expressivo têm
direção de ajustamento nula, uma vez que expressam estados psicológicos de quem os realiza.
O agrupamento dos atos de fala em apenas cinco padrões, contudo, projeta uma visão
muito restrita do comportamento linguístico, de forma que é necessário operar uma abertura
que contemple a pluralidade de usos refletidos na fala. Essa abertura se faz pelos modos de
realização, que operam “[...] uma especificação, uma especialização, em razão de
circunstâncias próprias, da maneira pela qual o ponto de realização de uma força ilocucional
deva ser desempenhado para assegurar a satisfação de um ato de fala” (MARI, 2001, p. 121).
As inúmeras formas que o modo pode assumir em cada ponto de realização decorrem de
particularidades relacionadas aos componentes do processo enunciativo, ao conteúdo
proposicional e à utilização de formas linguísticas próprias.
As condições de conteúdo proposicional determinam restrições gerais a serem
impostas sobre a natureza do conteúdo proposicional de uma dada expressão linguística.
Assim, atos realizados nos pontos comissivo e diretivo requerem que os seus conteúdos
proposicionais representem uma ação futura do locutor e do alocutário, respectivamente, a
serem realizadas num tempo futuro ao de sua enunciação, de acordo com as circunstâncias
determinadas (MENDES, 1998).
Bazerman (2005) afirma que, para realizarem atos, as palavras devem ser ditas pela
pessoa certa, na situação certa, com o conjunto adequado de compreensão. O autor refere-se,
aqui, às condições preparatórias de realização de um ato por meio da linguagem, as quais se
relacionam à natureza das convenções reguladoras da situação de interação e aos papéis aí
desempenhados. Um ato declarativo como “declaro aberta a sessão”, por exemplo, só alcança
eficácia se for pronunciado por alguém investido do poder de presidir uma reunião, ou ainda,
76
um ato com a força de uma ordem pressupõe uma relação hierárquica entre os interlocutores,
onde um deles encontra-se em uma posição superior.
Por fim, as condições de sinceridade se referem à intenção dos participantes da
interlocução de se engajarem, de fato, na execução das ações produzidas pela enunciação de
certos atos de fala, de modo que o desempenho do ato vale como a expressão de um estado
psicológico/mental específico do locutor pela qual este se responsabiliza (MENDES, 1998).
Assim, um locutor que enuncia, explica, faz uma asserção ou uma alegação, expressa uma
crença em determinado fato; aquele que promete, jura, ameaça ou se empenha em fazer algo,
expressa uma intenção de fazê-lo; aquele que ordena, manda, pede a alguém que faça alguma
coisa, expressa um desejo, uma vontade e assim por diante. Como afirma Searle (1995a, p. 7)
“o estado psicológico expresso na realização do ato ilocucionário é a condição de sinceridade
do ato.”
Em nossa cultura, os atos de fala definem e nomeiam os gêneros de discurso, ao
mesmo tempo em que instauram sua função social. Essa função é estabelecida no interior de
quadros sociais e institucionais bem definidos, que dão as “condições de felicidade” para sua
ocorrência, determinando até mesmo quem são os seus produtores esperados pela sociedade
(TRAVAGLIA, 2002). Um gênero que se enquadraria bem nessa observação seria, por
exemplo, uma citação judicial. Definida no Código de Processo Civil como “o ato pelo qual
se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender”, tem como local de ocorrência
os quadros institucionais do Poder Judiciário (BRASIL, 2011). O ato de fala que a nomeia e
que instaura sua função social é o verbo performativo “citar” (cita, ficam citados).
Considerando, portanto, o número significativo de textos definidos e nomeados por
atos de fala em nossa sociedade, entende-se que é necessário buscar uma explicação teórica
que relacione os conceitos de gênero e de atos de fala. Nesse sentido, parece mais pertinente
analisar a configuração de um gênero em função das forças ilocucionais que se manifestam
predominantemente em seu bojo.
Alguns domínios discursivos, que sofrem uma maior restrição institucional, por
exemplo, apresentam uma recorrência de certos tipos de atos de fala. Em outras palavras,
determinados tipos de atos de fala emergem como condição primária para a constituição de
certos tipos de discursos. Assim, textos/discursos produzidos no âmbito militar terão atos de
fala predominantemente diretivos (ordem), enquanto no âmbito legislativo, prevalecerão atos
declarativos. Já o discurso político tem como peculiaridade a produção de atos comissivos e
assertivos, que constituem condições enunciativas necessárias para sua construção.
77
Tendo em vista essa preocupação teórica, no tópico seguinte, elaboramos uma
abordagem mais pontual dos gêneros discursivos, identificando o modelo teórico sobre o qual
apoiamos as discussões realizadas neste trabalho e buscando uma melhor compreensão das
relações entre atos de fala, gêneros e realização de atividades.
3.3.2 As relações entre os fatos institucionais no nível dos gêneros discursivos
Inicialmente, é necessário apontar a reflexão para alguns pressupostos que compõem o
quadro conceitual da discussão sobre gênero, desde a forma como foi concebido por
Aristóteles e Bakhtin, até estudos mais recentes, que caminham para uma perspectiva em que
os gêneros são vistos como situações retóricas do convívio social direcionadas a um propósito
– gênero como fato social.
Como já observamos, Aristóteles classificava os gêneros oratórios em três categorias,
de acordo com a função que o auditório deveria desempenhar em cada situação. Assim, no
gênero deliberativo, ou político, o auditório deveria ponderar a respeito de questões públicas
propostas por um orador; no gênero judiciário, o auditório, identificado com a figura do Juiz
de Direito, deveria decidir acerca de uma disputa entre dois proponentes, e no gênero
epidíctico, caberia ao público, composto de espectadores comuns, ou cidadãos, apenas
usufruir dos discursos produzidos em homenagem a uma pessoa ou à grandiosidade de uma
cidade, de um ato, de uma conquista.
Para Bakhtin (1997), os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados
produzidos pela língua, nas mais diversas situações da atividade humana. Em uma perspectiva
dialógica, o autor toma como parâmetro a noção de que os interlocutores, na comunicação
verbal, selecionam as palavras segundo as especificidades do gênero de que participam, sendo
que certos tipos de enunciados são gerados por uma determinada função (científica, técnica,
oficial, cotidiana, etc) e por determinadas condições de comunicação, próprias de cada campo.
Sem perder de vista o dialogismo bakhtiniano, a pesquisa sobre os gêneros do
texto/discurso segue enfoques diferentes na atualidade, conforme o quadro teórico e a
metodologia adotados, mas todas as abordagens têm como ponto de contato entre si o olhar
social sobre a linguagem.
Meurer, Bonini e Motta-Routh (2005) reconhecem três grandes correntes teórico-
metodológicas de estudos contemporâneos sobre os gêneros, que recebem o rótulo de
78
abordagens sociossemióticas, sociodiscursivas e sociorretóricas, segundo traços teóricos
gerais que unem os trabalhos.
As abordagens sociossemióticas, inspiradas em maior ou menor grau pela gramática
sistêmico-funcional de Halliday, evidenciam a correlação entre texto e contexto, linguagem e
vivência humana. Inserem-se, nessa corrente, pesquisadores como Ruqayia Hasan, Jim
Martin, Roger Fowler e outros.
As abordagens sociodiscursivas, cujos representantes são Jean-Michel Adam,
Bronckart e Maingueneau, entre outros, abarcam pesquisas realizadas tanto no quadro da
Análise do Discurso francesa como no quadro do interacionismo sociodiscursivo e
encontram-se bastante voltadas para a questão das práticas de ensino de produção textual.
As abordagens sociorretóricas, nascidas a partir da tradição dos estudos retóricos,
gravitam em torno da compreensão de que os gêneros são situações retóricas do convívio
social direcionadas a um propósito. São expoentes desse pensamento John Swales e Charles
Bazerman. Enquanto Swales (1990) volta seu olhar para o conceito de “comunidades
discursivas”, Bazerman ocupa-se em lançar as bases de uma teoria das ações retóricas e é essa
a perspectiva teórica que nos parece mais apropriada para os fins propostos em nosso trabalho
de pesquisa.
Em prefácio à obra Gêneros textuais, tipificação e interação, publicada por Bazerman
em 2005, Marcuschi apresenta o autor como um teórico “filiado à escola de gêneros na linha
da nova retórica de base pragmática, com um pé na filosofia analítica”, que adota “uma
perspectiva sócio-interativa fortemente vinculada ao aspecto histórico e cultural no contexto
da linguística aplicada com ênfase na produção e uso de conhecimentos retóricos”
(MARCUSCHI, 2005, p. 10).
Sob essa perspectiva, “o núcleo da observação parte sempre da interação na situação
histórico-cultural, espraiando-se pela realidade social para observar conjuntos de gêneros e
atividades, sem se limitar às formas individuais.” (MARCUSCHI, 2005, p. 10).
Segundo Bazerman (2005, p. 31), os “gêneros emergem nos processos sociais em que
pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e
compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos”. (BAZERMAN, 2005, p. 31).
Os estudos do autor vão muito além, contudo, das definições estanques sobre gênero,
abrangendo também seus meios ou canais de circulação, modos retóricos e tipificação.
O conceito de tipificação, aliás, é fundamental para a compreensão dessa perspectiva
teórica:
79
Os gêneros são produzidos quando interpretamos situações novas como sendo similares a outras e criamos tipificações que serão incorporadas a nossa experiência e aplicadas a novas situações. Incorporados ao repertório sociorretórico de seus usuários, os gêneros funcionam como mecanismos estruturadores e, de certo modo, reguladores das ações e interações sociais. (RODRIGUES, 2007, p. 252).
As tipificações a que se refere Rodrigues (2007) surgem como uma forma de
minimizar os esforços de compreensão em uma situação de troca linguageira15, uma vez que
aquilo que falamos ou escrevemos pode produzir sentidos diferentes daqueles esperados por
nós, o que acarreta dificuldades de entendimento entre falante e ouvinte. Agir de modo
“típico”, ou seja, seguindo certas regularidades facilmente reconhecíveis como realizadoras de
determinados atos em determinadas circunstâncias, se apresenta como um meio eficaz de
melhor coordenar nossos atos de fala uns com os outros.
A tipificação, contudo, obedece a um regime dinâmico: o gênero é uma categoria
sócio-histórica e, por isso mesmo, sujeita a um constante processo de mutação. Essa condição
de “prática discursiva historicamente determinada” faz com que se considerem mais
relevantes os aspectos funcionais dos gêneros do que os formais.
Nesse sentido, Mendes (2004) entende que a sociedade está organizada em “[...]
‘setores (esferas) de atividades’ que só se realizam sob a forma de práticas discursivas
institucionalizadas correspondentes àquilo que intuitivamente é chamado de ‘discurso
filosófico’, ‘religioso’, ‘científico’, ‘jurídico’, ‘literário’, ‘político’, ‘midiático’, etc.”. Estes
grandes domínios de linguagem, que se constituem como uma espécie de memória
interdiscursiva, “materializam-se textualmente sob a forma de um conjunto de gêneros
diversos associados a diferentes situações de comunicação, portanto, a diferentes condições
sócio-cognitivas de produção, recepção e circulação, e ainda, a diferentes convenções
lingüístico-enunciativas de ordem formal.” (MENDES, 2004, p. 120).
Os estudos de Bazerman ainda avançam em direção ao inter-relacionamento entre
gêneros, atos de fala, fatos sociais e realização de atividades, relação que nos parece de suma
importância para a consecução dos objetivos do presente trabalho, razão pela qual passamos
agora a aproximar os postulados da Teoria dos Atos de Fala (TAF) às reflexões desse autor.
Conforme se alegou anteriormente, a preocupação da TAF é a de explicar, de forma
lógica, as relações entre linguagem e ação. Essas duas categorias – linguagem e ação – são
15 Evidenciando esse aspecto da economia procedimental, vale a pena transcrever o conceito elaborado por Mari e Silveira (2004, p. 66), segundo os quais os gêneros emergem “(...) à primeira vista, como um ‘script’ – onde algum esqueleto mental de percepção e de inferências está estruturado e/ou disponível – que visa a uma economia cognitiva drástica no processamento da informação, fim maior que vemos circunscrito à existência de tal categoria, como manifestação de uma racionalidade desejável para as práticas de linguagem.”
80
indissociáveis uma da outra, sendo possível afirmar-se que toda declaração realiza alguma
coisa, mesmo que apenas declare um estado de coisas como verdadeiro (AUSTIN, 1990).
Sob essa perspectiva, tudo aquilo que as pessoas dizem pode ser analisado em três
dimensões distintas. A primeira delas é a do que é “literalmente dito”; a segunda dimensão
abrange aquilo que se “pretende realizar com o que é dito” e a terceira corresponde ao que “as
pessoas entendem daquilo que é dito”.
A primeira dimensão, que inclui um ato proposicional, é denominada ato locucional. A
segunda dimensão, ato ilocucional e a terceira dimensão é chamada de efeito perlocucional.
A produção de qualquer enunciado implica a enunciação de pelo menos um ato
ilocucional. A ocorrência de atos ilocucionais é um fator de articulação entre os elementos
que compõem um texto/discurso, constituindo-se como fundamental para o reconhecimento
de um conjunto de enunciados como um gênero. A esse respeito, Mendes explica que:
[...] os discursos não são construídos apenas por um conjunto de palavras articuladas em frases que, por sua vez, se articulam sob a forma de textos – que podem assumir um formato dialogal, descritivo-narrativo, argumentativo, ou até mesmo um formato que seja a mistura de alguns ou de todos esses misturados –, mas, sobretudo, por um conjunto organizado de ‘atos ilocucionais’, isto é, de perguntas, afirmações, pedidos, promessas, declarações, atitudes proposicionais, predições, etc. – articulados e encadeados entre si sob a forma de gêneros, representativos de um editorial de jornal, de uma propaganda eleitoral, de um projeto de lei, de um panfleto sindical, de uma entrevista, de uma carta, de uma crônica, etc., os quais coexistem e se interrelacionam na sociedade em geral. (MENDES, 2004, p. 128)
Avançando um pouco mais na discussão, os efeitos perlocucionais de um ato, ou a
maneira como os alocutários recebem esse ato, são determinantes para o comportamento
destes na situação de interação. O ponto crucial da questão é que nem sempre há a
convergência do efeito perlocucional com a intenção ilocucional. Nesse sentido, Austin
explicita que:
[...] sempre temos que nos lembrar da distinção entre produzir efeitos ou consequências que são intencionais ou não intencionais; e entre (I) quando a pessoa que fala tenciona causar um efeito que pode, contudo, não ocorrer e (II) quando a pessoa que fala não tenciona causar um efeito ou tenciona deixar de causá-lo e, contudo, o efeito ocorre. (AUSTIN, 1990, p. 92)
O efeito perlocucional, para Bazerman (2005), estaria associado ainda aos fatos sociais
que são realizados por um texto: “[...] consideramos o texto, de uma forma geral, como tendo
uma ou algumas ações dominantes que definem sua intenção e propósito, que recebemos
como efeito perlocucional ou como o fato de realização social do texto.” (BAZERMAN,
2005, p. 35).
81
Assim, quando as pessoas utilizam textos, produzem efeitos ainda mais amplos do que
a organização de atividades cotidianas: produzem também significações e fatos sociais, em
um processo interativo tipificado, no interior de um sistema de atividades que encadeia
significativamente as ações discursivas. Muitos fatos sociais, portanto, para se tornarem reais,
dependem da utilização de textos por parte das pessoas.
Pode-se afirmar, ainda, com base em Bazerman (2005), que cada texto encontra-se
encaixado em atividades sociais estruturadas e depende de textos anteriores que influenciam a
atividade e a organização social, criando, assim, condições que terão influência em atividades
subsequentes.
Essa observação pode ser ilustrada com um exemplo apresentado por esse mesmo
autor, que consiste no relato de uma situação em que um aluno se matricula em uma disciplina
de graduação e pratica, durante o período letivo, os atos necessários para ser aprovado. Na
sequência de eventos desencadeada nesse ínterim de produção e avaliação acadêmicas,
emergem “[...] gêneros altamente tipificados de documentos e estruturas sociais altamente
tipificadas nas quais esses documentos criam fatos sociais que afetam as ações, direitos e
deveres das pessoas.” (BAZERMAN, 2005, p. 21).
Esses fatos sociais que afetam ações, direitos e deveres das pessoas, corresponderiam,
então, aos efeitos perlocucionais obtidos pela manipulação de textos. No entendimento de
Bazerman (2005), muitos fatos sociais estão na dependência direta dos atos de fala e do
preenchimento de suas condições de sinceridade. Se as condições são efetivamente satisfeitas,
as palavras tornam-se fatos completos e ganham força de acontecimentos. Nas palavras do
autor:
Cada texto bem sucedido cria para seus leitores um fato social. Os fatos sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela linguagem, ou atos de fala. Esses atos são realizados através de formas textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros, que estão relacionadas a outros textos e gêneros que ocorrem em circunstancias relacionadas. (BAZERMAN, 2005, p. 22).
Identificados, então, os níveis inferior e intermediário de busca de consenso
pragmático entre os interlocutores, constituídos, respectivamente, de atos de fala e gêneros
discursivos, bem como as relações travadas entre eles para a realização de atividades,
passamos agora à abordagem do nível superior: os domínios discursivos mais amplos, que
devem ser entendidos também sob essa perspectiva relacional de produção de fatos sociais,
como veremos no tópico seguinte.
82
3.3.3 As relações entre os fatos institucionais no nível dos domínios discursivos organizados
por sistemas de gêneros
No nível superior de busca de consenso pragmático, encontramos os domínios
discursivos, cujos funcionamento e constituição (como pode se depreender de tudo o que foi
discutido até aqui) só podem ser explicados à luz dos níveis mais elementares, que são os atos
de fala e os gêneros de discurso. No interior desses domínios discursivos amplos, atuam
sistemas de gêneros, que organizam o trabalho discursivo e as relações sociais dentro de um
domínio.
Retomando o pensamento de Bazerman (2005), observamos que os fatos sociais
produzidos pela utilização de gêneros emergem tanto de conjuntos de gêneros, como de
sistemas de gêneros.
Os conjuntos de gêneros são a coleção de textos produzidos por um sujeito no
desempenho de um determinado papel social. O estudo de um conjunto de gêneros permite
que sejam catalogadas a extensão do trabalho, a habilidade de articulação e a competência de
um determinado profissional. Entende-se, com isso, que um conjunto de gêneros é aferido
tomando-se o locutor/agente como o parâmetro da classificação, o que implica a observação
de que cada especialista realiza determinadas ações tipificadas na instituição jurídica, as quais
são mais facilmente textualizadas quando se conhece o gênero apropriado para sua efetivação
no meio escrito (FUZER e BARROS, 2008).
Diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que trabalham juntas de forma
organizada compõem um sistema de gêneros. Um sistema de gêneros organiza o trabalho
discursivo, as relações sociais e a circulação de gêneros no interior de uma instituição. Parece
que o critério utilizado para se caracterizar um sistema de gêneros não é mais o agente, como
no conjunto de gêneros, mas a relação de interdependência que existe entre as produções
discursivas, que lhes dá a configuração de uma rede. A análise dos sistemas permite que essa
interdependência ou intertextualidade seja colocada à mostra.
Como afirma Bazerman:
Examinar o sistema de gêneros permite a você compreender as interações práticas, funcionais e sequenciais de documentos. Compreender essas interações também permite a você ver como os indivíduos, ao escrever qualquer novo texto, estão intertextualmente situados dentro de um sistema, e como a escrita é direcionada
83
pelas expectativas de gêneros e amparada por recursos sistêmicos. (BAZERMAN, 2005, p. 43).
Bazerman postula ainda que a organização do trabalho discursivo e das relações
sociais no interior de um domínio, através dos sistemas de gêneros, é vista de forma muito
nítida nos discursos jurídicos processuais, em que “[...] o trabalho todo é realizado no
desenrolar de uma série de textos e enunciados; todos os recursos externos, para se tornarem
relevantes aos procedimentos jurídicos, precisam ser incorporados na sequência de
enunciados por um processo de tradução e avaliação.” (BAZERMAN, 2005, p. 146).
Essa afirmação é corroborada por uma máxima vigente no direito, segundo a qual “o
que não está nos autos não está no mundo”16, o que implica dizer que o Juiz deve julgar uma
causa levando em conta apenas o que está materializado nos autos; todos os recursos externos,
se não carreados ao feito, devem ser ignorados pelo julgador.
O autor reforça também o papel das regulamentações nesse sistema, lembrando que os
textos aí produzidos têm de estar em consonância com o que prescreve a ordem jurídica, com
suas leis, instituições e precedentes, que definem o desenrolar intertextual dos enunciados.
Comentando os trabalhos de Engeström (1992) e Stratman (1994), Bazerman afirma que:
Nos casos em que a tarefa é produzir discurso, tal como a produção de um discurso judicial – cujo objetivo é tornar claras e responsabilizáveis todas as ações desenvolvidas em apoio às decisões tomadas num processo judicial –, a organização processual e formal, através da qual emerge o discurso, tanto modela o produto discursivo final como enquadra a participação de cada pessoa no tribunal. (BAZERMAN, 2005, p. 132)
De fato, existem, por um lado, as normas processuais penais que determinam o rito a
ser seguido para a apuração do crime como, por exemplo, no Código de Processo Penal está
escrito que os crimes dolosos contra a vida são de competência do Tribunal do Júri. Por outro
lado, existem as normas de organização judiciária, que regulamentam detalhadamente o
andamento do feito nas Secretarias. Assim, o trabalho de um auxiliar da justiça, consistente
em proceder à juntada de documentos, abrir vistas a uma e outra parte, fazer os autos
conclusos ao juiz, redigir documentos (como mandados de citação) e digitar termos de
depoimentos, está rigidamente previsto em normas de organização judiciária.
3.4 O Processo Penal em uma visão sistêmico-institucional
16 No original, o brocardo latino é formulado como “Quod nom est in actis nom est in mundo”. (THEODORO JÚNIOR, 1992, p. 413)
84
Para compreendermos melhor a perspectiva sistêmico-institucional e começarmos a
pensar o Processo Penal como um sistema de gêneros, propomos uma primeira abordagem do
processo que constitui nosso corpus de pesquisa. Nesse sentido, adotamos os seguintes
procedimentos:
a) O primeiro passo foi fazer um levantamento de todos os sujeitos que atuaram no
Processo, indicando os gêneros utilizados por cada um deles para a realização dos atos
processuais. Esse procedimento nos possibilitou identificar o conjunto de gêneros de cada
sujeito processual;
b) Em um segundo momento, buscou-se investigar como esses conjuntos de gêneros
vão se entrelaçar para constituir um sistema de gêneros e, nessa qualidade, produzir fatos
sociais, provocando alterações na realidade social.
Os procedimentos sugeridos por essa metodologia implicam a resposta às seguintes
perguntas: quais sujeitos atuaram no processo penal selecionado? Que gêneros cada sujeito
utilizou para executar seu papel no processo? Que atividades os textos produzidos por esses
sujeitos ajudaram a realizar? Que fatos sociais emergem da atuação articulada de conjuntos de
gêneros diversos?
Em seguida, apresentamos possíveis respostas a esses questionamentos.
3.4.1 Os sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros
Estudiosos do Direito Processual Penal ensinam que sujeitos processuais, ou titulares
da relação processual, são aquelas pessoas entre as quais se institui a relação jurídico-
processual.
Em levantamento realizado nos autos ora analisados, constatou-se que participaram
dessa relação jurídico-processual o Promotor de Justiça, o Escrivão de Polícia, o Delegado de
Polícia, o Detetive de Polícia, o provedor da Santa Casa de Perdões, a Diretora Clínica do
SUS, o Escrivão Judicial, escreventes, auxiliares de Secretaria e de Promotoria, o Juiz de
Direito, a funcionária do Serviço de Controle e Avaliação da Secretaria Municipal de Saúde, o
médico que prestou atendimento à ré, o Oficial de Justiça, o Defensor, auxiliares da justiça em
segundo grau, o Procurador de Justiça, Desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas
85
Gerais, o Escrevente do Júri, jurados, o Oficial de Justiça avaliador e o médico que atestou
impossibilidade de comparecimento de jurado à sessão de julgamento.
O Juiz, o Promotor de Justiça e o Defensor/acusado são considerados sujeitos
principais da relação jurídico-processual. Ao longo da demanda analisada, esses sujeitos
principais praticaram uma série de atos e produziram inúmeros documentos.
O Juiz, por exemplo, produziu ao longo do processo, vários despachos e ofícios, um
edital de convocação do Júri, um mandado para notificação de jurados, um termo de
verificação de cédulas (digitado por uma auxiliar da justiça e assinado por ele), uma decisão
de pronúncia da ré e uma sentença que extinguiu o processo.
Esses documentos compõem, assim, o conjunto de gêneros produzido pela instância
julgadora e aferem qual a função desempenhada por ela na aplicação da justiça penal, que é a
de prover à regularidade do processo, determinando o que deve ser feito pelos auxiliares da
justiça, bem como manter a ordem das audiências, das sessões ou diligências, além da função
precípua de decidir.
No quadro a seguir, os documentos produzidos pelo Juiz, que compõem seu conjunto
de gêneros, são listados juntamente com a atividade desempenhada por meio deles:
86
CONJUNTO DE GÊNEROS DO JUIZ DE DIREITO
Documento Atividade desempenhada
Despacho
Mandar que o Inquérito Policial seja enviado ao Promotor para que este se manifeste a respeito de pedido de dilação do prazo feito pelo Delegado; Deferir o pedido de dilação de prazo feito pelo Delegado; Mandar que o Inquérito Policial seja enviado ao Promotor para que este informe se pretende que sejam feitas novas diligências; Mandar que os autos sejam enviados à Delegacia de Polícia para novas diligências requeridas pelo Promotor; Designar realização de Audiência; Determinar a revogação do benefício de suspensão condicional do processo em gozo pela ré e designar Interrogatório da mesma; Nomear defensor à ré; Nomear outro defensor à ré, dada a desistência do primeiro defensor; Nomear novo defensor à ré, dada a desistência do segundo defensor nomeado; Designar audiência de Instrução e Julgamento; Receber o recurso em sentido estrito impetrado pelo Defensor e determinar seu processamento; Manter a decisão recorrida de pronunciar a ré; Determinar novo envio dos autos ao TJMG; Mandar que os autos sejam enviados ao Promotor de Justiça para oferecimento de libelo; Recebimento do libelo-crime e intimação de testemunhas; Nomear novo defensor à ré; Mandar que os autos sejam enviados ao Promotor de Justiça para que este se manifeste acerca de certidão do oficial de justiça; Decretar a prisão preventiva da ré; Mandar que o processo seja incluído na pauta de julgamento; Designar data para sorteio dos jurados; Mandar que o Promotor de Justiça seja ouvido quanto à dispensa de testemunha; Mandar que seja ouvida a Defesa sobre dispensa de testemunha pelo Promotor de Justiça
Ofício
Informar à Polícia que a ré está em gozo do benefício de suspensão condicional do processo e determinar que a polícia fiscalize o cumprimento das condições deste benefício pela ré; Requisitar ao comandante de polícia que compareça em juízo para testemunhar; Solicitar o comparecimento da testemunha em juízo para prestar depoimento; Requisitar policiais militares para a segurança da Sessão de Julgamento; Requisitar força policial para conduzir a ré à Sessão de Julgamento; Comunicar a absolvição da ré à diretora do Instituto de Identificação
Pronúncia Pronunciar a ré, determinando seu julgamento pelo Tribunal do Júri
Edital Convocar os jurados que foram sorteados para comparecer à sessão de julgamento
Mandado Mandar que cada jurado sorteado seja notificado a comparecer à sessão de julgamento
Termo
Certificar a verificação de cédulas para o sorteio de jurados que irão participar efetivamente do julgamento
Sentença Com base na decisão proferida pelo Júri, decretar a absolvição da ré
Portaria Designar data para realização da sessão de julgamento e para o sorteio dos jurados
Despacho Determinar o arquivamento do feito Quadro 7: Conjunto de gêneros e atividades do Juiz de Direito Fonte: Elaborado pela autora
O Promotor de Justiça produziu Denúncia, Alegações Finais do Ministério Público,
Contra-razões Recursais do Ministério Público, Libelo-Crime Acusatório, pedido de prisão
preventiva e debates orais na sessão de julgamento, além de declarações, requerimentos e
pareceres. Emerge daí o conjunto de gêneros do Promotor de Justiça (quadro a seguir), bem
como a função que desempenha no Processo Penal: a doutrina o considera parte e “senhor da
87
ação”, por ser ele fiscal da aplicação da lei e, ao mesmo tempo, responsável pela atividade de
acusação do réu.
CONJUNTO DE GÊNEROS DO PROMOTOR DE JUSTIÇA
Documento Atividade desempenhada
Denúncia Denunciar à justiça alguém que o Promotor acredita ter cometido um crime
Parecer Opinar sobre requerimento, feito pelo Delegado, de dilação de prazo para a conclusão do Inquérito Policial
Requerimento Solicitar à autoridade judiciária o retorno do Inquérito Policial à Delegacia, para diligências; Propor a Suspensão do Processo contra a ré; Requerer à autoridade judiciária a revogação da suspensão condicional do processo da ré; Requerimento de decretação de prisão preventiva da ré
Declaração
Declarar que apresentará denúncia e proposta de suspensão do processo; Declarar ciência do conteúdo de ato do Juiz designando audiência; Declarar ciência de ato do juiz decretando a revogação do benefício de suspensão condicional do processo; Declarar apresentação de Alegações Finais; Declarar ciência da decisão de Pronúncia; Declarar ciência da retratação do Juiz; Declarar apresentação de libelo; Declarar a dispensa de testemunha; Declarar ciência de despacho do juiz
Alegações finais Apresentar argumentos que sustentem a tese de acusação
Contra-razões recursais Apresentar resposta às Razões de Recurso da defesa
Libelo
Expor de forma escrita e articulada o fato criminoso reconhecido na pronúncia, com indicação do nome da ré, das circunstâncias agravantes previstas na lei penal e dos fatos que devam influir na fixação da pena
Debates orais Promover a acusação da ré na sessão de julgamento
Quadro 8: Conjunto de gêneros e atividades do Promotor de Justiça Fonte: Elaborado pela autora
O Defensor, que representa a voz do réu no processo, produziu Defesa Prévia,
Alegações Finais, petição de interposição de recurso em sentido estrito, Razões Recursais,
debates orais na sessão de julgamento, declarações.
A ré, por razões não explicitadas no processo em tela, mas que acreditamos estarem
relacionadas à sua situação de pobreza, não constituiu advogado para defender-se. A
principiologia que orienta o Processo Penal, contudo, não permite que nenhum réu seja
processado sem que um defensor atue como contraparte ao órgão acusador, de forma que o
Juiz deve nomear um defensor dativo, custeado pelo Estado, para exercer essa função.
O quadro a seguir representa o conjunto de gêneros do Defensor, assim como as
atividades desempenhadas por ele:
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SUJEITO PROCESSUAL
CONJUNTO DE GÊNEROS ATIVIDADE DESEMPENHADA
Defensor nomeado I
1. Petição Pedir ao Juiz que seja nomeado outro defensor à ré
Defensor nomeado II
1. Petição Pedir ao Juiz que seja nomeado outro defensor à ré
1. Defesa prévia Dizer que os fatos não ocorreram conforme narrado na denúncia e arrolar testemunhas
2. Alegações finais Apresentar argumentos que sustentem a tese da defesa
3. Petição Pedir ao Juiz vistas dos autos para interposição de recurso em sentido estrito
4. Recurso Apresentar razões à instância superior para que a ré não seja levada a julgamento pelo Júri
Defensor nomeado III
5. Petição Pedir ao Juiz a exoneração da nomeação
1. Contrariedade ao libelo Apresentar contrariedade ao libelo oferecido pelo Promotor
Defensor nomeado IV
2. Debates orais Promover a defesa da ré na sessão de julgamento
Quadro 9: Conjunto de gêneros e atividades do Defensor Fonte: Elaborado pela autora
No caso analisado, o Juiz indicou um primeiro advogado que, alegando razões de foro
íntimo, declinou da intimação. Foi nomeado um segundo advogado, que também declinou. O
terceiro advogado indicado aceitou a nomeação e seguiu como defensor da ré até terminar a
primeira etapa do processo. Ao final dessa etapa, pediu destituição. Outro defensor foi
nomeado em seu lugar. Isso explica as várias petições de destituição e de exoneração
encontradas no processo analisado.
No exercício da função jurisdicional, o Juiz conta com a colaboração de outros agentes
no que se relaciona à atividade de documentação e de execução dos atos processuais. São os
chamados auxiliares da justiça, que atuam para tornar a relação jurídico-processual concreta,
promovendo andamento prático ao feito, executando atividades técnicas e burocráticas que
vão dar materialidade ao Processo Penal. A doutrina os classifica como partes acessórias do
processo. São eles: o Distribuidor, que registra e distribui os feitos entre as Secretarias; o
Escrivão ou chefe da Secretaria para onde o feito é remetido e os escreventes, que são seus
auxiliares; o Oficial de Justiça, que executa os mandados de citação, intimação, busca e
89
apreensão, diligências, prisão, etc; os auxiliares de cartório, que se incumbem dos protocolos,
entregas de autos, etc (MIRABETE, 2001).
No processo analisado, observamos que os sujeitos acessórios produziram diversos
termos, mandados, certidões. Os quadros representativos dos conjuntos de gêneros e
atividades produzidas pelos sujeitos acessórios encontram-se no Apêndice A deste trabalho.
Fuzer e Barros (2008) lembram que alguns gêneros, no interior de um Processo Penal,
só podem ser utilizados por um determinado sujeito processual. No mesmo sentido, Travaglia
(2002) afirma que, em quadros institucionais rígidos, existem os “produtores esperados” de
certos tipos de textos. Assim, o Relatório de Inquérito só pode ser produzido/assinado pelo
Delegado de Polícia que investigou o caso, da mesma forma que a Denúncia só pode ser
produzida/assinada pelo Promotor de Justiça e a sentença, pelo Juiz que preside o processo.
Outros gêneros, como despachos e ofícios, são de domínio menos restrito e podem ser
produzidos tanto pelo Juiz, pelo Delegado de Polícia e pelo Promotor.
3.4.2 Os sistemas de gêneros
Conforme se afirmou anteriormente, a reunião de diversos conjuntos de gêneros
utilizados por pessoas que trabalham juntas, de forma organizada, compõe um sistema de
gêneros, que organiza o trabalho discursivo, as relações sociais e a circulação de gêneros no
interior de uma instituição.
O critério utilizado para se caracterizar um sistema é a relação de interdependência
existente entre as produções discursivas, que lhes dá a configuração de uma rede. A análise
dos sistemas permite que essa interdependência ou intertextualidade seja colocada à mostra.
O esquema a seguir representa os principais atos que se verificaram no
Processo/corpus, assim como os principais documentos produzidos pelos sujeitos processuais:
90
Quadro 10: Esquema representando os principais atos e documentos produzidos no Processo/corpus Fonte: Elaborado pela autora
Observamos que nessa rede onde se imbricam conjuntos de gêneros produzidos por
vários sujeitos processuais, um ato ou documento não poderia ser produzido sem que outro o
fosse previamente. Existe uma forte relação de interdependência entre as práticas,
regulamentada pela legislação processual penal.
Assim, o Inquérito Policial, cujo responsável é o Delegado de Polícia, auxiliado pela
Polícia Civil e Militar, é pré-requisito para que o Promotor de Justiça possa apresentar a
Denúncia. Com fundamento nos fatos narrados e nas provas produzidas nesse inquérito é que
o Promotor a redige. Entretanto, por regulamentação legal, a Denúncia é acostada como a
primeira peça do processo e o Inquérito Policial, autuado na sequência, acaba desempenhando
o papel de um anexo da Denúncia, ao qual o Promotor de Justiça faz referências a todo
momento, citando trechos, documentos, depoimentos compilados ali.
Desse modo, a Denúncia é a primeira peça encartada, apesar de não ter sido a primeira
a ser produzida. Ocorre que os documentos não são autuados necessariamente na ordem
cronológica em que são produzidos, mas em uma ordem prescrita pelo Código de Processo
Penal, que garante a aplicação concreta do princípio do contraditório: primeiro se manifesta a
acusação, depois, a defesa.
91
A Defesa Prévia da ré, oferecida pelo Defensor, só pode ser produzida após o
interrogatório. O Código prescreve a realização de uma audiência de instrução e julgamento,
na qual são ouvidas as testemunhas e, supostamente, esclarecidos os fatos que levaram a ré a
ser processada.
Somente após essa audiência, o Promotor tem condições de oferecer as Alegações
Finais da Acusação, porque, nessa peça, ele faz uma revisão geral do processo, comentando as
provas, articulando argumentos, para encerrar com o pedido de condenação da ré.
Em refutação aos argumentos do Promotor, o Defensor apresenta as Alegações Finais
da Defesa, construindo sua argumentação com base em fatos e provas que permitam a ele
encerrar pedindo a absolvição da ré. As alegações do Promotor são autuadas anteriormente às
alegações do Defensor para que, ao elaborar sua peça, este tenha ciência do conteúdo de toda
a acusação, e assim possa contrariá-la amplamente, em respeito ao princípio do contraditório e
da ampla defesa.
É que norteando o processo penal, existem alguns princípios que tentam tornar a
relação entre o Estado, que é o órgão que detém a persecução penal, e o réu um pouco menos
desequilibrada, ao conceder a este (a parte mais fraca), algumas garantias de que não será
sumariamente condenado, sem ao menos ter o direito de defesa17.
Com a Decisão de Pronúncia, o Juiz decide pelo menos sobre esse primeiro conflito
instaurado no processo.
Dessa forma, o Processo Penal pode ser considerado um sistema de gêneros, uma vez
que os textos que constituem seus autos não podem ser analisados isoladamente; eles fazem
parte de uma rede constituída de outros textos, que ajudam a realizar atividades específicas
que competem aos participantes do sistema. Esses participantes – os operadores do Direito –
fazem uso de uma série de documentos que podem ser reconhecidos por funções e formas
específicas, configurando-se em gêneros discursivos que se inter-relacionam para se alcançar
um fim.
Na parte seguinte, apresentamos o corpus que será objeto de análise segundo os
modelos teóricos apresentados até aqui; discorremos, de forma breve, a respeito do contexto
institucional em que foi produzido e explicitamos os procedimentos metodológicos adotados
para sua seleção e análise.
17 A esse respeito, abrimos um parêntese para lembrar a situação surreal vivida pelo personagem Joseph K., na obra O Processo, de Kafka. O personagem se vê como réu em um processo sobre o qual não lhe é informado sequer o conteúdo da acusação, o órgão acusatório, o tribunal em que será realizado o julgamento. Enfim, a trama criada por Kafka nos faz sentir o caos que viveríamos sem a segurança do devido processo legal.
92
4 EM TORNO DO CORPUS: ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
4.1 Apresentação do corpus
Selecionamos como corpus da pesquisa que aqui se propõe os autos de um processo
judicial penal, movido pelo Ministério Público em face de uma ré (doravante R), pela suposta
prática de crime de aborto.
Consta dos autos que essa mulher teria introduzido uma sonda em seu útero para
interromper uma gestação de cerca de dois meses.
O procedimento teria provocado complicações e, ao buscar atendimento médico, a
acusada foi encaminhada à polícia para prestar esclarecimentos.
Instaurou-se um inquérito policial para averiguações. Concluído o inquérito, o
Ministério Público ofereceu denúncia contra ela. Sendo um crime contra a vida, o processo
seguiu o rito dos crimes de competência do Tribunal do Júri.
Em 18/04/04, foi realizada a sessão de julgamento de R, a qual resultou em sua
absolvição por falta de provas, de acordo com entendimento dos jurados.
O Código de Processo Penal prescreve que compete ao Tribunal do Júri o julgamento
de crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, e os crimes a eles conexos. São
crimes contra a vida: o homicídio (art.121); o induzimento, a instigação ou o auxílio a
suicídio (art.122); o infanticídio (art. 123) e o aborto (arts. 124 a 127). (BRASIL, 2011).
Ao longo do processo instaurado para o julgamento de R, foram produzidos inúmeros
atos e peças processuais. Percebe-se assim que, do embate judicial travado entre acusação e
defesa e mediado pelo juiz, emerge uma profusão de proferimentos e atos processuais,
formando uma teia dialógicoargumentativa em que o discurso de um está presente no do
outro, constituindo-o para ser confirmado ou, então, refutado.
4.2 Critérios de seleção
Ao iniciarmos nossa pesquisa, já havíamos decidido por proceder a uma investigação
linguístico-discursiva de um processo de competência do Tribunal do Júri, mas subsistiam
93
dúvidas acerca de qual espécie de processo escolher, pois a competência do Júri abrange todos
os crimes dolosos contra a vida, o que inclui a prática de homicídio, de infanticídio, de delitos
ligados à instigação do suicídio e ao aborto.
No campo das Ciências da Linguagem, outros trabalhos já foram desenvolvidos em
torno da análise linguística de processos instaurados para apuração de crimes de homicídio no
Tribunal do Júri, entre os quais citamos Fagundes (1987, 1995) e Fuzer e Barros (2008). Nos
trabalhos de Lima (2001, 2006), os processos analisados apresentam, como ponto de contato,
a figura da mulher como sujeito passivo de assassinatos violentos.
Ao fazer um estudo dos demais crimes encampados por essa instituição, aventamos a
possibilidade de trabalharmos com um crime de aborto, pois encontramos na tipificação dessa
conduta um procedimento de ponderação de bens que, em algum sentido, se assemelha à
hierarquização de valores proposta por Perelman em sua teoria da argumentação: no aborto,
dois bens jurídicos fundamentais estão em posição de conflito: o direito à vida, por parte do
feto, e o direito à livre disposição do corpo, por parte da mãe.
Assentado, então, que trabalharíamos com esse tipo de delito, iniciou-se uma nova e
difícil etapa de nossas pesquisas. Procurando processos de aborto em sites jurídicos
especializados, encontramos, na maior parte, feitos instaurados em face de médicos que
mantêm clínicas clandestinas, ou contra pessoas leigas que adotaram a prática da interrupção
da gravidez como profissão (“aborteiros”). Esses casos não nos interessavam, porque
acreditamos que a ponderação de bens é mais evidente naquelas situações em que a própria
gestante pratica em si o ato.
Seguindo com as buscas, nos deparamos com os autos de um processo instaurado para
julgamento de um crime de autoaborto em uma comarca do interior do Estado de Minas
Gerais. Este processo havia tramitado conforme o rito do Tribunal do Júri e já estava
encerrado com o julgamento do mérito, o que equivale a dizer que o caso havia passado por
todas as fases previstas no Código de Processo Penal, desde a abertura do inquérito policial, a
instauração do respectivo processo, a pronúncia da ré e seu julgamento pelo corpo de jurados.
Pareceu-nos, então, que seria produtivo submeter tal processo à análise, considerando
que as diversas fases de tramitação correspondem, na linguística do discurso, a momentos
enunciativos diferentes, o que possibilitaria uma visão global do dispositivo de enunciação em
um processo penal.
Ainda em relação à seleção do processo tomado como corpus, acreditamos ser
necessário esclarecer que o caso foi encontrado por meio de buscas no site do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, pelo link consultas-jurisprudência-acórdãos. Neste site, cujo acesso é
94
público, encontram-se disponíveis tanto a ementa quanto o inteiro teor do acórdão que
determinou o julgamento da ré pelo Tribunal do Júri. Consta também o número do processo
na comarca de origem.
De posse desse número, nos dirigimos à comarca onde foi instaurado o feito e então
protocolamos uma petição destinada ao Juiz responsável, solicitando que nos permitisse
acessá-lo, ao que tivemos resposta positiva.
Ao compulsar os autos, percebemos que se tratava de um caso curioso, edificado sobre
as bases de um paradoxo que não se desfez nem mesmo ao final do processo, com o
julgamento da acusada pelo corpo de jurados.
4.3 Hipótese e justificativa
Nosso interesse pelo estudo da argumentação no domínio discursivo jurídico surgiu
em decorrência da observação empírica de que nem sempre o litigante que detém a razão em
um determinado processo, ao final, é julgado vencedor. Se a relação entre a verdade dos fatos
e a procedência de uma ação fosse assim tão direta, não haveria necessidade de advogados
para defenderem as partes, bem como de ritos processuais que determinam o momento de
cada um expor suas razões e produzir suas provas.
Depreendemos, então, que, em um processo judicial, a verdade é construída nos
próprios autos, discursivamente, através da fala dos sujeitos ali envolvidos, pois são eles que
apresentam formalmente os fatos, discutem as provas, solicitam a realização de diligências,
enfim, reconstroem a realidade de acordo com as finalidades almejadas. A maior habilidade
de um advogado em gerenciar os recursos argumentativos colocados à sua disposição pode
trazer a vitória a seu cliente, ainda que a “verdade do mundo” não esteja a seu lado.
No Direito Penal e no Direito Processual Penal, a relevância da ação de advogados e
promotores é notória, pois sua aplicação nunca se limita ao exame das provas materiais e
técnicas dos casos em consideração. Chalita (2007) afirma que o Direito Penal é
essencialmente discursivo, pois seu exercício depende, sobretudo, da habilidade em
argumentar de cada uma das partes.
No Tribunal do Júri, em que a tramitação do processo se dá em um rito extremamente
teatralizado, seguindo uma tradição secular, o estudo da argumentação é ainda mais
produtivo, pois é ela a gerenciadora das interações e ou intenções comunicativas.
95
Nesse sentido, Chalita (2007) entende que “nos debates entre acusação e defesa nos
tribunais do júri se articulam mais intensamente e se batem as habilidades dos profissionais do
Direito, envolvidos na tarefa de conduzir um corpo de jurados rumo a uma determinada
decisão”. (CHALITA, 2007, p. 6).
Como explicita Lima (2001), “no júri, o objetivo dos advogados de acusação e defesa
é persuadir os jurados e obter sua adesão. Assim posto, nada mais pertinente do que analisar
as estratégias argumentativas18 utilizadas por ambas as partes”. (LIMA, 2001, p. 26).
Filiando-nos ao estudo da argumentação no discurso, conforme propõe Amossy
(2006), e considerando que as relações discursivas entre locutor e alocutário, assim como a
orientação argumentativa de um discurso, são tributárias do quadro formal e institucional no
qual tem lugar a interação, fomos levados a investigar também a caracterização do domínio
discursivo jurídico.
Essa investigação implica, a nosso ver, a avaliação das condições enunciativas que
caracterizam o discurso jurídico em geral e, mais especificamente, o tipo de discurso aqui
analisado – o discurso processual penal – em função dos atos de fala que o constituem e das
restrições impostas pelo quadro institucional do qual esse tipo de discurso emerge.
Chegamos, então, à constatação de que uma das características fundamentais dessa
modalidade discursiva é a performatividade da linguagem, aqui entendida como a propriedade
de realizar ações e provocar alterações na realidade social pelo proferimento de determinados
enunciados, obedecidas certas condições.
Considerando-se que a dinâmica em que se constrói o discurso processual penal só
pode ser compreendida nos limites de seu quadro institucional, adotamos como hipótese de
pesquisa a observação de que os atos de fala definem e designam os gêneros discursivos, além
de contribuírem para sua orientação argumentativa; cada sujeito processual, em uma situação
de interação linguageira travada nos limites de um processo judicial, produz conjuntos de
gêneros no desempenho de suas atividades profissionais; diversos conjuntos de gêneros se
articulam para a formação de sistemas de gêneros que, por sua vez, compõem um domínio
discursivo e realizam alterações na realidade social. Na medida em que são produzidos e
lançados aos autos todos esses proferimentos que, ao final, formam uma rede dialógico-
argumentativa, a verdade acerca da conduta imputada a um réu é construída e reconstruída
pelos sujeitos processuais e, ao final, parece surgir como resultado da dinâmica desse sistema
de gêneros e atividades sociais.
