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MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS

POESIA( 1 9 4 4 - 1 9 5 5 )

A POESIA CIVIL • DISCURSO SOBRE A REABILI­TAÇÃO DO REAL QUOTIDIANO • PENA CAPI­TAL • MANUAL DE PRESTIDIGITAÇÃO • ESTADO SEGUNDO • ALGUNS MITOS MAIORES ALGUNS MITOS MENORES PROPOSTOS À C IRCULAÇÃO

PELO AUTOR

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P O E S I A

Desenho à pena de João Rodrigues

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PO ES IA CIVIL

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P R Ó L O G O

Um tempo havia muito feliz em que eu pedia ao céu raiz

A terra era— julgava eu — sala de espera carinho meu

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Nossa Senhora do Maü Ladrão chegada a hora da coroação

Agrilhoado— antes, depois — chorei dobrado por nós os dois

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PR Ó L O G O

Pelo caminho verde vem Maria A dos seios de rosa a dos olhos de mãe. Pelo caminho sóbrio vem

Maria

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PR Ó L O G O

O jogral do céuriscou uma estrela no manto judeu

E o milagre veiosem perdão nenhum sem forma sem meio

Sobre a palha louracaiu o menino de Nossa Senhora

Menino perfeitocom fomes e prantos, com raivas e peito

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/

Cecília pediu o céu Nossa Senhora não

Teresa pediu as dores Nossa Senhora não

Inês falou ao Senhor Nossa Senhora não

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Helena morreu no circo Joana fugiu de casa Kuth cortou os cabelos

Nossa Senhora não

Senhora por humildade Nossa por submissão

Madalena teve um filho Nossa Senhora não

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Para que houvesse altar para nascer figura para o galo cantar à noite escura

— Aquela que em vida foi desapossada foi morta descida crucificada e ao terceiro dia não foi nada

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III

E uma vez uma vez sóNossa Senhora desesperou

— AH ... Ah .. . AH . . . —

Mas Nossa Senhora é decênciaclaridadepurezamaternidade

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Na revolta que teve não durou

— Desapareceu na poalha do céu

E assim é que ela passa no andorNossa Senhora do Exterior

A que ficou no fundo a que não foi só ao poeta doi

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IV

Alta, seroal, na tarde canora vai Nossa Senhora pelo meloal

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A ver o melão que se há-de comer— se Jesus quiser — antes da Paixão

E quer dos maiores e procuram bem os olhos de mãe quebrados de dores

Céu da Galileia que a viste fu rtar ; brisa, que ao passar na túnica feia

Não tiveste enleio nem religião que a coroação depois é que veio

Foi Nossa Senhora que está no altar sem poder andar livre como outrora

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Quem ali sagrou para os filhos teus os pecados nossos a terra e os ossos do corpo de Deus

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/. N. R. /.

V

Sobre a cruz o ergueram. Assim ele veio ao mundo.

Pedro Paulo Simão Sobre a cruz o ergueram.

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Cânticos de guerreiros (Pedro Paulo Simão)

ódios de velhos monges (assim ele veio ao mundo)

Sobre a cruz o ergueram

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VI

Junto do rio cantam os galos de Jerusalém enquanto amanhece. Na relvagem os dorsos dos cavalos com uma nudês que entontece esperam a hora de amarrá-los à lida, mãe fulva do campo agora, numa estrela, todo branco e sóbrio, enquanto cantam galos

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v i l

Nossa Senhora morreu à hora da missa. Ninguém percebeu. E o mundo que ela tanto amou não teve uma lágrima só!

Mas soaram acordes finais quando ela, de morta, passou com círios de estrelas reais nos pés ainda sujos de pó

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Está agora mais perto do céu sem lá ter entrado, porém.E pede, com o rosto seu naquele menino judeu, que oremos por ela também

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NICOLAU CANSADO ESCRITOR

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Nota do Fiel Depositário

Perdida, entre tanta outra coisa que se perdeu à roda de 1944,

a biografia de Nicolau Cansado moldada em verso jâmbico por

Papuça de Arrebol; sumida com este nas ruas do Cais do Sodré

a documentação para a descascagem ontológica de um ser a todos

os títulos raro na literatura e na vida; inglòriamente perdida tam­

bém a obra em prosa do autor do «A TI» (a qual nunca vi mas disse­

ram, em 1945, ser ainda melhor que os poem as): — restam os versos

que ora se publicam antecedidos de nótula crítica da incansável

polígrafa e companheira do poeta, D. Marília Palhinha.

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de Oliveira Guimarães, lembra-me ter visto um fólio rabiscado pelo

poeta a quando da sua viagem a Espanha, onde, premido pela sua bem

conhecida fome de autenticidade, Cansado fora colher, o mais possível

in loco, alguns quadros multímodos da guerra civil espanhola. Tanto

quanto lembro, e já não lembro muito, tratava-se de um feixe de

ditirambos «ao pobre Federico» claramente datados Agosto-Setembro

de 1943. As numerosas imitações feitas depois e até também lá fora,

deste tema de Cansado, nunca, quanto a mim, farão esquecer a impres­

são deixada pelo Mestre.

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EM T O R N O D A POESIA D E C A N S A D O

LISBOA, 1945 — Os fortes laços de amizade que desde cedo me ligaram a Nicolau Cansado fazem com que seja a expensas de uma profunda mágoa que eu deva pôr aqui uma por assim dizer restrição aos inéditos vindos agora a lume : eles não serão compreendidos «por toda a gente!

Com efeito, só uma escassa roda de iniciados na última fenomenologia poética portuguesa (futurismo, sobrerrea- lismo, nervosismo, etc.) poderá acolher sem surpresa toda a sua mensagem. Uma vez mais, digamo-lo sem disfarce, a contradição fez a obra. E nisto, como em tudo, apesar de

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umas coisas esquisitas, umas audácias aliás mais brilhantes que fecundas, o poeta seguiu a tradição. Tive oportunidade de verificá-lo ante o desprendimento que muitos «homens da rua» — (eu buscava Cansado nas suas incursões aos ha- bitáculos do povo) — manifestaram pela Fantasia Gramá­tica e Fuga, por exemplo *. Alguns chegaram mesmo a interromper-me nestes termos : (tentava eu explicar-lhes a grandeza e a utilidade do poema) : «ó doutor, dê cinco tostões para uma sopa, que ainda lá não fui hoje!»! Em contrapartida, os literatos terão com que regozijar-se. Esses, e mais quem anda a par, sagrarão o poeta Cansado como um grande incompreendido, uma genial vítima de um meio estupefacto.

*

Falar do substractum da sua obra — para quê ? De certo modo, a poesia é o real absoluto, já o disse um editor que também escreve. Atravancador se torna portanto qualquer didatismo, e ainda mais no caso de Cansado. Este homem, que abandonou as concepções burguesas sem por isso ter

* O poema deste título foi perdido pela própria Marília Palhinha,

não tendo aparecido até hoje qualquer cópia. — M. C. V.

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mudado de vida, é um artista muito complexo. Formalmente, não é raro vê-lo brincar com as subtis experiências de um Paulo Neruda. Noutros passos, chama a si Maiakovsky, e, então, que esplendor épico! Noutros, ainda, deita um olhar amigo a, por assim dizer, Fernando Pessoa. E Camões. Conhece a fase íntima. Atravessa a fronteira do religioso. E quando desistíamos de ver nele qualquer coisa mais do que um jogral de prodigiosos recursos, eis que nos oferece as iluminações do Herói, do Raio de Luz, do A Ti! Obra pequena, sim, mas de tentado alcance e forte significado, ousando, mesmo, esperar repercussão, eu quero repeti-lo : ainda é cedo para falar de Nicolau. Não faltará, porém, gente disposta a acusá-lo de ter, ele, o meu santo!, plagiado meio mundo e subsistido, como dizer ?, assim. Eternos incom- preensivos.

Outra coisa : Cansado nunca versou o tema do amor. Inapetência? Excesso de ombridade? Penso que nso. O amor é, para muitos poetas de hoje, um tema de segunda, para não dizer terceira categoria.

Novos luzeiros brilham no estelar do mundo, como Can­sado, certa vez, me disse. E todos compreendemos.

MARÍLIA PALHINHA

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OS POEMAS

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Para A. Casais Monteiro

M IG R A Ç Ã O

Ahnão me venham dizer ahnão quero saber ah_quem me dera esquecer

Só e incerto é que o poema é aberto e a Palavra flui inesgotável!

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A TI

ó minha casta esposa vais sofrendo ... E eu sofro de ver-te sofrer!Espera um pouco! Façamoscomo o caule da rosades-fo-lhada

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Nosso convívio é triste. A vida, errada.Só a tortura existe e o poema é.AhTENHO A ALMA CHEIA DE GAROTOS. Não queiras ah não queiras vir comigo para esta atmosfera do café.

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HERÓI

Do claro sol e dum teatro cheo seriam dignas tão notáveis obras.Ó noite, que em, teu seio tenebroso, tão grandes feitos de armas escondeste!

TOKQUATO TASSO — «Jeru­salém Libertada»

Herói é o meu nome.

Meu olhar frio, arguto não vê coisa que o dome. Meu esforço rudo e sano não desmaia um minuto.

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Sou herói todo o ano.

Quando passar por vós, naturalmente, eom este meu ar simples e no entanto diferente e no entanto diferente do ar do resto da gente não digais : é fulano.Dizei : é o Herói.

O herói, simplesmente.

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REABASTECIMENTO

Vamos ver o povo.Que lindo é.

Vamos ver o povo. Dá cá o pé.

Vamos ver o povo.Hop-lá!

Vamos ver o povo.

Já está.

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BRASILEIRA

Ao Manuel

O vento não varria as folhas,O vento não varria os frutos,O vento não varria as flores ...

E a minha vida não ficava Cada vez mais cheia De frutos, de flores, de folhas

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0 vento não varria as luzes,O vento não varria as músicas,O vento não varria os aromas ...

E a minha vida não ficavaCada vez mais cheiaDe aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento não varria os sonhos E não varria as amizades ...O vento não varria as mulheres ...

E a minha vida não ficava Cada vez mais cheia De afectos e de mulheres.

O vento não varria os meses E não varria os teus sorrisos ...O vento não varria tudo!

E a minha vida não ficava Cada vez mais cheia De tudo.

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LEVE

Leveo roupão que foste e o horror de sê-lo

Leve o traço vermelho

no cabelo

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Leveo em forma de velho

rosto aflito

Leveo jasmim e a neve

sobre o rito

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R U R A L

Como chove, Cacilda!Como vem aí o Inverno, Cacilda!Como tu estás, Cacilda!

Da janela da choça o verde é um prato que deve ser lavado, Cacilda!E o boi, Cacilda!

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E o ancinho, Cacilda!E o arroz a batata o agrião, Cacilda! Já cozeste?

Eu logo passo outra vez.Em prosa, provàvelmente.Arrozinho, Cacilda!Os melhores anos da nossa vida, lida!

— Ausente.

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POEMA

Ao Paulo Éluard

Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.Deixá-lo.

Coitadinho.Carvão de coque.

Matá-lo. Devagarinho. Lá vai ele a reboque. Cavalo.

Cavalinho.Cavalicoque.

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RAIO DE LUZ

Burgueses somos nós todos ou ainda menos.

Burgueses somos nós todos desde pequenos.

Burgueses somos nós todos ó literatos.

Burgueses somos nós todos ratos e gatos.

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Burgueses somos nós todos por nossas mãos

Burgueses somos nós todos que horror, irmãos.

Burgueses somos nós todos desde pequenos.

Burgueses somos nós todos ou ainda menos.

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UM AUTO PARA JERUSALÉM(fragmento segundo um conto de luiz pacheco)

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Personagens, por ordem, de entrada no palco :

0 Orador 0 Servo-Porteiro Matatias, o Sábio Rezingão Eleazar, o Intelectual Snobe Tobias, o Sensato O Menino Jesus 0 Homem da Gestapo

A cena passa-se num tugúrio desmantelado que apresenta bem visível o dístico «Acádémico-Clube dos Sábios de Je-

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rusalém». Tobias e Matatias usam túnica e compridas bar­bas, Eleazar é jovem e traja com distinção. O Orador veste um guarda-pó cinzento, aberto, mangas arregaçadas, chapéu colonial. O Homem da Gestapo aprece numa luxuriosa fantasia abundando em, plumas e aknuletos. Capacete ro­mano na mão direita. Botas de tenentíe.

No proscênio, cadeira e mesa D. João V, em cima de um estrado, para o Orador. Sobre a rhesa, um grande livro fechado, candeeiro, sineta, e o chapéu do Orador. Atrás da mesa um vetusto relógio de caixa alta, sem ponteiros.

O rador — saindo ao proscênio — Minhas queridas se­nhoras, estimados senhores : quando o pano cair sobre a última cena do mundo que já rola atrás desta cortina, per- cebereis que eu nem sequer chego a representar. Que vos aproveite a descoberta! Por expressa vontade do Autor o meu papel resume-se a, como se diz?, cla-ri-fi-car tudo o que vai passar-se neste palco. Por vezes intervirei — tenho poderes para isso. Mas nunca directamente : por interposta figura. Assim uma coisa à grega. Evidentemente, eu, como actor, quereria dar mais. Muito mais. Bastante m ais! — Não pôde ser.

> Enfim, quando as coisas não vão pelo caminho dos nossos desejos, o melhor que há a fazer é levar os nossos desejos pelo caminho que as coisas vão tomando, j Parece-nos. (Tira

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um vasto lenço do guarda-pó e amarra-o ao pescoço). Vou dar início. (Dirige-se à sua secretária, senta-se, abre o livro, faz uma rápida simulação de leitura e encara de novo io público.) A peça é admirável! (Indica o livro) Está aqui toda. Todinha! Uma maravilha. Garanto que nunca vistes disto em lado nenhum. É certo que os actores vão entrar por aí com roupas mais excelentes num espectáculo de feira que no favor da vossa inteligência. Mas não vos perturbeis muito com isso. • É tudo um tudo-nada para disfarçar. O rapazinho que também não traz roupa de cristão também é, oh se é, para disfarçar. (Alteando a voz) E assim é que está certo porque sem disfarce não há cenas e sem cena não há teatro. (Abre-se o pano) Ora muito bem : cena já nós temos. (Apontando) Um Académico-Clube dos Sábios de Jerusalém. Secretárias, tocheiras, janela para se poder res­pirar... (Põe o chapéu colonial na cabeça). Ora pois;

era isto no tempo em que os animais falavam; Jerusalém estava em festa e os meninos fugiam da com­

panhia dos pais;iam aos magotes para os brejos, berravam entre as silvas

até vir a noite;outros metiam-se pelas veredas, iam para a feira ver os

cavalinhos.

Mas este, de que fala o grande livro, não fugira para gozos e arruaças;

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fora procurar os Doutores.

Entra o Servo-Porteiro trauteando uma musicata qualquer. Acende as ve­las das três mesas de estudo que atra­vancam o tugúrio. A sua entrada inter­rompe o Orador, que o fita com cara de pouca paciência.

O rador — P s t! Quero a cena deserta.S ervo- P orteiro — Tenho de sair já, meu senhor?O rador — Sabes muito bem que sim.S ervo- P orteiro — Já? Já? Eu n ã o d e v ia é t e r e n t r a d o .

O p a n o s u b ia , v ia m -s e a s v e la s j á a c e s a s , e p r o n to , n in g u é m

d a v a p e la m in h a f a l t a .

O rador — Ah isso com certeza.S ervo- P orteiro — Sou um tolo, um frustre, um facil­

mente dispensável. Não sei ler nem escrever, embora o meu autor me faça falar com certa elegância.

O rador — Eu sei. As exigências do estilo. Estás aí para dar ritmo à representação.

S ervo- P orteiro — Para dar ritmo, pois.

