PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Mirtes Maria de Oliveira Portella
A literatura oral em contos populares do Ceará:
a carnalidade em performance
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
MIRTES MARIA DE OLIVEIRA PORTELLA
Dissertação apresentada como exigência parcial para
a obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica
Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação
da Prof.ª Dr.ª Maria Rosa Duarte de Oliveira.
São Paulo
2008
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
Para João e Eulália (in memoriam) que, contando histórias, ensinaram-me sobre a
vida.
Para Onofre, Aritanã, Mariana, Tarsila, Lucas e Caetano, porque os amo.
AGRADECIMENTOS
Na elaboração deste trabalho, contei com o apoio de muitas pessoas às quais sou
muito grata. Na impossibilidade de nomear todas elas, agradeço a todo o Departamento
de Literatura e Critica Literária, ao corpo de professores, funcionários e colegas de
mestrado que, direta ou indiretamente, doaram-me saberes e colaboraram com
estimulantes perguntas.
Com especial carinho, agradeço à minha orientadora Maria Rosa Duarte de
Oliveira, pela competência e companheirismo na condução desta pesquisa.
À Professora Maria Laura Pinheiro, pela atenta leitura.
A Luiza Granado, por me fazer acreditar.
A Allan Monteiro, pela generosa contribuição e desprendimento.
Pela cumplicidade, força e alegria, agradeço às minhas amigas:
Cynthia Costa,
Erika Takara e
Márcia Scarpa
À CAPES, pelo incentivo à pesquisa.
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo a investigação sobre a concepção de literário que
subjaz ao conto popular brasileiro no seu deslocamento do oral ao escrito, tendo por
referência os textos editados no livro Contos Populares Brasileiros – Ceará (2003).
Essa obra é fruto de recolhas cuja metodologia de transcrição implicou rigorosa
fidelidade à fonte oral, de modo a preservar as marcas vocais dos contadores. O corpus
de análise teve por critério de seleção a capacidade de sobrevivência e conservação
dos arquétipos dos contos “João e Maria”, “Maria Borralheira” e “Dom Anin”, à luz das
concepções de voz, corpo e performance do medievalista Paul Zumthor (1915 – 1984).
O desenvolvimento da pesquisa revelou estratégias de retextualização na passagem do
texto oral ao escrito, que conferiram à escritura hibridização entre letra e voz. Para
averiguar sobre como e quando a oralidade inscrita nos textos tornou-se condição para
considerá-los poéticos, diversas características lingüísticas foram levantadas, tais
como: fonológicas, morfológicas e sintáticas, além de marcadores conversacionais e
prosaísmos da fala, recursos que vivificaram o discurso narrativo quanto mais
intensificaram a presentificação da performance dos narradores: movimentos que
deslocaram a simples decodificação de signos gráficos, para o reconhecimento de uma
escuta, princípio determinante da essência poética da literatura. A análise das
narrativas demonstrou que, embora fiel aos elementos prosódicos da fala dos
contadores, a transcriação de suas performances no livro divide a responsabilidade
sobre a representação de suas vozes com o todo o processo editorial dos contos.
Esses, ainda que transitem entre tradição e memória, são, paradoxalmente, moventes e
inacabados, porque sempre relacionados ao seu contexto de produção. Os contos,
enquanto constituintes de uma rede discursiva dialogal, são presentificados, no
momento da performance, por entidades instituídas social e historicamente, cujos
discursos, representados no texto escrito, sugerem narradores em sintonia com os
contadores originais. Cabe ao leitor, por meio da letra, resgatar a vocalidade e
performance, conferindo carnalidade ao processo de transmissão.
PALAVRAS-CHAVE: literatura oral, vocalidade, movência, performance.
ABSTRACT
The purpose of this work is the investigation about conception of literary that is implied in
the displacement of brazilian popular story from the verbal form to the writting form. As
references, the edited storys contained in the book “Brazilian Popular Stories - Ceará
(2003)” was taken as study object. This book was made from some colect of popular
stories, which transcription methodology was worried about the allegiance to the verbal
source, in order to preserve the vocal marks of the storytellers. The analysis corpus had
as election criterion the capacity of survival and conservation of the stories “João and
Maria”, “Maria Borralheira” and “Dom Anin”, inspired in the conceptions of voice, body
and performance elucidated by the medievalista Paul Zumthor (1915 - 1984). During the
development of this research strategies of text reformulation could be revealed in the
tranfiguration of verbal form to the writing one, which gives to the writting form a hibrid
caracter, between the letter and voice. To inquire about how and when the orality marks
inscribed in the texts became condition to consider them poetical, diverse linguistic
characteristics was analysed, such as: phonological, morphologic and syntactic, besides
conversational and prosaisms markers of orality, which had vivified the narrative speech
intensifing the presence of narrators performance: initiatives that not just allow the
decoding of graphical signs but also make possible the recognition of a listening, that is
a determinative principle of the poetical essence of literature. The analysis of the
narratives demonstrated that even being coherent with the orality elements present in
the speaks of the storytellers, the transcription also bring some inherents caracteristics
of the publishing process. Those process transit between the tradition and memory, but
are paradoxicalally unfinished because are always related to its context of production.
The stories are constituent of a dialogal and discursive net, and in this condition are
presented by social and historical entities at the performance moment. When
represented in the written text, the speeches made by those entities suggest narrators
in parallel with the original storytellers. So, in this context the reader is in charge to
rescue trough the letter the vocality and performance, attributing some carnal e material
characteristics to the transmission process.
KEY WORDS: oral literature, vocality, mouvance (textual mobility), performance.
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................9
I - Narrativas poéticas orais e a literatura .................................................................201.1 - Em busca da voz.........................................................................................................26
1.2 - Contos populares brasileiros - Ceará e o conto de tradição oral........................ 28 1.2.1 - Forma e estrutura da narrativa oral............................................................. 33
1.3 - Quem conta um conto aumenta um ponto, mas pode diminuí-lo também... ....... 381.4 - Da forma oral à forma escrita: duas maneira de ler o texto poético.................... 40
1.5 - Do ouvir para o olhar, às vezes uma questão de poder........................................45
II - A obra vocal.................................................................................................................50
2.1 - Da trasmissão à percepção: a performance..........................................................53 2.1.1 - O saber-ser e a performance oral.................................................................55
2.1.2 - A leitura e o saber-ser do leitor em performance........................................582.2 - A inscrição da voz na letra.........................................................................................62
2.3 - Escrituras poéticas e as vozes do texto...................................................................64
2.4 - O discurso poético e os contos orais.......................................................................69
III - Contos do Ceará em análise....................................................................................74
3.1 - Contos populares brasileiros - Ceará e a arte da palavra .................................... 743.2 - A transcodificação da linguagem ............................................................................75
3.3 - "João e Maria"............................................................................................................773.4 - "Gata Borralheira" e "Maria Borralheira".................................................................87
3.5 - "Dom Anin": a conversa entre textos e o leitor entre a letra e a voz..................... 104
Considerações finais..........................................................................................................................112
Anexos...............................................................................................................................117
Referências bibliográficas ...........................................................................................142
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Introdução
“Os grandes livros da infância foram as histórias narradas pelo meu avô”.
(Milton Hatoum)
Antes contraposta à literatura dos que sabiam ler, a literatura oral, segundo
Câmara Cascudo (2006, p. 21), é fonte criativa e, pela inesgotável utilização de seus
temas, fundo de empréstimo para a outra literatura, a de formulação artística. Em 1952,
na primeira edição de Literatura oral no Brasil, esse autor reconhecia uma relação
dicotômica entre a literatura oficial e a sua irmã mais velha e popular, não somente do
ponto de vista lingüístico, já que utilizam diferentes meios de propagação, mas também
do ponto de vista valorativo. Enquanto uma, ignorando sua fonte de origem, repercute
entre os meios eruditos e acadêmicos, a outra segue ignorada e teimosa, alimentando e
colaborando com a criação coletiva ancestral.
Tendo como base as narrativas de tradição oral russas, o pesquisador Vladimir
Propp, já em 1928, desenvolve importantes trabalhos sobre as estruturas e as origens
dos contos maravilhosos. Em Morfologia do Conto Maravilhoso (1984) e As Raízes
Históricas do Conto Maravilhoso (2002), Propp conjuga a pesquisa formal e
sistêmica com dados históricos e etnográficos, estabelecendo, assim, uma visão
estruturalmente funcional e histórica para o estudo de contos de transmissão oral como
uma disciplina em permanente processo de transformação:
Mas o que significa estudo concreto do conto? Por onde começar? Se nos restringirmos a comparar os contos entre si, permaneceremos nos limites de um estudo comparativo. É necessário ampliar esses limites e encontrar a base histórica responsável pela criação do conto maravilhoso. Esse é o problema que se propõe o estudo das raízes do conto maravilhoso, formulado por enquanto nas linhas mais gerais (PROPP, 2002, p. 01).
Uma outra abordagem classifica o conto em duas categorias: a artística e a
popular (MARIA, 1992, p. 10). A primeira é fruto da intencionalidade criativa de um autor
10
que lhe imprime estilo particular, e a segunda é de domínio coletivo, um relato simples,
em linguagem que fala de prodígios e encantamentos, com a característica de ser
oralmente transmitida.
Sabe-se, ainda por Câmara Cascudo, que a literatura, freqüentemente
denominada como popular, é alimentada e se mantém por meio de duas fontes
comunicativas: uma, manifesta pelos textos reimpressos das antigas narrativas vindas,
principalmente, da Península Ibérica séculos atrás; a outra, de modo exclusivo, persiste
e se realiza na oralidade.
Por obediência às normas literárias ou lingüísticas, recontados ou reelaborados,
esses contos geralmente passam da oralidade para o texto escrito com uma espécie de
apagamento – mesmo a título de lhes conferir unidade narrativa - da voz viva e sonora
que, estimulada pela memória da criação coletiva, se materializa em ação, em
performance. Termo de origem anglo-saxônica e ligado à dramaturgia, a performance,
para Paul Zumthor, legitima toda a teatralidade empenhada na transmissão e recepção
do texto, compreendida, assim, como suporte da mensagem e endosso do corpo em
presença, seja esse texto oral ou escrito:
Na situação performancial, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente, em vigília. Na leitura, essa presença é por assim dizer colocada entre parênteses; mas subsiste uma presença invisível, que é manifestação de um outro, muito forte para minha adesão a essa voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito, comprometa o conjunto de minhas energias corporais. Entre o consumo, se posso empregar essa palavra, de um texto transmitido oralmente, a diferença só reside na intensidade da presença (ZUMTHOR, 2000, p. 81).
Paul Zumthor desautoriza a identificação da literatura oral como folclórica, tendo
em vista que, além da imprecisão semântica, remete a uma perspectiva excludente e
preconceituosa, cujo bojo camuflaria um tensionado jogo entre a cultura dominante e a
cultura dominada, sendo esta última entendida como secundária e sem importância.
Para este pesquisador, “a literatura é uma das manifestações culturais da
existência humana” (ZUMTHOR, 2000, p.55), não havendo, portanto, senão de uma
forma artificial, a relação dicotômica entre oral/ popular e escrito/ erudito. Contrário à
colocação de limites discriminatórios, conduz seus estudos de maneira a flexibilizar e
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ampliar a visão de campo literário, possibilitando, assim, que se estude um texto
também pela sua dimensão oral.
Nessa perspectiva, esta dissertação tem por objeto o estudo da literatura oral
brasileira, a partir dos textos editados nos Contos Populares Brasileiros – Ceará
(2003), que guardam as marcas da voz que os originou, possibilitando, assim, uma
perspectiva de aprofundamento nas questões que permeiam a forma “conto popular”.
Os contos analisados serão: “João e Maria”, “Maria Borralheira” e “Dom Anin”1,
todos presentes na obra Contos Populares Brasileiros – Ceará (2003), vistos por seu
organizador como uma autêntica demonstração da produção popular. Resultante de um
convênio entre Brasil e Portugal, em 1987, o “Projeto Conto Popular e Tradição Oral no
Mundo de Língua Portuguesa” visa à cooperação para realizações de ações culturais e
científicas, sendo, no Brasil, administrado pela Fundação Joaquim Nabuco. Trata-se,
portanto, de uma oportunidade de viabilizar projetos de recolha de contos narrados em
determinadas regiões brasileiras, objetivando, assim, ampla documentação para o
estudo da nossa literatura oral, tentando preservar, na edição escrita, as características
individuais de cada contador, no momento mesmo da performance, quando a
corporeidade permite que a cena oral não se restrinja à voz, mas, muito mais que isso,
se insinue como corpo e gesto.
Um diferencial apresentado pelo referido corpus é manter o nível organizacional
da vocalidade expressa pelos narradores, quando das suas performances: o ritmo, a
sintaxe, os marcadores conversacionais e os prosaísmos. Na tentativa de não apagar a
situação de enunciação, procurou-se preservar, na transposição do oral para o escrito,
o discurso e a pessoalidade dos contadores, resultando, assim, numa escrita híbrida,
cujo traço mais comum é a presença de elementos associados à língua falada.
Dois problemas teóricos podem ser deduzidos do corpus escolhido: o primeiro,
relativo ao próprio texto que se apresenta como tal, mas traz a informalidade da fala,
remetendo ao questionamento quanto à qualidade artística do conto, posto que a
descontração coloquial é tida como empobrecedora da literatura; o segundo é quanto à
postura dos narradores, que desafiam o texto impresso com suas falas, instigando a 1 Para a elaboração deste trabalho, foi utilizado o volume de Contos Populares Brasileiros referente à coleta efetuada no Estado do Ceará (Recife: Massangana, 2003). Para as referências dos contos analisados, estabelece-se a sigla CPBC, acrescido da página do volume em questão.
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investigação sobre o que significa a literariedade, a fim de responder sobre as
condições sob as quais se considera um texto literário ou não. Tais questões apontam
para a necessidade metodológica de um exame crítico sob variadas perspectivas, - a
histórica inclusive - mas que, de imediato, sabe-se serem as referências teóricas de
Paul Zumthor, as mais apropriadas, posto que, para ele, a literatura é vinculada à
percepção sensorial de uma pessoa real e não a uma exclusividade do texto ou do
autor; “um texto só existe, verdadeiramente, na medida em que há leitores (pelo menos
potenciais) aos quais tende a deixar alguma iniciativa interpretativa” (ZUMTHOR, 2000,
p.27).
Busca-se, com este trabalho, acompanhar e analisar algumas narrações de
contos de tradição oral. Narrações feitas por contadores que, sem nenhum contorno
profissional do ofício, comparecem aos serões dos alpendres e às salas das casas ou
dos terreiros para contar e transmitir conhecimentos por meio de suas narrativas. Sem
remuneração, pois essa vem de outras atividades na lida com a subsistência,
(vaqueiros, lavradores, sapateiros, donas de casa... etc), esses contadores não
guardam nenhuma semelhança, à exceção do prazer de contar, com os contadores de
histórias contemporâneos, que buscam resgatar a ancestral função como um meio de
trabalho e aprimoramento pessoal e social.
Mais especificamente, por meio da palavra desses contadores, pretendeu-se
refletir sobre o conceito de literatura, suas transformações e as possibilidades de
ampliação desse conceito, visto a partir da perspectiva da poética da literatura oral,
que, como afirma Machado, “abriga um vasto campo de realizações e uma diversidade
considerável de procedimentos que não permanecem restritos às produções da poesia
oral”, mas cuja “nota dominante é a assimilação entre o oral e o escrito” (1995, p.219).
Vale observar que a seleção das narrativas estudadas baseou-se primeiro na
sobrevivência desses contos, em sua capacidade de permanência no tempo e
conservação de seus arquétipos2. Todavia, mesmo que essas formas sejam específicas
da tradição, deve-se considerar sua movência, posto que se atualizam por meio de um
2 Zumthor compreende arquétipo no sentido de "eixo vertical" que preexiste à performance. Esse eixo é referente aos elementos semelhantes que aproximam um texto de outro. Associados à performance, no entanto, esses elementos tendem à variação natural que caracteriza a reprodução como também mudança, já que uma ação performática nunca é igual a outra (2001, p. 145).
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discurso historicamente circunscrito ao instante da performance do contador, e são
dependentes, portanto, de sua competência discursiva. Dessa forma, faz-se necessário
distinguir os dois planos constitutivos da narrativa: a estrutura de base, doada pela
tradição e a história constituída e expressa pelas unidades semânticas do texto
presentificado, ou mais especificamente, a regra, e o espontâneo da manifestação
narrativa (ZUMTHOR, 1997a, p.125).
Visto que se trabalha o texto na qualidade de matéria vocal transcrita, a
consideração deste espaço performático pressupõe um grau poético que, embora não
se oponha à oralidade, transfere a percepção do objeto literário do ouvir para o olhar.
Um deslocamento que possibilita a segunda perspectiva de análise, aquela que objetiva
o estudo da expressividade figurativa do narrador.
Ante o domínio da letra, salta-se fora do tempo/ espaço pragmático e entra-se no
tempo / espaço imersivo, no qual o leitor virtualmente submerge para a experiência de
leitura. Uma experiência que significa entrar numa região de suspensão e duração do
tempo, onde o contar e mostrar3 são partes da estratégia que enreda o leitor nas
malhas discursivas do texto.
Nessa perspectiva, antes sujeito do seu discurso oral e performático, que
interferências sofre o texto do contador/ narrador das narrativas agora transcritas? Ou
ainda, quais são, na superfície desse texto, as marcas da arte da palavra que revelam
as estratégias e estruturas discursivas desse narrador?
Subvertendo as normas da sintaxe oral e escrita, mais que reverberação residual
de uma voz, estes contos se oferecem como a transcrição da palavra viva, tal como ela
foi vocalizada pelo seu contador, evidenciando uma relação dialética com a
sofisticação, segundo a qual a cultura escrita é percebida. Entendendo que o que se
conhece por literatura o é porque obedece a critérios que não se restringem apenas à
3 Segundo Booth, embora seja autoritário por oferecer somente a sua visão sobre o que narra, o contador de histórias tradicionais captura o leitor pela maneira como engendra o discurso narrativo. Um efeito que resulta da capacidade de controle do narrador sobre o que conta e o que mostra sobre suas personagens. Contar diz respeito à exposição objetiva dos fatos que constituem a matéria narrativa, sendo diferente de mostrar que é a forma como o narrador lida com as personagens, fazendo com que o leitor estabeleça com elas uma relação de simpatia ou não. Para Booth, "um dos processos mais obviamente artificiais do contador de histórias é o truque de passar além da superfície da ação, de modo a obter uma visão fidedigna do que vai na mente e coração do personagem" (1980, p. 21).
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matéria impressa, mais do que visualização da letra, o que faz, então, essa voz viva
representada em um texto impresso se transformar em literatura?
Delineia-se uma hipótese de base que permeia as três questões colocadas, sob
a perspectiva de que a resposta à última questão, de certa forma, autoriza o ponto de
vista projetado sobre o corpus e objeto propostos. Tal resposta parte da reflexão de que
na literatura as palavras criam vida virtual e verossímil, em cumplicidade com um leitor
que reage em contato com o texto. O poder da linguagem é uma estratégia combinada
entre o narrar e mostrar como forças discursivas diretas ou indiretas. O narrar tem que
se fazer figura. E, na tessitura do texto, oral ou escrito, respondendo por esta
engrenagem, o contador/ narrador tem a responsabilidade de tornar concreto o que diz,
embora transgrida os conceitos do bem falar e da gramática normativa. Assim, acredita-
se que o que torna esses contos de tradição oral literatura é a voz narrativa dos
contadores que materializa a cena narrada conferindo-lhe carnalidade. Oferecida aos
leitores como obra impressa, é por meio da palavra, antes vocalizada, que esses
contadores constroem a força poética de suas narrativas. É isso que faz a voz viva,
mesmo transcrita e representada com informalidade e prosaísmos, transformar-se em
literatura, no sentido mais profundo de representação verdadeira da realidade possível.
Os capítulos deste trabalho estruturam-se na base de um acordo composicional
que prossegue da teoria à análise. Assim, o capítulo I – Narrativas poéticas orais e
literatura – visa apontar as características do conto de tradição oral, tendo em vista a
inserção do corpus num plano mais geral da categoria: primeiramente, reflexão sobre
os conceitos de literatura e de poesia, com a perspectiva de, mais adiante, concatená-
los com as narrativas poéticas. Dessa forma, observam-se os pressupostos para a
literariedade, que, aparentemente, apontam a relação de parentesco com a escrita,
embora suas fronteiras e seus limites, nem sempre tão claros, se mostrem sujeitos à
discussão, já que a literatura, geralmente, se alimenta da insurreição contra o pré-
estabelecido.
Com o subitem 1.1 – Em busca da voz – pretende-se fazer uma breve
amostragem do percurso pioneiro das recolhas dos contos ouvidos dos contadores
orais, e das publicações de coletâneas no Brasil. O subitem 1.2 –– Contos Populares
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Brasileiros – Ceará e o conto de tradição oral - traz a apresentação da obra
estudada e a motivação das escolhas dos contos analisados: “João e Maria”, “Maria
Borralheira” e “Dom Anin”. Aborda-se as especificidades do conto de tradição oral e
alguns caracteres dos contadores dos contos estudados. Em 1.2.1 – Forma e estrutura
da narrativa oral – os estudiosos Wladimir Propp e André Jolles são duas referências
teóricas para refletir sobre o modo como os contos têm sido estudados: se para Jolles
o conto se realiza como forma na linguagem, Propp observa que a construção do conto
se constitui por trinta e uma funções e sete esferas de ações, que, integradas, são
responsáveis pelas relações causais e estéticas do gênero. No subitem 1.3 - Quem
conta um conto aumenta um ponto, mas pode diminuí-lo também... – aborda-se a
natureza discursiva do conto de tradição oral e sua potencialidade de se refazer a cada
reconto. No subitem 1.4 – Da forma oral à forma escrita: duas maneiras de ler o
texto poético – observa-se que manifestação oral e escrita são duas maneiras
diferentes, tanto de existência textual, quanto da relação texto e recepção. E, dessa
forma, objetiva-se a compreensão dessas duas modalidades da língua, sob a
perspectiva de suas diferenças e das relações mantidas entre elas, no sentido de
aplicar as noções tipológicas dessa relação no corpus em estudo. Em 1.5 - Do ouvir
para o olhar, às vezes uma questão de poder - faz-se um breve percurso sobre os
modos de transcrições das narrativas e busca-se refletir sobre a entrada em escritura
dos contos de tradição oral, observando-se que a transformação midiática do texto traz
consigo uma concepção de leitura que, se por um lado, é reservada ao grande público
leitor, por outro, é excludente àqueles que não dominam as letras.
No capítulo II – A obra vocal – investe-se sobre a possibilidade de definição da
literatura oral, sem perder de vista, no entanto, que a base teórica deste estudo, Paul
Zumthor, considera a dificuldade de uma definição “a partir da noção de literatura”
(1997a, 25). Por isso, ele propõe “obra vocal” como sendo aquela que designa o
produto das realizações das poéticas da voz, e que pode ser estudada como uma
alocução específica, reconhecida social e coletivamente. Sem considerar juízo
valorativo, a obra da voz é um discurso que, por não ser usual e cotidiano, diferencia-se
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e é reconhecido socialmente como singular, passível, então, de ser percebido como
uma manifestação poética, e, conseqüentemente, literária (1997a, 40).
No subitem 2.1 – Da transmissão à percepção: a performance – discorrer-se-
á sobre as características próprias da transmissão oral que se constitui pela
performance. Uma característica que se funda sobre aspectos culturais, que acabam
determinando-lhe a forma fluída.
Com o subitem 2.1.1 – O saber-ser e a performance oral – procura-se refletir
sobre a relação que se estabelece entre o contador de contos orais e o seu público
ouvinte. Uma relação de cumplicidade, que busca, na participação do outro, o
reconhecimento de sua identidade. Em 2.1.2 – A leitura e o saber-ser do leitor em
performance – transporta-se a noção de performance para a relação que o leitor
estabelece com o texto, de modo a se discutir sobre a natureza desta relação. À luz de
Zumthor, trata-se da função corporal inerente a toda palavra poética, de refletir no corpo
do leitor, o que sugere a letra.
O subitem 2.2. - A inscrição da voz na letra – oferece o segundo modo de
estudo da literatura oral, a representação da voz narrativa, numa outra forma de
registro: o livro. Diante da subtração da voz do contador, principal elemento da literatura
oral, e o apoio teórico de Paul Zumthor que afirma: “entre a voz e a escrita a diferença é
de grau”, pretende-se recuperar as marcas vocais do texto transcrito. Essa transposição
midiática, à maneira de uma transcriação partilhada, divide a responsabilidade do
contador/ narrador com o coletor/ transcritor, já que este, após a escuta, inscreve sobre
o outro a sua escrita e a sua assinatura.
Com o subitem 2.3. – Escrituras poéticas e as vozes do texto – à luz das
reflexões de Irene Machado (1995) sobre a obra de Bakhtin e Zumthor, procura-se
relacionar dois conceitos desses autores: a intertextualidade e a intervocalidade.
Embora em campos diferentes - já que Bakhtin identifica a representação da voz no
romance, e Zumthor tem, como campo de provas, as vozes que presentificam a
tradição -, procura-se refletir sobre os conceitos no corpus em estudo. A partir do
subitem 2.4. – O discurso poético e os contos orais – adota-se uma perspectiva
discursiva para a análise dos contos de tradição oral. Um ponto de vista que permite a
observação da vocalização dos contos orais como um ato de fala, e que por isso leva
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em consideração a cena enunciativa, ou seja, analisa a estreita relação existente entre
o sujeito que fala e o lugar de onde ele fala.
No capítulo III – Contos do Ceará em análise, com o subitem 3.1. – Contos
populares brasileiros – Ceará e a arte das palavras – empreende-se a análise do
corpus, tendo em vista inicialmente a fundamentação teórica do percurso já traçado.
Todavia, a título de complementação do que já se apreendeu a respeito dos contos de
tradição oral, é necessário entender por quais elementos estilísticos eles são
discursivamente reconhecidos. Ficção que se oferece como comunicação e arte, haverá
na estrutura retórica desses contos estratégias que levam o leitor a se deixar atravessar
por eles, à mercê da experiência de leitura e do encantamento. Um efeito que decorre
da possibilidade de percepção da performance recebida como um ato poético.
Com o subitem 3.2 – A transcodificação da linguagem – observam-se as
transformações determinadas pela passagem dos contos, do contexto oral para o
código da escrita. A recolha, transcrição e posterior editoração dos contos resultaram
em narrativas híbridas, que, simultaneamente, apresentam aspectos da fala e da
escrita. Em 3.3 – “João e Maria” - pretende-se analisar o modo como as narrativas
foram retextualizadas. Considerando o processo que viabilizou o transporte da voz para
o livro, a meta aqui, é observar quais são as marcas presentes no texto, que
diferenciam a escrita da situação de oralidade original. Em “João e Maria”, estudam-se
os artifícios e habilidades retóricas pelas quais o narrador envolve o leitor. Da
construção das personagens à modalização das ações e ao léxico utilizado, foca-se o
modo como o narrador introduz os elementos lingüísticos, tendo em vista as estratégias
para a narração do conto. E, por fim, pretende-se analisar como essa narrativa se
inscreve no duplo movimento que caracteriza a arte da memória, já que lembrar e
esquecer se constituem nos dois aspectos que marcam toda obra da tradição.
Em 3.4 – "Gata Borralheira" e "Maria Borralheira" – objetiva-se uma breve
reflexão sobre o conto tradicional “Cinderela” e suas incidências nas mais diversas
culturas. A constatação de que sua estrutura serve a múltiplas versões, não somente
orais, é o que lhe determina a movência e o inacabamento, em vista de sempre ser
recontado ou reinventado por meio de outros suportes. Em seguida, a análise de “Maria
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Borralheira” tratará da natureza mutante do conto de tradição oral, tendo em vista que,
como toda realização humana, o discurso no qual se estrutura o conto é sujeito às
influências espácio-temporais do meio onde ocorre a manifestação performática. A
movência do texto resulta do encontro do arquétipo trazido pela tradição com a voz que
a atualiza, deixando à mostra uma narração que nunca é definitiva e que, a cada
reiteração, pode se modificar.
Com 3.5 – “Dom Anin”: a conversa entre textos e o leitor entre a letra e a
voz, a análise recai sobre a intertextualidade/ intervocalidade que se estabelece entre
três diferentes textos que tratam do mesmo tema. Dado que se objetiva compreender o
fenômeno da letra e da voz como princípios inter-relacionados, procura-se também
investigar como a oralidade inscrita no texto assegura a percepção e performance do
leitor em ato de leitura.
Mais do que temas e motivos a comparar, a este estudo interessa a adoção de
uma perspectiva performática, o que não significa desconsiderar as marcas deixadas
pelo tempo no registro dessas vozes emergenciais, mas, ao contrário, permite a
apreensão dessas marcas, simultaneamente à percepção das modificações
engendradas pela voz do discurso narrativo. Uma dupla percepção que capta a ligação
entre o passado e o presente, na individualidade da voz vinculada à memória e
articulada ao passado.
Embora a escolha dos contos a serem analisados não tenha sido um processo
aleatório, há que se considerar algum elemento de identificação inerente a essas
escolhas. De todo modo, elas foram feitas tendo em vista a possibilidade de análises
dos itens propostos, como a movência dos textos, a vocalidade neles impressa e a
performance enquanto texto escrito, fruto da oralidade. A opção de se estudar um
aspecto de cada conto em separado visa ampliar as perspectivas sobre o corpus e
estabelecer uma dinâmica de análise que não torne repetitiva a leitura, a ponto de se ler
o mesmo tipo de observação para cada uma das narrativas.
Para a articulação entre o processo evolutivo do conceito, a perspectiva teórica
escolhida e sua pertinência quanto ao objeto, considera-se a inclusão de outros
procedimentos da crítica, – antropológico, folclórico, lingüístico – objetivando satisfazer
19
aos questionamentos propostos; um procedimento que, neste trabalho, leva em
consideração não somente os métodos de abordagem hipotético-dedutivo e indutivo,
como também os processos naturais de casualidade que, por analogia, conduzem à
construção do conhecimento pretendido.
20
I – Narrativas poéticas orais e a literatura
“O que, há séculos, denominamos ‘literatura’ é uma das manifestações culturais da existência do
homem”. (Paul Zumthor)
A inclusão de práticas poéticas orais de pessoas não letradas nos estudos
literários geralmente causa algum desconforto devido ao sentido periférico a que são
relegados os trabalhos com oralidade de pessoas que não dominam o código da
escrita. Considerados folclóricos ou culturais, são mais freqüentemente estudados pela
etnologia e sociologia, ou, mais recentemente, pela lingüística como um acontecimento
de comunicação. Isso se deve também ao fato de que não são muitos os estudos
literários que trabalham a poeticidade em situação de oralidade e que, por isso, possam
fornecer subsídios teóricos aplicáveis, do ponto de vista de sua especificidade.
Em comparação, é grande a quantidade de estudos que priorizam a forma
escrita da linguagem, um reforço que talvez se justifique pelo fato de que a palavra
literatura deriva do latim: littera, cujo significado, letra, designa, por sua vez, uma
tentativa de representação escrita da fala. Tendo associado à sua origem a concepção
de signos gráficos, por muito tempo a ascendência da escrita afastou dos estudos
literários qualquer manifestação verbal que não estivesse sob a forma de letra.
Privilégio de poucos, o conhecimento da escrita foi também associado à aquisição de
altos saberes e condição fundamental para ascensão na escala social, deixando para
os não letrados a designação de atrasados e inferiores, sem direitos, portanto, à
literatura, entendida na acepção de sofisticação e erudição.
Inicialmente identificada com a ficção narrativa ou dramática, desenvolveu-se
familiarizada com a leitura dos clássicos da cultura greco-romana, e foram eles, os
gregos, que, por muito tempo, ditaram os rígidos conceitos da forma e conteúdo da
literatura. É em meio ao século XVIII que a noção de literatura associa-se à definição de
poesia, avizinha-se do significado de belo e passa a possuir um fim em si mesma,
aproximando-se do sentido contemporâneo que contempla a forma da expressão,
segundo a qual a singularidade da linguagem literária está em afastar-se do uso que se
21
faz da fala comum, cotidiana. Termo criado pelos formalistas russos na década de
1920, e difundido por Jakobson em 1960, a “literaturidade”, ou literariedade de um
texto, estaria na preponderância da função poética sobre a função referencial, ou seja,
em maior utilização do sentido figurativo da mensagem em detrimento das outras
funções da linguagem. “Trata-se de um tipo de linguagem que chama a atenção sobre
si mesma e exibe sua existência material”, diferenciando-se, assim, da comunicação do
dia-a-dia (EAGLETON, 2006, p. 3). Para Jakobson, “a supremacia da função poética
sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”, múltipla
(2001, p. 150).
De acordo com Compagnon:
A literariedade não resulta da utilização de elementos lingüísticos próprios, mas de uma organização diferente dos mesmos materiais lingüísticos cotidianos. Em outras palavras, não é a metáfora em si que faria a literariedade de um texto, mas uma rede metafórica mais cerrada, a qual relegaria a segundo plano as outras funções lingüísticas. As formas literárias não são diferentes das formas lingüísticas, mas sua organização as torna mais visíveis. Enfim, a literariedade não é questão de presença ou de ausência, de tudo ou de nada, mas de mais e de menos: é a dosagem que produz o interesse do leitor (2006, p.40).
A inexistência de verdade absoluta na definição formal da literatura se deve ao
fato de que ela, como a literariedade, “não oferecerá mais que o conjunto das
circunstâncias em que os usuários de uma língua aceitam empregar esse termo”
(COMPAGNON, 2006, p.45). Frente à concepção clássica de que todo material
impresso ou manuscrito é literatura, ou defini-la pela função, conteúdo ou expressão, “a
literariedade, como toda definição de literatura, compromete-se, na realidade, com uma
preferência extraliterária” (COMPAGNON, 2006, p. 44), seja ela exercida por
professores, editores ou autoridades constituídas, acredita o autor.
É claro que, de um conceito a outro, não existe a idéia de ruptura, levando a crer
que antes se convivia com um conceito de literatura que hoje não vale mais.