18 Estratégias argumentativas são recursos, procedimentos ou instrumentos utilizados para se alcançar a adesão do auditório, segundo nota da autora. (Lima, 2001, p. 26).
96
4.4 Objetivos
4.4.1 Objetivo geral
O objetivo geral deste trabalho é o de propor uma reflexão acerca do domínio
discursivo jurídico e de suas características constitutivas, definindo sua situação no interior do
vasto território das práticas de linguagem. Por opção metodológica, fizemos um recorte nesse
domínio amplo e escolhemos trabalhar com uma de suas manifestações, que é o discurso
judicial processual penal do Tribunal do Júri.
4.4.2 Objetivos específicos
Como objetivos específicos do presente trabalho, relacionam-se os seguintes:
• Construir um discurso explicativo do discurso judicial processual penal do Tribunal
do Júri, por meio da avaliação: a) de aspectos relativos a suas condições enunciativas e à
orientação argumentativa encontrada nos diversos gêneros produzidos pelos sujeitos que
participam de uma relação processual (Juiz, Promotor, Defensor, auxiliares da Justiça, entre
outros), b) do inter-relacionamento entre esses gêneros e c) das atividades sociais produzidas
como resultado final da tramitação do processo;
• Delimitar as condições enunciativas próprias de cada etapa processual, assim como
dos atos e proferimentos selecionados para análise, levando em consideração as restrições
impostas pelos dispositivos legais, que determinam regras de procedimento a serem
observadas nesse local específico de fala;
• A partir da delimitação das condições enunciativas, refletir sobre a
performatividade da linguagem no âmbito do discurso judicial processual penal, abordando
aspectos da força ilocucional dos atos de fala encontrados nos atos processuais e
proferimentos investigados;
97
• Correlacionar a força ilocucional dos atos de fala à orientação argumentativa dos
proferimentos, buscando explicar as relações entre linguagem e ação no espaço demarcado
para nossa pesquisa;
• Analisar a estrutura argumentativa dos gêneros que compõem o processo
selecionado como corpus, privilegiando aspectos como: a) as condições prévias para a
instalação da argumentação, a par das restrições genéricas e institucionais impostas pelo
Tribunal do Júri; a) as estratégias argumentativas desenvolvidas por acusação, defesa e
instância julgadora; b) a disposição dos argumentos no discurso e a relação entre eles; c) a
construção das provas retóricas nos proferimentos em análise e sua articulação no projeto
persuasivo dos oradores.
• Discutir os conceitos de doxa, representações sociais, topoï e seus correlatos e a
função que tais elementos desempenham em um discurso argumentativo no interior do
domínio discursivo jurídico.
4.5 A posição do discurso processual penal no domínio discursivo jurídico
Inicialmente, parece relevante situar o discurso processual penal, do qual nosso corpus
é representante, no interior do domínio discursivo jurídico e em relação às outras modalidades
adjacentes.
Seguindo um raciocínio que caminha do todo para as partes, podemos afunilar ainda
mais a posição de nosso corpus neste vasto domínio discursivo: trata-se de um representante
do discurso processual penal do Tribunal do Júri, e não de outro trâmite.
Assim como Maingueneau (2008), estamos conscientes de que as tipologias criadas
em torno da classificação de discursos são necessárias para “organizar um pouco o universo
discursivo”, embora careçam de substrato teórico efetivo. Utilizam-se, para fins didáticos e
metodológicos, tipologias funcionais (discurso jurídico, religioso, político...) e formais
(discurso narrativo, didático...), as quais o autor taxa de insignificantes, embora inevitáveis.
Isso porque, segundo Maingueneau (2008), “não se pode definir o discurso como um gênero
cujos diversos tipos seriam suas diferenças específicas; assim como não existe discurso
absoluto que, num espaço homogêneo, regularia todas as traduções de um tipo de discurso
para outro, também não existe disjunção entre os diversos tipos” (MAINGUENEAU, 2008, p.
98
25). Contudo, parece-nos que mostrar a posição do discurso processual penal no domínio
discursivo jurídico é uma necessidade da qual não podemos nos eximir.
Como já afirmamos, o processo que constitui nosso corpus foi produzido no interior
de um domínio amplo, que é o domínio discursivo jurídico. Adotando distinção metodológica
proposta por Ferraz Jr. (1997), com algumas adaptações, temos que esse domínio é
constituído por:
a) discurso da norma;
b) discurso da Ciência do Direito e
c) discurso judicial.
O discurso da norma é definido por Bittar (2009) como aquele produzido por um
sujeito específico, que é o legislador (agente investido de competência e poder para a
realização da tarefa social de regulamentação de condutas) e cujo destinatário é, de modo
geral, o povo, que deve ajustar suas condutas ao que é prescrito pela norma. O discurso
normativo possui, segundo o autor, técnica e coerência próprias, além de ferramentas
específicas que permitem aos enunciatários a compreensão instantânea do grau de
taxatividade que o caracteriza:
O texto normativo, além de transmitir de modo direto uma mensagem que deve ser retratada na sociedade, e que deve ecoar no comportamento de seus cidadãos, deve traduzir claramente o grau potestativo que encarna. Assim, o uso de ferramentas específicas permite que da simples leitura do texto de lei se perceba o grau de cogência contido no dispositivo. São expressões como “fica instituída”, “é vedada qualquer”, “é defeso à parte”, “deverá o órgão expedir em 30 dias ato que regulamenta”, “fica proibida”, “qualquer que seja o fundamento, far-se-á”, “qualquer alteração será comunicada”, “não se configura crime”, “está obrigado a cumprir esta obrigação quem”, “é assegurado”, “é proibida”, que cumprem esse papel. (BITTAR, 2009, p. 373)
O discurso da norma é considerado um discurso fundador da significação jurídica, pois
o legislador desempenha, aqui, o papel de delimitar o que é jurídico em oposição ao não-
jurídico, em uma atividade de criação do jurídico.
A explicação do que se entende por discurso da Ciência do Direito é uma tarefa
complexa, pois demandaria, à primeira vista, a definição dos termos “Ciência” e “Direito”, o
que, nos limites deste trabalho, seria impraticável.
Com apoio em Bittar (2009), buscamos, então, uma delimitação operacional,
considerando a função, a atividade e o desempenho das práticas discursivas científicas. Para
este autor, o discurso da Ciência do Direito não normatiza (como o faz o Discurso da Norma),
não operacionaliza (como o Discurso Judicial), mas constrói sentido jurídico, em uma
99
atividade de interpretação, daí a natureza fundamentalmente exegética das produções textuais
jurídicas: “é em função da necessidade de construir sentido sobre normas, decisões e atos
administrativos que se constroem teses, teorias e interpretações científico-jurídicas.”
(BITTAR, 2009, p. 331).
Bittar (2009) chama ainda a atenção para a natureza não-prescritiva e não-
performativa do discurso científico, na medida em que opera com realidades exteriores
àquelas do próprio discurso, mas que, na qualidade de fonte do direito, atua na construção do
sentido jurídico.
O discurso de natureza judicial, que nos interessa mais especificamente, tem como
elemento característico a regulamentação ou o controle formal por regras jurídicas. Situam-se
nesse campo os discursos processuais, contratuais, comerciais e outros, que se caracterizam
por serem rigidamente controlados pela lei. As ações daí decorrentes são institucionalizadas e
generalizadas.
A seguir, apontamos algumas características do discurso judicial19:
- a subordinação ao discurso normativo;
- a atividade de mediação entre a instância estatal e os interesses dos particulares;
- a performatividade da linguagem, uma vez que, com sua elocução, os sujeitos
realizam atos externos à linguagem. Conforme Bittar (2009, p. 272), “ao reproduzir o discurso
normativo, [o discurso judicial] está realizando atos de mandamento, de prescrição, criando a
necessidade de condutas com a elocução dos signos textuais”.
Uma das manifestações mais importantes do discurso judicial é o discurso processual,
aquele produzido nos tribunais, como um instrumento estatal utilizado para compor os
conflitos sociais, de acordo com regras preestabelecidas. Nas palavras de Ferraz Jr.:
O sentido oficial do processo judiciário [...] é o de instrumento de composição de uma lide. Sob o ponto de vista da situação comunicativa discursiva, diríamos que se trata de uma relação entre diversos partícipes, cujo sentido é a representação da busca de uma decisão, de acordo com certas regras. (FERRAZ JR., 1997, p. 73).
Ferraz Jr. identifica, como componentes básicos da situação comunicativa judicial,
quem são emissores e receptores nesse discurso, não no sentido linguístico dos termos, mas
no sentido de quem emite e de quem deve cumprir uma decisão judicial:
19 Bittar (2009), criando uma tipologia de discursos própria, não fala em discurso judicial, mas em discurso burocrático. Pensamos, contudo, que algumas características apontadas por Bittar (2009) como próprias do discurso burocrático parecem se encaixar perfeitamente à modalidade que Ferraz Jr. (1997) denomina discurso judicial.
100
[...] distinguimos, em princípio, entre aqueles que decidem – emissores – e aqueles que são os destinatários da decisão (receptores). Os emissores não são, necessariamente, os juízes, mas todos aqueles que devem encontrar a decisão. Os receptores, por sua vez, são os que devem tomá-la como premissa do seu próprio comportamento. Sendo alvo do discurso a decisão, o seu objeto é dialógico – dubium –, de discussão-contra – conflitivo. (FERRAZ JR., 1997, p. 74).
O discurso processual, por sua vez, pode ser de natureza civil ou penal. O corpus
selecionado para análise neste trabalho tem natureza penal, pois, nesse caso, a finalidade
perseguida com a movimentação do aparato judicial é o julgamento de uma pessoa acusada de
praticar um crime de aborto e a consequente aplicação da penalidade prevista em lei.
O discurso processual penal é produzido no interior de um sistema de normas
imperativas e ordenatórias, que é o Direito Processual Penal ou, simplesmente, Processo
Penal, que pode ser definido como “o conjunto de atos cronologicamente concatenados
(procedimentos), submetido a princípios e regras jurídicas destinadas a compor as lides de
caráter penal.” (MIRABETE, 2001, p. 29).
Todos esses atos cronologicamente concatenados estão previstos no Código de
Processo Penal, enquanto as regras que definem o que é crime e tipificam as condutas
criminosas, com a atribuição da respectiva penalidade, é o Código Penal. Assim, por exemplo,
o Código Penal (BRASIL, 2011) estatui em seu artigo 155, caput, que a conduta “subtrair,
para si ou para outrem, coisa alheia móvel” constitui crime e o Código de Processo Penal
estabelece os procedimentos a serem observados para a apuração das circunstâncias em que o
crime ocorreu, do grau de culpabilidade da pessoa que praticou o ato e da penalidade a ser
aplicada, caso ela seja considerada culpada. Nesse sentido, “o processo, como procedimento,
é o conjunto de atos legalmente ordenados para apuração do fato, da autoria e exata aplicação
da lei” (NORONHA, 1971, p. 4).
O Processo Penal se ocupa também das relações entre as pessoas que intervêm no
processo, ou sujeitos processuais (Juiz, Promotor, Defensor, auxiliares da justiça), e à
coordenação das atividades por elas desenvolvidas.
O quadro esboçado abaixo dá um panorama geral acerca das modalidades discursivas
que compõem o domínio discursivo jurídico:
101
Quadro 11: Esquema representando as modalidades do Domínio Discursivo Jurídico
Fonte: Elaborado pela autora
Se tomarmos o quadro sombreado e, a partir dele, prosseguirmos nessa atividade
classificatória, chegamos às modalidades do Discurso processual penal, entre as quais se
inclui o discurso processual penal do Tribunal do Júri. A respeito da atividade discursiva do
Tribunal do Júri, Bazerman afirma que:
[...] a atividade do tribunal (e não somente suas ações subordinadas) é a de produzir um objeto discursivo – o veredicto ou julgamento. O objetivo de produzir um veredicto a ser enunciado pelo júri e registrado nos vários documentos é, então, realizado através de muitas e altamente estruturadas atividades discursivas, papéis e gêneros que dão uma forma familiar, reconhecível e regular a eventos típicos do tribunal e que restringem e direcionam o discurso que ocorre dentro e em torno do fórum judiciário. (BAZEMAN, 20005, p. 132).
Na medida em que levamos em conta o funcionamento do complexo institucional para
a caracterização da atividade discursiva, cremos ser pertinente a apresentação dessa
instituição para as finalidades de nossa pesquisa.
É o que fazemos no tópico seguinte.
Discurso judicial Discurso da Ciência do Direito
Discurso da norma
Domínio discursivo jurídico
Discursos contratuais
Discursos processuais
Discursos comerciais
Discurso processual penal
Discurso processual civil
102
4.6 Nota sobre o Tribunal do Júri
O Tribunal do Júri é uma instituição sui generis no direito brasileiro e internacional.
Trata-se de um órgão colegiado, constituído por um Juiz togado (Presidente) e por juízes
leigos – os jurados – escolhidos por sorteio entre os cidadãos.
Nos termos do art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal, “é reconhecida a
instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento
dos crimes dolosos contra a vida”. (BRASIL, 2011).
O procedimento do Júri é especial, diferenciado e divide-se em duas fases. A primeira
delas, conhecida como judicium accusationis, inicia-se com o oferecimento da denúncia e se
encerra com a decisão de pronúncia ou impronúncia, a qual irá determinar se deve ou não o
réu ser submetido à segunda etapa, a judicium causae, que tem início com o libelo e é
finalizada com uma Sessão de Julgamento do réu por um Corpo de Jurados (MIRABETE,
2001).
Observa-se que a primeira fase é semelhante ao procedimento para a apuração de
outros crimes do Código Penal. A diferença substancial está contida na segunda fase, na
Sessão de Julgamento, pois aqui, o Juiz togado vai assumir a função de apenas presidir os
trabalhos e de calcular a pena a ser imposta. A decisão a respeito da culpa do réu ficará a
cargo de sete jurados e, por força constitucional, essa decisão é soberana.
Servir como jurado é um ato cívico, obrigatório para os maiores de 18 anos,
possuidores de notória idoneidade e alistados pelo Juiz Presidente entre cidadãos que fazem
parte de associações de classe e de bairro, de entidades associativas e culturais, instituições de
ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos.
Não se pode definir, com exatidão, o critério de “notória idoneidade”, por se tratar de
termo vago e impreciso. A doutrina entende que se deve verificar, pelo menos, se o cidadão
alistado para exercer essa função não possui antecedentes criminais. Para Fagundes (1995), a
vagueza e a ambiguidade da expressão abrem espaço para que haja uma avaliação subjetiva
da vida das pessoas no interior de sua comunidade sociopolítica. Tem-se, assim, uma “noção
103
ideológica, pois deixa que se expressem as crenças valorativas ideológicas e imaginárias do
magistrado sobre o modo de vida dos cidadãos [...]”.20
A origem dessa instituição tão diferenciada e polêmica é atribuída à Inglaterra, depois
que o Concílio de Latrão, em 1215, aboliu as ordálias, nas quais o julgamento de um suspeito
era realizado por provas de resistência física: “o acusado provava sua inocência,
mergulhando, por exemplo, a mão em água fervente, pegando um ferro em brasa,
atravessando fogueiras, etc., e saindo incólume dessas provas, demonstrava, perante o Juízo
de Deus, sua inocência” (NORONHA, 1971, p. 229).
Nesse sentido, parece claro que o Júri representou uma grande inovação para a época,
pois os julgamentos, até então, eram baseados em crendices e superstições. Entretanto, mesmo
essa nova maneira de julgar advinda com o fim das ordálias sofreu a influência de fórmulas
místicas e crenças religiosas do homem medieval. Entre essas crenças compartilhadas, havia a
convicção de que, quando doze homens de consciência imaculada se reuniam para julgar uma
pessoa e invocavam a Deus para conduzir os trabalhos, a verdade surgia milagrosamente entre
eles. Trata-se de uma clara transposição de uma cena bíblica para a cena jurídica:
Desta crença teria nascido o Júri. A origem mística e o caráter religioso se observam ainda na fórmula do juramento do Júri inglês. Há a invocação expressa de Deus. Para esta constatação, não é preciso ir além da origem da palavra Júri: vem de juramento, que é a invocação de Deus por testemunha. Era, portanto, o antigo julgamento de Deus que se restabelecia, ou que se mantinha reformado. (NORONHA, 1971, p. 229).
Da Inglaterra, o Júri foi conquistando outros países, como os Estados Unidos da
América do Norte, em decorrência da própria colonização, e a França, onde foi adotado a
partir da Revolução de 1789. A instituição adequava-se perfeitamente aos ideais defendidos
pelo Iluminismo, tornando-se, por isso mesmo, um símbolo do Estado de Direito, erigido
como garantia das liberdades individuais:
O Tribunal do Júri, especificamente após a Revolução Francesa, adquiriu significado político de cunho liberal, ligado aos movimentos de ampliação de direitos civis e participação popular. Terá enfatizado, a partir de então, o seu caráter democrático, aberto à participação de representantes da sociedade e compatível, portanto, com as novas transformações políticas que se operavam. O Júri representava, mais que qualquer outra instância judiciária, os ideais de igualdade jurídica da modernidade. (FONTOLAN, 1994, p. 69).
20 A vagueza e a ambiguidade da linguagem jurídica são amplamente abordadas por Fagundes (1995). Entre outros casos, a autora comenta as expressões “mulher honesta”, que aparecia na antiga redação dos artigos 215, 216 e 219 do Código Penal (só alterados recentemente, com as Leis nº 11.106, de 2005 e nº 12.015, de 2009), “relevante valor social ou moral” e “motivo fútil” (artigo 121 do Código Penal). Ao que nos parece, o Direito Penal pátrio é pródigo no emprego de expressões vagas e ambíguas.
104
Com a evolução das ciências jurídicas e sob a influência dos países que o adotaram, o
Júri foi adquirindo características próprias em cada ordenamento jurídico. No Brasil, foi
instituído em 1822, com a atribuição de julgar crimes de impressa. Funcionando com 24
jurados, dos quais o réu poderia recusar até 16, tinha o Príncipe Regente como instância
recursal máxima. Em 1824, com a promulgação da Constituição do Império, alcançou status
constitucional e sua competência, antes restrita, passou a abranger tanto atos da vida civil
como da vida criminal.
Em relação à escolha dos jurados, Fagundes (1995) lembra que, naquele momento
histórico, só poderiam desempenhar essa função os chamados “homens bons”. Em uma
sociedade escravocrata, homem bom era aquele que possuía renda e propriedade, o que
revelava uma semente elitista da instituição e levantava dúvidas sobre sua representatividade:
Entre nós – por que não dizer? – tem sido instrumento político-capitalista. Com muito poucas exceções, não há réu que, gozando do bafejo político ou desfrutando de boa posição social, seja condenado por ele [...] Máxime nas pequenas comarcas do interior, a influência política é decisiva. Freqüentemente, não é o réu que se julga mas o Cel. Fulano, o Prefeito Beltrano, o Dr. Sicrano, etc. (NORONHA, 1971, p. 232).
Segundo Fontolan (1994), também encontramos, no Brasil, um paralelo entre a sua
regulamentação – mais ou menos liberal – e os graus de abertura política que a sociedade
experimentava. Com exceção da Constituição de 1937, elaborada sob a égide do Estado
Novo, o Tribunal Popular sempre se fez presente na ordem constitucional pátria. Enquanto a
Constituição de 1824 elencou o Júri no capítulo dedicado à organização do Poder Judiciário,
as de 1891, 1946, 1967 e de 1988 deram a ele status de "direito e garantia fundamental". Com
isso, observa-se que a instituição saiu da esfera do Estado para o campo da cidadania.
Atentando para a realidade brasileira, Fontolan (1994), em estudo realizado em uma
comarca no interior do estado de São Paulo, observa que desde a inauguração do Júri local, na
década de 50, apesar de não existirem mais vetos formais para o exercício da função de
jurado, a escolha, feita a dedo pelo juiz e pelo escrivão, recaía sempre sobre os “notáveis” da
cidade – os membros da elite – especialmente, industriais, grandes comerciantes e contadores,
prática que perdurou até o final da década de 70.
A vertente liberal que inspirou a instauração do Júri deixou também uma herança
negativa no que se refere à participação das mulheres no Conselho de Sentença. O sujeito
ideal para atuar em um julgamento seria o do gênero masculino, porque “somente os homens
poderiam se libertar das paixões e exercer plenamente a racionalidade e a avaliação imparcial.
As mulheres, ligadas permanentemente à natureza, seriam incapazes de controlar suas
105
emoções e atingir a objetividade necessária para as decisões públicas.” (FONTOLAN, 1994,
p. 71).
A partir dos anos de 1980, ainda segundo pesquisa de Fontolan (1994), houve uma
mudança na sistemática da escolha de jurados, que alcançou a maior parte das comarcas.
Entidades passaram a ser instadas a indicar nomes e, a partir dessas indicações, a lista era
formada. Nesse momento, o Júri já não desfrutava do mesmo prestígio de outros tempos e a
maior parte das sessões de julgamento já passavam despercebidas na mídia. “A antiga
ansiedade por participar foi cedendo lugar a reclamações sobre a extensão dos julgamentos e a
interrupção que acarretavam na rotina dos jurados sorteados.” (FONTOLAN, 1994, p. 72)
A mudança na organização foi acompanhada por alterações na lógica da escolha de
jurados: membros de grupos sociais antes excluídos passaram a ser convocados, registrando-
se, a partir daí, a participação de funcionários públicos de escalões mais baixos, pequenos
comerciantes e também de mulheres. Contudo, o “veto informal” permaneceu quanto aos
membros das camadas mais pobres da população e às donas de casa. A participação feminina
aumentou na década de 80, mas somente de mulheres que trabalhavam “fora”.
A exclusão de donas de casa se justificava porque elas eram consideradas inaptas para
a função. Alegava-se que não tinham experiência, conhecimento de mundo, eram
despreparadas, etc. Acreditava-se que as mulheres, “[...] por não disporem de maiores
conhecimentos formais, não conseguiriam entender as questões técnicas envolvidas e,
portanto, tenderiam a se confundir na apreensão das provas e votação dos quesitos.”
(FONTOLAN, 1994, p. 73).
Já os pobres, por possuírem um universo cultural diverso do das camadas médias e
altas que partilhariam da realidade que a legalidade legitima, tenderiam a considerar normal o
que é ilegal ou passível de punição. “Convocar os pobres seria colocar pares dos réus na
banca de jurados, aumentando as possibilidades de julgamento contra as provas dos autos.”
(FONTOLAN, 1994, p. 73).
A instituição do Júri, como já se afirmou, representou um grande avanço para a justiça
penal, tanto por ser uma alternativa aos julgamentos cruéis e infamantes que eram realizados
antigamente, como pela abertura da justiça à participação popular. Mas, nos dias de hoje, em
que a sociedade cobra a especialização e o conhecimento técnico dos juízes togados, dada a
complexidade das questões submetidas a julgamento, seria realmente viável se manter uma
instituição com essas características?
A morosidade, a complicação do procedimento e o excesso de atividades e incidentes
que procrastinam o andamento do processo e atrasam a decisão do caso concreto são alvos
106
constantes de crítica. A própria sessão de julgamento é questionada, pois se gastariam, em
plenário, horas e horas, muitas vezes até dias, para que se cumpra o ritual previsto na lei.
Encontramos, contudo, uma contradição que parece insuperável no interior desse
sistema. Por um lado, a representatividade e a capacidade dos jurados de decidir a sorte dos
acusados, sem disporem de conhecimentos técnicos especializados sobre o Direito, geram a
desconfiança de muitos juristas. Por outro lado, a racionalidade de certos grupos sociais de
“menor expressividade” seria descartada pela instituição, porque em desacordo com o que o
“todo social” considera aceitável, “como se o único tipo de razão capaz de garantir a
imparcialidade e a justeza de uma decisão fosse a racionalidade legal e, nesse sentido, o legal
acaba por se transformar em justo.” (FONTOLAN, 1994, p. 85).
Assim, a própria instituição do Júri acabaria perdendo o sentido que a valoriza
enquanto instância judiciária, que é o sentido da participação popular e da abertura para a
influência de outras racionalidades nas decisões judiciais.
Mas, como bem observa Lyra (1971), “o que constitui defeito no juiz togado é virtude
no jurado, homem comum integrado no torvelinho das provações” (LYRA, 1971, p. 64). E
ainda:
O júri elabora as interpretações transcendentais e satisfaz as imanências da justiça com o realismo da observação comum e do senso coletivo. O júri existe para romper os quadros rotineiros e lançar-se em braçadas livres ao pélago das compreensões abrangendo o conjunto das realidades individuais e sociais. Ele liberta a flama representativa para a estilização do verdadeiro, do justo e do útil. O juiz togado é obrigado a despojar-se da carga comum, o jurado intensifica-a totalmente para conscientizá-la. (LYRA, 1971, p. 64).
Foi nos limites dessa instituição, festejada por uns e condenada por outros, que
tramitou o processo que ora tomamos como corpus, o que equivale a dizer que a produção
discursiva por nós analisada foi moldada conforme os contornos do Tribunal do Júri. Resta-
nos agora refletir sobre o estatuto do aborto no direito brasileiro contemporâneo.
4.7 Aborto: entre o “ser” e o “dever ser”
O debate sobre o aborto ocorre em um espaço onde se entrecruzam os discursos
originários dos espaços público e privado da organização social brasileira.
107
Encontramos, sobre essa temática, manifestações produzidas no âmbito dos Poderes
Legislativo, Judiciário e Executivo, em forma de leis, decretos e projetos de lei, debates no
Congresso ou em comissões especiais, decisões judiciais em primeira e segunda instâncias,
além de publicações de grupos feministas, declarações de religiosos, pronunciamentos de
médicos, desembargadores, sociólogos, enfim, uma vasta produção discursiva que alimenta a
polêmica e divide a sociedade em grupos de posições mais ou menos antagônicas.
Há os que defendem a descriminalização ampla do aborto, inclusive com a
obrigatoriedade de atendimento público para as gestantes que queiram se submeter a esse
procedimento; os que defendem uma descriminalização com ressalvas, segundo um critério de
prazos e indicações estipulados legalmente; os que admitem a figura do aborto apenas como
último meio de salvar a vida da mãe e, finalmente, os que não o admitem em hipótese alguma.
No espaço público, observamos um notório descompasso entre a atuação do Poder
Judiciário, representado por seus juízes e desembargadores, que aplicam a lei ao caso
concreto, e o Poder Legislativo, cujos membros elaboram as leis, como o Código Penal (que
criminaliza a prática intencional do aborto) e o Código de Processo Penal (que estabelece os
procedimentos a serem seguidos para a persecução do crime).
Vejamos: no Brasil, o delito de aborto encontra-se tipificado na Parte Especial do
Código Penal, no Capítulo I (Dos crimes contra a vida) do Título I (Dos crimes contra a
pessoa), o que nos colocaria no rol das legislações mais restritivas do mundo ocidental em
relação ao aborto (TESSARO, 2006). No entanto, as estatísticas mostram que, entre as
inúmeras ocorrências de suspeita de interrupção intencional de gravidez cotidianamente
relatadas à polícia, muito poucas chegam a ter um veredicto de condenação na instância
judicial.
Em levantamento realizado junto às secretarias criminais de três Fóruns localizados na
comarca de São Paulo/SP, entre as décadas de 70 e 80, Ardaillon (1994) observou que a maior
parte dos autos que levavam o rótulo de Processo de Aborto, na verdade, não passavam de
inquéritos policiais arquivados.
Observou também que, entre os inquéritos que se transformaram em processo, apenas
4% terminaram em condenação, o que permitiu a conclusão de que se trata de “[...] um crime
raramente punido quando as acusadas são as gestantes, levemente penalizado no caso das
‘parteiras’, ‘enfermeiras’ e outros agentes” (ARDAILLON, 1994, p. 247).
Enfim, esse panorama nos revela que a sociedade insiste e investe em sua proibição,
reclamando leis de natureza criminal que estabeleçam penas duras a quem incorra nessa
108
prática, mas quando um caso concreto chega à instância judiciária, observa-se pouco interesse
na condenação de fato.
Olhando a questão a partir do “dever ser”, vislumbramos um terreno aparentemente
pacífico, onde vigora uma legislação datada de 1940, segundo a qual a mulher que pratica
aborto em si mesma, ou que permite que outra pessoa o faça, comete um crime e por isso
mesmo está sujeita a uma pena de um a três anos de detenção. A mesma legislação determina
também a aplicação da pena à pessoa que pratica o aborto na gestante, com ou sem o seu
consentimento. Essa previsão engloba aqueles profissionais popularmente conhecidos como
“fazedores de anjo”, “aborteiros”, “parteiras” e outros.
Textualmente: “Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho
provoque: Pena - detenção, de um a três anos” (BRASIL, 2011).
À primeira vista, consultando a letra da lei, parece não haver dificuldade nenhuma em
se afirmar que uma pessoa praticou, ou não, aborto. Entretanto, apesar da aparente facilidade,
nos deparamos com um problema logo de início, que é a definição do que seja provocar
“aborto”, pois o Código Penal não traz nenhuma elucidação nesse sentido: trata-se de
definição a ser preenchida com suporte na valoração social que recai sobre o fato, o que abre
uma fenda em um terreno que parecia tão sólido e pacificado em forma de lei (DELMANTO
et al, 1998). Essa abertura permite que questões de ordem biológica, moral e religiosa influam
na taxatividade da lei penal e encaminhem a discussão para um ponto bastante polêmico, que
é o início da vida humana no útero materno.
Existem diversas correntes de pensamento a esse respeito, algumas mais atreladas a
conceitos biológicos, como a fecundação, a nidação ou o início da atividade cerebral, outras
mais voltadas para valores filosóficos, como a que entende que a vida humana se inicia com o
estabelecimento de um compromisso relacional entre mãe e filho, ou seja, quando a mãe
reconhece o produto da concepção como pessoa.
Renomados criminalistas brasileiros entendem que, em nossa legislação, o aborto é
punido de forma absoluta: não se faz distinção entre as fases de desenvolvimento do embrião,
bem como entre fecundação, nidação ou início da atividade cerebral. Basta que o exame de
corpo de delito realizado na mulher seja capaz de detectar resíduos de uma gravidez
(HUNGRIA, 1981). Outros, também renomados, postulam que no Brasil, o crime de aborto se
restringe ao período da gravidez que se segue à nidação, ou seja, quando o ovo é implantado
no útero materno (DELMANTO et al, 1998).
Outra questão que vem fomentando a discussão entre juristas é uma ponderação entre
bens jurídicos fundamentais que se encontra na base da tipificação dessa conduta.
109
Contemporaneamente, entende-se que a função primordial do Direito Penal é a proteção dos
chamados bens jurídicos, que são aqueles valores mais caros à sociedade, como vida humana,
integridade física, liberdade sexual, patrimônio e outros. Para a proteção do bem jurídico
“vida humana”, por exemplo, o Código Penal prevê, entre outras condutas, a figura do
homicídio. Assim, aquele que pratica a ação “matar alguém”, está sujeito à pena do artigo 121
(reclusão, de seis a vinte anos).
Ao estatuir, no Código Penal, que provocar aborto é crime e determinar que uma
gestante deva prosseguir com uma gravidez ainda que não desejada, o legislador fez antes
uma valoração entre bens jurídicos que pertencem à esfera da mãe – saúde, dignidade,
exercício livre da sexualidade e da faculdade de reprodução – e um bem jurídico próprio do
nascituro, que é o direito à vida.
Em nosso ordenamento, o direito à vida tradicionalmente ocuparia posição de
superioridade, embora parte da doutrina argumente que existem outros pontos a serem
pensados nessa ponderação, como por exemplo, o questionamento se o nascituro realmente é
uma pessoa, no sentido jurídico do termo, ou se é apenas uma “expectativa de pessoa”, e aí
seus direitos não seriam tão amplos quanto os de um ser humano com vida extrauterina.
Sob o influxo de uma corrente teórica voltada aos estudos de gênero feminino e
masculino, Ardaillon afirma que “o sistema normativo, que se propõe à defesa da liberdade de
indivíduos considerados iguais, sanciona ao mesmo tempo uma estrutura de relações
perversamente assimétricas entre homens e mulheres” (ARDAILLON, 1994, p. 214).
Nesse sentido, a criminalização do aborto significaria:
[...] uma situação-limite da ação do Estado sobre aquilo que é para mulheres e homens o espaço privado por excelência, o seu corpo. Por ser um corpo reprodutor, porém, o corpo da mulher não faz jus à privacidade, à autonomia. O ventre feminino foi controlado desde sempre, e em todas as sociedades. O direito de abortar parece simbolizar a extrema subversão que representa, na nossa sociedade, a autonomia de um indivíduo feminino sobre o processo de reprodução. (ARDAILLON, 1994, p. 215).
Observamos que, para o discurso feminista, o importante seria resguardar o direito de
escolha da mulher, como fruto de uma mudança em relação à sexualidade feminina e pré-
requisito para a criação de uma nova ordem social, onde homens e mulheres ocupem posição,
de fato, igualitária.
Analisando a questão em seu viés histórico, notamos que a forma como o Direito
encampou a interrupção voluntária da gestação nem sempre foi tão taxativa como é hoje.
110
Nessa corrida pela adequação do “ser” ao “dever ser”, observam-se flutuações entre
criminalização e descriminalização, entre maior e menor reprovação social.
Hungria (1981) leciona que a prática intencional do aborto é de todos os tempos,
embora nem sempre tenha sido incriminada. Vigorava uma regra geral de impunidade, desde
que o ato não acarretasse dano à saúde ou a morte da gestante.
Em diversas cidades-estado da Grécia Antiga, no tempo de Platão e Aristóteles, a
prática era corrente em todas as classes sociais, sendo até mesmo aconselhada, como método
de controle do crescimento populacional. Em Esparta, contudo, o aborto era proibido, pois o
Estado evocava para si o direito de contar com o maior número possível de atletas e
guerreiros (TESSARO, 2006).
Em Roma, considerava-se o aborto como um atentado contra a moral, mas não contra
o direito, tanto que no período republicano e no início do Império, ele não era tipificado como
crime. Mesmo sendo taxada de imoral, era uma prática corriqueira, pois se acreditava que o
embrião constituía somente uma parte do corpo da mulher, tal como uma víscera, e por isso
ela poderia dispor dele como bem entendesse.
Posteriormente, o direito romano passou a tratar o aborto como uma lesão ao direito
do marido à prole e, em reação à permissividade do passado, eram aplicadas penas
gravíssimas à gestante, justificadas à época sob o argumento de que “[...] essa mulher ‘tinha
destruído a esperança de um pai, a memória de um nome, a garantia de uma raça, o herdeiro
de uma família e um cidadão destinado ao Estado.” (CÍCERO apud HUNGRIA, 1981, p.
271).
Com o advento do Cristianismo, consolidou-se a reprovação social e jurídica ao
aborto. O antigo direito romano, reformado segundo o entendimento dos imperadores
Adriano, Constantino e Teodósio, assimilou o aborto ao homicídio, equiparando as penas
aplicadas a um crime e outro. Relata-se que, na base da tipificação dessa conduta, verificava-
se no legislador a intenção de se coibir a prática de adultério por parte das mulheres e não um
desejo primordial de proteção da vida do feto (TESSARO, 2006).
Na Idade Média, teólogos como Santo Agostinho pregavam que “o aborto só era crime
quando o feto já tivesse recebido alma, o que se julgava ocorrer 40 ou 80 dias após a
concepção, segundo se tratasse de varão ou de mulher.” (HUNGRIA, 1981, p. 272). A
preocupação aqui era com a perda da alma do nascituro que, sem o sacramento do batismo,
estaria condenada a vagar na erraticidade.
A discussão a respeito do início da vida, então importante para a estipulação do
quantum de pena a ser aplicada ao acusado, perdurou por 18 séculos na Igreja Católica e só
111
foi mais ou menos resolvida a partir do Iluminismo, que revogou a equiparação das penas do
aborto e do homicídio, por considerar que o crime praticado contra a pessoa é mais grave que
aquele cometido contra o nascituro.
No Brasil, a primeira referência ao crime de aborto é encontrada no Código Criminal
do Império, de 1830, que incriminava o terceiro que praticasse o aborto na mulher, com ou
sem o consentimento dela. A incriminação não atingia, portanto, a própria gestante. O Código
Penal Republicano, de 1890, incriminou também o autoaborto e instituiu a figura do aborto
terapêutico, ou seja, aquele realizado como meio necessário para salvaguardar a vida da mãe.
O Código em vigência atualmente, de 1940, recrudesceu o sistema, alargando o
número de condutas abrangidas pela tipificação penal, que hoje inclui quatro práticas
distintas:
a) aborto provocado pela própria gestante;
b) consentimento da gestante a que terceiro lhe provoque o abortamento;
c) aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante e
d) aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante menor de 14 anos
de idade ou, por qualquer outra razão, incapaz para os atos da vida civil21.
Permaneceu a figura do aborto terapêutico e instituiu-se o aborto em caso de gravidez
resultante de estupro como ato não punível.
Refletindo sobre essa evolução na maneira da sociedade e do direito lidarem com o
aborto voluntário, observamos que uma das crenças que parece ter resistido à passagem do
tempo e sobrevivido até, pelo menos, a década de oitenta, é a de que a criminalização do
aborto é útil para reprimir a prática de infidelidade conjugal por parte da mulher. Um famoso
penalista brasileiro, Nelson Hungria, afirma textualmente que “preconizar o aborto é
aconselhar a prática de um ato profundamente imoral e anti-social. Com a licença para o
aborto, a mulher perderia o medo de conceber filhos ilegítimos e estaria assim assegurado
livre curso aos amores extra matrimonium.” (HUNGRIA, 1981, p. 284).
Além da dificuldade de determinação do início da vida humana, para fins de
incidência da tutela penal, existe ainda uma dificuldade de comprovação da prática voluntária
de interrupção da gravidez, o que compromete sobremaneira a aplicação de pena na esfera
judiciária. Ardaillon tece o seguinte comentário a esse respeito:
21 Essa figura abrange aquelas situações em que o consentimento da gestante não é legalmente válido, seja por sua idade biológica reduzida, por alguma doença que a impeça de manifestar sua vontade de forma consciente, como a alienação mental, por exemplo, ou pelo consentimento obtido mediante fraude, violência ou grave ameaça.
112
Houve aborto? Houve crime? A materialidade desse fato não é tão facilmente comprovada, nem atribuível a sua autoria, como se poderia pensar de início. De fato, tem que ter havido uma gravidez plenamente comprovada; a interrupção dessa gravidez tem que ter sido provocada com real intenção de abortar, tem que haver um feto, e, se achado o feto, ele tem que ser daquela mulher que, supõe-se, abortou. (ARDAILLON, 1994, p. 233).
Por estar capitulado entre os crimes contra a vida, ao lado do homicídio, do
infanticídio e do induzimento ao suicídio, o aborto segue o procedimento do Tribunal do Júri,
o que, à primeira vista, parece confirmar a severidade do legislador pátrio na punição a essa
conduta. Muitos processos, como os relacionados ao divórcio e à separação judicial, correm
em segredo de justiça, porque a lei garante que os cônjuges e seus familiares tenham
resguardados os fatos que dizem respeito à sua vida íntima. O que justificaria, então, que o
aborto seja levado a julgamento em um Tribunal Popular, onde o procedimento, em tese,
propicia a irrestrita publicidade dos atos processuais? É certo que a forma ritualística como é
realizada a sessão de julgamento dá ao acontecimento ares de encenação teatral. Assim,
poderia se pensar em mais um ato de controle da conduta moral e do corpo feminino, como
parte de uma tradição histórica de vigilância da mulher, em que a simples denúncia da prática
abortiva já geraria uma sanção social.
Pode-se argumentar, em sentido oposto, que a instituição do Júri é uma forma
democrática de aplicação da justiça, na qual os acusados são julgados por seus próprios pares
e não por um juiz situado em uma posição diferenciada por possuir um capital simbólico
maior que os demais. Dessa forma, o julgamento poderia ser um pouco mais fundado no
sentimento de equidade do que no positivismo jurídico, com vantagens para o réu.
Como já se afirmou, não se pode olvidar que a instituição representou um grande
avanço para a justiça penal, tanto por ser uma alternativa aos julgamentos cruéis e infamantes
que eram realizados antigamente, como pela abertura da justiça à participação popular. E é
justamente esse sentido da participação popular e da abertura para a influência de outras
racionalidades nas decisões judiciais que justificam a possibilidade de existência de uma
instituição como esta nos dias atuais.
Em seguida, partimos para a descrição dos procedimentos metodológicos empregados
para a análise de nosso corpus.
113
5 O PROCESSO PENAL EM UMA VISÃO SISTÊMICO-INSTITUCI ONAL: UMA
PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA DE ABORDAGEM DO CORPUS
Neste capítulo, descrevemos a proposta teórico-metodológica de abordagem de nosso
corpus, segundo a qual o Processo Penal é encarado em uma perspectiva sistêmico-
institucional, em que sistemas de gêneros se inter-relacionam no interior dos domínios
discursivos.
Com fundamento nessa proposta, foram realizadas análises linguístico-discursivas que
visam a demonstrar, em uma situação institucional de uso da linguagem, como as categorias
argumentação, atos de fala, fatos institucionais, gêneros e domínios discursivos estão
articuladas na produção de alterações na realidade social.
Em capítulo anterior, empreendemos um primeiro ensaio de análise de nosso corpus
conforme os princípios da proposta ora apresentada. Naquele momento, nos ativemos ao
funcionamento do processo como um todo, em uma visão global, iniciando os trabalhos a
partir de um levantamento dos sujeitos que aturam no Processo, dos conjuntos de gêneros de
cada um deles e de como esses conjuntos se entrelaçaram para a prática de atividades.
Em contrapartida, neste capítulo, propomos um modelo de análise mais pontual dos
principais documentos produzidos por Juiz, Defensor e Promotor de Justiça, respeitando a
ordem em que tais documentos foram acostados ao processo. A abordagem particularizada,
contudo, não significa que abandonamos a visão do todo: mais uma vez, salientamos que o fio
condutor das análises é a visão sistêmico-institucional do discurso processual penal.
Antes de partirmos para as análises, alguns critérios devem ser explicitados de forma
clara, tarefa a que nos dedicamos a seguir.
5.1 Divisão metodológica do Processo
Para fins metodológicos, o Processo foi dividido em 7 etapas, observando-se a ordem
cronológica em que os atos e documentos foram acostados aos autos e as condições
enunciativas próprias de cada uma das fases:
a) Fase Policial;
b) Juízo Singular (da Denúncia à Decisão de Pronúncia);
114
c) Sequência típica executada após a Pronúncia;
d) Fase Recursal (do Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão);
e) Preparação para a Sessão de Julgamento;
f) Sessão de Julgamento e
g) Sentença.
A primeira etapa – “Fase Policial” – foi marcada pelas figuras dos policiais civis e
militares, comandados pelo Delegado de Polícia. Foi ele quem tomou a frente das
investigações nesse momento, solicitou a realização de diligências, colheu depoimentos,
produziu peças dirigidas ao Juiz e ao Promotor.
A segunda etapa, chamada de “Juízo Singular”, desenrolou-se em um cenário
diferente, sob o comando do Juiz de Direito, com personagens próprios do meio judicial,
como o Promotor, os advogados, os serventuários da justiça.
A terceira etapa, à qual atribuímos o título “Sequência típica executada após a
Pronúncia”, é apenas uma amostra pontual de um momento em que se dá curso ou andamento
burocrático ao processo.
A quarta etapa, que recebeu o nome de “Fase Recursal”, teve lugar no Tribunal de
Justiça, e os personagens que aí atuaram foram os Desembargadores e os serventuários da
segunda instância, além do advogado e dos membros do Ministério Público.
Retornando os autos à primeira instância, teve lugar a quinta etapa, chamada de
“Preparação para a Sessão de Julgamento”. Trata-se do momento em que são apresentados o
Libelo, a Contrariedade ao Libelo, os Editais de convocação dos jurados, enfim, são tomadas
as medidas necessárias para a realização da sessão de julgamento.
A sexta etapa, a “Sessão de Julgamento”, é o ponto culminante do procedimento: o
caso é submetido aos juízes leigos, apresentam-se os fatos, defesa e acusação proferem
oralmente seus dizeres, a encenação do júri encontra seu momento máximo.
A sétima e última etapa é uma ratificação da anterior: a partir do veredicto apresentado
pelos jurados, o Juiz elabora a sentença que põe fim ao procedimento.
Na medida em que, no capítulo de análises, nos debruçamos sobre cada uma dessas
etapas, tratamos também de apresentar com maiores detalhes o processo selecionado como
corpus de pesquisa, oferecendo informações gerais acerca do tratamento dado pelo Judiciário
àqueles que incorrem na prática de crime de aborto, especialmente em autoaborto, a fim de
que pudéssemos realizar uma reflexão mais ampla sobre o caso que nos propomos a analisar.
115
5.2 Peças selecionadas para análise
De cada um desses estágios, selecionamos documentos e ou atos processuais para
serem analisados, segundo o critério de apresentarem maior relevância para o desfecho da
ação instaurada.
Apenas da etapa e) não selecionamos nenhum proferimento, pois pareceu-nos que as
peças elaboradas nesse momento eram simples, concisas, caracterizadas por um vocabulário
excessivamente formulaico e que não trariam grandes contribuições para o trabalho.
Outro critério utilizado para essa seleção foi o de que, nos referidos documentos, a
relação dialógica entre as instâncias de acusação, defesa e julgamento se constituiu de uma
maneira bastante nítida, permitindo a reconstrução do movimento de apresentação e/ou
refutação das teses apresentadas.
O quadro abaixo representa as peças e atos processuais produzidos ao longo do
processo. As figuras preenchidas indicam as peças e/ou atos selecionados como objeto de
análise pontual:
Quadro 12: Esquema representando os atos e peças processuais selecionados para as análises Fonte: Elaborado pela autora
116
5.3 Categorias e procedimentos de análise
O primeiro passo na execução dessa proposta de análise foi o levantamento dos
sujeitos que atuaram no Processo, dos conjuntos de gêneros que cada um deles produziu e de
como esses conjuntos se entrelaçaram para a prática de atividades. Tanto os sujeitos
processuais e seus conjuntos de gêneros quanto a configuração final do Processo foram por
nós esquematizados em quadros sintéticos e apresentados ao longo do capítulo “Linguagem,
Ação e o Caráter Institucional da Atividade Discursiva”.
Os documentos que compõem as etapas a) (Relatório de Inquérito Policial - Anexo A),
b) (Denúncia - Anexo B, Alegações Finais do Ministério Público - Anexo D, Alegações
Finais da Defesa - Anexo E, Sentença de Pronúncia - Anexo F) e g) (Sentença - Anexo H)
foram analisados pela combinação de postulados da Teoria dos Atos de Fala e das Teorias da
Argumentação de Perelman, Amossy e Ducrot (em menor extensão).
Adotando a Teoria dos Atos de Fala (TAF) como padrão de análise, buscamos uma
avaliação mais detalhada de ações determinadas pelo discurso judicial processual penal do
Tribunal do Júri, o qual engloba gêneros com maior ou menor grau de performatividade,
entendida aqui como uma maior capacidade de provocar mudanças na realidade social pela
linguagem.