Breve pausa.

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O rador — Então? Estamos à espera!S ervo- P orteiro — aproximando-se do Orador — Se sou-

besses que bocados de ideias, que espécies de sentimentos fervilharam em mim quando me disseram : «Tu fazes o Servo-Porteiro, fazes o escravo. Entras, acendes a velínha, e de boca bem fechada, tratas de sair». Claro que posso sair, sumir-me, não aparecer mais!

Orador — É o m a is c o r r e c to .

S ervo- P orteiro — Escuta. Tu és quem tudo pode e man­da neste palco enquanto durar a representação da nossa miséria. Peço-te um acto grande, um acto que altere o curso de certos acontecimentos.

O rador — tocando a sineta — Peço que tirem este ho­mem daqui para fo ra!!

S ervo- P orteiro — Diz-lhes, ao menos, quem sou! Ou quem é o que faço nesta terra. Não, o que faço, não! O que às vezes parece que gostaria de querer fazer...

O rador — irado — Mau! Eu não tenho o poder que me atribuis, não posso adiantar-me ao que está escrito neste livro!

S ervo- P orteiro — caindo aos pés do Orador — E ra tão simples! Era tão pequenino! Talvez até depois nem fosse precisa esta peça!

O rador — Bom, de joelhos, não! Levanta-te, chega de

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lamúrias tolas. Se prometes sair mal lhes diga quem és... Mas tens de prometer!

S ervo- P orteiro — Juro, senhor, juro pela cabeça do Pro­feta!

O rador — Este é o Servo-Porteiro da douta Academia dos Sábios de Jerusalém. Não serve para coisa nenhuma a não ser para o que não presta. Nasceu num dia em que a Terra se esqueceu de girar em volta do Sol...

S ervo- P orteiro — Ainda Moisés não tinha escrito as sacras tábuas!

Orador — ...e o homem aproveitou a escuridão para cometer já não se sabe que horrível perfídia. Desde então, ficou assim. Não sabe quem é, desconfia do que pode vir a ser e anda meio tonto à procura de qualquer coisa. Numa palavra: este é aquele que tendo sido criado com alma de criado assim criado ficou por dentro e por fora.

S ervo- P orteiro — num salto — Mentes, ladrão!O rador — friamente — Eu sei que minto. E agora vai

lá para dentro. Ainda não foi a hora da tua verdade.

O Servo-Porteiro retira-se desalen- tadamente.

O rador — Safa! ia estragando tudo! (Retoma a sua mesa e a leitura):Ora pois ;

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era isto no tempo em que os animais falavam ; e o menino Jesus fugiu mesmo : ia procurar os Doutores ; estes reuniam-se todas as tardes nesta cena que aqui vedes ; neste horrível casarão judeu.

Entra Matatias, o Sábio Rezingão; avança majestoso com vários livros a tiror-colo. Vai para a sua secretária e dispõe-na para trabalhar.

O rador — sem interrupção — Reuniam-se à saída dos seus empregos cinco horas cinco e meia ;

e falavam de coisas várias mas profundas : filosofia, reli­gião, costumes — principalmente costumes — ; coisas estas muito acima dos entendimentos vulgares.

Depois das falas vinham os trabalhos. Preparavam um livro— obra colectiva— a que eles davam suma impor­tância.

Título, ainda não tinham. Lá mais para o fim se veria ; mas era certo tratar-se das cem mais lindas maneiras de

grafar o hebraico ; regras, acordos e apêndices.

M atatias — Já esperava isto mesmo. Os meus caros cole­gas andam sempre atrasados. Depois, não há tempo para nada.

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O rador — Matatias, o Sábio Rezingão. Doutor em Lite­ratura, Crítica e Religiões. Empregado nos correios desta cidade. Mulher e filhos na mais negra miséria. Ligações duvidosas, mas, no fundo, um excelente coração. És tu?

M atatias — Discordo de certos pormenores, mas, a traço largo, é esse o meu retrato. Quem to forneceu?

O rador — Está tudo neste livro, meu caro doutor. A vida e a morte, a noite e o dia...

M atatias — Sim ? Deixa-me ver...O rador — reconduzindo Matatias — Querido Mestre!

Nunca me perdoaria se, por mero instante que fosse, o desviasse de um trabalho que sei notável e em boa hora posto em mãos de V. Ex.a!

M atatias — Compreendo. Provàvelmente...O rador — E já anteontem, com o sieur Mabuze... Belo

sinédrio. Não acha?M atatias — sentando-se — Muito obrigado. Não viu por

acaso, já, o doutor Tobias? Como diz? (outro tom) O mundo está cheio de tolos e os sábios nas mãos deles!

Orador — já à sua banca — Muito bem. Siga a peça!

Entra Eleazar, o Intelectual Snobe.Fala atabalhoadamente e com requinte.

E leazar — Não ralhes, querido Matatias... Trago-te uma

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em primeira mão! Calcula tu que Judite, conheces, Judite, a fêmea pública, teve o arrojo de ir ao palácio de Herodes protestar contra o imposto que acabam de lançar sobre a sua gente! (senta-se) Ai, deixa-me contar... Foi um pape­linho! Bateu com as mãos, com os pés, com as ancas, à

porta dos jardins do palácio, e tanta bulha fez, tanta gente juntou, que Herodes apareceu à janela do segundo andar e, zás! concedeu-lhe audiência!

M atatias — sem deixar os alfarrábios — Sim ? E depois ?E leazar — Depois, não sei, é só isto... Mas já há quem

diga que Judite vai vencer Herodes numa batalha de pros­titu ta contra monarca!

M atatias — E é por esses dichotes que te atrasas ?E leazar — Não ralhes, Matatias, eu acho isto tão sensa­

cional ! Ninguém se atreve a levantar a voz quando Herodes está presente, e essa meretriz arrombou-lhe o palácio com as ancas! Que número para «A Voz de Jerusalém»! (inspi­rado) Vou escrever um poema!

Orador — Eleazar!E leazar •— Senhor...O rador — Diz ao p ú b lic o q u e m és.

E leazar — Eu, a falar de mim? Pois muito prazer. Sou Eleazar, o Intelectual Snobe. Tenho muito geito para abrir e fechar as portas por onde os outros entram e saem. (gesto) Reveste-me certa distinção, atraio bem as mulheres e não

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me queixo dos homens. Ando a ver se trabalho num jornal, «A Voz de Jerusalém», escrevi uma tragédia ao gosto persa, «A Tropa de Jerusalém», e tenho praticamente concluídos cinco livros de versos proletários, «O Grito de Jerusalém». Mas é tão difícil publicar nesta terra! O jornalismo, então, é um horror! De forma que me decidi a trabalhar com os sábios e os filósofos... e aqui estou. São muito mais seguros.

O rador — Eleazar.

E leazar — Senhor.

O rador — Diz com quem vives.

E leazar — Ora. Que interessa isso a estes senhores?

O rador — Interessa tudo muito a estes senhores.

E leazar — Vivo com a minha irmã que me sustenta, pois estou desempregado. Por enquanto. A ela não lhe custa : é podre de rica. A nossa casa fica a quatro passos do trono de Herodes, na rua dos milionários de Jerusalém. Mas eu detesto os ricos e estou ao lado dos pobres. São tão infelizes coitadinhos!

M atatias — Pobres de Jerusalém! Que Messias virá para salvá-los! Cheiram tão mal, os desgraçados...

E leazar — Mas os mais infelizes de todos ainda são os pobres de espírito, não é verdade, Mestre?

M atatias — És um vaidoso, Eleazar! Seria melhor que desses conta do muito que há a fazer. Passaste a limpo o

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propósito 4.° do capítulo 6 fascículo 2.° da nossa grande obra?

E leazar — dando um papelinho — Aqui está, quase todo. (sonhador)'?Fi-lo ontem à noite, ao sabor das estrelas e do vento do outono... Que céu maravilhoso o nosso, M atatias... Faz-nos esquecer a arrogância dos legionários de Roma. Ah! por falar nisso! Sabes que a minha irmã vai casar com um fascista desses? A descarada!

M atatias — A uma e uma caem as praças fortes que outrora defendiam, com alto e são orgulho, o povo do Se­nhor... Quem é o intruso?

E leazar — Um Marco Pôncio, ou Marco Estrôncio, ou lá o que é. Um Marco qualquer.

M atatias — Um ig n o r a d o ?

E leazar — Ah, não. Um convencido. Passa as tardes a cacarejar-lhe os Cantos de Salomão.

M atatias — Que humilhação para a Casa de David!E leazar — Pois sim, mas ela gosta. Já com muita negaça

lhe pediu o intercâmbio: quer ler autores romanos. Petrónio antes dos outros...

M atatias — escrevendo— É ............... le, como creme.E leazar — idem — A...............gá, como já está.M atatias — Jó............... t a , co m o c a p o ta .

E leazar — Til, com o p a u - b r a s i l .

O rador — Linda coisa é ver trabalhar ! Mas há trabalho

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que presta e trabalho que não presta. Prestará para alguma coisa a trabalheira destes dois doutores? (Entra Tobias que vai para a sua mesa sem interromper os doutos colegas). Os últimos serão os primeiros. Quem dá aos pobres empresta a Zéus. Entre seja quem for não se mete o sarrafo. Boa noite, Tobias.

T obias — Boa noite.O rador — E s t iv e s t e p a r a n ã o v i r .

T obias — Pela terceira vez.O rador — Fazias mal. Hoje, se desses falta, acabava-se

a obra... (volta a ler) Ora pois; era isto no tempo em que os animais falavam.Dizia-se que Herodes, pai de Salomé, era um antigo aprecia­

dor de cabeças e que lá nisso era ele como a filha servidas no prato todas em cima dos ombros nem uma; ora uma vez, no próprio dia que Jesus escolhera para falar

aos doutores...(Batem a uma porta. O Orador entra em grande

agitação) Respeitável público! Chegou o momento! Chegou o grande momento! Oh, se neste teatro houvesse um carrilhão, uma orquestra de câmara ou até mesmo um pífaro, digo-vos que neste momento tocariam músicas, ouvi- rieis sinos, assobiavam pífaros! Não sabeis porquê? que não sabeis porquê? Ora, sabeis muito bem porquê. O menino

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Jesus vai entrar neste palco! Ele, o filho do homem, ele, o nosso amor, ele, a nossa esperança, acaba de bater à porta deste velho casarão judeu. Bateu à porta porque é uma criança, não sabe que a porta está aberta! Oh, não haver mais luz do que todas as luzes para iluminar a entrada do filho do homem! Eleazar! Bateram à porta! Matatias! To­bias! Larguem isso! Façam qualquer coisa! Oh meu Deus! (Tira o chapéu, limpa o suor da cara e do pescoço e fica longo tempo de cara escondida entre as mãos).

T obias — sem deixar os alfarrábios — Parece que bate­ram a uma porta.

M atatias — Tolice.E leazar — Ouvi bater à porta.M atatias — Não há porta, por que haviam de bater à

porta que não há?T obias — Será o Presidente da Academia? Dizem que

ele enlouqueceu.M atatias — Impossível. Além de não haver porta, ele

não precisa de bater.E leazar — trêmulo — E se fosse a polícia de Herodes ?

M atatias — exasperado— Que parvoíce, Eleazar! A po­lícia de Herodes não bate às portas. Arromba-as.

T obias — Já têm batido, só para disfarçar...E leazar — aterrado, erguendo-se — Para melhor nos

levar! É ela! (grita) A Gestapo!

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M a ta tia s — Se é, estam os perdidos...

T obias — Desterrados,..T odos — Crucificados!M a t a t i a s — O Tratado! Atenção ao Tratado!

Escondem os livros debaixo das secretárias. Brevíssimo silêncio. Fora, batem de novo.

M atatias — É m e lh o r i r l á v e r .

T obias — Não. É melhor esperar.

A voz, fresca, de Jesus, ainda nos bastidores: «Não está ninguém nesta casa? Não ê aqui que se reúnem os Doutores? Não ...» (entra e fica um pouco confuso à vista dos três homens. Mas avança lentamente. Logo atrás, seguindo-o, farejando-o, vem o Servo- -Porteiro).

M atatias — furioso — Ora adeus! É um garoto!T obias — Não te exaltes, Matatias, Ainda bem que é um

garoto!M atatias — repondo as coisas em cima da m esa—-M a s

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quando é que nós vamos poder trabalhar!? Em casa de Eleazar não podia ser, por causa das bailias. Em minha casa, é o que se sabe! No chalet do Tobias, foi o que se viu. / dramático, pondo as mãos) Eli, Eli, por que nos persegues?

/Teremos de ir escrever para o deserto?T obias — O g a r o to n ã o f a z m a l a u m a m o sc a . E d e c e r to

q u e e s te e n t r o u a q u i p o r e n g a n o . . .

J esu s — Não foi engano, irmãos doutores. Eu vim para vos falar.

E leazar — Menino, temos mais que fazer!T obias — carinhoso — Escuta, pequeno. Eu e estes se­

nhores que aqui vês, estamos a escrever um livro de que toda a Judeia se orgulhará. São cinco volumes, percebes?, cinco graaaaandes volumes onde se explica, grafa e deter­mina a mais linda maneira de falar a nossa língua. Ora Herodes, rei dos judeus, escreve e fala horrivelmente mal o hebraico...

E leazar — .. .o aramaico.T o b ia s— ...e se ele sabe do que estamos fazendo haverá

grande sarilho. De forma que das cinco às sete e meia não queremos gente estranha nesta douta Academia.

E leazar — Livre-nos Deus!T obias — Enquanto não acabarmos esta obra...E l e a z a r— ...A nossa grande obra.T obias" ^ - . . . E tu vais brincar lá para fora que é para

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nós continuarmos a labutar pela maior glória de Isçâel. Valeu? Vá, toma lá meio dracma e não maces mais.

J e s u s — sumindo o meio dracma — Mas eu preciso fa­lar-vos. Andei léguas para vos falar.

M atatias — Tobias! Se essa criança não sai imediata­mente, saio eu. Não respeita a velhice, nem a doutorice, nem a filosofia, nem o silêncio! Saio eu, compreendeis ?

J e s u s — batendo o pé — Ai, ai, ãi, ai! deixem-me falar! Deixem-me falar ou, com mil diabos, viro-os a todos em papagaios! Em papagaios, ouviram?

E leazar — rindo a bandeiras despregadas — Em papa... em papa... Ah-ah-ah-ah! Já ganhámos para o susto, agora é para o tabaco! Matatias, ouçamos o rapaz... Quanto mais não seja ele pode trazer à nossa Academia a publicidade de que ela tanto necessita... Olhem-me estas paredes...

T obias — Voto no intervalo. Livros são livros, descanse­mos um pouco destas matemáticas... (anda em volta de Jesus) Tantos são os casos maravilhosos — e inexplicáveis— que se têm dado na Judeia... Tantos rumores correm anunciando a vinda do Messias, salvador e redentor do povo eleito... Não virá ele da parte desse que baptisava no Jordão? Se o expulsamos, ficaremos livres de um sen­timento de culpa, para não dizer remorso ?

E leazar — Além disso, fazíamos uma edição especial do «Diário de Jerusalém». Imagina que furo! UM GAROTO

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DESCONHECIDO VAI FALAR AOS DOUTORES!! Isto em letra-caixão, cursivo dezasseis. E mais abaixo, para o normando sete: «ontem, inesperadamente, entrou na Aca­demia das Ciências, desta cidade, um garoto mal vestido que...»

M atatias — Basta, Eleazar, basta! Ouçamos o rapaz. Antes ele do que tu e creio que não te podes queixar...

E leazar — sentando-se — Pronto.J e s u s — Meus irmãos...