Entendendo que cada possibilidade de definição da literatura serve-se, sim, de critérios
condicionados à sua situação de origem, observa-se também que na modernidade se
convive com noções de literatura que ora contemplam um ou outro conceito, quando
não, alguns. Não se pode esquecer que, sem prazo de validade, os mitos gregos
continuam estimulando e se oferecendo como objetos de reflexão, ao mesmo tempo em
22
que manifestações de cultura de massa, como, por exemplo, as canções, são o meio
utilizado para discussão e até abrandamento das fronteiras entre erudito e popular.
Vale lembrar que a condução das manifestações orais no âmbito das questões
literárias foi impulsionada pelos estudos sobre a oralidade em Homero. Contra todas as
expectativas da crítica erudita, Milman Parry, partindo de observações de outros
estudiosos e de suas próprias convicções, aponta que a singularidade poética presente
na Ilíada e na Odisséia, de Homero, teve sua origem na oralidade dos aedos e
rapsodos, e foram manuscritos dois ou três séculos depois dos poemas criados. Além
do que, havia na estrutura dos poemas de Homero algo semelhante ao que se encontra
nas narrativas orais em todo mundo: o engendramento da história é costurado pela
inserção de frases formulares pré-existentes, repetidas de acordo com a necessidade
métrica e expressão de idéias vitais à narrativa. Depois de observar e ouvir os
cantadores de histórias épicas da ex-Iugoslávia, cujo sistema de criação poética se
assemelhava às produções de Homero, Milman Parry (1902–1935) e seu companheiro
de pesquisa, Albert Lord, chegaram à conclusão de que,
virtualmente, todo traço distintivo da poesia homérica deve-se à economia imposta pelos métodos orais de composição. Estes podem ser reconstruídos por um estudo detalhado do próprio verso quando nos desvencilhamos dos pressupostos sobre os processos de expressão e de pensamento arraigados na psique por gerações de cultura escrita (ONG, 1998, p.30).
É uma descoberta surpreendente que trouxe ao debate idéias anteriores de
outros pesquisadores, como o filósofo Giambattista Vico (1668 – 1744), que afirmava
não acreditar na existência de Homero e de que seus poemas foram possivelmente
originados numa criação poética coletiva, ou o historiador Robert Wood (1717 – 1771),
que acreditava num Homero não letrado, embora tivesse na memória sua base de
expressão poética (ONG, 1998, p.28).
Isso aponta para o fato, hoje incontestável, de que, no alvorecer e durante muito
tempo da civilização humana, a literatura tinha destinação oral e não escrita.
Originariamente, a apreensão do literário dava-se pela percepção auditiva e não pelo
sentido visual, pela leitura silenciosa, como hoje é hábito nas sociedades quirográficas,
23
isto é, aquelas que desenvolveram a escrita, e que, posteriormente, adotaram a
impressão.
O deslocamento do oral para o escrito, das recolhas às transcrições das
manifestações poéticas orais, aproximou a oralidade da literatura, sem, contudo, lhe
conceder o mesmo prestígio da escrita. Segundo Paul Zumthor: “Em razão de um
antigo preconceito em nossos espíritos e que performa nossos gostos, todo produto das
artes da linguagem se identifica com uma escrita, donde a dificuldade que encontramos
em reconhecer a validade do que não o é”. No entanto, dentre as espécies, somente a
humana escuta “emergir sua própria voz como um objeto: É em torno dele que se fecha
e solidifica o laço social, enquanto toma forma uma poesia” (ZUMTHOR,1997a, p.12).
Neste ponto vale lembrar que poíesis: - “A arte que se utiliza apenas de palavras” - era
como Aristóteles se referia à narração, à declamação e ao canto compostos em versos
e entendidos como produções da voz (1997a, p. 19).
Com o passar do tempo, o termo poesia se limitará aos versos, mas guardará
consigo a carga semântica de uma arte para a qual nem os gregos tinham determinado
um “nome”, talvez pela dificuldade em abrigar, sob um mesmo conceito, manifestações
tão díspares como “os diálogos socráticos, os textos em prosa e em verso”
(COMPAGNON, 2006, p. 29). A partir do início do século XIX, literatura designará “o
conhecimento das letras”, mas seu significado, como afirma Compagnon, continuará
uma “aporia”, pela impossibilidade de o termo englobar tudo que se produz com a
palavra. Essa dificuldade talvez resulte do contraste entre dois pontos de vista sob os
quais os estudos literários estão sempre pressionados: um aspecto objetiva o texto
historicamente, como um documento, e o outro objetiva “o texto como fato da língua, a
literatura como arte da linguagem” (COMPAGNON, 2006, p.30). Pode ser que em vista
dessa irredutibilidade, alguns autores, como, por exemplo, Jakobson, tenham preferido
preservar o sentido mais extensivo do termo poesia, quando definiu a literariedade pela
predominância da função poética da linguagem.
De todo modo, lembra Irene Machado que, para os formalistas russos, “a
linguagem poética seria construção a partir de procedimentos singularmente criados
para manifestar, até mesmo na forma, um determinado conteúdo” (2007, p. 143). Não
24
sendo apenas comunicação, a linguagem poética chama atenção sobre si mesma e
causa estranhamento pela maneira como é percebida.
Paul Zumthor parece contemplar o encontro desses pontos de vista, já que
entende a linguagem poética num “sentido mais geral, incluindo nossa literatura”
(ZUMTHOR, 2000. p. 66), como também compreende o discurso poético como
específico, além de social e historicamente demarcado:
O termo é indiferente: eu defendo a idéia de que existe um discurso marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto o critério de qualidade, devido a sua grande imprecisão. É poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou, de uma forma geral, o texto literário), é sentido como a manifestação particular, em um dado tempo e em um dado lugar, de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (ZUMTHOR, 1997a, 40).
Pelo exposto, entende-se que tanto Compagnon (é a dosagem que produz o
interesse do leitor), quanto Zumthor (é poesia, é literatura, o que o público – leitores, ou
ouvintes – recebe como tal), relativizam a idéia de instância autoral como autoridade
máxima sobre o texto, ao mesmo tempo em que ressaltam a relevância da recepção na
identificação da linguagem poética. De acordo com os pontos de vista de Jakobson,
Compagnon e Zumthor, pode-se definir a literatura como um modo especialmente
diferente de tratar a linguagem, cuja dimensão poética há de ser percebida pelo ouvinte
ou leitor, pela comparação e diferenciação dos discursos pragmáticos do dia-a-dia.
Assim, a inclusão de manifestações poéticas orais no âmbito das questões
literárias, se por um lado traz à cena a voz como objeto de observação e estudo, por
outro, aproxima a crítica da poesia oral e afasta-a da idéia de não pertencimento aos
estudos literários. Eis que, nas palavras do próprio Zumthor:
A noção de literatura é historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização européia, entre os séculos XVII e XIII e hoje. Eu a distingo claramente da idéia de poesia, que é para mim a de uma arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas (2000. p.15).
25
Nessa linha reflexiva, Frederico Fernandes, em sua obra A voz e o Sentido
(2007), trabalha com narrativas orais de contadores pantaneiros e afirma que a
literatura, “em sua vertente reflexiva, plurissignificativa, humanizadora e, por
conseguinte, poética”, (2007, p. 19), transita na voz de indivíduos pertencentes às
comunidades desconsideradas pelos estudos literários. Apesar de estimularem diversas
criações autorais, por não dominarem a tecnologia da escrita, as manifestações
poéticas dessas pessoas não são tão freqüentemente tomadas como objetos de
estudos acadêmicos, até o autor se enfronhar na cultura oral ribeirinha do Pantanal e
dela evidenciar a expressão poética de suas vozes em performance.
Com base nessas observações, pode-se inferir a proximidade entre língua e
literatura; esta, entendida num sentido mais amplo, cuja função primária é subtrair o
receptor, ou mais largamente, os envolvidos em ato performático de contar e ouvir, do
pragmatismo dos discursos utilitários diários. Dessa forma, há que se considerar algo
anterior e não estritamente circunscrito ao texto, que é a função exercida pelo discurso
poético no seu contexto de origem.
No caso dos contos orais, qual é o sentido de contar? “Contar é viver”, disse um
velho esquimó, em 1930 (ZUMTHOR, 1997, p. 54), para ilustrar uma atividade, cuja arte
faz uso da palavra, ao mesmo tempo em que instaura um corpo real em presença
performática. O lugar ocupado por esse corpo e a narrativa por ele veiculada
preenchem um espaço físico e social, que é de natureza identitária no que concerne a
esse corpo individual, relacionado com a comunidade à qual ele pertence. Outorgado
pela tradição, a função de quem conta é transmitir conhecimentos, embora o prazer
seja pré-requisito para a fruição da performance. Segundo Zumthor:
O conto, para aquele que narra (como a canção para aquele que a canta), constitui a realização simbólica de um desejo; a identidade virtual que, na experiência da palavra, se estabelece um instante entre o narrador, o herói e o ouvinte, cria, segundo a lógica do sonho, uma fantasmagoria libertadora. Vem daí o prazer de contar, prazer da dominação – associado ao sentimento de pegar aquele que escuta na sua armadilha –, captado de maneira narcisista no espaço de uma palavra aparentemente objetivada (1997a, p.55).
Suspensão virtual do tempo e fascinação entre aquele que narra e o outro que
escuta, a linguagem “satisfaz seu desejo de forma” (1997a, p.133), ao mesmo tempo
26
em que a liberdade e espontaneidade da palavra presentificada, ao contrário do que
afirma Jolles, escapa à rigidez das normas, “das palavras próprias da forma” (1976,
p.195). Num jogo tensionado entre obediência e transgressão, “a forma vai minar a
palavra, estilizar o impulso sem quebrá-lo, donde os saltos, os falsos começos, as
repetições, os ilogismos” (ZUMTHOR, 1997a, p.133) da narrativa na voz do contador.
Todavia, a partir da perspectiva da linguagem, seja na forma oral ou escrita, por
definição, um texto é sempre um texto, embora guarde, cada um, sua especificidade
quanto ao suporte. Constituída por acumulação, multiplicidade e uma diversidade
reveladora da carência de unidade, a linguagem nos contos orais em presença
diferencia-se da escrita, primeiramente, pela vitória que esta última exerce sobre o
tempo, além do que, a escrita transmuda as palavras para um espaço silencioso e de
domínio visual, conquanto se considere que a leitura siga os vestígios da voz que a
letra sugere.
1.1. - Em busca da voz
Pioneiro nos registros impressos de narrativas orais em solo brasileiro, em 1888,
o crítico Silvio Romero inclui na segunda edição de História da Literatura Brasileira
um capítulo dedicado à literatura oral brasileira. Em 1943, numa terceira edição dessa
obra, é introduzido um texto de 1909 - o “Quadro Sintético da Evolução dos Gêneros na
Literatura Brasileira” -, que trata da evolução do romance e do conto, tendo como
referência os contos populares e o cordel. Também autor de Introdução à história da
literatura brasileira, de 1882, Silvio Romero publica em 1885, em Lisboa, os Contos
populares do Brazil.
Anteriormente a Silvio Romero, em 1876, o general Couto de Magalhães traz a
público O selvagem, obra na qual se prontifica a fazer um estudo sobre o ensino da
língua para o indígena brasileiro. Publicado em nheengatu e em português, o livro traz
inclusas 25 narrativas de lendas tupis, com as quais Magalhães pensava promover a
comunicação entre brancos e índios, levando os últimos ao aprendizado do português e
da religião cristã (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 12).
27
Segundo Almeida e Queiroz, depois de ouvidas de seus contadores, essas foram
as primeiras recolhas de narrativas orais publicadas no Brasil. Um procedimento que
norteou outros estudiosos da cultura popular brasileira, como, por exemplo, Câmara
Cascudo e Aluísio de Almeida, que se destacaram na recolha, organização e
publicação de coletâneas de contos orais. Uma ação que, se por vezes foi motivada por
impulsos individuais de folcloristas e pesquisadores coletores, por outras teve o amparo
da universidade brasileira em sua fase inicial de fomento à pesquisa antropológica.
Há, então, um primeiro momento que se define pela coleta e análise do material
recolhido, e outro marcado pela metodologia científica, ambos, porém, caracterizados
pela perspectiva etnocêntrica, cujo aporte mais freqüente é relacionar a literatura oral
ao folclore. Trata-se de um recorte de caráter diacrônico que desconsidera a carga
poética do texto oral, posto que o envolvimento com a recolha do conto no presente,
visa, principalmente, compará-lo com sua repetição e escrita no passado
(FERNANDES, 2007, p. 40).
A utilização de aparelhos de registros orais, já adotados nessa fase anterior,
evolui para a gravação de vídeo-filme, facilitando a apreensão da situação de
enunciação, determinante para o estudo do cenário performático e comunicativo
desenvolvido a partir de 1970.
Assim, a comprovação da performance permite que se apreenda não somente a
identificação do contador, seu lugar de origem, faixa etária, grau escolar e profissão,
como também possibilita que se estude sua fluência e estratégias narrativas. Dessa
forma, tanto a tradição e memória entram em evidência como a criação individual do
contador como sujeito do discurso.
As edições brasileiras de contos de tradição oral são o resultado de quatro tipos
de coletâneas: a coleta, em que a autoria pertence ao pesquisador e cujo procedimento
formal é guiado pela transcrição, com a função de informar; a compilação, cujo autor
organiza e reedita narrativas antes publicadas, sejam elas transcritas ou adaptadas,
com as funções de formação e deleite; a recriação, que são narrativas sugeridas pelo
repertório tradicional oral, com a função de entretenimento e fruição, fruto da criação de
um autor; e a tradução, que é elaborada com base em publicações de outras línguas,
28
em que geralmente o tradutor é considerado autor (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004,
p.130).
Os contos em estudo neste trabalho fazem parte de uma coletânea compilada
com o intuito de viabilizar a pesquisa, o estudo, a divulgação e, nas palavras do
coordenador Lima:
a valorização do conto como documento importante da produção simbólica popular. Especificamente: 1. Valorizar e estimular o papel dos contadores de estórias; 2. Reunir documentação fidedigna da produção/ reprodução das narrativas populares para estudos sobre suas transformações nos diversos contextos culturais do país; 3. Fornecer documentação que sirva de suporte e estímulo para estudos universitários, aproveitamento didático nas escolas de diversos níveis e desperte o interesse para a pesquisa da literatura popular de transmissão oral (CPBC, p.14).
Nessa perspectiva, a proposta deste trabalho tem como objetivo analisar a
compilação de narrativas orais transcritas e apresentadas no livro Contos Populares
Brasileiros - Ceará (2003).
1.2 - Contos Populares Brasileiros – Ceará e o conto de tradição oral
O livro Contos Populares Brasileiros – Ceará (2003) editado pela
Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, faz parte da coleção Contos
Populares Brasileiros e corresponde a uma parte do projeto “Conto Popular e
Tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa”, que visa à coleta e registro escrito de
narrativas orais, nos países de língua portuguesa.
Coordenado conjuntamente por Portugal e Brasil, neste país o projeto ficou sob a
direção do folclorista e pesquisador Bráulio do Nascimento, que determinou a
subdivisão por estados e a organização das narrativas de acordo com a classificação
internacional de Aarne & Thompson.
Segundo Lima, coordenador do volume referente ao Estado do Ceará, o projeto
tem como meta dar relevância à figura do contador, coletar documentos sobre a
produção e reprodução de narrativas orais para o estudo sobre suas transformações
29
contextuais, além de disponibilizar esses testemunhos para que sejam suportes de
trabalhos acadêmicos.
Sem preocupações fonéticas, as transcrições foram feitas a partir da gravação
das performances dos contadores e se oferecem como um ponto referencial para a
literalidade da fala e “da pontuação do narrador” (CPBC, 2003 p.26), trazendo, ao final
de cada conto transcrito, a identificação do mesmo, a data e o lugar da recolha, assim
como o nome do coletor e a catalogação da narrativa, segundo os pressupostos de
Aarne-Thompson4.
Mais do que preocupação temática, no entanto, a escolha dos contos para a
análise deste trabalho pautou-se primeiro pela sobrevivência de contos já conhecidos e,
segundo, pela possibilidade de estudar as características discursivas de três diferentes
contadores inseridos num contexto de oralidade poética. E, um terceiro motivo, é o de
utilizar a transposição grafemática das narrativas transcritas para a recuperação da
vocalidade dessa escrita poética.
Assim, o conto “João e Maria” é uma narrativa a partir da qual se observa a
organização proposicional e sintática do narrador: não só a utilização de orações
paralelas, de expressões cumulativas e não subordinadas, bem como de adjetivos que
acompanham e caracterizam a narrativa oral, de maneira que a diferencia da escrita.
Narrado em 13 de setembro de 1998, por Irene Jucá Bezerra, em Saboeiro, é visível,
em “João e Maria”, a economia do léxico dos contos de tradição oral, atingindo não
somente sua estrutura, como deixando à mostra um discurso regido por leis próprias.
“Maria Borralheira” representa uma possibilidade de análise de uma variante do
conto “Cinderela”, também conhecido como “Gata Borralheira”. Narrado em 29 de
Dezembro de 1981, por Alina de Melo Freitas, em Juazeiro do Norte, essa narrativa traz
variações de elementos que permitem refletir sobre seu sentido no contexto
comunicativo no qual se realiza o reconto. Com o objetivo de destacar as
transformações do texto tradicional até sua atualização na voz do narrador, serão
observadas as marcas dialetais que denunciam o conhecimento compartilhado entre os
4 Publicado em 1910 pelo finlandês Antii Aarne e ampliado por Stith Thompson, numa segunda e terceira edição, o catálogo Aarne-Thompson identifica os contos de acordo com a unidade temática de cada um, ou seja, segundo o enredo e personagens.
30
envolvidos na performance, apontando para um texto que se move em função do
contexto no qual ele se atualiza.
O terceiro conto, "Dom Anin", narrado em fevereiro de 1980, por José Herculano
da Rocha, no Crato, por se tratar de uma investigação a partir de uma obra transcrita e
depois editada, à luz dos conceitos criados por Merleau-Ponty (corpo reflexionante) e
Paul Zumthor (performance), demonstra em sua análise que, em prosa ou verso, o
tema da donzela guerreira comporta variadas manifestações textuais, nas quais é
possível perceber marcas de intervocalidade. Ao invés de uma ruptura entre os modos
de percepção do texto, as marcas da voz no escrito convergem para um apelo à
sensorialidade do leitor, sugerindo ao olho o que se percebe pelo ouvido. A tensão
entre o ver e o ouvir são fendas na escritura que implicam a relação texto/ leitor,
possibilitando que esse construa a figuração do fazer poético.
Quanto à denominação "contos de fadas ou contos maravilhosos", esses são
termos que restringem um pouco o que poderia ser compreendido, de uma forma mais
abrangente, como conto oral ou conto de tradição oral. O primeiro termo “é uma
designação francesa para contos maravilhosos. Um termo impróprio porque demasiado
restrito, já que raramente se trata de fadas” (SIMONSEN, 1987, p.7). Integrando outras
narrativas em cuja estrutura se observam elementos mágicos e encantatórios, além de
metamorfoses e animais com atributos humanos, o segundo termo – contos
maravilhosos - incorpora os contos populares ou contos de tradição oral, estes tendo
como referência o aspecto social e o contexto de oralidade em que se realizam.
Produzidos ao longo do desenvolvimento da civilização humana, tais contos
guardam residuais míticos que foram suavizados pela própria característica da forma.
Antigos e sem autoria identificável, eles persistem no tempo, sendo reiterados e até
modificados a cada reconto, mas conservando em sua base um substrato textual
específico, um conjunto de idéias que evocam conhecimentos, geralmente utilizados
como norteadores de comportamento. A esse respeito, ainda que não faça distinção
entre o conto oral ou escrito, observe-se o que diz Walter Benjamin:
O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O personagem do ‘tolo’ nos mostra como a
31
humanidade se fez de ‘tola’ para proteger-se do mito; o personagem do irmão caçula mostra-nos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da pré-história mítica; o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; o personagem ‘inteligente’ mostra que as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge; o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere associar-se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância (1985, p.215).
Pelo exposto, vale pensar que, não por acaso, esses contos são freqüentemente
utilizados como recursos educacionais. Por um lado, suas histórias de lutas contra as
dificuldades básicas da existência humana são, simbolicamente, sugestões aos
ouvintes, ou, mais especificamente, às crianças, de que o mal deve ser combatido, pois,
assim, ele será vencido no final.
Por outro lado, a história que se conta em uma sala de aula, ou em algum
ambiente próprio de um centro urbano, pode ter o mesmo arquétipo daquela que se
escuta nos serões de uma sala ou alpendre de uma casa da zona rural, como é o caso
dos contos da obra em análise neste trabalho.
As narrativas que compõem o conjunto de contos do Ceará foram recolhidas
entre as regiões dos Inhamuns, do Cariri cearense e outros centros mais urbanos, como
Fortaleza, capital do Estado, visando a uma maior abrangência de municípios e mais
representatividade, conforme o pressuposto do projeto.
Em número de 41, à época da coleta, entre 1980 e 2000, a maioria dos
contadores tinha em torno de 50 a 80 anos de idade, e seus ofícios, os mais variados:
pescador, oleiro, comerciante, professor, mascate, caminhoneiro, taxista, funcionário
público e tocador de realejo, para os homens; prendas domésticas e cantora de
benditos, para as mulheres: uma prova de que no Nordeste brasileiro, o ato de contar
histórias, longe de configurar uma atividade remunerada, é um exercício que se faz pelo
gosto da troca entre contador e ouvintes, ou mais precisamente:
É pretexto nas reuniões familiares, em noites de sexta-feira da paixão, enquanto se espera a hora do galo. Estaria presente ao ritmo das debulhas. É ponto e contraponto nas conversas em noites, com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça, animar o trabalho nas leiras e nos eitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. Insinua-se nos lugares do acalanto, e é palavra tecida e rendada no
32
colo de avós, rendidas ao pedido, ao convite e à cumplicidade dos netos (LIMA, 2003, p.29).
Recolhidos por Francisco Assis de Souza Lima, para o Projeto “Conto Popular e
tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa”, os contos “João e Maria”, “Maria
Borralheira” e “Dom Anin” foram narrados, respectivamente, por Irene Jucá Bezerra,
Alina de Melo Freitas e José Herculano da Rocha. Residentes em Saboeiro, Juazeiro
do Norte e Crato, no Estado do Ceará, à época da recolha (1988, 1981 e 1980), esses
contadores se ocupavam de afazeres domésticos ou ligados à agricultura, sendo que,
somente Alina Freitas, cega, cantora e tocadora de benditos, tinha alguma familiaridade
com cordéis.
É pela capacidade de memorização dos contadores que as narrativas são
retidas, até o ponto de serem recuperadas e atualizadas. Isso evidencia a razão pela
qual a linguagem do conto de tradição oral em prosa é simples e voltada para as
práticas sociais mais objetivas da vida cotidiana.
Segundo José Carlos Leal, o conto popular “é uma narrativa tradicional que tem
por herói seres humanos; sua forma é solidamente estabelecida e nela os elementos
sobrenaturais ocupam posição secundária. Não se refere a temas ‘sérios’ ou reflexões
filosóficas profundas. Seu principal atrativo consiste na própria narrativa” (LEAL, 1985,
p. 23).
Neste trabalho, entende-se-á que a essência do conto de tradição oral é a sua
persistência no tempo, apesar das intempéries pelas quais tenha passado, até a sua
reatualização no reconto. Todavia, embora mantenha arquétipos préexistentes sobre os
quais se possam observar características formulares e estruturais, o ato de contar
histórias carrega uma irredutibilidade discursiva que ultrapassa a fixidez da forma. De
todo modo, forma e estrutura são duas maneiras pelas quais se podem analisar os
contos orais.
33
1.2.1 – Forma e Estrutura da Narrativa Oral
Longe da noção de gênio criador de uma obra literária, e, tendo a perspectiva da
linguagem como centro gerador de arte, em 1930, André Jolles circunscreve as formas
poéticas básicas de caráter fixo, onde elas se originam, isto é, na linguagem (1976,
p.18). A legenda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto e o
chiste, são, para ele, formas fundamentais que resultam da intervenção humana no
caos do universo. Semelhante aos mecanismos culturais que se organizam em torno da
noção de cultivar, fabricar e interpretar, a linguagem não somente nomeia estas
funções, como, por sua vez, ela também cria, fabrica e interpreta (NUNES in: LIMA,
2002, p. 206).
Como uma predisposição determinada pela imaginação, as formas fundamentais
de que fala Jolles são partes constituintes da arte de intervir no real por meio de uma
prática de linguagem, uma vez que é a própria linguagem que determina a forma,
segundo afirma: “cada vez que a linguagem participa na constituição de tal forma, cada
vez que intervém nesta para vinculá-la a uma ordem dada ou alterar-lhe a ordem e
remodelá-la, podemos falar então de Formas Literárias” (JOLLES, 1976, p. 29).
No que se refere ao conto de tradição oral, já no século XIX, por meio da
correspondência entre dois compiladores de narrativas populares - Achim Von Arnim e
Jacob Grimm - percebe-se a distinção conceitual entre linguagem e poesia. Se para
Arnim não há “oposição entre poesia popular e erudita, para Grimm, a poesia popular
sai do coração do Todo, enquanto a poesia artística sai da alma individual” (1976, p.
183). Além da questão sobre a dicotomia entre linguagem e poesia, os dois
compiladores também se envolveram numa discussão sobre fidelidade às narrativas
coletadas:
Eis-nos chegados à fidelidade. Uma fidelidade matemática é absolutamente
impossível e não existe nem mesmo na história mais verdadeira e mais rigorosa;
mas isso carece de importância, pois sentimos que a fidelidade é coisa verdadeira
e não ilusão; ela opõe-se, portanto, à infidelidade. Não podes escrever uma
narrativa perfeitamente fiel e conforme, assim como não podes quebrar um ovo
sem que uma parte da clara adira à casca; é a conseqüência inevitável de todo
34
labor humano e é a façon que muda constantemente. Para mim, a verdadeira
fidelidade, nessa imagem, seria não quebrar a gema do ovo. Se duvidas da
fidelidade dos nossos Contos, não podes duvidar dessa fidelidade, pois ela existe.
Quanto à outra e impossível fidelidade, nós próprios e outros que no-los narraram
outrora, com palavras em grande parte diferentes, nem por isso fomos menos fiéis
(GRIMM apud, JOLLES, 1976, p. 187).
Dessa citação depreende-se que, para os envolvidos na recolha dos contos, a
idéia de simples compiladores, por um lado, não se sustenta frente à inevitabilidade de
constituição de uma nova obra, após uma narrativa ser ouvida, transcrita, e, depois,
editada. Por outro lado, o conto mantém, em sua raiz, algo de análogo a si mesmo,
ainda que narrado de maneira diferente quando da sua recepção.
Vale ainda lembrar que, no encontro com as novelas do Decameron, de
Bocaccio, e, no século XVII, com Gianbattista Basile, em Cunto de li cunti, o conto se
revestiu do estilo de cada um desses autores. Todavia, novelas são formas artísticas
que contam acontecimentos que dão a impressão de verdade e cujos incidentes são
mais importantes do que as personagens que os vivem, ao contrário dos contos de
Grimm, que não fazem menção a acontecimentos e fatos reais, mas são criações mais
espontâneas, situando-se no plano do maravilhoso. No entanto, podemos constatar que
tanto um quanto outro são passíveis de elaboração lingüística.
Segundo Jolles, na forma elaborada de acordo com uma intencionalidade
autoral, a linguagem é “sólida, peculiar e única, encontrando sua realização definitiva
mediante a ação de um poeta”. Já na forma simples, a linguagem do conto “permanece
fluida, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de renovação constante” (1976,
p.195), e com um princípio característico de “disposição mental”, que alimenta a
expectativa de premiar os bons e os justos, em detrimento de uma situação
desfavorável e até mesmo trágica. Assim, sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades,
todas essas coisas só aparecem no “Conto para que possam ser, pouco a pouco,
definitivamente eliminadas e para que haja um desfecho em concordância com a
moralidade ingênua” (JOLLES, 1976, p.201).
Dentro dos parâmetros dessa moralidade, que por vezes chega a mostrar-se
incoerente para os padrões de uma narrativa linear, fica expressa uma certa
35
imoralidade, já que, afinal, nem sempre todas as ações são éticas. Todavia, é a
supressão desses julgamentos de realidade que determinam o espaço do maravilhoso,
principal característica do conto de tradição oral.
Ainda segundo Jolles, o conto perde muito de sua força e fascínio quando se
aproxima da realidade histórica. Conseqüentemente, o segundo mais conhecido
atributo do conto é a sua indeterminação quanto à localização do espaço-tempo, o que
também se aplica às personagens, que são identificadas mais pelas suas ações dentro
da trama:
Portanto, o Gato de Botas não está diante de um ser que não lhe fez mal algum – ou só um pouco – e que ele mata mediante um ardil; é, antes, o veículo necessário para que a injustiça seja reparada, o animal sem valor que permite ao filho pobre do moleiro receber mais do que aquilo de que o destino o privara, o vencedor de um ser que, por sua natureza, é um obstáculo ao acontecimento justo e à felicidade; não é a ele que pertencem os tesouros do mágico perverso, mas àquele que começara por receber muito pouco (JOLLES, 1976, p. 203).
Aqui, vale ressaltar o quanto Jolles, cuja obra é de 1930, se aproxima de Propp
que, dois anos antes, com seus estudos sobre os contos de magia da tradição russa,
possibilitou a identificação das personagens nas narrativas de tradição oral a partir de
suas funções. Segundo ele, variando os atributos como idade e sexo, por exemplo, as
personagens dos contos maravilhosos podem realizar ações semelhantes, embora em
histórias diferentes:
Nosso estudo mostrará que a repetição das funções é surpreendente. Assim, Baba-Iagá como Morozko, o urso, o espírito da floresta ou a cabeça da égua põem à prova a enteada e a recompensam. Prosseguindo com estas observações, pode-se estabelecer que os personagens do conto maravilhoso, por mais diferentes que sejam, realizam freqüentemente as mesmas ações. O meio em si, pelo qual se realiza uma função, pode variar: trata-se de uma grandeza variável (PROPP, 1984, p.26).
A partir de análise de um corpus composto por cem contos russos tradicionais,
Propp detecta um esquema narrativo comum a todos os contos maravilhosos, mesmo
que pertencentes a culturas diferentes.
O método de análise segundo as funções das personagens dos contos de
tradição oral deslocou o estudo dos contos tradicionais do tema para a estrutura. Após
36
uma situação inicial, as seqüências de ações são compostas por 31 funções que
constituem estruturalmente o conto maravilhoso:
Situação inicial Funções: 1. Afastamento de um ou mais personagens da narrativa que se inicia. 2. Proibição que se impõe ao herói. 3. Transgressão da proibição. 4. Interrogatório feito pelo antagonista, em busca de uma informação. 5. Informação recebida pelo antagonista sobre sua vítima. 6. Ardil do antagonista tentando enganar suas vítimas para apoderar-se dela e de seus bens. 7. Cumplicidade da vítima, que se deixa enganar e ajuda involuntariamente seu inimigo. 8. Dano, carência ou prejuízo causado pelo antagonista a um dos membros da família. 9. Mediação ou divulgação da notícia do dano ou carência; faz-se um pedido ou ordena-se ao herói que resolva a questão; mandam-no embora ou deixam-no ir. 10. Início da reação do herói, que aceita o desafio. 11. Partida do herói em busca da solução. 12. Primeira função do doador, que submete o herói a uma grande prova. 13. Reação do herói diante das ações do futuro doador que lhe impõe a prova qualificante. 14. Fornecimento do objeto mágico para o herói. 15. Deslocamento no espaço entre dois reinos; o herói é levado ou transportado ao mundo do vilão, onde está o objeto procurado. 16. Combate direto entre o herói e o antagonista; Prova principal. 17. Marca ou estigma que o herói recebe no corpo. 18. Vitória do herói sobre o vilão. 19. Reparação do dano ou carência inicial. 20. Regresso do herói. 21. Perseguição sofrida pelo herói. 22. Salvamento do herói perseguido. 23. Chegada incógnita do herói à sua casa ou a outro país. 24. Pretensões infundadas de um falso herói. 25. Tarefa difícil é proposta ao herói, como prova glorificante. 26. Realização de uma prova pelo herói. 27. Reconhecimento do herói, graças ao estigma. 28. Desmascaramento do falso herói. 29. Transfiguração do herói, que recebe uma nova aparência. 30. Castigo ou punição do falso herói. 31. Casamento do herói ou sua subida ao trono (PROPP, 1984, p. 31).
Embora o estudo de Propp objetive mais diretamente a análise distributiva das
funções, ele ainda delimita as esferas de ações em que se movem as personagens dos
contos de magia. Dessa forma, as trinta e uma funções se dividem e se agrupam nas
esferas de ações dessas personagens básicas do conto:
37
1. A esfera do Antagonista, que compreende o dano, o combate e outras formas de luta, e a perseguição contra o herói. 2. A esfera do Doador, que compreende a preparação e transmissão do objeto mágico ao herói. 3. A esfera do Auxiliar, que compreende o deslocamento do herói, a reparação do dano, o salvamento, a resolução das tarefas e a transfiguração do herói. 4. A esfera da Princesa, que compreende as tarefas difíceis, a imposição do estigma, o desmascaramento, o reconhecimento, o castigo do segundo malfeitor e o casamento. 5. A esfera do Mandante que inclui somente o envio do herói. 6. A esfera do Herói que compreende a partida, a reação perante as exigências do doador, o casamento, sendo que a primeira função caracteriza o herói, se ele é buscador ou vítima. 7. A esfera do Falso Herói, que compreende a partida, a reação negativa perante as exigências do doador, e, como função específica, as pretensões enganosas (PROPP, 1984, p. 73).