Na verdade, observamos que as diversas peças processuais que fazem parte do
domínio jurídico, inclusive as formas cartoriais, são repletas de verbos performativos22 plenos,
no sentido dado a esse termo por Austin (1990), quando postulou a dicotomia
performativos/constativos, hoje já superada. O emprego do termo “performativo” se
justificaria, nesse sentido, porque a linguagem jurídica é uma forma de discurso social
marcada pela presença dos verbos performativos clássicos, provavelmente como decorrência
de uma necessidade de demarcar espaços específicos de atuação dos sujeitos e etapas
processuais.
No entendimento de Bittar:
O ato performativo requer, para sua caracterização, a capacidade de fazer coisas por meio do discurso (o que os define como performatif acts), o que efetivamente se dá com a aparição de cada discurso decisório. Esses atos performativos de linguagem
22 Verbos performativos são aqueles cuja enunciação realiza a ação que eles exprimem, ou que descrevem certa ação do sujeito que fala. Como exemplos, podem ser citadas as formas verbais, conjugadas na primeira pessoa, “eu digo”, “eu prometo”, “eu juro”, uma vez que ao enunciar essas frases, o sujeito pratica a ação de dizer, prometer, jurar.
117
resultam de uma enunciação contextual própria, o que é feito por meio da decisão, com a qual se manifesta a autoridade decisória. Nesse sentido, é exatamente o que faz, por exemplo, uma sentença judicial, constituindo, desconstituindo, declarando, condenando, pois encarna um conteúdo que tem um valor material concreto, socialmente engajado e que corresponde a uma prática que se sustenta institucionalmente. (BITTAR, 2009, p. 301).
A análise dos proferimentos consistiu na elaboração de uma reflexão inicial acerca das
condições enunciativas próprias de cada documento analisado já que, como afirma Mari
(2001, p. 124), “a efetivação de uma força ilocucional decorre da realização de um complexo
de fatos, reunidos todos no processo enunciativo”. Alguns desses fatos contêm presença
material nesse processo, outros são apenas uma “base de sustentação” que possibilita a
funcionalidade dos demais (MARI, 2001).
Em seguida, tais documentos foram transcritos e segmentados em parágrafos, que, por
sua vez, foram decompostos em atos ilocucionários, adotando-se como critério geral a
hipótese metodológica de que tais atos constituem-se como unidades mínimas de análise.
Partiu-se então para a análise das unidades mais representativas de cada documento,
pela aplicação dos postulados da Teoria dos Atos de Fala, com a explicitação do ponto de
realização, modo, condições de conteúdo proposicional, condições preparatórias e condições
de sinceridade.
No quadro abaixo, apresentamos os sinais utilizados nas análises:
COMPONENTES DO ATO DE FALA
ππππ: ponto de realização (diretivo, comissivo, assertivo, declarativo, expressivo)
µ: modo de realização (ordem, pedido, promessa, desejo, juramento, afirmação, exoneração, nomeação, cumprimento, etc)
θ: condição de conteúdo proposicional/forma lingüística da proposição (incluindo tempo verbal, propriedades de itens lexicais e o agente da ação)
∑: condições preparatórias (fatos associados à identidade dos interlocutores e ao estatuto de um em relação ao outro)
ψψψψ: condição de sinceridade (compatibilidade entre o estado psicológico do locutor e o conteúdo do ato proferido) Quadro 13: Componentes do ato de fala Fonte: Elaborado pela autora
A partir da construção do cenário enunciativo – como o locutor se constitui, constitui o
mundo e seus interlocutores – foi possível partir também para a investigação das estratégias
que orientam argumentativamente os proferimentos. De uma maneira global, foram
consideradas na análise da argumentação: as condições prévias para seu exercício, a par das
118
restrições genéricas e institucionais impostas pelo Tribunal do Júri; as estratégias
argumentativas desenvolvidas por acusação, defesa e julgador; a disposição dos argumentos
no discurso e a relação entre eles; aspectos das forças ilocucionais presentes nos
proferimentos e a orientação argumentativa que os atos de fala conferem ao discurso, entre
outros.
A investigação da fase c), “Sequência típica executada após a pronúncia”, visou a
apontar como os sujeitos processuais dão andamento ao processo e materializam as decisões,
por meio de gêneros típicos do quadro institucional. Por isso, as categorias de análise
utilizadas para essa etapa relacionam gêneros e realização de atividades.
Para a análise da fase d), cujo proferimento mais importante foi o Acórdão (Anexo G),
e da fase f) (depoimentos concedidos pela ré), foram empregadas as categorias da
argumentação no discurso, de Amossy, aliadas aos conceitos de lugar comum, lugar
específico, doxa, heterogeneidade discursiva, representações sociais, estereótipos e imagens
de si no discurso.
A seguir, passamos às Análises.
119
6 ANÁLISE DO CORPUS
6.1 A Fase Policial
Inquérito policial, de acordo com o Código de Processo Penal, é todo procedimento
instaurado pela polícia judiciária com vistas à apuração da prática de uma infração penal e de
sua autoria. Trata-se de um procedimento administrativo-informativo, que dá início às
investigações sobre a possível ocorrência de um fato delituoso, constituindo a “porta de
entrada” de um processo penal. Dessa forma, seu objetivo é coletar informações sobre a
autoria de um incidente e sua materialidade e sua função é servir de base para a acusação no
processo penal.
O Inquérito é presidido pelo Delegado de Polícia, o qual não dispõe de legitimidade da
jurisdição. Em outras palavras, ao Delegado cabe apenas a tarefa de investigar. A instauração
de um processo penal, para impor uma pena criminal a alguém, é, na maior parte dos casos,
prerrogativa do Estado, por meio do Ministério Público. Daí se afirmar que o inquérito é
apenas um procedimento preliminar.
No caso ora analisado, o desenrolar dos fatos que culminaram no julgamento de R
pelo Tribunal do Júri parece contrariar o que normalmente ocorre no país em situações
semelhantes.
Como já se afirmou, as estatísticas demonstram que há um número reduzido de
processos instaurados para apuração de crime de aborto no Brasil. Na verdade, esse tipo de
conduta, principalmente quando a própria gestante provoca a destruição do feto (autoaborto,
em oposição às clínicas em que “profissionais” praticam o ato), em razão da ausência de
lesividade a terceiros e de o procedimento se realizar numa espécie de submundo, dificilmente
chega ao conhecimento de uma autoridade pública23.
O fato só chega a essa esfera quando, por exemplo, a Polícia é acionada para socorrer
uma gestante em trabalho de “parto prematuro”, ou quando recebe denúncias de
funcionamento de clínicas clandestinas de aborto, ou ainda por informações da administração
23 Essa constatação, fruto de conversas e observações informais com advogados e funcionários do Poder Judiciário, encontra amparo na já referida pesquisa de Ardaillon (1994).
120
do hospital onde são internadas mulheres com abortos provocados incompletos, denominados
“abortos infectados” (ARDAILLON, 1994).
Foi exatamente essa última hipótese que parece ter ocorrido no processo sob análise:
segundo narrativa atribuída à própria gestante/ré, ela estaria no segundo ou terceiro mês de
gestação e, por não possuir condições financeiras de criar mais um filho, teria tentado
interromper a gravidez introduzindo uma sonda em seu útero, o que lhe teria provocado uma
forte infecção.
Acometida por dores abdominais, mau cheiro e febre, acabou procurando atendimento
médico na Santa Casa da cidade. O médico que lhe atendeu desconfiou de que poderia se
tratar de aborto provocado e comunicou o fato ao administrador da Santa Casa. Este, por sua
vez, enviou um ofício ao Delegado de Polícia, pedindo a apuração do ocorrido.
Nesse sentido, Pérez (2006, p. 11) comenta que, “desconsiderando as questões sociais
que derivam da problemática da clandestinidade do aborto e os direitos reprodutivos e sexuais
das mulheres, os profissionais de saúde se limitam a perceber o aborto como crime”. E por
essa razão acabam acionando a polícia.
O investigador de polícia compareceu então ao hospital para ouvir a suspeita, que
parece ter confirmado para ele a prática abortiva. Com isso, foi instaurado um Inquérito
Policial, conduzido pelo Delegado, para investigar se havia provas que pudessem sustentar
uma acusação criminal. A suspeita foi interrogada na Delegacia, pelo Delegado, e concedeu o
seguinte depoimento:
QUE, confirma ter praticado o aborto, esclarecendo que foi no mês de setembro de 1999; QUE, estava grávida de dois meses e que usou uma sonda para perfurar; QUE, comprou a sonda e sozinha praticou o aborto; QUE, não teve orientação de nenhuma outra pessoa; QUE, o motivo foi que já possuía um casal de filhos sendo um com quatro e outra com dois anos de idade e que não tem condições financeiras para cuidar de todos e ainda na época morava com sua prima; QUE, foi o único aborto que praticou; QUE, faz uso de bebida alcoólica, fuma cigarros, não faz uso de drogas, não faz uso de remédio controlado, nunca foi internada em casa de tratamento de doenças mentais, já teve envolvimentos com brigas e já foi processada cumprindo pena até a presente data. (R)24.
Esclarecemos que essas primeiras declarações formais da ré foram colhidas sem a
presença de um advogado de defesa.
Testemunhas também foram ouvidas no Inquérito. Em geral, seus depoimentos foram
vagos, pois não haviam presenciado o ato e só podiam falar do ocorrido a partir do ingresso
da suspeita no hospital. O médico que realizou os procedimentos, que poderia ter dado
24 Interrogatório prestado perante o Delegado de Polícia em 23/11/00, fls. 34.
121
informações mais precisas, se furtou a prestar esclarecimentos conclusivos, talvez porque não
desejasse se comprometer, talvez por ética profissional.
O aborto é um crime que deixa vestígios no mundo físico, razão pela qual o Código de
Processo Penal determina sua comprovação por meio de Exame de Corpo de Delito. Como a
suspeita compareceu ao hospital alguns dias depois de ter supostamente provocado a morte do
feto, não havia mais como se realizar esse exame nos moldes do que prescreve a lei
processual, então se tentou supri-lo através do laudo médico produzido por ocasião do
atendimento. Nesse laudo, o médico diagnosticou “abortamento infectado” e encaminhou a
paciente para o procedimento de curetagem uterina.
No decorrer do processo, o laudo médico produzido nessa fase investigatória foi
inúmeras vezes retomado e, em torno dele, produziu-se uma ampla produção discursiva, tanto
por parte da defesa como da acusação.
A esse respeito, julgamos interessante a observação de Sartori:
Os laudos sobre os indivíduos envolvidos nos crimes são respaldados na cientificidade dos saberes da medicina, da psicologia e da sociologia, e por isso são tidos como incontestáveis, no interior do Sistema Judiciário. Esses saberes atuam no interior do discurso jurídico elaborando provas e indícios, que oferecem legitimidade para aplicação de penas e possibilitam o enquadramento dos indivíduos em criminosos ou inocentes. O delito criminoso é então construído durante o processo penal por meio das tensões existentes entre o saber científico (medicina, psicologia e sociologia) e a normatização da ‘ordem pública’. (SARTORI, 2008, p. 4).
Concluídas as investigações, o Delegado de Polícia elaborou o Relatório de Inquérito
Policial, onde indiciou formalmente a suspeita e determinou o envio do feito ao Promotor de
Justiça, para que este tomasse as providências legais.
Dentre todos os atos, diligências e proferimentos produzidos no decorrer do Inquérito,
optamos por realizar uma análise mais aprofundada do Relatório de Inquérito Policial, o qual
se propõe a fechar o procedimento investigatório, pois acreditamos que em seu bojo estão
contidas as vozes de todos os sujeitos que participaram do suposto fato criminoso e de sua
apuração na esfera policial, vozes que foram processadas, reproduzidas e/ou reelaboradas de
acordo com os propósitos ilocucionários do sujeito enunciador “Delegado de Polícia”.
122
6.1.1 O Relatório de Inquérito Policial
Inicialmente, pensando sobre as condições enunciativas que perpassam o Relatório de
Inquérito Policial (doravante RIP), observamos que ele se configura como desfecho de um
procedimento conduzido por uma autoridade policial, que é o Delegado de Polícia, sob a
direção de quem inúmeras diligências são praticadas por policiais civis e militares; são
produzidos laudos periciais, ouvidas testemunhas; é interrogado o suspeito. Todo esse
proceder institucionalizado, que tem lugar no interior de uma estrutura recorrente e prescrita,
de forma detalhada, pela lei processual penal, resulta em um RIP. Este, por sua vez, se aceitas
as provas nele contidas, dará a base para a Denúncia a ser ofertada pelo Ministério Público.
Biazotto (2006) buscou responder, à luz da teoria dos gêneros, se o RIP constituiria-se
como um gênero no sentido concebido por Bakhtin (1997), Bazerman (2005) e Fairclough
(2001). Considerando os gêneros como eventos sociocomunicativos relativamente estáveis,
como entidades discursivas com propósitos estabelecidos e estruturalmente regulares do ponto
de vista linguístico, a autora obteve resposta afirmativa para essa primeira questão. Em outras
palavras, concluiu que se trata de um gênero, por satisfazer a esses elementos conceituais.
Assumindo a hipótese defendida por Biazotto (2006) e tentando avançar um pouco
mais em seus aspectos descritivos, temos que o RIP é um gênero discursivo próprio do
domínio jurídico, de produção exclusiva do Delegado de Polícia (autoridade policial).
Seu alocutário imediato é o Juiz de Direito, que deverá recebê-lo juntamente com os
autos do Inquérito Policial e, em seguida, encaminhá-lo ao Promotor de Justiça, para que este
ofereça, ou não, a Denúncia. Parece-nos que o papel do julgador, nesse caso, é o de
intermediar uma relação, pois caberá ao membro do Ministério Público se interar do conteúdo
do Inquérito e tomar as providências legais. Dessa forma, pensamos que este último também
é alocutário imediato do Delegado.
É importante esclarecer que, uma vez instaurado um Inquérito Policial, somente o
Juiz, a requerimento do Promotor, tem o poder de mandar arquivá-lo. Mesmo se o Delegado
entender que não houve crime, ou que não há como se descobrir o autor, ele não tem o poder
de arquivar o procedimento. Ele informará ao Promotor sobre os resultados da investigação; o
Promotor, por sua vez, fará o requerimento ao Juiz e este dará a palavra final.
A partir dessas observações, construímos o seguinte esquema representativo das
condições enunciativas do RIP:
123
Locutor : Delegado de Polícia
Enunciação (EÃO)
Enunciado: Instaurou-se os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no Artigo 124 do Código Penal Brasileiro.
imediato(s): Promotor de Justiça e Juiz de Direito Alocutário(s)
mediato(s): Advogado (ré), policiais civis e militares, jurados, etc
Quadro 14: Condições enunciativas do RIP Fonte: Elaborado pela autora
Após solucionar a primeira questão relativa ao gênero, Biazotto (2006) passou à
investigação das características do Inquérito Policial, de uma maneira mais ampla, e do RIP,
especificamente, para observar se a maneira como os delegados produzem essa peça, no
cotidiano das delegacias de polícia, mantém paralelo com as determinações da legislação
processual para a elaboração de documentos dessa natureza.
Inicialmente, convém esclarecer que há na lei apenas breves referências ao RIP, o que
poderia dar a equivocada impressão de que se trata de uma peça de menor importância. Uma
dessas referências está no artigo 10, do Código de Processo Penal, onde consta que “a
autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao juiz
competente”; e ainda: “[nesse relatório] poderá a autoridade indicar testemunhas que não
tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas”. (BRASIL,
2011).
Na doutrina jurídica, também não se encontram maiores esclarecimentos. De maneira
geral, os autores entendem que faz parte dos deveres da autoridade policial (leia-se “Delegado
de Polícia”), especialmente em seu relatório final (RIP), a obrigação de prestar todas as
informações e considerações que possam ser de utilidade no esclarecimento do crime
investigado (MIRABETE, 2001).
Biazotto (2006) percebeu, então, que o sistema legal espera que o RIP seja uma peça
objetiva, já que ele é o produto de um procedimento administrativo – o Inquérito Policial –
que, segundo o CPP, é sigiloso, inquisitivo, discricionário, formal, sistemático e unidirecional.
Contudo, a pesquisadora encontrou uma realidade bastante diferente daquela preconizada pela
lei, ao analisar um RIP no âmbito de sua dissertação de mestrado. Tal proferimento
caracterizava-se, de acordo com suas observações, por um alto grau de subjetividade,
124
avaliação e modalização, o que denotaria uma inadequação da prática ao que prescreve a lei
processual. Nas palavras da autora:
O vocabulário, a força ilocucional, as expressões e as orações modalizadas, as avaliações e a ideologia presentes no texto do RIP analisado demonstram que esse gênero (pelo menos o analisado), na prática social, não ocorre como prevê o CPP. Como diz Bazerman, nem sempre os indivíduos fazem textos conforme os regulamentos, ou, até mesmo, às vezes, tentam fazer algo que está além do que foi regulamentado. É o que parece ocorrer nesse gênero: fazer algo que está além de sua alçada. (BIAZOTTO, 2006, p. 90).
Como o objetivo de nosso trabalho se volta, fundamentalmente, para a investigação da
força ilocucional que emerge dos gêneros produzidos no interior do domínio jurídico,
propomos, em seguida, uma análise de determinados atos de fala selecionados por nós no
RIP, buscando relacionar a descrição de tais atos, obtida a partir dos parâmetros da TAF, à
orientação argumentativa que assumem nos proferimentos. Para isso, dividimos o RIP em três
partes, conforme seu conteúdo temático e estrutural: a primeira, à qual chamamos de prólogo;
a segunda, que recebeu o nome de desenvolvimento, e a terceira, por nós intitulada de
desfecho. Vejamos.
6.1.1.1 Prólogo
Enunciado Estrutura
ππππ: assertivo
µ: narração
θ: verbo pronominal/voz passiva pronominal pretérito perfeito do indicativo terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
Instaurou-se [sic] os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no artigo 124 do Código Penal Brasileiro.
ψψψψ: crença
Quadro 15: Componentes de um ato de fala no prólogo do RIP Fonte: Elaborado pela autora
Neste excerto, pelo qual o locutor inicia seu proferimento, observamos a ocorrência de
um ato de fala do tipo (π) assertivo, já que reporta um estado de coisas que preexiste à sua
enunciação, realizado no modo (µ) narração.
O conteúdo proposicional (θ) do ato assertivo, no modo narração, obedece à condição
de que a forma verbal contenha uma expressão de passado em contraste com o instante da
125
enunciação, que é o do oferecimento do RIP. Essa exigência faz com que a forma verbal seja
morficamente representada no tempo pretérito.
No enunciado em análise, o verbo “instaurar” aparece conjugado no pretérito perfeito
do indicativo (instaurou-se), na terceira pessoa do singular. O que chama atenção, nesse
aspecto, é a voz do verbo, ou seja, “a forma assumida pelo verbo para indicar que a ação
verbal é praticada ou sofrida pelo sujeito” (CEGALLA, 1993, p. 205). Em “instaurou-se os
presentes autos”, o sujeito (“os presentes autos”) é paciente, já que recebeu a ação de ser
instaurado. A voz passiva é formada, nesse caso, com o pronome apassivador “se” associado a
um verbo transitivo da 3.ª pessoa. A Gramática fala, então, em voz passiva pronominal, ou
voz passiva sintética, em que o verbo concorda com o suposto objeto direto, que desempenha,
na verdade, a função de sujeito da oração. A forma gramaticalmente aceita seria, portanto,
“instauraram-se os presentes autos”.
Justifica-se o emprego do pretérito perfeito do indicativo porque, nesse ponto, o
locutor faz uma observação a respeito de um estado de coisas que, sem dúvida alguma,
ocorreu: os autos de Inquérito Policial foram instaurados por via de uma Portaria expedida
pelo próprio Delegado (Instaurou-se [sic] os presentes autos de Inquérito Policial por
portaria). Quanto a essa primeira parte, não há dúvidas.
Contudo, ao explicitar a causa que teria levado o locutor a instaurar o investigatório,
subsiste uma incerteza, manifesta pela expressão verbal escolhida para descrever o motivo de
se promover o Inquérito Policial: “tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto
(...)”. O uso da expressão verbal composta pelo verbo auxiliar “ter” + o verbo principal
“provocar”, conjugada no futuro do pretérito do indicativo (tempo composto), é bastante
apreciado no meio jurídico quando a intenção do locutor é atribuir um feito a alguém, sem,
todavia, comprometer-se com tal atribuição. Nesse sentido, encontramos na Gramática a
explicação de que esse emprego se justifica porque o futuro do pretérito pode exprimir
dúvida, incerteza, probabilidade (CEGALLA, 1993).
As condições preparatórias do ato ( ∑ ) relacionam-se à posição assumida pelo
Delegado de Polícia, na instituição policial, e de seus alocutários, bem como ao conhecimento
que ele tem sobre os atos praticados no início do Inquérito Policial.
Da mesma forma, a condição de sinceridade (ψ), nesse enunciado, é a expressão da
crença do Delegado no estado de coisas reportado, ou seja, a instauração do investigatório por
Portaria, devido às informações de que teria ocorrido um crime.
Se concordarmos com Biazotto (2006) acerca da necessidade de o Delegado produzir
uma peça de caráter objetivo e imparcial, diríamos que, até aqui, esse sujeito procedeu da
126
maneira como prescreve a lei. Ao empregar a expressão verbal “teria provocado”, ele deixa
margens para que seu alocutário pense de forma diferente dele. Contudo, na parte
subsequente, parece haver uma mudança de orientação.
6.1.1.2 Desenvolvimento
Dando sequência à análise do RIP, chegamos à parte por nós intitulada de
desenvolvimento. Nesta parte, o locutor faz uma síntese dos fatos que ocorreram ao longo do
Inquérito e comenta os depoimentos colhidos até ali.
Abaixo, selecionamos um excerto para análise da força ilocucional emergente de um
dos enunciados do desenvolvimento. Por este enunciado, introduzimos também uma reflexão
acerca das formas e funções desempenhadas pelo discurso relatado ao longo dos
proferimentos que compõem um processo penal, como se vê adiante:
Enunciado Estrutura ππππ: assertivo
µ: relato
θ: verbo conjugado no pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
A testemunha T2, fls. 11, declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo.
ψψψψ: crença
Quadro 16: Componentes de um ato de fala no desenvolvimento do RIP Fonte: Elaborado pela autora
Identificamos nesse enunciado a presença de um ato de fala realizado no ponto
assertivo (π), no modo relato (µ).
Nesse momento, torna-se necessário fazer uma pausa na investigação da força
ilocucional do proferimento, para buscar a compreensão das formas e funções desempenhadas
pelo discurso relatado em nosso corpus, de uma maneira geral, e no enunciado selecionado,
de maneira mais específica25.
25 Mais adiante, em tópico distinto, voltaremos a abordar a função do Discurso Relatado no domínio jurídico.
127
Inicialmente, devemos retornar ao Inquérito Policial e aos atos investigatórios de
tomada de depoimento, a fim de buscar informações sobre as condições de produção desse
enunciado.
Como já informamos, durante a fase inquisitorial, em que o Delegado de Polícia
procede à investigação de um fato provisoriamente classificado como crime, são produzidas
as primeiras provas que poderão servir de suporte a um processo penal. Uma delas é o
depoimento testemunhal. Embora se configure, no processo criminal, como a mais comum e
fundamentadora de outras provas, é também a mais controvertida. Isso ocorre porque, na
qualidade de narrativa cuja função é a reprodução de um fato apreendido e conservado pela
memória, pode sofrer variados tipos de influências, como por exemplo, do estado psicológico
do depoente ou mesmo do passar do tempo.
A forma como os depoimentos são colhidos na Delegacia também gera controvérsias,
pois o conteúdo exato da fala passa por acomodações até se adaptar ao estilo institucional.
Fala-se em três procedimentos possíveis:
- na primeira hipótese, o delegado de polícia questiona a testemunha e em seguida dita
ao escrivão o texto que será reduzido a termo;
- outra situação possível é o delegado questionar a testemunha, esta responder e o
escrivão ir reduzindo a termo concomitantemente e
- por último, o próprio escrivão realiza as duas atividades (questionar e reduzir a
termo), sem a presença do delegado.
Em nosso corpus, acreditamos que tenha ocorrido a segunda forma, ou seja, o
Delegado inquiria as testemunhas e elas respondiam oralmente; o Delegado então
retextualizava suas falas e ditava ao escrivão o texto pronto, para que este apenas o digitasse.
Colhidos sob essas três formas, os depoimentos orais ganham formato escrito e
distanciam-se ainda mais da realidade dos fatos, como aponta Romualdo:
[...] ao construírem o discurso escrito a partir do que ouvem, os agentes da justiça instauram uma outra situação enunciativa que carreia perdas, seleções e acréscimos com relação à voz original. Logo, as modificações que ocorrem nas falas das testemunhas devem-se não só às variações de percepção pessoal e de tempo, como afirma a bibliografia jurídica, mas também às influências dos escrivães, delegados e juízes no assentamento dos textos orais. (ROMUALDO, 2003, p. 234)
Como salienta Romualdo (2003), ao construírem o discurso escrito a partir do que
escutam das testemunhas, os agentes policiais instauram uma outra situação enunciativa, a
qual carreia perdas, seleções e acréscimos com relação à voz original.
128
O que observamos sobre a prova testemunhal em nosso corpus é o fato de que, ao
produzirem seus proferimentos, os sujeitos processuais principais (Juiz, Promotor e Defensor)
recuperaram os depoimentos concedidos pelas testemunhas, tanto na fase policial quanto na
fase judicial e, ao introduzirem em suas falas as vozes dos depoentes, o fizeram sempre com
um direcionamento persuasivo e não meramente informativo.
Tomando o enunciado selecionado como exemplo, propomos uma verificação de
como se dá esse processo de retomada da fala de uma dada testemunha – T2 (médico) – pelos
sujeitos processuais. Inquirido pelo Delegado, T2 prestou o seguinte depoimento:
Que é médico obstetra e trabalha no hospital Santa Casa da cidade de C e relata que nos últimos meses vinha acontecendo número de abortos com mais freqüência do que o habitual e que através de terceiros tomou conhecimento de que havia pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo, porém, em virtude de se manter o segredo médico e não ter provas concretas sobre o ato o depoente se abstém de citar nomes de pacientes que se submeteram a utilizar tal método, mas pede que se investigue e se apure quem fornece e vende tal remédio. (T2)
26
De acordo com as pesquisas de Romualdo (2003), o enunciado acima transcrito não
pode ser considerado como o “original”. Assim, ainda não teríamos chegado à forma que
inaugurou toda uma rede de produção discursiva, porque esse testemunho não é a reprodução
fiel das respostas dadas por T2. Já é, na realidade, uma retextualização, promovida pelo
Delegado, das informações orais que obteve de T2 por ocasião da tomada de seu depoimento.
Com base nesse testemunho, o Delegado de Polícia, mais adiante, produziu o
enunciado que ora analisamos, utilizando-se da forma do discurso indireto para inserir em seu
RIP a voz do médico que atendeu a suspeita:
A testemunha T2 [médico], fls. 11, declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo. (Delegado de Polícia)27
Nesse caso, em que se empregou o discurso indireto como forma de retomada da fala
do outro, entrevemos três planos enunciativos, ou seja, estão presentes três locutores distintos,
em uma sobreposição de vozes:
26 Termo de depoimento prestado perante o Delegado de Polícia, fls. 14. 27 Relatório de Inquérito Policial, fls. 36.
129
L1: terceiros/informantes do médico (haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo); L2: médico, que relata o discurso dos informantes (tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo); L3: Delegado/escrivão, que reporta o discurso relatado pela testemunha (declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam [sic] pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo).
Nesse enunciado, o depoimento testemunhal é inserido pelo verbo dicendi “declarar”,
conjugado no pretérito perfeito do indicativo, na terceira pessoa do singular, o que propicia
uma acomodação sintática para permitir a asserção da fala da testemunha no relato do
Delegado.
Retomando a análise quando aos componentes do ato de fala selecionado, temos que
esse verbo marca uma relação entre o ato ilocucionário assertivo e o resto do discurso ou
contexto da emissão (SEARLE, 1995a).
Considerando que uma das funções da reprodução de falas alheias é introduzir
informações sobre fatos pretéritos na nova situação enunciativa, o conteúdo proposicional (θ)
do ato realizado no modo relato obedece à condição de que a forma verbal contenha uma
expressão de passado em contraste com o instante da enunciação, que é o do oferecimento do
RIP.
Para a efetivação dessa força ilocucional de caráter assertivo, é preciso que condições
preparatórias ( ∑ ) sejam preenchidas por parte do locutor – Delegado de Polícia – e dos
alocutários – Juiz de Direito e Promotor de Justiça, sinteticamente. Assim, além do estatuto
formal de que todos devem estar investidos, concedidos a eles por uma instituição
extralinguística, o locutor deve admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado, ou seja,
o locutor deve crer na veracidade do depoimento da testemunha T2 (médico), o qual foi a base
para a construção do enunciado em análise.
Relacionadas às condições preparatórias, estão as condições de sinceridade do ato (ψ),
ou seja, o estado psicológico expresso em sua realização que, nesse caso, é a crença.
Ainda na parte narrativa do depoimento, encontramos outros enunciados em que as
falas de um policial e de outra testemunha são relatadas pelo locutor, também na forma de
discurso indireto, como em: “A testemunha T1, fls 10, declarou que na época dos fatos era
gerente da Santa Casa e que na paciente R foi necessário fazer curetagem.”
130
6.1.1.3 Desfecho
Enunciado Estrutura
ππππ: declarativo
µ: formal
θ: verbo conjugado na primeira pessoa do singular, presente do indicativo ∑: além da posição do locutor na instituição policial, o indiciamento obedece a critérios legais
Ante ao exposto, e a vista de tudo mais que dos autos constam, indicio formalmente R às penas dos Artigos 124 e 33028 do Código Penal Brasileiro.
ψψψψ: crença + desejo Quadro 17: Componentes de um ato de fala no desfecho do RIP Fonte: Elaborado pela autora
Segundo Mirabete (2001, p. 88), indiciamento “é a imputação a alguém, no inquérito
policial, da prática do ilícito penal”. A lei não se refere expressamente ao ato de
“indiciamento” do autor de uma infração, nem determina o momento próprio para que tal ato
ocorra. No caso em análise, ao proferir o enunciado “indicio formalmente R às penas dos
Artigos 124 e 330 do Código Penal Brasileiro”, o Delegado produziu um ato de fala
declarativo (π), no modo formal (µ), pois é necessário que o enunciador do ato possua
determinado estatuto oriundo de uma instituição extralinguística e que, ao mesmo tempo,
observe os limites impostos pelos quadros genéricos de sua função.
O conteúdo proposicional (θ) do ato nos leva a crer que estamos diante de um
performativo nos moldes da concepção inicial de Austin (1990): fórmula canônica “indiciar”,
conjugada na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo. Como afirma Searle (1995a),
trata-se de um ato que precisa ser realizado como um ato de fala.
Uma vez satisfeitas as condições necessárias, a pessoa sobre a qual recai o ato deixa de
ser uma mera suspeita para se tornar uma “indiciada”, pois a realização bem sucedida do ato
produz a correspondência entre a palavra proferida – indiciar – e a realidade, ao mesmo
tempo em que a nova realidade se ajusta à palavra expressa.
É interessante observar que, nos autos de um processo penal, as formas de designação
da pessoa considerada autora de um suposto delito sofrem diversas alterações, conforme a
fase do processo e o maior ou menor grau de convicção sobre a sua culpa: na fase do inquérito
policial, ela é “investigada”, “suspeita”, “averiguada”, “indigitada autora”, “indiciada”; se o
28 Como a suspeita deixou de comparecer à Delegacia para prestar esclarecimentos quanto ao hipotético crime de autoaborto, o Delegado considerou que ela havia também praticado o crime previsto no art. 330, do Código Penal (desobedecer a ordem legal de funcionário público). O Promotor, contudo, desconsiderou o indiciamento de R quanto a esse crime.
131
inquérito se transforma em ação penal, pelo oferecimento da Denúncia pelo Promotor de
Justiça, a pessoa recebe a designação de “denunciada”, “acusada”; a partir do momento em o
Juiz recebe a Denúncia, ela passa a ser “ré”.
Como condições preparatórias ( ∑ ) necessárias ao sucesso do ato, aponta-se a posição
institucional do locutor, no caso uma autoridade policial, e a observação dos preceitos legais
que orientam o procedimento investigatório.
O estado mental pressuposto (ψ) é a crença do locutor na existência de indícios
suficientes de autoria e materialidade pesando contra a indiciada e o desejo de que seus
alocutários (Juiz e Promotor) atentem para eles.
6.1.1.4 Considerações
No Relatório de Inquérito Policial ora analisado, parece-nos que a força ilocucional
resultante do conjunto dos atos de fala que o compõem está voltada para o convencimento do
Promotor e dos demais alocutários, de que a suspeita é culpada pelo crime. A intenção
condenatória por parte do sujeito enunciador se torna clara quando é proferido o ato
declarativo supra-analisado – “indicio formalmente a ré às penas dos artigos 124 e 330 do
CP” – , já que a condição de sinceridade para a expressão desse ato é a crença, por parte da
autoridade policial, de que um crime foi cometido e de que a suspeita é sua autora.
Corroborando essa observação, temos que o próprio conteúdo proposicional de
diversos atos que compõem o proferimento, encobertos por aparente espectro de neutralidade,
revela a intenção condenatória do Delegado de Polícia. Enunciados em que ele reelabora os
depoimentos das pessoas ouvidas no curso da investigação policial, empregando expressões
verbais taxativas quanto à prática do ato criminoso, como em “a testemunha (...) declarou que
na época dos fatos era gerente da Santa Casa e que na paciente R foi necessário fazer
curetagem; “o mesmo [detetive] constatou que foi a autora quem provocou o aborto (...)”.
Nesse último enunciado, por meio do discurso indireto, o Delegado traz ao RIP a voz
do detetive, que é um dos sujeitos do Inquérito Policial, responsável pela investigação in loco
dos fatos supostamente criminosos. Assim, o Delegado não assume sua crença na culpa da
suspeita, mantendo aparente neutralidade, mas, pela reprodução da voz de outro sujeito, acaba
por postular seu propósito persuasivo.
132
Encontramos ainda nessa peça uma referência ao laudo médico como se fosse uma
prova incontestável, empregada como um verdadeiro argumento de autoridade (“Juntou-se
cópia do Laudo Médico, fls. 20, comprobatório da materialidade do delito”), quando, na
verdade, essa foi uma das provas mais debatidas e contestadas ao longo de todo o processo.
De forma categórica, Biazotto (2006) defende que o RIP, como resultado de um
procedimento apenas investigativo, deveria ser um gênero objetivo, elaborado com uma
linguagem neutra, sem juízo de valor ou avaliação por parte de seu autor. Portanto, seu
objetivo não seria nem acusar, nem defender.
Contudo, no RIP sob análise, não há que se falar em neutralidade ou imparcialidade,
uma vez que a conclusão do proferimento é um ato declarativo de indiciamento, portanto, está
evidente a posição da autoridade policial. Parece claro, desse modo, que no decorrer da peça
ele deveria desenvolver uma narrativa que direcionasse o raciocínio do alocutário rumo à
incriminação da suspeita. Dessa forma, pensamos que o propósito subjacente à elaboração do
RIP analisado é mesmo o convencimento do Promotor de Justiça sobre a necessidade de
instauração de uma ação penal contra a indiciada. Nesse sentido, a afirmação de Lima (2006)
e Ardaillon (1994) de que, já a partir do Inquérito Policial, recai sobre o “averiguado” uma
espécie de condenação, é convalidada pelo caso ora analisado.
Não obstante, não podemos deixar de considerar que o locutor adota uma estratégia de
não evidenciar seu propósito persuasivo, já que ele tenta reproduzir em seu RIP também “o
outro lado da questão”, quando, por exemplo, relata indiretamente a fala de uma testemunha
que afirma não se recordar do caso (“A testemunha T3 declarou que não recorda-se do fato”).
Ou ainda, quando inicia a peça modalizando a questão da autoria do delito: Instaurou-se [sic]
os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria
provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no artigo 124 do Código Penal
Brasileiro.
Assim sendo, talvez fosse o caso de se afirmar que o RIP fica nos limites entre o
discurso de visée persuasiva e o discurso que apenas comporta uma dimensão argumentativa,
considerando, com Amossy (2005b) que todo discurso tende a agir sobre o parceiro,
incitando-o a ver e pensar de um certo modo, a partilhar um ponto de vista, mas que nem
sempre se busca com ele o objetivo de persuasão.
Na medida em que o enunciador do RIP elege um ponto de vista em seu proferimento,
mas não o defende abertamente devido às coerções genéricas que não lhe permitem silenciar
quanto ao outro lado da questão, e dada a característica informativa do gênero imposta pela
133
lei, podemos inferir que neste caso ora analisado, o proferimento tem apenas uma dimensão
argumentativa.
Pensando agora este proferimento segundo as categorias de Bazerman e dos demais
autores que tomamos como base teórica, chegamos ao seguinte quadro representativo:
Atos de fala Gênero Conjunto de gêneros Sistema de gêneros Domínio discursivo Fatos sociais
assertivo
declarativo
RIP
Portaria
Ordem de serviço Ofícios
Termos de depoimento Petição ao juiz
RIP
Processo Penal
jurídico
investigação
Quadro 18: RIP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora
134
6.2 O Juízo Singular: da Denúncia à Sentença de Pronúncia
Retomando a sucessão de atos e proferimentos que compuseram o processo
selecionado como corpus, adentramos, a partir desse momento, a instância efetivamente
judicial.
Findas as investigações, o Delegado de Polícia enviou ao Juiz de Direito os autos de
Inquérito com o indiciamento formal de R. O Juiz, por sua vez, encaminhou o feito ao
Promotor de Justiça, pois é a ele que cabe a iniciativa de denunciar o indiciado à justiça, para
que este seja submetido a um processo judicial.
Conforme Ardaillon (1994), a maior parte dos inquéritos policiais instaurados para
apuração de aborto se encerra nesse momento, quando a maioria dos Promotores de Justiça,
olhando o caso concreto, costuma se convencer de que não há como reunir provas de autoria e
materialidade, e pugnar pelo arquivamento do feito. Entretanto, em nosso corpus de pesquisa,
o Promotor se mostrou convencido de que as provas reunidas até ali eram suficientes para a
instauração de um processo criminal, por isso, produziu a peça chamada “Denúncia” e propôs
à ré a suspensão condicional do processo.
Para que o réu faça jus a esse benefício, impõem-se os seguintes requisitos: que a pena
mínima cominada para o delito seja igual ou inferior a 01 ano, que o acusado não esteja sendo
processado ou não tenha sido condenado por outro crime e que a medida seja socialmente
recomendável. A indiciada R, inicialmente, preencheu os requisitos legais, mas algum tempo
depois, ainda no curso do benefício, supostamente deu causa à instauração de outra ação penal
por prática de tráfico de entorpecentes, e teve o gozo desse benefício revogado.
O processo voltou a tramitar. A ré foi intimada para constituir defensor, mas não o fez.
Como ninguém pode ser processado criminalmente sem um advogado para acompanhar a
ação, o Juiz de Direito nomeou um defensor dativo para fazer a defesa da ré. No entanto, a
nomeação foi recusada. Outro advogado foi nomeado na sequência, e também declinou. O
terceiro advogado nomeado aceitou a incumbência e produziu a primeira peça da defesa
nesses autos, a “Defesa Prévia”, alegando sucintamente que os fatos narrados na Denúncia
não eram condizentes com a realidade.
Foi realizada a Audiência de Instrução e Julgamento. As testemunhas novamente
prestaram depoimento só que, desta feita, diante do Juiz de Direito e do Promotor de Justiça.
A primeira pessoa a ser ouvida nessa audiência foi a própria acusada, que mais uma vez
reconheceu os fatos imputados contra ela como verdadeiros.
135
Pode parecer, à primeira vista, que a realização de nova oitiva da acusada e das
testemunhas em juízo é um ato repetitivo, excessivamente burocrático. Mas, na verdade, é
mais uma garantia para o réu, uma vez que são de conhecimento público as práticas de
agressão física e moral por parte de certos policiais brasileiros, que muitas vezes usam de
expedientes violentos para obter a confissão do acusado, levando-o a assumir atos criminosos
e a apresentar informações sob poder de tortura. Em seguida, transcrevemos trecho do
depoimento da acusada diante do Juiz de Direito, desta feita já assistida por um advogado:
Que são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que adquiriu na farmácia uma sonda própria para provocar aborto; que em sua casa introduziu essa sonda na vagina causando a morte do feto; que fez isso por volta de meio dia; que passados uns 15 dias a depoente começou a ter febre, inclusive foi para a cama; que ai procurou a Santa Casa; que ao chegar na Santa Casa verificou que infeccionou; que o médico pediu que enquanto a depoente não dissesse a verdade não iria olhá-la; que nisso a depoente ficou calada; que no outro dia a depoente contou que tinha feito e foi imediatamente para a sala de cirurgia para fazer a curetagem pois a infecção já havia aumentado e atingido o útero da depoente; que fez isso porque já tinha uma menina de 9 meses, estava morando com a sua prima e estava muito difícil; que já foi presa e processada criminalmente; que não bebe, não fuma e não usa drogas; que nessa época já estava separada de seu marido; que não tem condição de pagar um advogado, sendo mantida a nomeação do Dr._. (R)29
Já discorremos sobre a forma como são colhidos os depoimentos. A título de
recordação, lembramos que na fase judicial, eles são tomados segundo as regras do sistema
presidencial. Nesse sistema, somente ao juiz é permitido dirigir as perguntas às testemunhas.
Advogado e Promotor dirigem suas perguntas para o Juiz, que as reformula para a
testemunha, podendo, no entanto, recusar a pergunta se julgar que ela não tem relação com o
processo ou se for repetição de outra já respondida anteriormente. Ao obter a resposta, o juiz
realiza, então, a consignação, ato de ditar ao escrevente o que deve constar nos autos. Na
realidade, verifica-se um processo de mediação entre o que é dito e o que é consignado e de
reacomodação das formas sintáticas.
Na sequência, agindo como manda a lei processual penal, o Promotor de Justiça
produziu a peça intitulada “Alegações Finais do Ministério Público”, onde requereu ao Juiz
que pronunciasse a acusada para julgamento pelo Tribunal do Júri, porque, segundo ele,
estariam comprovadas a autoria e a materialidade do crime (ainda que não existisse um
Exame de Corpo de Delito, entendeu o Promotor que o laudo médico que atestou “aborto
infectado” era suficiente).
29Depoimento prestado por R no primeiro interrogatório em Juízo, fls. 60.
136
O Defensor, em resposta, também fazendo uso do gênero “Alegações Finais”, pediu a
decretação da Impronúncia, postulando a insuficiência do conjunto probatório e a
impossibilidade de comprovação da materialidade do crime.
Abrimos parênteses para explicar que, para que um processo prossiga com chances de
ser bem sucedido, é preciso que existam, inicialmente, pelo menos indícios de que a pessoa
sob a qual recai uma suspeita seja mesmo a autora do crime – trata-se da autoria. A
comprovação da materialidade ocorre quando há provas ou indícios suficientes da ocorrência
de um crime.
Autoria e materialidade são dois conceitos fundamentais do direito penal e processual
penal porque funcionam como uma espécie de franquia a autorizar uma absolvição, quando
ausentes, ou a fundamentar uma condenação, quando comprovados.
Na verdade, os dois conceitos atuam como “coringas” a serem explorados por
acusação e defesa. Em torno desses dois pólos, giram as interpretações doutrinárias, as
tentativas comprobatórias de acusação e defesa e a atribuição do qualificativo de criminoso a
um fato. Ao seu redor, constitui-se uma “rede de relações de causa e efeito, com malhas mais
ou menos frouxas por onde se insinuam e se instauram todas as dúvidas possíveis”.
(ARDAILLON, 1994, p. 227).
No caso analisado neste trabalho, observamos que toda a argumentação de acusação e
defesa foi tecida a partir dos conceitos de autoria e materialidade, pois a falta de Exame de
Corpo de Delito deixou dúvidas quanto à existência do crime: a acusada estava mesmo
grávida ou era apenas uma suspeita de gravidez? Há que se observar que, se não existisse
gravidez, o crime seria impossível30.
Para o Juiz responsável pelo feito ora analisado, entretanto, parece não ter havido
dúvidas. Em seu ponto de vista, a materialidade do fato restou incontroversa e a autoria, não
negada pela ré, foi confirmada pelo conjunto probatório. Por esse motivo, entendeu por bem
pronunciar a acusada, determinando seu julgamento pelo Júri Popular da Comarca.
Nessa primeira fase do processo, foram produzidas várias peças processuais e
realizados diversos atos burocráticos para o bom andamento do feito, conforme as regras do
ordenamento jurídico pátrio.
Por opção metodológica, selecionamos como objeto de análise a Denúncia, que é a
peça inaugural do processo penal; as Alegações da Acusação e as Alegações da Defesa, por
30 O crime impossível tem lugar quando, por ineficácia absoluta do meio ou por impropriedade absoluta do objeto, torna-se impossível a consumação do crime. Exemplos clássicos: desferir facadas em um cadáver ou realizar práticas abortivas em mulher que não está grávida (DELMANTO et al, 1998).
137
seu forte teor argumentativo, e a Decisão de Pronúncia, por encerrar a primeira parte do feito,
produzindo grande alteração na realidade social.
6.2.1 A Denúncia
A Denúncia, peça inaugural do Processo Penal, é um dos documentos que fazem parte
do conjunto de gêneros de produção exclusiva do Promotor de Justiça. Trata-se de um gênero
discursivo próprio do domínio jurídico e que se submete, de maneira bastante acentuada, às
coerções genéricas e institucionais dos quadros onde é produzida.
Ao elaborar essa peça, o Promotor deve estar atento ao que prescreve a lei processual
penal para sua redação, ou seja, tanto o conteúdo temático quanto a forma composicional
desse gênero são previamente estabelecidos em lei. Dessa forma, há pouca liberdade para o
locutor inovar nesses aspectos, restando-lhe um pouco mais de flexibilidade apenas no que
respeita ao estilo pessoal.
A orientação normativa para sua elaboração está contida no artigo 41 do Código de
Processo Penal, onde se lê que a Denúncia deverá conter a exposição do fato criminoso e das
circunstâncias que o circundaram, a identificação mais completa possível do autor do fato e o
rol de testemunhas, se necessário (BRASIL, 2011).
Se for imprecisa, omissa ou pouco clara, pode ser rejeitada pelo Juiz, pois dificultaria
a realização da defesa por parte do indiciado, uma vez que, sem o conhecimento exato do que
lhe é atribuído, ele não pode elaborar uma defesa completa. Como já se afirmou, vigoram no
Processo Penal alguns princípios que tentam tornar a relação entre o Estado, que é o órgão
que detém a persecução penal, e o réu, um pouco menos desequilibrada, ao conceder a este, a
parte mais fraca, algumas garantias de que não será sumariamente condenado, sem ao menos
ter o direito de defesa.
Tradicionalmente, ao elaborarem suas Denúncias, os Promotores de Justiça optam por
fazer a narração dos fatos imputados a um sujeito-autor, seguida da citação do artigo penal em
que essa conduta encontra guarida no Código Penal e do pedido de acolhimento da peça pelo
Juiz responsável pelo processo.