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LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS

( f r a g m e n to )

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Há uma hora, há uma hora certaque um milhão de pessoas está a sair para a ruaHá uma hora desde as sete e meia horas da manhãque um milhão de pessoas está a sair para a ruaEstamos no ano da graça de 1946em Lisboa a sair para o meio da rua

Saímos? mas sim, saímos!Saímos: seres usuais, gente-gente, olhos, narinas, bocas,

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gente feliz gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefo­nistas, varinas, caixeiros desempregados

uns com os outros, uns dentro dos outros tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos

mictórios para apanhar eléctricos, gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro que afinal ainda lá estava apitando estridentemente, gente de luto, normalmente silenciosa mas obrigada a falar ao vizinho da frente na plataforma veloz do eléctrico em marcha, gente jovial a acompanhar enterrose uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina. Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.Humanidade cordial, em suma,com todas as conseqüências disso mesmoe a sair a sair para o meio da rua.

E agora, neste momento — que horas são ? — a telefonista guarda o baton na mala usa os auscultadores

liga elèctricamente Lisboa a Santarém e começou o diao pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou qual­

quer coisa para começar o diao banqueiro sentou-se, puxou de um charuto havano, pensou

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um bocado na família e começou o diaa varina infectou a perna esquerda nos lixos da Ribeira e começou o diao desempregado ergueu-se, viu chuva na vidraça, e imagi­

nou-se banqueiro para começar o diae o presidiário, ouvindo a sineta das nove, começou o seu dia sem dar início a coisa alguma.

Agora fumo, trepidação,correias volantes de um a outro extremo da fábrica isolada, cigarros meio fumados em cinzeiros de prata, bater de portas — pás! — em muitas repartições, uma velha a morrer silenciosamente em plena rua e um detido a apanhar porrada embora acreditem nele. Agora pranto e prantona bata da., manucure apetitosa do salão Azul.Agora, regressão, milhões de anos para trás,patas em vez de mãos, beiços em vez de lábios,crocodilos a rir em corredores bancáriosapesar das mulheres terem varrido muito bem o chão.Agora tudo isto e nada distoem plena e indecorosa licenciosidade comercialpregando partidas, coçando, arruinando, retorcendo o facto

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atrás dos vidros

— um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre às ordens! (a velha já morreu e no seu leito de morte está agora um automóvel verdadeiramente aerodinâmico e a tocar telefonia: and you, and you my darling?)Há uma hora, Isto! Há duas, ISTO!E eu?

Eu, nada. Eu, eu, é claro...

Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove) e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto Penso que a questão é esta: a gente— certa gente— sai

para a rua,cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glóriae há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!Contudo e já agora pensoque os gatos são os únicos burguesescom quem ainda é possível pactuar —vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a...Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou intei­

ramente o gato mas de gato para cima-—nem pensar nisso é bom! Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só

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de olhar para eles!São criaturas, é verdade, calcule-se, gente sensível e às vezes boamas tão recomplicada, tão bielo-cosida, tão ininteligível

que já conseguem chorar, com certa sinceridade, lágrimas cem por cento hipócritas.

E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite foi

comprar para o cinema porque há que ir ao cinema, ele é por força, é por amor

de Deus, ah, não! não! isso não!, não se atravessem nesta bilheteira!!

Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!

Ah, e quem é que vê o logro? A quem é que isto cheira a ranço ?

Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige três quartas de cinema

e sim três quartas partes pretas de lã carneira?Porque é que a pianista compra do Alves Redol quando está a pensar nas pernas e no peito do louro galã

yankee?E porque raio despede o senhor Director três humílimos

empregados

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quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda não viu um que lhe enchesse as medidas?

Com certa espécie de solidariedade

lembro-me de ti, Mário de Sá-Cameiro, poeta-gato-branco à janela de muitos prédios altos Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te, para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto, viva Mário a lançar um golpe de asa e a estatelar-se todo

cá em baixo(viva, principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso

é já outra história...)

E com uma solidariedade muito mais viva lembro-me de ti,'m eu vizinho de baixo, sapateiro-gato-braneo mas no rés-do-chão, desta vez...É curioso que não te possas suicidar só porque a tua janela está ao nível do mundo e que cantes alegremente de manhã à noite com uma casa de seis andares em cima de ti.Também tu foste empurrado, também te disseram: Fora,

gato!Mas achaste isso quase natural (e não o é, deveras?)E agora, guardando em ti todas as tuas grandes qualidades

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vais vivendo um pouco à margem, um pouco no quinto andar...

Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo e decido-me a andar — mas para quê? Mas para onde?As lojas estão todas abertas mas nunca se viu coisa tão

fechadaAh! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!Não sou um proletário — vê-se logo— mas odeio cordialmente a gataria e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoológico me atraem quanto mais estes! — E aqui é que começa o embróglio...

0 pouco amor que eu tive à burguesiadeixei-o todo numa casa de passequando me perguntaram: quer assim? Ou assim?E agora, era fatal, falto ao escritório,falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs.Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos um pouco a casa escura que te deram. - Euestudei música, como toda a gente

(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)

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Não. Por aqui não nos entenderemos.Estudemos outro papel. Outro fim. Outras músicas.

Recomecemos: Um:Estes versos não querem de modo algum ser versos porque quem hoje em Portugal quer de algum modo fazer

versos versos está em muito maus lençóis (este o primeiro artigo da minha constituição)

Segundo:Apesar de tudo, saí para a rua com bastante naturalidade e que vi eu? Que é isto? (E que esperava eu ver?)

Terceiro:(E aqui começa, talvez, o desembróglio)vi também um vapor que ia para o Barreiroe tive pena de não ir com elemas não sou um proletário (não, ainda não)

e atravessar a nado — quem é que disse que pode?

Fiquei-me a vê-lo: primeiro junto ao caiscom um certo ar simpático de proletário dos marese apinhado de gente — tanta espécie dela!Depois a meio do rio, destacado e nítido,

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depois um ponto vago no horizonte (ó minha angústia!) ponto cada vez mais vago no horizonte e de repente, ao virar uma esquina, já depois de outra

esquina,vejo uma nova espécie de enforcado um homem novo em cima de um escadote a colar afixar cartazes deste gênero:

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D I S C U R S O SOBRE A REABILITAÇÃO DO REAL QUOTIDIANO

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DISCURSO

1

Quando aqueles que chegavam olhavam os que partiam os que partiam choravam os que ficavam sorriam

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II

Como a vida sem caderneta

como a folha lisa da janela como a cadela violeta— ou a violenta cadela?

Como o estar egípcio e mudado

no salão do navio de espelhos como o nunca te r embarcado ou só ter embarcado com velhos

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Como ter-te procurado tanto que haja qualquer coisa quebrada como percorrer uma estrada com memórias a cada canto

Como os lábios prendem o copo como o copo prende a tua mão como se o nosso louco amor louco estivesse cheio de razão

E como se a vida fosse o foco de um baço, lento projector e nós dois ainda fôssemos pouco para uma tempestade de cor

Um ao outro nos fôssemos pouco meu amor meu amor meu amor

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III

No país no país no país onde os homens são só até ao joelho e o joelho que bom é só até à ilharga conto os meus dias tangerinas brancas e vejo a noite Cadillac obsceno a rondar os meus dias tangerinas brancas para um passeio na estrada Cadillac obsceno

E no país no país e no país paísonde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoçoe o pescoço que bom é só até ao artelho

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ao passo que o artelho, de proporções mais nobres, chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça, recordo os meus amores liames indestrutíveis e vejo uma panóplia cidadã do mundo a dormir nos meus braços liames indestrutíveis para que eu escreva com ela só até à ilharga

a grande história do amor só até ao pescoço

E no país no país que engraçado no país onde o poeta o poeta é só até à plume e a plume que bom é só até ao fantasma ao passo que o fantasma — ora aí está — não é outro senão a divina criança (prometida) uso os meus olhos grandes bons e abertos e vejo a noite (on ne passe pas)

Diz que grandeza de alma. Honestos porque. Calafetagem por motivo de obras.É relativamente queda de água e já agora há muito não é doutra maneira no país onde os homens são só até ao joelho e o joelho que bom está tão barato

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IV

A velha que vende bananas o velho roxo de calor o rapaz que grita sacanas dêem-me um pouco de amor

A outra viagem por mar o jovem que já é livreiro a camionete a esmagar o túmulo de Sá-Carneiro

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0 sapato branco do réua imobilidade do ratoque rói a ala esquerda do hidro

A mão erecta contra o céu o céu de súbito contracto a água a morte a mosca o vidro

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V

Falta por aqui uma grande razão uma razão que não seja só uma palavra ou um coraçãoou um meneio de cabeças após o regozijo ou um risco na mão ou um cãoou um braço para a história da imaginação

Podemos pois está claro transferir-nos

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e imaginar durante um quarto de hora os séculos que virão— os séculos um e doisda colonização — depoisé este cair na madrugada ardente na madrugada de constantemente sem sol e sem arpão

Faltas tu faltas tu falta que te completem ou destruamnão da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e

obrigada— não, de nenhuma maneira resultante!Nem mesmo o amornão é o amor que falta falta uma grande realmente razão apenas entrevista durante as negociações oclusa na operação do fuzilamento cantante rodoviária na chama dos esforços hercúleos morta no corpo a corpo do ismo contra ismo

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Falta uma flormas antes de arrancada

Falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro

mas que todos os burros se comam a si mesmos e que todos os amores palavras propensões sistemas

de palavras e de propensões se comam a si mesmos muitas horas por dia até de manhã cedo até que só reste o a o b e o c das coisas para o espanto dos parvos que aliás não estão a mais

Isso eu o espero e o façojunto à imagem da criança mortadepois que Pablo Picasso devorou o seu figo sobre o cadáver dela e longas filas de bandeiras esperam devorar Picasso— que é perto da criança, ao lado da boca minha.

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V I

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de te r horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante— ele há tanta maneira de compor uma estante

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Afinal o que importa é não ter medo : fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita

gente :Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fo ra ! — rir

de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

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VII

Queria de ti um país de bondade e de bruma queria de ti o mar de uma rosa de espuma

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vm

Um grande utensílio de amor meia laranja de alegria dez toneladas de suor um minuto de geometria

Quatro rimas sem coração dois desastres sem novidade um preto que vai para o sertão um branco que vem à cidade

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Uma meia-tinta no sol cinco dias de angústia no foro o cigarro a descer o paiol— a trepanação do touro

Mil bocas a ver e a contar uma altura de fazer turismo um arranha-céus a ripar meia quarta de cristianismo

Uma prancha sem porta sem escada um grifo nas linhas da mão uma ibéria muito desgraçada um rocio de solidão.

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IX

E é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir é preciso suor

é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda o fogo de artifício

é preciso o demônio ainda corpulento é preciso a rosa sob o cavalinho é preciso o revólver de um só tiro na boca é preciso o amor de repente de graça é preciso a relva de bichos ignotos e o lago é preciso digam que é preciso

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não falem mais logo mais noite mais nunca depois sim mas não é preciso é preciso é preciso comprar movimentar comércio é preciso ter feira nas vértebras todas é preciso o fato é preciso a vida da mulher-cadáver até de manhã é preciso um risco na boca do pobre para averiguar de como é que eles entram é preciso a máquina a quatro mil vóltios é preciso a ponte rolante no espaço é preciso o porco é preciso a valsa o estrídulo o roxo o palavrão de costas é preciso uma vista para ver sem perfume e outra menos vista para olhar em silêncio é preciso o logro a infância depressa o peso de um homem é demais aqui é preciso a faca é preciso o touro é preciso o miúdo despenhado no túnel é preciso forças para a hemoptise é preciso a mosca um por cento doméstica 6 preciso o braço coberto de espuma a luz o grito o grande olho gelado

10 é preciso gente para a debandada ó preciso o raio a cabeça o trovão

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a rua a memória a panóplia das árvores é preciso a chuva para correres ainda é preciso ainda que caias de borco na cama no choro no rogo na treva é precisa a treva para ficar um verme roendo cidades de trapo sem pernas

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X

As linhas os carros aerodinâmicos a nuvem cinzenta por cima de mim a sapateirinha noiva de três o jovem operário presa de mil o salto que dei galgando o passeio o lápis miúdo no bolso de trás os versos que faço

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sem grande alegria a voz dos amigos amigos amigos negócios àparte sempre (qualquer dia) me darão alento

Bem vêem pensei que a coisa era outra desculpa sou jovem tenho incongruências Pensei... bem, pensei em vida que o fosse não deu resultado não dá resultado

Amigos, dizei, deu-vos resultado?

Resultado o quê?

Abrir a barragem vazar a dispensa brincar ao herói— ou ser herói mesmo

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Herói? Herói como?

Pois é. Sou novato não tenho experiência Já disse : pensei que fosse possível mas pronto. Acabou.Juro envelhecer!

— ó enforcados o tempo passa o tempo passa que desgraça!

Passa nada, amigos!A única coisa que passa é o publicista Azeredo que é chauffeur de praça Paragem. Apêrto.Vai isso? Vai isso?Vai mal, obrigado. Palestras? Pois sim, entrego depois ...E o que é que é?Ah, isso, veremos.

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Cinema. Teatro. Poesia, talvez.Bem, bem ...Bom, bom ...Saúde.Adeus.

Aperto. Partida.

Fico no meu sítio.Lá vem o eléctrico amarelíssimo.

As ruas as casas de zincogravura os barcos que saem a barra que eu vejo o freio nos dentes do burro inocente o forte em Monsanto o santo em Monforte o homem que é fraco o homem que é forte sempre (qualquer dia) me darão alento.

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X I

Hoje, dia de todos os demôniosirei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiroa gente às vezes esquece a dor dos outroso trabalho dos outros o covaldos outros

Ora este foi dos tais a quem não deram passaporte de forma que embarcou clandestino Nãó tinha política tinha física

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mas nem assim o passaram E quando a coisa estava a ir a mais tzzt... uma poção de estrienina deu-lhe a molesa ... foi dormir

Preferiu umas dores parece que no lado esquerdo da alma

Uns disparates com as pernas na hora apaziguadora. Herói à sua maneira recusou-se a beber o pátrio mijo

Deu a mão ao Antero, foi-se e pronto.Desembarcou como tinha embarcado :

Sem Jeito Para o Negócio

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X II

Estou muito zangado tudo isto cheira a trapo e a ervanária tudo isto cheira a hera para estátuas líricas e eu nasci

em perfeitas condições de trabalho que fazer? que fazer? a oxidação seria um escândalo gigante um braço de cristal servindo de sirene às aves trôpegas de tanta música grátis

Nem os teus olhos nem o teu cabelo

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me tiram hoje deste vento de cinzas armazém de retém de sofistas menores lata de tin ta de borrar a vida enquanto não chega a mão definidora

Zangado muito zangado

o vento alisa as frinchas do organizadoanoitecer gerale a morte ronda pertopróxima como nunca da garganta dos lobos

Vamos crianças para a cova espigar um rato cinzento vamos cessando connosco todo o murmúrio

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X I I I

Pequeno tambor orgia modesta o lago tranqüilo a descoloração tintura de brancos e verdes floresta o lago tranqüilo a prostituição candura doçura nos olhos em festa mão no coração

A bola de vidro rola vis-a-viscom as flores que altas são no jardim.Há justos e réprobos porque o senhor quis vingar-se de nós porque sim

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X V

Eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa) num café da baixa por ser incapaz coitados deles de escrever os meus versos sem realizar de facto neles, e à volta sua, a minha própria unidade— fumar, quere-se dizer.

Esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava ver num livro com versos. Pois é verdade. Denota

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a minha essencial falta de higiene (não de tabaco) e uma ausência de escrúpulo (não de dinheiro) notável.

O Armando, que escreve à minha frente o seu dele poema, fuma também.