Vale observar que nem sempre esse esquema é extensivo a todos os contos de
tradição oral. A partir dos estudos de Propp, evidencia-se a funcionalidade interna do
conto, mas ele prevê a mutação e transformação, não das ações e funções, mas das
”personagens e seus atributos”, segundo entende Lévi-Strauss (in PROPP, 1984,
p.184). Da falta que inicia o conto, até a reparação dela, há elementos constantes, mas
de um reconto a outro algo sempre pode mudar. Sobre isso, Simonsen esclarece:
É claro que, mesmo no corpus de contos que serviu de ponto de partida para a análise de Propp, a recompensa final do herói não toma sempre a forma de um casamento ou de uma subida ao trono. Da mesma maneira, o objeto mágico da busca do herói nem sempre é uma princesa, e o auxiliar nem sempre é um ‘objeto mágico’: ele pode ser, às vezes, uma simples informação (1984, p. 43).
Tal procedimento é também observado no corpus escolhido para análise deste
trabalho. Embora se possa trabalhar a partir dos conceitos estruturais descobertos por
Propp, há de se constatar que, nos três contos em estudo, não se manifestam de
maneira tão linear as combinações de funções e esferas de ações de Propp. De todo
modo, depois de se proceder à observação da existência de uma estrutura arquetípica
dessas narrativas, percebe-se de imediato que se está frente a uma forma de
procedimento narrativo pertencente a uma classe de relato específico: o conto de
tradição oral.
38
1.3 - Quem conta um conto aumenta um ponto, mas pode diminuí-lo
também...
Embora a arte de contar histórias remonte aos tempos originais, é só a partir do
século XV que o conto ganha o sentido de relatar ou enumerar detalhes de um
acontecimento (HOUAISS, 2001, p. 816), antes verdadeiro, depois transformado em
fictício: “carochinha”; carocha (bruxa ou mulher velha); são indícios do tipo de
acontecimento que caracteriza esses relatos. Enquanto forma, pode-se determinar a
natureza do conto em oposição à realidade, como o faz Jolles: “o conto se encontra em
oposição ao acontecimento real que habitualmente se observa no universo, seu
universo próprio está separado do da realidade de modo muito mais radical que em
qualquer outra forma” (1976, p.204), mas isso não é válido quando se considera o
princípio discursivo do conto.
Ainda que o verbo “contar” possa ser associado à exatidão das operações
numéricas, o ato de enunciar uma história pressupõe a capacidade lingüística que se
movimenta dentro de um universo multifacetado de palavras, cuja escolha é
dependente da situação de uso. Mesmo inscrito na cadeia transmissiva do conto, seu
contador está condicionado ao seu tempo e espaço históricos. Como demonstração,
observe-se um fragmento da narração transcrita de José Herculano da Rocha, do conto
“Dom Anin”:
Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela por Dom Anin. Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela. E tinha umas guerra preparada aí – num sei se era em catorze, quando era – e o destino dela dava pra pegar no cangaço que nem cabra home, viu? - Aí, um dia ela disse: - Meu pai, se o senhor deixasse, comprasse uma arma pra mim, um rifle ou um fuzil mode eu ir brigar nessas guerra que tão brigando... eu queria. (CPBC, p. 169)
A inclusão de elementos contextuais (cangaço, guerra de catorze) na transcrição
da performance vocal de Rocha evidencia uma não neutralidade discursiva que lhe
outorga identidade social, conquanto revela a mobilidade da forma. Segundo Zumthor,
não necessariamente a forma é um conjunto de regras a seguir. Nela pode estar
circunscrita, mas em latência, uma “memória das mudanças de sentido” determinada
39
por elementos sócio - históricos, que fazem a obra poética ser recriada a cada
reatualização (1997a, p. 81).
Desse ponto de vista, o literário em si não basta, sendo necessário ultrapassar
seus limites e avançar para além das marcas formais e estruturais do texto. Longe de
renegar essas marcas, no entanto, há que se considerar também algo da substância de
sentido que possui o texto dentro da comunidade de linguagem onde é produzido, ou
seja, seu uso e seus aspectos culturais e poéticos.
Entender uma expressão literária como um ato de comunicação discursiva
significa estender uma perspectiva antes restrita a gêneros, autores e movimentos
literários, para outros campos do conhecimento. A aproximação do texto literário de
uma abordagem sob a ótica discursiva implica a possibilidade de percebê-lo, também,
no entorno dos aspectos que o constituem, sejam eles lingüísticos ou culturais.
Segundo Fernandes, um estudo sob perspectiva diacrônica, que vise ao
arcaísmo e à constância dos contos, valoriza outros aspectos que não a poesia oral, e
esta pode acabar “por confundir-se com folclore”. A indefinição quanto às marcas
cronológicas “dificulta a fixação da expressão poética no tempo”, levando à perda de
autoria do que se atualiza por meio da animação do contador. Sem alguma marca
individual e a perda das circunstâncias da sua produção, o texto oral passa a ser uma
mera repetição da tradição, sendo, assim, impossível, “captá-lo em seu nomadismo”,
nas modificações geradas por suas reiterações (2007, p.40).
Com efeito, o corpus escolhido para elaboração desta pesquisa registra algumas
alterações causadas por acréscimos e exclusões de elementos narrativos já
conhecidos. É um movimento que caracteriza a heterogeneidade discursiva das
narrativas de tradição oral, cuja elaboração passa através do prisma modular do tempo
e das culturas por onde se deslocou o conto, na memória de seus contadores.
Sem autoria originária, e sujeito a reinterpretações e rememorações que se
atualizam no momento do reconto, não há um relato fundador destas histórias que,
estatutariamente, operam no campo da memória e da imaginação e se realizam como
um acontecimento, como um ato de fala, cujo aporte inicial é lingüístico e cultural.
No entanto, esta arte verbal instaura uma situação específica, em que a relação
entre contador e platéia revela-se como o instante em que o estético e individual
40
oferece-se ao coletivo e transforma o efêmero em representação artística. Assim, é
como gênero discursivo polissêmico e condicionado à tradição que se apresenta como
criação individual, no momento mesmo da performance. Essa é resultado da tensão
criada entre o respeito à tradição recebida e a atualização do conto na emergência da
voz do contador (BORGES in: FERNANDES, 2003, p. 11).
Nessa perspectiva, uma vez que o conto de tradição oral encontra-se em
contínuo processo de discursivização, ao reatualizar o já dito no presente instante da
performance oral, o contador dessas narrativas poderia ser considerado também autor?
E quanto ao narrador? Sabe-se que nessa esfera, considerando o suporte da oralidade,
a pessoa civil do contador coincide com a instância narrativa e se aproxima da autoral,
estabelecendo assim, uma relação dinâmica entre as três instâncias.
Esse deslocamento, por um lado, aproxima o conto oral de um acontecimento de
linguagem, em que a dimensão discursiva institucionaliza e regulamenta o espaço-ritual
do ato de contar: quem, onde, como e quando pode pronunciar o discurso narrativo
(FERNANDES, 2003, p.7).
Por outro lado, também aproxima a noção de texto ligado ao contexto da
oralidade, conforme Walter Ong, para quem, no sentido etimológico, “texto, cuja raiz
significa tecer, é, em termos absolutos, mais compatível com a enunciação oral (...). O
discurso oral tem sido geralmente considerado em ambientes orais como tecer ou
alinhavar” (ONG, 1998, p. 22). Segundo o estudioso da oralidade Amadou Hampâté Ba,
nas sociedades de cultura oral, o discurso está intimamente relacionado com o ato de
tecer, e, simbolicamente, a palavra criadora associa-se à aranha que ensinou sua arte
ao ancestral artesão de fios, o tecelão. Para esse estudioso e mestre da transmissão
oral, quando escrita, a palavra pode revelar a força da “oralidade deitada no papel”
(FARAH, 2003).
1.4 – Da forma oral à forma escrita: duas maneiras de ler o texto poético
“No princípio era o verbo”. Como na Bíblia Sagrada, livro-chave da religião cristã,
no Gênesis, primeiro livro de Moisés, os traços de oralidade logo de início se
41
evidenciam nos vários “es” que introduzem a narração da criação do mundo: (...). “E
disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação
entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou noite. E foi a
tarde e a manhã, o dia primeiro”. Mesmo impressos, ainda que retocados para atender
os gostos de quem os edita e de quem os lê, também os contos de magia trazem uma
clara relação com a tradição oral em que foram gerados.
Em Oralidade e Cultura Escrita (1998), o padre jesuíta americano Walter J.
Ong analisa as relações dicotômicas entre a oralidade e a cultura escrita e esclarece
como o pensamento e a expressão em ambas as modalidades da língua se
diferenciam, ao mesmo tempo em que investiga a atividade oral como recurso
comunicativo e suas implicações nos processos cognitivos. Adepto de uma linha de
pensamento que compreende a cultura oral e a cultura escrita, segundo as diferenças
culturais que isso acarreta, Ong afirma que os processos cognitivos entre as duas
culturas são distintos, à medida que determinam formas de consciência e de
representação psicológicas diferentes entre si.
Nesse estudo fundamental para todos que se interessam pelo tema da oralidade
e da invenção da escrita, Ong observa que tanto o lingüista Ferdinand de Saussure
(1857 – 1913), como seu contemporâneo inglês, Henry Sweet (1845 – 1912),
destacavam a dimensão sonora das palavras, mas chama a atenção para o fato do
primeiro considerar a escrita “como uma espécie de complemento do discurso oral, e
não como transformadora da verbalização” (ONG, 1998, p.13).
Mais surpreendente, informa que é por meio de um estudo iniciado por Milman
Parry (1902 – 1935) e finalizado por Albert B. Lord sobre a natureza oral dos epítetos
homéricos na Odisséia e na Ilíada, que o tema começa a receber a atenção dos
teóricos da lingüística aplicada e da sociolingüística. Continuando essa linha de
pesquisa, um dos nomes de maior destaque foi Eric A. Havelock, seguido por McLuhan
e Okpewho, entre outros.
Os estudos de Parry desencadearam uma sucessão de trabalhos sobre a
oralidade na história da literatura e da cultura. Um nome relevante foi o do professor em
Harvard e Yale, Eric Havelock, que estudou o alfabeto grego relacionando-o com a
cultura helenística, determinando uma mudança nas mentalidades.
42
Incluindo-se entre aqueles que seguiram a linha proposta por Parry, Ong
assegura a inesgotável capacidade de associação entre as descobertas dos helenistas
americanos e outros campos de estudos.. Ampliando a visão dessas possibilidades de
conexões, Ong cita alguns antropólogos que abraçaram a questão da oralidade mais
profundamente: Jack Goody, que estuda a passagem de um estado de consciência a
outro mais elaborado e complexo, ou do “pensamento selvagem”, de Lévi-Strauss, a
outro mais culto, o que para Ong poderia ser simplificado, levando-se em consideração
a passagem do estágio oral para o escrito, nas sociedades em estudo.
Todavia, é constatada pelo autor uma grande quantidade de estudos de outros
autores que objetivam a comparação entre a linguagem falada e a escrita de falantes
que dominam as duas expressões de linguagem. Não é disto que ele fala. Sua
abordagem privilegia a oralidade primária, ou seja, a daquelas pessoas que não sabem
ler nem escrever e que por isso aprendem ouvindo e repetindo o que ouvem, fazendo
uso de provérbios e frases formulares, que, combinadas, expressam a sabedoria dos
que vivenciam e observam as práticas culturais coletivas.
Nas culturas orais, o significado da palavra difere daquele da cultura escrita. Se
nas primeiras, a palavra existe enquanto narrada, isto é, é perecível porquanto só
permanece enquanto é som, na segunda, ela é recuperável, se armazenada em livros.
Segundo o autor, isto explica, provavelmente, o poder atribuído às palavras nas
comunidades orais, para as quais a palavra proferida é depositária de uma dimensão
potencialmente mágica e de lei.
Entretanto, numa cultura oral, a sujeição das palavras ao som é tão determinante
para as maneiras de expressá-las como para os processos mentais que as produzem.
Como as idéias não podem ser anotadas, o pensamento necessita do amparo virtual da
comunicação. Para reter e recuperar o pensamento, é preciso articulá-lo com modelos
ou arquétipos mnemônicos, talhados para serem repetidos oralmente.
Assim, ritmo, antíteses, aliterações, assonâncias e sintaxe são elementos que,
entrelaçados, auxiliam o processo de memorização de provérbios, adágios e partes
temáticas de narrativas como o herói, o combate, etc.. Segundo Ong, é ouvindo,
assimilando e repetindo o que ouvem, que os participantes de culturas orais apreendem
43
o domínio das fórmulas padronizadas do discurso poético e se tornam aptos a
reproduzi-las e até a recombiná-las no reconto.
O deslocamento sensorial efetuado pela aquisição da escrita transforma a
palavra e seu uso, assim como os modos do pensamento. Da dimensão oral à
perspectiva imagética, a escrita estabelece um distanciamento que aponta para um
refinamento da palavra, como objeto de análise e aprimoramento, já que os
procedimentos de escolha para registro obedecem a regras anteriormente
determinadas, além do que, a palavra pode ser apagada ou mudada na superfície do
texto. Seguindo as diferenciações apontadas por Ong:
A vista isola; o som incorpora. A visão situa o observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte. A visão disseca, como observou Merleau-Ponty(1961). A visão chega a um ser humano de uma direção por vez: para olhar para um aposento ou uma paisagem, preciso girar meus olhos de um lado para outro. Quando ouço, no entanto, reúno o som ao mesmo tempo de qualquer direção, imediatamente: estou no centro do meu mundo auditivo, que me envolve, estabelecendo-me em uma espécie de âmago da sensação e da existência. Esse efeito de centramento do som é o que a reprodução sonora de alta-fidelidade explora com profunda sofisticação. Podemos mergulhar no ouvir, no som. Na visão, não há uma maneira análoga de mergulhar em si mesmo. Ao contrário da visão – o sentido da dissecação – o som é, desse modo, um sentido unificador. A propósito, um ideal visual típico é a clareza e a distinção. (...) O auditório ideal, por outro lado, é harmonia, é um colocar junto (1998, p.85-6).
Conforme ele observa, com a palavra impressa, os modos de apreensão e
transmissão dos textos se modificam ainda mais. A ciência e a literatura são afetadas
pela qualidade e capacidade de reprodução do suporte, o que também contribui para a
evolução das capacidades analítica e interpretativa dos leitores do texto impresso.
Fundamentado em estudos de teóricos de várias áreas do conhecimento
epistemológico, lingüístico, literário e semiótico, Walter J. Ong mostra nessa obra não
somente a oralidade como meio comunicativo comprometido com os processos do
pensamento, como também o abalo provocado pela aquisição da escrita nos processos
de apreensão do conhecimento humano. Tem-se aí a amostra de uma reflexão
abrangente, que veio reconduzir o tema da oralidade para outras possibilidades de
conexões com outros campos de estudos, sob outros pontos de vista.
44
Numa outra perspectiva, Paul Zumthor, em suas pesquisas sobre a voz, vai à
multidisciplinaridade a partir da antropologia. Para ele, ir além de disciplinas particulares
significa estabelecer um entrecruzamento de várias delas, no sentido de confirmação
do seu ponto inicial de pesquisa, que “é da ordem da percepção poética” (2000, p.14).
Esse entrecruzamento de disciplinas, entre outras já citadas, da semiótica à teoria da
recepção, cria um fundo cultural sobre o qual o fator literário/ poético emerge na e da
percepção de um ser real relacionado à sua cultura de origem.
Quanto a isso, o escritor e estudioso da poesia oral considera que existem “três
situações de cultura” , às quais conformam-se “três tipos de oralidade”: a) primária,
relativa às sociedades ágrafas; b) mista, que sofre alguma influência da escrita; c)
segunda oralidade, cuja recomposição de textos orais passa pela mediação da escrita
(ZUMTHOR, 2001, p.18).
Imaginando que o primeiro tipo de oralidade talvez exista somente junto a alguns
poucos agrupamentos indígenas, ainda absolutamente isolados, a dominante na prática
cultural brasileira é a coexistência da oralidade mista e da oralidade segunda.
O livro Contos Populares Brasileiros - Ceará é fruto da coabitação das
oralidades mista e segunda: a primeira se justifica pelo fato de alguns de seus
narradores possuírem alguma relação com a escrita, pela própria prática do cordel,
muito comum na região; a segunda remete à própria existência do livro, posto que
outros tipos de mediação (escuta, gravação, transcrição e revisão) culminaram no
registro impresso da obra, possibilitando, ao que antes fora escutado, ser, agora, objeto
de leitura silenciosa.
Segundo Derrida (Apud ONG, 1998, p. 186) a escrita não complementa a palavra
falada, mas, ao contrário, são práticas diferentes de linguagem. Seguindo a mesma
linha, Ong afirma que:
A situação das palavras em um texto é muito diferente da sua situação na linguagem falada. Embora se refiram a sons e não tenham sentido até que possam ser relacionadas – externamente ou na imaginação – aos sons ou, mais precisamente, aos fonemas que codificam, as palavras escritas estão isoladas do contexto pleno no qual as palavras faladas nascem. As palavras, em seu habitat natural, oral, são parte de um presente real, existencial. A enunciação oral é dirigida por um indivíduo real, vivo, a outro indivíduo real, vivo, ou indivíduos reais, vivos, em um tempo específico em um cenário real que inclui sempre muito mais do que meras palavras. As palavras faladas constituem sempre modificações de
45
uma situação que é mais verbal. Elas nunca ocorrem sozinhas, em um contexto simplesmente de palavras (1998, p.117).
Ong faz uma distinção entre texto escrito e a enunciação oral, com a qual,
embora concorde, Zumthor demonstra uma percepção não absolutamente opositiva.
Para ele, “em vez de uma ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma
convergência entre os modos de comunicação” (2001, p.114). Além de escrito, “o texto,
enfim, vai ser a seqüência lingüística percebida auditivamente” (1997, p.83).
Essencialmente vinculados à vocalidade, os contos orais se fazem presentes por
uma voz, cujo legado lhes determina o tom, o timbre, o compasso. Todavia, a
performance vocal não se resume à voz. Endereçada ao outro, essa determinação
também se estende ao olhar, ao gesto, ao corpo enfim, que acompanha essa voz.
Assim, sendo voz e gesto, os contos orais são, também, teatro, já que a manifestação
da palavra “participa necessariamente de um processo geral, operando numa situação
existencial que ela altera de alguma forma e cuja tonalidade engaja os corpos dos
participantes” (ZUMTHOR, 2005, p.147).
Dessa forma, ao mudar a transposição do suporte oral para o escrito, perde-se a
materialidade de todo o contexto situacional, ou seja, as circunstâncias da enunciação,
o auditório e a significação do conto dentro da comunidade do discurso narrativo.
Entretanto, essa perda do estatuto da oralidade, ocasionada pela transformação do
suporte, desvela a conhecida vantagem da escrita sobre a voz, ou seja, a vitória da
fixidez do registro escrito sobre a fugacidade do som. Essencialmente fugidia, a palavra
articulada pela voz pertence a um presente real, a qual, ao acabar de ser proferida, já é
passado, ao contrário do texto escrito, cuja linguagem está separada do seu contexto
de origem, mas perdura sobre ele.
1.5 - Do ouvir para o olhar, às vezes uma questão de poder
A entrada em escritura dos contos de tradição oral é uma questão que atravessa
várias possibilidades de aproximação teórica, seja cultural, lingüística ou literária. A
passagem do oral para o escrito não determina somente uma mudança no meio de
46
apreensão da obra poética, do sensorial-auditivo para a perspectiva imagética da
palavra escrita, mas também determina a forma oral ou escrita como duas maneiras de
fazer literatura, e, grosso modo, até de entender o mundo: se oralmente o contador é
responsável pela versão que atualiza em interação com seu público, quando essas
versões são transcritas e editadas, o público já é outro e, agora, pode escolher quais
narrativas deseja ler. Diante de uma versão recriada por um autor com poder de decidir
sobre o que escreve, muda também o modo de comunicação, já que a leitura favorece
um espaço reservado, que exclui quem não domina o código da letra. Essa
transferência tem como resultado:
uma mudança de classe social e uma mudança de ideologia, na forma de ver o mundo, porque os muitos narradores são substituídos por escritores com qualidades comuns: ser adultos, homens e de uma classe social determinada (...) Freqüentemente, escritura e filtro ideológico funcionam como sinônimos5 (LLUCH, 2004, p. 137).
No Brasil, as pessoas que não dominam o código da escrita têm consciência
disso, pois, muitas vezes, se relacionam com os letrados a partir de uma posição
diminuída e de retraso, revelando, assim, um mecanismo de dominação de caráter
ideológico, que leva aqueles que não sabem ler a sobrestimar os que sabem. Tal é o
que ocorre em alguns contos do livro Contos Populares Brasileiros – Ceará, em que
o assunto leitura se imiscui na narração de alguns contadores, levando mesmo à
reflexão sobre a questão da valorização da escrita entre os narradores: “Um rapaz era...
ele estudou muito, formou-se, num sabe? Aí, o pai dele era muito rico, aí, ele foi, pediu
ao pai dele pra ir embora. Queria muito dinheiro que ia viajar” (LIMA, 2003, p.309). Esse
fragmento do conto “O bom ladrão”, narrado pelo agricultor de Aiuaba, José Pereira
Monteiro, é interessante porque ilustra bem a questão ideológica associada ao poder
monetário e ao estudo formal. Observe-se também este outro fragmento do conto “O
homem da maca”, narrado pela dona de casa do Crato, Alzira Leite Menezes: “Era uma
vez um fazendeiro muito rico, já casado, tinha esposa, e só nasceu uma filhinha. Eu sei
5 Tradução nossa de: “Um cambio de classe social y um cambio de ideologia, de forma de ver el mundo, porque los numerosos narradores son sustituidos por escritores com unas cualidades compartidas: ser adultos, hombres y de uma clase social determinada (...). A menudo, escritura y filtro ideológico funcionaron como sinônimos”.
47
que a menina cresceu, acostumou-se a trabalhar, aprendeu a ler um pouco, mas... um
pouco, num sabe? Quando ela já era moça, então os pais morreram, ela ficou
desamparada” (CPBC, 2003, p.342). Nessa passagem, ao contrário da primeira, apesar
de o pai ter sido um homem rico, a noção do pouco domínio da leitura deixa a
personagem desamparada, indiciando, mesmo assim, o teor valorativo da leitura. A
noção da ligação entre o saber formal e o poder parece manifestar uma maneira não
isolada de interpretar o mundo, como se houvesse um consenso coletivo que divide os
homens entre os que sabem e os que não sabem ler.
Llopart (apud, LLUCH, 2004, p.137), serve-se de um conceito da biologia, a
fagositisis, para explicar o processo articulado pela cultura de elite em absorver e
transformar partes da cultura popular em proveito próprio, dando-lhe uma nova
roupagem. Em parte, isso explica o envolvimento da história acadêmica em converter
os contos de tradição oral em leitura para jovens e crianças, embora, inicialmente, os
intelectuais franceses tenham ficado desconfortáveis com a publicação de Charles
Perrault. A composição e publicação de Perrault dos contos orais franceses, em 1695,
envolveu questões relacionadas à passagem do oral para a escrita, e uma delas diz
respeito à autoria de onze narrativas, visto que, ao seu terceiro filho, Pierre Perrault-
Darmancour, são atribuídos os contos em prosa, apesar de haver argumentos em favor
da autoria dos dois, do pai e do filho (SIMONSEN, 1992, p.11).
De qualquer forma, a expressão “contos de Perrault” compreende um estilo e
motivos escolhidos intencional e estrategicamente para resultar numa estética própria,
ou, como afirma Simonsen: “Esta ‘simplicidade ingênua’ é de fato a marca de uma
estética muito pensada, que se afasta conscientemente daquela de seus
contemporâneos”6, adeptos de uma literatura romanesca, voltada aos grandes
espetáculos festivos de Versailles (SIMONSEN, 1992, p, 19). Nesse sentido, é
interessante notar a observação do abade Villiers: “É preciso ser hábil para imitar bem a
simplicidade da sua ignorância (das criadas), isso não é para todos”7 (apud,
SIMONSEN, 1992, p. 19).
6 Tradução nossa de: “Cette ‘simplicité naïve’ est en fait la marque d’une esthétique très réfléchie, qui se demarque consciemment de celle de ses contemporains”. 7 Tradução nossa de: “Il faut être habile pour bien imiter la simplicité de leur igonorance (des nourrices), cela n’est pas donné à tout le monde”.
48
Além do tom marcadamente preconceituoso para com os informantes orais,
dessa citação depreende-se, também, a naturalidade com que a individualidade dos
contadores era tratada como algo sem relevância, uma vez que o interesse poético
nessas narrativas tinha uma expectativa a posteriori. A redação e publicação eram
feitas mediante o tratamento dado ao material recolhido por alguém dotado de poder de
“interferência criativa no processo de escrita da narrativa oral” (ALMEIDA & QUEIROZ,
2004, p.134). Enfim, é um procedimento que os pesquisadores pioneiros no Brasil
utilizaram mesmo afirmando fidelidade ao narrado, conforme adianta Silvio Romero:
Todos os contos que se encontram neste livro, exceto os quatro ou cinco tomados a Couto de Magalhães para estudo comparativo, foram por nós diretamente recolhidos da tradição oral. Não incluímos neles nenhum artifício; nenhuma ornamentação, nenhuma palavra há aí que não fosse fielmente apanhada dos lábios do povo (1954, p.441).
Levando-se em consideração as dificuldades tecnológicas iniciais para o registro
das narrativas orais, essas eram geralmente publicadas de acordo com a norma padrão
da língua, deixando-se, no entanto, algumas marcas lexicais próprias da oralidade,
como uma forma de imprimir ao estilo o tom pretensamente tosco da linguagem
popular. A esse propósito, observe-se o fragmento do conto “Os três coroados”, colhido
por Silvio Romero, em Sergipe, e editado por Câmara Cascudo em Literatura Oral no
Brasil:
Foi um dia, havia três moças já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada do seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu”. A do meio disse: “Se eu me casasse com ele, lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve”. A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados” (CASCUDO, 1984, p.263).
Entretanto, outros estudiosos, como Lindolfo Gomes, afirmam a dificuldade de
continuar fiel à voz original, fonte da narrativa coletada:
Na reprodução escrita dos contos populares, que pacientemente coligimos, tentamos conservar o pinturesco da linguagem com que os ouvimos dos lábios do povo, não só quanto à maneira característica das expressões como ao idiomatismo dos chavões usados pela gente simples.
49
É certo que, por vezes, fugindo à monotonia das construções viciosas, corrigimos aqui e ali o linguajar dos narradores, especialmente nas ocorrências pronominais do acusativo da 3º pessoa que o elemento popular brasílico representa quase sempre pelos pronomes ele e ela e raramente por o e a. Mas outras incorreções pinturescamente características do falar plebeu foram conservadas fielmente, bem como o modo e o tom das narrativas. Se não procedêssemos assim não faríamos trabalho propriamente folclórico, ficaria completamente burlado o nosso intuito (GOMES, 1949, p.11, grifos nossos).
Como se observa, havendo ou não a intenção de fidelidade à voz originária, o
fato é que, na transposição do suporte oral para o escrito, não há uma relação de
equivalência, de modo que o registro de uma expressão oral denota o objetivo do
pesquisador ou coletor. Assim, o interesse de um folclorista pela origem e recorrência
destes contos “implica buscar no passado uma justificativa para suas transformações
no presente”, vendo sua ligação com a tradição ser legitimada pela escrita, até mesmo
com a intenção de preservação ou de resgate (FERNANDES, 2007, p. 42). Tal
comportamento é bem diferente do interesse da literatura que, ao objetivar a tensão
poética do texto transcrito, compreende as transformações desse texto não como
desvios da fonte, mas como re-significações criativas de um texto em movimento, não
obstante esteja ligado à tradição.
A opção pelo modo de transcrição é decorrente dos objetivos propostos pelos
pesquisadores, o que, às vezes, implica até mesmo a escolha dos contadores e contos
a serem transcritos. É o que ocorre, por exemplo, quando um lingüista tem por critério
principal de escolha o concernente a uma boa dicção, e, por isso, em função da classe
social de muito baixa renda e da conseqüente perda dentária, descarta o contar de um
velho, em detrimento de um narrador mais jovem e com capacidade de imprimir melhor
qualidade auditiva ao material colhido (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p.141). A
Literatura, entretanto, tende a priorizar uma performance mais amadurecida em virtude
do conhecimento de mundo e do repertório mais aproximado da tradição que o velho
traz na memória, inclusive o gosto natural por contar histórias de sua meninice.
Quanto à impossibilidade da transcrição fiel à manifestação oral, mesmo porque
se perdem nuances como entonação, intensidade, musicalidade e outras inflexões da
oralidade, observa-se que a postura dos pesquisadores ligados aos estudos da
comunicação, menos que autenticidade e fidelidade ao texto oral, privilegia os aspectos
de interação e legibilidade (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p.142).
50
II– A obra vocal
“Somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas”.
(Paul Zumthor)
Criada por Paul Sébillot, em 1881, para designar as manifestações orais dos
mais variados tipos de expressões oriundas de contextos iletrados, a designação
“literatura oral”, para Paul Zumthor, é inconsistente e não responde aos caracteres e à
estruturação que marcam a poesia oral, entendida por ele num sentido mais geral e
abrangente. Se, para os etnólogos, literatura oral indica uma alocução de sentido ético
ou sabedoria de caráter tradicional, para os historiadores da literatura as narrativas
populares, as advinhas, as facécias, os jogos ou outras elaborações verbais de sentido
ficcional ou metafórico, são acondicionados ao termo, pela diferenciação discursiva em
relação à fala corrente do dia-a-dia. Um vasto repertório acomodado sob uma
designação restritiva, que, segundo o medievalista, não contempla outras numerosas
manifestações poéticas orais, como por exemplo, aquela que se canta (ZUMTHOR,
1997a, p.48).
Para ele, a inclusão de manifestações tão diversas “na literatura oral, os
‘gêneros’, quaisquer que sejam, apresentam uma convencionalidade particular,
necessária ao funcionamento da comunicação” (1997a, p.50), de maneira que suas
características dizem respeito mais às condições contextuais de origem do que ao texto
oral ou escrito propriamente. Disso decorre que, os tipos discursivos relativos à poesia,
em qualquer cultura são instintivamente reconhecidos; ganham sentido a partir de um
saber compartilhado; preenchem uma certa expectativa de ação entre as partes
envolvidas. Essa ligação da poesia oral aos aspectos circunstanciais de sua produção
faz pensar que, não por acaso, “quando a poesia oral vem de uma cultura alheia, é
sentida pelo ouvinte como exótica, minoritária, marginal” (1997a, p.67).
Embora não invalide a profusão do material recolhido e disponível para estudos
posteriores, isso talvez explique o olhar por vezes estrangeiro de literatos, folcloristas e
etnólogos envolvidos no registro de manifestações poéticas orais, que por muito tempo
51
tiveram uma orientação mais de preservação e resgate do que de análise do fato
poético oral em si mesmo.
No prefácio de Introdução à Poesia Oral (1997a), o medievalista Paul Zumthor
afirma que o exercício da voz, articulado à capacidade humana de simbolizar, é o
centro gerador da poesia (1997, p.10). Semelhante a Zumthor, porém em 1930, André
Jolles aponta a linguagem como o espaço germinal de formas poéticas, com a
diferença fundamental de que, para esse, quanto ao conto oral, não obstante a fluidez
da linguagem, a forma é fixa e sem intervenção de um poeta8 (1976, p.20). Um
raciocínio que permite entender que a linguagem é elaboração e construção, mas que
carrega um substrato de regulamentação de algo que é pura mobilidade: a forma não é
um esquema a obedecer, como afirma Jolles, porque ela é recriada a cada reconto pelo
ritmo e “paixão particular” (ZUMTHOR, 1997a, p. 81).
A desconsideração da ação do poeta, o que Jolles chamou de “formas simples”,
não leva em conta, como faz Zumthor, que o ritmo e a paixão que movem um reconto
sejam fruto de uma atividade interacional que une indivíduos, social e historicamente.
Não sendo apenas memória e tradição, a poesia oral, para se manifestar, não
prescinde de um indivíduo em cuja boca se concretize a voz no ato comunicativo.
Com a intenção de estabelecer uma poética que vise ao estudo da poesia oral,
Zumthor destaca a potencialidade da voz que,
dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura, criadores de inumeráveis formas de arte. (...) Ela possui, além das qualidades simbólicas, que todo mundo reconhece, qualidades materiais não menos significantes, e que se definem em termos de tom, timbre, alcance, altura, registro (2005, p. 61).
Mais do que a teoria formular de Milman Parry, que não considera as marcas
situacionais do texto oral, Zumthor lança mão do conceito criado por Menendez Pidal,
‘estilo tradicional’, que, em oposição à escrita, indica as marcas da voz na obra vocal:
8 Jolles considera uma relação dicotômica entre a poesia da natureza, na qual ele inclui a manifestação das Formas Simples, e a elaboração individual de um poeta, esta entendida como forma artística: “nas Formas artísticas trata-se das palavras próprias do poeta, que são a execução única e definitiva da forma, ao passo que, na Forma Simples, trata-se das palavras próprias da forma” (JOLLES, 1976, p.195).
52
Sua intensidade, sua tendência a reduzir a expressão ao essencial (o que significa nem ao mais breve nem ao mais simples); sua ausência de artifícios refreando as reações afetivas; a predominância da palavra em ato sobre a descrição; os jogos de eco e de repetição; o imediatismo das narrações, cujas formas complexas se constituem por acumulação; a impessoalidade, a intemporalidade (apud ZUMTHOR, 1997a, p.132).
Entendendo que a voz, pela sua natureza essencialmente fugidia, escapa à
esquematização, Zumthor propõe que o ‘oralista’ tenha sobre a obra oral um olhar
perceptivo quanto à “sua existência discursiva”, no sentido de captar, em meio à
transitoriedade sonora da voz, “sua existência textual” e “sua realidade sintática”. Sem
primazia da gramática em relação à retórica, ou vice versa, a obra vocal é “apenas uma
fluidez orientada”, que se constitui por um “tipo de formalização que torna o poeta um
mestre de cerimônias” (1997, p.132-133). Isto se explica porque, para Zumthor,
a obra é aquilo que é poeticamente comunicado, aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais e situacionais: o termo abarca a totalidade dos fatores da performance, fatores que produzem juntos um sentido global, que também não é redutível à adição de sentidos particulares. Neste sentido, a obra é por natureza teatral; o teatro é a sua forma acabada, mas toda performance o sustenta de alguma forma. Do texto, a voz em performance extrai a obra (2005, p.142).