Refletindo sobre as condições enunciativas consubstanciadas no gênero Denúncia,
observamos que um discurso dessa natureza só pode ser produzido em um domínio discursivo
como o jurídico, onde locutor e alocutário estão investidos de um estatuto formal de
138
operadores do direito, e se movimentam no interior de um quadro institucional em que as
regras para a troca linguageira são previamente criadas por meio de um processo legislativo
típico. Nesse caso, uma instituição extralinguística garante o estatuto formal de que são
investidos os sujeitos da enunciação. Da mesma forma, o sucesso dos atos ilocucionários
verificados nesse âmbito está relacionado às posições particulares ocupadas por falante e
ouvinte no interior desta instituição.
Cabe ressalvar que, apesar de as instituições extralinguísticas conferirem estatuto de
uma maneira relevante para a força ilocucionária, nem todas essas diferenças derivam de
instituições. Como afirma Searle, “(...) um assaltante armado, por possuir um revólver, pode
ordenar a suas vítimas – em oposição, por exemplo, a pedir, rogar ou implorar – que levantem
as mãos. Seu estatuto, porém, não deriva de uma posição numa instituição, mas da posse de
uma arma.” (SEARLE, 1995a, p. 10-11).
Na Denúncia ora analisada, o locutor se identifica e esclarece a posição de onde fala,
que é a de Promotor de Justiça a serviço de uma instituição judiciária – o Ministério Público
do Estado de Minas Gerais. Ao mesmo tempo, instaura seu alocutário imediato, o Juiz de
Direito, que se constitui como uma autoridade legal, e apresenta o referente de seu discurso,
que é a pessoa sobre a qual recai a suspeita de haver cometido um crime.
Nessa peça, em que a constituição do alocutário imediato parece bem clara, há também
uma série de alocutários mediatos, ou seja, sujeitos também atingidos de alguma forma pelos
efeitos do oferecimento da Denúncia, e que serão levados a praticar alguma ação a partir
desse momento. Por exemplo, uma vez recebida a peça inaugural pelo Juiz, abre-se para a
denunciada a possibilidade/necessidade de constituir advogado e preparar sua defesa. Como
parte de seu trabalho, o Defensor deverá conhecer o teor da acusação para tomar as medidas
cabíveis.
Da mesma forma, oficiais de justiça, peritos, policiais e outros serventuários terão que
praticar atos para garantir o andamento prático do processo em uma secretaria judicial, como
redigir e entregar mandados e intimações; elaborar termos; executar pedidos de diligências,
etc.
Há que se considerar ainda que, se o proferimento do Promotor for bem sucedido, a
denunciada pode ser enviada a julgamento pelos jurados do Tribunal do Júri. Estes terão
acesso a todos os documentos do processo e serão instados a dar o veredicto sobre o caso.
Assim, observamos que o universo de alocutários mediatos é bem amplo.
Refletindo a partir do excerto que consideramos mais representativo dessa peça
processual, chegamos ao seguinte quadro enunciativo:
139
Locutor : Promotor de Justiça
Enunciação (EÃO)
Enunciado: O Ministério Público do estado de Minas Gerais, através do Promotor de Justiça desta comarca, no exercício de seu Ministério, vem respeitosamente perante este juízo, com suporte no incluso Procedimento Especial, oferecer a presente Denúncia em desfavor de: R , brasileira, separada judicialmente, profissão do lar, filha de _ e de _ , domiciliada à Rua _ , no Município de _ , pelos seguintes fatos...
Alocutário imediato: Juiz de Direito mediato: Advogado (ré), funcionários da Justiça, jurados, Delegado, etc
Quadro 19: Condições enunciativas da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora
A aplicação dos parâmetros da TAF a este proferimento, aliada à investigação das
condições enunciativas determinantes de sua produção, permite uma compreensão mais
aprofundada da natureza do gênero Denúncia.
Para fins metodológicos, dividimos a peça ora analisada em três partes: prólogo,
desenvolvimento e desfecho, e aplicamos os procedimentos de análise em cada uma delas,
como se vê em seguida.
6.2.1.1 Prólogo
O prólogo constitui a abertura do proferimento.
Nessa parte, o locutor se apresenta, institui seu alocutário e enuncia o ato mais
representativo desse gênero, o qual tem a força de um declarativo formal.
Vejamos:
Enunciado Estrutura
ππππ: declarativo
µ: formal θ: locução verbal (vem - verbo auxiliar, oferecer -
infinitivo) presente do indicativo terceira pessoa do singular
Locutor: que o Promotor de Justiça possa oferecer Denúncia
∑
Alocutário: que o Juiz seja capaz de receber a Denúncia
O Ministério Público do estado de Minas Gerais, através do Promotor de Justiça desta comarca, no exercício de seu Ministério, vem respeitosamente perante este juízo, com suporte no incluso Procedimento Especial, oferecer a presente Denúncia em desfavor de: R, brasileira, separada judicialmente, profissão do lar, filha de _ e de _, domiciliada à Rua _, no Município de_ , pelos seguintes fatos...
ψψψψ: crença + desejo
Quadro 20: Componentes de um ato de fala no prólogo da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora
140
Quando enunciado por uma autoridade investida de poder, em um meio onde pesam
fortes restrições institucionais, conforme se comentou acima, o ato de “oferecer denúncia”
adquire configuração de ato declarativo (π), realizado no modo formal (µ).
Apesar de o conteúdo proposicional do ato aparentar assertividade, na verdade, seus
efeitos práticos são muito mais amplos do que simplesmente descrever um estado de coisas.
Como esclarece Searle, embora as declarações tentem levar a linguagem a corresponder ao
mundo, “não o fazem através da descrição de um estado de coisas existente (assertivos), nem
procurando levar alguém a produzir um estado de coisas futuro (como os diretivos e os
compromissivos)”. (SEARLE, 1995a, p. 29).
Isso ocorre porque os atos declarativos possuem dupla direção de ajustamento entre
palavra e mundo, ou, conforme ensina Mari:
na dupla direção de ajustamento, um estado de coisas de um mundo possível é alterado para se ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento que o anunciou – MUNDO-PALAVRA – , da mesma forma que o conteúdo proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na perspectiva de seu locutor – PALAVRA-MUNDO. Assim, anula-se a precedência de linguagem sobre ação e vice-versa, antes considerada como fundamento para direções de ajustamento precedentes. (MARI, 2001, p. 115).
Ainda segundo Mari (2001), as marcas mais visíveis da dupla direção de ajustamento,
observadas na força ilocucional que se realiza no ponto declarativo, verificam-se em situações
sobre as quais pesam convenções institucionalizadas de usos da língua. No enunciado ora em
análise, a partir do momento em que o Promotor oferece a Denúncia, há uma alteração
profunda na situação jurídica da pessoa denunciada, ao mesmo tempo em que se institui para
o Juiz a perspectiva de aceitação, ou recusa, dessa peça acusatória. Materializam-se, assim, as
possibilidades de que a acusada seja condenada pela prática de um crime, através da
instauração de um processo judicial de natureza criminal, que pode se encerrar com uma
sentença condenatória, com imposição de pena e declaração positiva de antecedentes
criminais.
Ainda a esse respeito, parece-nos também que o significado literal da sentença – vem
oferecer a presente denúncia – não coincide com o significado da emissão do falante. A
justificativa para essa constatação está na observação de Searle (1995a) de que alguns
membros da classe das declarações sobrepõem-se a membros da classe dos assertivos31, pois
31 Ao estabelecer as cinco maneiras primitivas de uso natural da linguagem, ou as cinco categorias de atos ilocucionários, Searle (1995a) não descarta a hipótese de que uma mesma emissão se inclua em mais de uma categoria.
141
em certas situações institucionais, não basta que o enunciador apure os fatos, é preciso que ele
tome providências. Ao denunciar alguém, o Promotor está realizando um ato que vai muito
além de oferecer um simples documento: na realidade, ele está colocando em movimento todo
o aparato judicial com vistas à persecução penal da pessoa denunciada.
Retornando às condições de conteúdo proposicional (θ), é interessante observar a
opção do locutor pelo emprego da locução verbal “vem oferecer” (conjugação composta de
“vem” - verbo auxiliar e “oferecer” - infinitivo), em vez da forma simples do presente do
indicativo “oferece”. Parece-nos que essa opção pela forma mais rebuscada faz parte do
repertório dos operadores do Direito32.
Por outro lado, a forma verbal flexionada na terceira pessoa do singular denota uma
tentativa de apagar marcas de subjetividade do locutor, conferindo-lhe um distanciamento em
relação ao caso concreto, afinal, o Promotor fala em nome do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, e não em nome próprio.
Para a efetivação dessa força ilocucional de propósito declarativo, é preciso que
condições preparatórias ( ∑ ) sejam preenchidas por parte dos interlocutores. Assim, além do
estatuto formal que se deve fazer presente em relação a eles, o locutor deve estar habilitado a
oferecer a Denúncia, conforme as leis de organização judiciária, a Lei Orgânica do Ministério
Público e outras em vigência, ao mesmo tempo em que o alocutário imediato, a quem se
direciona o proferimento, deve ser capaz de recebê-lo.
Por outro lado, o ato de “oferecer denúncia” expressa, como condição de sinceridade
(ψ) ψ) ψ) ψ) por parte do locutor, um estado mental de crença na culpa de R e de desejo de fazer pesar
sobre ela um processo de natureza criminal.
6.2.1.2 Desenvolvimento
No desenvolvimento, o Promotor faz uma exposição detalhada do fato criminoso
supostamente praticado pela suspeita. Aplicando as categorias da TAF a um enunciado da
parte narrativa da Denúncia, chegamos ao quadro abaixo:
32 Sobre esse assunto, vide discussão em Fagundes (1995).
142
Enunciado Estrutura
ππππ: assertivo
µ: narração
θ: verbo conjugado no pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
Aproximadamente no dia 23 de setembro de 1999, a denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.
ψψψψ: crença Quadro 21: Componentes de um ato de fala no desenvolvimento da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora
A exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias é um requisito
imposto pelo artigo 41, do Código de Processo Penal, para que a Denúncia possa ser recebida
pelo Juiz (BRASIL, 2011). Essa determinação legal se traduz, no documento ora analisado,
pela predominância de atos assertivos (π) nessa parte, no modo narração (µ), ou seja, atos que
reportam um estado de coisas pré-existente à enunciação. Trata-se, portanto, de uma direção
de ajustamento palavra-mundo, já que o proferimento reporta uma suposta realidade
previamente existente. É o que se verifica no enunciado sob análise.
Como a função da Denúncia é relatar os fatos ocorridos no passado a fim de persuadir
o alocutário da conveniência de executar uma ação futura, o relato da conduta atribuída à
denunciada é feito pelo emprego de verbos que expressam um tempo passado em contraste
com o instante da enunciação. Obedecendo a essa condição de conteúdo proposicional (θ), o
emprego do pretérito imperfeito do indicativo remonta ao tempo mais distante: “a
denunciada, que estava grávida de dois meses (...)”. A interrupção ao estado de gravidez é
narrada com o emprego do pretérito perfeito do indicativo: “praticou, sozinha, um aborto
(...)”. A articulação desses dois tempos verbais, sem qualquer modalização, confere ao
enunciado um efeito de realidade, certeza, afastando da mente do alocutário qualquer dúvida
em relação à ocorrência do fato criminoso.
A lei processual penal impõe ainda que, para o oferecimento da Denúncia, o Promotor
deve encontrar nos autos do Inquérito Policial elementos que formem sua convicção pelo
menos quanto à ocorrência do crime (ou materialidade). No crime de aborto, por exemplo,
pode haver incerteza quanto à pessoa responsável pela destruição do feto, mas não podem
subsistir questionamentos acerca da veracidade da situação de gravidez. Por isso, pode-se
afirmar que o estado psicológico expresso na realização desse ato ilocucionário, ou condições
de sinceridade do ato (ψ), é a crença do locutor na conduta criminosa da acusada.
Assim, paralelamente às condições de sinceridade, avultam como condições
preparatórias (∑) a possibilidade de o locutor formar sua convicção com base nas provas
143
produzidas até ali, como os depoimentos das testemunhas, a confissão da indiciada e o exame
médico pericial.
Assim como fez o Delegado de Polícia no Relatório de Inquérito Policial já analisado,
a menção do Promotor ao laudo médico adquire contorno de argumento de autoridade, sobre o
qual o locutor se apoia para justificar sua tese acusatória: “Com isso, a autora deu entrada no
nosocômio da Santa Casa, neste Município, com os sintomas de aborto provocado, conforme
o laudo médico, sendo necessário providências.” (fls. 2).
6.2.1.3 Desfecho
No desfecho, o Promotor de Justiça expressa a natureza da pretensão que justifica seu
ato de oferecer a Denúncia:
Enunciado Estrutura
ππππ: diretivo
µ: requerimento
θ: verbo conjugado no presente do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: locutor capaz de oferecer a Denúncia; alocutário imediato capaz de recebê-la
Isto posto, tendo a denunciada incorrido nas sanções do art. 124 do Código Penal, requer esta Promotoria de Justiça sua citação para interrogatório e defesa que tiver, ouvindo-se oportunamente as testemunhas abaixo arroladas, devendo ser, ao final, condenada nas penas que lhe couberem.
ψψψψ: desejo
Quadro 22: Componentes de um ato de fala no desfecho da Denúncia Fonte: Elaborado pela autora
Nesse enunciado, emerge um ato realizado no ponto diretivo (π), no modo (µ)
requerimento. Por meio dele, o Promotor requer ao Juiz que acolha a Denúncia e que tome as
providências necessárias para o prosseguimento do feito, com a citação da denunciada.
Trata-se de uma ação a ser realizada pelo alocutário em um momento posterior ao da
enunciação, portanto, as condições de conteúdo proposicional (θ) comportam um verbo
conjugado no presente do indicativo, na terceira pessoa do singular (apagando marcas de
subjetividade) e apontam para um tempo futuro. A direção de ajuste é mundo-palavra, pois
antes de o locutor proferir a peça acusatória, não havia no mundo nenhum requerimento de
pronúncia da acusada.
Uma questão interessante a ser pensada diz respeito às condições preparatórias ( ∑ )
do ato e todas as implicações daí decorrentes. Sabemos que um ato realizado no ponto
144
diretivo implica um compromisso entre locutor e alocutário, no sentido de que este último
realize uma ação futura nos moldes do desejo manifestado pelo primeiro. Pensamos que, para
fazer um requerimento de recebimento da Denúncia ao Juiz, a condição preparatória geral é a
de que o locutor esteja investido do estatuto de Promotor de Justiça e que, de acordo com a lei
processual penal, seja o titular da ação. O alocutário, por sua vez, deve estar investido do
estatuto de Juiz de Direito e deve estar habilitado, também pela lei processual, a funcionar
nesse processo. Portanto, também como condição preparatória, emerge a possibilidade de o
enunciatário vir a acatar o requerimento do enunciador.
Quanto às condições de sinceridade (ψ), o estado psicológico expresso nesse ato
diretivo é o desejo, por parte do enunciador, de que a Denúncia seja acolhida pelo
enunciatário, com a consequente instauração do processo penal.
Relacionando-se às condições de sucesso do ato, coloca-se a questão da força com que
o propósito ilocucionário é realizado. Searle (1995a) explica que atos como “sugiro irmos ao
cinema” e “insisto em irmos ao cinema” possuem o mesmo propósito ilocucionário, que é o
de tentar levar o alocutário a fazer uma ação futura. Contudo, os dois enunciados têm graus
variáveis de força ou compromisso. O autor vincula essa variação quanto à intensidade da
força a diferenças de estatuto entre os interlocutores. Voltamos ao exemplo da relação entre
um general e um soldado:
[...] se o general convida o soldado raso a limpar o quarto, trata-se, provavelmente, de um comando ou ordem. Se o soldado raso convida o general a limpar o quarto, é provável que se trate de uma sugestão, proposta ou pedido, mas não de uma ordem ou comando. (SEARLE, 1995a, p. 8)
No enunciado ora analisado, a posição estatutária do Promotor conferiria exatamente
qual grau de intensidade a um ato diretivo/requerimento, quando dirigido a um Juiz de
Direito? Qual a posição hierárquica de um e outro em um processo penal? A Lei nº 8.906/94,
em seu art. 6 º, prevê que “Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados
e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito
recíprocos” (BRASIL, 1994).
É certo também que o Juiz, no exercício de seu mister, dispõe da faculdade do livre
convencimento. Com base em sua convicção, fundamentada nos elementos probatórios dos
autos, poderá receber ou não a Denúncia (contudo, se decidir pelo não recebimento, abre-se a
possibilidade, ao Promotor, de interpor recurso da decisão denegatória).
De qualquer forma, considerando-se que a especificação de um modo para o ponto
diretivo requer uma avaliação direta do grau de hierarquia entre os interlocutores, e tendo em
145
vista que nesse caso concreto trata-se de sujeitos de mesmo nível hierárquico, pensamos que a
esse ato corresponde um grau de intensidade considerável, razão pela qual optamos pela
classificação do mesmo como requerimento e não como pedido.
O modo (µ) pedido não seria de todo descabido, mas parece-nos, ademais, que em
uma situação onde pesam as restrições institucionais, o termo mais técnico a ser empregado é
mesmo “requerimento”. A preferência por essa expressão é também referendada pelo
conteúdo do verbete no dicionário Aurélio (1999, p. 1749). Uma das definições atribuídas a
requerer é “encaminhar (petição) a autoridade ou pessoa em condições de conceder o que se
pede”. E ainda: “Pedir em juízo; impetrar ação de.”
6.2.1.4 Considerações
De uma maneira geral, refletindo acerca dos atos ilocucionários analisados neste
proferimento, pensamos que ao “oferecer a denúncia”, o Promotor enuncia um ato declarativo
fundamental, uma vez que, a partir desse momento, instaura-se um estado de coisas novo: a
mulher que era apenas suspeita, alvo de uma investigação policial, agora encontra-se
denunciada perante o juízo criminal.
No entanto, para que esse documento realmente produza os efeitos amplos que são
esperados dele no universo jurídico, é necessária uma contrapartida por parte do Juiz, pois ele
tem a faculdade de aceitar ou não essa peça processual que lhe é oferecida pelo Promotor. Por
esse motivo, ganha destaque também o conteúdo diretivo do gênero Denúncia.
Aliás, esse é um ponto que gera grande polêmica entre os estudiosos do Direito: há
uma discussão na doutrina jurídica acerca do momento, de fato, em que se inicia uma ação
penal – se no momento do oferecimento da Denúncia pelo órgão do Ministério Público, ou se
no momento em que ela é acolhida pelo julgador.
Neste trabalho, consideramos que a instauração da relação processual penal ocorre
com o recebimento da Denúncia pelo julgador, de forma que, a nosso ver, o ato de oferecer
provoca, sim, uma alteração na realidade social, mas essa alteração é limitada e só se
completa com o ato de recebimento por parte do Juiz de Direito. A partir daí, está completa a
relação processual.
Dessa forma, dada a configuração da Denúncia como um gênero cujo propósito
ilocucionário é o de uma declaração aliada a um requerimento, consideramos que, apesar da
146
forma composicional aparentemente narrativa, a Denúncia é uma peça caracterizada por uma
forte visée persuasiva (AMOSSY, 2005b). A narrativa, aqui, obedece a propósitos claramente
persuasivos, pois o Juiz de Direito decidirá sobre a sorte da acusada de acordo com o grau de
persuasão que o Promotor tiver conseguido despertar nele.
Aplicando à Denúncia os critérios de Bazerman, temos o seguinte quadro sintético:
Atos de fala
Gênero Conjunto de gêneros Sistema de gêneros
Domínio discursivo
Fatos sociais
declarativo assertivo diretivo
Denúncia
Denúncia Parecer
Requerimento Declaração
Alegações Finais Contra-razões
recursais Libelo
Debates orais
Processo Penal
jurídico
acusação
Quadro 23: Denúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora
6.2.2 A Defesa Prévia
A Defesa Prévia (ou alegações escritas) é produzida pelo Defensor logo após o
interrogatório da ré. De natureza facultativa, essa petição dá uma primeira mostra da
estratégia que se pretende desenvolver a favor da ré na instrução criminal e traz o rol de
testemunhas de defesa.
A praxis forense ensina que o advogado deve ser sucinto para não revelar os detalhes
da tese que defenderá em plenário, caso seu cliente seja mesmo levado a julgamento no Júri, o
que facilitaria o trabalho da acusação.
Por uma opção de natureza metodológica, não analisaremos a Defesa Prévia produzida
no processo selecionado como corpus. Passamos, então, à investigação das Alegações do
Ministério Público, cronologicamente, a peça produzida na sequência do processo penal.
147
6.2.3 As Alegações Finais do Ministério Público
As Alegações Finais são apresentadas em um momento processual decisivo, logo
depois da audiência de instrução e julgamento, quando já foram produzidas todas as provas
passíveis de incriminar ou inocentar um réu no processo, como a oitiva das testemunhas e a
juntada de documentos. Portanto, nessa etapa, cabe à acusação e à defesa elaborarem suas
estratégias se apoiando no que se considera a “verdade dos autos”, que, como se afirmou, não
necessariamente condiz com a verdade factual.
As Alegações não se constituem como um gênero exclusivo do Promotor de Justiça:
tanto o membro do Ministério Público quanto o Defensor da ré terão oportunidade de
apresentá-las, oralmente (em audiência) ou por escrito, lembrando que em nosso corpus,
acusação e defesa optaram pela apresentação de alegações escritas, como faculta a lei
processual.
Como elas finalizam a preparação do processo para que o Juiz profira seu decreto
determinando a pronúncia ou a impronúncia da ré, pode-se considerá-las o ponto alto da
argumentatividade na primeira etapa do Processo Penal.
As condições enunciativas encontradas aqui se assemelham às condições verificadas
na Denúncia. O Promotor de Justiça, ao proferir suas Alegações, instaura um alocutário
imediato, que é o Juiz de Direito, e também um alocutário mediato, que é o Defensor da ré,
seu oponente nesse debate que tem o Juiz como centro de onde emanam as decisões.
Há que se considerar também que as peças processuais produzidas pelo Promotor e
pelo Defensor serão apresentadas na sessão de julgamento, quando os jurados terão acesso a
seu conteúdo, assim como as pessoas que estiverem presentes à audiência.
Os sujeitos processuais secundários, no exercício de suas atividades profissionais,
também têm acesso ao material produzido nos autos e acabam se tornando interlocutores das
instâncias de acusação, defesa e julgamento. Em algumas circunstâncias, configuram-se até
mesmo como alocutários imediatos do juiz e do Promotor, quando estes determinam que
cumpram determinada tarefa, como expedir documentos, entregar mandados e citações.
Considerando esse universo amplo de alocutários, esquematicamente, as condições
enunciativas desse proferimento podem ser representadas da seguinte forma:
148
Locutor : Promotor de Justiça
Enunciação (EÃO)
Enunciado: Ante ao exposto, requer o Ministério Público seja a acusada pronunciada, nos exatos termos da denúncia.
Alocutário imediato: Juiz de Direito mediato: Advogado (ré), funcionários da Justiça, jurados, Delegado, etc
Quadro 24: Condições enunciativas das Alegações Finais do Ministério Público Fonte: Elaborado pela autora
Não encontramos na legislação nenhuma prescrição especificamente quanto à forma
de se redigirem as Alegações, mas os operadores do direito seguem, com maior ou menor
rigor, uma fórmula já canonizada nos manuais de redação forense, onde se observa uma
divisão estrutural da peça em três partes distintas, que são o relatório, o fundamento e o
requerimento33.
Esse foi o molde seguido pelo Promotor no proferimento ora analisado, como se vê em
seguida:
6.2.3.1 Relatório
No caso em tela, o Promotor inicia sua peça traçando um relato sintético dos fatos
supostamente praticados pela ré e que teriam dado causa à instauração da Ação Penal. A essa
primeira exposição, o acusador atribui o título de relatório.
No quadro abaixo, selecionamos um enunciado típico dessa parte das Alegações:
Enunciado Estrutura ππππ: assertivo
µ: narração
θ: locução verbal, pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
MM. Juiz, Teve início a presente ação penal através de denúncia contra _ , dando-lhe como incursa nas penas do 124, CP, pois, no dia 23-09-99, a denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou um aborto, usando uma sonda que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto. ψψψψ: crença
Quadro 25: Componentes de um ato de fala no relatório das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora
33 Nos proferimentos analisados até aqui, procedemos a uma divisão estrutural de suas partes e atribuímos a elas os títulos de prólogo, desenvolvimento e desfecho. Nas Alegações Finais da Acusação, contudo, o próprio autor da peça (Promotor de Justiça), deu nome às suas partes, por isso, optamos por respeitar o projeto autoral e designar as partes conforme planejamento do Promotor.
149
Como no enunciado supra, os atos de fala expressos nessa parte são
predominantemente assertivos (π), no modo (µ) narração. Da mesma forma que na parte
narrativa da Denúncia, aqui também o Promotor dá uma orientação argumentativa à sua fala,
uma vez que, entre o universo de acontecimentos factuais e processuais delineados até aquele
momento, ele elege apenas aqueles que revelam um suposto caráter duvidoso da ré,
executando, com isso, um projeto de persuasão que tem como uma de suas estratégias a
construção de uma imagem negativa da acusada.
O conteúdo proposicional (θ) do ato assertivo, no modo narração, obedece à condição
de que a forma verbal contenha uma expressão de passado em contraste com o instante da
enunciação, que é o do oferecimento das Alegações.
Nesse excerto, observamos a instauração de quatro situações temporais diferentes:
- o momento da enunciação, que é o presente (oferecimento da peça);
- o momento em que se iniciou a perspectiva de ação penal, com a apresentação da
Denúncia (“teve início a presente ação penal ...” - pretérito perfeito do indicativo);
- a situação de gravidez da acusada que, por ser um estado que perdurou no tempo, foi
narrado no pretérito imperfeito do indicativo (“estava grávida”) e, finalmente,
- o momento em que teria sido interrompida a gestação, narrado por meio do pretérito
perfeito do indicativo (“praticou um aborto...”).
As condições preparatórias do ato ( ∑ ), além da posição estatutária dos sujeitos,
relacionam-se à convicção presumida do locutor quanto à prática do delito pela ré, convicção
esta fundamentada nas possíveis provas produzidas até ali, como já se comentou, e a condição
de sinceridade (ψ)ψ)ψ)ψ), nesse enunciado, é a expressão da crença do Promotor de Justiça no estado
de coisas reportado.
6.2.3.2 Fundamento
150
Enunciado Estrutura
ππππ: assertivo
µ: afirmação
θ: verbo conjugado no tempo pretérito perfeito do indicativo, terceira pessoa do plural ∑: posição estatutária dos interlocutores; o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo, confessou a prática do delito previsto no art. 124 do CP, dizendo que estava grávida de 02 meses e introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto, agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar de mais uma criança.
ψψψψ: crença
Quadro 26: Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora
Depois de relatar os fatos criminosos imputados à ré, o locutor passa a comentar as
provas e atos produzidos durante o processo judicial, como a proposta de suspensão
condicional do processo e a subsequente revogação do benefício; o não comparecimento da
acusada ao primeiro interrogatório designado pelo juiz; a apresentação de defesa prévia e a
realização posterior de audiência de instrução e julgamento, com interrogatório da ré e oitiva
de testemunhas. Nessa parte da narrativa, percebe-se que o Promotor faz um recorte, no
universo processual, daqueles elementos probatórios hábeis para enfatizar a culpa da ré e
descarta outros elementos que poderiam levantar dúvidas na mente de seu alocutário.
No excerto analisado, o ato ilocucional se realiza no ponto assertivo (π), no modo (µ)
narração. O locutor expõe que a acusada confessou a prática do delito e, por meio do discurso
relatado, introduz as falas atribuídas a ela a fim de comprovar a tese da acusação.
Ao examinarmos a peça denominada Relatório de Inquérito Policial, afirmamos que o
discurso relatado, que se concretiza nas modalidades de discurso direto e ou discurso indireto,
é muito utilizado pelos diversos sujeitos processuais na construção dos proferimentos por
meio dos quais se manifestam ao longo da tramitação de um processo penal. No caso do RIP,
selecionamos um excerto em que o locutor Delegado de Polícia empregou o discurso indireto
a fim de trazer a seu proferimento a voz de uma das testemunhas, com o intuito de comprovar
a tese por ele defendida.
No enunciado que analisamos agora, verifica-se também o emprego do discurso
relatado, na forma discurso indireto, mas desta feita, o enunciador retoma o depoimento
produzido pela ré (e não por uma testemunha), obtido pelo procedimento específico da lei
processual penal, que é o interrogatório do acusado.
O interrogatório encontra-se disciplinado no Código de Processo Penal pelos artigos
185 a 196, onde estão previstas normas relativas à forma e ao conteúdo das perguntas a serem
elaboradas pela autoridade e dirigidas ao réu (BRASIL, 2011). Da inteligência desses artigos,
tem-se que o interrogatório pode ser efetuado em vários momentos processuais: no inquérito
151
policial, no auto de prisão em flagrante, logo após o recebimento da denúncia e antes da
defesa prévia, no plenário do Júri, etc.
Em nosso corpus, a ré foi interrogada pela primeira vez durante o Inquérito (fls. 34),
pela segunda vez, na audiência de instrução e julgamento (fls. 60) e, pela terceira e última
vez, na sessão de julgamento do Tribunal do Júri (fls. 172). Portanto, são três momentos
enunciativos completamente distintos, ainda que nos três a mesma pessoa seja a declarante.
É interessante observar que o discurso relatado, introduzido pelo verbo dicendi
“dizendo”, é empregado pelo locutor com função argumentativa. Vejamos:
A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo, confessou a prática do delito previsto no art. 124 do CP, dizendo que estava grávida de 02 meses e introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto, agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar de mais uma criança. (Promotor de Justiça)34
Inicialmente, observamos que, ao inserir no enunciado o conteúdo da confissão da
acusada, via discurso indireto, o locutor confere maior autenticidade à sua narrativa segundo a
qual ela de fato cometeu um crime. A descrição detalhada do modo como a conduta teria sido
praticada, a menção ao instrumento usado para destruir o feto e ao motivo que teria dado
ensejo ao crime, todos esses detalhes enriquecem a narrativa e produzem o efeito de “presença
na consciência” do alocutário.
Conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), o efeito de “presença na consciência”
é um dos elementos que reforçam a persuasão nos argumentos de ilustração. Como esses
argumentos não dependem da lógica, mas da experiência do auditório e dos elos reconhecidos
entre as coisas, eles tornam possível uma maior proximidade entre orador e auditório no que
diz respeito às crenças compartilhadas e, assim, exercem forte poder de persuasão.
Observamos também que, ao retomar o primeiro depoimento da ré (colhido durante o
Inquérito) e equipará-lo ao segundo depoimento (colhido em juízo), o locutor estabelece uma
relação de comparação entre dois termos, de maneira a justificar um termo a partir do outro.
Estamos aqui diante de um argumento de comparação, conforme definição de Perelman e
Olbrechts-Tyteca (1996), introduzido pelo operador “tanto quanto”.
Na realidade, o argumento só é considerado rigoroso se comparar realidades do
mesmo gênero, que possam ser submetidas ao mesmo critério. Quando se comparam
realidades heterogêneas, tende-se – muitas vezes erroneamente – a torná-las homogêneas35.
34 Alegações Finais do Ministério Público, fls. 67. 35 Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), o argumento de comparação é quase-lógico por considerarem que medida é um ato matemático. Para Reboul (2004), a quem seguimos nesse aspecto, o que se mede é sempre
152
Em “A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo, confessou a prática do delito previsto no
art. 124 do CP (...)”, o locutor compara realidades de natureza heterogênea, já que a confissão
feita por uma pessoa ao ser interrogada por um Delegado de Polícia, sem o acompanhamento
de um advogado e sem a garantia do contraditório, não tem o mesmo valor de uma confissão
realizada em Juízo, diante de um Juiz de Direito e na presença de um defensor constituído. A
própria doutrina jurídica já reconheceu essa divergência e atribui valor reduzido à confissão
perante a polícia.
Ainda nesse enunciado, na menção aos motivos que teriam ensejado a prática delitiva,
(“agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar
de mais uma criança”), notamos que o lugar comum da qualidade é chamado a justificar a
conduta da ré e assim tornar mais verossímil a hipótese de que ela teria mesmo praticado o
aborto voluntário. O operador argumentativo “porque” introduz a justificativa para o ato de
abortar: quanto mais filhos, menor a possibilidade de subsistência da família, portanto, maior
a possibilidade de uma gravidez não-planejada ser dolosamente interrompida.
Se, de acordo com Ducrot, considerarmos o topos como um princípio escalar que
relaciona dois predicados graduais, encontramos neste enunciado os predicados: (P) gerar
filhos e (Q) condições de subsistência. Assim, teríamos dois predicados graduais [P (+ filhos),
Q (- subsistência)] que compõem um topos extrínseco, regendo o encadeamento entre os
enunciados e dando abertura para a incidência de uma crença socialmente compartilhada de
que as altas taxas de natalidade entre as classes populares justificam suas precárias condições
de vida.
As condições de conteúdo proposicional (θ) desse ato assertivo refletem as diversas
cenas enunciativas encaixadas no enunciado pelo discurso relatado. Assim, observamos que:
- o primeiro tempo é o da enunciação, o presente, tomado como referência (tempo em
que são apresentadas as Alegações);
- o segundo, é o tempo em que os fatos teriam se desenrolado na prática (quando a ré
supostamente “introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto” - verbo
conjugado no pretérito perfeito do indicativo, mostrando a certeza do locutor quanto à
ocorrência do ato);
- o terceiro, é o momento processual em que a acusada confessou pela primeira vez,
formalmente, a prática do suposto crime de aborto (fase de interrogatório da ré na Delegacia)
empírico e a comparação se liga, portanto, ao ato de fundar as estruturas do real. Na prática linguageira, o argumento é utilizado sem guardar rigor quanto à natureza dos termos comparados.
153
- o quarto, é o momento processual em que a acusada confessou formalmente a prática
do suposto crime de aborto em Juízo.
As condições preparatórias do ato ( ∑ ) relacionam-se à posição estatutária dos
interlocutores, assim como à possibilidade de o locutor admitir como verdadeiro o estado de
coisas reportado.
Como condição de sinceridade do ato (ψ), emerge o estado mental de crença do
locutor na confissão da ré, teoricamente corroborada pelos depoimentos das testemunhas, pelo
laudo pericial e pela justificativa de que ela já teria um casal de filhos.
Fechando a parte argumentativa do proferimento, após mencionar as provas
produzidas no processo e utilizá-las discursivamente na fundamentação de sua tese
condenatória, o Promotor assevera que estão presentes os requisitos necessários à submissão
da acusada a julgamento diante do Tribunal do Júri e encaixa uma citação direta de
jurisprudência produzida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, segundo a qual:
“Comprovadas a autoria e materialidade do aborto, inclusive por prova indireta da gravidez
e expulsão do útero materno, impõe-se a submissão dos acusados ao julgamento pelo júri
(TJSP - RT 562/325)”. (fls. 68)
A citação de julgados é uma prática muito comum entre os operadores do direito, tanto
na área cível como na criminal, apesar de, em nosso ordenamento, o papel da jurisprudência
não alcançar taxatividade absoluta, como ocorre nos países da Common Law36. Considerando
que, nessas Alegações, o alocutário imediato é o Juiz de Direito, “figura de incontestável
erudição”, qual seria a finalidade de se transcrever uma orientação jurisprudencial que,
presumivelmente, ele já conhece? Acreditamos que, além de funcionar como um argumento
de autoridade, na medida em que mostra que a tese defendida pelo locutor já encontrou
acolhida por outros juristas de notoriedade, a jurisprudência desempenha também o papel de
“lugar específico” do discurso jurídico, sendo capaz de dar maior sustentação a uma tese
defendida em juízo.
Ademais, devido às condições enunciativas verificadas nessa peça, percebe-se que o
universo de alocutários instaurado no Tribunal do Júri é bastante amplo e abrange também
pessoas leigas quanto à técnica jurídica, de forma que a citação de julgados se torna um
recurso bastante eficaz para se comprovar a verossimilhança de uma tese diante de um
auditório tão heterogêneo.
36 Países que adotam o chamado Direito Costumeiro, como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e outros de tradição anglo-saxônica.
154
6.2.3.3 Requerimento
Enunciado Estrutura
ππππ: diretivo
µ: requerimento
θ: verbo conjugado no presente do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: o alocutário deve ser capaz de desempenhar a função
Ante ao exposto, requer o Ministério Público seja a acusada pronunciada, nos exatos termos da denúncia.
ψψψψ: desejo
Quadro 27: Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora
Finalizando as Alegações da Acusação, na parte intitulada Requerimento, encontramos
um ato que se realiza no ponto (π) diretivo, no modo (µ) requerimento. Como já
mencionamos, consideramos, com apoio no Estatuto da OAB, que os interlocutores estão em
um mesmo nível hierárquico e uma posição equiparada produz o modo “requerimento”, dado
o teor institucional do ato.
Como condição preparatória ( ∑ ) geral para a efetivação da força ilocucional, exige-se
que o alocutário seja capaz de executar a ação, o que nesse caso, implica estar legalmente
habilitado a funcionar nesse processo e proferir uma decisão de pronúncia da acusada, de
acordo com os critérios legais.
São válidas, aqui, as observações já tecidas em relação ao estatuto dos interlocutores,
Juiz e Promotor, e em relação à intensidade da força ilocucionária da emissão: o requerimento
do Promotor de Justiça não é impositivo, mas, o não-acatamento por parte do Juiz, pode dar
ensejo a recurso. Se submetido a julgamento pela instância superior, abre-se a possibilidade
de reforma da decisão.
A condição de sinceridade (ψ) desse ato é a expressão do desejo do Promotor de que
o Juiz acolha a tese acusatória e pronuncie a ré.
Trata-se de uma ação a ser realizada em um momento posterior ao da enunciação,
portanto, as condições de conteúdo proposicional (θ) apontam para um tempo futuro. A
direção de ajuste é mundo-palavra.
155
6.2.3.4 Considerações
A análise das Alegações Finais do Ministério Público, à luz da TAF, nos mostra que
essa peça, que constitui o ponto alto da argumentação na primeira fase do procedimento do
Júri e que se configura como um gênero típico do domínio discursivo jurídico, pode ser
definida como uma “pretensão fundamentada” do Promotor à admissibilidade da acusação
contra a ré.
Deriva daí que o principal ato de fala emergente do conjunto do proferimento é um ato
diretivo, no modo requerimento. Mas a efetivação de sua força ilocucionária está
condicionada ao convencimento do alocutário quanto à possível culpa da ré, de maneira que é
exigido do locutor que fundamente sua pretensão pela apresentação das provas presentes no
processo. Por isso, os atos assertivos são encontrados em grande número nesse proferimento.
Temos, para o gênero Alegações Finais do Ministério Público, o seguinte quadro
sintético:
Atos de fala
Gênero Conjunto de gêneros
Sistema de gêneros
Domínio discursivo
Fatos sociais
declarativo assertivo diretivo
Alegações
Finais
Denúncia Parecer
Requerimento Declaração
Alegações finais Contra-razões
recursais Libelo
Debates orais
Processo Penal
jurídico
acusar
Quadro 28: Alegações Finais do MP - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora
6.2.4 As Alegações Finais da Defesa
Em resposta às Alegações Finais da acusação, o Defensor produz as Alegações Finais
da Defesa. Trata-se, portanto, de um gênero utilizado tanto por um sujeito processual quanto
por seu oponente direto, de forma que as regras gerais para a elaboração dessa peça são as
mesmas para um e outro, assim como os prazos a serem observados para sua apresentação.
156
Com a juntada dessa resposta por parte do defensor da ré, mantém-se o equilíbrio entre os
dois pólos em debate em um processo penal, garantindo-se, assim, a concretização dos
princípios orientadores de seu legítimo funcionamento.
As condições enunciativas encontradas em torno desse proferimento são semelhantes
ao que se discutiu até aqui quanto ao meio institucional em que são produzidas as Alegações,
que é a instância judiciária. Aqui também valem as observações sobre a extensão do universo
de alocutários instaurados com esse proferimento, tanto no que tange a quantidade de sujeitos
envolvidos, como a heterogeneidade de suas características de formação, grupo social, idade,
gênero, etc.
Vale lembrar que o Advogado, assim como o Juiz (seu alocutário imediato nessa peça)
e o Promotor de Justiça (seu oponente), também possui uma condição especial, um estatuto
que lhe é conferido por uma instituição extralinguística, garantido por sua inscrição na Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB). Sem essa inscrição, o bacharel em Direito não é um
advogado no sentido estrito do termo, e não está habilitado, consequentemente, a funcionar
em um processo judicial como procurador da parte.
Representamos as condições enunciativas das Alegações da Defesa pelo seguinte
esquema:
Locutor : Advogado (ré)
Enunciação (EÃO)
Enunciado: Ante ao exposto, requer que seja acolhida a preliminar de nulidade absoluta, e conseqüentemente seja indeferida a denúncia e reconhecido o pedido de impronúncia, embasada no art. 409 do Código de Processo Penal, por não ter nos autos um conjunto probatório suficiente para o convencimento da existência do crime, em conseqüência seja julgada improcedente a denúncia, visto que não há exame de corpo de delito, tendo que ser decretada a nulidade absoluta deste processo, e por não ter como suprir essa falta, não pode a ré ser submetida ao Tribunal do Júri.
Alocutário imediato: Juiz de Direito mediato: Promotor, funcionários da Justiça, jurados, etc
Quadro 29: Condições enunciativas das Alegações Finais da Defesa Fonte: Elaborado pela autora
Estruturalmente, essas alegações seguem o mesmo padrão observado pelas alegações
da acusação. Identificamos nelas três partes principais: o relatório, o fundamento e o
requerimento37.
37 Nos proferimentos analisados até aqui, procedemos a uma divisão estrutural de suas partes e atribuímos a elas os títulos de Prólogo, Desenvolvimento e Desfecho. Nas Alegações Finais da Defesa, assim como nas Alegações da Acusação, o próprio autor da peça (Advogado), deu nome às suas partes, por isso, optamos por respeitar o projeto autoral e designar as partes conforme seu intuito.
157
6.2.4.1 Relatório
O Relatório inicia-se com um prólogo, onde são apresentados os componentes da ação
(nome da ré, artigo em que se enquadraria sua suposta conduta, etc).
Em seguida, o Advogado menciona os atos e fatos processuais ocorridos até o
momento, com o cuidado de excluir aqueles prejudiciais à imagem da ré, já bastante
desgastada. Dessa forma, a conduta criminosa imputada a ela não é discursivamente
explicitada (o Defensor fala apenas que o Promotor a denunciou nas sanções do art. 124 do
Código Penal, mas não descreve a ação teoricamente praticada).
Também não há referências ao não comparecimento da acusada à audiência de
interrogatório, assim como é suprimida a informação de que ela gozava do benefício de
suspensão do processo quando teria voltado a delinquir, o que acarretou a revogação da
concessão.
Predominam nessa parte atos de fala assertivos, realizados no modo narração/relato, já
que se trata de um registro de fatos e atos processuais.
Como não se verificaram inovações dignas de nota nessa parte do Relatório, passamos
para a parte seguinte – o Fundamento – , de onde extraímos dois enunciados para análises,
dado o teor diferenciado apresentado por eles.
6.2.4.2 Fundamento
Em sede de Alegações, a lei faculta ao Defensor pleitear a impronúncia da ré, a
desclassificação do delito ou a absolvição sumária, sendo que cada uma dessas alternativas
traz resultados diferentes no mundo do direito.
No proferimento em questão, foi pleiteada a impronúncia, com base na tese de que o
exame de corpo de delito fora produzido de maneira desrespeitosa às regras processuais,
dando causa à arguição de nulidade absoluta do processo. Como o aborto é um crime que
deixa vestígios, esse exame é indispensável para sustentar um decreto condenatório. Na visão
158
do Advogado, o laudo médico juntado aos autos não era capaz de suprir a falta do corpo de
delito, porque não havia sido elaborado com todas as fórmulas previstas em lei. Os
testemunhos poderiam sanar essa ausência, mas os depoimentos colhidos nos autos, na
perspectiva do Defensor, também foram reticentes e conflitantes. A única prova a se
considerar seria então a confissão da gestante, mas a confissão, isolada de outras provas, não é
considerada meio hábil a sustentar uma condenação.
Colocando a questão em termos técnicos, a Defesa arguiu preliminar de nulidade
absoluta e a consequente impronúncia da ré por faltar no processo provas concretas de autoria
e materialidade.
Vejamos o enunciado abaixo, extraído da parte intitulada fundamento:
Enunciado Estrutura
ππππ: declarativo µ: formal θ: locução verbal presente do indicativo primeira pessoa do plural ∑: além da posição dos interlocutores na instituição judiciária, a arguição de nulidade obedece a critérios legais (artigos 563 a 573, Código de Processo Penal)
Preliminarmente, queremos argüir nulidade absoluta, conforme falaremos deste vício processual que eivou todo o processo. E por causa dela não tem como R ser pronunciada nos termos do art. 408 do Código de Processo Penal
ψψψψ: crença + desejo
Quadro 30: Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa Fonte: Elaborado pela autora
A preliminar de nulidade, que pode ser absoluta ou relativa, deve ser alegada pela
parte, em peça processual, antes de ter início a discussão sobre o mérito da causa.
A nulidade absoluta pode ser apontada em qualquer momento do processo, mas a
praxis forense aconselha que seja feita nas Alegações. Da mesma forma, ao elaborar suas
sentenças e decisões interlocutórias, o Juiz deve apreciar primeiro as arguições de preliminar
para depois enfrentar o mérito.
No enunciado acima, a preliminar de nulidade é apresentada por meio de um ato
realizado no ponto declarativo (π), no modo (µ) formal, pois é necessário que os
interlocutores envolvidos na satisfação do ato possuam determinado estatuto oriundo de uma
instituição extralinguística. A realização bem sucedida do ato produz a correspondência entre
a palavra proferida – “arguir nulidade” – e a realidade, ao mesmo tempo em que a nova
realidade se ajusta à palavra expressa.
159
Parece-nos que estamos diante de um ato cujo conteúdo proposicional (θ) deve conter
a fórmula canônica “arguir nulidade”, ou outra de igual natureza. Como afirma Searle
(1995a), trata-se de um ato que precisa ser realizado como um ato de fala.
Como condições preparatórias ( ∑ ) necessárias ao sucesso desse ato, aventam-se a
posição institucional dos sujeitos e a observação dos preceitos legais para a arguição de
nulidades processuais.
O estado mental pressuposto (ψ) é a crença do locutor na existência de vícios
insanáveis no processo e o desejo de que, com seu proferimento, o Juiz atente para eles.
Importa observar que o acolhimento dessa preliminar por parte do Juiz constitui outro
momento processual. Com esse declarativo, a intenção do Advogado é a de fazer constar a
arguição.
Para fundamentar a tese da insuficiência de provas, o locutor transcreve trechos de
depoimentos prestados por testemunhas, faz citações literais de artigos da lei e de orientações
jurisprudenciais, conduzindo, dessa forma, sua argumentação para um campo mais técnico. O
Defensor tenta instaurar a dúvida em seu alocutário: a ré teria mesmo sofrido um
abortamento? Seria esse abortamento provocado? Existia um estado anterior de gravidez?