Fumamos como perdidos escrevemos perdidamente e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta mais espantosa e violenta incompatível e reeonfortável do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros (excepto coisas como vergonha, naturalmente, e mortalhas)

(Que se saiba) é esta a primeira vez que um poeta escreve tão baixq (ao nível das priscas dos

outros)Aqui, e em parte mais nenhuma, é que cintila o tal condi-

cionalismo de que há tanto se fala e se dispõe discretamente (como quem as apanha).

Sirva tudo de lição aos presentes e futuros nas taménidas (várias) da poesia local— Antes andar por aí relativamente farto antes para tabaco que para Cesariny (Mário) de Vasconcelos

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X V I

Uma corda. Uma garganta.Duas dores. 0 Infinito.Um irmão que chora. Uma mãe que canta. E uma noiva que diz ai que eu grito.

Um soluço uma noite uma aurora Uma mesa — um suicida esquisito.Um irmão que sai porta fora Um menino que compra um apito.

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Uma senhoria irritada Dois odores a gato pingado.Uma noiva inconformada, coitada. Uma mala muito bem fechada.Um quarto de novo alugado.

Uma mãe que sorri. Alguém que ama um corpo quente que nem quê.Uma rua cheia de lama.Uma noiva que sabe porquê.

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X V II

Ia muito bem a guiar o automóvelquando ao fazer a mudança (necessária?)tudo mudou muito mais do que esperava:o automóvel (embora sempre andando) virou caixote do lixo

e ela — aflição! — passou a ser apenas um busto fora do caixote fechado e a dar à manivela muito depressa ...

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«A rua era comprida?» perguntou a que também estava quo contou de repente que com ela era assim:

uma escada para o alto, que nunca mais acabava... Também havia quem viajasse muito todas as noites, e no mesmo sentido.

lístava esse muito carsado, pois com os comboios normaisbasta não querer e pronto, mas se é sonhonão há manobra possível, tem de se ir mesmo.

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X V III

À hora X, no Café Portugal à mesa Z, é sempre a mesma cena : uma toupeira ergue a mãozinha e acena ... Dois picapaus querelam, muito entusiasmados : que a dita dura dura que não dura a dita dita dura — dura desdita!Um pássaro cantor diz que isto assim é pena e um senhor avestruz engole ovos estrelados

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X IX

A noite como um prego a noite louca a noite com árvores na boca

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X X

Arrumaram-se à luz de um candeeiro a recolher esmolas.

Mas quem passa, passa. Nem sempre há dinheiro. É assim mesmo!... — Bolas!

Não fazem pena. Não fazem coisa alguma.Estão ali.

Ela, tem a boca cheia de espuma e ele, cego, sorri.

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X X I

E em toda a parteo sexo feminino estadista e generalextra-strong e super-creamprocura uma saída em caso de acidentemortalem toda a parteduplicações de indivíduos estranhosesperam indicações úteis com o auscultador no ouvido enquanto cinqüenta anos de vida missionária fazem descer o preço do café que tomamos com o vestuário em chamas em toda a parte

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aparece a palavra Napoleãono cotovelo de indivíduos portadoresdas mais recentes leis da maternidadetanto para senhoras como para os rapazes em toda a parteum mendigo dactilógrafo corta fiambrepara a edificação da grande árvoreenquanto o marinheiro limpa a sua unhaem toda a partee um crocodilo que nasceu de costasaguarda assim a decisão injusta dos tribunais competentes

de toda a parte.

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POEMA

PODENDO SERVIR DE POSFÁCIO

Ruas onde o perigo é evidente braços verdes de práticas ocultas duendesbarcos de silêncio que atravancam cadáveres à tona de água

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girassóis e um corpoum corpo para cortar as lâmpadas do dia um corpo para descer uma paisagem de aves para ir de manhã cedo e voltar muito tarde rodeado de anões e de campos de lilases um corpo para cobrir a tua ausência como uma colcha um talher um perfume

Isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante e com muita gente à volta a ver o que é isto ou uma população de sessenta mil almas devorando

almofadas escarlates a caminho do mar e que chegam ao crepúsculo encostados aos submarinos isto ou um torso desalojado de um verso e cuja morte é o orgulho de todos ó pálida cidade construída como uma febre entre dois patamares!

Vamos distribuir ao domicílio terra para encher candelabros

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leitos de fumo para amantes erectos tabuinhas com palavras interditas— uma mulher para este que está quase a perder o gosto

à vida — tome lá — dois netos para essa velha aí no fim da fila — não temos

mais —saquear o museu dar diadema ao mundo e depois obrigar

a repor no mesmo sítio e para ti e para mim, assentes num espaço útil, veneno para entornar nos olhos do gigante

Isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda de vento calmo para a noite

se nós somos areia que se filtre a um vento débil entre arbustos pintados se um propósito deVe atingir a sua margem — como as cor­

rentes da terra náufragos e tempestade se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua

fronte de cratera molhada se na rua o sol brilha como nunca se por um minuto vale a pena esperaristo ou a alegria igual à simples forma de um pulso aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas

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isto ou a alegria dita o avião de cartas entrada pela janela saída pelo telhado

Ah mas então a pirâmide existe?Ah mas e então a pirâmide diz coisas?Então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?

Sim meu amor a pirâmide existe a pirâmide diz muitíssimas coisas a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

e em todo o caso

há praças onde esculpir um lírio zonas subtis de propagação do azul gestos sem dono barcos sob as flores uma canção para ouvir-te chegar

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PENA CAP I TAL

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í

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NOTÍCIA

Enquanto três camelos invadiam o aeroporto do Cairo e o pessoal de terra loucamente tentava apanhar os animais

eu limpava as minhas unhasquando acabava de ser identificada a casa onde viveu

Miguel Cervantes, em Alcalá de Henares eu saía para o campo com Rufino Tamayo enquanto um português vivia trin ta anos com uma bala

alojada num pulmão chegava eu ao conhecimento das coisas

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Agora já não há braseiros — os destroços foram removidos —

os animais espantaram-see como se isso não fosse desde já um admirável e sur­

preendente esforço na nossa acção de escritores afogado num poço canta um homem

ORADOUR- SU R- GLANE

Gritos brancos gritos pardos gritos pretos não mais haverá braseiros — os destroços foram

removidos

E não esquecendo o esforço daquele outro que para aquecer o ambiente apareceu morto e não enviou convite nem notícia a ninguém

Mundo mundo vasto mundo(Carlos Drummond de Andrade)os conspiradores conspiramos transpiradores transpiramos transformadores aspirame Deus acolhe tudo num grande cesto especial

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A lei da gravidade dos teus olhos, mãe,a lei da gravidade aqui está é um poetanum barco a gasolina não não não é um operáriocom um martelo na mão muito depressaos automóveis passam o rapazio gritao criado serve (se não servisse morria)os olhos em vão rebentam a pessoa levantou-setantas crianças meu Deus lá vai o meu amor

Também ele passou trezentas vezes a rampa— que estranhas coisas passaram os poetas é que

sabem

construção construção progresso no transporte

ORADOUR- SU R - GLANE

Souviens-toi

REMEMBER

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H O M E N A G E M A CESÁRIO VERDE

Aos pés do burro que olhava para o mar depois do bolo-rei comeram-se sardinhas com as sardinhas um pouco de goiabada e depois do pudim, para um último cigarro um feijão branco em sangue e rolas cozidas

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Pouco depois, cada qual procurou com cada um o poente que convinha.Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário

Verdeque ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

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V IN T E Q U A D R A S P A R A U M D Á D Á

Eu estou presente todo eu sou sim e é de repente não dou por mim!

Um bom vazio me vem encher (nem sinto o frio de me não ver)

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Heróis antigos olhos cientes passam amigos dizem parentes

Passam os manes do eternal e os ademanes do amoral

Passam aqueles com os aquelas tanto sou deles quanto sou delas

Sou de ninguém estou em olvido e mais despido que Pedro Sem

Colorações Trigos e joios Caem aviões? Chegam comboios.

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Os tristes olham o escasso cais que as ondas molham (Água demais ...)

Os ébrios, esses passam de largo Ai Sá-Carneiro Carneiro amargo

Praças pequenas como alçapões.São os cinemas?Serão ladrões?

E eu que não puxo cabo ou começo moderno bruxo olho; arrefeço.

Esfriei a rua das Grandes Dores fritei-lhe a lua raspei-lhe as flores

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Fui-me à de lata sangrenta escura patrícia pata da dita dura

Esfriei-lhe o jeito de assassinar comi-lhe o peito mais pulmonar

Esfriei as frentes esfriei as trazes fiquei sem dentes merda, rapazes!

Gritar não grito esperar demora. Viva o infinito! Ora, ora, ora.

Altas, morenas, com janelões boas pequenas estas prisões!

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Dão lá por dentro gozos astrais. Anda-se menos pensa-se mais.

ó burguesinhos que quereis fazer que heis-de fazer queridos vizinhos?

Sabeis lutar?Sabeis perder? Viver? Morrer?Que heis-de fazer?

Eu que não puxo cabo ou começo fluxo... defluxo... e não sei. Nem peço.

E à multidão contente e só eles que são e eu que estou

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apenas vejo como se ouvisse um negro harpejo que nem florisse

Pois no que vi não ver é que há e eu estou ali não estando lá.

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P A R A D A

Com um grande termômetro no chapéu e um certo ar marcial de gênero equidistante todos sairam hoje das suas casas na duna para a rua a soprar o vento que vem de longe a certeza que há-de vir de longe a formiga que vem de muito muito longe

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Os prisioneiros polícias dos polícias prisioneiros nas montras nos passeios por baixo dos bancos passam os pontos escuros para o outro lado sem esquecer o espelhosem esquecer o aranhiço meticulosamente pequenino

para fazer a surpresa sem esquecer a borboleta tonta que sobe no hori­

zonte da cor do solo pescoço da nossa felicidade

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DE PROFUNDIS A M A M U S

Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentadoficámos para perder todos os teus eléctricos os meusestavam perdidos por natureza própria

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Andámos dez quilômetros a péninguém nos viu passarexceptoclaroos porteirosé da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros

Olhacomo só tu sabes olhar a rua os costumes O Públicoo vinco das tuas calças está cheio de frioe há quatro mil pessoas interessadas nisso

Não faz mal abracem-me os teus olhosde extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes

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não te importes muitonós só temos a ver com o presente perfeitocorsários de olhos de gato intransponível maravilhados maravilhosos únicos nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso

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A U M RATO M O R T O E N C O N TR A D O

N U M PARQUE

Este findou aqui sua vasta carreira de rato vivo e escuro ante as constelações a sua pequena medida não humilha senão aqueles o que tudo querem imenso e só sabem pensar em termos de homem ou árvore pois decerto este rato destinou como soube (e até

como não soube) o milagre das patas — tão junto ao focinho! — que afinal estavam justas, servindo muito bem para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar

atrás de repente, quando necessário

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Está pois tudo certo, ó «Deus dos cemitérios pequenos»?Mas quem sabe quem sabe quando há enganonos escritórios do inferno? Quem poderá dizerque não era para príncipe ou julgador de povoso ímpeto primeiro desta criaçãoirrisória para o mundo — com mundo nela?Tantas preocupações às donas de casa — e aos médicos —

ele dava!Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam? Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar e passou nela a roda com que se amam olhos nos olhos — vítima e carrasco

Não tinha amigos? Enganava os pais?

Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido e agora parado, aquoso, cheira mal.

Sem abusoque final há-de dar-se a este poema?Romântico? Clássico? Regionalista?

Como acabar com um corpo corajoso e humílimo morto em pleno exercício da sua lira?

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O J O V E M M Á G I C O

0 jovem mágico das mãos de ouro que a remar não se cansa muito e olha muito depressa (como se fosse de moto) veio hoje ficar a minha casa

Vivia longe longe já se sabiatão longe que era absurdo querer determinarmetade campo metade luzaí era a sua casa o sítio onde era longe

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mesmo de olhos fechados (como ele estava) e de braços cruzados (como parecia dormir) o jovem mágico das mãos de ouro que era todo de empréstimo à minha noite

que falou por acaso que nem se chamava assim (segundo também contou) tinha vivido há muito ele, que estava ali, era um falsário um fugido de outro basta ver os meus olhos

nada sabemos de nós a não ser que chegámos sem uma luz a esconder-nos o rosto belos e apavorados de estranhos casacos vestidos altos de meter medo às aves de longo curso

nem há noites assim não há encontros ao longo das enseadasnão há corpos amantes não há luzeiros de astros sob tanto silêncio tão duradoura treva

e não me fales nunca eu sou surdo eu não te oiço eu vou nascer feliz numa cidade futura eu sei atravessar as fronteiras das coisas olha para as minhas mãos que te pareço agora?

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No entanto surgiu como simples criança conseguia sorrir sentar-se verter águas com as mãos na cintura livre natural ele que era um fantasma um fugido de outro

um que nem mesmo se chamava assim o jovem mágico das mãos de ouro desaparecido nu de todos os sítios da Terra

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UMA CERTA QUANTIDADE

Uma certa quantidade de gente à procura de gente à procura duma certa quantidade

Soma :uma paisagem extremamente à procura o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha) e o problema do quarto-atelier-avião

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Entretantoe justamente quandojá não eram precisosaparecem os poetas à procurae a querer multiplicar tudo por dezmá raça que eles têmou muito inteligentes ou muito estúpidospois uma e outra coisas eles são

Jesus Aristóteles Platão abrem o mapa : dói aqui dói acolá

E resulta que também estes andavam à procuraduma certa quantidade de genteque saía à procura mas por outras bandasbandas que por seu turno também procuravam imensoum jeito cerU/ de andar à procura delesvisto todos buscarem quem andasseincautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse que certo se esse alguém fosse um adolescente como se é uma nuvem um atelier um astro

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BARRICADA

Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!

Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta

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cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportàvelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis- -dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, tra ­balhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade : vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.

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POEMA

Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco conheço tão bem o teu corposonhei tanto a tua figura

l

que é de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura

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e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura tanto tão perto tão real que o meu corpo se transfigura e toca o seu próprio elemento num corpo que já não é seu num rio que desapareceu onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco

ii

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OS BANTÚS E AS AVES

Junto da pobre praia sempre sujaonde é desconhecido o automóvel por dentroele repousa da sua longa misériaouvindo o pássaro-bicho canta que cantamirando o rio-pluma desce que desceo molhado batuque das cinturasSobre a areia da cerca canta que cantaele repousa ignoto na sua mãoque não tem que fazer. Na sua auroraque não tem que raiar. Na sua camavincada há dois mil anos para ele

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Convém que seja noite porque ele ri e o seu riso é uma coisa insuportável, uma feérica praia muito limpa coberta de pancada e de água escura

À entrada da cerca canta que canta assomou para ele o noivo estranho com o seu passo de Um dia de descanso seu riso de água doce pela boca (na cinta a chibatinha e a lanterna na mão os dedos com que guarda tudo)

«Condicionalismo econômico! Condicionalismo econômico!» protesta o pássaro-bicho canta que canta gorgeia o rio-pluma desce que desce ao dente sexual do automóvel por dentro

No entanto eles entram na cubata juntos repousam nus do mesmo inferno seus corpos eriçados de diamante seus olhos de múrmúrio e de paciência são uma grande selva inconquistável

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R A D IO G R A M A

Alegre triste meigo feroz bêbedo lúcidono meio do mar

Claro obscuro novo velhíssimo obsceno puronomeio do mar

Nado-morto às quatro morto a nado às cincoencontrado-perdidono meio do mar no meio do mar

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Y O U A R E WELCOME TO ELSINORE

Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ' ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício

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Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente, as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras nocturnas palavras gemidospalavras que nos sobem ilegíveis à bocapalavras diamantes palavras nunca escritaspalavras impossíveis de escreverpor não termos connosco cordas de violinosnem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do are os braços dos amantes escrevem muito altomuito além do azul onde oxidados morrempalavras maternais só sombra só soluçosó espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

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AUTOGRAFIA

Sou um homem, um poetauma máquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configuradaum avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra

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0 meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!

os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada

tenho um pé que já deu a volta ao mundo e a família na rua um é loiro outro é moreno e nunca se encontrarão conheço a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa) tenho um sol sobre a pleura e toda a água do mar à minha espera quando amo imito o movimento das marés e os assassínios mais vulgares do ano sou, por fora de mim, a minha gabardine e eu o pico do Everestposso ser visto à noite na companhia de gente altamente

suspeitae nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola do rei morto, do vento e da primavera

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Quanto ao de toda a gente — tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris — já se arranjaram algumas.Enlaces e divórcios de ocasião — não foram poucos. Conversas com meteoros internacionais — também já por

cá passaram.Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra uma carruagem de propulsão por hálito os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por

onde passei uma só vez tudo isso vive em mim para uma só história de sentido ainda oculto magnífica irrealcomo uma povoação abandonada aos lobos lapidar e secacomo uma linha férrea ultrajada pelo tempo é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costasa servir de combustívele é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir

a ser escrupulosamente electrocutadas vivas para não termos de atirá-las semi-mortas à linha

E para dizer-te tudodir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar

estou em franca ascensão para ti O Magnífico

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na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais

nem lágrimas à porta das famílias sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado per­

dido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!