Não obstante no excerto acima ele tenha uma perspectiva mais
explicitamente aplicada à performance enquanto obra presencial, in loco, é possível,
pela perspectiva do registro escrito, incluir os narradores de Contos Populares
Brasileiros: Ceará, sob o ponto de vista da performance pelo viés da relação texto/
leitor, sobre o qual se discorrerá mais adiante. Contudo, vale ainda observar que ele
contempla a modalidade da obra vocal transcrita, quando diz:
Toda palavra poética (passe ou não pela escrita) emerge de um lugar interior e incerto, bem ou mal, se nomeia por metáforas: fonte, fundo, eu, vida... Ela nada designa, propriamente falando. Um acontecimento se produz, de modo quase aleatório, (o próprio rito não é mais que uma apropriação do acaso), num espírito humano, sobre os lábios, sob a mão, e eis que se dilui uma ordem, revela-se outra, abre-se um sistema, e interrompe-se a entropia universal. Lugar e tempo onde, num excesso de existência, um indivíduo encontra a história e, de maneira dissimulada, parcial, progressiva, modifica as regras de sua própria língua (ZUMTHOR, 1997a, p.167).
53
A perspectiva zumthoriana sobre a obra vocal, seja escrita ou não, consiste em
compreendê-la como parte fundamental da obra poética, que não prescinde, todavia, da
conciliação das partes integrantes do e no ato performático. No caso da obra vocal,
essas partes são identificadas junto aos envolvidos na performance presencial: locutor
e ouvinte(s). Quanto à obra vocal na forma escrita, o ato performático é uma questão a
ser desvendada junto à recepção do texto.
2.1 – Da transmissão à percepção: a performance
Elemento constitutivo da obra vocal, sob o ponto de vista de Paul Zumthor, a
“performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a
performance manifesta um saber-ser no tempo e espaço” (1997a, p.157). Disso resulta
que o ato performático somente é compreensível a partir dos aspectos culturais que o
determinam, mais do que as estruturas lingüísticas que o formam (MATOS, 2005, p.
53), embora essas possam ser verificadas, como se verá mais adiante.
Anglicismo (to perform), em 1966, a palavra performance ganha o sentido de
“realização de um ato de fala por uma pessoa” (LE PETIT ROBERT, 2002, p.1903),
quando teóricos franceses passam a desenvolver pesquisas no campo da análise do
discurso. Antes, porém, em 1962, a publicação das conferências (1955) proferidas em
Harvard, pelo inglês Austin, seria o marco inicial do desenvolvimento da teoria dos
“Speech acts” (atos de fala), cuja base teórica está centrada nos “enunciados
performativos, que têm a propriedade de poder e, em certas condições, realizar o ato
que eles denotam, isto é, fazer qualquer coisa pelo simples fato do dizer” ou enunciar
algo (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 72). Dessa forma, não há uma tão
nítida oposição entre fala e ação, porque aquela é um meio de se chegar a essa, no
sentido de que o enunciado de uma promessa envolve o ato de prometer.
Zumthor utiliza a concepção inglesa de performance, mas a ultrapassa por
considerá-la para além de sua dimensão discursiva. Dessa forma, traz para os estudos
literários a voz, o empenho do corpo e tudo que rodeia o ato performativo, como a
atualização e a presentificação relacionadas diretamente a “uma ordem de valores
54
encarnada em um corpo vivo” (2000, p. 36). A performance está relacionada à idéia
heideggeriana de Dasein9, na qual, a consciência de estar no mundo permite enfrentar
o bom e o ruim da existência, com criatividade e compromisso com a vida. Mais do que
a noção de competência subentendida como savoir-faire e savoir-dire, Zumthor
privilegia o savoir-être, no sentido de que a performance é um saber-ser no tempo e no
espaço, daí sua íntima ligação com os aspectos culturais de sua origem.
A esse respeito, observe-se como Zumthor, em sua obra Performance,
recepção, leitura (2000), expõe o que implica sua concepção de performance:
Termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. Nesse sentido, não é falso dizer que a performance existe fora da duração. Ela atualiza virtualidades mais ou menos numerosas, sentidas com maior ou menor clareza. Elas as faz ‘passar ao ato’, fora de toda consideração pelo tempo. Por isso mesmo, a performance é a única que realiza aquilo que os autores alemães, a propósito da recepção, chamam de concretização (2000, p.59).
Em A letra e a voz (2001), Zumthor oferece outra definição de performance que
vale a pena observar, pela pormenorização do conceito:
Tecnicamente, a performance aparece como uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário(s), circunstâncias acham-se fisicamente confrontados, indiscutíveis. Na performance, recortam-se os dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e aquele sobre o qual se unem situação e tradição. Nesse nível, desempenha-se plenamente a função da linguagem que Malinowski denominou ‘fática’: jogo de aproximação e de apelo, de provocação do Outro, de pergunta, em si indiferente à produção de um sentido. Por isso, qualquer que seja o processo que a preceda, acompanhe ou siga, é em sua qualidade de ação vocal que a performance poética reclama logo a atenção do crítico. Seus outros componentes, por indissociáveis que sejam, tiram dela seu valor. A transmissão de boca a ouvido opera o texto, mas é o todo da performance que constitui o locus emocional em que o texto vocalizado se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva (2001, p. 222).
9 Desenvolvendo o que chamava de “fenomenologia existencial”, o filósofo alemão, Heidegger, utiliza o termo Dasein para se referir à existência humana. Dasein ou “ser presente” diz respeito à consciência de se ocupar um espaço no mundo, preocupar-se com ele, e com o modo de nele inserir-se. A angústia provocada por essa percepção pode levar ao entendimento da capacidade de influência na esfera coletiva, ou, por outro lado, pode ocasionar a queda, que leva à tendência de fuga das preocupações com a vida.
55
Emissor, receptor e circunstância da enunciação, a performance é, assim, a
combinação desses elementos que, simplificados, resultam em tempo, lugar e
indivíduos envolvidos no evento comunicativo e na recepção. Ou mais precisamente,
segundo Zumthor, ela é um momento da recepção: aquele em que o discurso poético,
em oposição ao pragmatismo das mensagens cotidianas, é percebido como tal, a ponto
de determinar a suspensão do tempo durável e real, embora se cruze com aquele da
comunidade onde é produzido, como ressonância residual.
Fundada em aspectos sócio – culturais e psíquicos relacionados a um corpo real,
a performance é caracterizada por: 1) reconhecimento de algo que passa da
virtualidade à atualização; 2) emergência de um fenômeno cultural e situacional, que
sai de um contexto, mas volta a ele de maneira renovada; 3) conduta que o sujeito
assume diante de si e dos outros, levando à reiterabilidade ou repetição - que não é o
mesmo que redundância – de algo já visto; 4) modificação do conhecimento, que fica
marcado após a comunicação poética (ZUMTHOR, 2000, p. 36).
Se para Jolles a forma do conto oral é determinada por uma disposição mental, o
conceito de performance de Zumthor desloca a preocupação com a forma enquanto
algo acabado - para uma concepção de inacabamento que caracteriza todo
pronunciamento oral. “A forma se percebe em performance, mas a cada performance
ela se transmuda” (ZUMTHOR, 2000, p. 39).
2.1.1. – O saber–ser e a performance oral
O saber-ser tem referência com a relação estabelecida entre o contador de
histórias de tradição oral e o público ouvinte, além do texto que é, ao mesmo tempo,
ponto de partida e resultado da performance. Leva-se em consideração que, mesmo
mantendo alguma associação com a forma, o texto oral se tece no confronto entre
contador e ouvinte, de maneira que “a forma é alguma coisa que está se fazendo pela
mediação de um corpo humano; esse corpo, através da voz, do gesto, do cenário onde
ele se coloca, está em vias de realizar as sugestões contidas no texto” (ZUMTHOR,
2005, p.56). Extremamente ligada ao corpo e à voz que dele emana, o saber-ser na
56
performance remete ao indivíduo intérprete e produtor do texto, visto e percebido como
presença pelo olho e pelo ouvido de alguém, cuja função é indispensável numa relação
que é toda voltada para o outro. O outro, nesse caso, é o ouvinte, conforme se pode
observar nas palavras do próprio Zumthor:
O ouvinte faz parte da performance, da mesma forma que o autor e as circunstâncias. O ouvinte é ‘interpelado’, como se diz, ele intervém, ele é um dos componentes fundamentais dessa poesia vocal, componentes sem os quais ela não existiria. Em raros casos, o ouvinte aparentemente faz falta. Mas essa aparência é enganosa. Pense na tirolesa, esse canto pastor de que existem variantes em todos os países de montanhas altas. Um pastor canta, sozinho. Não tem ouvinte ao seu lado. No entanto, na verdade, ele tem um ouvinte: a própria montanha, cuja beleza o canto exalta (2005, p.92).
Receptor e futuro reprodutor do texto em performance, cada ouvinte, mediante
seus próprios arranjos imaginativos, produz um novo texto no qual imprime sua marca
individual. Isso se explica pelo fato de que a performance nunca é experienciada da
mesma maneira por todos que a recebem. “O ouvinte torna-se por seu turno intérprete,
e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe, radical”.
Esse movimento determina o enriquecimento e as transformações da tradição, ou a
“movência criadora” (ZUMTHOR, 1997a, p. 242).
Relacionando essa ordem de idéias ao corpus em estudo, “adaptação exemplar”
é a denominação dada pelo coordenador e também coletor da maioria dos contos
editados em Contos Populares Brasileiros – Ceará, Francisco Assis de Souza Lima,
à “singularidade com que o conto é reelaborado em sua circunstância pelo contador”.
Segundo Lima, por tratar-se de um ofício artesanal, no momento de engendrar a
performance:
Alguns informantes evocam a memória de grandes contadores de história, mas predomina a sua localização no elemento doméstico da comunidade, onde indivíduos se autorizam e são eleitos agentes privilegiados dessa transmissão. Embora isto não sirva para descaracterizar uma ‘figura antropológica’ do contador de histórias, permite enquadrá-la no círculo geral de um ambiente humano onde todos compartilham, na medida das possibilidades, do interesse e do talento de cada um, de uma reserva de saber onde narrar é marca reconhecida (CPBC, p.28).
Este excerto vai bem ao encontro dos traços determinados por Zumthor, os quais
marcam o saber-ser na performance, de maneira que o reconhecimento do material
57
tradicional emerge diante de indivíduos que participam e interagem no mesmo espaço
do evento performático.
“Circulante como o anel que passa de mão em mão, o conto possui portadores. Não há quem o administre, senão o próprio público que o tenha cultivado. É matéria de tempo livre, e é cadência no espaço lúdico da ocupação. Próximo do sonho, é sentinela da vigília. Fantasia e imagem, é também veículo do real” (CPBC, p. 30).
Embora não seja reproduzido o mesmo discurso ouvido, a reiterabilidade diz
respeito à relação que uma performance discursiva tem com outra da qual guarda
semelhança. Sendo essencialmente presença e não somente um meio de
comunicação, a performance afeta o conhecimento na forma de uma presença poética
que ultrapassa o sentido lingüístico da mensagem, e se oferece à comunidade de
discurso no aqui e agora do ato. Entre as comunidades de discurso observadas por
Lima, o saber-ser no ato performático revela uma identificação entre as instâncias orais,
perceptível no modo como se estabelece a relação social entre contador e ouvinte:
No Ceará e no Nordeste, contar histórias não é uma atividade remunerada. O contador de histórias não representa uma categoria profissional à parte, embora seu ofício comporte exigências de um fazer artesanal: empenho, técnica, estilo, singularidade e talento na repetição. Mas o contador não lança o chapéu às moedas, como o faz o embolador, o tirador de versos de feira, o cantador de viola e, de resto, os brincantes nordestinos. A ‘história de Trancoso’ é lazer e é arte, mas antes de tudo é um fazer dentro da própria vida. Dá-se e circula como objeto sem preço, valor de estimação. (...) O contador comparece aos terreiros e salas, acontece espontaneamente na oportunidade hospitaleira dos arranchos e pernoites. É pretexto nas reuniões familiares, em noites de sexta-feira da paixão, enquanto se espera a hora do galo. Estaria presente ao ritmo das debulhas. É ponto e contraponto nas conversas em noites, com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça, animar o trabalho nas leiras e nos eitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. Insinua-se nos lugares do acalanto, e é palavra tecida e rendada no colo de avós, rendidas ao pedido, ao convite e à cumplicidade dos netos (CPBC, p. 30).
Construído na voz de quem conta, mas com a participação e cumplicidade do
ouvinte, o texto poético oral varia por meio do tom, do gesto, da modulação e da
maneira do contador enunciar seu relato, buscando preencher as expectativas do
público durante a performance. Isso não implica, no entanto, uma relação igualitária
58
entre ambos. Todos são conscientes de seu papel no evento comunicativo poético, ou
conforme as palavras de Lima:
A personalidade do narrador se afirma e se expande na hora de contar. Mas não se pode separar o conto do narrador, do seu universo e do seu público. Mesmo a eleição do repertório e o jeito como é transmitido se define junto ao público. Os recursos mímicos, as inflexões, o traço de humor, a ênfase normativa, as sugestões de mistério ou a suspensão narrativa são efeitos da técnica e da versatilidade do contador. No entanto, sua oportunidade, pontuação e eficácia orientam-se através e em função de uma escuta participante. Não falará o conto se não houver um meio que o solicite. E se é para este meio que se dirige, só falará bem enquanto integrar sua experiência cotidiana, religando-a às fronteiras da grande memória: a memória da tradição (CPBC, p.30).
Detentor de um saber que demanda a condução de sua presença em cena, é
como um mestre de cerimônias que se comporta o contador, em meio ao seu público
ouvinte:
O processo narrativo não dilui a importância individual do contador. Relativiza-o, ao nível em que este se torna capaz de organizar um saber, transformá-lo até, mas nunca transtorná-lo: é aqui que se opera uma relação de vigilância coletiva. Mais do que por mera vigilância, o público assiste o narrador e o respeita pela sua qualidade de doador e agente de uma transmissão (CPBC, p. 30).
Citando a metáfora de Catherine Zacarte:
“O contador é um capitão que tem o timão e pode guiar o barco, mas, se o público não soprar nas velas, ele vai ratear. Um contador é alguém que pode transportar todo o mundo com suas forças, mas sem a participação do público ele não vai muito longe”. (apud MATOS, 2005, p. 79).
Essa estreita relação, no entanto, é muito diferente daquela que se estabelece entre o
texto escrito e o leitor.
2.1.2. – A leitura e o saber-ser do leitor em performance
Não obstante a noção de performance seja comumente associada a uma
manifestação presencial, na qual se apreendem a voz e o gesto inseridos em contexto,
Zumthor considera que a relação texto/ leitor favorece um índice perceptual
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performativo, condicionado a uma experiência sensorial e individual. O
comprometimento do corpo do leitor na leitura poética invalida o “preconceito habitual
que aproxima performance unicamente de oralidade”, posto que, dessa perspectiva, “a
leitura é a apreensão de uma performance ausente-presente; uma tomada da
linguagem falando-se e não apenas se liberando sob a forma de traços negros no
papel” (ZUMTHOR, 2000, p.66). Para ele, “o que na performance oral pura é realidade
provada, é, na leitura, da ordem do desejo”, de maneira que o que muda é a implicação
mais ou menos forte do corpo que se ressente e ressoa, em si mesmo, tudo que a
leitura poética sugere (ZUMTHOR, 2000, p. 40).
Para ele, essa reação corporal funciona como um sinalizador da natureza do
texto: se poético ou não. Segundo seu ponto de vista,
se admitirmos que há, grosso modo, duas espécies de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar, de ‘poética’, e uma outra, a diferença entre elas consiste em que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza (ZUMTHOR, 2000, p.41).
Mais do que o preenchimento de vazios e lacunas do discurso poético, a ser
decodificado por um presumido leitor proficiente, e o conceito de leitor implícito de
Wolfgang Iser10, Zumthor leva em consideração a presença verdadeira de um leitor, em
tempo real, implicado na interpretação do texto e nas sensações que este lhe transmite
ao próprio corpo.
A propósito do que afirma Barthes, de que o gozo poético é físico, observe-se
como Zumthor utiliza a palavra corpo:
10 A estética fenomenológica de Roman Ingarden - que considera a função da consciência no ato de leitura - é o ponto de partida para Iser desenvolver os estudos sobre a estética da recepção. Em O ato da leitura (1999) ele defende que o objeto literário é um produto construído na interação texto/ leitor. No texto, implícito, o leitor estaria previsto, inscrito sob a forma de uma estrutura textual, como uma estratégia autoral a ser realizada no ato de leitura. No planejamento da obra, o autor determina que "os lugares vazios se transformam em estímulos para formação de representações por parte do leitor" (ISER, 1999, p.144).
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É ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à margem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro (2000, p. 28).
No sentido mais palpável e abrangente possível, Zumthor esboça a estrutura
significante de ser e estar no mundo, aproximando-se conceitualmente da
fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, para quem a noção de estar no mundo
proporciona a consciência de que se faz parte dele. Se a existência humana pressupõe
consciência e corpo, subjetiva e objetivamente, ao mesmo tempo é isso que determina
o ser de uma maneira global: “Somos o composto de alma e de corpo, portanto é
preciso que haja um pensamento dele” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 33). Assim pensa
também Chauí, quando diz:
Não somos uma consciência reflexiva pura, mas uma consciência encarnada num corpo. Nosso corpo não é apenas uma coisa natural, tal como a física, a biologia e a psicologia o estudam, mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência. Não somos pensamento puro, pois somos corpo. Não somos uma coisa natural, pois somos consciência (2007, p. 9).
No que se refere à percepção do leitor no ato de leitura, o fator determinante é a
totalidade de um corpo e de uma consciência que toma a visão e os outros sentidos
não apenas enquanto funções do corpo, mas enquanto pensamento/ desejo de ver e
tocar as coisas sugeridas pela leitura. Longe de ser uma tábula rasa, o leitor leva
consigo todo seu conhecimento prévio, a partir do qual estabelece com o texto empatia,
projeção e identificação, no sentido de adaptá-lo às suas próprias preocupações e
experiências:
Quando lemos, nossa expectativa é (em) função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos, mas em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos, tudo que já lemos até aqui neste texto e em outros. A leitura procede, pois, em duas direções ao mesmo tempo, para frente e para trás, sendo que um critério de coerência existe
61
no princípio da pesquisa do sentido e das revisões contínuas pelas quais a leitura garante uma significação totalizante à nossa leitura (COMPAGNON, 2006, p. 148).
Compreendida globalmente como um ato físico, sensorial e intelectivo, a leitura
poética atrelada à noção de percepção está condicionada a um ser real, porque,
segundo Zumthor, “a percepção é essencialmente presença. Perceber lendo poesia é
suscitar uma presença em mim, leitor”. (2000, p. 94)
Entendendo a leitura poética como busca de conhecimento, ou mais
precisamente, de autoconhecimento, a idéia de que a apreensão do poético se
processa pela via sensitiva de um indivíduo (o papel do leitor, nesse caso) refere-se à
prática de uma leitura que o coloca frente às coisas do mundo e dele mesmo. A esse
respeito, Zumthor afirma:
Nossos "sentidos", na significação mais corporal da palavra, a visão, a audição, não são somente as ferramentas de registro, são órgãos de conhecimento. Ora, todo conhecimento está a serviço do vivo, a quem ele permite perseverar no seu ser. Por isso a cadeia epistemológica continua a fazer do vivente um sujeito; ela coloca o sujeito no mundo. Minha leitura poética me "coloca no mundo" no sentido mais literal da expressão. Descubro que existe um objeto fora de mim; e não faço disso uma descoberta de ordem metafísica, simplesmente choco-me com uma coisa. Graças ao conhecimento "antepredicativo" se produz no curso da existência de um ser humano uma acumulação memorial, de origem corporal (2000, p. 95).
Um conhecimento que se produz por meio da ação de ler e olhar. Se o ler se
encarrega do ato interpretativo e da decodificação dos sinais gráficos, o olhar, por sua
vez, escapa à limitação do código porque ele se vincula ao pensamento e à percepção
de quem vê.
De caráter individual, a leitura é o resultado do confronto entre leitor e texto, de
maneira que a compreensão é essencialmente o diálogo entre eles. Corpo a corpo. Um
face a face que concretiza a percepção de uma voz que se entrega à performatização,
adquirindo, do leitor, suas marcas pessoais. Zumthor afirma que:
a leitura é diálogo. A 'compreensão' que ela opera é fundamentalmente dialógica: meu corpo reage à materialidade do objeto, minha voz se mistura, virtualmente, à sua. Daí o 'prazer do texto'; desse texto ao qual eu confiro, por um instante, o dom de todos os poderes que chamo eu. O dom, o prazer transcendem
62
necessariamente a ordem informativa do discurso, que eles eliminam depois (2000, p. 74).
Dessa forma, as imagens criadas pelo leitor a partir do encontro com o texto são
marcadas pela carga semântica referente ao seu próprio conhecimento prévio, de
maneira a perfazer o ato de caligrafar, ou seja, “recriar um objeto de forma que o olho
não somente leia, mas olhe; é encontrar, na visão de leitura, o olhar e as sensações
múltiplas que se ligam a seu exercício” (ZUMTHOR, 2000, p.86). Um exercício que vai
além do texto, pois ele não somente restaura uma presença que se perdeu com o texto
escrito, como a instaura, figurativamente, em toda sua concretude e carnalidade, por
meio da linguagem. Ou como afirma Merleau-Ponty: “Muito mais do que um meio, a
linguagem é algo como um ser, e é por isso que consegue tão bem tornar alguém
presente para nós” (2004, p. 71).
2.2. – A inscrição da voz na letra
Desde muito, aplicado a um texto literário, utilizam-se locuções que remetem ao
substrato vocal presente na expressão escrita: “Essa página ou esse poema me fala
algo” reforça mesmo essa orientação natural da voz no escrito. Imaginável, por isso
capaz de criar potencialidades virtuais de escuta, a vocalidade em escritura poética é
da ordem do pressentir algo além do texto.
Em situação de leitura, é “no nível do leitor” que se potencializa a percepção de
“uma relação de alteridade que funda a palavra do sujeito” e evidencia o jogo da
experiência literária, de maneira que, “quando a densidade poética se torna grande,
uma articulação de sons começa a acompanhar espontaneamente a decodificação dos
grafismos” (ZUMTHOR, 2000, p. 99). A leitura do texto poético seria, assim, também a
escuta de uma voz, segundo a qual “o leitor, por essa escuta, refaz em corpo e em
espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é
dado, aqui, sobre a página” (ZUMTHOR, 2000, p. 102).
63
A percepção da vocalidade no texto poético, então, estaria carregada de uma
tensão que coloca o leitor entre a voz e a palavra impressa; um jogo que não mostra a
sobreposição de uma à outra, mas deixa claro que “a palavra não é apenas letra”
(MACHADO, 1995, p.219). Sob a perspectiva performática, algum “índice de oralidade”
antecede, subjaz e atua na escrita poética, de modo que as duas modalidades
lingüísticas, menos que ruptura, manifestam consonância para o ato comunicativo, no
aqui e agora da performance do leitor em leitura do texto poético.
“Índice de oralidade” é o que entende Zumthor sobre os traços deixados pela voz
humana nos textos escritos. Nesses, o emprego de verbos como dizer, falar, ouvir, ou
mesmo de alocuções alusivas a comunicações verbais, elevam o escrito “ao estatuto do
falante”, ao mesmo tempo em que denunciam “uma situação de discurso” (1993, p. 38).
Partindo de estudos psicanalíticos, médicos e acústicos, Zumthor define alguns
pressupostos sobre as características corporais da voz, que são perceptíveis em
situação de oralidade ou mesmo no texto escrito: a) ela é “inobjetivável”, uma vez que
só pode ser definida pela relação, distância ou articulação entre o sujeito e o objeto; b)
essa relação é instauradora do sentido de alteridade; c) sua dimensão simbólica é mais
perceptível quanto mais interiorizada; d) por habitar a linguagem de quem fala, a voz
transcende os limites do corpo; e) ela não é apenas reflexo, mas a “própria realidade”; f)
sua escuta presentifica outro corpo e lhe atribui carnalidade, e, pelo tempo que durar
essa escuta, o eu que ouve habita esse lugar que é do outro (2000, p.97).
Considerando a escritura poética como um acontecimento que relaciona
memória e voz, Zumthor afirma que “em vez de uma ruptura, a passagem do vocal ao
escrito manifesta uma convergência entre os modos de comunicação” (2001, p. 114),
com poder para criar uma relação de simbiose entre eles. Assim a escritura se faz um
meio de evocar uma voz que, por sua vez, ligada à tradição, é expressão vocalizada da
memória preservada pela escrita na própria letra, embora dissimulada na materialidade
táctil e visual do texto.
Na reprodução escrita dos contos em estudo, nos quais se identifica o contador
oral, a transposição do suporte midiático estabelece um distanciamento entre as
instâncias narrativa e autoral, não observado na performance presencial. De todo
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modo, o narrador passa a ser essa voz que, representada na brancura da página,
aspira à concretude na interação com o leitor.
Transpondo o campo da oralidade, essas narrativas transcritas mantêm as
especificidades da literatura oral representada no texto: a fluidez da linguagem e a
expressão da voz viva, como reflexão sonora e experiência corporal - conforme
entendem Merleau-Ponty e Paul Zumthor -, marcadas na página impressa, à espera de
um leitor. Um leitor, cujo “corpo reflexionante” perfaça na leitura a conexão com a
experiência emergencial da fala, o “enlace de som e motricidade; reversibilidade de
ambos e primeira reflexão, a voz conduz à fronteira misteriosa onde irão cruzar-se pela
primeira vez o mundo da expressão e a persuasão silenciosa do sensível” (CHAUÍ,
2007, p.28). A inscrição da performance vocal na letra tem o poder de sugestão para
repercutir a voz no corpo do leitor, provocando outra performance, agora, como
experiência de leitura.
2.3. – Escrituras poéticas e as vozes do texto
Procedendo a uma leitura crítica dos contos orais do corpus em estudo, tem-se a
indicação de que a transposição midiática das narrativas, ou seja, sua mobilização do
contexto oral para a forma escrita, é um procedimento que não se configura apenas
como uma mera transcrição. A supressão do evento de origem do texto antes
vocalizado, e seu transporte para o livro sugerem uma operação um pouco mais
complicada.
O deslocamento do que antes pertenceu ao contexto oral para o suporte da
escrita deixa à mostra não somente indícios das vozes dos contadores orais, como
também evidencia os traços operacionais de sua reprodução escrita. Um procedimento
que, no final, acaba distribuindo a responsabilidade do resultado ao contador/ narrador
e a todo o processo de editoração do material colhido em situação de oralidade:
performance, gravação, transcrição e edição.
À identificação desses procedimentos, segue-se o reconhecimento de uma
espécie de bivocalidade entre a escrita e a linguagem vocalizada dos contadores em
65
performance; uma combinação que resulta num texto que se oferece como transcrição,
mas que deixa transparecer algum propósito de colocar em evidência a própria fala dos
contadores orais que performatizaram as narrativas que constam no volume de Contos
populares brasileiros – Ceará. Ainda que registrados pela letra impressa, a linguagem
desses contos parece se expressar sobre uma linha que se equilibra entre voz e
escritura.
Refletindo sobre os saberes da literatura, Barthes sugere que a “escritura se
encontra em toda parte onde as palavras têm sabor”, e que é o “gosto das palavras que
faz o saber profundo, fecundo” (2002 p. 21). Tendo sob perspectiva as narrativas em
estudo, esse sabor está associado à representação pela letra da entonação da voz que
dá forma aos contos. Suas palavras e marcas dialetais preservadas na transcrição
parecem mesmo colocar o leitor diante de uma escritura que “encena a linguagem”
(2002, p.19), princípio barthesiano do fazer literário.
Assim também pensa Zumthor, que, referindo-se à poesia vocal, pergunta-se:
“Toda literatura não é fundamentalmente teatro?” (2000, p. 22). Para ele, na escritura
poética essa encenação se constrói por meio de uma presença, cujas modulações da
voz causam o efeito de caligrafar, de “recriar um objeto de forma que o olho não
somente leia, mas olhe; é encontrar, na visão de leitura, o olhar e as sensações
múltiplas que se ligam a seu exercício” (2000, p. 86), como a capacidade de figuração e
de uma escuta. “O leitor, por essa escuta, refaz em corpo e espírito o percurso traçado
pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a
página” (2000, p. 102). Disso resulta que a escritura poética é um discurso escrito com
intenção de não ser informativo, porque é compromissado em proporcionar a duração e
o prazer da percepção de algo que transcende a letra.
Na medida em que a poesia tende a colocar em destaque o significante, a manter sobre ele uma atenção contínua, a caligrafia lhe restitui, no seio das tradições escritas, aquilo com que restaurar uma presença perdida (ZUMTHOR, 2000, p. 86).
Relacionando essas reflexões às narrativas da obra em tela, percebe-se que a
noção de escritura caligráfica e, portanto, poética, nela se aplica, pelo seu poder de
resgatar uma presença que se perdeu quando da transposição do oral para o escrito. E
66
isso muito se deve aos sinais que associam voz e escritura. Próprios da fala,
repetições, frases truncadas e traços de variação dialetal estão em meio à organização
textual, além de sinais gráficos, que caracterizam a escrita, de maneira a deixar
representada, na página do livro, a forma pela qual os contos foram vocalizados pelos
contadores. Segundo Zumthor:
a fixação pela e na escritura de uma tradição que foi oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza de uma vez. Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à autoridade de uma voz. (...) Inversamente, o fato de que uma tradição escrita passe ao registro oral não faz sua degradação nem a esteriliza (2001, p.154).
E, dessa forma, sendo a memória a arte da voz e da escritura, como afirma
Machado, observe-se que a palavra que emana de uma ou de outra vem impregnada
do duplo movimento que caracteriza toda tradição. No caso dos contos orais, a
reiteração de um arquétipo sempre vem acompanhada da variação discursiva que o
materializa - “rememoração e improviso” (1995, p.219) - que são duas atividades que
implicam movência.
A tradição, quando a voz é seu instrumento, é também, por natureza, o domínio da variante; daquilo que, em muitas obras, denominei movência dos textos. Menciono-a aqui mais uma vez, ouvindo-a como uma rede vocal imensamente extensa e coesa; como, à distância, literalmente o murmúrio desses séculos – quando não, por vezes, isoladamente, como a própria voz de um intérprete. (...) Todo texto registrado pela escritura, como o lemos, ocupou, pelo menos, um lugar preciso num conjunto de relações móveis e numa série de produções múltiplas, no corpo de um concerto de ecos recíprocos; uma intervocalidade, como a intertextualidade da qual se fala tanto há alguns anos e que considero aqui em seu aspecto de troca de palavras e de conivência sonora; polifonia percebida pelos destinatários de uma poesia que lhes é comunicada – quaisquer que sejam as modalidades e o estilo de performance – exclusivamente pela voz (ZUMTHOR, 2001, p.144).
Entendendo-se, assim, que o conceito de vocalidade, em Zumthor, se define não
só pela historicidade e uso da voz (2001, p. 21), como também pela capacidade de ser
recuperada na e pela escrita. No campo dimensionado pela tradição, toda palavra
poética resulta da intervocalidade, ou seja, do diálogo entre as vozes pelas quais
transitaram os textos vocalizados que viajam pela memória coletiva. Embora
atualizados por uma performance que os presentifica, nesses textos é possível divisar
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diferentes vozes que dialogam entre si, identificando, na vocalização do contador os
ecos do passado e do presente em confronto.
Se, por um lado, a palavra, enquanto performance, é única e individual, por
outro, sua relação com o passado não a deixa livre para ser original, pois ela é sempre
citação de uma outra performance na qual o poeta se espelhou, e à qual se reporta,
mesmo que agora seja com a sua marca e em outro contexto. Eis uma mobilidade que
aproxima a noção de intervocalidade do conceito de intertextualidade conforme Bakhtin,
já que, para Zumthor, “a movência instaura um duplo dialogismo: interior a cada texto e
exterior a ele, gerado por suas relações com os outros” (2001, p.146).
Essa ligação entre tradição e variação, implícita no conceito de movência de
Zumthor, é determinante para o entendimento da palavra poética como citação, e em
muito faz lembrar a teoria do discurso citado de Bakhtin, embora este tenha-se voltado
para o discurso que se insere na prosa romanesca e não para a palavra viva, como o
faz Zumthor.
Vale lembrar que a polifonia percebida pelo teórico russo, no interior do romance,
é um espaço dialogal que representa a imagem da linguagem humana; espaço esse
criado por um autor, para expressar esteticamente as vozes sociais envolvidas na prosa
romanesca. Conforme entende Machado, “a oralidade em Bakhtin é uma forma de
representação” (1995, p.157), que depende de recursos estilísticos autorais, como
marca individual na criação de uma obra que traz aspectos da fala e da escritura. É a
partir do "skaz", um conceito estudado por Eikhenbaum, ao trabalhar a entonação na
prosa poética, que Bakhtin elabora a definição de estilização da fala inserida na escrita,
estratégia discursiva construtora de bivocalidade. Segundo Machado, no entanto,
não se pode confundir o skaz com as enunciações que procuram representar a fala a partir de alguns estereótipos que forjam o coloquialismo na transcrição escrita do diálogo, criando uma representação gráfica estranha não só à escrita como também à dicção da oralidade, como ocorre nas transcrições da fala de iletrados, tão comum na chamada literatura de massa e de certo tipo de literatura regionalista. Nestas transcrições somente os ‘incultos’ falam, pois somente suas enunciações são rearticuladas graficamente. Parece mesmo que os letrados não operam nenhum reducionismo fonético em suas falas. O skaz, contudo, está além de tudo isso, reportando-se às representações estético-literárias da fala que, no romance, aparecem estilizadas, não se confundindo, portanto, com a mera transmissão. É a fala estilizada que define o skaz e o revela como possibilidade de marcar o tom pessoal da performance oral do autor-narrador ou dos personagens.