Abaixo, transcrevemos outro enunciado do Fundamento para submetermos à análise:
Enunciado Estrutura
ππππ: diretivo/comissivo
µ: convite
θ: locução verbal conjugada no modo imperativo, primeira pessoa do plural ∑: que o alocutário possa praticar a ação sugerida
Com relação a esta posição, vamos conferir algumas decisões de nossas cortes superiores: “A confissão da suposta gestante, como é cediço, não supre o exame de corpo de delito do aborto”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Costa Mendes – RT 496/326). ψψψψ: desejo
Quadro 31: Componentes de um ato de fala no fundamento das Alegações Finais da Defesa Fonte: Elaborado pela autora
Parece-nos que a classificação desse enunciado quanto aos critérios da TAF está
estreitamente vinculada à compreensão das estratégias argumentativas adotadas por seu
locutor. Pensando de acordo com tal perspectiva, fomos levados a crer que se trata de um ato
diretivo (π), na modalidade (µ) convite. O Advogado poderia ter optado pelo ponto assertivo
para a realização do ato, jogando com expressões linguísticas como “com relação a esta
posição, as Cortes Superiores têm decidido que...”, mas ao recorrer ao ato diretivo, o locutor
busca uma maior aproximação entre ele e seu alocutário, através do emprego de uma forma
160
alocutiva, em que o outro é convidado simbolicamente a se juntar ao enunciador, para juntos,
ambos analisarem uma questão digna de cuidado.
O ato diretivo enfatiza a relação entre os interlocutores, distribuindo entre eles funções
específicas na realização do ato. Assim, caberia ao Advogado apresentar os fundamentos de
sua tese (a decisão das Cortes Superiores) e ao Juiz de Direito restaria atentar para os
argumentos e, ao final, agir de acordo com as pretensões da Defesa (desconsiderar a confissão
da gestante). Sendo a relação entre os interlocutores teoricamente equiparada, já que
Advogado e Juiz ocupam, teoricamente, mesma posição hierárquica, pensamos no modo de
realização como um “convite retórico”, uma conclamação do locutor para que seu alocutário
conheça e partilhe de um ponto de vista que teria sido, inclusive, referendado por uma
instância julgadora superior.
Por outro lado, observando que há um engajamento do locutor na tarefa proposta ao
alocutário (o locutor está se comprometendo a demonstrar alguma coisa), e levando em
consideração a forma verbal utilizada (primeira pessoa do plural), o mais adequado seria
admitir a ocorrência de um ponto misto, do tipo diretivo/comissivo.
No conteúdo proposicional (θ) do ato, encontramos uma expressão verbal conjugada
no modo imperativo afirmativo, na primeira pessoa do plural (nós locutor + alocutário), já
que a ação a ser executada pelo alocutário terá lugar em um tempo futuro ao da enunciação do
ato. As condições preparatórias ( ∑ ) pressupõem, além da posição dos interlocutores no
complexo institucional, que a ação sugerida possa ser praticada pelo alocutário, sem prejuízo
para si próprio. Como condição de sinceridade (ψ), emerge o desejo do locutor de que o
alocutário atenda a seu chamado e que, ao final, compartilhe a tese apresentada.
Assim como fez o Promotor em suas Alegações Finais, o defensor utilizou-se da
estratégia de reprodução de um julgado para conferir maior poder de persuasão a seu
argumento a favor da absolvição da ré: “A confissão da suposta gestante, como é cediço, não
supre o exame de corpo de delito do aborto”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Costa Mendes – RT
496/326).
6.2.4.3 Requerimento
Após apresentar os argumentos que sustentam sua tese, o Advogado encerra o
proferimento dirigindo ao Juiz de Direito mais um ato diretivo, como se vê em seguida:
161
Enunciado Estrutura
ππππ: diretivo
µ: requerimento
θ: verbo conjugado no presente do indicativo, terceira pessoa do singular ∑: que o alocutário possa praticar a ação sugerida
Ante ao exposto, requer que seja acolhida a preliminar de nulidade absoluta, e conseqüentemente seja indeferida a denúncia e reconhecido o pedido de impronúncia, embasada no art. 409 do Código de Processo Penal, por não ter nos autos um conjunto probatório suficiente para o convencimento da existência do crime, em conseqüência seja julgada improcedente a denúncia, visto que não há exame de corpo de delito, tendo que ser decretada a nulidade absoluta deste processo, e por não ter como suprir essa falta, não pode a ré ser submetida ao Tribunal do Júri.
ψψψψ: desejo
Quadro 32: Componentes de um ato de fala no requerimento das Alegações Finais do MP Fonte: Elaborado pela autora
Trata-se de um ato diretivo (π), no modo (µ) requerimento, expresso pelo locutor na
tentativa de fazer seu alocutário imediato realizar uma ação futura, que é a de acolher a
preliminar de nulidade e impronunciar a ré. Em outras palavras, a pretensão do Advogado é a
de que o Juiz encerre o processo, sem determinar que a acusada seja submetida a julgamento
pelos jurados do Tribunal do Júri.
Como condição preparatória do ato ( ∑ ), mais uma vez emerge a questão da posição
ocupada pelos interlocutores no interior de uma instituição extralinguística, assim como a
equiparação hierárquica existente entre eles, justificando a classificação do modo de
realização como um requerimento e não um pedido, simplesmente.
As condições de sinceridade (ψ) apontam para a expressão de um estado mental de
desejo do locutor de que o alocutário tome determinada medida no processo. Nesse caso, a
direção de ajuste é mundo-palavra, ou seja, o locutor (Advogado) profere um ato e o mundo
(Juiz) deve se movimentar para se adequar a ele.
6.2.4.4 Considerações
Parece interessante observar que a petição conhecida como Alegações (ou alegações
Finais, no jargão forense) pode ser compreendida pela força que emerge especialmente do ato
diretivo de requerimento, expresso no final de seu corpo, pelo qual o Advogado pleiteia a
impronúncia da ré.
162
Os assertivos dispostos ao longo do Fundamento são fundamentais para que o Juiz seja
conduzido, por via da argumentação, a acolher a tese da defesa, de forma que é possível
definir as Alegações como um pedido baseado na exposição de uma crença argumentada em
um determinado estado de coisas.
Chegamos então ao seguinte quadro sintético:
Atos de fala
Gênero Conjunto de gêneros Sistema de gêneros
Domínio discursivo
Fatos sociais
assertivo diretivo
Alegações
Finais
Defesa Prévia
Alegações Finais Petição de interposição de recurso em sentido estrito
Razões Recursais Debates orais Declarações
Processo
Penal
jurídico
defender
Quadro 33: Alegações Finais da Defesa - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora
6.2.5 A Sentença de Pronúncia
No feito ora analisado, por meio da Sentença de Pronúncia, o julgador aderiu à tese
defendida pela acusação, pronunciando a ré como incursa nas sanções do art. 124 do Código
Penal (BRASIL, 2011) e determinando que ela fosse levada a julgamento perante o corpo de
jurados.
A legislação processual penal estabelece os requisitos a serem observados pelo Juiz no
momento de elaborar as sentenças. Elas devem ser compostas de três partes: o relatório, com
identificação das partes, exposição dos conflitos do processo e dos procedimentos; os
fundamentos ou a motivação da decisão a ser tomada; e a decisão propriamente dita, chamada
de dispositivo.
Até o momento processual anterior, estávamos diante de um embate discursivo
instaurado entre Promotor e Advogado, com vistas a persuadir o julgador da verossimilhança
de suas teses. Passamos, agora, da abordagem das instâncias de acusação e defesa para a
instância de julgamento, que é constituída por um sujeito de reconhecida cultura e erudição,
detentor de uma posição muito prestigiada em nossa sociedade – o Juiz de Direito.
163
Empregando terminologia de Bourdieu (2008), diríamos que se trata de um sujeito portador
de considerável capital simbólico38.
Em outras palavras, o julgador, até aqui, configurou-se como auditório do Promotor e
do Defensor. Intuitivamente, somos levados a pensar no auditório universal, de Perelman
(1987), mas assumir a hipótese de que o Juiz seja o “ser de razão” equivale a aceitar,
indiretamente, que suas decisões seriam sempre justas e irretocáveis, portanto, estaríamos
justificando uma “ditadura dos magistrados”.
Nesse momento processual, o Juiz é o orador e o Promotor e o Defensor, ao lado da ré
e de outros sujeitos processuais, são seu auditório.
Como já mencionamos, os sujeitos processuais secundários, no exercício de suas
atividades profissionais, também aparecem como interlocutores das instâncias de acusação,
defesa e julgamento. Nesse proferimento, observamos a ocorrência de atos diretivos no
fechamento da peça, voltados especificamente para funcionários conhecidos como
“cartorários”, o que parece ser bem característico do gênero Pronúncia. Por meio deles, o
locutor dá ordens aos auxiliares da justiça para que tomem as providências necessárias ao
cumprimento da decisão, como em “Publique-se, registre-se e intime-se” e para o oficial de
justiça, a exemplo de “Intime-se pessoalmente a denunciada”.
Esquematicamente, as condições enunciativas desse proferimento podem ser
representadas da seguinte forma:
Locutor : Juiz de Direito
Enunciação (EÃO)
Enunciado: Como demonstrado acima, pronuncio a denunciada R, como incursa nas sanções do art. 124 do código penal, determinando que a mesma seja levada a julgamento pelo E. Tribunal do Júri Popular desta Comarca.
Alocutários: Ré/Advogado; Promotor de Justiça; jurados; sujeitos processuais secundários, sociedade
Quadro 34: Condições enunciativas da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora
38 Lembrando que Bourdieu (2008) constrói uma crítica sociológica à teoria linguística, no centro da qual encontra-se a proposta de substituição da noção de competência linguística pela de capital simbólico. Em seu ponto de vista, as interações linguísticas estão sempre condicionadas pela estrutura das relações de força entre os grupos sociais e, dentro destes, dos interlocutores. Essa estrutura relaciona a língua legítima aos locutores com maior capital simbólico, capazes de imporem as regras de produção e de aceitação das formas linguísticas adequadas.
164
Para compor as análises deste tópico do trabalho, selecionamos excertos de cada uma
das partes da decisão, considerados os mais característicos de cada uma delas.
6.2.5.1 Relatório
Ato Estrutura
ππππ: assertivo
µ: narração/relato
θ: locução verbal/voz passiva analítica tempo pretérito perfeito do indicativo terceira pessoa do singular ∑: posição estatutária dos interlocutores; o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
R, já qualificada, foi denunciada como incursa nas penas do artigo 124 do Código Penal, porque, segundo a denúncia: no dia 23/09/99, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.
ψψψψ: crença
Quadro 35: Componentes de um ato de fala no relatório da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora
No relatório, o Juiz do processo ora analisado teceu uma breve exposição dos fatos, da
qual emergiram predominantemente atos de fala assertivos (π), realizados no modo (µ)
“narração/relato”, como no enunciado transcrito no quadro acima. A função da linguagem
aqui é a de descrever o estado de coisas pré-existente, sendo que o ato comporta um
julgamento do seu valor verdade, pois os acontecimentos narrados podem ter ocorrido ou não.
No caso, a ré pode ou não ter praticado o autoaborto. A direção de ajuste, nesse caso, é a de
palavra-mundo.
As condições de conteúdo proposicional (θ) implicam o emprego de um tempo verbal
pretérito, uma vez que os fatos relatados ocorreram em um momento anterior ao da
elaboração da pronúncia. Observamos o encaixe de dois momentos enunciativos: tomando
como referência o momento da enunciação, presente (quando o locutor prolata a sentença),
temos:
- um passado mais recente, que é o momento em que foi ofertada a Denúncia contra a
ré, expresso pelo verbo conjugado no pretérito perfeito composto, na voz passiva analítica,
demonstrando a certeza da ocorrência do fato narrado (R, já qualificada, foi denunciada como
incursa nas penas do artigo 124 do Código Penal);
- outro passado, mais remoto, correspondente ao tempo em que a acusada teria
praticado o crime, expresso também por um verbo conjugado no pretérito perfeito do
165
indicativo (no dia 23/09/99, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela
introduzida em sua vagina, causando a morte do feto).
É interessante observar que a forma verbal escolhida pelo locutor para narrar esse fato
– verbos conjugados no pretérito perfeito do indicativo – confere uma carga de certeza quanto
à prática do crime.
A narrativa só perde um pouco sua taxatividade porque o locutor faz remissão a um
trecho da Denúncia, produzida pelo Promotor, como forma de modalizar sua fala: “R, já
qualificada, foi denunciada como incursa nas penas do artigo 124 do Código Penal, porque,
segundo a denúncia [de autoria do Promotor]: no dia 23/09/99, praticou, sozinha, um aborto
(...)” . É interessante observar que, com esse expediente de explicitar que a fonte da acusação
se encontra na Denúncia, o Juiz se exime da responsabilidade pela atribuição dos fatos à
suposta autora.
Como afirma Maingueneau (1997), relatar o discurso de outro é uma maneira hábil de
sugerir algo sem se comprometer com a sugestão. Parece-nos que essa é a atitude do Juiz
nessa parte de seu proferimento: dar a entender que a ré praticou realmente os atos a ela
imputados, mas não afirmar ainda de forma contundente e definitiva.
As condições preparatórias ( ∑ ) para a efetivação do ato relacionam-se ao estatuto dos
interlocutores, em especial à possibilidade de o locutor formar sua convicção com base nos
elementos processuais. Como condição de sinceridade (ψ), destacamos a crença do Juiz na
ocorrência dos fatos descritos.
Parece-nos que o relatório não comporta uma argumentação mais apurada e apenas
constitui uma preparação do alocutário para a parte seguinte – o fundamento – esta sim,
marcada por seu alto teor argumentativo. Entretanto, por suas escolhas linguísticas, o Juiz dá
sinais da orientação argumentativa que assumirá na parte seguinte. A atribuição do
qualificativo “regular” para os procedimentos de coleta de prova utilizados no processo, por
exemplo, deixa claro que a tese defendida pelo Advogado, segundo a qual a prova do
processo está contaminada por vícios de nulidade, será refutada pelo julgador: “Regular a
instrução do processo, vieram as alegações finais, pugnando o ilustre Promotor de Justiça
pela pronúncia da denunciada, ao passo que a defesa alega nulidade por falta de perícia e,
alternativamente quer a impronúncia.” (fls. 75)
166
6.2.5.2 Fundamento
Ato Estrutura
ππππ: assertivo
µ: sustentação
θ: verbo de ligação, conjugado no presente do indicativo, primeira pessoa do singular ∑: o locutor admitir como verdadeiro o estado de coisas reportado
Pelo que se apurou nos autos tem-se como suficiente para embasar o prosseguimento do feito, visto que estou convencido de que houve o crime e de que o Denunciado seja o seu autor, assim concluindo, repito, pelas provas dos autos.
ψψψψ: convicção
Quadro 36: Componentes de um ato de fala no fundamento da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora
O fundamento é a parte da sentença em que o juiz apresenta os motivos de fato e de
direito que o levaram a concluir por determinada decisão. Nessa parte, o locutor explicita os
caminhos percorridos por seu raciocínio, acolhendo ou refutando as alegações feitas pelas
partes no curso do processo. Contudo, não há necessidade de que o Juiz, ao fundamentar sua
decisão, responda exaustivamente à totalidade da argumentação, desde que conclua com
firmeza e assente o decisório em fundamentos idôneos para sustentarem a conclusão. O
critério é o de se exigir uma “fundamentação suficiente”, mas não absolutamente exaustiva.
No excerto selecionado, observamos a ocorrência de um ato cuja realização se dá no
ponto assertivo (π), no modo (µ) sustentação.
As condições de conteúdo proposicional (θ) do ato assertivo impõem, como restrições
para o seu desempenho, a regra de que a forma verbal contenha uma expressão de passado em
contraste com o instante da enunciação. Contudo, no enunciado em análise, o verbo encontra-
se conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (“estou convencido de
que houve o crime e que o Denunciado seja o seu autor”).
A representação mórfica do verbo no presente do indicativo é admitida porque, com
apoio em Mari (2001), entendemos que apesar da diferenciação da forma verbal, o conteúdo
proposicional refere-se a um estado de coisas – o juiz ter formado sua convicção – que é
anterior ao ato de sua enunciação.
Nas palavras do autor, encontramos a seguinte explicação:
No ponto assertivo, verificamos uma condição inversa: a forma verbal precisa conter uma expressão de passado em contraste com o instante da enunciação. Esta nova exigência admite que o verbo esteja morficamente representado no presente do indicativo – Informo que seu candidato está à frente nas pesquisas – , no presente do subjuntivo – Nego que o seu candidato esteja à frente nas pesquisas (em
167
contextos especiais) ou no pretérito perfeito/imperfeito – Afirmo que o seu candidato esteve/estava à frente nas pesquisas. Apesar da diferenciação da forma verbal, o conteúdo proposicional reporta um estado de coisas – o candidato estar à frente nas pesquisas – anterior ao ato de enunciá-lo. (MARI, 2001, p. 123-124).
Como condição preparatória ( ∑ ) geral para o ato assertivo, tem-se a aceitação, por
parte do locutor, da veracidade do estado de coisas por ele reportado.
Relacionada às condições preparatórias, temos como condição de sinceridade (ψψψψ) do
ato assertivo, que o locutor acredite naquilo que está a proferir, senão, “ele estaria sendo
insincero ao afirmar um conteúdo proposicional e acrescentar, na sequência, sua descrença
nesse mesmo conteúdo” (MARI, 2001, p. 127). Essa condição geral deve ser acrescida por
outras condições especiais, próprias de certos modos do ponto assertivo. O modo sustentar,
por exemplo, exige uma crença argumentada na verdade dos fatos.
Quando o Juiz de Direito profere o ato “estou convencido de que houve o crime e que
o Denunciado seja o seu autor, assim concluindo, repito, pelas provas dos autos”, ele
manifesta mais que uma crença no estado de coisas reportado: ele expressa convicção e, em
seguida, aponta as causas que engendraram seu estado mental. Ou seja, o ato de sustentar a
veracidade de um estado de coisas exige um estado mental de crença argumentada na verdade
dos fatos. Assim, a referência às provas dos autos funciona, neste enunciado, como uma
espécie de argumento de autoridade, que fundamenta a convicção do Juiz e justifica a
submissão da ré a julgamento pelo Júri Popular.
Abrimos parênteses para conjecturar que, nesse enunciado em que o julgador se afirma
convencido de que houve crime e de que a ré é sua autora, vislumbramos a concretização de
um efeito perlocucional favorável aos interesses da acusação. Com isso, fomos levados a crer
que, ao proferir o mandamento condenatório, o Juiz de Direito acatou, efetivamente, os
argumentos da acusação e que, por isso, deu ganho à tese defendida pelo Promotor de Justiça.
Contudo, em breve militância na carreira jurídica, percebemos que, na maioria das vezes, por
motivos relacionados ao volume de processos a analisar, o julgador faz uma leitura muito
superficial das peças produzidas pelas partes, concentrando sua atenção, com muito mais
intensidade, nos exames periciais, nas provas documentais, nos depoimentos das testemunhas.
Dado o próprio teor legal da exigência de fundamentar, observa-se nesta parte do
proferimento uma forte argumentatividade na fala do Juiz. Aqui estão explicitados os motivos
de fato e de direito que o levaram a determinada conclusão, assim como os argumentos que o
ajudaram a construir uma tese decisória. Percebe-se, assim, uma recorrência de atos assertivos
168
que se realizam no modo afirmação/confirmação e negação/refutação, por fazer menção aos
argumentos das partes para então acatá-los ou refutá-los.
6.2.5.3 Dispositivo
Ato Estrutura
ππππ: declarativo
µ: formal (semelhante a “declarar culpado”)
θ: verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo ∑: locutor-juiz de direito, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários - ré processada conforme os ditames legais (devido processo legal), Promotor, Advogado, serventuários da justiça, sociedade em geral (Estado de Direito)
Como demonstrado acima, pronuncio a denunciada R, como incursa nas sanções do art. 124 do código penal, determinando que a mesma seja levada a julgamento pelo E. Tribunal do Júri Popular desta Comarca.
ψψψψ: crença + desejo
Quadro 37: Componentes de um ato de fala no dispositivo da Sentença de Pronúncia Fonte: Elaborado pela autora
Acompanhando a sequência lógica da decisão judicial, tem-se a parte final, que é o
dispositivo (momento em que o Juiz aplica a lei ao caso concreto).
Com um ato de fala declarativo (π), formalmente realizado (µ), o locutor pronunciou a
ré, determinando seu julgamento pelo Tribunal do Júri da comarca.
O ato declarativo tem a propriedade de reunir locutor e alocutário em torno de um
estado de coisas que é criado, com vistas a uma integração. Possui dupla direção de ajuste,
conforme explicação de Mari (2001, p. 115):
[...] um estado de coisas de um mundo possível é alterado para se ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento que o enunciou – MUNDO-PALAVRA – , da mesma forma que o conteúdo proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na perspectiva do seu locutor – PALAVRA-MUNDO. (MARI, 2001, p. 115).
Quanto às condições de conteúdo proposicional (θ), tem-se um verbo conjugado na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo, que é a forma verbal performativa
canônica.
As condições preparatórias ( ∑ ) estão vinculadas ao estatuto institucional do locutor e
dos alocutários. O pressuposto é o de que o locutor esteja investido de um poder nesse ato, o
169
que se verifica no caso em análise: apenas um Juiz de Direito, investido dos poderes que o
Estado lhe confere, formalmente designado para presidir aquele processo, pode pronunciar a
ré a ser julgada pelo Tribunal Popular. Como esclarece Searle:
O domínio, por parte do falante e do ouvinte, das regras que constituem a competência linguística não é, em geral, suficiente para a realização de uma declaração. Deve existir também uma instituição extralinguística, e tanto o falante como o ouvinte devem ocupar lugares especiais no interior dessa instituição. É apenas por haver instituições como a igreja, o direito, a propriedade privada, o estado – posições especiais do falante e do ouvinte no interior dessas instituições – que se pode excomungar, designar, doar e legar bens, declarar guerra. (SEARLE, 1995a, p. 28)
Como condições de sinceridade (ψ) para a satisfação do ato, observam-se um misto de
crença na ocorrência do crime e na culpa da ré e desejo de aplicação da lei penal a essa
situação concreta.
6.2.5.4 Considerações
Na doutrina jurídica, a Pronúncia é considerada como um julgamento da
admissibilidade da acusação para submissão do caso concreto ao Tribunal do Júri. Em outras
palavras, trata-se do “sinal verde”, dado pelo Juiz, para a submissão do caso à apreciação dos
juízes de fato.
O principal ato verificado nesse proferimento é o declarativo. Por meio dele, o Juiz
instaura um estado de coisas novo, modificando, com isso, a situação da ré diante da justiça e
da sociedade. Esse ato declarativo só alcança esse efeito amplo porque realizado no interior
do domínio jurídico e por ter sido proferido por um enunciador revestido do estatuto legal de
julgador.
A decisão de pronúncia que ora analisamos se insere no interior de uma modalidade
discursiva denominada por Bittar (2009) como “discurso decisório”, cujo atributo principal é,
para ele, seu caráter performativo:
Além de se dizer que todo ato-de-linguagem decisório constrói, faz, constitui, realiza, é de dizer também que o faz por força de que não se trata de um discurso que se encerra em sua mera atividade de fazer discursivo. Sua primordial função é a de produzir efeitos não-discursivos, ou seja, de produzir efeitos extra-autos, modificando coisas-do-mundo e estados-do-mundo. Trata-se de um discurso que se impõe, por derivar de uma estrutura de poder, sobre a qual se assenta, e a qual faz funcionar. (BITTAR, 2009, p. 301)
170
Pensando na decisão de pronúncia como um macroato declarativo, podemos,
juntamente com Bittar (2009), salientar seu caráter performativo, na medida em que é capaz
de modificar a situação jurídica de um sujeito pelo simples fato de sua enunciação com caráter
de publicidade e oficialidade. Para o autor, “o poder discursivo de elocução” de uma sentença
é derivado de outro discurso, o normativo. Nesse sentido, considera-se que seu papel é o de
formação de uma norma individual, aplicável ao caso concreto, a partir da norma genérica
contida no discurso da norma.
Ainda segundo Bittar (2009), examinando a sentença como um ato de linguagem pelo
qual se decide o processo em instância judicial, essa performatividade relaciona-se
intimamente com algumas outras condições que ele pontua como: uma sentença deve ser
emitida por um órgão investido no poder de julgar, dotado de autoridade e competência para
tanto; apresentar-se em três partes formais, que são o relatório, o fundamento e o dispositivo;
apresentar-se linguística e juridicamente como aceitável; encontrar-se inserida no contexto de
um processo e de um conflito material existente na esfera jurisdicional; obedecer aos trâmites
processuais, a um procedimento prefixado em lei, segundo o qual existe um momento preciso
para a enunciação desse ato; resultar na formação de uma norma individual; ser dotada de
publicidade; ter como teleologia a apresentação da opinião conclusiva do juiz acerca de todos
os elementos formadores do processo, com o qual se conclui uma fase de procedimento
jurisdicional, apresentando um julgamento com ou sem a resolução do conflito material.
A questão da publicidade da decisão judicial a que se refere Bittar (2009) nos remete
aos modos de difusão e de consumo do discurso, os quais, de acordo com Maingueneau
(2008), são desenhados pela própria rede institucional:
O texto pode ser objeto de modos de difusão muito variados e não se poderia estabelecer uma exterioridade entre esse aspecto e seu conteúdo próprio. A própria rede institucional desenha uma rede de difusão, as características de um público, indissociáveis do estatuto semântico que o discurso se atribui. (MAINGUENEAU, 2008, p. 134).
Pensando sobre os modos de difusão e consumo do discurso judicial, observamos que
os meios de circulação da instituição judiciária são bastante restritivos no que diz respeito ao
público.
Os principais atos processuais são publicados em jornais impressos e digitais
especializados, lidos somente por sujeitos diretamente interessados no andamento dos
processos. Na realidade, apenas advogados fazem esse tipo de leitura, pois, por meio de
171
publicações resumidas e esporádicas, são chamados para dar andamento ao feito. Autor e réu
normalmente não acompanham a causa por esses meios oficiais.
No caso mais específico das sentenças, a publicidade representa a passagem de um ato
de linguagem subjetivo da autoridade para a esfera de conhecimento público, segundo
definição de Bittar (2009). Essa publicidade, contudo, é alcançada na prática por um
expediente que faz com que apenas os interessados imediatos tenham ciência do conteúdo do
ato. No tópico seguinte, ao falarmos sobre um movimento de expediente forense, abordamos
essa questão com mais profundidade.
Sintetizando, temos o seguinte quadro representativo da Sentença de Pronúncia:
Atos de fala
Gênero Conjunto de gêneros
Sistema de gêneros
Domínio discursivo
Fatos sociais
assertivos
declarativos diretivos
Sentença
de Pronúncia
Despacho
Ofício Pronúncia
Edital Mandado Termo
Sentença Portaria
Processo Penal
jurídico
pronunciar
a ré
Quadro 38: Sentença de Pronúncia - Atos de fala, sistema de gêneros e atividades Fonte: Elaborado pela autora
172
6.3 Sequência típica executada após a Pronúncia: movimentos de uma rotina forense
Para que a Sentença de Pronúncia analisada no tópico anterior alcançasse a
publicidade exigida pela lei e, assim, efetivamente produzisse efeitos concretos, iniciou-se
uma movimentação na secretaria judicial para dar cumprimento às determinações do juiz.
A fim de demonstrar como se dão a publicidade e o cumprimento de uma decisão, na
prática, apresentamos uma análise dos atos processuais realizados imediatamente após sua
prolatação pela instância julgadora.
Logo abaixo da Sentença de Pronúncia, às fls. 77, após a data e a assinatura do Juiz, há
um carimbo (1) de um auxiliar da justiça, com os seguintes dizeres:
[1] “Aos 04 de 06 de 03 me foram entregues estes autos. Do que para constar lavrei este. Eu, ________.”
Em seguida, fls. 78, há um outro carimbo (2), também assinado por um auxiliar da
justiça, em que este certifica a publicação da sentença:
[2] “PUBLICAÇÃO Aos 05 de 06 de 03 Faço Público a veneranda Sentença retro. Do que para constar lavrei este. O Escrivão _________.”
Abaixo deste, ainda às fls. 78, novo carimbo (3), em que o auxiliar da justiça certifica
que a decisão foi registrada em livro próprio:
[3] “CERTIDÃO Certifico e dou fé que registrei a J. sentença sob n.º _, fls._, livro n.º _. Em 05 de 06 de 03 Do que para constar lavrei este. O Escrivão, _______.”
Segue outro carimbo (4), assinado pelo mesmo sujeito processual, em que se certifica
a expedição de mandado:
173
[4] “CERTIDÃO Certifico e dou fé que expedi mandado Em 05 de 06 de 03 Do que para constar lavrei este. O Escrivão, ______.”
Finalmente, um carimbo (5) em que se certifica o encaminhamento do expediente de
intimação ao Defensor da ré:
[5] “CERTIDÃO Certifico e dou fé haver encaminhado o expediente de intimação do(a) Dr(a)
[advogado da ré] ao Jornal Ocasião para publicação. Em 05 de 06 de 03 Do que para constar lavrei este. O Escrivão, _____.”
No verso das fls. 78, há mais um carimbo (6), subscrito por um outro funcionário da
secretaria, certificando a intimação do Promotor de Justiça do conteúdo da decisão de
Pronúncia:
[6] “CERTIDÃO DE INTIMAÇÃO CERTIFICO que nesta data intimei o Dr. Promotor de Justiça por todo conteúdo fls. _. Dou fé. do que para constar lavrei este. Comarca, 09 de junho de 2003. A Escrivã, _____”.
Em seguida, a manifestação do Promotor de Justiça, de próprio punho, declarando
ciência do conteúdo da decisão de fls. 74-77, proferida pelo Juiz.
Um sétimo carimbo documenta a efetiva intimação do Defensor da ré pela publicação
no jornal local:
[7] “CERTIDÃO Certifico que a intimação foi publicada no ‘O Ocasião’ do dia 08.06.03, com início da contagem do prazo para o dia 10.06.03. Comarca, 09/junho/2003. A Escrivã, _____.”
174
Às fls. 79, encontra-se a cópia do mandado de intimação da ré, entregue pessoalmente
a ela pelo Oficial de Justiça, informando-a de que seria levada a Júri Popular.
Os sujeitos que assinaram os textos padronizados em forma de carimbos executaram
uma sequência de atos processuais fundamentais, como receber e guardar os autos que lhe
foram confiados, dar publicidade à Sentença de Pronúncia, registrar a decisão em livro
próprio e assim por diante. Todos esses atos foram executados e certificados pelos agentes e,
desta forma, adquiriram materialidade no mundo jurídico. Trata-se, assim, de atos
protocolares, utilizados com a função de legitimar, publicizar ou autenticar certos objetos e
comportamentos.
Outro fato a observar é que esses textos apostos nos autos são tão padronizados e
estáveis que já veem formatados em carimbos, como se fossem fórmulas, que deixam espaço
apenas para o preenchimento manual de datas, nomes próprios e assinaturas.
Na sequência, logo abaixo do carimbo 6, há a resposta do Promotor de Justiça à
intimação que lhe foi feita:
“Ciência, d. supra.” Assinatura do Promotor.
Retornamos ao território dos gêneros produzidos por esse sujeito principal. Trata-se de
uma “declaração”, em que o Promotor realiza o ato de declarar que tomou conhecimento da
decisão de pronúncia e que está de acordo com uma realidade afirmada pelo auxiliar da
justiça.
O carimbo 7, que informa a publicação da intimação ao Defensor, também compõe o
conjunto de gêneros dos auxiliares da justiça. O ato que ele certifica – a intimação do
Defensor para conhecer o conteúdo da decisão de pronúncia – instaura para a acusada a
possibilidade de refutar tal decisão e não apenas de tomar ciência dela.
Várias outras sequências de carimbos, como esta, são encontradas ao longo do
processo analisado. A título de exemplo, vejamos como dessa sequência de atos processuais
praticados e documentados no processo às fls. 78 e 78v, pode-se abstrair uma série de
esclarecimentos à luz de uma teoria linguístico-discursiva.
Em relação à estrutura sintática e semântica encontrada nessas manifestações
procedimentais, Bittar (2009) esclarece que “o uso de expressões e fórmulas pré-concebidas é
o que impera como prática do bureau, de modo a se perpetuarem as estruturas de discurso
consagradas no ambiente burocrático”.
175
De um lado, a sequência típica permite a visualização de como conjuntos de gêneros
se inter-relacionam no domínio discursivo jurídico, compondo um sistema de gêneros através
do qual se dá o efetivo andamento de um processo por uma Secretaria judicial. Nessa
instituição, todos os atos processuais são documentados, certificados, atestados, de acordo
com uma regulamentação minuciosa da lei processual, em que tudo segue uma ordem
rigidamente estabelecida.
De outro lado, a sequência traz às claras os fatos sociais realizados pelos sujeitos
processuais por meio da utilização de textos. Uma vez instaurada uma relação processual
penal, ainda que a ré seja absolvida no fim do julgamento, terá havido uma modificação na
realidade social.
Outro desdobramento relevante do funcionamento do sistema de gêneros é a
materialização do princípio do contraditório: qualquer ato do Juiz (nesse caso, uma decisão de
Pronúncia da ré) é comunicado ao Defensor (pela publicação de intimação no jornal local) e
ao Promotor de Justiça (intimação pessoal). A própria acusada é informada pessoalmente da
decisão, através de mandado judicial redigido pelo Escrivão e entregue a ela, pelo Oficial de
Justiça. A obediência a esse princípio dá às partes a oportunidade de contestarem os atos e
termos do processo, além se ser um corolário do princípio maior de ampla defesa do acusado.
Há que se observar ainda que o sistema de carimbos, em que os auxiliares da justiça
certificam exaustivamente a prática de atos, pode parecer, à primeira vista, um interminável
ritual de documentação burocrática, que atrasa a marcha processual e a celeridade da justiça,
mas, na realidade, talvez tenha sido o sistema mais eficaz encontrado para a garantia do
cumprimento dos princípios do direito processual.
Essa rigidez de procedimentos corrobora ainda a hipótese defendida por Fuzer e
Barros (2008), de que o complexo sistema de gêneros em que se constituem os autos de um
Processo Penal funciona como um dos mecanismos de manutenção do caráter altamente
especializado das atividades realizadas pelos representantes da instituição jurídica.
176
6.4 Fase Recursal (do Recurso em Sentido Estrito ao Acórdão)
Nas três primeiras fases metodologicamente recortadas do Processo/corpus, o foco das
análises foi direcionado para a performatividade da linguagem. O estudo da argumentação
ficou em posição de menor relevo, se comparada aos aspectos relacionados aos atos de fala,
suas modalidades e efeitos. Por essa razão, nos ateremos, na análise da Fase Recursal, aos
aspectos argumentativos observados.
Inconformado com a decisão do Juiz, o Defensor da ré ingressou com um “Recurso
em Sentido Estrito”, para que ela fosse revista pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
órgão decisório de 2.ª instância, competente para julgar recursos cíveis e criminais oriundos
das comarcas mineiras de 1.ª instância. O Promotor de Justiça apresentou suas “Contra-
Razões de Recurso”, ou seja, a resposta da acusação às razões recursais impetradas pela
defesa. Por determinação do Juiz da causa, o processo “subiu” para o Tribunal, como se diz na
linguagem forense, para que lá fosse apreciado por um Colegiado de Juízes.
A tramitação de um processo criminal no órgão de segunda instância segue as normas
prescritas pelos códigos processuais, além do Regimento Interno do Tribunal. Esses órgãos
são compostos por muitos magistrados, mas um processo não é apreciado por todos eles. É o
regimento interno que determina quais os responsáveis pelo julgamento e a forma como ele
será realizado. Normalmente, o regimento interno prevê a divisão dos magistrados em grupos
menores, denominados turmas ou câmaras especializadas em algum ramo do direito (turmas
cíveis, criminais, etc).
No caso em análise, a chegada do feito ao Tribunal foi documentada por um Termo de
Recebimento, Análise e Remessa de Autos, assinado por um funcionário da seção (fls. 99).
Em seguida, os autos foram remetidos para a Divisão de Distribuição de Feitos, onde foi
realizado um sorteio para definir quem seria o Relator (Juiz do Tribunal a quem cabe explanar
o caso concreto no momento em que vai ser julgado). Daí, os autos foram remetidos para a
Procuradoria-Geral de Justiça. Foi realizado um segundo sorteio para decidir sobre a
distribuição do feito entre um dos Procuradores de Justiça, que são o órgão do Ministério
Público responsável por fiscalizar o andamento de um processo na segunda instância39. O
Procurador emitiu “Parecer” favorável à manutenção da decisão de pronúncia, afirmando que:
39 O Promotor de Justiça é o responsável por essa tarefa na primeira instância, enquanto o Procurador de Justiça atua na segunda instância.
177
a própria acusada reconheceu que se submeteu a um voluntário procedimento de aborto [...]; quando a ré foi atendida já não havia o que recolher do feto, porque só restavam parcelas diminutas e indefinidas do ser já decomposto [...], tornando necessária uma curetagem que não redundou na coleta de porções identificáveis do pobre ser. (Procurador de Justiça)40
Em seguida, o processo foi remetido ao Desembargador Relator. O primeiro ato
praticado por ele consistiu em documentar o recebimento e a conclusão do feito, para depois
lançar a peça denominada Relatório.
Em seguida, o Escrivão da secretaria incluiu o processo na pauta de julgamento da 3.ª
Sessão Ordinária.
O processo foi então apreciado por três Desembargadores do Tribunal, que proferiram
um “Acórdão” negando provimento ao recurso da defesa, em outras palavras, mantendo a
decisão de primeira instância que determinou o julgamento da ré pelo Júri Popular.
Entenderam os Desembargadores que havia fortes indícios de autoria e materialidade contra a
acusada.
Em síntese, esses foram os principais acontecimentos da fase recursal. Ao longo dessa
etapa, foram produzidas quatro peças processuais fundamentais: Recurso em sentido Estrito,
Contra-Razões de Recurso em Sentido Estrito, Parecer do Procurador de Justiça e Acórdão,
além de inúmeros atos processuais praticados por Desembargadores, Procuradores Gerais de
Justiça e funcionários das secretarias.
Inserimos, nesse momento, as análises da peça processual intitulada Acórdão,
selecionada para ser objeto de uma investigação mais aprofundada por constituir o ponto
culminante da fase recursal, já que contém em seu bojo as vozes das instâncias de acusação,
defesa e julgamento, das testemunhas e da ré; vozes das quais se apropriaram os
Desembargadores no intuito de construírem um novo pronunciamento – o Acórdão – com
força conferida por lei, para substituir a decisão monocrática de primeira instância.
6.4.1 O Acórdão
Inicialmente, para a compreensão do gênero Acórdão e de suas condições
enunciativas, foi necessário que fizéssemos um passeio pelas normas contidas nos Códigos
40 Parecer emitido por Procurador de Justiça, fls. 112-113.
178
Processual Civil e Processual Penal e no Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais.
A reconstrução da cena enunciativa que envolve o proferimento de uma peça dessa
natureza não é uma tarefa fácil. A dificuldade maior reside em não haver, na legislação, uma
preleção contínua sobre os requisitos e condições para sua elaboração. Também não há uma
descrição detalhada da sessão de julgamento dos recursos, de forma que foi necessário reunir
e acomodar vários fragmentos de leis e artigos, para obter pistas mais ou menos seguras de
como se configura essa cena enunciativa.
A primeira questão a nos ocorrer foi conceitual: o que é um Acórdão? A palavra
acórdão deriva de "acordam", forma adotada para iniciar o texto da decisão, isto é, "põem-se
de acordo", "ficam de acordo", quanto a uma determinada questão de fato e de direito
submetida a julgamento. No artigo 163 do Código de Processo Civil, encontramos que
Acórdão é o julgamento proferido pelos Juízes dos tribunais (BRASIL, 2011). De acordo com
a Constituição Federal, os Juízes que atuam nos Tribunais de Justiça dos Estados são
chamados Desembargadores (BRASIL, 2011). Nessa primeira definição, já se faz presente
uma menção aos produtores autorizados desse gênero (Desembargadores), bem como ao
quadro institucional em que são produzidos (Tribunais de Justiça).
Pela definição legal, percebemos que o acórdão possui uma unidade, embora surja
como resultado da manifestação da convicção de três julgadores. Buscando a recuperação da
cena enunciativa, questionamos as condições práticas em que essa peça unitária é elaborada.
Na legislação, encontramos que o recurso interposto contra decisão de primeira instância é
julgado em uma sessão ordinária do Tribunal, a qual se desenrola no seguinte formato: o
Presidente anuncia o julgamento do recurso e as partes são apregoadas pelo Oficial de Justiça.
Em seguida, o Relator faz a exposição do feito (leitura do Relatório). O advogado da parte
poderá fazer a sustentação oral das razões de seu recurso, assim como o órgão da acusação,
desde que solicitem com antecedência. Nos autos ora analisados, não houve sustentação oral
por nenhuma das partes. Na sequência, são proferidos os votos, começando pelo Relator. O
voto é proferido oralmente e registrado pelos taquígrafos ou digitadores do tribunal.
Concluído o julgamento, o Presidente proclamará a decisão, que será sumariamente
publicada no "Diário do Judiciário".
O regimento interno determina que o Acórdão será lavrado pelo Relator e conterá a
identificação do presidente, do relator e dos demais julgadores e a ele serão juntados os votos,
revistos e autenticados pelos julgadores. No caso ora analisado, como o julgamento foi
unânime e houve voto escrito apenas do relator, com a manifestação dos demais julgadores de
179
que estavam “de acordo”, somente esse voto foi publicado na íntegra. Em outras palavras, o
voto do Relator consubstanciou-se no texto resultante do julgamento.
A título de ilustração, elaboramos o seguinte quadro enunciativo:
Locutor : Desembargadores (Primeira Câmara Criminal)
Enunciação (EÃO)
Enunciado: Vistos etc., acorda, em Turma, a PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM, À UNANIMIDADE, REJEITAR PRELIMINAR E NEGAR PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.
Alocutário imediato: Ré/Advogado, Juiz de Direito de primeira instância, Promotor de
Justiça, Procuradores de Justiça
mediato: demais sujeitos processuais, sociedade
Quadro 39: Condições enunciativas do Acórdão Fonte: Elaborado pela autora
Nesse texto, estão contidos todos os requisitos essenciais definidos pelo entendimento
de vários artigos: o artigo 165, combinado com os artigos 458 e 563, do Código de Processo
Civil e o artigo 82 do Regimento Interno (BRASIL, 2011). Por eles, fica estabelecido que os
acórdãos devem conter: a ementa (resumo dos votos); a súmula; a indicação do órgão que fez
o julgamento; o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do
réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; os
fundamentos, em que o magistrado analisará as questões de fato e de direito; o dispositivo, em
que o magistrado resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.
Vejamos:
6.4.1.1 A ementa
A ementa é o resumo dos votos que integram o acórdão. Tem início com a palavra ou
expressão designativa do tema principal:
EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE (CP, ART. 124) - CRIME QUE DEIXA VESTÍGIO - PRELIMINAR - NULIDADE ABSOLUTA COM EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO, EM FACE DA FALTA OU VÍCIO DO EXAME DE CORPO DE
180
DELITO - DESCABIMENTO - DESAPARECIDOS OS VESTÍGIOS DO ABORTO - IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DO EXAME DE CORPO DE DELITO - CPP, ART. 167 - ADMITIDA A PROVA TESTEMUNHAL E LAUDO MÉDICO, CORROBORADOS PELO DEPOIMENTO DA ACUSADA - ACD INDIRETO - ADMISSIBILIDADE - PROCESSO MODERNO - BUSCA DA VERDADE REAL - TODAS AS PROVAS DEVEM SER IGUALMENTE CONSIDERADAS, NÃO EXISTINDO, ENTRE ELAS, HIERARQUIA - LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO - MÉRITO - CPP, ART. 408 - IMPRONÚNCIA - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - INVIABILIDADE - INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO SOCIETATE' - INVERSÃO AO NATURAL PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO REO' - RESTA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI (CF/1988, ART. 5, XXXVIII) - PRECEDENTES DO STF, STJ E TJMG.
6.4.1.2 A súmula
Súmula é a síntese ou enunciado de um entendimento jurisprudencial extraído de
reiteradas decisões no mesmo sentido. No proferimento analisado, recebeu o seguinte
formato:
SÚMULA: À UNANIMIDADE, REJEITARAM PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.
6.4.1.3 O voto
A parte substancial do Acórdão encontra-se no voto. À maneira da sentença, o voto se
divide em três momentos: relatório, fundamento, dispositivo.
A lei estatui que o relatório conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da
resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do
processo.
No fundamento, o juiz analisará as questões de fato e de direito e no dispositivo,
resolverá as questões que as partes lhe submeterem.
O resultado final da combinação de todas essas partes é uma peça processual
completa, composta por ementa, acórdão, votos e súmula, que recebe o nome genérico de
Acórdão.
181
Algumas questões para reflexão: além de definir o acórdão e de preceituar quem são
seus produtores, o Código ainda estabelece que, quando for proferido verbalmente, o
taquígrafo ou datilógrafo registrará o acórdão, submetendo-o aos desembargadores para
revisão e assinatura. O voto de um desembargador é proferido oralmente durante a sessão de
julgamento e reproduzido pelo escrevente através de notas taquigráficas. Mas não há marcas
de oralidade nesse proferimento.
Outra questão é a relação entre a sentença de primeiro grau, objeto de recurso, e o
acórdão, que também é uma sentença, mas proferida em um segundo grau de jurisdição. No
que diz respeito às condições enunciativas, observamos uma diferença bastante nítida entre
ambos. A sentença é resultado da convicção de um juiz apenas. O acórdão é o resultado da
deliberação de três desembargadores, em uma instância superior, que dará a palavra final
quanto ao conflito instaurado.
Por conter as vozes dos sujeitos processuais que atuaram na tramitação do processo na
primeira e segunda instâncias (acusação, defesa e julgamento, testemunhas, ré), assim como
as vozes da legislação, da ciência do direito e dos julgamentos produzidos em outros
tribunais, essa peça chama atenção quanto ao seu aspecto dialógico/polifônico. Em seguida,
nos inclinamos sobre ele.
6.4.1.4 Análise argumentativa do Acórdão: quadro institucional, doxa, premissas
Para a análise argumentativa do Acórdão nos moldes propostos por Amossy (2006),
devemos inicialmente nos ater ao quadro institucional, que modela e determina o
funcionamento discursivo voltado à persuasão.
Conforme já discorremos, no discurso judicial processual penal do Tribunal do Júri,
tem-se um quadro argumentativo semelhante a um jogo retórico/dialético. Acusação e defesa
lançam suas teses na tentativa de alcançar a adesão de um auditório particular, representado
pela instância julgadora: o Juiz de Direito, na primeira fase do processo; os Desembargadores
do Tribunal de Justiça, na fase recursal; o Corpo de Jurados, durante a Sessão de Julgamento
no Tribunal do Júri.
Especificamente na fase recursal, sobre a qual nos reclinamos agora, o auditório
compreende um órgão judicial de segunda instância, composto por Desembargadores, que
são, nas palavras de Bourdieu (2008), sujeitos portadores de um estatuto social que lhes
182
garante considerável poder simbólico aos olhos do público, até mesmo perante os magistrados
de primeira instância, dada a posição hierárquica que detêm na estrutura judiciária.
Para Amossy (2006), o uso da palavra persuasiva está condicionado ao lugar
socioinstitucional de sua produção e circulação, daí decorrendo a distinção entre os gêneros
judiciário, deliberativo e epidítico. Dessa forma, a argumentação se encontra em uma relação
de dependência com o domínio do qual ela emerge e com o gênero no qual se insere,
adotando, assim as modalidades de persuasão que lhe são mais pertinentes.