II

Em Portalegre o cemitério deita por cima dos ciprestes no leve, solto azul funéreo, o exterior véu de mistério que tem qualquer cemitério

III

E era uma vez este homem que era um Chevrolet casado com uma mulher de vidro que era uma colher de prata Tempos depois sobreveio uma zanga

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que era uma criança nuaentre umas tábuas de passar a ferroe dois elevadores lindíssimos

Metrônomo (disseram eles)

Verdadeira saudade pernilongao pára-raios pôs-se a esfalfar românticamente o toldo de uma máquina de escrever disposta para o amor às quatro

no interior de um quarto que era uma planície redonda semeada de vírgulas violeta com um pequeno garfo nas costas que era o amanhecer que é uma árvore na boca de uma mosca de veludo rosa

Metrônomo metrônomo (disseram eles ainda) é uma árvore é uma pedra que vai começar o terceiro canto ?

É a aflição dos outros, meu amor.

Lembro-me de tudo como se fosse hoje as crianças brincavam nos jardins com um pequeno garfo nas costas sem dúvida o mesmo de há bocado e até era domingo vê lá tu

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de repente apareceste muito devagar a meu lado arrastando sem esforço dois aparadores baratíssimos ai! a minha tristeza não era uma barca breve houve lapidações em série com um ligeiro clic de ehaufagem aberta todos os meus irmãos começaram a andar velozmente

para tráspobres dos meus irmãos que será feito deles e de nós que

fizemos ?

Impossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança

Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólume os espaços vazios

Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre !os bichos e eu

tu meu único amor meu amor meu múltiplo amor meu tu que és uma mesa redonda enamorada dos seus próprios

círculosum alcaide sem discos um maço de cigarrosque se descobriu florque se descobriu águaque se abriu de repenteque gritou de repenteque implantou na minha vida de repente a corola perfeita da desorganização

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Não me encontrarás como um anel na curvatura I — Z do teu dedo mindinho

nem na treva que exalta os teus cabelos nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadíssima encontrar-me-ás numa nuvem de escamas milimétricas em

tomo da tua boca com toda a força principal na boca ou nesta casa que é um homem morto rodeado de rostos sempre translúcidos

— Onde está o homem que era um Chevrolet

casado com uma vírgula de amianto?Certo e sabido que anda sobre as águas que o matei sem

quererestas estrelas brilham com tal nitidez que acabam sempre por tomar-se suspeitas

Não importa transfigurá-lo-ei em poderoso egípcio

Abracadabra! Vram! Abracadabra!

Os teus olhos estão belos como a lua dos rios exteriores

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IV

Reconheço este quarto impermeável reconheço-te estás adormecido o peito muito aberto as mãos luminosas o grande talento dos teus dentes miúdos

Há o perigo de um grito lindíssimo quando andas assim comigo no invisível

Quando a manhã vier sairás comigopara o espaço que nos falta para o amorque nos falta

A aurora está fatigada

A auroracomo um rio nosso em torno dos elevadores

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Tinha eu a idade de um marselhês silencioso

e tímido

Tu davas-me a lousa dos magos o teu riso as letras

mais obscuras do alfabeto

Foi há muito tempo ou agora

na caverna dos leões expressivos

A caverna que dá para a caverna a caverna os lagos diligentes

Belo tu és belocomo um grande espaço cirúrgico

Porque tu não tens nome existes

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A minha boca sabe à tua boca

A minha boca perdeu a memória não pode falar as palavras entram no seu túnel e não é preciso segui-las

Disse que és alto altobranco e despovoado

■*

V

Faz-se luz pelo processode eliminação de sombrasOra as sombras existemas sombras têm exaustiva vida próprianão dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela

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intensamente amantes loucamente amadas e espalham pelo chão braços de luz cinzenta que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz não ilumina realmente os objectos os objectos vivem às escuras numa perpétua aurora surrealista com a qual não podemos contactar senão como os amantes de olhos fechados e lâmpadas nos dedos e na boca

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A E D G A R A L L A N P Õ E

Meu relógio soando de pés nus a quinta hora da noite italiana

minha cabeça de anéis dolorosos como jacintos pretos recém- -colhidos

minha criança grande escorregando pelos braços da mãe quando mil candelabros dardejando nas escadas dos palácios anunciavam um corpo delicado e quente

minha caranguejola de diamante entre a vida e a morte a graça e a desgraça a verdade e o erro

meu malfadado e misterioso homem figura descida figura embrulhada figura muitos pós

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acima de si mesma e no entanto figura de claridade figura de homem deitado com uma estrela na boca escor­

rendo água meu Eliseu do m ar amado das estrelas segredo das suas águas silenciosasmeu rio negro áspero venenoso cintilante e tremente

esmeralda e violeta por onde mil nadadores lutando contra a corrente procuram

ainda em vão à superfície o que só no mais fundo da água resplandece

a tua parede branca de aparições fumegantes

LIGE IA«acima ou fora da matéria, só comparável à estrela de sexta grandeza, dupla e variável, que se encontra próximo da estrela grande da Lira»

MORELLAde mãos frias e agudas, falando, falando sempre, «porque as horas de felicidade passam e a alegria não se colhe duas vezes na vida, como as rosas de Paestum duas vezes no ano»

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RODERICOos cabelos sedosos em torno da face, os olhos grandes, húmidos, luminosos, os lábios numa curva extremamente bela

«Contei-lhes a minha história» — «não quiseram acredi­tar-me!»

Mas há, sim, outros mundos além deste, outros pensamentos além dos pensamentos da multidão, arcanjos que se ergueram para cobrir desertos aonde só o universo ardeporque dois lábios finamente delineados tremem porque Mentoni ainda ri, em traje de cerimônia, com a sua

figura de sátiro porque não houve forma de passarmos adiante e uma terrí­

vel nuvem cor de chumbo enche de espantosa velocidade o espaço

Maelstrom Maelstrom dos teus olhos no mundo Maelstrom destruindo caixas sobre caixas sobre o ventre

total de uma caixa de música americana como as que às vezes se vêem nos porões as mãos brancas e nuas de firmes aranhas de prata

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A AN TÔ N IO M ARIA LISBOA

0 rato abriu o interior da cúpula os amantes acharam água e mármore criança de olhos de oiro ergue-te e anda as portas estão abertas escancarado o mundo das distâncias incalculáveis e as palavras sentadas inúteis à porta dos dias as trêmulas palavras ainda quentes dos machados de seda dos teus lábios procuram sem cuidado a vertical da nova supliciada arquitectura

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O amor ê um sentido! 0 amor é um sentido!0 AMOR É UM SENTIDO!

0 amor é uma chave que deve perder-se um burro que tropeça na vastidão dos mares um solário na areia para soldados meninos uma luz e uma sombra a cercar-nos a língua

Mas tu chegaste antes das pedrarias antes de todo o intervalo para o crime um risco de bondade separava as estátuas e a treva era paciente no teu joelho

E depois longo tempo eu te perdi de vista M longe, numa fonte cheia de fogos fátuos

De andaime para andaime o rato PASSA de estrela em estrela — rumo aos arquipélagos — uma minúscula mão percorre o espaço como tu, Duque, deveste correr a pé os mais altos montes como ris no Himalaia antes de lá chegarem com a arca de noé e quatro ou cinco dúvidas suple ̂

mentares os de sempre os

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mestres — Mestres em morte! — (Eles agora pensam que é chegada a altura

de ensinar os montes a ler e a escrever...)

Estrela de Todas as Horas Odasashor — Asest — R

Daqui até Saturno sempre houve muito que andar a não ser que se tome o caminho mais íngreme eu tomei — se tomei! — o caminho mais íngreme a raia da floresta entre onda e lua quando voltei não estavas só a sombra de um deus falava da tua força e do teu hábito

Mas hoje as tuas mãos parecem-se comigo

Já não se tra ta de dançar com os mortos ou de pedir à vida catedrais maiores que o outro sono

Já não se tra ta de elmos e clareiras onde o demônio grita deslumbrado

Mas de se olhar nos olhos a torrente mas de tocar com o pulso um sol antigo lá longe, onde se cruzam as nascentes

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A A N T 0 N 1 N A R T A U D

l

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem. Não assim eu.De cada vez que alguém me chama Mário de cada vez que alguém me chama Cesariny de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos sucede em mim uma contracção com os dentes há contra mim uma imposição violenta uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.

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Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?

Porque é que querem fazer passar para o meu corpo uma caricatura a todos os títulos porca?Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos

baptistériospara que eu recebesse em plena cara semelhante feixe

de estruturas tão inqualificáveis quanto inadequadas ao acto em mim sozinho como a vida puro eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu não queroeu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com

pregosas partes mais vulneráveis da matéria

Eu estou só neste avanço de corpos contra corpos Inexpiáveis

O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso e cantante» suficientemente glaciado e horrível

para que seja impossível encontrá-lo

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sem de alguma maneira enveredar pela estrada Da Coragemporque a este respeito — e creio que digo bem — nenhuma garantia de leitura grátis se oferece ao viandante

Por outro lado, se eu tivesse um nomeum nome que me fosse realmente o meu nomeisso provocariacalamidadesterríveiscomo um tremor de terradentro da pele das coisasdos astrosdas coisasdas fezesdas coisas

I I

Haverá uma idade para nomes que não esteshaverá uma idade para nomespurosnomes que magnetizem

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constelaçõespurasque façam irromper nos nervos e nos ossos dos amantesinexplicáveis contruções radiosas prontas a circular entre a fuligem de duas bocas puras

Ah não será o esperma torrencial diuturnonem a loucura dos sábios nem a razão de ninguémNão será mesmo quem sabe ó único mestre vivoo fim da pavorosa dança dos corposonde pontificaste de martelo na mão

Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por com­pleto

os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas

Haverá um acordar

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DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO

Hoje venho dizer-te que morreste e que velo teu corpo no meu leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras com cuidado o oxigênio que o espaço te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição de animal fulminado

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depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do homem é doce e iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra, outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a minha miséria, os teus braços e os meus, altos como cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas

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D1T1RAMB0

Meu maresperantotòtémico minha màlanimatògrafurriel minha noivadiagem serpente meu èliòtròpolipo polar

meu fiambre de sol de roseira

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minha musa amiantulipálida meu lustrefrenado céu grande minha afiàurora-manhã

minha fôgôécia de estátuas minha làbiòquimia cerrada minha ponta na terra meu àrsgrima

meu diamantermita acordado!

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CONCREÇÃO DE SA TU R N O

Vem dos comboios lentosdo cristal dos gritos

das mãos prodigiosas e dos seios de pedra corrompida vem do fim das palavras inaudíveis como um tremor de terra nos ouvidos girando em tua órbita de agulhas belo e desaparecido como o café chinês da Póvoa de

Varzim dos tempos da minha infância

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alto como dois rios inimigose perplexo e leal como um cometa arrastando as estre­

las podres da memória para a ponte velocíssima onde geme a farinha deste

silênciopara o latido dos cães de que só resta a baba donde

emergescom os teus préstitos de facas adoráveis setentrionais

e unas como orelhas com os teus lares de vírgulas ferozes

sem rosto contra a lua ó meu barco de sempre

minha rota suspeita meu grande ornitorrinco deportado por enormes tra ­

vessas sem oráculo por teus chumbos de discórdia teu hálito seminal

de liberdade de homem de homem-mãe

minúsculo ovo azul na pálpebra secreta dos meus dedos encontrado-pordido encontrado-perdido

no erro dos aviadores quando tentam explicar determinadas sensações que o an­dar pelo espaço causa ao homem

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na festa magnífica de um reposteiro de veludo preto meticulosamente abando­nado à fúria de uma cama

nos dois tentáculos de árvore que ape­sar de tudo jorram da minha vida às dez e trin ta da noite esperança macho

nos dias em que marcho sem esperança até que um grão de areia fura toda a barra­gem subindo ràpidamente ao coração

Falo de uma montanha presa pela cinta falo da festa mágica para a morte dos nomes falo como se a aurora nos banhasse como se nada houvesse contra nóscomo se entre o teu rosto e a minha carapaça não mediasse

esta ausência de um grito este lugar friíssimo e necessário

e falando de ti anémona-menina em qualquer ponto da praia falo de ti Saturno antilúnio antimuro antiaspiração ao

desaparecimento

O único fim que eu persigoé a fusão rebelde dos contrários as mãos livres os

grandes transparentes

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a primeira coisa que me alegra é o doce roncar do avião em cada ave que voã voa um homem nunca foi tão exacto falar de realidade mas a cisão do homem contra o homem instalou a espi­

ral do grande assassinato o bibe das mulheres miraculosas sob o arco voltaico da

paradapara a consagração do acto macho para o tan-tan da adoração sem escrúpulos escuta-os chegar Saturno afixa o teu revólver arruina a esperança das cidades levando-lhes ao

domingo o teu rosto suspeito colore a mão das estátuas cintilantes já estás grande demais para o teu leito

instala-te de lado o perigo é enorme

barbeia-te com ódio a barba ajuda

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LEMBRA - TE

Lembra-teque todos os momentos que nos coroaram todas as estradas radiosas que abrimos irão achando sem fim seu ansioso lugar seu botão de florir

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o horizonte e que dessa procura extenuante e precisa não teremos sinal senão o de saber que irá por onde fomos um para o outro vividos

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INTENSAM ENTE LIVRE

Intensamente livre o homem dirige-se para a praia mais pequena que ele

leva na mão um mapa-mundi azul é a custo que desce as dunas mais pequenas que ele

e sem ninguém que ateste a visibilidade radiogoniomé- trica destes seres

o homem perfura o poço mais pequeno que ele abrindo o leão de costas que há no fundo do poço o doce leão alado muito limpo que há no fundo do poço

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Como ver este homem o seu dorso a sua cabeleiracorreria nocturna ao longo de um túnel em transeonde será verdade onde é rosa irisque este homem sobrevivesob o seu talhe mais pequeno que elesob o seu pedestal a sua obscura força militare o seu porte essa porta essa maçãde vinagreessa locomotiva feita armada pronta para surgir arrastando uma época sem calendários cheia não só de estradas mas de signos de estradas estrada-dedal estrada-violino corpo-estrada de Rei

RapAz de Estrada

Há muito que vou com ele por um caminho livre quem cessará primeiro? ele? o caminho?