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Trata-se, deste modo, das vozes que entram em pessoa para o discurso do romance, criando a polifonia que tanto fascinou Bakhtin (1995, p.162).
Pelo exposto, não sendo uma estilização, mas a própria voz, que, do contexto
original, foi transportada para as páginas do livro, o corpus em estudo parece não estar,
assim, dentro do que se poderia entender como um objeto apto a ser incluído nas
manifestações literárias contempladas pelo o skaz. Vale, porém, observar que, se no
nível da transcrição pode não haver de fato uma intenção estético-literária de
representação, na dimensão da performance vocal é diferente.
É interessante notar que, na reprodução escrita da voz do contador, há
evidências de que muitas vezes seu discurso se deixa impregnar por vozes outras,
diferentes da sua. Isso é perceptível, por exemplo, na mudança de tom e ritmo entre as
vozes do narrador e das personagens, um recurso do qual se lança mão para dar mais
credibilidade e força ao narrado, e que resulta na configuração tensional de um discurso
dentro do outro, visto que expressa diferentes pontos de vista. Essa estratégia confere
ao contador o caráter de autor de seu próprio discurso enquanto performance, mesmo
porque, “para o intérprete em performance oral, a arte poética consiste em assumir esta
instantaneidade, em integrá-la na forma de sua palavra” (ZUMTHOR, 2005, p. 146).
Observa-se, no entanto, que essa intenção bivocal, que resulta em autoria
discursiva, somente é perceptível devido à editoração ter, intencionalmente, preservado
as marcas da voz e estratégias discursivas do contador na escrita. Um movimento que,
embora não tenha uma orientação escritural e estilística do ponto de vista de criação
individual, conduz a palavra articulada na performance oral à condição de escritura
poética pela possibilidade de instaurar, tanto a imagem do contexto enunciativo, quanto
o discurso narrativo enquanto forma poética. A isso Zumthor denomina: “discurso como
acontecimento” (2000, p. 83), ou seja, uma “inscrição caligráfica” (2000, p.86) que
apresenta a cena da enunciação do discurso como ação, como performance.
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2.4. O discurso poético e os contos orais
Adotar uma perspectiva discursiva para análise de contos de tradição oral não
significa desconsiderar sua estrutura nem as marcas deixadas pelo tempo no registro
dessa voz emergencial, mas, ao contrário, permite a apreensão dessas marcas,
simultaneamente à percepção das modificações estruturais que foram engendradas
pelo discurso narrativo. Dupla percepção, que capta a ligação entre o passado e o
presente na individualidade da voz .
Na lingüística do discurso, coexistem algumas “correntes pragmáticas, que
sublinham um certo número de idéias-força”. Entre elas, a idéia de que o discurso é
orientado de acordo com a intenção do enunciador, embora ele atente para a reação do
outro; é constituído por um ato de fala que designa uma ação, como contar, por
exemplo; sua inerente interatividade se reporta à existência real ou não do destinatário;
a definição de um contexto está interligada ao sentido do enunciado; ele é assumido
por uma instância que referenda historicamente o que diz; é regulamentado por leis
sociais que o legitimam; seu sentido está relacionado a outros tipos de discurso
(CHARAUDEAU & MANGUENEAU, 2004, p.170).
Isso implica dizer que a discursivização dos contos orais – mesmo se escritos -,
possibilita compreendê-los como um ato de fala, e, deste modo, pode-se lançar sobre
eles uma perspectiva de aproximação que alcança o estatuto do discurso, no que eles
apresentam sob o ponto de vista da intertextualidade, ou seja, na relação que esse
discurso mantém com outros discursos. Mesmo porque, conforme entende Bakhtin:
O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões do mundo, tendências. Um locutor não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear (2000, p.319).
Embora a arte poética da palavra, para Bakhtin, esteja associada a uma
perspectiva que distingue prosa romanesca e poesia, na dimensão discursiva “o
enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal” (2000, p.319), onde, por
70
conseguinte, o discurso poético se constitui pela possibilidade de auscultação de vozes
em diálogo intertextual.
Sob essa perspectiva, a associação do conceito de intervocalidade em Zumthor
e intertextualidade em Bakhtin - ainda que se considere o espaço da instância autoral
trabalhado por esse, e a tradição dimensione o espaço coletivo objetivado por aquele -,
há que se observar a noção de polifonia discursiva presente em ambos os conceitos.
No entanto, vale observar que, como medievalista, o objetivo maior da obra de
Zumthor é centrado na análise do texto, tendo em vista a busca da vocalidade que lhe
dá sentido. Para ele, a obra da voz não se define pela oposição entre a fala e a letra,
mas é um valor que caracteriza e consagra autoridade ao texto e o eleva à categoria de
poético, ao mesmo tempo em que revela sua “condição social e individual que assinala
a maneira como o homem se situa no mundo em relação ao outro” (FERREIRA, 1999,
p.71-67).
E dessa forma, a evidência de que o texto em estudo tem um passado oral lhe
confere a historicidade inerente ao ato comunicativo, circunscrito que está ao sujeito
enunciador do texto, o contador/ narrador em relação ao seu ouvite/ leitor.
Isso equivale à tentativa de apreensão da poeticidade do texto, tendo como
pressuposto um certo afastamento da obra enquanto transcrição, embora buscando na
materialidade do transcrito as marcas da oralidade na qual ele (o texto) foi produzido. E,
assim, procede-se a uma aproximação do escrito no que ele traz de perceptível quanto
às suas condições contextuais de pronunciamento.
A intervocalidade ou intertextualidade subjacente à escrita passam a ser, assim,
objeto de estudo, tendo em vista que ambas as modalidades da língua, a falada e a
escrita, mantêm uma com a outra uma estreita relação: é um texto oral que funciona em
zona de escritura, mas que não se furta a voltar novamente à sua origem, a oralidade
(ZUMTHOR, 2001, p.98).
Por se tratar de um discurso elaborado individual e coletivamente, a natureza
social da atividade poética leva a acreditar que “a literatura é uma parte inalienável da
cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto global da cultura numa dada
época” (ZUMTHOR, 2001, p.362). Isso não implica, no entanto, condicionar a voz que
conta os contos orais ao conjunto variado de textos que fazem parte de uma tradição
71
textual, no qual a instância narrativa é considerada apenas como um portador da
tradição; como uma voz não identificada que muitos estudiosos e folcloristas camuflam
sob o conceito de “autor legião” ou informante do folclore, habitualmente relacionada a
uma fonte mais antiga e quase sempre letrada.
Para Zumthor, "à tradição interessa o futuro muito mais do que o passado do
qual, historicamente, é oriunda” (apud SANTOS, 1999, p.103). Essa perspectiva sobre
a tradição possibilita que se possa reservar às vozes que transmitem e recriam os
contos orais, um olhar por meio do qual se possa atribuir valor individual aos
participantes desse processo enunciativo.
Todavia, considerando que esse trabalho tem por objetivo analisar textos escritos
e não orais, não se pode esquecer de que os contadores que antes interagiam em
presença de expectadores agora são mediatizados pela escrita. Embora seja possível
identificar singularidades performáticas entre eles, essa transferência opera um
distanciamento das vozes enunciativas não observável no contexto oral. Ainda que se
possa pensar no resgate da vocalização pela via da escritura, a voz não é mais aquela
do contador escutado e visto em ação.
Se, por um lado, no plano do enunciado escrito os aspectos rítmicos e melódicos
remetem à performance vocalizada que o originou, por outro se constitui na sua
representação pela letra. Dessa forma, embora partilhem a responsabilidade pela
escritura com o coordenador Lima, esses narradores mantêm um laço de quase
simbiose com aqueles a quem representam. Perceptíveis pela via da leitura, suas vozes
são definidas como entidades que procedem de uma situação específica de
comunicação.
Segundo Maingueneau, a cenografia (situação de enunciação) define não
somente as condições do enunciador e destinatário do texto, como ainda “a topografia e
a cronografia a partir dos quais se desenvolve a enunciação” (2001, p. 123). Desse
modo, ela indica também “sua relação com a sociedade e como nessa sociedade é
possível legitimar o exercício da palavra literária” (2001, p. 135), tendo em vista que a
literatura se constitui por um discurso identificável e negociável socialmente. Isso
implica dizer que algumas obras ou gêneros literários trabalham cenários de
enunciação autenticados anteriormente. Dentro do sistema da língua existe, assim, um
72
código de linguagem - no qual se insere o enunciador -, que permite estabelecer a
maneira como ela gera o sentido da obra.
Como o texto em estudo se destina à fruição na leitura, sua enunciação se dirige
a um leitor, a quem é preciso “mobilizar para fazê-lo aderir fisicamente a um certo
universo de sentido” (MAINGUENEAU, 2001, p. 137) e, dessa forma, o código de
linguagem próprio dos contos orais não pode negligenciar sua estreita relação com a
vocalidade em que foi gerado: “alguém, uma origem enunciativa, uma voz que atesta o
que é dito” (2001, p.139). No entanto, considerando um certo distanciamento do sentido
de análise de um discurso oral, pode-se mesmo observar que “o etos de uma obra não
implica que se volte aos pressupostos da retórica antiga, que se considere o escrito
como o vestígio, o pálido reflexo de uma oralidade primeira” (2001, p. 139).
A noção de etos com o qual trabalha a análise do discurso diz respeito à maneira
como o enunciador se posiciona e se relaciona com o que sabe, de maneira que, além
de se apoderar do estatuto de contador, ele se institui como voz e como corpo. Assim,
aqui interessa atentar para o modo como a cenografia gera a voz ou é gerada por ela:
seus tons, seus ritmos, enfim, a vocalidade assumida por uma instância que não é de
fato a voz original, posto que o texto é escrito e impresso, mas que funciona como sua
representação sígnica, capacitada a “criar carne” (ZUMTHOR, 2000, p. 94) no ato de
leitura. Esse contador/ narrador ou enunciador do discurso seria, assim, um “avalista”
da própria vocalidade, cujo caráter, estratégias enunciativas e corporalidade são
resgatadas pelo leitor, que se constitui, por sua vez, como um pólo situado,
simultaneamente, fora e dentro do texto.
Dessa forma, a construção dessa corporeidade “associada a uma compleição do
corpo do fiador, inseparável de uma maneira de se vestir e se movimentar no espaço
social” (2001, p. 139) corresponde ao etos do contador/ narrador: seu jeito de habitar e
de se movimentar no espaço social que lhe cabe, e que é validado na instância da
recepção, ou, como prefere Zumthor, da percepção. Para ele, na imaginação do leitor, a
figuração desse corpo e da voz que dele emana, por meio da palavra, é o que
determina a essência do ato discursivo poético, princípio fundamental do fazer literário.
Considerando o corpus proposto, vale observar que, pela via discursiva, o
planejamento dessa figuração é transpassada pelas circunstâncias de sua enunciação.
73
Para o leitor em performance, a obra se constitui por meio de uma percepção dupla: de
seu cenário enunciativo que emerge da cena viva, e do discurso narrativo que se deixa
atravessar por essa cenografia de tons e pelas marcações escriturais, tais como:
pontuação, corte e distribuição na página.
Ao invés de uma leitura pautada pela estabilidade característica de um pacto
discursivo referente a uma forma preexistente, como é o caso dos contos orais, o leitor
é instigado a operar em dois níveis de leitura que se interpenetram. Assim, do cenário
enunciativo resgata a performance vocal do contador e do seu entorno, como também
do conteúdo narrativo, ao mesmo tempo em que toma conhecimento das intervenções
operadas pela transcrição, que, afinal, torna possível a decifração do texto por meio da
leitura.
Se pelo desempenho do suporte oral o texto se apresentava quase em bloco, ou
seja, com separação de palavras gerada pelo fluxo da oralidade, mas cujo
entendimento implicava um bom conhecimento da língua, no texto impresso essa
separação e divisão em parágrafos, mais a pontuação própria da escrita, se tornam
imprescindíveis, posto que o leitor não mais participa do espaço/ tempo do produtor da
performance.
74
III – Contos do Ceará em análise
“Qual é o segredo da coletânea? É que com ela saímos da abstrata idéia do ‘povo’ narrador e
colocamo-nos diante de personalidades de narradoras e narradores bem distintos”·
(Ítalo Calvino)
3.1. Contos populares brasileiros – Ceará e a arte da palavra
Desconexo, redundante ou elíptico, é como se costuma caracterizar um
enunciado oral, e, muitas vezes, isso tem justificado a forma como se reescrevem os
depoimentos recebidos por essa via, ao mesmo tempo em que, em parte, deixa à
mostra o caráter ideológico que associa a escrita à literatura. Embora a arte da palavra
possa prescindir do símbolo gráfico, é curioso notar como mesmo estudiosos do conto
tradicional, às vezes deixam transparecer algum juízo de valor ao estabelecer relações
entre o que se recebe da tradição oral e o que se escreve a partir dela. De acordo com
essa observação, vale notar a apresentação feita por Regina Machado, na contra capa
do livro Contos de Espanto e Alumbramento, de Ricardo Azevedo (2005):
Descrevendo as angústias do personagem ao passar por obstáculos, as imagens sensuais dos encontros amorosos, tornando presente sua autoria nos comentários durante o texto, Ricardo Azevedo imprime intenção literária ao relato originalmente anônimo e ancestral, dignificando e reverenciando o que se chama de “literatura popular” (MACHADO in: AZEVEDO, 2005).
A idéia, talvez preconcebida, de que a arte literária como intenção autoral
dignifique o que se conhece por literatura popular, pode esconder o fato de que “a
poesia oral e a escrita encontram-se num eixo comum que é o próprio significado de
poesia” (FERNANDES, 2007, p. 25). Mais ainda, pode camuflar a noção mais
abrangente e democrática da arte verbal como uma manifestação que atingiria todos os
extratos sociais, restando saber, no entanto, de que modo.
No caso dos contos que compõem a obra em análise, a escrita é o meio pelo
qual se tem acesso à parte da arte verbal das comunidades visitadas pelo “Projeto
Conto Popular e tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa”. Assim, é por meio da
75
letra que os contos da obra citada se apresentam como transcrição da narração vocal
dos contadores cearenses, levando-se em conta que o enunciado dessas narrativas
pode ser entendido como um acontecimento que se constitui como um ato de fala e,
portanto, sujeito a normas, sejam sociais ou gramaticais.
Visto como um produto discursivo poético, uma vez que possui qualidades para
“gerar seus efeitos da presença ativa de um corpo” (ZUMTHOR, 2000, p. 41), sua
origem está relacionada ao sentido segundo o qual foi performatizado e resulta num
objeto que se oferece à apreciação de um receptor.
Na medida em que o escrito se oferece como o meio de resgate da voz que lhe
deu origem, sua fruição se encontra em latência como uma potencialidade que aguarda
o momento da leitura para ser experienciado, como um objeto de percepção a ser
revelado. Construído pela imaginação, esse objeto tem, também, um caráter físico,
posto que é fruto da reverberação no corpo desse leitor em performance, a partir do
que sugere a letra.
Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza (ZUMTHOR, 2000, p. 41).
3. 2. A transcodificação da linguagem
A transposição da narração dos Contos Populares Brasileiros - Ceará para o
código da escrita implica algumas alterações do texto original. Descontextualizadas, as
narrações ouvidas e gravadas pelos pesquisadores do projeto Conto Popular no Mundo
de Língua Portuguesa perdem a entoação, o gestual e todo o entorno das
performances dos contadores das histórias colhidas. Embora se possa pensar no
resgate das atuações dos narradores por meio da percepção na leitura, um fato do qual
não se pode fugir é aquele de que a passagem do oral para o escrito rearranja os textos
e os apresentam sob outra perspectiva. Ainda que não se lamente a perda de suas
características de vocalização, já que foi objetivo do projeto mantê-las, é importante
dizer que são elas que dão o tom para esta análise, atenta para a transformação que
76
impõem ao texto, inicialmente oralizado; são marcas que o integram às regras da
escrita. Acrescidos à materialidade do objeto livro, que, afinal, é o seu suporte, os
contos apresentam uma série de marcas gráficas específicas da escrita, demonstrando
que não se trata da própria voz dos contadores, mas de sua representação. Se possível
é flexionar a voz e dar-lhe entoação de vírgula, interrogação, ou ainda recorrer ao
gestual para fazer sinal de aspas, vale lembrar que alguns recursos de pontuação da
forma escrita da língua (travessão, dois pontos e outros mais) não podem ser
produzidos senão por ela.
Vale observar, no entanto, que, se a representação da voz dos contadores tenta
capturar suas diferentes performances no livro – as quais, de outro modo, se perderiam
para os que não tiveram acesso às suas presenças -, também retira deles toda a
responsabilidade sobre a representação das narrações. Dessa forma, há que se
considerar a interferência de todo processo editorial nas vozes que transmitem esses
contos. Embora, em sua origem, talvez se pretendesse neutralidade na transcrição, a
escolha por destacar graficamente as evidências sócio-dialetais das vozes dos
contadores, não impede que se desloque a preocupação com a forma para se pensar,
um pouco que seja, sobre o processo que resultou na escrita que mediatiza os contos.
Conforme o anteriormente exposto, tendo em vista o propósito para sua
retextualização, a recolha, transcrição e posterior editoração dos contos, resultaram em
narrativas híbridas, que, simultaneamente, apresentam aspectos da fala e da escrita.
Produzidas a partir de coletas e transcritas de maneira a tornar “o texto o mais limpo e
fiel possível”, “para facilidade do leitor” (CPBC, p. 26), o que, primeiramente, chama a
atenção na edição final do livro são algumas fotografias de contadores, que antecedem
a coletânea de textos. Embora essas imagens não sejam o objetivo deste trabalho, e,
mesmo não contando com a foto de todos, é impossível não pensar nelas como um
efeito sugestivo das figuras corporais desses narradores.
Um aspecto que vale a pena também ressaltar é a identificação do contador que
performatizou cada história narrada do livro. Em número de 90 contos e narrados por
41 contadores, na impossibilidade de analisar todos, optou-se por aplicar o estudo da
“retextualização” (MARCUSCHI, 2000, p.45) na história narrada por Irene Jucá Bezerra,
“João e Maria” (CPBC, 2003, p. 117).
77
3.3. “João e Maria”
A transcrição da fala para a escrita pressupõe uma série de procedimentos
reguladores. Tendo como referência o “fluxo das ações“ (MARCUSCHI, 2000, p. 72),
em “João e Maria”, sucedem-se outros tantos atos, como ouvir, gravar, tornar a ouvir,
transcrever, retextualizar e editar; não esquecendo que o ato de escutar sempre implica
compreensão, e, portanto, interpretação. Chegar a uma versão escrita do que antes foi
vocalizado, mesmo preservando seu conteúdo, significa operar interferências com
vistas a substituir, reordenar, ampliar, reduzir, ou, até mesmo, influenciar no que diz
respeito ao estilo, já que, muitas vezes, os textos de base acabam sendo alvos de
reformulação.
O conto “João e Maria”, que, sob a coordenação de Lima foi retextualizado, não
sofreu reformulação no sentido de adquirir os aspectos neutros da escrita, que procura
camuflar as marcas da voz, em prol de maior unidade ou formalidade. Ao contrário, na
transposição de um suporte a outro, as expressões orais próprias da linguagem falada
foram mantidas, o que possibilita a ilusão de que se está na dimensão de produção do
discurso narrativo, ou seja, em situação de oralidade. Todavia, por pretender ser uma
representação da vocalização performática da contadora Irene Jucá Bezerra, na
linguagem dessa narrativa se observa tanto a fragmentação e o envolvimento, que
caracteriza a situação de espontaneidade da performance vocal em presença, quanto o
distanciamento da escrita. Essa dupla aparência é substancialmente provocada pelos
aspectos que marcam a diferença entre o texto em situação de oralidade e de escrita.
Algumas marcações típicas da fala são perceptíveis na versão escrita de “João e
Maria”, tais como:
- repetições: “Sempre iam e voltavam. Sempre iam e voltavam” (CPBC, p. 117, grifos
nossos).
- hesitações: “E ela preparou a festa e ajeitou muita carne e tudo... Fez uma
fogueira...” (CPBC, p. 117).
- fala interrompida: “disse que ia criar meus netim e ficar com eles pra... que era os
netim dela” (CPBC, p. 117).
78
- marcadores conversacionais lexicalizados: “E pra não se perderem, eles iam
soltando pipoca no caminho, não é?” (CPBC, p. 117).
- marcadores conversacionais não-lexicalizados: “Eles eram pequeninim e sempre
saiam pros matos, né?” (CPBC, p. 117).
- autocorreções: “E eles não acertaram para voltar pra casa, se perderam nas mata e
ficaram andando, andando sem rumo, procurava pra todo canto e não encontravam a
volta... o lugar de saída pra vim pra casa” (CPBC, p. 117).
- alterações fonéticas: “Meus netim, bota o dedim na porta pra mim ver como é que
vocês tão, se tão gordim...” (CPBC, p. 117).
Da mesma forma, alguns aspectos típicos da escrita são detectados, como:
- título
- paragrafação
- introdução de pontuação
- atribuição de autoria
- demarcação de meio e fim
Com base nessas observações, e frente aos sinais identificadores da
retextualização de “João e Maria”, não se pode negar a interferência que possibilitou
sua editoração. Falar em nome da contadora significa também considerar o processo
que viabilizou o transporte de sua voz para o livro. No entanto, a opção por manter as
pegadas do seu discurso em meio às convenções da escrita, é uma estratégia que visa
aproximar-se de sua performance, aspirando a ser voz.
A identificação da dupla elaboração de "João e Maria" leva à reflexão sobre o
que difere o contador original, da instância narrativa que se apresenta mediada pela
escrita. Ainda que se admita vinculação entre eles, a constatação da ausência da
contadora é um fato. Ela é uma presença perdida. Sua substituição orientada pelas
regras da escrita é um meio de traduzir e planificar sua fala, mas resulta numa escritura
híbrida que é, concomitantemente, letra e voz, de modo que uma deforma e é
deformada pela outra. Não sendo uma nem outra, mas as duas ao mesmo tempo, a
resultante da vocalização de Bezerra e da retextualização de Lima (2003) é um corpo
79
caligráfico que impele o significante para além do texto, cujo significado é a escuta de
uma voz que presentifica a enunciação. Sobre essa percepção, Zumthor afirma que:
a escrita só pode sugeri-la, a partir de marcas deíticas, frágeis e freqüentemente ambíguas, senão artificialmente apagadas. Essa oposição se manifesta, do lado do ouvinte-expectador e do leitor, no nível da ação ocular: direta, percepção imediata, por um lado; visão exigindo decodificação, portanto secundária, por outro: olhar versus ler. O olhar não pára de escapar ao controle, registra, sem distinguir sempre, os elementos de uma situação global, a cuja percepção se associam estreitamente os outros sentidos. Esses elementos - esses traços visíveis, essas coisas -, ele os interpreta: registra os sinais que nos dirige a 'realidade' exterior e fornece espontaneamente uma compreensão emblemática, na maioria das vezes fugidia e logo recolocada em questão. A vista direta gera assim uma semiótica selvagem, cuja eficácia provém mais da acumulação das interpretações do que de sua justeza intrínseca (2000, p. 84)
Mesmo considerando o traço interpretativo dessas reflexões, a objetivação do
texto sob uma perspectiva que busque sua instância narrativa, vai sempre se deparar
com essa dualidade que, de certo modo, é desastibilizadora. Não sendo Bezerra nem
Lima - porque os dois pertencem à etapa anterior à publicação -, o narrador é, assim,
uma instituição também híbrida, que assume, simultâneamente, caracteres de um e de
outro. A noção dessa hibridização é o caminho que leva à marca fundadora do texto,
que é a oralidade de um narrador que deseja gritar sua origem, mas é, em última
instância, literalmente de papel.
Sob a perspectiva da retextualização, esse caráter híbrido não compromete o
estatuto do narrador mas, pelo contrário, lhe imprime cor, profundidade e ritmo. Os
"traços visíveis" sobre a folha são como virtualidades potenciais de animação e resgate
de um espaço performático, no qual a instância narrativa ganha status de contador,
embora não o seja mais. Parte de uma montagem que traduz os aspectos fônicos da
fala, por meio da letra, ele é, agora, a imagem do retorno possível à voz.
A dramatização da linguagem
A inserção de elementos que simulam a entoação da fala deixam à mostra uma
voz, cujos recursos de envolvimento discursivo manifestam-se pela ocorrência de dois
80
níveis de linguagem: do narrador e das personagens. Para isso, o discurso narrativo
utiliza-se de:
- discurso direto com verbos de elocução: “Quando ela pedia: - Meus netim, bota o
dedim...” (CPBC, p. 117).
- discurso direto com dois pontos e travessão: “Eles disseram: - É.” (CPBC, p. 117)
- discurso indireto: “E ela pediu pra botarem, e eles botaram foi o dedim.” (CPBC, p.
117).
Vale notar que, a despeito da predominância do discurso direto, por vezes, o
discurso do narrador chega a se imiscuir no discurso da personagem, confundindo as
duas vozes: “E quando chegaram, não era, era uma velhinha que morava lá. Ela ficou
muito animada com eles, disse que ia criar meus netim e ficar com eles pra...” (CPBC,
p. 117).
Truncamentos fonéticos: “... e sempre saíam pros matos, né?” (CPBC, p. 117);
fonemas substituídos ou eliminados: “E ela disse... e todo dia queria que mostrassem o
dedim, se tavam gordim, que era pra ela matar e comer, né?” (CPBC, p. 117), são
características de incompletude da linguagem oral, que não prejudicam o entendimento
do discurso; pelo contrário, enfatizam-no.
Decorrente da variante oral da linguagem sertaneja, essa substituição do sufixo
inho por im desloca a acentuação tônica para o final da palavra, reforçando a expressão
a ser comunicada. Intensificado pela colocação de sinais gráficos, às vezes
acompanhados de locução interjetiva: “- Ah! Como vocês tão gordim” (CPBC, p. 117),
esse procedimento é responsável pela marca discursiva mais evidente do narrador que,
auxiliado pela pontuação, sugere a cadência melódica da sua voz.
Nessa recriação, observa-se que a repetição desse fenômeno prosódico da fala
funciona como um recurso fonológico que transmite um modo de dramatizar a
linguagem. Isso se pode observar na maneira como o narrador intensifica o diminutivo,
quando, por meio de seu discurso representa a voz da velhinha que engana e devora
crianças: “- Meus netim, bota o dedim na porta pra mim ver como é que vocês tão, se
tão gordim...” (CPBC, p. 117). A organização do som de seu discurso, pela assonância
da vogal /i/ e da aliteração da consoante /m/, configura-se como uma tentativa de
intensificar a sugestão de sedução na voz da personagem.
81
Note-se que esta é uma estratégia que se potencializa com o recurso da função
fática, muito comum na relação entre falantes. Ao perguntar várias vezes, “não é?” ou
“né?”, o narrador procura manter sob controle o receptor, e com isso confere mais
destaque e vivacidade ao seu discurso, porque ressalta o elo entre a voz que conta e
aquele a quem se dirige a narrativa. Essa idéia de alteridade, assim explícita, outorga
ao texto escrito o movimento e a energia da palavra viva; uma associação entre a
escrita e a percepção da voz, que resulta num grau de dramatização da língua, da qual
não se pode mais falar apenas em escrita, mas escritura, conforme Barthes. Ao mesmo
tempo, aqui estão as marcas do que se poderia chamar de poético, de acordo com
Zumthor, para quem o texto poético exige o empenho sensitivo do corpo do leitor.
Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. E se nenhuma percepção me impele, se não forma em mim o desejo dessa (re)construção, é porque o texto não é poético (2000, p. 64).
“João e Maria” e o esquecimento
Representação da palavra viva, o conto “João e Maria” apresenta o momento de
presentificação da performance vocalizada, de um tema já tratado nas mais diferentes
culturas. Isso implica a inserção do narrador do conto numa rede de variações de
performances, embora deslocadas entre si, pelo espaço geográfico e tempos diversos
em que se realizam.
Contada e recontada, a história de “João e Maria” tende ao infinito inacabamento
e movência a que estão sujeitos os trabalhos relativos à memória. De modo geral, não
se pode esquecer que os contos orais, embora circunscritos entre as manifestações
literárias da tradição, sob a perspectiva da performance, são reconstruídos a cada
evento discursivo. Disso resulta que, ainda que lancem mão de fórmulas narrativas
preexistentes, espontaneamente, os contadores as revestem com seus artifícios e
82
estratégias discursivas, tudo acrescido da própria capacidade de improvisação. E,
assim, mais do que na forma, a unidade do conto de tradição oral está na multiplicidade
de performances que desencadeam (FERREIRA, 2004, p. 112).
Disso resulta a inexistência de um texto autêntico, que seja o guardião de um
modelo original e refratário a nuances ou mutações (ZUMTHOR, 1997a, p. 266).
Levando-se em conta a habilidade de improvisação, em cada contador há uma
“consciência lingüística” (FERNANDES, 2007, p. 239) do arquétipo que deseja
transmitir no aqui e agora de sua performance.
A liberdade quanto à manifestação no tempo e espaço dos contos de tradição
oral, faz com que eles se movam dentro de uma multiplicidade de sentidos criados e
recriados, de modo que as interpretações são também moventes (ZUMTHOR, 1997a, p.
272). Isso se explica pelo fato de cada interpretação estar sujeita às interferências do
meio em que se manifesta. Cada contador mistura à consciência lingüística que possui
de seu arquétipo algo da experiência vivida como indivíduo e como ser social.
Enquanto obra da tradição que transita pela voz, é com a memória que os
contos orais estão diretamente relacionados. Tendo a perspectiva de um individuo
específico, no caso, o contador, com todas as suas implicações geográficas, históricas
e sociais, além do comprometimento com os atos de lembrar para contar, é nessa
movência e nomadismo da voz que reconta, que é possível identificar os espaços de
recriação, mas também de vazios, já que “a memória só existe ao lado do
esquecimento” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.77).
Segundo Ferreira, no conto popular é necessário diferenciar os tipos de
esquecimento:
Há o esquecimento profundo, a incapacidade absoluta de lembrar, aquilo que se esgarça, se perde ou por algum motivo se sepulta, não deixando que emerja para a narrativa, e há o que desliza, sob os mais diversos pretextos, nas seqüências narrativas, situações em que se mascaram, eufemizam ou simplesmente se omitem fatos ou passagens (2004, p.92).
Embora não se objetive um estudo verificativo na acepção do termo, aplicando
essas reflexões à atuação do narrador de “João e Maria”, pode-se afirmar que a
83
retextualização de sua performance flagra o momento em que sua voz narrativa deixa
de contemplar alguns elementos do conhecido conto.
Ainda que do ponto de vista da performance não se considere a existência de
uma narrativa canônica, é fato que “João e Maria” chama à memória um esquema de
conto já instaurado coletivamente. Tanto Perrault (O Pequeno Polegar) quanto os
irmãos Grimm (João e Maria) trataram do tema da criança abandonada pelos pais
pobres que não têm como alimentá-la e que depois volta feliz ao convívio familiar, após
derrotar as forças maléficas que impediam seu retorno. Se na versão de Perrault os
pais até hesitam quanto a deixá-los sozinhos na densa floresta, na história dos Grimm a
vontade da madrasta é determinante para o abandono. De todo modo, os dois contos,
muito depois de serem registrados pelos autores, foram apontados como pertencentes
ao tipo 327, de acordo com o sistema padronizado por Antti Aarne e Stith Thompson,
que conceitua “João e Maria” como o tipo de conto em que os protagonistas enfrentam
adversários poderosos e sobrenaturais. Vale considerar, no entanto, que, antes desses
registros, o tema de “João e Maria” circulou entre os camponeses franceses dos
séculos XVII e XVIII. Mais do que fantasia e mistério, a narrativa deles refletia o estado
de pobreza em que viviam, além da naturalidade com que encaravam a alta
mortalidade infantil da época (DARNTON, 1984, p. 57).
Considerando a dificuldade de identificar, dentro do sistema comunicativo dos
contos orais, a fonte herdada pelo narrador - mesmo porque essa busca não é objetivo
deste trabalho -, tratar do esquecimento relativo à sua performance pode remeter à
estrutura da narrativa transmitida por ele. A visão primeira do título de seu conto leva a
uma expectativa específica de construção poética preexistente. Vale lembrar que, no
imaginário coletivo, habita uma fórmula de “João e Maria” que se constitui por
segmentos narrativos tais como: o abandono dos pais, o encontro da casa feita de
guloseimas, a sedução da bruxa que deseja comê-los, o tratamento dado a eles para
que engordem, o castigo imposto à bruxa e o retorno triunfante à casa da família, com
os tesouros roubados do lugar em que estiveram presos. Sob a perspectiva proppiana,
um esquema narrativo que começa com uma falta que, para ser reparada, deverá
conduzir seus heróis a um caminho de provas até o triunfo final. Uma estrutura na qual,
discursivamente, está previsto o motivo do abandono (a falta de comida); a estratégia
84
de marcar o caminho com migalhas de pão, a seqüência da morte da bruxa pelo fogo,
além da volta para casa dos heróis que, com as riquezas tiradas da bruxa morta, serão
a fonte para o resgate financeiro da família.
No conto em análise não acontece assim. A narrativa começa com os irmãos já
acostumados a saír “pros matos” (CPBC, p. 117); não consta o motivo pelo qual eles se
perderam, e as personagens se resumem aos dois irmãos e à bruxa. Não se trata de
identificar no discurso narrativo elementos em concordância ou não com o esquema
preestabelecido, mas é instigante refletir sobre os lapsos de memória do narrador: que
sentido teriam? Ou, ainda, qual o efeito causado na organização da narrativa poética?
A resposta sobre a possibilidade de uma “brecha crítica” entre o que o contador
escutou e a narração no livro não faz parte do recorte desta pesquisa, mas não se pode
esquecer que o sistema de linguagem humana compreende a oposição entre falar e
escutar, e que escutar não é o mesmo que ouvir, de modo que, “o fenômeno da
comunicação não depende de quem transmite, mas do que se passa com quem
recebe” (MATURANA apud: ECHEVERRÍA, 1997, p.144).