No discurso processual penal, o jogo discursivo submete-se a regras tanto quanto à
condição de quem pode desempenhar o papel de jogador, como para o próprio funcionamento
da partida. Por isso, suas produções discursivas sujeitam-se a fortes restrições por parte da lei,
dos regulamentos e dos procedimentos próprios do domínio jurídico.
Quanto ao papel dos “jogadores”, lembramos que a palavra é prerrogativa do Juiz de
Direito, do Promotor, do Advogado e, em algumas situações, das pessoas chamadas a
colaborar com a efetivação da Justiça, como peritos, testemunhas, escreventes, etc. O réu,
maior interessado no resultado desse embate discursivo, só pode se manifestar pessoalmente
em momentos processuais bem específicos, como os interrogatórios diante do Juiz e do Corpo
de Jurados. O Defensor fala em seu nome na maior parte do tempo. Na fase recursal, a palavra
é prerrogativa do Advogado de Defesa, do Procurador de Justiça e dos Desembargadores.
Considerando que a verdade factual não é dada previamente na situação processual, e
talvez não seja alcançada nem mesmo ao final dos trâmites legais, acusação e defesa buscam
reunir tudo o que seu ponto de vista comporta de verossímil, exercitando os recursos da língua
a fim de persuadir o julgador da plausibilidade de suas teses.
Para a instância julgadora, fica o papel de se posicionar favorável ou contrariamente a
uma ou outra parte, vez que o Estado não pode se furtar à prestação jurisdicional. Já nos
arriscamos a afirmar que, nesse papel de acatar uma ou outra tese, o julgador, na verdade,
constrói uma nova versão para os fatos, resultante de sua atividade interpretativa, e é essa a
versão que adquire valor de verdade, graças às relações de poder que perpassam o
funcionamento da instituição judiciária. Inclusive, é no discurso decisório produzido pelas
instâncias julgadoras que se manifesta o padrão mais típico de performatividade da
linguagem, conforme pensado por Austin (1990), na primeira fase de sua Teoria dos Atos de
Fala41.
41 Sobre a performatividade da linguagem nas decisões judiciais, já discorremos nos tópicos anteriores.
183
Estabelecidos os participantes que atuam nesse jogo retórico/dialético, podemos
pensar então nas estratégias argumentativas empregadas por eles para obter a persuasão. Na
retórica clássica, considera-se que o orador, apoiando-se em um tópico (um conjunto de
lugares comuns), tenta fazer seus interlocutores aderirem às teses que apresenta a seu
assentimento. Devemos considerar, contudo, que diferentemente do lógico ou do matemático,
que agem no interior de um sistema de elementos fechados, no discurso argumentativo o
orador constrói seus argumentos a partir de fontes diversificadas, que incluem tanto elementos
do senso comum, como elementos especializados de uma disciplina específica.
Esses elementos são genericamente chamados por Amossy (2006) de elementos
dóxicos e são definidos como o conjunto de saberes e crenças coletivos, constitutivos dos
pontos de acordo que fundamentam qualquer argumentação e dos quais depende o efeito de
persuasão. Para a autora, o estudo dos elementos dóxicos justifica-se na medida em que estes
contribuem para a compreensão de um funcionamento discursivo cujo objetivo central é a
adesão de um adversário, em uma situação de comunicação determinada.
Dessa forma, nas teorias que estudam a argumentação em sua vertente retórica, entre
as quais se filiam a teoria de procedência perelmaniana e a análise da argumentação no
discurso, de Amossy, considera-se que o discurso argumentativo é construído sobre os pontos
de acordo estabelecidos entre orador e auditório. Daí a afirmação de que “[...] é sempre em
um espaço de opiniões e crenças coletivas que [o orador] tenta resolver uma diferença ou
consolidar um ponto de vista. O saber partilhado e as representações sociais constituem,
portanto, o fundamento de toda argumentação”. (AMOSSY, 2006, p. 99, tradução nossa)42.
É interessante observar que, para Amossy (2006), o discurso argumentativo ancora-se
em uma doxa que perpassa o sujeito argumentante sem que ele esteja absolutamente
consciente dela. Assim, a autora relativiza a noção retórica de sujeito, segundo a qual o orador
seria um ente soberano, que utiliza os procedimentos a serviço de uma finalidade explícita.
Maingueneau também critica essa concepção retórica de sujeito, a qual, nas palavras do autor,
“coloca dois indivíduos face a face e lhes propõe um repertório de ‘atitudes’, de ‘estratégias’
destinadas a atingir esta ou aquela finalidade consciente” (MAINGUENEAU, 1997, p. 33).
Para ele, as formas de subjetividade são implicadas nas condições de possibilidade de uma
formação discursiva.
42 [...] c’est toujours dans um espace d’opinions et de croyances collectives qu’il tente de résoudre um différend ou de consolider un point de vue. Le savoir partagé et les représentations sociales constituent donc le fondement de toute argumentation.
184
Amossy se lança ainda à tarefa de atribuir ao conceito de doxa e a seus correlatos,
como “topoï”, “estereótipo”, “ideia recebida”, “opinião partilhada”, “representações sociais”,
etc, um balizamento mais claro e mais profundo, dada a complexidade e a universalidade
dessas noções. Sendo assim, em sua proposta de análise da argumentação no discurso, a
autora relaciona a noção de doxa ou opinião comum, de um lado, aos conjuntos discursivos –
discursos sociais ou interdiscursos – que a veiculam, e de outro lado, às formas lógico-
discursivas particulares – topoï, ideias recebidas, representações sociais e estereótipos, que
são os canais de onde ela emerge de maneira concreta.
A noção de interdiscurso é desenvolvida por Maingueneau (2008) paralelamente aos
conceitos de formação discursiva e intersubjetividade enunciativa. Em nosso trabalho,
optamos por não adotar essa vertente como instrumento de análise. Por uma questão de
coerência à concepção de gêneros textuais e domínios discursivos que assumimos aqui, na
descrição e explicação da dimensão institucional do discurso jurídico, apenas tangenciaremos
os conceitos de formação discursiva, intertexto, intertextualidade e outras. Portanto, nos
limites deste trabalho, nos ateremos à segunda vertente de abordagem dos elementos dóxicos:
as formas lógico-discursivas particulares (topoï, ideias recebidas, representações sociais e
estereótipos).
Formas lógico-discursivas particulares: topoï
Os princípios de classificação aristotélica dos topoï já receberam reformulações
diversas, conforme a linha de pesquisa adotada por quem os sistematiza.
Em seu estudo sobre a doxa, Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) retornam aos topoï
aristotélicos e, a exemplo de outros autores, como Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) e
Ducrot (1989), também operam uma nova sistematização metodológica nos conceitos de
lugares comuns e lugares específicos.
As autoras definem o lugar comum (topos/topoï) como estrutura formal, esquema
lógico-abstrato sem conteúdo determinado, que modela a argumentação. Na qualidade de
esquemas formais, os lugares comuns podem ser concretizados nas mais diversas
modalidades, como por exemplo: “o que vale para o menos, vale para o mais”. Porém, essa
concretude subentende a predominância de certos valores, em determinada época, em um
dado contexto. Trata-se, portanto, de esquemas que podem ser convertidos em raciocínios
completos, cuja proposição é apenas uma das inúmeras atualizações possíveis.
185
Amossy (2006) apresenta como decorrentes dos lugares comuns enunciados como: se
uma pessoa pode dedicar tanto tempo para ajudar os vizinhos, pode certamente consagrar
algum tempo para ajudar sua própria família; aquele que é bom para o menos próximo, pode
ser melhor para o mais próximo. O lugar comum, nesses exemplos, seria o já referido “o que
vale para o menos, vale para o mais”.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) elaboram uma classificação dos lugares
aristotélicos definindo-os em sua relação com valores e hierarquias e com o grau de adesão
que suscitam no auditório. Assim, afirmam que, para fundamentar valores ou hierarquias, ou
reforçar a intensidade da adesão que eles provocam, é possível relacioná-los a outros valores
ou hierarquias, mas pode-se também recorrer a premissas gerais, chamadas lugares.
Os autores distinguem entre os lugares comuns, que são afirmações muito amplas
acerca do que se supõe valer mais em qualquer domínio, e os lugares específicos, que
determinam o que vale mais em um domínio particular.
Entre os lugares comuns, incluem-se os lugares da quantidade e da qualidade.
Compreendem-se como lugar da quantidade os lugares que afirmam que alguma coisa é
melhor do que outra por razões quantitativas. Por outro lado, aparecem na argumentação os
lugares da qualidade quando se contesta a virtude do número. Perelman (1987) fala também
nos lugares da ordem, nos lugares do existente, nos lugares da pessoa e outros.
Por ser abstrato e desprovido de conteúdo, o lugar comum sustenta um número
ilimitado de proposições concretas. Por isso, haveria um mal-entendido na interpretação dos
tópicos aristotélicos quando se considera que os lugares comuns são reservatórios de
argumentos. Para Amossy e Herschberg-Pierrot, os lugares específicos, relativos a um gênero
e a um sujeito determinado, é que desempenham esse papel de repertório, uma vez que “ [...]
recuperam as opiniões correntes, as ‘ideias recebidas’ de uma coletividade” (AMOSSY;
HERSCHBERG-PIERROT, 1997, p. 103, tradução nossa)43.
Em síntese, depreende-se que a eficácia argumentativa depende não só da validade do
esquema lógico ou lugar comum, mas também do julgamento do conteúdo das proposições.
Nessa concepção, o lugar específico seria, então, o canal de entrada dos elementos dóxicos e
ideológicos.
Aplicando essas formulações ao corpus em estudo, de uma maneira geral, podemos
afirmar que, no discurso processual penal do Tribunal do Júri, o conjunto dóxico que
determina a situação de discurso na qual se argumenta, atua condicionando os sujeitos e
43 Ces lieux spécifiques, ou encore spéciaux, recoupent les opinions courantes, les « idées reçues » d’une collectivité [...].
186
modelando sua palavra, sem que eles tenham plena consciência de sua dimensão. Esse
conjunto é composto pelos saberes próprios do campo jurídico – saberes científicos,
legitimados pelas instâncias de produção de discursos dessa natureza, como as academias, os
tribunais, as instituições legislativas – e também por representações sociais acerca do aborto,
dos gêneros masculino e feminino e do papel do judiciário na sociedade.
Vejamos, no Acórdão ora analisado, como lugares comuns e lugares específicos são
invocados para fundamentar uma argumentação no âmbito de um Processo Penal.
Ao longo de todo esse proferimento, encontramos várias sequências textuais em que o
locutor faz citações literais de trechos de obras da doutrina jurídica, de dispositivos legais e de
jurisprudência, originária tanto do Tribunal de Justiça de Minas Gerais quanto de outros
tribunais. Destacamos, nessas sequências, o encaixe de várias frases genéricas, como as que
transcrevemos a seguir:
Tudo que lícito for, idôneo será para projetar a verdade real. (jurisprudência do STJ, fls. 123) Todas as provas são relativas: nenhuma delas terá ex vi legis valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra. (orientação constante da Exposição de Motivos do CPP, citada em jurisprudência do STJ, fls. 124) Todas as provas devem ser igualmente consideradas, não existindo, entre elas, hierarquia. (jurisprudência do STJ, fls. 125)
Trata-se de enunciados amplos, produzidos como resultado de um raciocínio
elaborado para uma situação específica, mas que são redigidos de tal forma que podem ser
alocados para qualquer outra situação enunciativa em que se encontre em pauta a temática por
eles abordada. Dessa forma, devido a seu alto grau de generalização, eles podem ser
descolados da situação original de produção e encaixados em outras situações enunciativas, a
fim de referendar um caso particular a partir de um saber global (AMOSSY, 2006).
Entretanto, cabe a ressalva de que tais enunciados, apesar de genéricos, são próprios
do domínio jurídico, ou seja, têm sua ocorrência circunscrita ao gênero judiciário,
assemelhando-se, em sua estrutura composicional e funcionamento discursivo, ao dispositivo
de lei. Por isso, em nossa leitura de Amossy e Herschberg-Pierrot (1997), considerando sua
produção e circulação praticamente restrita aos quadros institucionais da justiça, tomamos tais
enunciados como exemplos de lugares específicos do direito.
Dessa forma, observamos que nos enunciados genéricos analisados acima, o discurso
da norma e o discurso judicial, conforme classificação de Ferraz Jr., são invocados para
fundamentar o raciocínio do Desembargador que elaborou o presente Acórdão. Na verdade,
187
não só o discurso da norma perpassa e constitui os demais: o discurso judicial e o da ciência
do direito também desempenham papel fundador.
Maingueneau (2008) defende que “as remissões de um campo a outro”, materializadas
em citações, esquemas tácitos ou captações, são muito úteis para a eficácia discursiva, pois:
[...] confrontando com um discurso de certo campo, um sujeito encontra elementos elaborados em outro lugar, os quais, intervindo sub-recepticiamente, criam um efeito de evidência. Assiste-se a uma metáfora, a uma transposição generalizada de um campo a outro (mas não de qualquer campo para não importa qual outro), sem que seja possível definir um lugar de origem, em “sentido próprio”. (MAINGUENEAU, 2008).
O “campo” a que o autor se refere corresponde aos grandes domínios discursivos: o
político, o jurídico, o religioso, o filosófico. Por analogia, observamos que, mesmo no interior
de um único campo, no qual se verificam subcampos, essas remissões são recorrentes. No
domínio jurídico, por exemplo, que abrange uma grande variedade de subdomínios de
natureza tão diversa (como o discurso da norma, da ciência do direito e judicial), as atividades
de transposição de um lugar para outro são essenciais.
Adentramos, com isso, o espaço dos fenômenos de heterogeneidade discursiva.
Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva
Authier-Revuz (2004), analisando a presença do outro no discurso, elabora os
conceitos de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. No primeiro caso,
trata-se de “formas marcadas que atribuem ao outro um lugar linguisticamente descritível,
claramente delimitado no discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 21). A heterogeneidade
constitutiva, por sua vez, é identificada por meio de formas dispersas, lacunares, não tão
facilmente recuperáveis no discurso.
No mesmo sentido, Maingueneau (1997) afirma que:
A primeira [heterogeneidade mostrada] incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda [heterogeneidade constitutiva] aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva. (MAINGUENEAU, 1997, p. 75)
O autor entende que elaborar uma categorização exaustiva das marcas de
heterogeneidade é uma tarefa arriscada, que pode levar a erros. Por isso, opta por elaborar
uma classificação empírica, na qual divide, em dois conjuntos, os mecanismos que considera
188
de utilidade para a Análise do Discurso. Assim, os mecanismos de polifonia, a pressuposição,
a negação, o discurso relatado, as palavras entre aspas, o metadiscurso do locutor, a
parafrasagem, o discurso indireto livre, a ironia, o argumento de autoridade e outros são
tratados por Maingueneau (1997) como fatos de heterogeneidade mostrada. A
heterogeneidade constitutiva é abordada pelo autor no nível do interdiscurso.
Observemos uma manifestação de heterogeneidade mostrada na sequência textual
apresentada a seguir. No caso, a estratégia do discurso relatado compreende o agenciamento,
por parte do locutor, de vozes outras para relatar uma enunciação.
No excerto abaixo, o locutor faz uma citação literal de um autor que goza de bastante
prestígio no meio jurídico, que parece corroborar a tese defendida por ele até ali. O locutor
escreve:
Neste sentido, ensinamentos de JÚLIO FABBRINI MIRABETE: Por vezes, as infrações não deixam vestígios ou estes não são encontrados, desaparecem, não permanecem, impossibilitando o exame direto. Citem-se como exemplo o homicídio praticado por afogamento em alto-mar em que o corpo da vítima não é encontrado, o furto em que a coisa subtraída não é recuperada, o estupro e o atentado violento ao pudor quando o fato é levado ao conhecimento da autoridade muitos dias após a ocorrência, etc... (fls. 122)
Chamamos a atenção para o fato de que o nome do autor foi grafado em caixa alta,
para sublinhar a posição ocupada por ele no meio jurídico. Aqui, o discurso da ciência do
direito é chamado para compor a base de sustentação do raciocínio, confirmando a
verossimilhança da tese defendida pelo locutor.
A citação literal, que é uma das modalidades do discurso relatado, é considerada por
Maingueneau (1997) como uma das manifestações mais clássicas da heterogeneidade
enunciativa. Nas palavras de Maingueneau (1997), “o discurso direto [citação literal] se
caracteriza pela aparição de um segundo ‘locutor’ no enunciado atribuído a um primeiro
‘locutor’”. (MAINGUENEAU, 1997, p. 85).
Trata-se de uma “teatralização de uma enunciação anterior”, sem que se verifique,
necessariamente, uma similitude absoluta. Dessa forma, segundo o autor, seria ingenuidade
crer que o discurso direto pretende apenas relatar fielmente as palavras citadas.
Ao avaliar o grau de adesão do locutor àquilo que está afirmando, Maingueneau
identifica uma ambiguidade fundamental do fenômeno de citação. Essa ambiguidade consiste
em uma variação do grau de distanciamento do locutor, conforme se explica a seguir:
189
O locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como a ‘autoridade’ que protege a asserção. Pode-se tanto dizer que ‘o que enuncio é verdade porque não sou eu que o digo’, quanto o contrário. O que é afinal ‘autoridade’ em matéria de discussão, senão o nome de um ausente? Se a autoridade invocada estivesse presente, expor-se-ia à discussão anulando-se como tal. O valor de autoridade ligado a toda enunciação (‘é verdade, porque eu o digo’) é geralmente insuficiente e cada formação discursiva deve apelar à autoridade pertinente, considerando sua posição. (MAINGUENEAU, 1997, p. 86).
No excerto transcrito acima, o grau de distanciamento entre o Desembargador e o
autor citado por ele (Mirabete) parece mínimo, enquanto a adesão do primeiro à asserção do
segundo atinge grau máximo.
Após a citação direta das lições de Mirabete, o locutor traz mais um elemento para
confirmar sua tese. Desta vez, transcreve literalmente trecho de um acórdão relatado por um
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, relativo ao julgamento de um outro caso:
Vale posicionamento do colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em lapidar acórdão relatado pelo Min. Vicente Cernicchiaro: ‘Corpo de delito, na clássica definição de João Mendes, é o conjunto dos elementos sensíveis do fato criminoso. Diz-se direto quando reúne elementos materiais do fato imputado. Indireto, se, por qualquer meio, evidencia a existência do acontecimento delituoso. A Constituição da República resguarda serem admitidas as provas que não foram proibidas por lei. Restou, assim, afetada a cláusula final do art. 158, CPP, ou seja, a confissão não ser idônea para concorrer o exame de corpo de delito. No processo moderno, não há hierarquia de provas, nem provas específicas para determinado caso. Tudo que ilícito for, idôneo será para projetar a verdade real (...)’. (fls. 122)
No nível microcontextual, em que se observa a estrutura linguística das citações,
Maingueneau (1997) chama a atenção para os verbos que introduzem o discurso relatado, pois
“em função do verbo escolhido (sugerir, afirmar, pretender...), toda a interpretação da citação
será afetada”. (MAINGUENEAU, 1997, p. 88).
Na citação transcrita acima, o locutor introduz a fala do Ministro do Tribunal de
Justiça com a seguinte expressão: “vale posicionamento do colendo SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTICA, em lapidar acórdão relatado pelo Min....”. Nesse caso, o verbo “valer” veicula
o pressuposto de que a opinião do locutor citado referenda a opinião daquele que faz a
citação, sendo, portanto, válida para afastar qualquer dúvida que pudesse subsistir sobre o
fato.
Destaca-se ainda o qualificativo empregado para designar o local de onde proveio a
citação – o “colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA” – reforçando o acerto da
proposição e o valor argumentativo da autoridade da pessoa que o proferiu. Nesse ponto, é
oportuna também a constatação de que o grau de distanciamento entre o Desembargador e o
190
autor citado é mínimo, enquanto a adesão do primeiro à asserção do segundo atinge grau
máximo.
Para compreender o mecanismo de agenciamento de vozes neste último excerto
transcrito, chamaremos o Desembargador que o relatou de l1 (locutor 1) e o acórdão analisado
de A1 (acórdão 1). A1 e l1 serão tomados como parâmetros. Os demais locutores agenciados
por l1 serão chamados de l2, l3 e assim sucessivamente. Veremos como se encaixam diversos
enunciadores, em diversas situações enunciativas diferentes, em uma peça processual, com
vistas à persuasão do auditório.
L1 cita um outro acórdão (A2), produzido por um outro locutor (l2), que se constitui
como instância decisória em uma outra ação judicial, portanto, em uma situação enunciativa
diversa, para corroborar seu raciocínio.
Nesse acórdão que foi citado (A2), l2 constrói sua argumentação com base em
ensinamentos de autores consagrados da ciência do direito; faz menção a dispositivos da lei,
especialmente da Constituição Federal (CF) e do Código de Processo Penal (CPP) e também
traz à sua fala um terceiro acórdão (A3).
De maneira esquemática, temos o seguinte quadro representativo dessa rede de
citações diretas e indiretas:
Quadro 40: Discurso relatado no Acórdão Fonte: Elaborado pela autora
Na sequência do proferimento analisado, l1 ainda transcreve literalmente as súmulas de
outros quatro acórdãos, tudo para dar balizamento à sua tese de que foram produzidas nos
autos provas suficientes da autoria e da materialidade do delito.
Discurso da ciência do direito
A1 L1
Discurso da norma
Discurso judicial
Doutrinador 1
CPP
A2 L2
Doutrinador 2
A3
Discurso da ciência do direito
Discurso da norma
Discurso judicial
CPP, CF
191
Já nos referimos, neste trabalho, às formas e funções desempenhadas pelo discurso
indireto como meio de persuasão. Nesse sentido, afirmamos que, ao produzirem seus
proferimentos, os sujeitos processuais principais (Juiz, Promotor e Defensor) recuperam os
depoimentos concedidos pelas testemunhas, tanto na fase policial quanto na fase judicial, e os
introduzem nas peças processuais que elaboram, sempre com um direcionamento persuasivo e
não meramente informativo.
Prosseguindo na análise do emprego do discurso relatado em nosso corpus, passamos
a abordar, a partir daqui, seu funcionamento como mecanismo argumentativo de manifestação
das representações sociais e estereótipos no discurso.
Discurso relatado, representações sociais e estereótipos
No interior do conjunto fluido e indeterminado do “já conhecido”, do “já-dito”, do
familiar e do partilhado, Amossy (2006) chama a atenção para as representações sociais que
emergem do discurso, de maneira mais ou menos implícita.
Com base em Moscovici (2003), Leyens (1986) define representação social como “um
processo de construção social do real que, de maneira esquemática, tenta explicar e
categorizar o real que nos rodeia; este processo vai, por sua vez, regular a dinâmica da
sociedade”. (LEYENS, 1986, p. 362). O autor enfatiza que ela não é apenas uma crença, mas
uma forma mesmo de construção da realidade e, como tal, produz efeitos sobre nossos
comportamentos.
Para Jodelet (2001), trata-se de “fenômenos complexos sempre ativados e em ação na
vida social”, que surgem como formas de conhecimento reveladas a partir de elementos
cognitivos, como imagens, conceitos, categorias, teorias. (JODELET, 2001, p. 21).
Ao investigar as representações sociais sobre a Justiça em Portugal, Leyens (1986)
chega à conclusão de que, nas relações entre Direito e sociedade, o pensar, por exemplo, que
“o mundo é justo e que cada um tem o que merece”, pode ter consequências consideráveis.
Nesse sentido, Franco atribui às representações sociais um caráter preditivo: “uma vez
que, segundo o que um indivíduo diz, não apenas podemos inferir suas concepções de mundo,
como também podemos deduzir sua ‘orientação para a ação’”. (FRANCO, 2004, p. 171)
Rodrigues, Sousa e Marques (1986) complementam que “ao determinar os
comportamentos face ao ‘real’, o ‘representado’ determina a estrutura e actividade social
objectiva. A representação social acaba, assim, por contribuir para a manutenção ou para a
transformação de uma estrutura social”. (RODRIGUES; SOUSA; MARQUES, 1986, p. 388).
192
Cada área de pensamento aborda a temática das representações sociais de acordo com
seus métodos próprios de análise. Trata-se, portanto, de um tema transversal, que atravessa
diferentes campos de estudos.
Assim, na Psicologia Social, são aplicados questionários, entrevistas estruturadas e
outros métodos empíricos para se conhecerem as representações sociais dos sujeitos
pesquisados acerca de um determinado tema44.
No campo dos estudos da linguagem, mais particularmente na Análise da
Conversação, propõe-se um tratamento discursivo e conversacional para as representações
sociais.
Py (2000) trata dessa temática ao abordar os fenômenos de heterogeneidade
discursiva, postulando que esta última desempenha um papel fundamental na circulação dos
elementos dóxicos, de maneira geral, e das representações sociais, de maneira mais específica.
Serra (2000) também relaciona heterogeneidade discursiva e representações sociais ao
analisar dados de um corpus no qual aparecem várias instâncias enunciativas: o locutor
(falante), os participantes da conversação, outros locutores (às vezes coletivos) evocados
pelos falantes, e um enunciador anônimo, não especificado, responsável por proposições
genéricas que vão servir de tema para a interação conversacional.
Como afirma Serra (2000), no âmbito da análise da conversação, as representações
sociais veiculadas pelos discursos argumentativos ocupam posição central nos raciocínios
desenvolvidos no decorrer do jogo conversacional. Nesse sentido, a autora defende que as
representações servem para provar, motivar ou legitimar aquilo que se alega, ao instituir uma
relação simétrica entre a construção argumentativa do eu e do outro, apoiando-se na palavra
do discurso precedente e criando um novo discurso a partir da relação com os parceiros.
Serra (2000) considera ainda que a palavra cristaliza as representações. Py (2000)
acrescenta a ressalva de que, mesmo cristalizadas, as representações sociais são dinâmicas
(PY, 2000). Elas são colocadas em movimento por diversos processos de interação discursiva:
inicialmente, aparecem através de fórmulas estereotipadas, mas isso não significa que não
estejam sujeitas aos influxos das mudanças por atenuação, modalização ou redução no interior
do domínio discursivo em que são aplicadas, sobretudo quando contestadas por um
enunciador.
44 Um exemplo dessa forma de abordagem é a dissertação de mestrado de Pérez (2006). A pesquisa realizada por ela contemplou 147 mulheres que haviam se submetido a procedimento voluntário de aborto. Para a coleta dos dados, Pérez (2006) realizou entrevistas e aplicou teste de livre associação de palavras. Os aspectos quantitativos da pesquisa foram observados no processamento estatístico das informações por meio do software EVOC 2000. Em seguida, procedeu-se à análise temática dos dados.
193
Na Análise argumentativa proposta por Amossy, assim como na vertente francesa de
Análise do Discurso, as representações sociais, que emergem de maneira mais ou menos
implícitas no discurso, são apreendidas pela noção de estereótipo:
[...] no sentido estrito do termo, o estereótipo pode ser definido como uma representação ou uma imagem coletiva simplificada e cristalizada dos seres e das coisas que herdamos de nossa cultura e que determinam nossas atitudes e comportamentos. Considerado tanto como uma crença como uma opinião comum, ele releva sempre do pré-construído e aparece frequentemente como um preconceito. (AMOSSY, 2006, p. 121, tradução nossa)45.
Assim, os elementos de estereotipia são identificados por meio de seus componentes
discursivos, como as escolhas lexicais, as imagens circulantes, o estudo dos implícitos.
Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) lembram que em todas as disciplinas, observa-se
uma tendência de se tratar da estereotipia como algo pejorativo, que dificulta a livre apreensão
do real, bem como a produção de algo original e inovador. Dessa forma, as autoras propõem
que a análise ideológica do estereótipo seja substituída por uma abordagem em que ele é
considerado um fenômeno inevitável, sem o qual não seria possível qualquer operação de
categorização, de generalização ou de construção da identidade dos interlocutores (AMOSSY,
2006).
Para a eficácia da palavra, aqui mensurada com base em seu poder de persuasão, o
estereótipo é muito importante, assim como os demais elementos dóxicos. A estereotipia
consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, na qual a
comunidade avalia e percebe o indivíduo e o classifica segundo um modelo pré-constituído.
Desse modo, “o estereótipo permite designar os modos de raciocínio próprios a um grupo e os
conteúdos globais do setor da doxa na qual ele se situa” (AMOSSY, 2005a, p. 126). Sob essa
perspectiva, um sujeito só pode representar os demais se os relacionar a uma categoria social,
étnica ou política, como por exemplo, a classe dos socialistas, dos comunistas, dos liberais,
das feministas, etc.
Leyens (1986) ressalta a funcionalidade social dessa atividade de categorização, ou
esquematização, afirmando que:
45 [...] au sens restreint du terme, le estéréotype peut se définir comme une représentation ou une image colletive simplifiée et figée des êtres et des choses que nous héritons de notre culture, et que détermine nos attitudes et nos comportements. Considéré tantôt comme une croyance et tantôt comme une opinion, il relève toujours du préconstruit e s’apparente souvent au préjugé.
194
[...] nós não podemos saber de tudo em pormenor; nem podemos permitir-nos testar todas as hipóteses possíveis quanto à personalidade e ao comportamento das pessoas que encontramos pela primeira vez; temos que agir, que interagir o mais rápida e eficazmente possível sob pena de a interacção ficar por ali. (LEYENS, 1986, p. 361)
Nem sempre o estereótipo é enunciado com todos os seus atributos, o que demanda
uma atividade de “deciframento” acurada por parte dos alocutários, na qual as características
do grupo focado devem ser identificadas e relacionadas a um modelo cultural já existente. Daí
o caráter dialógico da estereotipia.
Amossy (2006) afirma que, na maioria dos casos, os dados discursivos são indiretos
ou implícitos, esparsos e lacunares, de modo que o estereótipo precisa ser recomposto a partir
de diversos elementos, para a identificação de um traço típico. No mesmo sentido, Authier-
Revuz postula que:
No caso do (ou, sem dúvida, ‘dos’) discurso(s) indireto(s) livre(s), da ironia, da antífrase, da imitação, da alusão, da reminiscência, do estereótipo (...) a presença do outro não é explicitada por presenças unívocas na frase: a ‘menção’ que duplica o uso que é feito das palavras só é dada a reconhecer, a interpretar, a partir de índices recuperáveis no discurso em função de seu exterior. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 17-18, grifo nosso).
Para Authier-Revuz (2004), essa forma de “jogo com o outro” opera no espaço do
implícito, do não-revelado, do enigmático e é muito usada por discursos de natureza retórica.
Trata-se de uma atividade de risco, pois o “deciframento” pode se dar de acordo com o
projeto do locutor, ou não.
Tomemos um exemplo de uma possível necessidade de “deciframento” no Acórdão
ora analisado:
No caso dos autos, constata-se que a prova médica foi contundente, não só nos depoimentos dos médicos, alarmados com o crescimento dos casos de aborto na cidade, bem como na juntada da ficha correspondente ao internamento da Recorrente no Pronto-Socorro, tudo por causa das complicações que teriam nascido de um quadro de aborto. (fls. 126)
Neste excerto, observa-se que havia uma crença compartilhada de que, cada vez mais,
mulheres estavam se submetendo a procedimentos de interrupção voluntária de gravidez na
cidade em que R foi processada. Essa crença foi disseminada entre os diversos sujeitos que
participaram da relação processual e foi veiculada logo na abertura do Inquérito Policial,
quando os funcionários da Santa Casa foram chamados a prestar depoimento. A partir dessa
crença, o locutor do proferimento em análise produziu o enunciado acima.
195
Em uma atividade de deciframento dos elementos lacunares, podemos dizer que R foi
relacionada a um grupo de mulheres que, hipoteticamente, vinham praticando autoaborto na
cidade. Essas mulheres possuiriam em comum a característica de serem econômica e
socialmente desfavorecidas, já que se utilizavam de expedientes perigosos para induzir a
morte do feto, como a introdução de uma sonda no útero ou a ingestão de medicamentos
abortivos, em todos os casos, se sujeitando a consideráveis riscos de morte.
Ao sofrerem com as complicações advindas de procedimentos arriscados, tais
mulheres, pobres, recorreriam aos serviços públicos de saúde, onde possivelmente eram
recebidas como criminosas e não como pacientes em busca de atendimento médico. Essa
atitude dos funcionários públicos de denunciarem R à autoridade policial se relaciona à crença
na necessidade de punição a quem pratica uma conduta socialmente reprovável, até mesmo
para servir como exemplo para outras mulheres46.
A estereotipia é tanto mais necessária ao funcionamento argumentativo quanto maior a
plausibilidade que conferir à tese desenvolvida. No caso de R, identificada sua pertença a um
grupo determinado de mulheres, não causa estranhamento ao alocutário o raciocínio dedutivo
segundo o qual: muitas mulheres desfavorecidas estavam induzindo aborto no local. R tinha
sintomas de aborto. Logo, R interrompeu voluntariamente sua gestação.
Na tipologia de argumentos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), acreditamos que
esta forma de raciocínio receberia a classificação de argumento quase-lógico, construído à
base de uma relação de transitividade, segundo a qual é possível passar da afirmação de que
existe a mesma relação entre os termos “A e B”, “B e C” e “A e C”. Esse modo de construção
é conhecido como silogismo retórico, ou seja, não é um raciocínio perfeito, lógico, pois suas
premissas são distorcidas para adquirirem aspecto de lógicas.
Há ainda outro excerto deste Acórdão que nos parece interessante para ilustrar a
atividade de reconstrução de pistas lacunares do discurso. Vejamos:
Daí que, existindo fortes indícios sobre a autoria e a materialidade, outra solução não restava ao MM. Juiz a quo que pronunciar a denunciada, preservando a competência constitucional do Tribunal do Júri (CF/1988, art. 5, XXXVIII). (fls. 131)
46 Nesse sentido, parece interessante registrar a conclusão de Debuyst, em pesquisa sobre as representações sociais da Justiça em Portugal, em que o autor identifica um sistema de filtragem do aparelho judiciário, responsável pela criação de bodes expiatórios: “[...] por um lado, existe uma zona, a que chamamos de ‘infrações ligeiras’ que poderiam ser facilmente descriminalizadas e face às quais o aparelho judiciário aparece como inadequado. Por outro lado, [...] existiria uma outra zona (as infrações graves) em que se deveria sobreinvestir ao nível da repressão e da vigilância. Qual é o sentido deste sobreinvestimento que nos parece ser, em grande parte, simbólico e que visa designar bodes expiatórios que a Justiça, por outro lado, cria através do seu sistema de filtragem?” (DEBUYST, 1986, p. 374).
196
Neste excerto, o desembargador associa a pessoa do magistrado de primeiro grau, que
produziu a decisão de pronúncia de R, ao grupo social composto por juízes, investidos pelo
Estado na responsabilidade de zelar pela aplicação da lei e pelo bom funcionamento do poder
judiciário. Como membro de um grupo tão ilustrado e restritivo, esse magistrado não poderia
se manter inerte diante de indícios de interrupção voluntária de gravidez: seu papel, como
aplicador da lei e guardião da sociedade e da instituição judiciária, é o de mandar R a
julgamento, restando pouco ou nenhum espaço para manifestação da sua subjetividade
quando o assunto é o cumprimento da lei.
Em alguns textos, ao contrário, o estereótipo aparece de forma explícita, quando então
percebemos que seus constituintes são apresentados de modo visível. Não se torna necessária,
assim, uma atividade mais complexa de “deciframento”, ou de preenchimento das lacunas,
por parte do alocutário.
No acórdão ora analisado, destacamos, a este propósito, as formas de tratamento
empregadas para se fazer referência aos juízes, promotores, desembargadores, procuradores e
advogados, em oposição às formas empregadas para o réu. Como o lugar deste é desprovido
de qualquer prestígio, não há para o sujeito processado qualificações, senão aquelas previstas
na legislação, como: réu, acusado, investigado, indiciado, indigitado autor, etc.
Para os membros da justiça, portadores de grande capital simbólico, são utilizadas
fórmulas já cristalizadas, repetidas desde longa data sem que os interlocutores questionem seu
sentido e que, de tão usuais, podem ser até mesmo arbitrariamente abreviadas, já que os
destinatários do proferimento são capazes de reconhecer seu significado de forma
praticamente automática.
Assim como os sujeitos membros da Justiça, seus atos, órgãos e proferimentos
também são frequentemente acompanhados de qualificativos, como em: MM. Juiz de Direito;
douta Procuradoria de Justiça; colendo Superior Tribunal de Justiça; lapidar acórdão; excelso
Supremo Tribunal Federal; eg. [egrégio] Tribunal de Justiça de Minas Gerais; i. [ilustre]
Procurador de Justiça.
Até esse momento, discorremos sobre a função da estereotipia para a plausibilidade do
discurso argumentativo. Propomos agora uma reflexão sobre o papel dos estereótipos no
processo de construção de imagens de si e do outro que circulam no discurso argumentativo.
197
Ethos e estereotipia
Com apoio em Amossy (2005a), pode-se afirmar que o processo de construção de
imagens ocorre do seguinte modo: na relação constitutiva entre as partes argumentantes, a
doxa adquire o sentido de saber prévio que o auditório possui sobre o orador. Ao tomar a
palavra, o orador faz uma idéia de seu auditório e da maneira pela qual será percebido;
ampara, então, seus argumentos sobre a doxa e modela seu ethos pelas representações
coletivas que acredita terem valor positivo aos olhos do auditório. Nas palavras da autora:
O orador adapta sua apresentação de si aos esquemas coletivos que ele crê interiorizados e valorizados por seu público alvo. Ele não o faz somente pelo que diz de sua própria pessoa (freqüentemente, não é de bom-tom falar de si), mas também pelas modalidades de sua enunciação. É então que ele incumbe o receptor de formar uma impressão do orador relacionando-o a uma categoria conhecida. O discurso lhe oferece todos os elementos de que tem necessidade para compor um retrato do locutor, mas ele os apresenta de forma indireta, dispersa, lacunar ou implícita. (AMOSSY, 2005, p. 126-127).
Assim, no excerto supra-analisado, quando o Desembargador afirma que “outra
solução não restava ao MM. Juiz a quo que pronunciar a denunciada”, ele está oferecendo
pistas para que o alocutário tenha uma imagem positiva desse magistrado, relacionando-o à
categoria dos membros do Poder Judiciário que cumprem seu dever com desvelo e atenção.
Da mesma forma, ao concordar com a posição defendida por este magistrado “competente e
zeloso”, o Desembargador pleiteia também para si as virtudes que atribuiu ao colega da
instância inferior.
No mesmo sentido, os qualificativos empregados para designar os membros do
Judiciário e seus atos realizados no curso do processo podem ser compreendidos em sua
função argumentativa de construção de imagens positivas dos sujeitos processuais principais,
em oposição à imagem negativa da ré, que ao longo do feito, foi relacionada a categorias
desprovidas de prestígio social.
Reafirmamos, assim, a importância dos processos de estereotipia para o bom
funcionamento da argumentação, tanto como apoio para as premissas assumidas quanto para a
construção de imagens de si e do outro no discurso.
Amossy (2006), ao explicar o papel do estereótipo enquanto esquema ativado pelo
destinatário e relacionado a um modelo cultural conhecido, faz, contudo, uma ressalva quanto
a sua contribuição à eficácia dos discursos de visée persuasiva. Relativizando seus efeitos, a
198
autora defende que o estereótipo favorece a empresa de persuasão, mas também pode
prejudicá-la em algumas situações, como por exemplo:
Se, com efeito, o alocutário detecta facilmente no discurso as representações sociais que pertencem ao grupo adverso ou que, por uma ou outra razão, lhes parecem inadmissíveis, a simples presença do estereótipo será suficiente para desqualificar as posições do argumentante. Se, ao contrário, ele adere às imagens que são colocadas sob seus olhos, ele poderá se deixar levar pela argumentação que se alimenta das representações procedentes de sua própria visão de mundo. (AMOSSY, 2006, p. 123).
Parece interessante, nesse ponto, retomar a discussão sobre a questão da eficácia da
palavra pela articulação entre discurso, especialmente na modalidade argumentativa, estatuto
do sujeito e complexo institucional.
Já afirmamos neste trabalho que, para Bourdieu (2008), ser ouvido e respeitado é uma
questão de autoridade, que depende unicamente do estatuto que o locutor ocupa na estrutura
social.
Maingueneau (2008), por sua vez, entende que os próprios enunciadores definem seu
“estatuto” e seu “modo de enunciação”, inscrevendo a si e a seus enunciatários em uma certa
posição social, marcando sua relação com um determinado saber e legitimando sua fala.
Já para Amossy (2005b), o estatuto do locutor e o quadro institucional no qual ele
profere sua palavra são importantes, mas não garantem por si sós a eficácia da palavra. Sendo
assim, o mecanismo de construção de imagens torna-se fundamental para a empresa da
persuasão.
No caso dos autos ora analisados, juízes, promotores, desembargadores, como
membros do Poder Judiciário, por seu próprio estatuto e pela posição ocupada na instituição
judiciária, parecem ter uma grande vantagem sobre a ré no que diz respeito às imagens
prévias que circulam de si no meio social. Mas isso, apenas, não garante o sucesso de suas
teses em qualquer embate argumentativo travado nos limites do processo. A imagem prévia
precisa ser corroborada por elementos discursivos, como os que demonstramos acima.
Para essa finalidade de “reforço” da imagem prévia por meio de elementos
discursivos, acreditamos que uma estratégia utilizada pelo Desembargador da peça em análise
é a citação de autores renomados da literatura jurídica, de decisões proferidas pelos Tribunais,
em outros casos, e de dispositivos de lei. Como já demonstramos, o mecanismo de
agenciamento de vozes é importante para dar plausibilidade às teses defendidas pelo
Desembargador, mas nos parece que também tem consequências para a constituição de sua
199
imagem de jurista estudioso, afinado com a evolução da ciência do Direito, que procura
fundamentar suas decisões com o que há de mais moderno na doutrina e jurisprudência.
Considerações
Finalizando a análise do Acórdão, acreditamos ser conveniente ressaltar dois pontos
que caracterizam os discursos de natureza decisória, de maneira geral, e que foram descritos
de forma pontual nesse proferimento: o dialogismo na formação do juízo decisório e a
realização de ações por meio da linguagem.
A respeito do dialogismo na formação do juízo decisório, transcrevemos a elucidativa
observação de Bittar:
Se nenhum discurso se forma ex nihilo, é porque existem regras e coerções que impedem o arbitrário da decisão unilateral, de modo que se avoca, para perto de toda decisão, uma conjuntura de elementos que passa a caracterizar sua própria corporeidade. Provas, escritos, documentos, textos, interpretações de normas e fatos se encontram para formar o conjunto de instrumentos pelos quais se decide, e isso dentro de regras (procedimentos processuais) que disciplinam os meios, os momentos, os modos, as técnicas... de influir na persuasão racional do juiz. Outras regras presidem, também, os meios de valoração das provas, textos, normas... pelo julgador, a partir do momento em que, dos entremeios dessa textualidade, extrai o discurso decisório judicial. (BITTAR, 2009, p. 316-317).
Quanto à performatividade, são aplicáveis aqui as observações formuladas
relativamente à Sentença de Pronúncia. O acórdão pode confirmar uma decisão de primeira
instância ou então alterá-la, sempre com consequências para a situação jurídica de um sujeito,
pelo simples fato de sua enunciação com caráter de publicidade e oficialidade.
200
6.5 Preparação para a Sessão de Julgamento
Com a manifestação da instância decisória, encerrou-se a primeira fase do processo
dos crimes de competência do júri. A partir desse momento, começa a segunda fase desse
processo, esta sim, com procedimentos muito peculiares a serem observados.
Assim que os autos retornaram à Secretaria da comarca onde tramitaram, abriu-se
vista ao Promotor de Justiça para o oferecimento de “Libelo”.
O Libelo é uma peça muito simples, sucinta, que deve conter a “imputação e o pedido
de condenação a fim de que, desse modo, a acusação esteja completa e íntegra” (MIRABETE,
2001, p. 498).
O Defensor foi notificado para que oferecesse resposta. Contudo, declinou da
nomeação, o que levou o Juiz a nomear outro Defensor para a ré (o quarto), que apresentou a
contrariedade ao Libelo.
Ao tentar intimar a ré da Sentença de Pronúncia que pesava contra ela, o Oficial de
Justiça constatou que ela não mais residia no endereço constante dos autos, encontrando-se
em local incerto e não sabido. O Promotor requereu a decretação de sua prisão preventiva, no
que foi atendido pelo Juiz. A acusada, na verdade, já se encontrava detida na Cadeia Pública
local, por ter sido condenada na outra ação penal que a Justiça Pública lhe movia, por tráfico
de entorpecentes.
Iniciaram-se os preparativos para a realização da Sessão de Julgamento. O Juiz, agora
na qualidade de Presidente do Tribunal, marcou dia para o julgamento e para o sorteio dos
jurados. Os vinte e um jurados sorteados foram convocados a comparecer na sessão de
julgamento por meio de edital e de intimação pessoal.
Esclarecemos que os gêneros processuais escritos produzidos nessa fase – o Libelo
Crime Acusatório e o Contra-Libelo – têm estrutura composicional bastante rígida, com muito
pouco espaço para inovações por parte de seus produtores. São peças simples, concisas, de
poucas linhas, caracterizadas por um vocabulário formulaico. Por isso, deixamos de analisá-
las e passamos à abordagem da última etapa do processo selecionado como corpus.
201
6.6 A Sessão de Julgamento
No dia designado, presentes 18 jurados dos 21 convocados, foram abertos os trabalhos
de julgamento da ré. Na ata da sessão do Tribunal do Júri, foram consignados os principais
fatos ocorridos durante o evento. Como não presenciamos o julgamento, tivemos que nos ater
a este documento para reconstituir a cena que ali se delineou47. Os dispositivos da lei
processual penal também auxiliaram nessa reconstituição, uma vez que os atos processuais a
serem realizados em uma sessão como esta são taxativamente definidos pela lei.
[...] presente o MM. Juiz de Direito da Comarca e Presidente do Tribunal [...], o Promotor de Justiça [...], comigo, Escrevente do Júri, que esta subscreve, e os oficiais de Justiça servindo de Porteiro do Tribunal [...] e os estagiários do curso de direito [...]. (Escrevente).48
O ritual inicia-se com a chamada dos jurados: “pelo MM. Juiz, depois de verificar,
publicamente, a urna que continha 21 cédulas, com os nomes dos jurados sorteados, mandou
que procedesse à chamada” (fls. 164).
Instalados os trabalhos, o próximo ato é o pregão: “Apregoadas as partes, compareceu
a ré a quem o MM. Juiz perguntou o seu nome, idade e se tinha advogado ao que respondeu
chamar R, 25 anos de idade e que tinha advogado na pessoa do Dr., ao que o MM. Juiz
convidou o defensor a tomar assento na Tribuna da defesa” (fls. 165).
Em seguida, tem-se a formação do Conselho de Sentença:
Verificado pelo MM. Juiz que se encontravam dentro das respectivas urnas as cédulas relativas aos jurados presentes, anunciou que ia proceder ao sorteio dos Sete jurados que deveriam compor o CONSELHO DE SENTENÇA. Advertiu os jurados dos impedimentos entre si, das incompatibilidades legais, e da proibição de se comunicarem com outrem, ou de manifestarem a sua opinião. À medida que eram as cédulas extraídas da urna, o Juiz lia em voz alta os nomes contidos na mesma. Foram sorteados e aceitos para constituírem o conselho de sentença, os jurados seguintes: [...] (Escrevente)49.