Este homem que apenas nasceu — este homem sem lágrimasvoltou-se! é prodigioso o espaço que arde na sua sombra face árida lisa para o incêndio com as mãos

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CORPO VISÍVEL

A esta hora entre os blocos de prédios enevoados a bela mancha diurna dos calceteiros na praça

e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos braços da sua estrela

à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro uma cartauma letra muito fina extremamente caligráfica onde a aventura do homem que devolve as palavras que lhe

são remetidas deixou a sua marca

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e o duque da terceira levanta o braço comentado seguido pelas aves que acordam a duzentos e

mais metros de altura o que não é ainda a grande altura sim sim

não nãoquem sabe

Dentro do grande túnel digo-te a vida esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada

como a proa de um barco bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco ou

no preto devo jogar jogando-me contigo malmequer bem-me-querou muito ou pouco

ou nadao que só com as mãos pode ser soletrado só nos teus olhos nos teus olhos escrito

Dentro do grande túnel digo-te a vida o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do

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outro lado da praça ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto imper­

tinente e desde logo minha segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana

tende a reduzir o indivíduo receptor ao estado de serpente fascinada

sem que daí advenha a petrificação estrela cadente ou qualquer outra espécie de perturbação durável

Eu digo que há tambores mapa louco riscado sobre a areia há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira

da porta — a tua porta quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu,

da viagem — e no vitral de tudo o que eu mais adoro a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa avança

sem deixar qualquer rasto há o campo selvagem dos teus ombros espreitando contra a luz na orla do rio a nuvem

de corsários que sou euvestido de andaluz para o baile em chamas — digo o grande

baile do século na ilha

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0 havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos per­didos

é o que levarei mil anos a decifraro teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa dos

meus dedos é o santo e a senha do percurso na sombra o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo

o fio da meada sem que é engraçado hajam batido à porta entrado ou saído alguém

são os astros o sangue e os jardins de Brauner e a tua mão posta em arco sobre a minha boca é uma nova rosácea sobre o mar

Livres digo Livrese isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos viemosao encontro um do outroa esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única

perfeita silenciosa fresca mas e também as chamas que acendemos na terra da floresta humananão só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais

espectaculares — aí a memória é fácil — mas na erosão física de cada folha no vento

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tudo o que teve terá a sua vez connosco a haver de nós a mesma dádiva recíproca porque tu vêsde costas para a janela tu que disseste :

«vai haver uma grande guerra» «nenhum de nós eu sei escapará vivo»

vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha da china onde ainda estamos

nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze enterrada na areia

o écran que florescecomo tu como eu nos tubos que dissemos fizemosfaremos acordar

e até quando?

Amoramor humano

amor que nos devolve tudo o que perdêssemos amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cin­

tilantesdigo: a constelação de peixes rápidos do teu corpo em sossego

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seja ela a aurora bafo multicor seja o perpétuo real ceptro branco da noite seja até por que não a luz crepuscular com o seu chapéu

preto as suas hastes mudas

Começa a ouvir-se o canto da cigarra sinal de que foi pisado o botão entre os limos estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre

esses aqueles que nos foram queridos na maré límpida que nos impele sabe o polvo dos mares

até onde e se haverá regresso em qualquer lado a última janela fotográfica as mãos do faroleiro como a locomotiva no seu túnelmas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto

ainda e sempre o teu rosto como é fácil como é belo A Vida Inteira Meu Amor

SOMOS NÓS

O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras já não fuma o espaço

a uma certa velocidade calma

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o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas diz-nos que amanheceuna sua torre de londres o relógio da estação do rossio

adquire decidida importância amanheceu é óbvio amanheceuda nossa viagem ao pais dos amantes já não resta senão

esse penacho de fumo que ameaça evoluir de acordo com a paisagem uma fábrica ou antes na janela entreaberta a mensagem do pássaro-extra-programa que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo- Conhecido e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões

Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço com gangrenas nas mãos

e intentamos chamadas telefônicas e marcamos de novo e desligamos depressa e tu pões uma écharpe sobre os ombros e eu visto o meu casaco e saímos de vez porque nós somos a multidão a que eu chamo o homem e a mulher de todos os tempos áridos e como sempre não há lugar para nós nesta cidade esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta

se pareça

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O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade carfológica

verdadeiro sinal-emblema destes tempos em que a evidência necessita do envólucro para não morrer na estradajunto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção

espantosa masculina da morte ou nos carros do clube As Mãos no Sexo junto ao qual admira-te vivemos O problema não passa da sua fase primária : um — o crocodilo e dois— o ciou do arame se bem que esta velha raça de acrobatas anões devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia

sobre a cúpula em chamas dividir o homempôr-lhe à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à

esquerda a sombra a assistência treme de tal modo que a meio da operação cabalística em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem atinja

bravo bravo hravo a imobilidade do sepulcro após o que rocegagem do arlequim de plumas e iluminação de todos os fósseis mais antigos

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Convenhamos meu amor convenhamos em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo devido

à miséria deste tempo e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que

seja o último existir DESFIGURADO não haverá Figura Humana sobre a terra— A ensombração maligna de certas lágrimas quando a

alegria é mais resplandecente não deve ter outra origemno centro do diamante o pequenino carvão venenoso é

quanto basta para perder a vida e no entanto nós meu amor partimos livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não

o está na sua rocha e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono sol­

to uma flor especiosa decor para a estrada pela esquerda alta da figura do Ho­

mem Sufocadoo homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu cin­

zento rosto impermeável impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até

aos confins da terra

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Contra ele meu amor a invenção do teu sexo único arco de todas as cores dos triunfos humanos Contra ele meu amor a invenção dos teus braços maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de água

por todos os lados estéreis Contra ele meu amor a sombra que fazemos no aqueduto grande do meu peito O MAR

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OS BRAÇOS SOBRE A AREIA

Salta a nuvem como se soltava repentinamente no si­lêncio das coisas esse infinito turbilhão de halos que eram a festa e a força do teu rosto, o céu abriu um buraco vazio que se pôs a espreitar o soluço daquele que, nu sobre a rocha, estende para o mar as paralelas ferozes dos seus braços. Quando a noite vier, e o recorte já frágil da nuvem descon- junta tocar o horizonte e entrar nas águas, livrai-vos, vós, amantes atraídos pela aparente solidão dos rochedos, de procurar nas concavidades próximas o leito ocasional da vossa estrela! Tu, meu amor — se devo voltar a ver-te! — e

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se ainda podes julgar ser possível abreviar assim as distân­cias e o tem po...— que te não lembre nunca corta/ pelo atalho que inexoràvelmente te deixaria à mercê, líão dos elementos, contra os quais, corpo a corpo, o homem pode lutar, mas de uma ambiência mais anti-natural e envene- nante do que os nervos do homem podem suportar. E vós todos, meus monstros familiares, formas que andais de rastos toda a noite e que subis dois olhos razos de água quando um sol exuberante queima os vossos signos, afas­tai para bem longe, agora, essa procura, se quereis que ela vos dure toda a vida! E o meu mais veemente aviso é para ti, cabeça entre todas querida do assassino, ponte brilhando oclusa no universo, adolescência, tu, que deverias ser a própria claridade e já afagas, sob as arquitecturas dos teus dedos, o sinal rutilante de mil votos secretos.

É bem verdade que só o seu grito — que a distância transforma em música celeste...— horroriza e afasta as criaturas das imediações. (Toda uma aldeia se mudou para longe quando subiu pela primeira vez essa voz que ameaça sublevar contra ela homens e animais). É bem verdade que, se ele calasse, criaturas sem conto disputariam como um privilégio poder estar junto a ele e, mesmo, tocar-lhe a fronte. Porque a sua figura, os braços sobre a areia,

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lança de leste a oeste da sua base um resplendor tão intenso que mais de uma ave, ferida em pleno voo pelo que aos seus olhos aparece diferente da luz da criação, suspende um risco branco e desce até à rocha. Ali estaca e rouqueja e passa horas, até que num pavor cuja raiz provavelmente ignora se lança como uma pedra ao voo interrompido. Uma aranha do mar, seduzida pelo intenso dia desses olhos que abarcam no seu raio a imensa e dolorosa distensão do globo, passou a um e um os sulcos dos cabelos, chegou (como a um País!) ao começo da testa, e cravou nela o lar de seis patas escuras, filhas da solidão, filhas do céu. Mas que se não conclua desse Fogo uma benesse dada pelos deuses, nem se veja na insólita harmonia que por todos os lados esplende e transfigura o seu enorme corpo acacha- pado, uma compensação requerida e outorgada. Se as duas aguçadas fileiras de dentes se casam harmoniosamente com a celeste candura da face e dos cabelos; se a juvenilidade do seu peito, experimentado e liso, recebe sem afronta a sombra de umas mãos cujo desenho deixaria eufórica não importa que voz de câmara de horrores, é porque um totem perverso e perseguidor lhe atirou como um dardo a sua maldição.

Um aranhiço, consciente da sua responsabilidade, des­liza pela falésia e entra na areia. Ergue-se o vento, e as

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formas alinhadas uma a uma nos grandes seios que aper­tam a duna, modificam a sua anatomia, esfarelam-se sem ruído, e embora o aranhiço marche sempre, sem dúvida a caminho do seu lar ignoto, o homem, menos apetrechado do que ele, deixou de circular pelas cercanias. A areia lisa res­ponde por isso... Então um sol prodigioso e negro explode no horizonte! Atravessa os espaços majestosamente, e de­pois de riscar no céu iluminado uma enorme figura chame- jante, desce para o solo, desde grande altura. Esta é decerto a origem das cidades porque já de todos os lados soam gritos e chegam casas aladas. Um barco maior que os outros, os­tentando na velas cortinas de pássaros, levanta à proa um homem, as quatro extremidades representando os pontos cardiais, as quatro direcções, as quatro únicas fontes! E rutilando um fulgor muito frio, compacta sob a sua infin­dável dureza, surgiu, lua da noite de um festim de cadelas, a tua boca. Ela tem mais veneno e mais horror do que toda a farmacopeia das idades sombrias pôde descobrir. Vem ainda trêmula do contacto das virgens que tu estendes nas linhas dos comboios para tocares o fundo, não da epiderme fácil e oferecida, mas da alma que grita dentro dela. Porque o amor, (agora és tu que falas), é um caso ante o qual só o vampiro pode e sabe agir.

De homem ou de animal — visto que o homem já difere da besta, e não só pelo seu porte : pela inteligente e extreme

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humanidade dos seus filhos ; de homem ou de animal (em­bora fosse melhor atribuir a qualquer espécie ainda não catalogada esse sangue, ou torrente de olhos violentos que giram pela areia sem poder parar) ; de homem ou de animal— e eu penso nesses seres ainda sem nome e ágeis, essas asas guardadas para voar; de homem ou de animal — uma garganta clarifica a noite. Não é melhor do que a tua. (Nem mesmo pior que isso...). Mas é mais resistente : lança a milhões de vóltios o seu pequeno incêndio.

(Com uma violenta contracção epidérmica fincou os largos cotovelos que sangram e soergueu o busto : espreita a eternidade... Mas no mesmo momento fende a superfície, antes lisa, da areia. A Terra abre e mostra as suas feridas).

À transparência, entre alas de cristal, este quarto que parte para o desconhecido leva consigo o chão de uma aven­tura que deve transcender os sentidos humanos. De um lado, o leão, do outro lado, a águia. O amor na cama tom a ao amor no espaço. Dizem-no assim, pelo menos, os objectos raros que ainda voltejam em tomo deste leito sem dimensão possível, coneentracionário. As velas apagadas e a brancura hermética de seis superfícies formando pirâmide para um

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salto (aonde?), têm a caligrafia desse nome que se deixa, apenas, perseguir. Quando a aurora forçar estas paredes e fizer emergir, sob as asas da sombra, as marcas desiguais do mistério amoroso revelado — corta a mão que ficou no meu cabelo.

Leitor agradado deste poema mais eficazmente nefasto do que ao primeiro relancear de olhos a curiosidade acusa : se ainda queres voltar à presença daquele que envia à natu­reza, através dos seus braços estendidos, um desafio inso­lente ; se algum instinto novo, ou até então obscuro, des­perta em ti o desejo de saber o que pode este texto fazer (ainda!) com ele — ou que revelação, tu, que tanto me ignoras, receberás de mim se ao seu grito voltarmos — vira estas poucas páginas e começa de novo. Como hoje me encon- traste, encontrar-me-ás sempre... Quanto a ele, acredita que, para o teu futuro (como para o futuro de uma humanidade que à falta de tarefas mais elevadas pretende ser feliz, e que foi descobrir — sabem os anjos como! — que o saber é uma estrela negra e inamovível em direcção à qual poucos sin­gram intactos) é bem melhor que fiques por aqui, que não o encontres nunca. Para viver, é preciso fazer mal. Antes, sempre, a um outro, do que a ti. Por isso, se algum dia alguém te vier dar sinal da sua presença, ou se entre a sua

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voz lancinante e contínua e a tua pessoa a distância parecer subitamente pouca, lança as mãos aos ouvidos e procura correr, ainda que para isso tenhas de deixar saco de pro­visões e restante bagagem.

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U M CANTO TELEGRÁFICO

Este passo encontrado que nos guia entre as mesas este chegar tão tarde às pontes levadiças para uma exposição de rosas no nevoeiro este eterno trabalho de dadores de sangue é o que mais nos defende do massacre vá recomecemosdo ocasional gemido do fantasma eriçado as notas principais :

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pendurar numa árvore o rio capitoso de tantas lágrimas descer de chapéu na cabeça até ao patamar dizer para sempre aos cabelos da noite que basta descalçar lentamente um sapato que basta ter achado atrás do travesseiro o relâmpago

azul do contacto com as mãos ou ter ido seguro por lençóis de linho a devastar de

arbustos as solidões do teu corpo do qual recordo ora as mais vivas carícias ora um mar

interior de grande obscuridade feito de todo o mármore do mundo de toda a areia que

sobra do mundo erguido para o silêncio que estru­tura o dorso de todas as paisagens belas frágeis no mundo

descer depois já a chorar de medo e a tremer de amor todo o lado de cá

chegar de rosto na água a aparecer às janelas com um capuz no sítio da cabeça

ah um automóvel!