De todo modo, não obstante a pertinência das reflexões acima, tratando-se de
uma pesquisa cuja visada é literária, saber se houve algum ruído na recepção de “João
e Maria” é menos interessante do que entender o discurso narrativo. Um discurso que,
embora pertença à Bezerra enquanto performance presencial, é, ao mesmo tempo,
representação da vocalização de um conto retirado de uma reserva de narrativas que
pertence à tradição. Remeter ao dispositivo que liga a tradição à voz que reconta é criar
sobre o que já existe, além de uma forma de expressar, na própria matéria narrativa, as
lacunas que implicam esquecimento mas também a oportunidade de recriação.
Sob a perspectiva da performance independente, em que a atuação é decorrente
da espontaneidade e do simples prazer de contar para aqueles com quem se comunga
a experiência de estar junto, embora partindo de um arquétipo conhecido, o contador
sabe que a improvisação contribui para a transmissão. Isso explica o tom de sincera
naturalidade com que o narrador assume o esgarçar da própria memória: “Aí, um dia foi
destruída as pipoca. Não sei se alguma coisa comeu ou que alguém tirou” (CPBC,
p.117).
85
O efeito do lapso não se faz sentir na representação de sua fala porque não há
quebra do curso narrativo, que continua: “E eles não acertaram para voltar pra casa, se
perderam nas mata e ficaram andando, andando sem rumo...” (CPBC, p. 117). Note-se
que nesse mesmo segmento o narrador utiliza a fórmula de duplicação do vocábulo
(andando, andando), provocando a idéia de construção sonora do ato de andar muito e
“sem rumo”.
A não retenção da forma anterior e a falta de detalhamento descritivo não
impedem, porém, que a solução naturalmente encontrada pelo narrador dê conta de
uma narrativa com características singulares. A expressividade da representação da
fala, aliada à espontaneidade com que insere elementos referentes ao contexto de
origem da performance (rabinho de lagartixa no lugar de dedo; pipoca ao invés de pão)
suplantam a perda da dinâmica já conhecida do conto e acrescenta-lhe graça particular.
Quase ao final da narrativa, com a bruxa já dentro da fogueira, observe-se que o estado
de dramatização de sua linguagem atinge graus elevados: “- Água, meus netim! E eles
gritavam: - Azeite, senhora vó!” (CPBC, p. 118). É tão convincente do ponto de vista
discursivo, que só como registro vale a pena lembrar a declaração de mais um
esquecimento:
“E ela preparou a festa e ajeitou muita carne e tudo... Fez uma fogueira... E tinha um lugar lá que era pra eles irem dançar, não é? E ela preparou lá aquele lugar – não sei se era uma tábua, o que era – preparou pra eles irem dançar lá, né? (CPBC, p. 117).
Na representação desta performance, nota-se que foi retido o núcleo básico de
“João e Maria”. Depurado das personagens (os pais) que detonariam a situação inicial
de conflito (o abandono), o motor da narrativa fica por conta da destruição das pipocas
(Aí, um dia foi destruída as pipoca), que corresponde ao elemento morfológico que
representa o desequilíbrio. Essa desarmonia (o afastamento de casa) requer ações
dos heróis (João e Maria) no sentido de superá-la. Andar e procurar “o lugar de saída
pra vim casa”, faz com que os heróis dêem de encontro com a bruxa, e é nessa esfera
de ação que eles acabam se submetendo às provas que determinam o nó principal da
narrativa: vencer a bruxa e voltar para casa. É aqui que o discurso do narrador indica
que a redução de informação descritiva é resultado do processo natural de interação
86
vocal, que privilegia a narração dramatizada. (vale dizer: corporificada, presentificada; o
mostrar dominando o contar, distante e mediado). Isso explica a alta incidência de
verbos de ação (andar, procurar, ver, chegar, dizer, comer, etc.), utilizados por ela.
As ações e os dêiticos trazem a linguagem para o tempo dos interlocutores e
incutem energia ao texto, ancorado pelo procedimento do narrador de inserir diálogos
entre as seqüências narradas. Um processo que resulta numa performance com poder
de materialização e carnalidade do que está sendo contado, não deixando de
evidenciar, também, a relação entre o arquétipo da tradição e a reatualização recriadora
da nova versão.
Esse aspecto do sentido poético do conto oral mostra o poder criador do
esquecimento para a poesia e a literatura, cujo suporte é dimensionado pela memória e
pela tradição. De acordo com Zumthor:
nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando uma parte do que elas acumularam de experiência, no dia-a-dia. A seleção drena assim, duplamente, o que ela criva. Ela desconecta, corta o contato imediato que temos com nossa história no momento que a vivemos. Ela nos afasta daí a pouco, permitindo que se crie uma perspectiva (mesmo míope) ao tempo em que se instaura uma espécie de repouso paradoxal. Suspende o real empírico, o efeito hic et nunc, se não destaca daí o ego. Mas, também na multiplicidade do que seria urgente talvez registrar na memória coletiva, ela recupera ou determina o que, do vivido, foi e é, e tem chances de permanecer funcional (1997b, p. 15).
87
3. 4. "Gata Borralheira" e "Maria Borralheira"
Herança cultural que remonta à ancestralidade do homem, os contos de tradição
oral foram inventados não somente no sentido de transformar experiências coletivas ou
individuais em entretenimento. Estimulantes à imaginação, eles trazem também
componentes que favorecem o desenvolvimento intelectual e emocional dos envolvidos,
além de códigos comportamentais reguladores de convivência social. Suas mensagens
sobre a inevitabilidade das dificuldades da existência são como recados guardados pelo
tempo, de que enfrentá-las vale a pena, e de que, no fim, tudo se resolve.
Vale ressaltar que suas histórias de lutas e enfrentamentos de obstáculos
revelam uma evidente similaridade de experiências vividas por povos diferentes e até
mesmo distantes um do outro: um fato que, do ponto de vista da sua estrutura básica,
aponta a repetição de uma mesma narrativa, mas deixa à mostra, também, a grande
variedade de versões de uma mesma história. Relacionando esses contos orais ao
contexto onde eles ocorrem, leia-se o excerto do texto abaixo:
Ou seja, a partir de um mesmo esqueleto, cada povo e cada momento histórico elegeu e transformou elementos diferentes à maneira de um vestido que reflete o caráter ou as raízes de um povo; que se transforma e se adapta ao tempo que lhe confere viver, mas que acaba cobrindo um mesmo corpo11 (LLUCH, 2004, p. 139).
Partitura provisional é como Gemma Lluch (2004) chama o processo do qual
emerge cada narração de um arquétipo da tradição oral. Por se tratar de um construto
social e coletivo, que se constitui discursivamente, a transformação que lhe caracteriza
a forma se renova a cada performance, determinando-lhe outros elementos, outras
palavras.
Com o conto Cinderela não é diferente. Considerada muito antiga, essa narrativa
teve na China do século nove d.C. um provável primeiro registro. Pela infinidade de
reinvenções, este conto esvazia a discussão entre alguns estudiosos, sobre a natureza
11 Tradução nossa de: “Es decir, a partir de un mismo esqueleto, cada pueblo y cada momento histórico ha elegido y transformado elementos diferentes a la manera de un vestido que refleja el carácter o las raíces de un pueblo; que se transforma y se adapta al tiempo que le toca vivir, pero que acaba cubriendo un mismo cuerpo” .
88
do material dos sapatos da heroína. Se de pele, de vidro ou de cristal; da China, onde a
cultura antiga valorizava os pés, ao Egito, que registrou no século III o uso de chinelos
de “material precioso” (BETTELHEIM, 2005, p. 277), constata-se que esse conto
perpassa culturas e épocas muito variadas.
Ye-hsien, Cendrillon, Ciderella, Ashenputtel, Rashin Coatie, Mossy Coat, Kattie
Woodencloack, Cenerentola, La Cinicienta, Sapatinhos de Vidro, ou Borralheira são
algumas narrativas que expressam laços de parentesco e fôlego de sobrevivência
reiterativa do conto tradicional, que, no Brasil se conhece por Gata borralheira.
Um exemplo de relato maravilhoso circunscrito no todo dos contos de tradição
oral, Gata borralheira trata da rivalidade nas relações familiares e do rebaixamento
imposto a um dos membros, que viverá toda sorte de humilhações até o triunfo final.
Acompanhada e auxiliada por doadores e objetos mágicos, essa trajetória da
personagem, do borralho da casa de sua madrasta até o palácio real, não tem uma
versão original nem tampouco definitiva, posto que, à medida que contada ou transcrita,
à narração são introduzidos aspectos sociais e geográficos de sua época. Dessa forma,
diante dessa instabilidade das instâncias tanto autoral como narrativa, embora não se
aplique aos contos orais a mesma noção de autor assumida na contemporaneidade,
não se pode dizer simplesmente Gata borralheira, mas é preciso saber de quem.
Da oralidade à escritura, ao longo dos séculos, “Cinderela” ou “Gata Borralheira”
tem incorporado à sua estrutura aspectos pertinentes à época de sua manifestação. “La
Petite Annette”, uma das suas prováveis versões orais, conhecida pelos famintos
camponeses franceses dos séculos XVII e XVIII, trazia em destaque um forte
componente relacionado à subnutrição.
Comer ou não comer, eis a questão com que os camponeses se defrontavam, em seu folclore, bem como em seu cotidiano. Aparece em inúmeros contos, muitas vezes em relação com o tema da madrasta má, que deve ter tido especial ressonância em torno às lareiras do Antigo Regime, porque a demografia do Antigo Regime tornava as madrastas figuras extremamente importantes na sociedade das aldeias. Perrault fez justiça ao assunto, em Cinderela, mas negligenciou o tema correlato da subnutrição, que se destaca nas versões camponesas do conto. Numa versão comum (La Petite Annette, conto tipo 511), a madrasta má dá à pobre Annette apenas um pedaço de pão por dia e faz com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e indolentes irmãs postiças vagueiam pela casa e jantam carneiro, deixando os pratos para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette está a ponto de morrer de inanição, quando a Virgem Maria aparece e lhe dá uma varinha mágica, que produz um magnífico banquete, todas as vezes em que
89
Annette toca com ela uma ovelha negra. Não demora muito e a menina está mais gorducha que suas irmãs postiças. Mas sua beleza recém-adquirida – e a gordura corresponde à beleza, no Antigo Regime, como em muitas sociedades primitivas – desperta as suspeitas da madrasta. Através de um artifício, a madrasta descobre a ovelha mágica, mata-a e serve seu fígado a Annette. Annette consegue, secretamente, enterrar o fígado e ele se transforma numa árvore, tão alta que ninguém consegue colher suas frutas, a não ser Annette; porque baixa seus ramos para ela, sempre que se aproxima. Um príncipe de passagem (que é tão guloso como todos os demais no país) deseja tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando casar uma de suas filhas, a madrasta constrói uma grande escada. Mas, quando vai experimentá-la, cai e quebra o pescoço. Annette, então, colhe as frutas, casa-se com o príncipe e vive feliz para sempre. (DARNTON, 2006, p.51).
Embora não atenda ao tema da subnutrição presente nas narrativas dos
camponeses franceses, “Cinderela”, de Perrault, é considerada pela crítica uma obra
canônica. Mas não se pode negar, no entanto, que os aspectos sociais e ideológicos
relacionados ao público alvo do autor são argumentos destacados, alguns séculos
depois, na produção de Walt Disney. Elementos como “roupas suntuosas”, “broche de
diamantes”, “carruagem dourada”, aliados à associação entre beleza e atração sexual,
em meio a uma estrutura narrativa que prevê a ascensão de uma jovem de sua
condição social, por meio do casamento com um príncipe, dão o tom para o diretor
norte- americano reforçar na tela um modo de ver o mundo. Após a estréia do filme, em
1950, apesar dos percalços pelos quais tem de passar a heroína para finalmente ser
feliz para sempre, ficou difícil dissociar a imagem de “Cinderela” daquela jovem
ricamente vestida e loira.
Tendo em vista a natureza mutante do conto “Cinderela”, que, como toda
realização humana, é sujeito às influências de seu tempo, sua movência resulta do
encontro do arquétipo trazido pela tradição com a instância que a atualiza. Seja pela
voz do contador/ narrador, ou pela intenção escritural de um autor, são variações
performativas que produzem uma narração que jamais será definitiva, e que a cada
reiteração se renovará, num circuito sempre inacabado.
90
“Maria Borralheira” de Alina de Melo Freitas e Francisco Assis de Souza Lima
Contado em 1981, no Juazeiro do Norte, por Alina de Melo Freitas e colhido e
registrado por Lima, o conto “Maria borralheira” (CPBC, p. 156) é modelar para o
trabalho sob a perspectiva de movência e inacabamento, pela possibilidade de
compará-lo a outras manifestações de conteúdo semelhante. Para fazê-lo, objetiva-se
relacionar a mesma narrativa com outras duas versões ouvidas e recriadas em tempos
e lugares distintos: “Maria Borralheira”, de Silvio Romero e “História de gata
borralheira”, de Lindolfo Gomes. A primeira, colhida em Sergipe e a segunda em Minas
Gerais, com a primeira edição acontecendo em 1885 e 1931, respectivamente. Essas
são duas versões do mesmo conto, reconhecido por Câmara Cascudo como “o conto
mais universal de todos os contos populares” e associado à “Cinderella”. No entanto,
mais adiante, no mesmo texto, a preocupação com as origens faz o folclorista afirmar
que “a versão brasileira de Silvio Romero não é a clássica de Perrault e sim uma
variante dos ramos portugueses” (apud ROMERO, 1954, p.123).
Desse modo, vale lembrar que a preocupação com as origens não é o objetivo
da comparação neste estudo. Ela diz respeito à averiguação sobre quais itens foram
esquecidos ou acumulados pelas culturas de cada época e lugar onde se manifestou o
conto, para, na seqüência, relacionar esses elementos ao discurso do narrador de
Freitas e Lima.
Antes, porém, é interessante observar a variação na organização interna das três
versões de “Maria borralheira”. Uma construção narrativa que começa com a
apresentação de Maria borralheira, (Freitas e Lima), de seu pai viúvo (Romero), e com
o pai ainda casado com a mãe de Maria (Gomes). Variando também no número de
irmãs postiças, duas na versão de Romero, uma na de Gomes e duas na de Alina e
Lima, somente os dois primeiros contos apresentam o momento em que a futura
madrasta ilude a protagonista, no sentido de convencer seu pai a casar-se com ela,
fingindo-se de “muito boa e agradável” (ROMERO, 1954, p.115).
Consumado antes ou depois, é o casamento do pai com a madrasta que
configura o início da conhecida história e instala em definitivo a situação que vai resultar
na privação da condição familiar e social da protagonista: “Nos primeiros tempos ainda
91
ela agradava a pequena, e, ao depois, começou a maltrata-la” (ROMERO, 1954, p.115);
“A mulherzinha tomou conta da casa e se pôs desde logo a fazer diferença de
tratamento entre sua filha que, na ausência do marido, tratava como princesa, e Maria,
que tratava como escrava” (GOMES, 1948, p. 173). Essa troca de status destitui
também a personagem da própria identidade. E, assim, ela passa a chamar-se
borralheira, em vista de fazer os trabalhos mais pesados da casa e deslocar-se do
quarto que antes era seu, para as proximidades do borralho da cozinha.
Pela perspectiva de Propp, esse dano causado à protagonista precisa ser
restaurado, no sentido de restabelecimento da ordem primeira: “Maria borralheira”
precisará deixar a casa paterna para encontrar fora dela o equilíbrio inicial do conto.
Para isso, em sua jornada, ela contará com a própria astúcia, além de objetos mágicos
e de ajudantes que a auxiliarão a derrotar os oponentes. Inclusa a própria beleza, seus
atributos como compaixão, paciência e bondade são alguns dos predicados edificantes
que juntamente com a malícia e a sagacidade, vão ser utilizados como auxiliares para
reparação do dano sofrido, diferindo-a da “Cinderela” de Perrault, sempre muito
bondosa e ética.
Somente na versão de Gomes não consta o benefício feito por Borralheira às
três velhas que são as bruxas bondosas (limpou-lhes a casa), que lhe retribui com ouro
(Romero) e desejos de bom fado (Freitas e Lima). Quando perguntada sobre a origem
daqueles prodígios, em desagravo às maldades impostas pela madrasta e irmãs,
Borralheira lhes ensina o contrário: em vez de limpar, devem sujar a casinha das
velhas. Isso provoca a ira das velhinhas, que retribui às irmãs de Borralheira com “rabo
de cavalo na testa” e “porqueira de cavalo pela boca” (Romero); de outro modo,
“defecar pela boca só cocô de jumento” e “cascos de cavalo nos pés” (Romero e
Freitas/Lima).
Essa reação da personagem lhe confere um toque de malícia - comum às
narrativas camponesas - e funciona também como estratégia de retardamento para o
clímax em torno da “festa na cidade” e na “igreja” (Romero), e “festa do casamento” da
irmã de Borralheira (Freitas e Lima).
Em todos os contos, Borralheira vai à festa três vezes, configurando este fato ou
o baile como o momento de transformação da personagem. A revelação de sua beleza
92
ornamentada por “vestido da cor do campo com todas as suas flores” (Romero), “rico
vestido de veludo” (Gomes) e “traje de uma princesa” (Freitas e Lima), a Borralheira
consegue, por meio de um objeto mágico comum às três narrativas, uma varinha de
condão.
Mistério que seduz o príncipe, a tripla fuga de Borralheira é o ponto máximo da
narrativa e determina a expectativa de preenchimento dos elementos que formam o
imaginário coletivo em relação ao conto: “chapim”, em Romero; “sapatinho de
esmeralda”, em Gomes e simplesmente “sapato”, com o reforço de um “anel”, em
Freitas e Lima. Motivo de identificação da personagem, o sapato é também o elemento
que liga Borralheira à representação de dois mundos diferentes: o que ela habita e o
que ela almeja. Para a passagem do plano cotidiano ao espaço dimensional
maravilhoso, o sapato e o anel (Freitas e Lima) são chaves que também ajudam a
separar a verdadeira das falsas heroínas.
De acordo com o esquema comparativo proposto por Lluch (2004), para
evidenciar o caráter de movência do conto “Maria Borralheira”, segue uma tabela em
que, na coluna da esquerda, identificam-se os elementos que caracterizam a história e
as personagens das versões citadas, e nas colunas da direita, verifica-se o que
permanece e o que muda em cada uma das versões.
Tabela 1
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
Relato inicial do
conto e descrição do
pai e da
protagonista
“Havia um homem
viúvo que tinha uma
filha chamada Maria”.
“Era uma vez um
homem casado que
tinha uma única filha,
muito bonita, que se
chamava Maria”.
“Maria Borralheira ela era
filha de um reis”
.
93
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
Orfandade da
personagem
Não consta
“pela idade de sete
anos, ficou órfã de
mãe”.
“Então esse reis ficou
viúvo, e ela ficou
pequenininha. (...) ela
tinha sete anos”.
Descrição da
protagonista
Menina
Menina
Princesinha
Atributo inicial da
madrasta
“muito boa e
agradável”.
“dá pão com mel”.
“bruxa,
mandingueira/bruxeda”
Transição da
condição familiar e
social da
protagonista
“tudo que havia de
mais aborrecido e
trabalhoso no trato da
casa, era a órfã que
fazia”.
“O serviço era pesado
e difícil para Maria
que, por qualquer
coisa, (...), apanhava
da madrasta surras...”
“Ai, então, Maria foi se
criando naquele
sofrimento, ela judiando
muito com Maria,
judiando...”
Descrição das irmãs
Não consta
“menina má,
zombava e humilhava
a pobre órfã”
“num era de nada que era
umas... umas pé-de-boio”
A protagonista
ganha novo nome
“vivia muito suja no
borralho. Daí lhe veio
o nome de Maria
Borralheira”.
“a quem apelidava de
gata borralheira”.
Não há troca de nome,
porque a protagonista já é
apresentada como “Maria
Borralheira”.
94
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
Afastamento do pai
“... mas por fim teve
de ceder à vontade
da mulher”.
“... mas continuou na
sua trabalhosa vida
de viajante”.
“...o reis nunca via ela,
que elas num deixava ele
ver ela de jeito nenhum”.
As provações
impostas à
protagonista
“...a madrasta lhe deu
uma tarefa muito
grande de algodão
para fiar”
“...fez a menina
cozinheira da casa...
(...)...foi dada à gata
borralheira a
obrigação de cuidar
da vaquinha”.
“- Oh, você hoje vai lavar
essa trouxa de roupa
debaixo de penas e
morte”.
O meio mágico lhe
passa às mãos
“Maria tinha uma
vaquinha, que sua
mãe lhe tinha
deixado; (...) A
vaquinha lhe disse:
Não tem nada; traga
o algodão que eu
engulo, e quando
botar fora é fiado e
pronto em novelos”.
“... possuía uma
vaquinha que, havia
tempos, quando ficou
órfã, lhe dera seu
padrinho...”
“Aí, ela... deixa que a
mãe dela quando morreu,
deixou uma vaquinha pra
ela de lembrança pra...
(...). Ela disse: – Tem
nada não, Maria, bote
essa trouxa de roupa aí
no chão. Aí, ela botou a
roupa no chão, aí, a vaca:
- Lapt, lapt, lapt, lapt”.
95
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
Sacrifício do
primeiro meio
mágico
“...a mulher se fingiu
de pejada e com
antojos e desejou
comer a vaquinha de
Maria”.
“- Sua madrasta vai
impor-lhe que eu seja
sacrificada para um
banquete no dia dos
anos da menina má”.
“- Não... – aí, a veia disse
– não, mas eu tô
desejando comer o figo
da vaca e só... e só serve
se for dela”.
Descoberta do
segundo objeto
mágico
“Morta a vaca, a
Borralheira seguiu com
o fato para o rio, lá
achou nas tripas a
varinha de condão, e
guardou-a”.
“Quando lhe mandarem
que lave minhas tripas
no córrego, procure
dentro de uma delas
uma varinha de
condão”.
“Aí, quando mataram a vaca,
ela botou o fato na vasilha e
foi lavar. Quando chegou lá,
começou lavando a...
lavando, lavando, aí,
encontrou a varinha”.
Prestação de
serviços a doadores
“Adiante encontrou
um velhinho muito
chagado e morto de
fome e sujo. Lavou-
lhe as feridas e a
roupa e deu-lhe de
comer. Este velhinho
era Nosso
Senhor”.(...) Mais
adiante encontrou
uma casinha muito
suja e desarrumada,
e com os cachorros e
gatos e galinhas
muito magros e
mortos de fome”.
Não consta.
“... tem uma casa
dum...dum...dumas
velhinha acolá, umas
pelengrinazinha,
coitadinha... (...) Então,
eu chego lá, tá a casinha
delas suja, aí...”
96
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
A protagonista recebe
ajuda mágica
“Quando viram aquele
benefício, a mais moça
disse: ‘Manas, faiemos;
faiemos, manas:
permita a Deus que
quem tanto bem nos
fez, lhe apareçam uns
chapins de outo nos
pés’. A do meio disse:
‘Manas, faiemos,
manas: permita a Deus
que quem tanto bem
nos fez, lhe nasça uma
estrela de ouro na
testa”.
Não consta
“Quando as velhinhas
chegava, dizia desse jeito: -
Oh, meu Deus, quem fez
essa... esse benefício a mim
e a meus bichos, Deus seja
o acompanhante dela no
todos os passos da vida
dela, e que tudo de bom
chegue na mão dela, e tudo
que ela desejar a fazer ela
faça com toda rapidez”.
A protagonista
engana suas
opositoras
“...quando
encontrarem um
velhinho muito
feridento, metam-lhe
o pau, e dêem muito;
mais adiante, quando
encontrarem uma
casa com os
cachorros e gatos
magros,
emporcalhem a casa,
dêem nos bichos
todos...”
Não consta
“Aí, mas aí, ela disse ao
contrário com as moças,
porque elas eram
invejosas”.
97
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
Primeiro castigo das
opositoras
“Manas, faiemos,
manas: permita a
Deus que quem tanto
mal nos fez, lhe
nasça um rabo de
cavalo na testa”.
Não consta
“-Ô, meu Deus do céu! Ô
que covardia que fizeram
dentro da minha casa!
Menina, eu tenho fé em
Deus que quem fez isso
há de... de... de defecar
pela boca só cocô de
jumento”.
A festa
“...houve três dias de
festa na cidade, e
todos de casa iam à
igreja, menos a
Borralheira...”
“...festa em honra do
aniversário da
princesa daquela
terra. Os festejos
deviam se prolongar
por três dias..”
“Aí, foi a festa, festona
medonha, e ela lá no
borralho”.
A protagonista pede
ajuda ao objeto
mágico, pela
primeira vez
“Minha varinha de
condão, pelo condão
que Deus vos deu,
dai-me um vestido da
cor do campo com
todas as suas flores.
(...) Maria pediu
também uma linda
carruagem”.
“- Minha varinha de
condão, pelo poder
que tem, faça que
apareça aqui um rico
vestido de veludo,
sapatos, jóias,
criados e carruagem,
tudo encantado, para
que eu possa ir ao
baile da princesa”.
“- Minha varinha de
condão, eu quero que
você me dê um... todos
os trajes que uma
princesa precisa pra se
arrumar como princesa,
pra mim assistir essa
festa da... aqui”.
98
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
A protagonista é
auxiliada pela
segunda vez
“Minha varinha de
condão, pelo condão
que Deus vos deu,
dai-me um vestido da
cor do mar com todos
os seus peixes, e
uma carruagem ainda
mais rica e bela que
a primeira”.
“... o vestido de Maria
era todo enfeitado de
prata e os sapatos de
esmeralda”.
Não consta
O príncipe se
apaixona por ela
“Quando lá chegou, o
povo ficou
esbabacado por tão
linda e rica moça, e o
filho do rei ficou
morto por ela”.
“O príncipe, que
dançou com ela de
par constante, pediu-
lhe a sua mão em
casamento”.
“Teve um príncipe que
ficou doido, doido por ela,
o príncipe filho do reis
fulano de tal, um colega
de papai...”
Terceira ajuda
“Maria então pediu
um vestido da cor do
céu com todas as
suas estrelas e uma
carruagem ainda
mais rica”.
“O vestido era todo
de ouro e os sapatos
de cristal com pedras
de bril
hante”.
Não consta
99
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
Fuga da festa e
perda do sapato
“...porém ela
escapuliu e na
carreira lhe caiu um
chapim do pé, que o
príncipe apanhou”.
“...de madrugada,
sem que ninguém
esperasse, Maria saiu
de surpresa ... (...) Ao
entrar, porém, na
carruagem, que partiu
a toda disparada,
deixou cair um dos
sapatinhos...”
“Mas aí, deixa que ele...
ele pode ainda ficar com
um sapatinho dela, e ela
jogou um anel pra ele, e
ele... e tinha o nome dela
gravado”.
Procura pela
protagonista
“O rei mandou correr
toda a cidade para
ver se achava-se a
dona daquele chapim
e o outro seu
companheiro”.
“...mandou S. Alteza
que os mordomos e
criados se
espalhassem por toda
cidade,
experimentando o
sapatinho no pé de
todas jovens...”
“Aí, quando esse rapaz
foi andar. Andou, andou,
andou na rua por todo
canto, e moça de gente
pobre, de gente rica, de
todo canto procurando
quem é. Quem era o
nome da... a moça que se
chamava aquele nome
que tinha gravado no anel
e quem era que dava
da... a dona do sapato”.
O desmascaramento
das irmãs postiças
“A dona da casa
apresentou as filhas
que tinha; elas, com
seus cascos de cavalo,
quase machucaram o
chapim todo, e os
guardas gritaram...”
“Nem a jovem era bela,
nem o sapatinho servira
no pé descomunal que o
tentara calçar...”
Não consta
100
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
A nova tentativa de
busca
“Perguntaram se não
havia ali mais
ninguém”.
“- Não há mais
alguma jovem nesta
casa?”
“Então chegou na dita
casa do reis”.
Reação do pai
Não consta
Não consta
“Quando apresentou o
anel, aí, o reis olhou o
anel e disse: - Esse nome
aqui... esse anel é da
minha filha, e o nome é
dela também”.
Tentativa da
madrasta de impedir
o reconhecimento
“Não, aí tem somente
uma pobre cozinheira
porca, que não vale a
pena mandar
chamar”.
“- A gata borralheira!
Essa é uma criatura
suja e desmazelada.
Como poderá ser a
pessoa que
procuram, se nem
tamancos possui!”
“Aí, a mãe dela fez... a...
a madrasta fez logo
pouco, disse: - É. É, mas
ora, que conversa é essa,
que eu nuca vi essa
menina com esse anel?
Reconhecimento da
protagonista
“Ela veio lá de dentro
toda pronta como no
último dia da festa;
vinha encantando
tudo; foi metendo o
pezinho no chapim e
mostrando o outro”.
“Fez-se então a
experiência. E, com
admiração de todos e
enorme contentamento
do príncipe, o sapato de
cristal e brilhantes
servira perfeitamente,
como se para ela fora
fabricado”
“Ela voltou pra trás e se
arrumou toda do jeito, do
mesmo... no mesmos
trajes que era”.
101
Elementos
e
Personagens
Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)
O castigo
“... a madrasta teve
um ataque e caiu
para trás..”
“E as duas perversas,
só não foram
castigadas, como
mereciam, graças à
intercessão de Maria,
cujo coração era de
ouro e não de gente
deste mundo...”
“...ficaram tudo mordida
de inveja”.
O casamento
“Maria foi para o
palácio e casou com
o filho do rei”.
“O príncipe casou-se
com Maria. Houve
uma festa de
arromba”.
“Aí, casou com ela e
pronto, terminou a
história”.
Segundo Zumthor, “movência é criação contínua”, donde a apropriação de uma
história vir sempre acompanhada de duas características que, à primeira vista,
pareceriam incompatíveis: “reprodução e mudança” são dois movimentos que,
combinados, assinalam a tensão que anima todo reconto de um mesmo arquétipo
(2001, p.145). Por não obedecer – pelo menos integralmente - às fórmulas pré-
determinadas, de uma performance à outra, as narrativas poéticas vão,
discursivamente, constituindo-se por intervenções das diferenças individuais,
relacionadas ao contexto de cada narrador, de modo que dados caracterizadores
pessoais, como idade, formação, origem social, etc., interferem na reprodução da
história, a ponto de lhe ressaltar alguma mudança. Essa flexibilidade, que é
determinante para a movência da obra, é também um ponto que amplia as
possibilidades de estilo ou singularidade, com as quais narradores diferentes podem
102
expressar uma mesma narrativa poética, já que “a tradição é série aberta,
indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um
arquétipo” (2001, p. 143).
Sob a perspectiva ortográfica, a narrativa de Freitas e Lima se desvia da norma
culta que caracteriza a linguagem vinculada à escrita dos outros dois contos. Vale
lembrar que tanto Romero como Gomes foram homens de letras e estudiosos da
cultura nacional. Em que pese a linearidade e a unidade dessas narrativas, porque
orientados pelas regras fixas que regem a escrita, os contos de Romero e Gomes
mantêm um certo tom de sóbria artificialidade que os afastam da representação da fala
do conto de Freitas e Lima, cuja espontaneidade revela uma variável lingüística do
português, própria de um falante sem acesso ao padrão da língua culta: uma marca
discursiva denunciadora de uma posição histórica, geográfica e social, que mantem a
contadora muito próxima ao narrador que a representa. Conquanto se considere a
repetição como uma característica que a escrita repudia, diferentemente dos outros dois
contos, que foram recontados por homens hábeis na escrita, a quantidade de vezes e o
detalhamento com que o narrador do conto de Freitas e Lima trata das obrigações de
Maria Borralheira, é uma marca própria de quem conhece o cotidiano dos afazeres
domésticos. Isso se evidencia no tom de tédio e alvoroço com que o narrador recorre ao
processo de lavar a roupa e na repetição dos elementos definidores dessa atividade
caseira.
Entre uma estratégia que integra “o essencial das palavras” definidoras da
estrutura do conto, e outra que, “evasiva”, recalca, censura e descarta algumas
palavras, das quais se pode desvencilhar, a narrativa, assim, se constitui, pela “tradição
memorial transmitida, enriquecida e encarnada”, agora pela voz do narrador de Freitas
e Lima, como o foi, antes, quando colhido dos contadores de Romero e Gomes. Em
suas respectivas comunidades de discurso, “no calor das presenças simultâneas em
performance, a voz poética não tem outra função nem outro poder senão exaltar essa
comunidade, no consentimento ou na resistência” às suas escolhas narrativas
(ZUMTHOR, 2001, p. 143).
Se as escolhas de Romero e Gomes se identificaram com uma comunidade
leitora que tem como pressuposto literário a escrita normativa, as de Freitas e Lima, por
103
serem uma tentativa de representação de uma performance vocal, primam pela
informalidade, que se evidencia, por exemplo, em termos como “pé de boio”, que é uma
maneira prosaica de o sertanejo se referir a quem não tem valor, como é o caso das
irmãs de “Maria borralheira”. Isso muito se deve ao método de recolha e retextualização
de Lima, que primou pela manutenção da voz no escrito. Como resultado, tem-se uma
narrativa que embora também representada pela letra não reprime a fala, deixando,
assim, na superfície do texto as marcas da vocalidade em movimento.
Constituída pela memória, de acordo com Zumthor, a obra da tradição:
É a série aberta, indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um arquétipo. Numa arte tradicional, a criação ocorre em performance; é fruto da enunciação – e da recepção que ela se assegura. Veiculadas oralmente, as tradições possuem, por isso mesmo, uma energia particular – origem de suas variações. Duas leituras públicas não podem ser vocalmente idênticas nem, portanto, ser portadoras do mesmo sentido, mesmo que partam de igual tradição (2001, p.143).
Essa mobilidade, embora também presente nas narrativas de Romero e Gomes,
é mais perceptível na de Freitas e Lima, que, aliás, chega a ter alguns elementos que a
aproximam da narrativa dos antigos camponeses franceses. Tal como naquele conto
trazido por Darnton, o fígado (o figo) da vaca é um elemento comum às duas narrativas,
além de comungarem uma borralheira, cuja descrição se aproxima de um padrão mais
real de beleza.