Definidos os sete jurados, o Juiz fez a exortação, proferindo tradicional fórmula do
Direito (fls. 171): “Em nome da Lei, concito-vos a examinar com imparcialidade essa causa e
a proferir vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da Justiça”, ao que
47 É importante esclarecer que as alegações orais produzidas pelo Promotor de Justiça e pelo Defensor não foram transcritas a termo, ou seja, o inteiro teor desses proferimentos não consta da ata da Sessão de Julgamento. Dessa forma, não tivemos acesso a seu conteúdo, o que nos impossibilitou de proceder à sua análise. 48 Ata da Sessão de Julgamento, fls.164. 49 Ata da Sessão de Julgamento, fls. 165.
202
os jurados responderam “assim o prometo”. Cada jurado recebeu, então, cópia da decisão de
pronúncia. Em seguida, como não foram arroladas testemunhas para novamente deporem em
plenário, passou ao interrogatório da ré. Diante do Júri Popular, ela afirmou não ter cometido
crime de aborto.
O Juiz fez então o relatório do processo, expondo os atos, as provas e as conclusões
das partes, sem manifestar a sua opinião.
A palavra foi inicialmente concedida ao Promotor de Justiça, que leu o libelo-crime
acusatório, os dispositivos da lei penal e produziu a acusação durante 67 minutos. Nesse
momento, o Promotor de Justiça é o orador e seu auditório, ou seja, as pessoas a quem quer
influenciar com sua argumentação, é fundamentalmente o corpo de jurados, já que eles têm o
poder de decisão sobre o destino da ré.
Em seguida, passou-se a prerrogativa da palavra ao Defensor, que proferiu a defesa
durante 34 minutos. Esse formato em que primeiro se manifesta o promotor, depois o
defensor, faz com que o pronunciamento da defesa seja construído pela apropriação do
discurso da acusação, para então promover a refutação dos argumentos apresentados por ela.
Concluídos os debates, o Juiz indagou aos jurados se consideravam-se habilitados a
julgar a causa ou se precisavam de mais esclarecimentos. Leu os quesitos formulados e
explicou o significado legal de cada um, perguntando às partes se tinham algum requerimento
ou reclamação a fazer, ao que obteve resposta negativa. Anunciou que ia proceder ao
julgamento, mandando retirar o réu e convidando os presentes a deixarem a sala.
Fechadas as portas, seguiu-se a votação dos quesitos, sendo observada a completa
incolumidade dos jurados do Conselho entre si e entre outras pessoas, tanto durante os
trabalhos secretos de votação de quesitos, como durante os anteriores trabalhos públicos da
sessão.
O quesito de número 1 questionava aos jurados se a acusada, no dia declinado na
Denúncia, estando no interior de sua residência, havia provocado aborto em si própria. Três
jurados responderam que sim, enquanto quatro responderam de forma negativa. Os três
quesitos seguintes restaram prejudicados. Com isso, a ré foi absolvida pelo Conselho de
Sentença, com o resultado de quatro votos a favor e três contra, ou seja, por muito pouco ela
não foi condenada.
203
6.6.1 Aborto, direito e justiça: considerações sobre orador, auditório, elementos dóxicos e
provas do discurso, a partir do veredicto do Conselho de Sentença
Como nessa última etapa do Tribunal do Júri o veredicto final cabe aos jurados, sendo
o juiz apenas o responsável pela direção do processo e pela fixação da pena a ser cumprida
pelo condenado, os discursos da acusação e da defesa são dirigidos, ao mesmo tempo, a vários
alocutários, o que exige um cuidado especial na formulação dos argumentos. Esse auditório
composto pelo corpo de jurados configura-se, assim, como um espaço heterogêneo, no qual
estão inscritos diferentes atores sociais.
A lei processual penal prescreve apenas que os juízes leigos sejam cidadãos de notória
idoneidade moral, maiores de 18 anos, brasileiros e residentes na comarca, não exigindo,
portanto, que tenham conhecimentos jurídicos. No caso em análise, o Conselho de Sentença
foi composto por um engenheiro civil, um professor, uma estudante, um técnico em
agrimensura, dois comerciantes e um cirurgião dentista.
Assim, diferentes formações culturais, étnicas, sociais, econômicas, etc., poderão estar
representadas em um Conselho de Sentença e caberá ao orador tecer sua argumentação na
medida das crenças e dos saberes partilhados por esse auditório tão multifacetado. Como já se
afirmou, apoiar a argumentação em elementos dóxicos genericamente aceitos pelo auditório é
um passo importante para garantir sua adesão às teses apresentadas.
Nos limites do discurso judicial processual penal do Tribunal do Júri e, mais
especificamente, no corpus analisado, tanto o Promotor de Justiça quanto o Advogado de
Defesa buscaram seus argumentos no celeiro de uma pretensa cientificidade, trazendo a tona
teses baseadas na interpretação da norma jurídica, apelando sobretudo para elementos da
legislação processual relacionados à comprovação da materialidade do delito.
Quando selecionamos esse processo para compor o corpus da pesquisa, supomos estar
diante de um caso concreto de interação judiciária no qual predominaria uma construção
discursiva voltada para a dimensão patêmica da trilogia aristotélica, já que o crime de aborto
associa-se a uma doxa que remonta a elementos relacionados ao pathos, como vida do feto,
integridade da mãe, liberdade sexual, direitos reprodutivos, o papel dos gêneros masculino e
feminino na sociedade, valores morais e religiosos, etc.
Por se tratar da apuração de um crime de autoaborto praticado por uma mulher pobre,
negra, sem instrução, emprego ou estrutura familiar, completamente à margem da sociedade,
imaginamos que o Defensor mobilizaria todos os recursos discursivos para direcionar as
204
emoções (piedade, equidade, justiça social, etc) do julgador e do Corpo de Jurados rumo ao
veredicto final de absolvição de R.
Acreditávamos que o Promotor de Justiça apelaria também para o sentimento das
instâncias julgadoras, sobretudo dos membros do Conselho de Sentença, baseando seus
proferimentos na crença compartilhada socialmente sobre a origem divina da vida humana, da
abominação social ao aborto induzido, da crença no instinto maternal, da expectativa em torno
do potencial da criança que “poderia ter sido e não foi”.
Contudo, ao analisar as peças processuais produzidas ao longo dos autos, não foi esse
o quadro que encontramos. Parece-nos que, nesse caso particular de interação judiciária no
Tribunal do Júri aqui analisada, sobressaiu a dimensão lógico-retórica do discurso
argumentativo, já que as instâncias de acusação, defesa e julgamento se ativeram ao
gerenciamento de recursos técnicos em seus projetos discursivos, fundamentados na discussão
sobre a materialidade delitiva (corpo de delito ausente/insuficiente/nulidade).
Outra questão a se pensar é que tanto a defesa quanto a acusação se abstiveram da
discussão acerca do mérito da prática de autoaborto. Em outras palavras, queremos dizer que,
ao adotar a estratégia de declarar sua cliente inocente, o Defensor desviou-se do cerne da
questão, contornando a necessidade que teria de abordar uma temática ainda tão conflituosa
no meio social. Com isso, não precisou comparar o valor da “vida do feto em formação” ao
valor da “liberdade reprodutiva da mulher”, por exemplo, o que certamente provocaria um
conflito com o pensamento de alguns jurados, pois cada um pode hierarquizar esses valores de
forma diferente.
Lembramos que, no meio social, encontramos pessoas que defendem a
descriminalização ampla do aborto, inclusive com a obrigatoriedade de atendimento público
para as gestantes que queiram se submeter a essa prática; pessoas que defendem uma
descriminalização com ressalvas, segundo um critério de prazos e indicações estipulados
legalmente; outras que admitem a figura do aborto apenas como último meio de salvar a vida
da mãe e, finalmente, pessoas que não o admitem em hipótese alguma.
O Defensor isentou-se também de tocar em questões referentes à desigualdade social,
ao tratamento dado pela Justiça, pelo Estado e pela sociedade a homens e mulheres que fazem
parte das chamadas minorias sociais, que têm menor poder aquisitivo, menor grau de
instrução, etc, como parece ser a situação da ré.
No que diz respeito ao Promotor de Justiça, a opção pela elaboração de peças
processuais mais “técnicas” permitiu a ele que se mantivesse distante dos aspectos polêmicos,
éticos e morais, de se processar uma mulher pela suposta prática de aborto.
205
Essas observações nos fazem crer que houve uma abordagem tradicional e, talvez,
superficial, do caso. Em outros termos, diríamos que o debate se manteve no nível do direito
positivo, ou seja, a dinâmica argumentativa se encerrou nos limites do dever ser, afastando-se
do nível axiológico. Nesse sentido, parece interessante transcrever a seguinte observação de
Brum:
Não resta a menor dúvida de que na dimensão axiológica da sentença está sua parte mais difícil, porque os valores incrustados na significação de base da norma legal podem estar em conflito com os valores predominantes na realidade social. A exigência de que a decisão, além de legal, deve ser justa, coloca o julgador muitas vezes diante do dilema de optar entre a legalidade e a eqüidade e, ao mesmo tempo, deixar a impressão de que não houve tal opção valorativa. Compatibilizar o incompatível é uma das tarefas que se pede ao órgão decisório, coisa que somente é viável no terreno retórico. (BRUM, 1980, p. 82-83).
Fagundes (1994), ao dissertar sobre o Tribunal do Júri, afirma que, no lugar da
promotoria, o objetivo principal do discurso é o de defender um ponto de vista sem colocar
sob suspeição o sistema jurídico.
Para o advogado de defesa, cabe o papel de levantar suspeitas acerca do
funcionamento local do sistema de investigação (policial e jurídica) e a aplicabilidade da
norma genérica à circunstância. Assim, apenas aparentemente o discurso da defesa é contrário
à lei: na verdade, ele submete-se a um processo baseado na lei.
Por sua vez, a sociedade julga reproduzindo a ideologia de, a cada caso particular,
aplicar o sistema genérico, que em si é tido como “perfeito e completo” (FAGUNDES, 1994).
Nas palavras da autora, “trata-se de criticar localmente, aceitando e mantendo o
sistema jurídico, condição necessária para a produção do discurso e da discussão.”
(FAGUNDES, 1994, p. 128-129).
Nesse sentido, observamos que os sujeitos que participaram desse embate judicial
parecem ter travado entre si um acordo prévio no qual tacitamente aceitaram a lei posta como
legítima: mais que o atributo da legalidade, teria sido reconhecido à tipificação do aborto o
caráter de justo. Assim, não havia porque contestarem a letra da lei, não havia espaço para
argumentos baseados na livre disposição do corpo pela mulher ou na sua liberdade
reprodutiva. Restava apenas o questionamento sobre a comprovação, ou não, da prática
delitiva. E foi nesse sentido que o feito caminhou, pois desde a instauração do procedimento
penal, o Advogado batalhou pelo reconhecimento da insuficiência das provas, enquanto o
Promotor afirmava ser suficiente o laudo médico supostamente produzido sem observância
das formalidades legais.
206
Os poucos momentos em que a discussão se encaminhou para outro lado foram
protagonizados pela ré, nos primeiros depoimentos que ela prestou junto à autoridade policial
(na Delegacia) e ao Juiz, na primeira fase do Processo.
Para entendermos melhor essa afirmação, transcrevemos, em seguida, trechos de
depoimentos da ré coletados em três momentos processuais distintos, nos autos do processo
que constitui nosso corpus: o primeiro termo de declarações, colhido pelo Delegado de
Polícia na fase de Inquérito Policial (fls. 34); o segundo interrogatório, colhido pelo Juiz de
Direito, na audiência de instrução (fls. 60) e o terceiro interrogatório, realizado também pelo
Juiz, na Sessão de Julgamento (fls. 172).
6.6.1.1 O depoimento na Delegacia de Polícia
No primeiro depoimento, a ré diz o seguinte:
QUE, confirma ter praticado o aborto, esclarecendo que foi no mês de setembro de ano 1999; QUE, estava grávida de dois meses e que usou uma sonda para perfurar; QUE, comprou a sonda e sozinha praticou o aborto; QUE, não teve orientação de nenhuma outra pessoa; QUE, o motivo foi que já possuía um casal de filhos sendo um com quatro e outra com dois anos de idade e que não tem condições financeiras para cuidar de todos e ainda na época morava com sua prima; QUE, foi o único aborto que praticou; QUE, faz uso de bebida alcoólica, fuma cigarros, não faz uso de drogas, não faz uso de remédio controlado, nunca foi internada em casa de tratamento de doenças mentais, já teve envolvimentos com brigas e já foi processada cumprindo pena até a presente data. (R)50
Nesse primeiro excerto, a locutora R tem como alocutário direto o Delegado de
Polícia. Vislumbramos aqui o seguinte quadro enunciativo:
Locutor : Ré
Enunciação
(EÃO)
Enunciado: QUE, confirma ter praticado o aborto, esclarecendo que foi no mês de setembro de ano 1999; QUE, estava grávida de dois meses e que usou uma sonda para perfurar;
Alocutário: Delegado de Polícia
Quadro 41: Condições enunciativas do depoimento de R na Delegacia de Polícia Fonte: Elaborado pela autora
50 Primeiro interrogatório perante o Delegado de Polícia, fls. 34.
207
Quando prestou esse depoimento, R não estava acompanhada por um advogado de
defesa. Falando em seu próprio nome, teve a primeira oportunidade concreta de desconstruir a
imagem negativa de si que circulava no meio policial.
Como se sabe, ainda que não pese sobre o investigado uma condenação formal, já na
fase do Inquérito Policial, ele é socialmente julgado e condenado pelo público. No caso de R,
a reprovação social de sua conduta é forte, já que boa parte da sociedade não admite que
mulheres atentem contra o “instinto maternal”, que se acredita existir naturalmente no sexo
feminino.
A fala da acusada sobre si mesma servirá de matéria-prima para que o Promotor de
Justiça e o Defensor elaborem os seus proferimentos ao longo do processo, tomando de
empréstimo o que lhes for conveniente e refutando aquilo que possa comprometer a força
persuasiva de sua argumentação.
Talvez por desconhecer os meandros da justiça, R confessa explicitamente a prática
criminosa e apresenta detalhes do procedimento que teria adotado para provocar a morte do
feto que gerava em seu ventre.
Respondendo às perguntas elaboradas pelo Delegado, age de forma a dificultar
posteriormente o trabalho da defesa, reforçando a imagem de que era inconsequente (“faz uso
de bebida alcoólica, já se envolveu em brigas e já foi processada”) e descompromissada com
o papel a ser teoricamente cumprido por uma mulher “de bem” na tradicional sociedade
católica mineira: uma boa mãe, ainda que miserável e sacrificada.
Essa constatação vai ao encontro das observações que Pérez (2006) reúne ao analisar
representações sociais de mulheres que praticaram autoaborto:
Em nossa cultura, o sofrimento e o sacrifício são vistos como condições necessárias à maternidade. Desta forma, a boa mãe seria a que sofre bastante na gravidez e mais ainda no parto, que sacrifica sua vida profissional e sexual pelo amor e doação aos filhos e que aceita passiva e alegremente cada um destes limites e dores como conseqüências naturais da maternidade. (PÉREZ, 2006, p. 66).
Percebemos que a ré enfrenta, de alguma maneira, esse consenso supostamente
generalizado quanto à necessidade de tipificação do aborto, tanto que elabora uma
justificativa para o ato que a acusam de ter praticado. Sua justificativa, situada no campo das
dificuldades econômicas de se criar mais um filho, é mais aceitável, do ponto de vista social,
do que se tivesse afirmado cabalmente que não desejava a maternidade (ARDAILLON,
1994).
208
6.6.1.2 O depoimento diante do Juiz de Direito
No segundo excerto, transcrito em seguida, a locutora tem o Juiz de Direito como
alocutário imediato:
Locutor : Ré
Enunciação
(EÃO)
Enunciado: QUE são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que adquiriu na farmácia uma sonda própria para provocar aborto [...]
Alocutário imediato: Juiz de Direito
mediato: Promotor, funcionários da Justiça, jurados, Delegado, etc
Quadro 42: Condições enunciativas do interrogatório de R pelo Juiz de Direito Fonte: Elaborado pela autora
Nesse momento, ela continua confessando a conduta criminosa, ao mesmo tempo em
que novamente busca justificar seu ato por meio de suas condições precárias de vida. Parece-
nos que há um cuidado um pouco maior com sua imagem, que pode ter sido orientado pelo
Advogado de defesa que passou a atuar no processo. Vejamos:
QUE são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que adquiriu na farmácia uma sonda própria para provocar aborto; que em sua casa introduziu essa sonda na vagina causando a morte do feto, que fez isso por volta de meio dia; que passados uns 15 dias a depoente começou a ter febre, inclusive foi para a cama; que aí procurou a Santa Casa; que ao chegar na Santa Casa verificou que infeccionou; que o médico pediu que enquanto a depoente não dissesse a verdade não iria olhá-la; que nisso a depoente ficou calada; que no outro dia a depoente contou o que tinha feito e foi diretamente para a sala de cirurgia para fazer a curetagem pois a infecção já havia aumentado e atingido o útero da depoente; que fez isso porque já tinha uma menina de 9 meses, estava morando com sua prima e estava muito difícil; que já foi presa e processada criminalmente; que não bebe, não fuma e não usa drogas; que nessa época já estava separada de seu marido; que não tem condição de pagar um advogado. (R)51
6.6.1.3 O depoimento diante do Conselho de Sentença
No terceiro excerto, a locutora tem, no seu universo de alocutários, os jurados do
Conselho de Sentença:
51Primeiro interrogatório em Juízo, fls. 60.
209
Locutor : Ré
Enunciação
(EÃO)
Enunciado: Que não tinha certeza que estava grávida; que estava sentindo muitas cólicas e febre [...]
Alocutário imediato: Jurados (Conselho de Sentença)
mediato: Juiz de Direito, Promotor, funcionários da Justiça, jurados, público, etc
Quadro 43: Condições enunciativas do depoimento de R diante do Conselho de Sentença Fonte: Elaborado pela autora
O conteúdo de seu depoimento é completamente diverso do que vinha declarando até
então. De uma maneira geral, R nega a prática de aborto voluntário e levanta dúvidas acerca
de seu estado de gravidez. Identificamos aqui um processo de recuperação de sua imagem
atrelada à desconstrução da imagem do médico da Santa Casa, no momento em que ela afirma
que este se negou a atendê-la e, por isso, levou-a a introduzir uma sonda no útero, como uma
tentativa desesperada de se fazer ouvir.
Ao mesmo tempo, R reivindica para si a crença compartilhada no instinto maternal da
mulher, explicitando que “sempre cuidou e manteve os seus outros dois filhos na sua
companhia”:
Que não tinha certeza que estava grávida; que estava sentindo muitas cólicas e febre; que não chegou a ser examinada por nenhum médico; que o Dr. _ só ia atender se ela falasse a verdade; que tinha passado a sonda para ver se ele a atendia; que não é verdade que não queria o filho; que sempre cuidou e manteve os seus outros dois filhos na sua companhia. (R)52
Percebe-se, assim, que houve uma alteração significativa na imagem criada por R
desde os seus dois primeiros depoimentos (quando confessa o crime, se diz usuária de bebida
alcoólica e justifica a prática voluntária de aborto por sua situação de pobreza), até o
depoimento na fase final, quando se nota cautela e um grau maior de elaboração em sua fala.
Retomando a discussão sobre o papel da estereotipia no processo de construção de
imagens de si e do outro que circulam no discurso argumentativo, pensamos que, com essa
mudança de depoimento, R tentou se afastar da categoria de mulheres que vinham praticando
autoaborto na cidade, com a qual ela havia sido identificada nos depoimentos das
testemunhas.
52 Depoimento prestado na Sessão de Julgamento, fls. 172.
210
Com a nova versão apresentada para os fatos, sua categorização poderia ser alterada,
harmonizando-se com a categoria das mães sacrificadas, que a despeito das condições
precárias de vida, aceitam seus filhos e cuidam deles com todas as dificuldades. Com isso, a
ré parece ter finalmente aderido ao acordo tácito travado entre acusação e defesa,
compreendendo as regras do jogo retórico que haviam sido adotadas em seu julgamento.
6.6.1.4 Considerações
De acordo com Ardaillon (1994), o Júri é muito pouco condenatório em relação ao
crime de aborto, especialmente quando o acusado é a gestante que provoca em si mesma a
interrupção da gravidez. No entanto, ainda conforme essa pesquisadora, a sociedade faz
questão de que essa conduta – o aborto voluntário – esteja no rol dos crimes previstos pelo
Código Penal. Qual seria, então, a lógica do Júri Popular, que é constituído por membros
dessa sociedade que investe na tipificação criminal do aborto e sente, ao mesmo tempo, um
constrangimento em condenar quando é chamada a julgar um suposto criminoso?
A autora afirma que existe, entre os atores que atuam no Júri, uma “intenção” prévia,
que pode ser de natureza absolutória ou condenatória, identificada nas sentenças do Juiz, nas
denúncias do Promotor, nas alegações da defesa e nos votos dos jurados. Essa intenção estaria
sujeita aos influxos das crenças compartilhadas por tais atores, já que “os membros do
judiciário não são isentos de ideias preconcebidas em relação à questão do aborto e em
relação ao que deva ser a sexualidade de uma mulher. Elas jorram das dobras dos processos,
particularmente quando as provas não são contundentes.” (ARDAILLON, 1994, p. 240).
Assim, “dependendo das circunstâncias e da disposição do promotor e do juiz em
relação ao aborto, será dado maior ou menor peso ao laudo de exame de corpo de delito, à
confissão da gestante a aos depoimentos das testemunhas.” (ARDAILLON, 1994, p. 240).
A chamada intenção condenatória parece se manifestar naqueles processos em que está
em jogo a preservação da moralidade: quando a gravidez é resultante de relação
extraconjugal, por exemplo; ou se o aborto foi cometido porque a gestante simplesmente não
desejava a maternidade (e aí não se admite a ausência de um instinto maternal); ou, ainda, se a
mulher é considerada uma “devassa”.
Já a intenção absolutória teria lugar nos casos em que a gestante transmite uma
imagem de mulher ignorante, frágil, inocente, enganada por um homem que não quis assumir
211
nenhuma responsabilidade. O mesmo se verifica quando a gestante alega ter agido sob a
pressão de um estado de necessidade, incluídos sob essa designação problemas financeiros e
medo da condenação social.
Aplicando esse raciocínio ao caso analisado neste trabalho, questionamos se é possível
identificar, entre os sujeitos que nele atuaram, uma intenção condenatória ou se, ao contrário,
havia uma intenção absolutória entre eles.
Para refletir sobre essa questão, devemos nos recordar que, até um certo momento, a
decisão sobre o caso esteve concentrada nas mãos de membros do aparelho judiciário, como o
Juiz de primeira instância e os Desembargadores do Tribunal de Justiça. O Juiz de primeira
instância, que presidiu o processo, decidiu pela pronúncia da ré, afirmando que havia
elementos probatórios suficientes para sua condenação. Esta era também a tese defendida pelo
Promotor de Justiça responsável pelo processo: o caso, que poderia ter sido arquivado a seu
pedido logo no início, chegou até a fase máxima, que foi a Sessão de Julgamento pelo Júri
Popular.
Inclusive, quando o Juiz pronunciou a ré, o Tribunal de Justiça ratificou sua decisão
em grau de recurso, o que mostra que havia a crença em um conjunto probatório
razoavelmente forte para lastrear uma condenação, ou pelo menos, uma clara intenção no
sentido condenatório.
Quando a decisão saiu das mãos dos sujeitos especialistas e se tornou prerrogativa de
um tribunal popular, contrariando todas as expectativas no sentido da condenação, a ré foi
absolvida.
Encontramos na jurisprudência criminal a afirmação de que para a condenação da ré, é
necessária a prova da gravidez da mulher, não a suprindo a confissão da gestante, nem meros
indícios. E mais: “ficha clínica mencionando restos ovulares não substitui o exame [de corpo
de delito]; na falta de certeza da gravidez, por inexistir exame histológico para se aferir se o
feto tinha vida, absolve-se.” (TJSP, RT 697/352, citado por DELMANTO et al, 1998, p. 237).
Se pensarmos que não havia nos autos uma prova efetiva de que R estivesse mesmo
grávida; que, ainda que ela estivesse gerando um filho, não havia prova de que o feto era
viável e que, por fim, não foi realizado Exame de Corpo de Delito, como justificar que um
processo fundamentado em provas tão frágeis, como a mera confissão da ré, tenha ido tão
longe? Seria mais um indício de que havia uma intenção condenatória por parte dos membros
da Justiça?
Nos limites deste trabalho, torna-se impraticável tentar formular respostas para as
questões aventadas. Na verdade, nossa pretensão era mesmo a de lançar novos elementos para
212
incitar a discussão sobre essa antiga e polêmica temática. Mas, de qualquer forma, parece-nos
oportuno concluir com a afirmação de que o resultado final (de quatro votos a favor da
absolvição e três contrários) ilustra a observação de que, em um processo judicial, a verdade é
construída nos próprios autos, discursivamente, através da fala dos sujeitos que nele atuam,
pois são eles que apresentam formalmente os fatos, discutem as provas, solicitam a realização
de diligências. Enfim, esses sujeitos constroem e reconstroem uma verdade processual que
parece de acordo com as finalidades almejadas, e não com a verdade factual.
213
6.7 A Sentença
Encerrada a votação dos quesitos, o Juiz de Direito proferiu imediatamente a sentença
que deu fim ao processo, lendo-a em seguida para o público, em presença da ré, para dar
publicidade a seu conteúdo.
Segundo Mirabete (2001), “a sentença proferida no Tribunal do Júri é de formação
complexa ou subjetivamente complexa, pois provém de um órgão jurisdicional composto, em
que os jurados decidem sobre o crime (...)” (MIRABETE, 2001, p. 541). Em outras palavras,
os juízes de fato decidem sobre o crime e o Juiz Presidente, com base nessa decisão, declara a
absolvição ou então faz a dosimetria da pena, se os jurados optaram pela condenação do réu.
Aplicando os parâmetros da Teoria dos Atos de Fala ao proferimento ora investigado,
podem ser abstraídas algumas considerações relevantes para a caracterização do gênero
sentença. Em outro momento deste trabalho, analisamos a Sentença de Pronúncia, quando
então ficou demonstrado seu caráter marcadamente performativo, devido ao macroato de fala
declarativo presente em seu bojo.
O proferimento sobre o qual nos inclinamos agora também faz parte do gênero
sentença e, em muitos aspectos, assemelha-se à de Pronúncia, sobretudo no que diz respeito à
performatividade. Contudo, apresenta algumas peculiaridades relevantes, como por exemplo,
prescindir da fundamentação.
Conforme já se afirmou, os gêneros judiciais de natureza decisória são elaborados em
um regime de forte coerção determinada pela lei e pelos procedimentos judiciários. Assim, no
caso da sentença, há que ser seguida a instrução legal quanto às partes que compõem o texto
(relatório, fundamento, dispositivo) e quanto ao momento processual de lançá-lo aos autos.
No caso analisado, os jurados votaram os quesitos decidindo pela absolvição da ré. Assim,
fica dispensada qualquer fundamentação, limitando-se o juiz a declarar o resultado da
votação.
As coerções abrangem também a condição pessoal, ou estatuto institucional, dos
locutores autorizados a produzirem gêneros dessa espécie: esse tipo de sentença terminativa
do processo só pode ser produzida pelo Juiz Presidente do Tribunal do Júri e, de acordo com a
lei processual, o momento para sua prolação e leitura é logo após a apuração dos quesitos,
antes de encerrada a sessão de julgamento.
Considerando as condições enunciativas do proferimento, elaboramos o seguinte
quadro:
214
Locutor : Juiz de Direito
Enunciação
(EÃO) Enunciado: Dessa forma, atendendo à decisão de E. Conselho de Sentença, DECLARO absolvida R, nos termos do artigo 386, IV, do CPP.
Alocutários: Ré/Advogado; Promotor de Justiça; jurados; sujeitos processuais
secundários; sociedade
Quadro 44: Condições enunciativas da Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora
Assim como a Decisão de Pronúncia, a Sentença terminativa dispõe de um Relatório,
no qual o juiz apresenta sucintamente o caso e o voto dos jurados. A seguir:
Ato Estrutura
ππππ: assertivo
µ: narração/relato
θ: verbo no tempo pretérito perfeito do indicativo terceira pessoa do singular
∑: locutor-juiz de direito, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários - ré processada conforme os ditames legais (devido processo legal), Promotor, Advogado, serventuários da justiça, sociedade em geral (Estado de Direito)
A acusada R, contra a qual pesa nestes autos a acusação da prática de crime de aborto previsto no art. 124, do Código Penal, foi nesta data submetida a julgamento do Tribunal do Júri, que, ao votar os quesitos formulados, houve por bem reconhecer que a mesma não praticou o delito.
ψψψψ: crença
Quadro 45: Componentes de um ato de fala assertivo na Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora
De maneira sintética, observamos nesse enunciado a ocorrência de um ato de fala
assertivo, realizado no modo narração/relato, reportando um estado de coisas preexistente à
sua enunciação.
As condições preparatórias ( ∑ ) para a efetivação do ato relacionam-se ao estatuto dos
interlocutores, relativamente ao quadro institucional de produção do discurso.
Como condição de sinceridade (ψ), destacamos o estado mental do Juiz de crença na
ocorrência dos fatos descritos.
Mas o ponto alto desta sentença está no seguinte enunciado:
215
Ato Estrutura
ππππ: declarativo
µ: formal
θ: verbo na primeira pessoa do singular do presente do indicativo ∑: locutor-juiz de direito, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários - ré processada conforme os ditames legais (devido processo legal), Promotor, Advogado, serventuários da justiça, sociedade em geral (Estado de Direito)
Dessa forma, atendendo à decisão de E. Conselho de Sentença, DECLARO absolvida R, nos termos do artigo 386, IV, do CPP.
ψψψψ: crença + desejo
Quadro 46: Componentes de um ato de fala declarativo na Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora
Por meio de um ato de fala declarativo (π), formalmente realizado (µ), o locutor
determinou a absolvição da ré, ratificando, assim, a decisão a que chegaram os jurados com a
votação dos quesitos.
Conforme já se afirmou, o ato declarativo tem a propriedade de reunir locutor e
alocutário em torno de um estado de coisas que é criado, com vistas a uma integração. Possui,
assim, dupla direção de ajuste: mundo-palavra, já que “um estado de coisas é alterado para se
ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento”, e palavra-mundo, pois “o conteúdo
proposicional desse proferimento representa o mundo como já estando assim alterado na
perspectiva do seu locutor”. (MARI, 2001, p. 115).
No que diz respeito às condições de conteúdo proposicional (θ), tem-se um verbo
conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, que é a forma verbal
performativa canônica.
As condições preparatórias ( ∑ ) estão vinculadas ao estatuto institucional do locutor e
dos alocutários. O pressuposto é o de que o locutor esteja investido de um poder, o que se
verifica no caso em análise: apenas um Juiz Presidente do Tribunal do Júri, investido dos
poderes que o Estado lhe confere, pode prolatar esse tipo de sentença.
Como condições de sinceridade (ψ) para a satisfação do ato, observam-se a crença na
ocorrência do fato que deu ensejo à prolação da sentença (a decisão dos jurados pela
absolvição) e o desejo de aplicação da lei penal à situação concreta.
Finalizando o proferimento, encontramos o seguinte enunciado:
216
Enunciado Estrutura
ππππ: diretivo
µ: ordem
θ: imperativo afirmativo
∑: locutor-Juiz, investido do poder institucional de presidir o processo-crime; alocutários capazes de desempenhar a função (serventuários da Justiça)
Publicada nesta assentada de julgamento, dou as partes por intimadas. Registre-se.
ψψψψ: desejo
Quadro 47: Componentes de um ato de fala diretivo na Sentença terminativa Fonte: Elaborado pela autora
Nesse enunciado, emerge um ato realizado no ponto diretivo (π), no modo (µ) ordem.
Por meio dele, o enunciador manda aos auxiliares da justiça que tomem as providências
necessárias para o registro da decisão.
Trata-se de uma ordem advinda de um sujeito que ocupa, na instituição judiciária,
posição hierárquica superior em relação a seus alocutários. Assim sendo, as condições de
conteúdo proposicional (θ) comportam um verbo conjugado no modo imperativo e apontam
para um tempo futuro. A direção de ajuste é mundo-palavra, pois os alocutários devem se
movimentar para alterar um estado de coisas atual e deixá-lo conforme a ordem do Juiz.
Como um ato realizado no ponto diretivo implica um compromisso entre locutor e
alocutário, no sentido de que este último realize uma ação futura nos moldes do desejo
manifestado pelo primeiro, temos como condição preparatória ( ∑ ) que o locutor esteja
investido do estatuto de Juiz Presidente do Tribunal do Júri. Os alocutários, por sua vez,
devem ser serventuários da Justiça habilitados a atuar nesse processo. Portanto, também como
condição preparatória, emerge a possibilidade de o enunciatário vir a acatar a ordem do
enunciador.
Quanto às condições de sinceridade (ψ), o estado psicológico expresso nesse ato
diretivo é o desejo, por parte do enunciador, de que a sentença seja registrada pelo alocutário
e que venha a produzir seus jurídicos efeitos no mundo.
6.7.1 Considerações
Refletindo sobre a relação entre linguagem e realização de ações, já se constatou, com
apoio em Bittar (2009), que uma das características mais marcantes do gênero judicial
217
decisório é a performatividade da linguagem, uma vez que, com sua elocução, os sujeitos
realizam atos externos a ela.
Tomando a sentença ora analisada como um macroato de fala declarativo,
sublinhamos, portanto, seu caráter performativo, na medida em que, observadas as condições
para o sucesso desse ato, ela é capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito pelo
simples fato de sua enunciação nos moldes legais.
Por meio dessa sentença, o Juiz de Direito ratificou a decisão dos jurados, ou seja,
declarou um fato que já existia no mundo ou, nas palavras de Mari (2001), representou o
mundo como já estando assim alterado. E ao mesmo tempo, criou-se um estado de coisas
novo, resultando em mais uma alteração na situação jurídica de R: dessa vez, de pronunciada,
ela passou à condição de absolvida.
218
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem linguístico-discursiva dos autos de um processo penal, instaurado para
julgamento de um crime de aborto, levou-nos a uma ampliação de nosso entendimento a
respeito do funcionamento da Justiça no sistema legal brasileiro.
Inicialmente, trabalhar com as teorias que compreendem o gênero discursivo em sua
vertente de ação social nos permitiu visualizar como ocorre, na prática forense, a aplicação da
lei, conceito abstrato, a um caso concreto submetido a julgamento. Assim, é no trabalho
cotidiano dos operadores do direito que a justiça é ministrada, pela elaboração e circulação de
textos que dão materialidade aos comandos genericamente dispostos na legislação.
Podemos afirmar, portanto, que um processo penal é construído pelo trabalho dos
sujeitos processuais, que são pessoas investidas de um estatuto institucional que lhes confere a
prerrogativa de participar ativamente de um caso de interação judiciária como o aqui
investigado. Esse trabalho consiste em produzir textos nos moldes prescritos pela legislação.
Cada um desses textos é composto por atos de fala que, proferidos pela pessoa autorizada e
nas condições apropriadas, articulam-se na criação de um gênero textual, que passa a compor
o repertório de quem o elaborou. Esses repertórios individuais, colocados em circulação,
compõem um sistema de atividades e, atuando harmonicamente entre si, produzem alterações
na realidade social.
A dinâmica desse sistema pode ser ilustrada com a descrição dos resultados que
obtivemos com a análise dos proferimentos que compuseram nosso corpus de pesquisa.
Vejamos.
O Relatório de Inquérito Policial (RIP), produzido pelo Delegado de Polícia, fez com
que a notícia de ocorrência de um suposto crime de autoaborto chegasse às portas do
Judiciário. Em nossas análises, observamos que o RIP é uma peça portadora de certa
orientação argumentativa, embora da interpretação da legislação processual depreenda-se que
ela deveria ser apenas informativa. Os atos de fala que compõem esse proferimento são de
natureza assertiva e declarativa e, como tiveram suas condições de sucesso satisfeitas, foram
hábeis para a finalidade a que se destina esse gênero.
Com base nas informações aí contidas, o Promotor de Justiça elaborou sua Denúncia.
Por meio dela, esse sujeito processual legalmente habilitado, construiu uma tese acusatória em
face da ré e encaminhou essa tese ao Juiz de Direito, para que ele tomasse as providências
necessárias à instauração do processo penal. Observamos que a Denúncia reelabora o
219
conteúdo do RIP. O mandamento legal de expor os fatos imputados à ré é cumprido mediante
atos de fala assertivos, que dão à peça a aparência de uma narrativa. Sobressai aqui seu
conteúdo diretivo, uma vez que, para produzir amplos efeitos no mundo jurídico, a Denúncia
precisa ser aceita pelo Juiz, daí a importância do ato de requerimento situado ao final da
exposição dos fatos. Destacamos, ainda, o forte teor argumentativo aí observado, pois é
necessário que seu locutor consiga angariar a adesão da instância julgadora para o propósito
de processar a ré.
No caso analisado, o Promotor obteve êxito quanto a esse propósito, já que o Juiz
acatou a Denúncia e determinou a instauração do feito.
Em seguida, foram praticados os atos processuais de praxe, como as oitivas da ré e das
testemunhas, e foram realizadas certas diligências.
Iniciou-se a fase das Alegações Finais, na qual acusação e defesa devem fazer um
levantamento de tudo o que consta dos autos e apresentar os argumentos que sustentam suas
teses. Temos aqui um dos pontos altos da argumentação nesse processo.
Primeiramente, manifestou-se o Promotor de Justiça, que apresentou suas alegações de
forma escrita. Como essa peça é uma “pretensão fundamentada” do Promotor à
admissibilidade da acusação contra a ré, predominam atos de fala assertivos, por meio dos
quais o locutor narra os fatos teoricamente praticados pela ré e introduz as vozes das
testemunhas para fundamentar seu propósito condenatório. Chama a atenção, aqui, a
introdução do discurso relatado como recurso argumentativo. O Promotor também lança mão
de uma gama variada de argumentos, entre os quais destacamos o estabelecimento de uma
relação de comparação entre os depoimentos prestados pela ré na Delegacia e em Juízo; o
apelo a um lugar comum da qualidade para tornar mais verossímil a hipótese de que ela teria
mesmo praticado o aborto voluntário e o encaixe de citações de jurisprudência a corroborar
seu ponto de vista. Encerrando o proferimento, localizamos um ato diretivo de requerimento,
que é fundamental para a caracterização do gênero Alegações Finais, pois, mais uma vez, a
faculdade de decidir pelo acatamento, ou não, do pedido formulado pelo Promotor, cabe ao
Juiz de Direito.
Para responder às alegações da acusação, a defesa apresentou também suas razões e de
forma escrita. Assim como seu oponente, o Defensor formulou atos assertivos para reconstruir
os fatos atribuídos a sua cliente, sempre com o cuidado de suprimir as informações que
pudessem prejudicar a imagem desta. A argumentação fundou-se no encaixe de vozes
narrativas, na contestação à prova pericial e na citação de julgados. A exposição,
220
argumentada, da crença na não-realização da conduta pela ré encerra-se com o ato diretivo de
requerimento, por meio do qual o Advogado postula a impronúncia de sua cliente.
Na sequência do processo, veiculada pela Sentença de Pronúncia, surge a voz do Juiz
de Direito: o sujeito que tem o poder de dizer sobre a plausibilidade maior de uma ou outra
tese e, com isso, teoricamente, dirimir o conflito instaurado entre as instâncias de acusação e
defesa. Contudo, seu poder é limitado pelos dispositivos de lei e sua decisão não pode ser
fruto do arbítrio. Daí a obrigação de fundamentar as sentenças.
Assim como as Alegações são o ponto culminante da argumentação nessa etapa
processual, a Sentença de Pronúncia atinge o grau máximo da performatividade da linguagem.
Não que os gêneros anteriormente comentados sejam isentos desse atributo: na verdade, todos
eles realizaram ações por serem proferidos. Mas os efeitos sociais alcançados por uma
Sentença de Pronúncia nos parecem bem mais amplos, sobretudo para a situação jurídica da
acusada, sobre a qual, a partir desse momento, passa a recair uma carga acusatória mais
pesada e de consequências mais graves. Por essa razão, pensamos nesse proferimento como
um macroato declarativo, enfatizando, assim, seu caráter de performatividade, na medida em
que é capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito pelo simples fato de sua enunciação
com caráter de publicidade e oficialidade.
Prolatada a Sentença de Pronúncia, inicia-se no interior da secretaria do fórum uma
movimentação a fim de conferir a ela esse caráter de publicidade e oficialidade ao qual nos
referimos. Mais uma vez, verificamos que essa atividade é realizada por meio do trabalho
com gêneros textuais, só que, desta feita, são utilizados modelos bem mais simples,
formulaicos mesmo, tão padronizados que são apostos nas páginas do processo por registro
com carimbos. Apesar da simplicidade da linguagem, tais gêneros são muito eficientes para a
consecução da tarefa a que se destinam.
Por não concordar com a Pronúncia, o Defensor exercitou o direito da ré de submeter
o caso à apreciação de um colegiado de juízes. Para isso, ele ingressou com um recurso e
apresentou suas razões. O processo, então, subiu para o Tribunal. O Promotor de Justiça
respondeu com suas contra-razões de recurso; o Procurador manifestou-se, em Parecer, como
favorável à manutenção do inteiro teor da Pronúncia e, novamente, o caso foi submetido à
decisão de magistrados. Essa decisão tomou corpo por meio do Acórdão, que é uma peça
processual resultante do entendimento de três Desembargadores (termo usado para designar
os juízes que atuam nas instâncias superiores) e que, em muitos aspectos, segue o padrão das
sentenças de primeira instância.
221
Ao analisarmos o Acórdão, privilegiamos a investigação de sua estrutura
argumentativa. Tentamos identificar e correlacionar aspectos como o quadro institucional que
modela o exercício da argumentação nesse proferimento, os canais de entrada dos elementos
dóxicos, as manifestações de heterogeneidade mostrada, a presença das representações
sociais, a construção e circulação de imagens de si e do outro no discurso e os processos de
estereotipia.
Todas essas “categorias” foram apreendidas em função do uso que é feito delas em um
discurso de visée persuasiva, como é o Acórdão. Em linhas gerais, acreditamos ser possível
afirmar que o discurso judicial está impregnado dos valores e elementos dóxicos circulantes
no meio social. Por mais que se fale em uma pretensa imparcialidade ou neutralidade das
instâncias julgadoras diante dos casos que lhes são submetidos, esse é um ideal inatingível,
pois os membros do judiciário também estão sujeitos às crenças compartilhadas, às ideias
recebidas, aos estereótipos circulantes, como qualquer outro sujeito que viva em dada
sociedade, em certo momento histórico.
Após a confirmação da Sentença de Pronúncia pelos Desembargadores e cumpridos os
trâmites legais, finalmente, foi realizada a Sessão de Julgamento de R pelo Júri Popular. No
plenário, R alterou profundamente o conteúdo das declarações que vinha prestando até ali:
não mais confessou a prática abortiva e substitui a afirmação pela dúvida, ao dizer que não
sabia nem mesmo se estivera grávida. Parece-nos, então, que parte dos jurados se convenceu
de que as provas dos autos eram frágeis demais e quatro deles votaram pela absolvição por
insuficiência do conjunto probatório.
Restava ao Juiz trazer para o processo a decisão do Corpo de Jurados. Por meio de
uma nova Sentença, ele ratificou a decisão dos jurados, ou seja, declarou um fato que já
existia no mundo e, ao mesmo tempo, criou um estado de coisas novo: quanto à acusação de
ter praticado crime de autoaborto, fez constar que R não devia nada à Justiça.
Observamos, assim, que o atributo de performatividade relaciona-se intimamente com
a presença do ponto declarativo nas diversas peças processuais. Parece-nos que essa presença
se justifica porque as etapas do processo são sempre projetadas para um mundo possível, que
requer um ato que o institua, derivando daí sua importância para essa linguagem.
Na medida em que eram produzidos e lançados aos autos todos esses proferimentos,
que, juntos, formaram uma rede dialógico-argumentativa, a verdade acerca da conduta
imputada a R era construída e reconstruída pelos sujeitos processuais, surgindo, ao final,
como resultado desse sistema de gêneros e atividades sociais.
222
Sinteticamente, foram essas as conclusões a que levaram nossa pesquisa sobre
argumentação e performatividade da linguagem no Tribunal do Júri. Trata-se de resultados
iniciais que, de forma alguma, pretendem se configurar como resposta definitiva para os
questionamentos aqui delineados. Ao contrário, algumas constatações nos levaram a tecer
novas perguntas, que ficam registradas como sugestão para trabalhos futuros.
Assim, acreditamos que algumas questões mereceriam um tratamento mais
aprofundado, dada sua importância para a compreensão do funcionamento do domínio
discursivo jurídico. Uma delas diz respeito às condições que sustentam o atributo de
performatividade da linguagem. Pensamos que seria interessante pesquisar mais sobre as
relações entre linguagem, ação e poder e, com isso, compreender um pouco melhor os
mecanismos dos discursos institucionais.
O estudo do papel desempenhado pelos elementos dóxicos nos gêneros jurídicos, na
perspectiva das representações sociais, também seria de grande relevância para a linguística
do discurso.
Por fim, registramos que o caso concreto que compôs o corpus do presente trabalho
levou-nos, ainda, a refletir sobre as relações de gênero masculino e feminino no meio
judiciário. Questionamos, nesse sentido, em que medida o fato de o Conselho de Sentença,
responsável pelo julgamento de R, ter sido composto por seis homens e uma mulher pode
justificar o resultado de quatro votos a favor da absolvição e três contrários. Uma presença
majoritariamente feminina poderia ter ensejado um resultado diferente? Essa é, a nosso ver,
mais uma questão digna de maior aprofundamento.