Nós vivemos há muito nesta nova espécie de caverna bruxa alta pelo silêncio que nos vestereal pela erosão de um sol peculiar que ilumina o recinto

intermitentemente

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um sofá que não é para aqui chamado também podia servir de modelo à ampla descrição do fenô­

meno a luzque nos excede e emite nos liberta e sufoca depois há um que entra a perguntar o que é e tudo assume um pouco o ar policial dos casacos em fuga pela realidade fora

Merecemos o nosso passo de bichos de dilúvio merecemos que nos ceguem todos os dias merecemos estar sozinhos rodeados de prédios merecemos ter connosco toda a vontade fim princípio moleza de costumes assassinatos histórias de basílicas e até porque não dominicaismas como não gritar à passagem triunfal do Grande Mons­

tro Parado como sermos bem nós e a localidade muito bem disfarçada de necessidade pela subterrânea passagem que é nossa como não aspirar a um ponto do espírito um ao outro em que a deflagração cristalize uma rosa ascensional e como são as palavras para dizer que te amo fantasma cidade doida

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braço contra as nuvens alta promessa minha sempre em vão coroada

Apetece contar uma história tão estranha que as pessoas saiam aos tropeções de casa

apetece anunciar com voz fanhosa cronologicamente cruelmente todas as horas do pasmo todos os dias do calendário do medo todas as terças-feiras' da angústia de haver rosas todo o fumo e toda a raiva de um relógio de sol

Tomaram-nos o pulso e ficámos febriscom o amor que não há a inundar-nos a caraeste amor não esquece este amornão se esquece há um ratona tua camisa o céu brilha o céu estáos amantes retomam os seus quartosnum plácido e extenuante recolhimento gráficomas não basta encostarmo-nos à paredepara que tudo ressurja e vestir de novo as fardasa imaginação ainda não épara servir de pedreiro A Imaginaçãoas radiosas salas superiores

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através da cidade nos jardins nas gárgulas abre-se o leque das mil cenas celestes com o homem na ponte cor de rosa velho as mãos na água a cabeça no mar

Onde é sem partilha este verdeteesta limalha que nos sobem à bocaonde é esta verdade que empurra as estrelaspara intransponíveis mundos transportadoresuma última vez despedaçados amemosamemos a nossa pedra o nosso olhar de mil coreso mármore sem remédio das figuras bloqueadascomo são as crianças e os gigantesuma última vez e mais estranhosmais desertos de enigmas mais atrozmente firmessob a opulenta folhagem dos soluços

Dir-te-ei que os meus dias foram os teus dias o teu leito o meu leito o teu corpo este mar

dir-te-ei que há uma rosa oculta num jardim e que ela é uma e outra como nós fomos

estas pétalas são os teus olhos fechados são as ondas por onde sopra o vento e nasce a cor da

aurora e o grito gelado das coisas

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Dir-le-eÀ foi agoracintilante mortal contado a fogo

e breverigoroso

Na sombra repousante os teus olhos os teus vãos pensamentoscomo um leito avançando sem suporte ou um navio perdido do dono

Tu partirás primeiro de lado contracenando e arrastando contigo toda a paisagem vejo uma águia assustadoramente voando alto na retina do ventovejo o que foi permitido : tocar o horizonte

Amanheceremos fantasmas doutro teatro de sombras seguiremos imóveis caindo por distracção de amarra para amarra tomaremos o eléctrico para o fundo da Terra cidade lúcida e quente e aí expostos de novo sempre à fúria de curiosos engenhos

destruidores interceptaremos outra vez a vida

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digo-te sim faremos girar a Terracom o polegar nos polos canto telegráfico só captável pelo

a r do Karakala, entre os gelos gigantes do Tibet e o indicador nos céus realizando o futuro da harmonia para além de uma lágrima de um adeus com os olhos numa estação sombria vomitando morte

Dito isto fica um grande espaço vazio onde não chega o mais ligeiro cantoonde o homem está só não já de corpo ou de espíritomas de todo o murmúrio e todo o espasmoe então sim contra os vidroso amor soluça tempestadedeuses cegos assomam às janelas e tombamsobre o odioso chão que ladra e ladrauma aurora de cães afivela o teu pulsoe a cobardia responde à cobardiacomo a coragem responde à coragem

Um pouco de certo modo por toda a parte há homens desmaiados ou simplesmente mortos

O AMOR REDIME O MUNDO diziam eles

mas onde está o mundo senão aqui?

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P E N A C A P IT A L

O Poeta, exorcismando no seu atelier nos astros:

Das páginas do livro jovialmente aberto primeiro os pés depois a cabeça sais tu não estás nada parecido mas és sem dúvida o que se pôde arranjar

Olho-te no meu espelho de atravessar os mares olho-te com simpatia com anterior amizade respiras tu respiras!

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e deste um passo para o lado como quem chega um pouco mais a si o seu ar pessoal

Caramba caramba Antôniojá estás muito mais parecido■— ou então era eu que não me lembrava —Olha hoje o teu clima está magníficoolha vamos sair desta cidadeonde o teu clima é sempre para dividir por cincovamos para as praias da alma arrebentar-nos vivosvamos ser os heróis duma tragédia químicae convidemos o Azul por uma questão de princípio

O Azul, entrando :

Azul criado incriado azul de todas as cores dos caminhos anteriores ao mistério revelado

Antônio, erguendo-se agressivo:

Tu não és o azul tu és a morte tuestás feito com os meus olhos

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fora daqui para foradesaparece ou passo-te o automóvel em cima

O Azul:

Teus olhos lugar geométrico teus olhos estrada marinha teus olhos viVos por dentro teus olhos treva exemplar

Antônio:

Fora! Fora!

O Poeta:

Então que é isso rapazes estamos atrasados toca a andar para o comboio meu amigo e tu Antônio cautelajá estás mais que parecido vai ser mau continuar

Antônio chora, contrariado. E assim vão para o comboio, que os leva para o mar.

O Mar:

Eu faço a tempestade...

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O Poeta:

Oh!

O Mar:

Eu, só, criei a terra por retirada minha...

O Azul:

Oh!

O Mar:

Eu dei o nome às pessoas...

O Azul e o Poeta:

Oh!

O Poeta, para Antônio:

O Mar não dá nada às pessoas O Mar é mauO Mar o mais que dá é uma alma negócio de bruxas — r r r r r

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O Mar, para Antônio:

Escuta, corpo meu, meu filho natural...

Antônio entra na água.

O Poeta e o Azul, ajoelhados na areia :

Deus o guarde do Espírito do Mar!

Antônio, gritando no banho:

Quando eu for pequenino aumentará o mundoTudo me será dado por acréscimo!

Passa uma flor perseguida pela Morte.

Flor:

Bom dia, boa noite.

Desaparecem. Antônio volta do banho. Antô­nio, O Azul e O Poeta comem figos e ê chegada a hora da lição. Dão-se humani­dades, germânicas e ciências naturais. O

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Azul ponta a lição servindo-se de um livra especialmente disposto.

O Poeta:

Pão a cozer...

Antônio:

... Menino a ler.

O Poeta:

Fogo na palha...

Antônio:

... Canta o canalha.

0 Poeto,:

Pouca atenção...

Antônio:

... Cornos no chão.

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O Azul, virando a página:

Virou!!

O Poet a:

Enteroeolites...

A ntónio:

. .. Frederico Nites.

O Poeta:

Delirium trémos...

António :

. . .D á cá os remos.

O Poeta:

Externo-cleudo-mastoideu...

Antônio:

... Foi uma mulher que o perdeu.

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O Azul, virando a página:

Virou!!

O Poeta:

A noite...

A ntónio:

... Não me lembro...

O Poeta:

A noite...

Antônio:

. . .É o corvo em liberdade

O Poeta:

A Águia...

A ntónio:

... É o amor na cama

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O Poeta:

Os Poetas...

Antônio:

... São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética

O Azul:

Novalis.

O Poeta abraça Antônio dando por finda a lição. Passam então, em velocidades con­formes:

Um barco a que faltam os pulmõesGoethe em cima dum plinto onde segue também o seu

segundo Fausto Um Frade que arrasta Ofélia pelo bico

Reaparece a Morte com a Flor na lapela.

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Antônio:

Salvemos Ofélia!Salvemos a pureza que vai pela mão Salvemos o doce cabelo Salvemos, pelo menos, o braço.

Corre atrás do Frade que puxa dum pau e dá para baixo bem em cima da cabeça de Antônio que se agarra ao Frade e luta com ele, esquecendo-se ambos de Ofélia, que se atira ao mar.

Antônio, largando o Frade:

Ofélia! Ofélia!

O Frade desaparece transformado em lobo.

Antônio, chorando:

Poeta!...

O Poeta:

Não.

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Avlónio, chorando:

Poeta!...

O Poeta:

Não.

Antônio lwnça-se ao Mar, onde flutua ainda, o branco corpo de Ofélia. O Poeta e O Azul impedem-no de se afogar dançando com ele animada sarabanda que em estreitos

movimentos circulares os começa a subir pelo espaço fora.

Antônio:

Olha olha os países.

O Poeta:

Não são mais do que três.

0 Azul:

Eu vou acelerar vertiginosamente.

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Acelera vertiginosamente. Antônio- começa a vomitar nuvens de borboletas brancas e azuis, e a cabeça -pende-lhe ligeiramente para o lado, forma expressiva de dizer que não se sente bem.

O Poeta:

Dança! Dança! Dança!

O Azul:

MarialfabetalowanalfabetaAriana alfa beta

Os Astros:

Um, três, cinco, setç, dez!Dois, quatro, cinco, oito, um!

Voz, dentro duma nuvem:

Deixem passar Deus! Deixem passar Deus!

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Passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais.

Antônio:

Eu amava, tu amavas, ele amava...

O Poeta, analisando à lupa os olhos de Antônio :

De olhos para olhos a distância aumentou.

Passam então por um pequeno Olimpo que anda a voar perdido de referências. Os Deuses abandonam os jogos do costume e montam observatórios-periscópios por onde estudam o grupo voante. Zeus con­sulta a Máquina de Consultar Os Astros. A Máquina de Consultar Os Astros diz o seguinte: Vm, dois, dois, três, um. Das janelas dos terraços alguns Deuses mais importantes escrevem em alvos cadernos individuais observações pertinentes sobre o número e o propósito dos intrusos.

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Caderno de Ares:

Tudo o que usa chapéu lhes diz respeito Tudo o que à noite brilha conta com eles Todo o anjo vestido de diamante Toda a hora de luto e crueldade

Caderno de Zeus, em caracteres estenográficos:

São mágicos cartógrafos amando pelos bolsos das calças A Montanha

Caderno de Afrodite Anadiómena. (Letra crispada, irregu­lar, denunciando perturbação):

Vêm da Terra! Nada pode já salvá-los!Nem as Torres do Reino das Pacientes Esperas nem as rosas da mais solene exéquia!Pelo espelho das suas pernas nítidaspela curva dos seus braços desce um pássarode límpida memóriae uma frota de cardos luxuosíssimossegue-os para sempre para toda a vertigem

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Caderno de Afrodite Urãnia:

São quatro! QUATRO! Aliás, cinco mil pronunciados por crimes de aparição na duna junto à terra da Ilha dos Amores na pálpebra de sol que me deixaram vêm de esperança, exaustos de água, respirando pelas mãos, ouvindo atônitos a música da guerra que levantam

Zeus, num grito:

Que cesse todo o trânsito entre um corpo e outro corpo RODA E ESTRADA!!

Uma Vendedeira de Fruta, fechando as portas do Olimpo:

Estranha gente. Sem música. Sem armas e bela, apenas, da sua própria beleza...

O Poeta, num murmúrio:

Para uma boca, outra boca, para um leito, o telhado.Nem sempre, como se diz, a batalha é de flores.

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Passa lentamente uma rosa.

Antônio:

Olha olha uma rosa.

O Poeta, num repente ;

As rosas deviam deixar de saber tão bem que são rosas As rosas incomodam-me quando se põem assim Com o ar de quem diz: Olha, este não é uma rosa

no seu jardim

O Azul:

ó rosas catedráticas! Esplendorozíssimas rosas!

Antônio:

Morte, morte, morte.

Dito o que desfalece. É óbvio que vai morrer. O Poeta e o Azul carregam-no para cima de uma cama de folhelho, acendem duas candeias e velam a seus pés. Um vulto

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muito alto que parece pairar na vastidão dos ares, mas que em verdade se dirige para eles a uma velocidade vertiginosa, é A Morte,

Antônio, delirante:

Poeta! Meu Poeta!

O Poeta, deitando sangue pelos ouvidos:

Eu vejo! Eu vejo! EU VEJO-TE!!

O Azul, soprando as candeias e gritamdo no escuro:

Dança!

O espaço tem agora a cor dos olhos de Antônio.

Voz do Mar, falando de baixo:

Eu sei as bodas químicas do princípio e do fim Eu, só, criei a Terra por retirada minha Eu sei os grandes espaços intervalares Eu sei Ofélia...

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Antônio:

Ofélia...

O Poeta:

Muito parecida, Antônio, muito parecida.

Voz da Terra, falando de baixo:

Ah se toda a viagem fosse para mim e todos os navios me buscassem!

.4 Morte, tocando a fronte de Antônio :

HOME SWEET HOME

Antônio morre.

O Azul, o Poeta, o Desmaiado e a Morte, descem em lentidão pelo ar abaixo.

Voz, dentro duma nuvem:

Não deixem passar Deus! Não deixem passar Deus!

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Não passa Deus, seguido das sem Anjos e dos seus Animais. O Poeta regressa ao seu atelier nos astros, que a sua governanta encheu de flores. Faz café, que ingere em goladas pequenas, sentado abstracto em cima do telhado. Chora um pouco e mur­mura, olhando o céu escuro:

Sou um rio injusto, cora margens de labaredas,Se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.

Assim acaba este estranho poema, o último denome religioso escrito pelo Autor.

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M A N U A L DE P R E ST ID I G IT A Ç Ã O

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A R T E D E IN V E N T A R O S P E R S O N A G E N S

Pomo-nos bem de pé com os braços muito abertos e olhos fitos na linha do horizonte Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes e os personagens aparecem

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A R T E D E S E R N A T U R A L C O M ELES

Senhor Fantasma vamos falar

Tudo foi e tudo acabou numa cidade venezuelana Boa parte de mim lá ficou não vês senão o que voltou no princípio desta semana

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Senhor Fantasma em que é que trabalha?

Em luzes e achados chãos e vaiados barcos chegados comboios idosProcuro os meus antepassados altos hirsutos penteados mudos miúdos desprevenidos

Senhor Fantasma a vida é má muito concerto pouca harmonia

A vida é o que nos dá Não quero outra filosofia

Senhor Fantasma diga lá que estrela se deve seguir?

(Mestre Fantasma: Ah, ah, ah!)

Senhor Fantasma vamos dormir

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EXERCÍCIO ESPIRITUAL

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia é preciso dizer azul em vez de dizer pantera é preciso dizer febre em vez de dizer inocência é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

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É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

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CENA PARA O FINAL DE UM TERCEIRO ACTO

XJma esquina outra esquina depois os breves canteiros floridos de quando a cidade era pequenina

depois os longos rochedos brutais a lua o mar eterno o cais

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VARIANTE DA CENA ANTERIOR

Onde uma pancada súbita nos faz largar a presa onde o extremo limite do horizonte é assinalado por uma

.gigantesca toalha de pedra onde não é conveniente que entre o homem onde a fortuna a que os mestres aludem é um licor muito

forte em ânforas de prata

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onde os olhos se movem precipitadamente onde um rosto azulado estremece de olhos fechados onde a infinita meiguice dos noivos gravou a oiro as nuvens

da montanhaonde a estatura atlética dos túnéis chama dragões que

cantam e atacam onde novas pazadas de carvão fazem gritar dois homens

aterradosonde uma carta e a sua maravilhosa odisséia são dirigidas

pelo desconhecido mau grado as explosões tremendas que se sucedem

graças a um filtro milagrosamente ileso que no interior da massa líquida descobre

um cavaleiro em mutação constante a imensa distensão do globoonde salta para leste-sudoeste o vento e o céu fica brilhante

e a terra desconhecida onde o assunto principal é uma pequena barca munida de

dois pares de remos oculta em certo ponto do paredão que serve de ancoradouro aos grilos e aos fantasmas

onde o dia seguinte é uma canção igual para os fugitivos onde nunca ninguém alcançará a cidade sabendo-se que

a água gelada à altura do peito separa a pele da carne e as mãos das mãos

onde presas de agitação que precipita as catástrofes

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há quatro formas brancas no horizonte onde o assalto é a última esperançaonde à luz amarela da lâmpada de arco que ilumina a

estatura do último recém-chegado milhares de berços de soldados crianças são atirados do

deserto para o mar

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CENA DE LIBERTAÇÃO N O S JARDINS D O PALÁCIO DE EPAM IN O N D AS IMPERADOR

Como um vasto programa contra a poeira contra a erosão das operações da noite um braço apenas um braço sai em liberdadea parte útil rodeada de escombros os dispositivos especiais dissimulados atrás de misteriosas armas incorporadas

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Nada que se pareça com centenas de escudosou com a sensação de segurançaessa forma de anel sobre as melhores cidadesque estrangula não mata aperta não afogaum braçoapenas um braçohábil solução do conjuntoum braço sai em liberdade