104
3.5. Dom Anin: a conversa entre textos e o leitor entre a letra e a voz
Dom Anin Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela por Dom Anin. Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela. E tinha umas guerra preparada aí – num sei se era em catorze, quando era – e o destino dela dava pra pegar no cangaço que nem cabra home, viu? Aí, um dia ela disse: - Meu pai, se o senhor deixasse, comprasse uma arma pra mim, um rifle ou um fuzil mode eu ir brigar nessas guerra que tão brigando... eu queria. Aí, o veio disse: - Mas minha filha, num dá não! Se você fosse um rapaz, eu deixava você ir, mas você é uma moça, num pode não! Lá não tem mulher brigando, só tem home! - Não, meu pai, mas se o senhor deixasse, eu ia. - Não, minha filha, num vai não! Vai não! Aí, ela pegou entristecer, imaginando, com vontade de fugir, mas tinha uma (...), e foi, o véio escutou, disse: - Minha véia, o que é que se faz com essa fia? Aí, a véia disse: - É cumprir o destino dela! (CPBC, p. 169).
Nessa representação da performance do contador José Herculano da Rocha, é
possível identificar o tema da donzela guerreira tão caro a Guimarães Rosa (Grande
sertão: veredas), quanto presente em versões de narrativas tradicionais de outras
culturas, além da brasileira. De Palas Atenas a Mu-lan, passando por Joana D’Arc entre
outras, ficcional ou não, a figura da mulher que se traveste de homem e vai à guerra é
recorrente, seja na mitologia, literatura ou história. De acordo com Zumthor, em cada
variante dessas narrativas, ao emergir para reiterar o já dito, o contador/ narrador, por
meio de sua voz, reconhece e traz ao reconhecimento o texto poético em performance,
e, em cada uma delas, é possível perceber traços de vocalidade de outros textos,
trazendo outras vozes, além daquela, através da qual ela transita, no momento mesmo
da performance ou de sua representação, como no texto acima.
Na literatura nacional, a ocorrência do tema dessa narrativa é freqüente e fruto
de inúmeras elaborações que têm como origem o ideário popular arcaico. Resultantes,
muitas vezes, de modificações determinadas por processos sincréticos e aculturações,
à malha já existente de textos que tiveram como eixo principal a mulher guerreira, o
conto D. Anin constitui-se como uma variante singularmente adaptada às circunstâncias
contextuais de seu contador.
105
Sob esse aspecto, é interessante notar que, para dar maior credibilidade à sua
performance, o narrador apóia o discurso narrativo em dados extraídos do universo
sertanejo do contador, quando, no excerto acima, procura situar o campo de ação da
personagem na “guerra de catorze”: um fato real que envolveu a figura do Padre Cícero
e que entrou para a história cearense como a “sedição de Juazeiro” (CPBC, p. 28).
De outro modo, observe-se como na seqüência, por meio da voz da
protagonista, a estratégia discursiva do narrador deixa à mostra alguns elementos que,
por si, revelam marcas sociais e culturais de contexto. Questionada pelo pai sobre a
dificuldade em esconder sua identidade feminina, com riqueza de detalhes a
personagem argumenta como será sua transformação:
- Eu vou dizer a meu pai como é que é. Nós vamo à loja, compra um terno de uma mescla da boa e mando fazer uma blusa e uma calça do jeito de cangaceiro, uma cartucheira e um fuzil e um chapéu de couro bem bom, com a aba virada pra trás todo barrado, aí, fico parecendo um home (CPBC, p. 169).
Esse fragmento de discurso representando a protagonista do conto confirma a
colocação de Zumthor quanto à dupla função da memória: se coletivamente ela é
guardiã de todo um repertório de manifestações da tradição, do ponto de vista individual
e discursivo, ela fornece subsídios para sua transformação.
Tratando-se de contos tradicionais, ao lançar mão da memória, o poeta contador
utiliza-a de acordo com a própria capacidade de organizar o discurso e planejar sua
performance vocal. Servindo-se da fonte, o contador transforma o que antes era
virtualidade em matéria narrativa e lhe impõe um aporte pessoal, donde uma
performance vocalizada jamais ser igual à outra, e, em se tratando de sua
representação pela escrita, também. Sendo “reprodução e mudança”, a arte da tradição
se caracteriza também pela movência, já que esta é “criação contínua” em cima de algo
preexistente (ZUMTHOR, 2001, p. 145).
Essa mobilidade converge para a intervocalidade que instaura a comunicação
entre textos que portam variação sobre o mesmo tema. Um “nomadismo” (ZUMTHOR,
2001, p. 145) que nem sempre se manifesta com a mesma expressão poética, como se
observa no extrato retirado de “A filha do pirata”, de Cícero Vieira:
106
Cidinha disse: papai quero aprender a lutar com esta espada bonita o senhor vai me ensinar pois eu quero depois de treinada não temo a quem encontrar. Antonino respondeu: minha filhinha querida você vai é estudar para ter prazer na vida mas não lutar com espada essa vontade é perdida. Se tu fosses homem sim poderia te ensinar mas como és u’a moça precisas é estudar isto sim é necessário mas não aprender a brigar. Disse Cidinha: papai seu ideal eu não mudo quero treinar na espada e também ir ao estudo que a pessoa no mundo é bom aprender de tudo. [...] (VIEIRA apud: GALVÃO, 1998, p. 148)
Diferente na forma, mas não na configuração da personagem, o poema de Vieira
delineia o mesmo perfil da prosa que representa a performance de Herculano, qual
seja, traça o percurso de transformação da figura feminina. Não satisfeitas com o que
lhes reserva o destino, as personagens dos dois textos lutam por um outro estatuto que
lhes forneça mais autonomia.
Embora nos dois textos sejam trabalhadas formas diferentes de expressão, a
intervocalidade que se estabelece entre eles não fica restrita somente à personagem.
No nível discursivo, os dois contadores ou cantadores – como é costume dizer no
nordeste brasileiro -, demonstram habitar o mesmo território sertanejo, onde as práticas
narrativas em prosa ou em cordel se complementam como meio de expressão popular.
Em prosa ou em versos (sextilhas), as duas histórias portam a prosódia sertaneja, e,
cada uma à sua maneira comporta uma bivocalidade que se constitui pelo diálogo entre
a filha que argumenta com o pai, tentando convencê-lo a deixá-la assumir uma atitude
viril.
107
Observe-se, no entanto, que essa bivocalidade extrapola o nível das
personagens, quando se constata (como nos excertos acima) que, na rede de
comunicação das obras da memória, “a corrente intervocal passa por toda parte”, de
modo que “todo texto repercute os ecos de outros textos do mesmo gênero”
(ZUMTHOR, 2001, p.147).
Maria Gomes Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir
convenientemente. [...] Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. [...] Uma voz misteriosa disse: - Maria Gomes? O jantar está na mesa!
[...] - Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar a você e
completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.
A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.
Aí procurou empregar-se e sendo robusto, bem feito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.
O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por que, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas jóias. O príncipe dizia à rainha-velha:
Minha mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não! [...] (CASCUDO, 1997, p. 47)
Recolhido por Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, o conto “Maria Gomes”,
embora inicialmente reflita o abandono na mata representado em “João e Maria”, na
seqüência também desenvolve o tema tratado nas duas histórias anteriores. Após ser
alimentada e permanecer numa casa onde recebe ordens de uma voz misteriosa, a
protagonista se veste de homem e tem posta à prova sua coragem e destemor,
envolvendo-se em lutas das quais sempre sai vitoriosa.
A incidência, nas três narrativas, de uma protagonista que guerreia como um bravo,
permite a definição dessas manifestações poéticas tradicionais, como um processo
contínuo de recorrência a elementos semelhantes, embora quase sempre, resulte numa
finalização diferente. A tradição, como o “lugar de relações intertextuais”, confere,
assim, aos temas dos contos orais, não só uma qualidade referencial que possibilita a
108
continuidade, mas também um movimento de recriação e renovação (ZUMTHOR, 1997,
p.23) das narrativas que são apoiadas pela voz.
Donde a autoridade particular de que, no seio da tradição, é dotada a voz, inspirada pela memória, a qual sozinha lhe confere sua perceptibilidade. O discurso que ela pronuncia, ligado mais do que outros às formas experimentadas, mais sujeito às pegadas de um incontrolável passado, é também mais eficaz do que qualquer outro; o que diz essa boca parece mais opaco, requer atenção de maneira mais insistente, penetra mais fundo na lembrança e aí fermenta, confirma ou revolve os sentimentos vividos, alarga misteriosamente a experiência que eu, ouvinte, creio ter de mim mesmo, de ti e desta vida. O único fato é que esse homem está em vias de nos dizer neste dia, nesta hora, neste lugar, entre as luzes ou as sombras, um texto que talvez eu já saiba de cor; o fato de que ele se dirige a mim, entre aqueles que me cercam, como a cada um deles, e de que preenche nossas expectativas; aquilo que ele enuncia é dotado de uma pertinência incomparável; é imediatamente mobilizável em discursos novos; integra-se saborosamente no saber comum, do qual, sem perturbar-se a certeza, suscita um crescimento imprevisível (ZUMTHOR, 2001, p. 150).
O leitor entre a letra, o sentido, o ritmo, o som...
Embora tenha um passado vocal, o conto “Dom Anin” é apresentado neste
trabalho pela mediação da escrita. A passagem do contexto oral para o escrito
determina a diferença de expressão que transmuda o sentido da performance, antes
gestual e vocal, para sua representação por meio da letra.
Do ouvinte ao leitor-performer, o lugar deste não pode ser visto sob a perspectiva
de uma estratégia autoral - em função do leitor-implícito, como postula a estética da
recepção - mas sim, a partir do ponto de vista de uma expressão verbal que se oferece
enquanto ato de fala, como um recurso aproximativo dialogal. As entonações verbais e
variações dialetais do contador dão o tom e o ritmo dessa aproximação. Embora se
admita a perda do evento contextual, a retextualização do ato vocal do contador de
“Dom Anin” possibilita recuperar sua performance, por meio da representação de sua
linguagem, da imagem do seu discurso. Compreendendo a leitura poética como
possibilidade de despertar imagens em latência no livro, cabe ao leitor seguir as
pegadas da voz que a escrita não cala.
Todavia, falar de tom e ritmo no espaço reservado à leitura significa admitir que
há som onde, aparentemente, só há letra. Embora pareça paradoxal, essa idéia parte
109
da afirmação de que “a imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato
direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (BOSI,
2000, p. 19). Vocalizada ou escrita, a palavra persegue a construção da imagem
poética. É o que lhe dá sentido. “E como tudo é sentido na linguagem, no discurso, o
sentido é gerador de ritmo, ao mesmo tempo em que o ritmo é gerador de sentido,
sendo os dois, inseparáveis”12 (MESCHONNIC, 1990, p. 215).
Sentido e ritmo, “se o sentido é uma atividade do sujeito, se o ritmo é uma
organização do sentido no discurso, o ritmo é necessariamente uma organização ou
configuração do sujeito no seu discurso”13 (MESCHONNIC, 1990, p. 71). Nessa
perspectiva, isso explica o motivo do discurso estar sempre relacionado às condições
sociais e históricas que determinam o sujeito que o produz. As palavras escolhidas por
esse sujeito se constituem no laço que o une à sua comunidade de discurso, assim
como se impõem aos leitores de seu texto, agora escrito.
Em se tratando de um texto escrito que funciona como representação do
discurso narrativo in praesentia, aos leitores desse texto é dada a oportunidade de
recuperar, no corpo dessa representação, o ritmo e a entonação – porque o ritmo
compreende a prosódia – da voz que o proferiu.
Expressividade vocal que se oferece enquanto signo visual, a melodia que ele
transporta é um modo de entonar a frase, no qual as palavras resultam da vontade de
dizer. A escolha do tom das sílabas se configura num jogo que determina a força maior
ou menor com que são acentuadas, de acordo com a intenção de significar.
Como acontece no conto “João e Maria”, menos que obediência ao esquema
pré-existente da forma narrativa, o discurso é organizado em consonância com o
sentido da fala. Mas esse ritmo não é mensurável, ele é um tempo a ser vivido como
experiência dentro do tempo, sem que se possa estabelecer alguma ordem nos
elementos da sua prosa.
12 Tradução nossa de: “Et comme tout est sens dans le langage, dans le discours, le sens est générateur de rythme, autant que le rythme est générateur de sens, tous deux inseparables”. 13 Tradução nossa de: “Si le sens est une atividade du sujeito, si le rythme est une organisation du sens dans le discours, le rythme est nécessairement une organisation ou configuration du sujet dans son discours”.
110
Todavia, é perceptível a relação entre “as passagens” das unidades do discurso
(MESCHONNIC, 1985, p, 224), por meio de movimentos que implicam oposição entre
a regularidade e a irregularidade com que o narrador marca as unidades sonoras que
formam as palavras. O efeito de sua entoação é o modo como a linguagem possibilita
entender quando é dele ou da personagem a voz representada.
A diferença se constitui na acentuação dominante de alguns vocábulos, como,
por exemplo, o tom nasal usado pelo narrador, para se referir à fala da bruxa, no
exercício de interação com as crianças perdidas. Força de sedução, a ênfase aguda e
vibrante da terminação “im” (netim, dedim, rabim...) mascara a intencionalidade
antropofágica da “velhinha”. Por um lado, ela profere e reitera a docilidade do diminutivo
com o ardor dos que desejam enganar. É a significação de seu discurso.
Por outro lado, a voz que narra escolhe para si mesma um tom divergente, que
busca cindir a simetria que poderia se estabelecer entre os outros modos de expressão,
tanto do narrador, quanto das personagens. Não há linearidade entre as vozes. Isso
fica claro na baixa intensidade de tom narrativo: “Sempre iam e voltavam. Sempre iam e
voltavam. Por onde eles andavam era soltando aquelas pipoquinha pra não se
perderem”.
Não se trata de fraqueza. O tom somenos do discurso segue o fluxo natural e
linear da fala, sem alterações tonais. O tom repetitivo soa como um sinal de
persistência, de resistência mesmo da voz, cujo sentido é narrar. Seu ritmo é continuar
contando. É sua significância, seu valor expressivo.
Ao signo que representa a voz, associa-se, tal como o canto das sereias de
Homero, a magia e o encantamento de uma escuta. Uma percepção de sonoridade. O
assomo de pensamento de que a letra fala. O vislumbre fantasmático do entorno de
alguém que conta.
Como um instantâneo cultural apoiado na memória da tradição, às palavras do
narrador visualiza-se a instauração do momento popularmente conhecido por “senta
que lá vem história”: “Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela
por Dom Anin. Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela”
(CPBC, p. 169).
111
Quem disse? Qual é a força que o narrador de Dom Anin, evoca? Como um
fenômeno que remete aos mitos e representações culturais subjetivas, no ato de contar
histórias está implícito um sujeito às voltas com todo um sistema de comunicação,
marcado pela coletividade humana. Como que condensadas na voz do narrador, está
toda uma gama de vozes ancestrais, nas quais ele busca amparo. É para elas que ele
se volta, como a pedir licença para o seu narrar.
Imbuído dos procedimentos que lembram os tempos do mundo, quando contar
era um gesto espontâneo e natural, o narrador transporta o leitor para seu espaço
próprio de ação. Agora são dois espaços que em ato de performance se interpenetram:
do texto e do leitor. Um ponto de tensão que se instaura entre a letra de Lima e a voz
de Rocha, fazendo com que Dom Anin não seja somente um texto, mas todo o entorno
e a presença da língua que corporifica a forma poética, e, ao falar peculiar do narrador/
contador, fica difícil, senão impossível, separar o texto escrito da voz. Da sua
singularidade. Porque voz é demonstração do sujeito inserido numa coletividade, e a
inscrição de seu discurso vocal na letra é uma maneira de recuperá-lo
metonimicamente.
Contida na letra, a voz do narrador/ contador pulsa a construção imagética que
define a essência poética da literatura. A afirmação de Zumthor, de que “somente os
sons e a presença ‘realizam’ a poesia”, leva à dedução de que o que faz um texto
poético é o reconhecimento de sua escuta, de modo que “o efeito poético é tanto mais
forte quanto melhor soa a voz” (2005, p. 145). Por essa perspectiva é "música para o
entendimento e não para o ouvido; mas um entendimento que ouve e vê com os
sentidos interiores" (PAZ, 2003, p. 26).
Assim, é como expectador de um teatro vocal e gestual que o leitor se apropria
do objeto narrado. Um leitor performer, para quem o narrador se volta, quando diz: “E
certo meu irmão”; “Aí, se falaram e se apresentaram e se abraçaram e lá vai, essas
coisa... viu?”; “- Isso era uma moça, viu?, num era rapaz, mas tava em traje de home”
(CPBC, p. 171).
112
Considerações finais
“Um texto em se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem”.
(Barthes)
“Ora (direis) ouvir estrelas!”. (Olavo Bilac)
Na introdução deste trabalho, apresentamos um rápido percurso sobre algumas
abordagens dos contos de tradição oral e escolhemos o ponto de vista zumthoriano, por
considerá-lo mais apropriado para o desenvolvimento da reflexão sobre o que significa
literatura, no que diz respeito às narrativas poéticas de Contos Populares Brasileiros
– Ceará.
A proposta parecia simples: partir da observação do corpus proposto e nele
aplicar o conceito de literatura. Todavia, tendo como objeto de estudo registros
impressos de performances orais transcritas na íntegra, essa tarefa acabou por
desdobrar-se, sendo necessário, algumas vezes, trabalhar sobre perspectiva dupla: o
vocal e o escrito. Essa duplicidade se explica, pelo fato de que, em se tratando de
contos orais, a linha divisória entre o vocal e o escrito nem sempre é, assim, tão clara,
porque são textos que funcionam nas duas áreas. Evidência disso está na epígrafe de
Milton Hatoum: “Os grandes livros da infância foram as histórias narradas pelo meu
avô”.
A identificação da precedência de oralidade à escritura na obra escolhida fez
com que enveredássemos por um caminho que buscasse fornecer uma visão
panorâmica sobre o assunto. Uma visão, inclusive, que, do ponto de vista da
performance (cf. Zumthor), desse conta dos modos presencial e escritural de expressão
dos contos orais.
Por isso, inicialmente, colocamos em relação as narrativas poéticas orais e o
conceito de literatura, para refletir sobre os limites entre popular e erudito.
113
Essa reflexão levou-nos à consideração de que há, de fato, noção de literatura
muito associada a manifestações escritas. Outra, mais abrangente, considera que,
essencialmente, a literatura possui uma vertente poética que a aproxima também da
cultura oral, e, por conseguinte, das expressões literárias (poéticas) que nela se
originam.
A hipótese de que, no livro Contos Populares Brasileiro – Ceará (2003), sua
essência poética estaria não somente na constatação da forma e estrutura de conto
popular, mas, principalmente, no resgate da figura do contador, mostrou-nos a real
necessidade de averiguar como se expressa o contador de histórias orais em presença
e como fica sua representação na escrita. Esse procedimento orientou a demonstração
da relação híbrida entre voz e letra, de maneira que uma está contida na outra.
A consciência dessa dualidade norteou este trabalho, e, assim, partimos para a
tentativa de acompanhar o processo que leva à editoração de contos orais. Após uma
breve exposição sobre a coleta de contos no Brasil, percebemos que o diferencial
apresentado pelas narrativas que compõem a obra em questão, é a tentativa de não
interferência no discurso narrativo. Ao contrário de um grande número de outras
edições, os contos da obra escolhida não sofreram, na passagem para a escrita,
nenhuma adaptação do ponto de vista da língua normativa. Apenas foram
transcodificados e retextualizados, recebendo os sinais necessários para figurar numa
página escrita. Um deslocamento, no entanto, que no decorrer da pesquisa mostrou-se
vital para a constatação do hibridismo entre a voz e sua representação escrita.
Na impossibilidade de analisar todos os contos da obra, optamos por aplicar o
embasamento teórico adquirido naqueles mais adequados, conforme já explicitado.
Passamos à discussão sobre a forma e a estrutura dos contos orais, colocando
os conceitos de Jolles e Propp em confronto. Do conceito de formas simples do
primeiro, à noção de funcionalidade interna dos contos de magia do segundo,
percebemos que, tanto um quanto o outro forneciam instrumentos teóricos para o
enfrentamento do corpus. Os contos escolhidos, é verdade, se encaixam no que se
conhece por forma simples, mas também revelam uma estrutura interna, cujo
funcionamento arquetípico foi evidenciado por Propp.
114
A variação discursiva apresentada pelo corpus fez lembrar que Propp já as tinha
considerado, quando observou diferentes versões sobre um mesmo tema, nos contos
de comunidades distintas entre si. Isso se explica pelo fato de que a linguagem dos
contos orais traz estreita relação com o contexto em que são narrados. Nas narrativas
em estudo isso fica claro, nos elementos (cangaço, guerra de quatorze) identificadores
sociais, geográficos e históricos revelados no discurso do narrador.
Nesses contos, embora na passagem da forma oral à forma escrita se perca todo
o engajamento do corpo dos participantes (contador e platéia), a opção pelo modo de
transcrição, privilegiando o não apagamento de marcas dialetais e da maneira de cada
contador se expressar, incute um estilo fonético ao texto escrito, sujeitando as palavras
ao ritmo e ao som da fala.
Tais procedimentos justificaram a elaboração de um capítulo voltado à obra vocal
e à performance, tanto pela perspectiva oral quanto pela da leitura, uma vez que a inter-
relação entre esses dois pontos de observação é claramente dialética. Essas reflexões
foram conclusivas para o direcionamento da pesquisa quanto à percepção da inscrição
da voz na letra, de modo que fosse possível o resgate da expressão da voz viva, como
experiência de leitura.
Municiados pelo aparato teórico que nos possibilitou visão crítica sobre a
transposição do oral para o escrito, pudemos nos lançar ao deciframento do texto
narrativo escrito e à percepção de suas vozes. E, assim, evidenciamos os traços
operacionais de uma escrita que não trabalha a noção de autoria à qual nos
acostumamos em teoria literária, qual seja, a direta relação entre obra e autor.
Embora do ponto de vista discursivo se possa falar em autoria, já que o contador
responde pelo modo de sua vocalidade, por tratar-se de uma representação da voz, a
criação do texto transcrito passa a ser compartilhada entre as instâncias, que, desde a
performance, possibilitaram sua editoração. Nessa representação, no entanto,
prevalece um discurso com poder de instaurar um sujeito que lida com a própria
linguagem e a utiliza para dar forma ao conto, que é reserva da tradição.
Por se tratar de uma arte que transita entre tradição e memória, e que se
presentifica no momento mesmo da performance, a movência é também um modo
próprio desses contos continuarem a se construir infinitamente, num jogo de relações e
115
de trocas intervocais, assim como intertextuais: uma polifonia discursiva que faz com
que palavras e sons sejam objetos de permuta entre vozes e textos que expressam
variações de uma narrativa movente.
Na análise de “João e Maria”, procuramos mostrar como a transcodificação e
retextualização do conto resultou numa narrativa híbrida, com características típicas,
tanto da fala, quanto da escrita, e que funciona de forma ambivalente, numa posição
fronteiriça entre a letra e a voz. Essa associação entre modos de expressão origina uma
escritura com alto grau de dramatização da linguagem, porque está centrada em
recursos fonológicos, conferindo ao texto a vivacidade da palavra em processo de
transmissão.
Como representação da voz viva em performance, “João e Maria” apresenta
também o momento em que o discurso do narrador se esgarça. Assumindo a falha da
memória, ele faz lembrar que, se o esquecimento é espaço para recriação, é também o
lugar de demonstração do que se reteve. E, no seu caso, a retenção se constituiu no
núcleo básico do conto, que o narrador reconta sob uma perspectiva dialogada e pela
alta utilização de verbos de ação e dêiticos, com bastante energia e singularidade
discursiva.
No estudo da “Gata Borralheira”, focamos a questão da movência, da narrativa
nômade e por isso inacabada, cuja palavra que lhe dá forma está sempre em processo
de modificação. Cada reconto de um mesmo tema apresenta sempre alguma diferença,
sendo, portanto, um novo conto.
A constatação dessa reiteração constante, aliás, foi ponto para reflexão neste
trabalho, cujo direcionamento não se desejava comparatista. Procuramos não fazê-lo
de forma que uma fonte antiga confirmasse outra mais recente, mas sim, com a firme
intenção de interceptar os contos em análise em suas movências e nomadismos, ou
seja, no momento em que a reprodução discursiva é também mudança.
Essa mobilidade, também demonstrada com o conto “Dom Anin”, resulta em
variantes e adaptações, nas quais a ocorrência de um mesmo eixo temático possibilita
o diálogo intertextual/ intervocal entre produções diferentes, sejam elas vocalizadas ou
escriturais.
116
Quanto ao nosso corpus, diz-se escritura poética porque a associação entre o
discurso transcrito e a voz que emerge do texto sugere ao leitor uma escuta, que
possibilita a figuração da performance oral, tanto quanto do conto popular, que a voz dá
forma. E o prazer dessa percepção sonora é o critério zumthoriano que define o grau
de poeticidade do texto.
E aqui, pode-se dizer, não se trata de filigrana, mas da voz mesmo se falando. O
“grão da voz”, diria Barthes. Uma troca metonímica da letra pela voz, que faz com que a
mágica de Contos Populares Brasileiros seja quase uma recusa à necessidade de
decodificação, mas da qual não se pode abrir mão, uma vez que ela é o meio que
possibilita a escuta das vozes que estão na origem da obra.
Estratégia da editoração? Sim. A escolha por uma retextualização assim e não
de outro modo, faz com que se diluam as fronteiras entre a escrita e a voz, e com que
aumente o nível de comprometimento dos narradores dos contos com os contadores
originais. A letra é a possibilidade de ouvir o grão de suas vozes.
Como se pode ver, a possibilidade de instaurar essa presença que se perdeu no
transporte do oral para a escrita, emerge da capacidade interpretativa do leitor. É ele
que constrói, a partir da letra, o eco da voz do contador como uma ressonância no seu
próprio corpo em performance. Essa é resultado da conjugação de informações
intersubjetivas e práticas, pondo em movimento imaginativo as figurações colocadas em
cena pela leitura do texto. E, nesse caso, a esse leitor é dada a oportunidade de ler
escrituras de contos vocalizados que atestam o vigor da “oralidade deitada no papel”,
como diz Hampâté Bâ.
119
ANEXO C - Conto "João e Maria"
É a história de João e Maria. Eles eram pequeninim e sempre saiam pros matos,
né?
E pra não se perderem, eles iam soltando pipoca no caminho, não é? Sempre
iam e voltavam. Sempre iam e voltavam. Por onde eles andavam era soltando aquelas
pipoquinha pra não perderem o caminho.
Aí, um dia foi destruída as pipoca. Não sei se alguma coisa comeu ou que
alguém tirou. E eles não acertaram para voltar pra casa, se perderam nas mata e
ficaram andando, andando sem rumo, procurava pra todo canto e não encontravam a
volta... o lugar de saída pra vim pra casa.
Até que viram um lugar, uma cabaninha muito pequenininha fumaçando lá, né?
Aí, chegaram e disseram: - Vamos lá, vamos lá, talvez seja a nossa casa.
E quando chegaram, não era, era uma velhinha que morava lá. Ela ficou muito
animada com eles, disse que ia criar meus netim e ficar com eles pra... que era os
netim dela. Aí, botou dentro de casa e pegou a arrumar eles.
Trancou dentro dum quartim e todo dia ela fazia bolinhos e botava pra eles. E
eles trancado lá, sem ela soltar. E ela disse... e todo dia queria que mostrassem o
dedim, se tavam gordim, que era pra ela matar e comer, né? E eles tinham um rabinho
de largatixa. Quando ela pedia:
- Meus netim, bota o dedim na porta pra mim ver como é que vocês tão, se tão
gordim...
Eles botava o rabim de lagartixa. E ela:
- Mas não tem jeito! Meus netim não engordam! Tanto que eu ajeito vocês!
E dando alimento pra eles, pra engordar, pra matar. Até que um dia eles
perderam o rabinho de lagartixa, né? E ela pediu pra botarem, e eles botaram foi o
dedim. E ela disse:
-Ah! Como vocês tão gordim! Agora eu vou tirar vocês daí e vou preparar a
festinha pra vocês, não é?
Eles disseram:
- É.
120
Mas entristeceram com aquilo. Eles viviam ali doido pra ir era pra casa, né?
E ela preparou a festa e ajeitou muita carne e tudo... Fez uma fogueira... E tinha
um lugar lá que era pra eles irem dançar, não é? E ela preparou lá aquele lugar – não
sei se era uma tábua, o que era – preparou pra eles irem dançar lá, né? E era tocando
lá aquela arrumação pra eles dançar. E eles disseram:
- Mas, vozinha, a senhora vai dançar primeiro, pra nós aprender, que a gente
não sabe dançar... A senhora dança, depois a gente dança.
Aí, quando ela subiu na tábua, que começou passando por lá, eles empurraram
ela dentro da fogueira que tava acesa debaixo da tábua, né? Aí, ela gritava:
- Água, meus netim!
E eles gritavam:
‘- Azeite, senhora vó!
E ela se torcendo até queimar, e não conseguiu matar eles, né?!
Aí, eles já eram maiorzim e conseguiram voltarem... até que um dia acertaram
em casa.
_________________________
Irene Jucá Bezerra. Saboeiro. 13/07/88
Recolhido por: Francisco Assis de Souza Lima e Ronaldo Correia de Brito
AT 327A
121
ANEXO D - Conto "Maria Borralheira"
Maria Borralheira ela era filha de um reis. Então esse reis ficou viúvo, e ela ficou
pequenininha. Mas, aí, ele foi, casou com outra, com uma... bruxa, mandingueira, ela
era bruxeda, num sabe?, esse pessoal que faz bruxaria.
Então ele casou com ela e ela tinha duas filha moça, essa viúva que casou com
ele também. E só viviam maltratando Maria. Aí, Maria era uma criancinha pequena, era
uma princesinha, filha do reis era princesa, né? Mas, aí, ela queria que as dela fosse
quem fosse princesa, e as dela num era de nada que era umas... umas pé-de-boio.
Aí, então, Maria foi se criando naquele sofrimento, ela judiando muito com Maria,
judiando e judiando, aí, quando dizia: - Oh, Maria, você vai... eu quero... – sim, aí, o reis
queria mito bem à menina, adorava a menina. E ele... e elas tinha ciúme, tinha inveja
porque o reis queria muito bem à menina que era pequena e era filha dele, as outra
num era.
Então, elas com... ficaram... disse: - Eu vou... – a veia disse – eu vou dar fim a
essa menina, que eu quero ver por que é que esse... esse reis num fica querendo bem
a minhas fia. Porque ela desaparecendo ele pega o dela, dessa menina, bota pra nós
três.
Aí, disse pra ela: - Oh, você hoje vai lavar essa trouxa de roupa debaixo de
penas e morte. Você... eu quero que você me traga essa roupa lavada e engomada.
Aí, era um monte de roupa sem fim, ela pequenininha, ela tinha sete anos.
Então, ela foi, saiu com a trouxa de roupa chorando de caminho afora. Aí, ela... deixa
que a mãe dela quando morreu, deixou uma vaquinha pra ela de lembrança pra... e
disse pra ela que ela nunca vendesse aquela vaquinha, nunca destruísse a vaquinha,
que ela deixava de lembrança. Aí, quando ela ia passando, chorando num pranto pra lá
pra fonte, pra lavar roupa, aí, a vaquinha atrevessou-se no meio do caminho, disse:
- Maria, que é isso Maria, que tu vem chorando tanto?
Aí, ela foi disse:
- Oh, minha vaquinha, você num sabe o que é que tá acontecendo. A minha
madrasta disse que era pra mim lavar essa roupa hoje todinha e engomar. E onde é
que eu vou ter condições de lavar essa roupa todinha só num dia e engomar?
122
Ela disse:
- Tem nada não, Maria, bote essa trouxa de roupa aí no chão.
Aí, ela botou a roupa no chão, aí, a vaca: Lapt, lapt, lapt, lapt. Comeu todinha a
roupa, engoliu todinha. Quando acabou, ela... aí, Maria botou as mão na cabeça e ficou
os grito:
- Agora é que eu sei que ela vai me matar! Ô, minha vaquinha, pra que você fez
isso? Agora é que eu sei que ela vai me matar, porque você comeu a roupa dela
todinha e pronto!
Ela disse:
- Não se preocupe, Maria.
Quando foi daí a um pedaço, ela botou a roupa todinha pra fora, toda
engomadinha, toda limpinha, no jeito que era pra ser. Aí, disse:
- Toma, Maria, leva a roupa pra casa.
Aí, ela levou a roupa pra casa muito feliz e satisfeita, porque a roupa vinha toda
pronta. Aí, quando ela chegou em casa, foi uma admiração.
- Mas o que é que acontece... Maria, quem foi que te ajudou a tu lavar essa
roupa, Maria?
- Ninguém, minha madrasta, foi eu mesmo, eu mesmo que quis lavar. Que lavei
e engomei.
- Não, Maria, você num pode fazer um serviço tão ligeiro desse jeito.
- Não, minha madrasta, foi eu mesmo que lavei.
Aí, ela disse:
- Pois amanhã você vai lavar outra maior ainda e trazer engomada do jeito que
você trouxe essa. Agora tem uma coisa: uma das menina vai acompanhar você pra ver
como é que você vai fazer.
Disse:
- Não, mas num precisa não... – e tal.
Aí, saiu chorando pra lá pr’onde tá a vaquinha.
- O que é isso, Maria, que tu tem?
- É porque minha madrasta quer descobrir por que é que eu lavei essa roupa tão
depressa e engomei.
123
Aí, ela disse:
- Tem nada não, Maria, deixa ela vim, deixa ela descobrir.
Aí, ela quando foi no outro dia, pegou a trouxa de roupa e saiu bem depressa. As
bicha veia ainda tava dormindo. Aí, quando chegou lá, a vaquinha depressa pegou a
roupa e engoliu, aí, no mesmo instante, saiu a roupa toda pronta. Aí, ela voltou pra
casa, quando chegou lá, botou a roupa lá no canto certo, e as bicha véia ainda tava
tudo dormindo. Aí, quando a... a véia se levantou-se, que era a madrasta dela:
- Maria, eu quero a roupa lavada e engomada.