223
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233
APÊNDICES
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APÊNDICE A - Sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros
Sujeito Conjunto de gêneros
Delegado de Polícia
1. Portaria (5) 2. Despacho (8) 3. Ordem de serviço (9) 4. Despacho (10) 5. Ofício (12) 6. Ofício (17) 7. Solicitação de dilação de prazo (18) 8. Relatório (27-28) 9. Ordem de colher depoimento (31v) 10. Ordem de serviço - condução coercitiva (33) 11. Despacho (35)
Quadro 1: Conjunto de gêneros do Delegado de Polícia
Sujeito Conjunto de gêneros
Escrivão de Polícia
1. autuação do Inquérito Policial 2. certidão de recebimento dos autos (20) 3. certidão (24) 4. intimação (25) 5. promoção dos autos (25v) 6. certidão de recebimento dos autos (31v) 7. mandado de intimação (32) 8. Certidão de cumprimento de despacho (35) 9. Autos conclusos ao Delegado (35) 10. Remessa dos autos à secretaria judicial (35)
Quadro 2: Conjunto de gêneros do Escrivão de Polícia
Sujeito Conjunto de gêneros
Detetive de Polícia
1. Boletim de Ocorrência (6-7) 2. Comunicação (10) 3. Comunicação (11)
Quadro 3: Conjunto de gêneros do Detetive de Polícia
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Sujeito Conjunto de gêneros
Desembargadores
1. Acórdão (118-133)
Quadro 4: Conjunto de gêneros dos Desembargadores do TJMG
Sujeito Conjunto de gêneros
Conselho de Sentença
1. Veredicto
Quadro 5: Conjunto de gêneros do Conselho de Sentença
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Sujeito Conjunto de gêneros
Auxiliares da Justiça
1. Remessa (18) 2. Autos conclusos ao juiz (19) 3. Autos entregues (19) 4. Certidão (19) 5. Certidão de intimação (19) 6. Autos entregues (19v) 7. Autos conclusos ao juiz (20) 8. Autos entregues (20) 9. Remessa à delpol (20) 10. Certidão de nada consta (29) 11. Autos conclusos ao juiz (30) 12. Autos entregues (30) 13. Vistas ao mp (30) 14. Autos entregues (30v) 15. Autos conclusos ao juiz 16. Autos entregues (31) 17. Remessa (31) 18. Termo/certidão de recebimento dos autos (35v) 19. Vistas dos autos ao promotor de justiça (35v) 20. Termo/certidão de recebimento dos autos (36v) 21. Certidão de autuação e registro (36v) 22. Autos conclusos ao juiz (37) 23. Termo/certidão de recebimento dos autos (37) 24. Certidão de expedição de mandado de intimação da denunciada (37) 25. Certidão de intimação do promotor de justiça (37v) 26. Juntada (37v) 27. Mandado de intimação (38) 28. Certidão de registro de sentença (39v) 29. Certidão de lançamento do nome da ré no livro de beneficiados pela lei 9099/95 30. Certidão de expedição de ofício (39) 31. Certidão de que consta novo feita contra a ré (41) 32. Vistas dos autos ao promotor de justiça (41v) 42. Autos entregues (42) 43. Autos conclusos ao juiz (42) 44. Autos entregues (43) 45. Juntada de mandado (43v) 46. Mandado de citação da ré para comparecer em juízo para ser interrogada (44) 47. Certidão de intimação do promotor de justiça (45) 48. Termo de audiência (46)
237
49. Mandado de intimação da ré pra que indique um defensor (47)/por ordem do juiz 50. Certidão de que não houve manifestação da ré (48) 51. Autos conclusos ao juiz (48) 52. Autos entregues (48v) 53. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (48v) 54. Certidão de publicação da intimação ao defensor (48v) 55. Certidão de juntada (48v) 56. Autos conclusos ao juiz (50) 57. Autos entregues (50) 58. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (50) 59. Certidão de publicação da intimação ao defensor (50) 60. Certidão de juntada (50v) 61. Autos conclusos ao juiz (52) 62. Autos entregues (52) 63. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (52) 64. Certidão de publicação da intimação ao defensor (52) 65. Certidão de juntada (52v) 66. Autos conclusos ao juiz (54) 67. Autos entregues (54) 68. Certidão de expedição de ofícios e mandado (54) 69. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao possível defensor da ré (54v) 70. Certidão de publicação da intimação ao defensor (54v) 71. Certidão de juntada (56v) 72. Mandado de intimação de testemunhas e da ré (56) 73. Certidão de intimação do promotor de justiça (57v) 74. Termo de audiência (59) 75. Qualificação e interrogatório (60) 76. Termo de declarações testemunha (61) 77. Termo de declarações testemunha (62) 78. Termo de declarações testemunha (63) 79. Termo de declarações testemunha (64) 80. Vistas ao promotor de justiça (65) 81. Autos entregues (68) 82. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (68) 83. Autos conclusos ao juiz (73) 84. Autos entregues (77) 85. Certidão de publicação da sentença (78) 86. Certidão de registro da sentença (78)
238
87. Certidão de expedição de mandado (78) 88. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação ao defensor da ré (78) 89. Certidão de intimação do promotor de justiça (78v) 90. Certidão de publicação de intimação (78v) 91. Certidão de juntada (78v) 92. Mandado de intimação da ré, de ordem do juiz (79) 93. Autos conclusos ao juiz (81) 94. Autos entregues (81) 95. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (81) 96. Certidão de publicação da intimação (81) 97. Certidão de juntada (81v) 98. Autos conclusos ao juiz (98) 99. Autos entregues (98) 100. Autos conclusos ao juiz (105) 101. Autos entregues (105) 102. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (105v) 103. Certidão de intimação do promotor de justiça (105v) 104. Certidão de publicação da intimação (105v) 105. Autos conclusos ao juiz (106) 106. Autos entregues (106) 107. Remessa dos autos ao tjmg (106) 108. Autos entregues mp (137v) 109. Vistas ao promotor de justiça (138) 110. Autos entregues mp (140) 111. Autos conclusos ao juiz (141) 112. Autos entregues (141) 113. Certidão de expedição de mandado (141) 114. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (141v) 115. Juntada do mandado (141v) 116. Mandado de entrega do libelo e rol de testemunhas à ré (142) 117. Certidão de publicação da intimação (142v) 118. Juntada de petição (142v) 119. Promoção dos autos ao juiz de direito (144) 120. Autos conclusos ao juiz de direito (144) 121. Autos entregues (144) 122. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (144v) 123. Certidão de publicação da intimação (142v) 124. Juntada (144v)
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125. Promoção dos autos ao juiz de direito (146) 126. Autos conclusos ao juiz (146) 127. Autos entregues (146) 128. Abertura de vistas ao promotor de justiça (146v) 129. Autos entregues (147) 130. Autos conclusos ao juiz (147) 131. Autos entregues (149) 132. Certidão de que a ré encontra-se presa por crime apurado em outro processo (150) 133. Autos promovidos ao juiz de direito (150) 134. Autos conclusos ao juiz (150) 135. Autos entregues (145v) 136. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (150v) 137. Certidão de publicação da intimação (150v) 138. Certidão de expedição de ofícios e mandado (150v) 139. Juntada (151v) 140. Mandado de intimação de testemunha da acusação (152) 141. Autos entregues (153) 142. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (156v) 143. Promoção dos autos ao juiz de direito (157) 144. Autos conclusos ao juiz de direito (157) 145. Autos entregues (157) 146. Certidão de intimação do promotor de justiça (157v) 147. Autos entregues (157v) 148. Certidão de publicação da intimação ao defensor da ré (150v) 149. Juntada (158) 150. Autos conclusos ao juiz de direito (158v) 151. Autos entregues (158v) 152. Certidão de encaminhamento de expediente de intimação do defensor da ré (158v) 153. Certidão de publicação da intimação ao defensor da ré (158v) 154. Juntada (162v) 155. Publicação da sentença (182) 156. Certidão de registro da sentença (182) 157. Certidão de encaminhamento de expediente de publicação (182) 158. Certidão de expedição de ofício (182) 159. Autos conclusos ao juiz (184) 160. Autos entregues (184) 161. Certidão de encaminhamento de expediente de
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publicação (182) 162. Certidão de publicação (184) 163. Certidão de intimação do promotor de justiça (184) 164. Juntada (184v) 165. Arquivamento (186)
Quadro 6: Conjunto de gêneros dos Auxiliares da justiça
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ANEXOS
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ANEXO A - Relatório de Inquérito Policial I. Policial nº: __ Inc. Penal: __ Local: __ Autor(a): __ Vítima: __ Data: __ Meritíssimo Juiz, Instaurou-se os presentes autos de Inquérito Policial por portaria, fls 02, tendo em vista que R teria provocado um auto-aborto, violando assim o disposto no Artigo 124 do Código Penal Brasileiro. Juntou-se comunicação de serviço do detetive X, fls 07, em que o mesmo constatou que foi a autora quem provocou o aborto, utilizando-se de uma sonda. A testemunha T1, fls 10, declarou que na época dos fatos era gerente da Santa Casa e que na paciente R foi necessário fazer curetagem. A testemunha T2, fls. 11, declarou que tomou conhecimento, através de terceiros, que haviam pessoas na cidade vendendo remédios com efeito abortivo. Alegou segredo médico para não citar nomes dos pacientes. A testemunha T3, fls. 12, declarou que não se recorda do fato. Juntou-se cópia do Laudo Médico, fls. 20, comprobatório da materialidade do delito. Juntou-se certidão do Escrivão de Polícia, certificando que a acusada foi intimada e não compareceu para sua oitiva nesta unidade policial. Ante ao exposto, e a vista de tudo mais que dos autos constam, indicio formalmente R às penas dos Artigos 124 e 330 do Código Penal Brasileiro. Recomendo ao Senhor Escrivão que to logo seja formalizado o presente feito, faça-se a remessa dos autos ao Meritíssimo Juiz de direito desta Comarca, observando as formalidades legais. É o relatório _ , 14, de setembro de 2000. Assinatura.
243
ANEXO B - Denúncia
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE _ - MG
O Ministério Público do estado de Minas Gerais, através do PROMOTOR DE JUSTIÇA desta comarca, no exercício de seu Ministério, vem respeitosamente perante este juízo, com suporte no incluso Procedimento Especial, oferecer a presente DENÚNCIA em desfavor de:
R, brasileira, separada judicialmente, profissão do
lar, filha de _ e de _ , domiciliada à Rua _ , no Município de _ , pelos seguintes fatos: Aproximadamente no dia 23 de setembro de 1999, a
denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.
Com isso, a autora deu entrada no nosocômio da
Santa Casa, neste Município, com os sintomas de aborto provocado, conforme o laudo médico, sendo necessário providências.
Assim, a denunciada ficou em observação para ver
se haveria, realmente, a necessidade da retirada do feto, sendo que, após algumas horas, foi preciso fazer a curetagem, ficando a mesma alguns dias internada para ser medicada.
A denunciada confirmou, em seu depoimento, a
prática do ilícito penal. Isto posto, tendo a denunciada incorrido nas
sanções do art. 124 do Código Penal, requer esta Promotoria de Justiça sua citação para interrogatório e defesa que tiver, ouvindo-se oportunamente as testemunhas abaixo arroladas, devendo ser, ao final, condenada nas penas que lhe couberem. Rol de testemunhas: T1
T2
T3
T4
T5
_ , 07 de dezembro de 2000. Assinatura.
244
ANEXO C - Defesa prévia EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE __ -MG
Processo nº _ R, já qualificada nos autos da Ação Penal movida
pelo Ilustre representante do Ministério Público, vem perante Vossa Excelência, através de seu procurador, apresentar sua DEFESA PRÉVIA por não condizer com a verdade os fatos narrados na denúncia.
Quanto ao mérito, reserva sua defesa para o
momento oportuno, requerendo a oitiva das testemunhas arroladas pelo representante do Ministério Público.
REQUER, desde já, a condenação do Estado de
Minas Gerais, para que este arque com os honorários advocatícios, por ter sido este humilde advogado nomeado defensor dativo por Vossa Excelência, em conformidade com o art. 272 da Constituição Estadual e o art. 1º, parágrafo 1º da Lei Estadual nº 13.166 de 20 de janeiro de 1999.
Pede e Espera Deferimento. __, 10 de abril de 2003. Assinatura.
245
ANEXO D - Alegações Finais do Ministério Público
MM. Juiz, Teve início a presente ação penal através de
denúncia contra _ , dando-lhe como incursa nas penas do 124, CP, pois, no dia 23-09-99, a denunciada, que estava grávida de dois meses, praticou um aborto, usando uma sonda que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.
Foi proposta à denunciada a suspensão condicional
do processo, que foi aceita (fls. 39). Contudo, foi o benefício revogado, uma vez que veio a ser processada , no curso da ação (fls. 43).
Citada (fls. 44/V), não compareceu ao
interrogatório (fls. 46). Defesa prévia às fls. 53. Na audiência que teve lugar no dia 15-05-03, a
acusada foi interrogada e foram ouvidas 04 testemunhas. É o relatório. A acusada, tanto na Polícia quanto em Juízo,
confessou a prática do delito previsto no art. 124 do CP, dizendo que estava grávida de 02 meses e introduziu uma sonda na vagina, provocando, destarte, o aborto, agindo desta forma porque já possuía um casal de filho e não teria condições para cuidar de mais uma criança (conf. Declarações de fls. 34 e 60).
Quando a denunciada deu entrada na Santa Casa de
Misericórdia de _ , no dia 23 de agosto de 1999, após a prática abortiva acima relatada, o médico que a atendeu, T2, suspeitou da ação criminosa e relatou o fato ao provedor daquela entidade, T3, que comunicou o fato à Polícia (conf. Ofício de fls. 08).
De acordo com a testemunha de fls. 13, T1, à época
gerente daquele nosocômio, a denunciada ali chegou “com fortes sintomas de que estaria tendo um aborto” (fls. 64).
Outrossim, o laudo médico de fls. 23 comprova a
materialidade. Destarte, presentes se fazem os requisitos
necessários à submissão da acusada a julgamento perante o eg. Tribunal do Júri desta Comarca, pois:
246
“Comprovadas a autoria e materialidade do aborto, inclusive por prova indireta da gravidez e expulsão do feto do útero materno, impõe-se a submissão dos acusados ao julgamento pelo júri” (TJSP – RT 562/325).
Ante ao exposto, requer o Ministério Público seja a
acusada pronunciada, nos exatos termos da denúncia. _, 19 de maio de 2003. Assinatura.
247
ANEXO E - Alegações Finais da Defesa
MM. Juiz, Estamos diante de uma ação penal pública
incondicionada intentada pelo Ilustre Promotor de Justiça desta comarca, no qual denunciou _ (fls. 2) nas sanções do art. 124 do Código Penal.
Foi apresentada defesa prévia – fls. 53. Na instrução foram ouvidas quatro testemunhas da
acusação, sendo que foi dispensada uma testemunha da acusação, antes dos depoimentos das testemunhas, a denunciada foi interrogada, fls. 60/64.
Em alegações finais o Ilustre Representante do
Ministério Público ratificou os termos da denúncia requerendo a pronúncia da denunciada, com o fim de que este seja julgado pelo Tribunal do Júri – fls. 66/68.
Este é o breve relatório Não temos nestes autos provas suficientes para que
a ré venha a ser submetida ao julgamento pelo Tribunal do Júri, já que o conjunto probatório, data vênia, apresentado até esta fase processual é falho, frágil e infestado por nulidade.
Preliminarmente, queremos argüir nulidade
absoluta, conforme falaremos deste vício processual que eivou todo o processo. E por causa dela não tem como _ ser pronunciada nos termos do art. 408 do Código de Processo Penal.
Por se tratar o delito do art. 124 do Código Penal
de crime que deixa vestígios há, conforme reza o art. 158 da Carta processual penal, que se fazer o Exame de corpo Delito, e não é o que ocorreu, e sendo assim acarretou nulidade absoluta transcrita no art. 564, III, b do Decreto-Lei 3689/41, como veremos a seguir:
“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será
indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”
“Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
b) o exame de corpo de delito nos crimes que
deixam vestígios, ressalvado o disposto no artigo 167”;.
248
O Ilustre representante do Ministério Público, cita em suas alegações finais um laudo médico de fls. 23 como prova da materialidade. Mesmo que este laudo fosse considerado como Exame de Corpo de Delito, este seria ineficaz, pois tal prova pericial, de acordo com a legislação processual penal, tem que ser feito por dois peritos oficiais, e na falta destes teria que se ter à nomeação de dois não oficiais, olhamos o que reza o nosso Código de Processo Penal.
“Art. 159. Os exames de corpo de delito e as outras
perícias serão feitos por dois peritos oficiais. (Redação dada ao caput pela Lei n.º 8.862, de 28.03.1994)”.
§ 1º. Não havendo peritos oficiais, o exame será
realizado por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, escolhidas, de preferência, entre as que tiverem habilitação técnica relacionada à natureza do exame. (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 8.862, de 28.03.1994)
§ 2º. Os peritos não oficiais prestarão o
compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo”. Para reforçar minha tese, trago ao conhecimento de
Vossa Excelência, decisões de nossos tribunais: “A realização do exame de corpo de delito é
indispensável no processo relativo a crime que deixa vestígios, como o aborto, sem a possibilidade de ter-se consumado sem que os vestígios ficassem. Sua falta acarreta nulidade do processo, nos termos do art. 158 e 564, III “b”, do Código de Processo Penal”. (TJSP – AC. Rel. Adriano Marrey – RT 448/321.
“O aborto é um crime que deixa vestígios, sendo
indispensável a comprovação de sua existência material por meio de exame de corpo de delito”. (RJTJESP 44/329, 50/338, 51/298).
Como vimos, o procedimento jurisdicional não foi
usado corretamente, e por isso, está contaminado pela nulidade absoluta acima citada. Por não ter como fazer outro exame de corpo de delito, por se ter passado muito tempo e estes vestígios já não existirem mais, não temos mais provas contundentes da materialidade deste crime de aborto.
De acordo com nossa legislação, esta prova pericial
poderia ser substituída pelo exame de corpo de delito indireto, que é o suprimento daquela prova pericial por depoimentos de testemunhas.
Ocorre Meritíssimo que nestes autos as testemunhas
arroladas pela acusação em nenhum momento soube dizer, sobre os fatos, se houve um aborto provocado, senão vejamos:
“que para um médico é difícil dizer quando o aborto
é natural ou provocado, a não ser que seja encontrada a prova material no corpo da paciente, que no caso especial da denunciada não se recorda”. (depoimento do T2 , fls. 61).
249
“que se lembra da denunciada e dela ter passado pela Santa Casa mas não se recorda qual o procedimento foi praticado nela”. (depoimento de T3 , fls. 62).
“que não chegou ao conhecimento do depoente se
esse aborto tinha sido provocado ou não”. (depoimento de T4, fls. 63) “que não se lembra se esse aborto tinha sido
provocado ou não”. (depoimento do T1, fls. 64). Nos autos só nos resta de comprovação da
materialidade e da autoria a confissão, pois a prova testemunhal apresentada não pôde suprir a falta do exame de corpo de delito, conforme aceita o art. 167 do Código de Processo Penal. E a confissão por si só, mesmo sendo considerada a rainha das provas, não é o meio probatório que possa substituir a prova pericial acima descrita.
Com relação a esta posição, vamos conferir
algumas decisões de nossas cortes superiores: “A confissão da suposta gestante, como é cediço,
não supre o exame de corpo de delito do aborto”. (TACRIM-SP – AC – Rel. Costa Mendes – RT 496/326).
“Não sendo possível o exame de corpo de delito, por
haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal ou documental poderá suprir-lhe a falta, ressalvando-se que a palavra da gestante não basta, por si só, para tal finalidade”. (RT 582/340, 562/325, 514/330, 457/322, 514/345, 496/326, 440/340, 382/69, 563/320, 569/330, 623/287 RTJESP 48/291, 49/195, 52/379).
“a prova da gravidez e de que o aborto foi
provocado é assunto médico-legal, normalmente esclarecido no laudo pericial, cuja eventual deficiência não impedirá a pronúncia e até mesmo a condenação do acusado, desde que apoiada noutros elementos persuasivos da materialidade do crime”. (TJSP – HC – Rel. Cavalcanti da Silva – RT 457/322).
Pelo que apresentamos, vemos que não tem como a
ré ser pronunciada para ir a julgamento pelo Tribunal do Júri, já que este processo está infectado por nulidade absoluta, não tendo como ser comprovada a materialidade, e as provas que poderiam suprir esta não são convincentes, e por fim, nem o material que teria sido, usado na prática do aborto foi apreendido.
Ante ao exposto, requer que seja acolhida a
preliminar de nulidade absoluta, e conseqüentemente seja indeferida a denúncia e reconhecida o pedido de impronúncia, embasada no art. 409 do Código de Processo Penal, por não ter nos autos um conjunto probatório suficiente para o convencimento da existência do crime, em conseqüência seja julgada improcedente a denúncia, visto que não há exame de corpo de delito, tendo que ser decretada a nulidade absoluta deste processo, e por não ter como suprir essa falta, não pode a ré ser submetida ao Tribunal do Júri.
250
Nestes termos, pede de espera deferimento. _, 02 de junho de 2003. Assinatura.
251
ANEXO F - Sentença de Pronúncia Comarca de __ Ação Penal Processo __ Vistos, ETC...
R, já qualificada, foi denunciada como incursa nas
penas do artigo 124 do Código Penal, porque, segundo a denúncia: “no dia 23.09.99, praticou, sozinha, um aborto, usando uma sonda, que foi por ela introduzida em sua vagina, causando a morte do feto.
Com isso a autora teria dado entrada na Santa Casa
com sintomas de aborto provocado. Por preencher os requisitos legais, foi o processo
suspenso, nos termos da lei 9099, mediante algumas condições. Descumprida pela denunciada essas condições, foi
revogado o benefício da suspensão, retomando o processo sua marcha normal. Regular a instrução do processo, vieram as
alegações finais, pugnando o ilustre promotor de justiça pela pronúncia da denunciada, ao passo que a defesa alega nulidade por falta de perícia e, alternativamente quer a impronúncia.
É o relatório. DECIDO. A materialidade é incontroversa, diante do laudo de
fls. 23. A autoria não foi negada e é confortada pelo
conjunto probatório trazido aos autos. A defesa alega nulidade pela não realização de
perícia. Não é caso de nulidade a falta de realização de
perícia, conforme doutrina e pacífica jurisprudência. Também não é o caso de impronúncia, porque nesta
fase processual busca-se apenas indícios de autoria e materialidade, em razão do princípio “in dúbio pro societate”.
252
É certo que a decisão de pronúncia deve cingir-se a uma análise mais superficial das provas, até mesmo para não influenciar no ânimo para o julgamento do E. conselho de Sentença.
Pelo que se apurou nos autos tem-se como suficiente
para embasar o prosseguimento do feito, visto que estou convencido de que houve o crime e de que o Denunciado seja o seu autor, assim concluindo, repito, pelas provas dos autos.
Eventuais agravantes e atenuantes poderão ser
discutidas em plenário e levadas à apreciação dos eminentes Juízes de fato. Assim sendo, Como demonstrado acima, pronuncio a denunciada
R, como incursa nas sanções do art. 124 do código penal, determinando que a mesma seja levada a julgamento pelo E. Tribunal do Júri Popular desta Comarca.
Entendo desnecessária a prisão, neste momento,
visto que a denunciada respondeu a todo o processo em liberdade, comparecendo a todos os atos, além de ser tecnicamente primária, ter residência fixa e não registra antecedentes.
Deixo de lançar o nome da ré no rol dos culpados,
por força do que diz o art. 5º, inciso LVII. Publique-se, registre-se e intime-se, Intime-se pessoalmente a denunciada. __, 04.06.03. Assinatura.
253
ANEXO G - Acórdão
EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE (CP, ART. 124) - CRIME QUE DEIXA VESTÍGIO - PRELIMINAR - NULIDADE ABSOLUTA COM EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO, EM FACE DA FALTA OU VÍCIO DO EXAME DE CORPO DE DELITO - DESCABIMENTO - DESAPARECIDOS OS VESTÍGIOS DO ABORTO - IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DO EXAME DE CORPO DE DELITO - CPP, ART. 167 - ADMITIDA A PROVA TESTEMUNHAL E LAUDO MÉDICO, CORROBORADOS PELO DEPOIMENTO DA ACUSADA - ACD INDIRETO - ADMISSIBILIDADE - PROCESSO MODERNO - BUSCA DA VERDADE REAL - TODAS AS PROVAS DEVEM SER IGUALMENTE CONSIDERADAS, NÃO EXISTINDO, ENTRE ELAS, HIERARQUIA - LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO - MÉRITO - CPP, ART. 408 - IMPRONÚNCIA - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - INVIABILIDADE - INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO SOCIETATE' - INVERSÃO AO NATURAL PRINCÍPIO DO ‘IN DUBIO PRO REO' - RESTA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI (CF/1988, ART. 5, XXXVIII) - PRECEDENTES DO STF, STJ E TJMG.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº _- COMARCA DE _- RECORRENTE(S): R - RECORRIDO(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. _
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a _ CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM , À UNANIMIDADE, REJEITAR PRELIMINAR E NEGAR PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.
Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2004.
DES. _ - RelatorNOTAS TAQUIGRÁFICAS
O SR. DES._ :
VOTO
Reunidos os pressupostos de admissibilidade, conhece-se do recurso.
Trata-se de Recurso em Sentido Estrito (fls. 255/258-TJ) interposto contra a sentença de pronúncia (fls. 74/77-TJ) proferida pelo MM. Juiz de Direito da Comarca de _ /MG, nos autos da ação penal movida pelo Ministério Público contra a Recorrente, por infração ao disposto nos art. 124 do Código Penal (aborto provocado pela gestante).
Consta da denúncia (fls. 02/03-TJ) que, em 23/09/1999, a Recorrente, que estava grávida de dois meses, praticou sozinha o aborto, utilizando-se de uma sonda, que foi por ela
254
introduzida em sua vagina, causando a morte do feto. Após, diante de complicações, deu entrada na Santa Casa do Município, ocasião em que ficou internada sob observação e submetida a uma sessão de curetagem.
Assim é que, autos enviados ao Ministério Público, este fez a proposta de suspensão do processo pelo período de dois anos (Lei nº 9.099/95, art. 89), mediante condições (fl. 36-TJ), que foram aceitas pela Recorrente e homologadas pelo MM. Juiz a quo (fl. 39-TJ).
Ocorre que, noticiada nos autos nova denúncia contra a Recorrente (fl. 41-TJ), foi requerido pelo Ministério Público a revogação da suspensão condicional do processo (fl. 41v-TJ), pedido deferido pelo Magistrado de primeiro grau, que determinou o prosseguimento do processo (fl. 43-TJ).
O MM. Juiz de primeiro grau passou então à fase instrutória dos autos, por fim, proferindo a r. sentença (fls. 74/77-TJ) pronunciando a denunciada como incursa nas sanções do art. 124 do Código Penal (aborto provocado pela gestante).
Recorre assim a Apelante (fl. 80-TJ - razões às fls. 82/93-TJ), pleiteando, preliminarmente, a nulidade absoluta diante da falta do exame de corpo delito com a conseqüente extinção do processo sem julgamento de mérito, nos termos do art. 409 do CPP, pela falta de comprovação da autoria e da materialidade.
No mérito, caso superado o primeiro questionamento, requereu a anulação do processo pelo fato de que não foi utilizada a forma correta para a formalização do exame de corpo delito, e por não ter mais como fazê-lo.
Por fim, que seja condenado o Estado de Minas Gerais a pagar os honorários advocatícios do defensor dativo, em conformidade com o art. 1º, §1º da Lei Estadual nº 13.166/99.
Contra-razões apresentadas pelo Recorrido (fls. 94/97-TJ), sustentando a manutenção da r. decisão guerreada (a pronúncia), pois "em que pese a ausência de laudo pericial assinado por dois peritos oficiais, no caso vertente, não há dúvida acerca da autoria do delito e de sua materialidade, de forma que deve prevalecer a decisão de pronúncia" (fl. 96-TJ).
Em juízo de retratação, o Juiz a quo manteve a decisão guerreada (fl. 105-TJ).
Em seu parecer (fls. 110/113-TJ), opina a douta Procuradoria de Justiça, pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
É, em síntese, o relatório.
Examinando as questões trazidas a esta instância recursal, passo a apreciá-las individualmente.
Inicialmente, quanto à preliminar de nulidade absoluta diante da falta do exame de corpo delito com a conseqüente extinção do processo sem julgamento de mérito, sem razão a Recorrente uma vez que, desaparecidos os vestígios do crime, conforme disposto no art. 167 do CPP, perfeitamente admissível outros indícios de autoria e materialidade que não o exame de corpo de delito direto, quais sejam, in casu, a prova testemunhal e o laudo médico
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constante da ficha hospitalar de internação da Recorrente, documentos e depoimentos que teriam ainda sido corroborados pela confissão da denunciada.
Art. 167. CPP. "Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta."
Neste sentido, ensinamentos de JÚLIO FABBRINI MIRABETE:
"Por vezes, as infrações não deixam vestígios ou estes não são encontrados, desaparecem, não permanecem, impossibilitando o exame direto. Citem-se como exemplo o homicídio praticado por afogamento em alto-mar em que o corpo da vítima não é encontrado, o furto em que a coisa subtraída não é recuperada, o estupro e o atentado violento ao pudor quando o fato é levado ao conhecimento da autoridade muitos dias após a ocorrência, etc. Nessas hipóteses, inexistentes os vestígios, dispensa-se a perícia, fazendo-se então a prova da materialidade do crime por outros meios que não o exame direto. Forma-se, então, o corpo de delito indireto, como prevê a lei, em regra por testemunhas (art. 167). Ensina a doutrina que não há qualquer formalidade para a constituição do corpo de delito indireto, normalmente revelado por prova testemunhal. O juiz deve inquirir a testemunha sobre a materialidade do fato e suas circunstâncias e a palavra dela bastará para firmar o convencimento do julgador, de acordo com o princípio da livre apreciação. A única restrição prevista na lei a respeito é a de que o exame de corpo de delito indireto não pode ser suprido exclusivamente pela confissão do acusado. No mais, a prova da existência do crime pode ser formada por qualquer elemento probatório não vedado em lei. Por isso, já se deu por válido o laudo de exame de corpo de delito indireto elaborado com base em atestado passado pelo médico que assistiu a vítima de lesões corporais em pronto- socorro." - grifos nossos (Processo Penal - Ed. Atlas - SP - 15ª ed. - 2003 - p. 287).
Vale posicionamento do colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em lapidar acórdão relatado pelo Min. Vicente Cernicchiaro:
"'Corpo de delito, na clássica definição de João Mendes, é o conjunto dos elementos sensíveis do fato criminoso. Diz-se direto quando reúne elementos materiais do fato imputado. Indireto, se, por qualquer meio, evidencia a existência do acontecimento delituoso. A Constituição da República resguarda serem admitidas as provas que não foram proibidas por lei. Restou, assim, afetada a cláusula final do art. 158, CPP, ou seja, a confissão não ser idônea para concorrer para o exame de corpo de delito. No processo moderno, não há hierarquia de provas, nem provas específicas para determinado caso. Tudo que ilícito for, idôneo será para projetar a verdade real. No caso concreto, além da confissão, houve depoimento de testemunhas'. Do corpo do acórdão: ‘O conceito de ‘corpo de delito', muitas vezes, é confundido com o ‘corpo de vítima'. A distinção é evidente. Corpo de delito, na clássica definição de João Mendes, é a seguinte: ‘conjunto de elementos sensíveis do fato criminoso'. O exame de corpo de delito, di-lo a lei (CPP, art. 158), é direto ou indireto. O primeiro reúne elementos sensíveis do fato histórico. O segundo, por qualquer meio, evidencia a existência do acontecimento delituoso. Magalhães Noronha, Curso de Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 1986, 17. ed., p. 105, reconhece a impropriedade do Código, na matéria. Deixou estas palavras que merecem ser consideradas: ‘Viu-se que o exame direto ou indireto é indispensável no processo, que sem ele será nulo. Não nos parece que isso esteja muito de acordo com o sistema da verdade real (n. 55, abraçado pelo Código no art. 157). Ao contrário do que o art. 158 fala, a confissão do acusado, quando revestida dos requisitos de credibilidade, deveria supri-lo. Há mais de um século, Mittermayer
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escrevia: ‘Em resumo, o corpo de delito pode muito bem ser provado pela confissão do indiciado, mas por uma confissão perfeita em relação às condições de credibilidade requeridas: é preciso principalmente que não se possa duvidar do estado completamente são de seu espírito; que se demonstre que o crime, tal como foi consumado, não podia ter deixado vestígios ...'. Perante nossa lei, se um homem, sobre cuja imputabilidade não paira a menor dúvida, confessa ter assassinado outro, v.g., afogando-o em pleno oceano, e se essa confissão é corroborada por indícios, não pode o processo ser intentado - sob pena de nulidade - porque não há o exame de corpo de delito direto ou indireto. Não nos parece isso concorde com o sistema da verdade real ou com o livre convencimento do juiz, ou ainda, como se diz na Exposição de Motivos, frisando-se não haver hierarquia probatória: ‘Todas as provas são relativas: nenhuma delas terá ex vi legis valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra'. Agora, diante da Constituição que, como registrado, elimina, expressamente, qualquer hierarquia dos meios de prova, impondo restrição apenas quando o Direito os repelir, a confissão, como o testemunho, ou qualquer outro meio probatório devem ser levados em consideração para evidenciar o fato constante da denúncia. Aliás, o moderno Código de Processo Penal português é categórico no art. 125: ‘São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei'. Assim, para que um meio de prova não seja considerado, impõe-se vedada do Direito. Em conseqüência, o confronto da Constituição e o Código de Processo Penal repele a resolução, no particular, quanto à confissão do réu. No caso dos autos, a afirmação da existência do crime não repousa (...) dos co-réus, procuraria a autoridade policial e narraria o fato. É certo, esse depoimento pode ser resultado de vindita, resultante de divergência da vida em comum. Todavia, não se raciocina ainda com a conclusão definitiva, de definição do mérito. Ao contrário, está sendo considerado para arrimar a prisão cautelar. Nesse quadrante, evidencia-se suficiente, como bem realçou o v. acórdão' (STJ - RHC - 6ª T. - Rel. Vicente Cernicchiaro - j. 02.03.93 - RT 694/390-1). No mesmo sentido: Resp. 30.435-4 - j. 09.02.93; STJ - HC 1.394-2 (92.0018250-0) - 6ª T - j. 08.02.93." (Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial - Coord. Alberto Silva Franco e Rui Stoco - Ed. RT - SP - 2001 - vol. 2 - pp. 1738/1739).
Precedentes: "A nulidade insanável decorrente da falta de exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígio constitui, sem dúvida, resquício do ultrapassado sistema da prova legal. No processo moderno, orientado pela busca da verdade real, todas as provas devem ser igualmente consideradas, não existindo, entre elas, hierarquia. Em havendo outras provas lícitas e idôneas a esclarecer a verdade dos fatos e formar o convencimento do juiz, a exigência indeclinável da prova pericial, evidentemente, desvirtuaria os fins do processo penal." (STJ - REsp. n. 62.366 - 5ª T. - Rel. Min. Edson Vidigal - j. 18.06.98 - DJU 03.08.98, p. 275). "Não sendo possível exame de corpo de delito, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta, mormente se corroborada nos demais elementos de convicção existentes nos autos e reconhecidos pela sentença" (STJ - REsp. - Rel. Min. Edson Vidigal - RT 725/531).
E ainda, do excelso SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
"O exame de corpo de delito, em face do desaparecimento de vestígios, pode ser suprido pela prova testemunhal (art. 167 do CPP)" (STF - RHC - Rel. Min. Rodrigues Alckmin - RTJ 88/104).
Também deste eg. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, temos:
"PRONÚNCIA. MATERIALIDADE. INDÍCIOS DA AUTORIA. SUFICIÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO SUCINTA. POSSIBILIDADE. CORPO DE DELITO. AUSÊNCIA DE
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PERÍCIA. PROVA INDIRETA. VALIDADE. Para a prolação da decisão de pronúncia, suficientes a prova da materialidade e indícios da autoria. A inquinada nulidade, decorrente da falta de realização do exame de corpo de delito, não tem sustentação frente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não considera imprescindível a realização da perícia, se existentes outros elementos de prova. Precedentes do STF. Não invalida a decisão de pronúncia a fundamentação sucinta." (TJMG - RSE nº 1.0000.00.229.517-8/000 - Rel. Des. Roney Oliveira - 3ª CCr. - Julg. 07/08/2001 - Publ. 05/09/2001).
E, de outros eg. tribunais, in verbis:
"Não há falar em nulidade por falta de perícia, quando a realidade das lesões venha comprovada pela prova testemunhal e apresentação da vítima a pronto-socorro, elementos de convicção que suprem o exame de corpo de delito que não foi possível realizar" (TACRIM-SP - AP - Rel. Diwaldo Sampaio - JUTACRIM-SP 59/305).
"A prova da gravidez e de que o aborto foi provocado é assunto médico-legal, normalmente esclarecido no laudo pericial, cuja eventual deficiência não impedirá a pronúncia e até mesmo a condenação do acusado, desde que apoiada noutros elementos persuasivos da materialidade do crime" (TJSP - HC - Rel. Des. Cavalcanti Silva - RT 457/322).
No caso dos autos, constata-se que a prova médica foi contundente, não só nos depoimentos dos médicos, alarmados com o crescimento dos casos de aborto na cidade, bem como na juntada da ficha correspondente ao internamento da Recorrente no Pronto-Socorro, tudo por causa das complicações que teriam nascido de um quadro de aborto. Diante de tais dados, não se sentiu a necessidade de se produzir uma prova sobre o que já estaria suficientemente claro nos autos.
Além disso, constata-se ainda que, na fase da Defesa Prévia, a defesa nada questionou sobre a necessidade da realização da prova pericial que reclama agora, em sede de recurso. Assim, é de se constatar que quando o questionamento veio à baila, já estariam desaparecidos os vestígios do aborto, sendo inviável qualquer exame de corpo de delito, que por óbvio daria negativo, sendo de se admitir daí outros elementos para formar o livre convencimento do magistrado para a pronúncia, no presente caso, a prova testemunhal e o laudo médico, corroborados pela confissão da Recorrente, tanto na delegacia quanto em juízo.
Aplica-se daí o entendimento difundido na doutrina e jurisprudência dominantes, qual seja, do processo penal moderno prestigiando, mais do que nunca, a busca da verdade real, em que todas as provas devem ser igualmente consideradas, não existindo, entre elas, hierarquia.
Pode-se dizer ainda que, sem razão a Recorrente em suas pretensões, quando também alega a impossibilidade de se fazer o exame de corpo de delito, vício de forma e a falta de assinatura de dois peritos oficiais, uma vez que foi admitida a prova indireta diante das circunstâncias do caso, além do que o exame de corpo de delito sequer foi elaborado, não podendo ter a mesma exigência para o laudo médico de fl. 23-TJ.
O mesmo pode-se dizer da alegada falta de prova da ocorrência do crime, fato que levaria a impronúncia, objeto de exame mais apurado no mérito do presente recurso.
258
Portanto, com tais fundamentos, rejeita-se a preliminar de nulidade levantada pela Recorrente.
Adentrando no mérito, verificamos, conforme o Magistrado de primeiro grau, admitindo a prova indireta, fortes indícios de autoria e materialidade contra a Recorrente, sendo estes suficientes para manter a decisão de pronúncia com o improvimento do recurso, senão vejamos.
Em se tratando de sentença de pronúncia, exige o art. 408 do CPC somente a certeza da ocorrência do crime e a provável autoria do autor:
"Art. 408. CPP. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronuncia-lo-á, dando os motivos do seu convencimento."
Assim é que EDGARD MAGALHÃES NORONHA, tecendo comentários sobre a pronúncia, pontificou:
"Numerosas são as definições da pronúncia: ‘É a decisão pela qual declara o juiz a realidade do crime e a sua suposição fundada sobre quem seja seu autor' [Bento de Faria]; ‘É a decisão em que se apuram a existência do crime, a certeza provisória da autoria e indícios da responsabilidade do réu' [Magarinos Tôrres]; ‘Pronúncia é a decisão pela qual o Juiz estabelece a existência de um crime e quem seja o seu autor' [Ari Franco]; ‘É a sentença em que, julgada procedente a denúncia ou queixa, é o réu considerado indiciado em infração penal, provada na sua materialidade, para o efeito de, com o nome lançado no rol dos culpados e sujeito à prisão imediata, ser submetido ao julgamento definitivo pelo Tribunal do Júri' [Espínola Filho]. (...) Convencendo-se da existência do crime e de indícios da autoria, o Juiz julgará procedente a acusação, pronunciando o acusado. (...) escreve Bento de Faria: ‘Basta que o Juiz, apreciando o valor dos elementos probatórios existentes nos autos, se convença da ocorrência de indícios'. Numa palavra: a pronúncia exige o corpus delicti, isto é, o fato típico demonstrado e a prova indiciária da autoria." (Curso de Direito Processual Penal - Ed. Saraiva - 3ª ed. - SP - 1969 - pp. 268/269).
O doutrinador ADRIANO MARREY, também ao dissertar sobre a pronúncia, assim leciona:
"Na decisão de pronúncia, que será fundamentada (‘dando os motivos de seu convencimento', art. 408, última alínea, do CPP), o juiz verificará se é certa a existência do crime imputado ao réu e provável a autoria que lhe é atribuída." (Teoria e Prática do Júri - 2000 - p. 260).
Seguindo tais prescrições, vamos ver que a documentação já destacada em sede de preliminar indicaria a possível existência do aborto, fato constatado pelo laudo médico de fl. 23-TJ. A questão sobre a espécie de aborto, ou seja, se seria criminoso, in casu, auto-aborto capitulado no art. 124 do CP, escapa da competência do Sentenciante na decisão de pronúncia. Mas a materialidade dos fatos parece que não guarda nenhuma controvérsia.
Ocorre que, em que pese a Recorrente argumentar em contrário, inclusive com trechos de depoimentos, a prova testemunhal trouxe indícios suficientes para a sua pronúncia, in litteris:
T1: "(...) que, na época dos fatos o depoente trabalhava como gerente no hospital Santa Casa de _ e certo dia o Dr. _ [T2] lhe comunicou que havia dado entrada naquele nosocômio uma paciente com sintomas de aborto provocado e pediu ao depoente que tomasse providências
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tendo em vista que já havia acontecido casos semelhantes e que se ocorresse algum problema com a paciente poderiam dizer que o hospital estaria sendo conivente; que se recorda que o nome da paciente é R; que, a paciente ficou em observação para ver se realmente haveria necessidade da retirada do feto, sendo que após algumas horas foi necessário fazer curetagem, sendo que a paciente ficou alguns dias internada para ser medicada. (...)" (fl. 13-TJ, confirmado em juízo as fl. 64-TJ);
T5: "(...) que na época dos fatos o depoente era provedor da Santa Casa; que o T1 era o gerente e trouxe ao conhecimento do depoente a prática do aborto, que teria sido relatada pelo Dr._ [T2]; que o depoente disse então que tinha que comunicar a polícia, o que foi feito; que não chegou a tirar a questão mais em detalhes (...)" (em juízo as fl. 63-TJ).
Fato também corroborado pelo esclarecedor depoimento da Recorrente em juízo (fl. 60-TJ), confirmando o prestado na delegacia (fl. 34-TJ), ocasiões em que teria admitido a prática dos fatos denunciados.
Tais dados nos mostram que existiriam indícios de materialidade do crime e de autoria.
No tocante às motivações, creio que se deva seguir a regra geral ditada pela sapiência da jurisprudência que aponta no sentido de que:
"Dolo - Cabe aos jurados a decisão sobre sua existência, não ao juiz na fase de pronúncia" (RT 504/324), apud Damásio de Jesus e seu CPP Anotado, 19ª ed., 2002, p. 325.
Neste sentido, posicionamento do Col. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, in verbis:
"A sentença de pronúncia precisa ater-se a evidenciar indícios de autoria e materialidade (CPP, art. 408). Em conseqüência, também o tribunal que processa e julga o recurso em sentido estrito. Devem ater-se aos aspectos mencionados. A competência para apreciar o mérito é do Tribunal do Júri." (STJ - RESP nº 85387-PR - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - 6ª Turma - DJ 19/05/1997 p. 20687 - j. 04/03/1997).
"Segundo precedentes, ‘o juízo de pronúncia é, no fundo, um juízo de fundada suspeita e não um juízo de certeza. Admissível a acusação, ela, com todos os eventuais questionamentos, deve ser submetida ao juiz natural da causa, em nosso sistema, o Tribunal do Júri'. (Resp 192.049, Rel. Min. Felix Fischer)." (STJ - RESP nº 225438- CE - Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca - 5ª Turma - DJ 28/08/2000 p. 103 - j. 23/05/2000).
Daí que, existindo fortes indícios sobre a autoria e a materialidade, outra solução não restava ao MM. Juiz a quo que pronunciar a denunciada, preservando a competência constitucional do Tribunal do Júri (CF/1988, art. 5, XXXVIII).
Posicionamento, inclusive, consonante com o parecer do i. Procurador de Justiça:
"(...) Analisando os autos, entende a Procuradoria: a) a própria acusada reconheceu que se submeteu a um voluntário procedimento de aborto - tal como soube T1 ali no hospital (fl. 64) -, que se protraiu no tempo por cerca de 15 dias (vide fl.6), quando só então R procurou atendimento médico, donde a dificuldade de se colher a prova material; b) quando a ré foi atendida já não havia o que recolher do feto, porque só restavam parcelas diminutas e indefinidas do ser já decomposto, que causavam infecção na acusada ...; tornando necessária
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uma curetagem que não redundou na coleta de porções identificáveis do pobre ser. Contudo, o Relatório de fl. 23 e os testemunhos de T1 (f. 64) e do Dr. T2 (fl. 61) corroboram a confissão de R, constituindo ACD indireto. Diante do exposto, opina-se pelo conhecimento e improvimento do RSE. (...)" (fls. 112/113-TJ).
Por fim, o posicionamento deste eg. TRIBUNAL DE JUSTIÇA, através de julgamento unânime de semelhante Recurso em Sentido Estrito, pela PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL:
"Recurso em Sentido Estrito - Pronúncia - Prova da materialidade - Indícios de autoria - Absolvição sumária - Impossibilidade - Aplicação do princípio do ‘in dubio pro societate'." (TJMG - RSE nº 1.0000.00.350.189-7/000 - Rel. Des. Márcia Milanez - 1ª CCr. - Julg. 30/09/2003 - Publ. 03/10/2003).
Diante de falados fundamentos, a pretensão de anulação do processo pelo fato de que não foi utilizada a forma correta para a formalização do exame de corpo delito ou por não ter mais como o fazer, não pode persistir, eis que admitida perfeitamente a prova indireta para fins de colheita de indícios de autoria e materialidade contra a Recorrente.
Por fim, quanto ao pleito de condenação do Estado de Minas Gerais ao pagamento dos honorários advocatícios do defensor dativo, em conformidade com o art. 1º, §1º da Lei Estadual nº 13.166/99, cabe ressaltar que os honorários são arbitrados para o patrocínio da causa e não relativamente a cada ato ou fase do processo (TJMG - ACr. n. 324.077-7/00 - Rel. Des. Mercêdo Moreira - 3ª CCr. - Julg. 10/06/2003 - Publ. 14/08/2003), como pretende o advogado, além da supressão de instância (TJMG - ACr. n. 311.927- 8/00 - Rel. Des. Sérgio Resende - 2ª CCr. - Julg. 10/04/2003 - Publ. 10/06/2003), donde se conclui ser inviável a fixação neste momento, devendo aguardar a r. sentença do art. 492 do CPP, uma vez que a presente r. decisão objurgada é apenas contra a pronúncia (TJMG - ACr. n. 195.173-0/00 - Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro - 2ª CCr. - Julg. 19/10/2000 - Publ. 01/11/2000).
Com estas considerações, rejeita-se a preliminar de nulidade e nega-se provimento ao recurso.
Custas, na forma da Lei.
O SR. DES. _ :
VOTO
De acordo.
O SR. DES._ :
VOTO
De acordo.
SÚMULA : À UNANIMIDADE, REJEITARAM PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO, COM PUBLICAÇÃO DO VOTO.
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ANEXO H - Sentença
Comarca de __ Ação /Penal Processo: __ Vistos etc A acusada R, contra o qual pesa nestes autos a
acusação da prática de crime de aborto previsto no art. 124, do Código Penal, foi nesta data submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri, que, ao votar os quesitos formulados, houve por bem reconhecer que a mesma não praticou o delito.
Dessa forma, atendendo à decisão do e. Conselho de
Sentença, DECLARO absolvida R, nos termos do artigo 386, iv, do CPP. Publicada nesta assentada de julgamento, dou as
partes por intimadas. Registre-se. Sala das sessões do Tribunal do Júri de __, aos 18
dias do mês de agosto do ano de 2004, às 11,00 horas. Assinatura.