Ela disse:
- Já tá tudo pronto, minha madrasta.
- Maria, você já foi aprontar essa roupa já hoje?
Ela disse:
- Fui.
- Apois você vai saber... vai descobrir como é que você tá fazendo isso.
- Não, minha madrasta, não se preocupe, deixe comigo. O importante é sua
roupa tá pronta como a senhora quer.
Ela disse:
- Pois... apois óie, amanhã eu quero que você vá me buscar um feixe de lenha,
porque amanhã vai ser a festa do casamento de uma das minhas filhas, e eu quero que
você vá buscar um feixe de lenha. Mas um feixe de lenha mesmo, grande, que é pra
fazer fogo aí, no quintal pra botar panela grande no fogo, só presta com a... muita lenha
boa.
Aí, ela disse:
- Tá bom.
Aí, foi, chorando com o facãozinho na mão, chorando... aí, a vaquinha dela
perguntou:
- Maria, o que é isso, Maria que tu vem chorando?
- Não, é que minha madrasta quer que eu leve um feixe de lenha bem grande
hoje, pra fazer a comida da festa da filha dela que vai casar...
Aí, ela disse:
- Não se preocupa, Maria, vai pra casa, que daqui a pouco a lenha chega lá.
124
Aí, ela foi pra casa alegre, aí, se escondeu pra véia não ver que ela já tinha
chegado. Quando ela deu fé, foi o baque do feixe de lenha no chão! Aí, Maria se
apresentou com o facão na mão, se fazendo que tava cansada.
- Mas Maria, como foi que você pôde alcançar... pôde trazer esse feixe de lenha
desse tamanho por dentro das mata?! Uma lenha boa dessa, só de aroeira, lenha
especial desse jeito!
- Eu trouxe, minha madrinha, a senhora num mandou... minha madrasta. A
senhora não mandou?
- Apois você vai... isso... você tem um mistério, e esse mistério nós temos que
descobrir ele.
Aí, a moça ia casar. Sim, aí, a moça a que ia casar, tinha uma inveja grande
dessa menina, e a menina foi crescendo, foi crescendo, né?, quando... Aí, ela disse...
tem... sim... aí, a moça... a moça... as moça foi e disseram:
- Maria, você vai descobrir a nós por que é que você... lava essa roupa
rapidamente, foi ver esse feixe de lenha desse tamanho!
Ela disse:
- Ô, home, descubro já! Sabe o que é que acontece?, é porque tem uma casa
dum... dum... dumas velhinha acolá, umas pelengrinazinha, coitadinha, num tem nada e
nem pode fazer nada, aí, sai por a rua a pedir esmola, mendingar o pão pra comer.
Então, eu chego lá, tá a casinha delas suja, aí... não! Eu chego lá – num foi nem suja
que disse – eu chego lá tá a casinha delas bem limpinha, uma beleza as casinha... a
casinha delas tudo limpinha. Aí, eu chego, grudo tudim, boto porqueira no chão, faço
tudo no mundo, deixo tudo lambuzado, aí, que quando elas chega, aí, diz: “Ô, minha fia,
quem fez isso fez uma beleza, vou te ajudar em tudo”. Então ela faz o bem, a quem faz
o mal. Aí, é por isso que eu ganho essas coisa tudim.
- Eita, vamos fazer também que é pra nós enricar, nós ter força mesmo!
Mas que quando... a noiva foi a primeira que foi na frente no dia que a ... elas a...
a Maria chegava lá, fazia era zelar a casa das velhinhas, num sabe? Chegava, zelava a
casa das velhinha, varria, botava água pras galinhas, cuidava dos porcos, os bicho que
tivesse fome, ela enchia o bucho do bicho e ficava lá.
125
E quando ela... chega... aí, ela se escondia atrás da porta. Quando as velhinha
chegava, dizia desse jeito: - Oh, meu Deus, quem fez essa... esse benefício a mim e a
meus bicho, Deus seja o acompanhante dela no todos os passos da vida dela, e que
tudo de bom chegue na mão dela, e tudo que ela desejar a fazer ela faça com toda
rapidez. As véia dizia era assim com ela, num sabe? Aí... mas aí, ela disse ao contrário
com as moça, porque elas eram invejosa.
Aí, as moça no outro dia, a noiva logo foi a primeira. A noiva com um rapaz rico,
só num era príncipe, mas era rico que nem elas. Aí, então, ela pegou e... e... e foi todas
duas lavar as coisa, a... ô! Grudar. Chegar lá, a casa tava limpinha que tava uma
beleza, Maria tinha limpado, tinha asseado, feito todo o asseio da casa e tal, então, elas
pegaram cocô de porco, de cachorro, terra, lama, tudo em quanto, e melaram a casa
toda, e melaram os pote da véia, encheram os pote da véia de porqueira, tudo quanto
existia de seboseira elas fizeram dentro da casa dessas velha, essas duas velhinha.
Aí, se esconderam detrás da porta. Aí, que quando elas, as velhinha, chegaram
e disseram: - Ô, meu Deus do céu! Ô que covardia que fizeram dentro da minha casa!
Menina, eu tenho fé em Deus que quem fez isso há de... de... de defecar pela boca só
cocô de jumento. E se foi... e se foi uma só, e se foi as duas... e se foi duas ou três, há
de ser a mesma coisa! E criar casco de cavalo nos pés!
A noiva foi a primeira que criou logo casco de cavalo nos pés e ficou falando,
defecando só cocô de animal por a boca. Aí, ela saiu pra casa e só falava: - glug...
glug... glug... e caindo as porqueira da boca. Aí, quando chegou em casa, aí, o... que
disse:
- É hoje os noivo, o casamento dos noivo e tal, hoje é a festa dos noivo.
Aí, que o noivo olhou pra ela, disse:
- Hein como é? A gente casa mesmo hoje?
Ela:
- Nós casa e todinho e num sei quê... – e as merda caindo da boca.
Aí, ele foi e disse... ela foi e disse desse jeito... aí, o noivo:
- Eu quero lá mais casar com uma sebosa dessa! Num quero nem vê-la! Ave-
Maria!
Aí, a mãe dela ficou tudo doida:
126
- Isso foi Maria Borralheira que fez essas bruxaria, ela é bruxeda! Quando ela
chegar... quando ela chegar ao ponto de ela lavar, engomar, rapidamente, trazer um
feixe de lenha daquele tamanho, é porque ela sabe fazer mandinga!
- Não, não foi eu!
- Que num foi eu não?! Foi você! Agora nós vamo dar fim a você pra você num
fazer uma covardia dessa com minha filha! – aí, disse – Puxa daqui! Vai s’embora! Se
tu num for s’embora rapidamente, apois tu... nós te mata nesse instante aqui!
Aí, ela foi e disse:
- Não, mas num foi eu não, mas se a senhora quiser me deixar em paz, e num
bulir mais comigo, nem viciar minha vida, eu faço com que a sua filha ficar do jeito que
era.
- Eu num disse que você é cheia de mandinga?
- Não, num é isso não, é porque... eu... eu vou falar com uma pessoa ali que
sabe.
- Apois vá! Eu quero que essa... ela fique boa nesse instante, que eu deixo sua
vida em paz!
Ela saiu chorando pro lado da vaquinha dela. Quando chegou na vaquinha:
- O que foi, Maria?
Ela contou a história. Aí, a vaquinha vomitou um... um mói de capim assim,
quando acabar, chegou lá e disse: - Tome. Chegue lá e diga a ela que ferva isso aqui e
faça um chá e tome, que ela fica boa.
Aí, Maria correu pra casa, chegou lá fez o chá, aí, deu a ela pra beber, na hora
que ela bebeu o chá ficou a mesma que era. E ficou bem, acabou-se os casco de burro
dos pés, tudo, ficou bem. Aí ela foi, disse:
- Eu num to dizendo, Maria, que você tem mandinga. Olha, você hoje, eu quero
fazer os bolo da... da... do casamento, da festa, e você é quem vai moer o milho
todinho. Essas duas cuia de milho. São vinte litro de milho. Você vai moer todinho e me
trazer para fazer os bolo.
Aí, ela disse:
- Tá bom, eu vou.
127
Aí, quando chegou lá,. A vaquinha disse... aí, ela chorando, que num... num
agüentava moer aquele horror de milho. Aí, a vaquinha disse:
- Que é, Maria?
Ela disse... ela contou a história. A vaquinha disse:
- Me dá esse milho. – Pegou, comeu o milho todinho. Acabou de comer, disse –
Agora demora aí um pouco.
Aí, comeu de novo, pou!, pou!, pou!, mas saiu a... a vaquinha entregou a massa,
saiu toda prontinha (...). Aí, deixa que por trás dela, disso tudo, tinha uma das... das
filha dela reparando o que era que ela ia fazer com aquele milho. Aí, quando ela corre
pra casa, morta de satisfeita:
- Ó aqui, minha madrinha, já moí o milho, já tá aqui!
- Mas Maria, você já moeu esse milho?
- Já.
Aí, a filha dela chegou no mesmo instante:
- Mentira, mamãe! Sabe quem é que tá fazendo todas essas felicidade pra ela?
Disse:
- Hum.
- É a vaquinha dela!
Disse:
- O que, home, é aquela vaquinha dela, aquela vaca dela que a mãe dela
deixou?
Disse:
- É aquela mesma.
Disse:
- Pronto! Vamos matar a vaca dela, e é pra seu casamento, só assim nós tem
carne pro casamento mais ainda do que a que tem.
Aí, não, ela disse:
- Não, num faça isso com a minha vaquinha, num fala isso! Foi minha mãe que
me deixou de herança... – e tal!
- Não, num quero saber! – Aí, disse pro reis – Olha, eu vou matar a vaca de
Maria.
128
Aí... aí, o reis:
- Não num vamos matar a vaca dela não, porque foi a mãe dela que deixou de
lembrança, aí temo outras, tem muitas vaca.
- Não... – aí, a véia disse – não, mas eu to desejando comer o figo da vaca. Eu tô
desejando comer o figo da vaca e só... e só serve se for dela. E se num for, já sabe que
seu filho num tem... num tem... prosperidade.
Então, ela foi e deu ordem pra irem matar a vaca de Maria. Aí, disse a Maria: -
Óia, Maria...
Sim! Deram a ordem pra matar a vaca de Maria. Aí, Maria saiu em toda carreira
num pranto desensofrido. Aí, quando chegou lá, a vaquinha disse:
- Maria, o que é que você tem que tá chorando tanto?
Aí, ela disse:
- Ô, minha vaquinha, eu num é de chorar tanto, se a minha madrasta disse que
vai lhe matar porque tá desejando comer seu figo, e eu num é de chorar tanto, você ser
a herança que minha mãe deixou pra mim, além de tudo me ajudar tanto como você me
ajuda, eu num é de chorar?
Ela disse:
- Apois, Maria, se conforme e quan... que quando elas matarem a vaca... que
quando elas me matarem, você vai e diz a elas... óie, num deixe ninguém lavar o fato...
o meu fato. Você diga que eu sou quem... que você quem quer lavar. Aí, dentro do fato
tem uma varinha de condão, então essa varinha vai lhe servir igual a mim mesmo. Você
vai e tira a varinha e guarda. Em todos os sofrimento que você se encontrar, só é pedir
o que quiser, que ela lha dá.
Ela disse:
- Tá bom. Aí, nesse caso, eu me conformo.
Aí, se conformou-se, foi pra casa. Quando foi no outro dia, disseram:
- Vamos matar a vaca de Maria! Vamos matar a vaca de Maria!
Aí, ela disse:
- E eu é que quero lavar o fato.
Aí, elas responderam:
129
- Ora, se quem é que vai lavar fato! Quem vai lavar é você mesmo, que é gata
borralheira, que é quem pode lavar, não a gente. A gente vai é se preparar pra festa,
vai lavar fato?! Isso é conversa!
Aí, quando mataram a vaca, ela botou o fato na vasilha e foi lavar. Quando
chegou lá, começou lavando a... lavando, lavando, aí, encontrou a varinha, aí, tirou,
guardou, lavou o fato, foi s’embora pra casa. Aí, que quando chegou em casa, foi a...
a... entregou lá tudo, aí, e foi pro borralho.
Aí, foi a festa, festona medonha, e ela lá no borralho. Quando foi na hora da festa
do casamento, ela pediu à varinha de condão: - Minha varinha de condão, eu quero que
você me dê um... todos os traje que uma princesa precisa pra se arrumar como
princesa, pra mim assistir essa festa da... aqui.
Aí, depressa chegou tudo que ela queria. Aí, ela se arrumou-se, tudo. Aí, quando
foi umas hora da noite chegou lá, se apresentou lá. Ah, aí... não! Aí, os rapaz ficaram
tudo abismado por ela, tinha vindo príncipe de todo canto, que era pra casar... a
enteada do reis, príncipe de todas quatro parte do mundo, príncipe adoidado pra chegar
lá.
Aí, ela... teve um dos príncipe que se apaixonou por ela, ficou doido por ela, e
ela... quando chegou a hora que a... a... a... a varinha marcou, a hora que era do
desencanto dela, que era às doze horas, ela correu pra lá e se desencantou-se, Aí,
ficou a mesma gata do borralho.
Aí, quando terminou tudo no outro dia, aí, elas disseram?
- Ô, Maria, tu num viu meu casamento... na festa do meu casamento chegou
uma moça tão linda, uma princesa. Teve um príncipe que ficou doido, doido por ela, o
príncipe filhos do reis fulano de tal, um colega de papai, ficou louco por ela, e ele... mas
ele num sabe nem onde ela mora, nem onde ela existe. Mas aí, deixa que ele... ele
pode ainda ficar com um sapatinho dela, e ela jogou um anel pra ele, e ele... e tinha o
nome gravado. Aí, ele disse que vai caçar, onde ele encontrar ela... essa moça, ele
casa com ela.
Aí, ela disse:
- Eita, será que ele vai encontrar, hein?
Ela disse:
130
- Ora, é fácil. Na cidade é grande e tem muitas moças bonita por aí, filhas dos
reis e tem reis por aí, chegou muitas princesas e pode até ele encontrar.
Aí, quando esse rapaz foi andar. Andou, andou, andou na rua por todo canto, e
moça de gente pobre, de gente rica, de todo canto procurando quem é. Quem era o
nome da... a moça que se chamava aquele nome que tinha gravado no anel e quem era
que dava... a dona do sapato.
Então, chegou na dita casa do reis. Quando apresentou o anel, aí, o reis olhou o
anel e disse:
- Esse nome aqui... esse anel é da minha filha, e o nome é dela também. – Aí,
disse – Maria... – disse o sobrenome, que eu não me lembro agora. Aí, disse – Essa...
essa... isso... esse anel é da minha filha, ela toda vida possuiu esse anel, desde ela
pequena, que foi a mãe dela que deu e ela usava ele aqui, e só pode ser dela.
Aí, a mãe dela fez... a... a madrasta fez logo pouco, disse:
- É. É, mas ora, que conversa é essa, que eu nunca vi essa menina com esse
anel? Nunca vi essa menina com esse anel, isso é conversa!
Aí, disse:
- Pois chame ela aí.
Aí, chamou. Aí, ela veio com os mesmo trapo.
Disse:
Não, num pode não! Uma moça... uma maltratada dessa...
Aí, o rei disse:
- É porque elas tão maltratando muito a minha filha, mas essa menina é minha
filha.
- Mentira sua, home! Que ela num é sua filha, é nós que cria desde pequena!
Aí, ele:
- Que conversa é essa – o reis – que conversa é essa, home? Essa é minha
filha!
Aí... mas... aí, o reis nunca via ela, que elas num deixava ele ver ela de jeito
nenhum. O reis chega chorou quando viu ela. Aí, disse:
- Maria, vá se arrumar no ponto que você se achou-se aqui nessa noite com esse
anel.
131
Ela voltou pra trás e se arrumou toda no jeito, do mesmo... no mesmos traje do
jeito que era. Que ela apresentou-se, quando chegou, ficaram tudo mordida de inveja.
Aí, o príncipe disse:
- Pronto, é essa aqui mesmo!
Aí, casou com ela e pronto, terminou a história.
_________________________
Alina de Melo Freitas. Juazeiro do Norte. 29/12/81
Recolhido por: Francisco Assis de Souza Lima
132
ANEXO E - Conto "Dom Anin"
Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela por Dom Anin.
Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela. E tinha umas
guerra preparada aí – num sei se era em catorze, quando era – e o destino dela dava
pra pegar no cangaço que nem cabra home, viu?
Aí, um dia ela disse:
- Meu pai, se o senhor deixasse, comprasse uma arma pra mim, um rifle ou um
fuzil mode eu ir brigar nessas guerra que tão brigando... eu queria.
Aí, o veio disse:
- Mas minha filha, num dá não! Se você fosse um rapaz, eu deixava você ir, mas
você é uma moça, num pode não! Lá não tem mulher brigando, só tem home!
- Não, meu pai, mas se o senhor deixasse, eu ia.
- Não, minha filha, num vai não! Vai não!
Aí, ela pegou entristecer, imaginando, com vontade de fugir, mas tinha uma (...),
e foi, o veio escutou, disse:
- Minha véia, o que é que se faz com essa fia?
Aí, a véia disse:
- É cumprir o destino dela!
O veio disse:
- Num é possível!
Ela:
- É cumprir o destino dela.
Aí, um dia ela tornou a pedir. Aí, o véio disse:
- Mas minha fia, como é que você quer, se é um cangaceiro pra brigar? Como é?
- Eu vou dizer a meu pai como é que é. Nós vamo à loja, compra um terno de
uma mescla da boa e mando fazer uma blusa e uma calça do jeito de cangaceiro, uma
cartucheira e um fuzil e um chapéu de couro bem bom, com a aba virada pra trás todo
barrado, aí, fico parecendo com um home.
O velho disse:
- Não, mas ainda tem um porém. Um porém.
133
- Qual é o porém, meu pai?
- Ô minha fia, você deve saber sem eu explicar!
Aí, ela disse:
- Não, o senhor explique.
Aí, ela... ele foi e disse:
- O seio!
- Ora, isso eu boto um negócio aí e ataca tudo, tudo, tudo, num tem quem note!
Aí, o véio disse:
- Tá danado!
Ela deu todo jeitim do véio deixar.
- Pois é, minha fia, se a senhora quer cumprir seu destino... vai.
Aí, foram pra loja, comprou da mescla melhor que tinha, mandou o alfaiate fazer
a... o vestuário e as blusa de cangaceiro. – Eu morava em Paraíba e eu vi como era,
viu? Roupa bem-feita! – O certo é que ela se entonou-se... Era assim: um vestuário,
chapéu de couro, cartucheirão danado, cantil do lado – sabe o que é cantil? Carregar
água pra beber, viu? Coisinha de... de borracha.
E certo meu irmão, aí, se despediu dos pai e viajou, viajou. Quando chegou na
guerra, era fumaça de pólvora naquele meio de mundo, passando por riba de gente
morto, isso na carreira, aí, ela era muito disposta, viu? Aí, danou bala pra cima também,
Era pá!, o cabra atirava nela, ela atirava no cabra, se abaixava, corria, mexia pr’aqui,
pr’acolá e lutou muito tempo nessas guerra.
Agora comiam assim: quando chegavam assim numa casa, que o pessoal corria,
o que tinha eles comia e assim foram vivendo um bocado de tempo.
Aí, quando ela já tava enjoada, matou o desrino de brigar nas luta, né? Aí, ela
tava assim num canto, lá vinha um rapaz. Um rapaz desconfiado. Aí, quando chegou:
- Boa tarde!
- Boa tarde!
- Como foi que o senhor escapou, home? – o rapaz com ela, viu?
Ela disse:
- Eu me escapei bem. Que nem o senhor escapou. Como é? O senhor é que
vem pronto, como é que é isso?
134
Ele disse:
- Não, eu tô atrás de escapar! Eu vinha acolá na carreira, aí...
E Dom Anin:
- E eu também.
Aí, o rapaz perguntou:
- Como é que o senhor se chama?
Aí, ela disse:
- Me chamo Dom Anin.
Ela chamava-se Ana, mas botou o nome pra Dom Anin.
- E o senhor?
- Me chamo João.
Aí, se falaram e se apressaram e se abraçaram e lá vai, essas coisa... viu?
Aí, o João perguntou:
- Me diga uma coisa. E o senhor mora longe daqui?
Aí, Dom Anin morava perto, mas disse:
- Eu moro longe.
Aí, deu... deu assunto do lugar que morava. Aí, Dom Anin perguntou:
- E o senhor, onde mora?
Aí, João disse:
- Eu moro bem pertim daqui e eu num tenho pai nem irmão nem m... só tenho
mãe, uma mãe véia. Vamo lá pra casa?
Aí, Dom Anin disse:
- Vamo. – Isso era uma moça, viu?, num era rapaz, mas tava em traje de home.
– Vamo!
Aí, o home seguiu mais Dom Anin pra casa dele. Quando chegou lá, a véia
abraçou o filho João, pensava que tinha morrido nas guerra:
- Ô, meu filho, como se foi, tu escapou? Graças a bom Deus, o Coração de
Jesus, (...) – tudo.
E abraçou o filho. E Dom Anin espiando.
- Ô, meu filho, e esse companheiro, te acompanhou? Donde é ele?
Aí, João disse:
135
- Mãe, esse rapaz é de longe, foi que ele só vinha mais eu, com esse rapaz, nós
se demo a conhecer, ele mora muito longe daqui, e eu moro mais perto, chamei ele pra
ficar uns dois ou três dias mais a gente, uma fuga enquanto ele vai embora pra casa
dele.
Aí, ela falou pra ele... Aí, quando a véia falou pra Dom Anin, já foi conhecendo.
Aí:
- Meu fio, vem cá! – ele voltou pra dentro. Aí, a véia disse: - Ô meu fio, e aquele
rapaz (...) Me diga uma coisa, parece que é uma moça!
A véia, viu? Aí, o home disse:
- E minha mãe já tá caducando? Minha mãe já tá caducando. Que um rapaz que
vive com um armamento daquele, brigando! Minha mãe tá comparando com uma
moça? É não, mãe!
- Meu filho! Hum... hum!...
Aí, Dom Anin volta pra fora, aí... Dom Anin comprou um poldo... o anjo da guarda
dele. Comprou não, apareceu um poldim pra Dom Anin. Toda bem cedo, toda meio-dia,
toda tardinha, Dom Anin tinha que ir pro brejo mudar o poldo. O poldo dando todo
assunto a ele.
Aí, o poldim disse:
- Dom Anin, você tenha cuidado que aquela véia tá descobrindo muita coisa. Ela
hoje vai usar uma experiência pra ver se você é moça ou se não é. Se é home. E tenha
cuidado!
Aí, o poldo ensinou pra ele fazer. Aí, quando chegou em casa, aí, João disse:
- Ô, Dom Anin, essa roupa tá um pouco véia, vamo pra loja comprar umas
fazenda?
Aí, ele disse:
- Vamo.
Aí, a véia disse:
- João, você preste atenção em que roupa ele se agrada. Se ele se engraçar só
de roupa que for pra muié, é muié! Se for só roupa pra home, é home!
Aí, o poldim ensinou a Dom Anin o que é pra fazer, e a véia ensinou o filho. Aí
foram na loja, aí, Dom Anin disse:
136
- Ô João, mas aquele chapeuzão pra nós (...) assenta bem...
Aí, João disse:
- Mas Dom Anin, essa fazenda pra mode nós fazer um vestido...
- Nada, que (...) nada! Bom é aquele terno acolá pra nós, é que assenta, home!
Só se engraçava novidade pra home. Aí, João fez as comprinha, ele também fez,
vieram pra casa. Chegou lá a véia foi logo:
- Meu filho, como se foi?
- Fui bem, minha mãe. Nesse caso, quem é muié sou eu! Porque eu só me
engraçava vestuário tudo pra muié, e ele só coisa pra home.
Aí, a véia disse:
- Meu filho, eu não tô acreditando! Ali é uma moça!
- É não, minha mãe! Minha mãe ta cadu... É não, minha mãe!
- Tá certo, meu filho, certo. Meu filho, vamos usar outra experiência.
Aí, Dom Anin correu pra mudar o poldo. Quando chegou lá, o poldo ensinou
como é que era pra ele fazer. Aí, a véia:
- Meu filho, eu vou assar uma carne de porco bem engordurada, e pra você ir
fazer aqui um lanche, antes do almoço. Eu boto a carne no espeto, quando ela tiver
correndo aquela gordura, eu levo pra mesa, e você chame Dom Anin e mande ele partir
a carne. Que se ele partir e lamber os dedo, é muié (Risos). E se num lamber, é home.
Aí, a véia assou a carne, só que botava a carne ali quando ele chegasse. Aí:
- Chega meu filho, venha cá mais o rapaz.
Aí, quando sentaram ali, a véia veio com a carne chiii!, descendo a gordura. Aí,
botou ali na cuia da farinha, aí, o João disse:
- Parta, Dom Anin.
Aí, Dom Anin só fez, lá na farinha, (...), com uma vontade de molhar a boca, mas
num podia, né? Tava ensinado. Aí, partiram a carne e comeram. A véia lá pra dentro
escutando. Quando acabou:
- Ô, mãe, já acabemo. Traz o café.
Tomaram café.
- Meu fio, como se foi?
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- Minha mãe, só quem lambeu os dedo fui eu. Dom Anin num lambeu os dedo de
jeito nenhum. Será que minha mãe tá enganada? Será que quem é muié é eu?
Aí, a véia:
- Num tem nada com o peixe, mas ali é uma moça. Mas, meu filho, se fosse uma
moça, pra tu casar com ela, eita moça bonita!
De fato, era uma moça... Eu ainda vi ela, viu? Bonita, bonita mesmo! Olha, aí... e
João disse:
- Eh, mãe! É o quê? É nada!
- Tá certo.
Quando foi outro dia, a véia caçou todos meio pra descobrir. Era no tempo da
seca, tava fazendo calor... Aí, a véia disse:
- Ô João, vamo fazer outra arrumação pra ver se a gente descobre.
Tinha uns pé de flor em riba da casa, (...) uma flor encarnada, outras branca...
- Tu chama Dom Anin pra dormir de noite, aqui nesses pé de flor, arma uma rede
pra vocês, vocês se balança, canta uma moda, uma coisa... Quando vocês dormirem lá,
se quando o dia amanhecer, se a rede dele tiver cheia de flor encarnada, é home. Se
for flor branca, é muié.
Aí, Dom Anin correu, foi mudar o poldo. Lá o poldo avisou como é que fazia:
- João... Dom Anin, tu não dorme, cuidado!
Aí, João:
- Dom Anin, vamos... um calor danado, vamo armar uma rede ali, debaixo dos
pés de arvoredo ali pra nós dormir?
- Vamo.
Pra tudo donde João chamava, Dom Anin ia.
- Vamo!
Armaram a redona, aí, se deitaram, se balançaram, cantaram moda, essas coisa,
o quê. Aí, João agarrou no sono, e Dom Anin acordado. Quando vinha um ventim... xiii!,
a rede de Dom Anin se enchia de flor branca e a... aí, ele tirando as flor... E a de João,
flor encarnada. Aí, Dom Anin tirava as flor da rede dele e botava na rede de João, tirava
as de João, botava na rede dele. E nisso ele levou a noite todinha. Quando João se
estremecia na rede, aí, Dom Anin saía... Roonc! Roonc! Quando João agarrava no
138
sono, Dom Anin cuidava, até quando (...). Quando foi bem cedinho, que João se
levantou-se, a rede dele tava cheia de flor branca, e a de Dom Anin só tinha flor
encarnada, chega tava aquele cordão (...).
Aí, a mãe de João:
- Que foi, meu filho?
- Nesse caso quem é muié sou eu, que aí só tem flor branca, pura, pura! Num
tem encarnada. Em Dom Anin só tem flor encarnada, num tenho nada com isso!
- Mas é muié!
É e num é, aquela teima da... da véia mais o filho, teimando! Aí, Dom Anin por
ali...
- Rapaz, eu vou embora. Já gozei muito... mas ainda vou esperar alguma coisa
aí...
Quando foi outro dia, aí, a véia disse:
- João, só tem um meio pra nós descobrir agora. Fora esse num tem outro. –
Bicho danado é véia né?
- (...) vocês chegaram, não tomaram banho, chame Dom Anin para o banho.
Aí, danou-se, não? Aí, danou-se! Mas teve...
- Aí, foi descoberto!
- Foi não, foi o quê! Não, teve jeito.
Aí, João disse:
- Dom Anin, nós num tomemo... vamos tomar um banho naqueles poço.
- Vamo.
Aí, Dom Anin amarrou o poldim bem no beicim do poço (...). Aí, o poldim disse:
- Dom Anin, você hoje vai cuidar pra tomar banho nesse poço, vem um bocado
de gente, e a véia que atrás de descobrir alguma coisa. Você me amarre aqui num jeito,
quando João chegar, que ele for tirando a roupa, você faça que vai tirando também,
que quando eu ver que tá no ponto de tirar, aí eu faço aquele... me enlinho aqui, eu
mesmo me enlinho aqui e faço aquele zoada e aí, você se acocora, esquenta o corpo,
num toma mais não!
- É mesmo! Tá certo.
Aí, chegou em casa, João:
139
- Vamo tomar banho?
- Vamo!
Foram. Saíram com a rapaziada, aquela água de poço. Eles dois, dois rapaz
mais ou meno, né?, ficaram ali de cócoras, esfriando o corpo. Isso num era uma roupa
nem duas não, era bem três roupa, tudo atacado, tudo bem atacado. – Avalie Dom Anin
como tava todo atacado, hein? – Capa por riba de capa e capa e tal.
Aí, os outro tiraram a roupa e jogaram tudo (...) e tchibum! (...) Dom Anin mais
João escutando. Aí, João disse:
- Dom Anin , nós já esfriemo o corpo?
- Já, já.
Aí, Dom Anin foi logo desabotoando o blusão de cima... – João – aí, quando
desabotoou a blusa pra tirar, aí, tirou a ... a camisa de João. E Dom Anin foi começando
desabotoar a de baixo até, quando foi começando a desabotoar, meu irmão, o poldo fez
uma zoada tão grande! Aí, quem tava dentro do poço saiu nu e João acabou de abotoar
a camisa e Dom Anin correu do jeito que tava, aí, o bichim tava... com a corda já
morrendo enforcado. Aí, disse:
- Ô, ia perdendo meu cavalo! Ô... mas... mas rapaz! Ah, João, (...) o sangue
agora, eu tô com o sangue quente num vou tomar mais banho não...
João disse:
- E eu também não posso não. Também não posso não!
Foram pra casa. Aí, a véia:
- Como se foi, meu filho?
- Fui bem.
- Tomaram banho?
- Não, senhora.
- Óie, num tô dizendo! É moça!
- Mas mãe, num teve banho por isso, isso e isso.
Aí, contou tudo, aí, ela disse:
- Ainda tem um negócio pra eu descobrir ainda. Tem um negócio pra eu
descobrir. Aí, disse:
140
- Você chame Dom Anin pra passar três dia com três noite escrevendo debaixo
daquele arvoredo. Eu levo almoço, levo janta, levo café, merenda, tudo pra vocês. Se
ele cochilar primeiro, é mulher, e se não cochilar, é homem.
Aí, Dom Anin... João disse:
- Mas mãe, isso é uma perversidade!
- Não! Agora... agora eu quero saber disso!
Aí, João disse:
- Ô Dom Anin, vamo ver quem agüenta mais sono?
Dom Anin disse:
- Vamo.
Aí, arrumaram as rede, mais um bocado de papel e tinta, lápis, essas coisa,
foram escrever... Na primeira noite João já cochilou. Pouquinho, mas cochilou e Dom
Anin de olho bugaiado. No outro dia a velha veio, e lá vai, lá vai... quando foi nos dois
dia, João já tava bêbado de sono, e Dom Anin de olho bugaiado. Quando foi pra inteirar
três noitecom três dia, João tomou um cochilo tão grande que caiu, ficou lá, morto. E
Dom Anin morrendo de sono, mas não dormiu de jeito nenhum.
Aí, quando Dom Anin disse:
- João! João! – ela nada.
Ora, antes do dia amanhecer, Dom Anin fez uma carta bem-feita, bem notada,
dizendo quem era, quem não era, donde era, donde num era, aí, deixou tudo em cima
dos papéis tudo.
Aí, o povo disse: - Dom Anin acaba de ir s’embora.
Aí, Dom Anin foi até o poldo, o poldo tinha se sumido! – era o anjo da guarda
dele, que era pra (..) ele.
Aí, quando João se levandou-se, que ela veio trazer a merenda com café: - Dom
Anin cadê... João, cadê teu companheiro?
- Dom Anin?
Nada, nada! Foi mudar o poldo. Chega lá, nem poldo nem Dom Anin nem
ninguém, viu? Aí, ele:
- Ôxente, cadê Dom Anin? O que é que houve? Cadê, cadê?
141
Caçou e nada, nada, nada. Aí, correu água dos óio com pena do camarada, fazia
dia que tavam junto, né? E certo que foram juntar os papéis, aí, achou que Dom Anin
deixou quem era, quem num era, pai, mãe, donde era, donde num era! Aí, que João
ajuntou os papéis, disse:
- Eita, minha mãe! É uma moça mesmo!
- Eu num te disse, malvado! Tava de bem te forçar pra tu ir atrás dela! Eu bem
que dizia que aquilo era uma moça. É uma moça, tá vendo?!
- Mas minha mãe!
Aí, João pegou a chorar com desgosto, com pena, essas coisa, (...), lá vai. Aí,
ficou.
Aí, Dom Anin viajou, rapaz, quando chegou em casa, foi uma festa tão grande,
tinha música, tinha sanfona, mas tinha tudo, viu? Foi uma festa tão boa, que levaram
uma garrafa de pinga, só deu pra eu, de tão alegre eu fiquei. Foi, comi um doce e (...) a
cana, e entrou por uma de pinto e uma de pato, rei meu senhor disse que eu contasse
quatro.
José Herculano da Rocha. 02/1980
Recolhido: Francisco Assis de Sousa Lima
AT 514+884
Poldo – sm. – Filhote de cavalo, o mesmo que poldro ou potro
Olho bugaiado – pop. - Olhos esbugalhados, muito abertos
142
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