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A R S M A G N A

Devo te r corredores por onde ninguém passe devo te r um mar próprio e olhos cintilantes

devo saber de cor o cetro e a espada devo estar sempre pronto para ser rei e lutar devo ter descobertas privativas implicando viagens ao grande

imprevistode um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do teu

peito o animal que inanimado canta devo ser Júlio César e Cleópatra a força do Dniepper e o

carmim dos olhos de El-Rei D. Dinis

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devo separar bem a alegria das lágrimas fazer desaparecer e fazer que apareça dia sim dia não dia sim dia nãodevo ter no meu quarto espelhos mais perfeitos técnicas

mais sérias prestígios maiores devo saber que és forte amplo transparente e colher-te

murmúrio flébil aerolado que eu arranco da luz que encharca o mundo dia sim dia não dia sim dia não devo portar-me bem à saída do teatro devo dar e tira r as chaves do universo num passo ágil belo natural e indiferente ao triunfo aos castigos aos medos fita r unicamente sob as luzes da cúpula o voo tutelar da

invisível armada

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MÁGICA

É uma estrada no céu silenciosa um anão sem ninguém que o suspeite é um braço pregado a uma rosa um mamilo escorrendo leite

São edênicos anjos expulsos sonhando quietude e distância são homens marcados nos pulsos é uma secreta elegância

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São velhos demônios ociosos fitando o céu bailando ao vento são gritos rápidos nervosos que destróiem todo o pensamento

É o frio deserto marinho operando na escuridão é o corpo que geme sozinho é a veia que é coração

São aranhas jovens, pernaltas arrastando embrulhos para o mar são altas colunas tão altas que o chão ameaça estalar

São espadas voantes são vielas passeios de todos e nenhuns são grandes rectas paralelas são grandes silêncios comuns

É uma edição reduzida das aras da história sagrada, é a técnica mais proibida da mágica mais procurada

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É uma estrada no céu silenciosa por um domingo extenso e plácido é um anoitecer cor de rosa um ar inocente, ácido

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VIDA E MILAGRES DE PÃPÁRIKÃSS BASTARDO DO IMPERADOR

Era uma vez uma grande boa vontade que se pôs a correr mundo e que no gastar dos sapatos daqueles dias se fez tão pequenina que cabia em qualquer bolso. 0 cresci­mento definitivo foi numa quarta-feira de Primavera, dia em que a meteram na parte de dentro dumas calças e a embarcaram para o México. No México só há polícias sina­leiros baixinhos sempre a bocejar e a dizer de hora a hora a palavra cabana de forma que a boa vontade não sabia o que havia de fazer

Para ir ganhando tempo resolveu montar uma indústria

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chapeleira com a qual inundou o mercado. Como é natural, as cabeças andavam todas contentes de trás para diante e de diante para trás o que as fazia produzir um som com­prido em forma de enseada que os músicos iam recolhendo para as suas óperas. Dado o bom êxito inicial a boa von­tade não só se deixou cumprimentar num estrado vindo da América como estabeleceu ligações com Pápárikáss, homem muito odiado e sempre pelos casinos: aderiu à guerra que estalou naquele tempo, lançando de repente os célebres chapéus marca PERA para abrigar generais. Estes porém dissolveram a empresa sob a alegação seguinte: não está a acompanhar.

Solteiros de profissão e naturais de Sevilha os criados revoltaram-se mexendo muito uns nos outros e recusan­do-se a andar. O distúrbio custou duzentas mortes um casino a esposa de Pápárikáss (pendurada de uma janela a arder) onze bois do abastecimento e a Sagrada Relíquia que o inimigo apanhou comendo-a logo ali com um apetita enorme.

Então como hoje as ruas estavam cheias de desonestos e uma canção acanalhada, francesa, La Petite Enorme, correu todos os bares pondo em perigo fastios e gover- nação. O sinal de acabar aqueles insucessos foi um ovo estrelado milagreiro que não só deitava petróleo e carvão quando ofendido como sabia processos divinatórios de en­

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contrar os ladrões naqueles sítios certos em que eles é raro estarem. Isso acabou de vez com a ameaça de distúrbio civil, coisa sempre de temer quando as guerras grandes acabam e os generais voltam para casa.

Comemorando a vitória mandou o governo um grande Parque onde as crianças se arejavam imenso e cuspiam à vontade à vista de todos os peixes. Ao sábado tocava a música e apareciam mãos por todos os lados, o que originou um desporto bastante original : o sape-gato- -codorniz-galinha. Era assim : uma enorme correnteza de mãos formando meta. Com o sinal da partida iam todas por ali fora às trabuzanadas umas nas outras e a que chegava priméiro era separada do respectivo pulso e enviada para França. Nunca mais se sabia dela e os prê­mios eram distribuídos por todos os assistentes, que em sinal de regozijo comiam bacalhaus e prometiam novos formatos de mãos para as competições seguintes.

«Falta ao nosso desejo música sábia».

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COLAPSO

Tudo está eternamente escrito (Spinosa)

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Tudo está eternamente em Quito (Uma Rosa)

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A IM A C U LA D A CONCEPÇÃO

Um pássaroa pino sobre as rochasum pássaro jamais vistoum pássaro apenas pássaroum pequeno pássaro enormefascinantegelado

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Um pequeno pássaro vivosobre as coisascomo um lado do marbrilhanteimpalpávelseguroe apesar disso impossívelterrívelobsediante

Foi quando me voltei para dizer-te: «Repara!» que ele passou

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JULIÃO OS A M A D O R E S

Já nada temos a fazer sobre a terra esperemos de olhos fechados a passagem do vento

dizia eu dizia euque é sobre a missa branca do teu peito que se erguem

os palácios rasos de água no escuro no escuroalguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trêmulos,

deitados, sem dizer palavra, morreremos de ter-nos conhecido tanto

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e depois ? e depois ?depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre

a pedra de um sonho mas os salões? e a casa? e o cão que nos seguia? o teu rosto meu rosto este homem alto

o Sol

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CAM ARIM

Rosa íris Rosa íris escutaé qualquer coisa a chávena as tuas mãos a mesa estão imóveis demais preparam algo certo e sabido que se os grandes olhos que trago comigo

pudessem preencher toda a sua função (exposição sobre os órgãos sexuais na infância) grandes e nobres chamas sairiam do mundo destes seres lá vem a caixa de fósforos castelo

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como assim castelo e não andorinha ou óptimus atenção os sinais o trunfo é ver sem lâmpada fechar os olhos e abrir os olhos fechar os olhosa carruagem puxada pelas linhas do vento chegou quem sobe? trrim trrim partiu na parte mais escura da ruela que toma ao castelo

de S. Jorgehá um homem deitado atenção levantou-se a que veio? onde vai? que diz ele do vento? que saco de desgostos pendurado do sexo como se fosse

às compras?

Rosa íris Rosa íris escutaeu o manequim verde pela janelaeu a mosca que assiste ao vai e vem contínuo dos dois

elevadores ditos de Santa Justa chamam-lhe abelha chamam-lhe O Trabalho que não lhe

chamariam eles eu nunca vi animal mais temível pre­sença tão suspeita e avassaladora

Rosa íris escuta Rosa íris escuta eu o sereno pacto de ilegalidade perpétua

Lá passam as gabardines a caminho do inverno este é o melhor tempo da minha vida

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o melhor o mais belo o mais lúcido o mais da minha vida onde está isso bandidos onde está isso

ah os pequenos orifícios para a respiração dos grandes monstros

monstros de incêndio monstros de inocência monstros de amor boca livre mãos nuas bandidosbandidos sem chapéu nuas só as crianças e as galinhas livre só a penúria que nos segue com um vidro fôsco para medir a extensão de certas sobrevivências doem-me doem-me os olhos e as mãos os meus olhos cansados e até mordidos pela valente bro­

cha da miséria local mas como assim que apesar de seguida pelas brigadas de

choque da academia e do folheto tenhas vindo parar às minhas mãos encontrado o teatro ó Rosa íris rapariga ataúde passada a zona dos protestos coreto fica no entanto um silêncio é a boca da Terra é por detrás das árvores do teu quarto é o teu rosto o ar que há no teu rosto

o oxigênio será o gênio oxigenado?

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Rosa íris levanta-te dos meus olhos Rosa íris é noite é dia claro

vai ser preciso sangrar as palavrasvai ser bom ver correr o vidro das palavras

a palavra partir a palavra chegarsangue por cima por baixo nos lados atrás dos flancos

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O P R E S T ID IG IT A D O R O R G A N IZ A

U M E S P E C T Á C U L O

Há um piano carregado de músicas e um banco há uma voz baixa, agradável, ao telefone há retalhos de um roxo muito vivo, bocados de fitas de

todas as coreshá pedaços de neve de cristas agudas semelhantes às das

cristas de água, no mar há uma cabeça de mulher coroada com o ouro torrencial

da sua magnífica beleza há o céu muito escuro há os dois lutadores morenos e impacientes

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há novos poetas sábios químicos físicos tirando os guar­danapos do pão branco do espaço

há a armada que dança para o imperador detido de pés e mãos no seu palácio

há a minha alegria incomensurávelhá o tufão que além disso matou treze pessoas em Kiu-Siu há funcionários de rosto severo e a fazer perguntas em

francêshá a morte dos outros ó minha vida

há um sol esplendente nas coisas

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D IS C U R S O A O P R ÍN C IP E D E E P A M IN O N D A S

M A N C E B O D E G R A N D E F U T U R O

Despe-te de verdadesdas grandes primeiro que das pequenasdas tuas antes que de quaisquer outrasabre uma cova e enterra-asa teu ladoprimeiro as que te impuseram eras ainda imbele e não possuías mácula senão a de um nome estranho depois as que crescendo penosamente vestiste a verdade do pão a verdade das lágrimas pois não és flor nem luto nem acalento nem estrela

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depois as que ganhaste com o teu sémen onde a manhã ergue um espelho vazio e uma criança chora entre nuvens e abismos depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato quando lhes forneceres a grande recordação que todos esperam tanto porque a esperam de ti

Nada depois, só tu e o teu silêncio e veias de coral rasgando-nos os pulsos Então, meu senhor, poderemos passar pela- planície nuao teu corpo com nuvens pelos ombros as minhas mãos cheias de barbas brancas Aí não haverá demora nem abrigos nem chegada mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças e uma estrada de pedra até ao fim das luzes e um silêncio de morte à nossa passagem

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M A N U E L I

Tão calmo e seroal tão de minha invenção

Ai

Manuel de trabalho manual aimanual de prestidigitação

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C O RO D O S M A U S O F IC IA IS D E S E R V IÇ O NA C O R T E D E E P A M IN O N D A S IM P E R A D O R

Váuma morte lourasimpáticaacolhedoraque não dê muito muito que falar mas que também não gere

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um silêncio excessivo

váuma morte boaa uma boa horauma morte ginasta tradutorarelativamente compensadorauma morte pedal espinha de biciclete quase carapaucom quatro a cinco soltas a dizerque se ele não tivesse ido emboratão jovem tão salinoboas probabilidades haveria de terde vir a serdos melhores poetas pós-fernandino

vá lá vá lá Mário uma morte naniôraque não deixe o esqueleto de fora como nos casos do mau

gostoos esqueletos têm sempre um quê de arrependidosse bem que por aí já convinha lá isso já também era verdade

váo demais demora

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efrancamente nunca será teu

vá vá vamos embora

custava-te menos agora e ainda ias para o céu

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TAL COMO CATEDRAIS

Consumada a Obra fica o esqueleto da mesma e as inerentes avarias centrais entre céu e terra à espera do descanso Consumada a Obra ficamos tu e eu pensando frases como : como é possível?

o que foi que fizemos? ou esta, mais voraz que todas as anteriores :

Onde está a camisola?

Sim realmenteonde está a camisola ? Ola palavra espanhola que quer dizer-nos : Onda coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras

há tanto ano

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não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras?

O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia— frase entre todas triste, a atentar na significação

Sim consumada a Obra sobram ripas pois ela é independente do obreirono deitar a língua de fora no grande manguito aos Autoresé que se vê se uma obra está completa

Fiquemos tristes abraça-me nós fizemos tão pouco e ela aí vai pelo m ar fora cavando a sua avaria!

(O mundo é redondo talvez a reencontremos...

— Esperança cínica e conservadora...)

TU MEU ÚNICO AMOR MEU AMOR MEU MÚLTIPLO AMOR MEU!

Sim, sim, de facto efectivamente mas o dia arrefece e pálidos pálidos estamos

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O P R E S T ID IG IT A D O R V A I A R O M A

IM P L O R A R A B E N Ç Ã O P A P A L

Em cima do barco que esperta a corrente é hoje que parto para sempre

Todos os teus rostos me verão chegar

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ver-me-ás saciar todos os teus gostos alvuras e mostos de lira solar

Hoje a noite é una em luz e razão Dois olhos — e espuma

Enfuna-te, escuna

Aproa ao vulcão

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ENQUANTO .

...Enquanto num riso sereno à beira-lugre Estrela-Segundo Mestre Fantasma, muito moreno toma o barco do outro mundo

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E S T A D O S E G U N D O

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I

Matilha Promessa Nossos Filhos

A Carpa

Palavras que nos guiam que parecem

reais

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I I

Poucos conhecem uma carta uma carta e um bilhete postal ilustrado com a tradução

duma estrofe S. Marcos o sol a Santa Catarina como se fosse no inverno à lareira

«no escuro dessas noites mal iluminadas enevoadas desertas em que as casas com luz interior ou sem ela

têm muito relevo são pesadas e misteriosas»

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Poucos poucos conhecem os últimos dias do enigma

de uma porta ligada de alto a baixo à beira de um caminho ladeado de sebes de espinheiro

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111

Dorme meu filho dezenas de mãos femininas trabalham

a atmosfera

Dorme meu filho os namorados pensam cartazes simples

um por exemplo

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minúsculo crustáceo denominado ciclope por baixo da pele ou entre os músculos

Dorme meu filho o amor

seráuma arma esquecida

um pano qualquer como um lenço sobre o gelo das ruas

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IV

Seis horas três minutos

No rico reino dos ondatras sobre os campos de batalha sob o aparente reinado da massa

o dedo trêmulo de uma criança luta contra a dor silenciosa de sempre

300

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subindo às maiores alturas novos e estranhos náufragos em gozo de licença

quatro homens que olham enquanto

por todos os lados quatro cadáveres

passam

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V

Na idade em que a maioria dos homens vai para cimadas árvores

levando somente a carga instantânea há aqui palavras que se engolem como espadas

motores planejados para sofrer os maiores abusos semqueixas

poéticas viagens com Júpiter um homem que nunca falhou

embora não seja orador

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VI

No meio duma vedação circular, esperava a ocasião favorável a ignominiosos projectos de entrada. E todas as noites, depois do jantar, a comissão de dança abarrotava de gente.

Examinaram o anel pondo-o de parte, ainda dentro do quarto. Qualquer coisa ardia ao contrário, com frieza de ânimo e contrariamente à expectativa. Fixaram também, com virginal indignação, o grande quadro a óleo que pendia

303

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do tecto, certamente um ex-militar pois no seu casaco far- raposo havia fitas de medalhas.

A cancela rangia docemente quando, na mão de alguém, uma ponta de preocupação se tornou de um cinzento pouco recomendável.

— Não, muito obrigado...O dia surgiu a partir da fachada. Não havia neles cabelos

brancos nem uma só linha que estivesse seca.

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VII

Para os lábiosque o homem fazque atraiem beijosao redor do mundoficou na nossa memóriaem qualquer parte a qualquer horaum pedaçode pão

20305

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Promessa que se cumpre que alimenta o mundo

olhos a exigir uma floresta

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vm

Cegopara que os cegos vejam

quatro toneladas

A CIDADE DA VENTANIA

Erosão da alma debaixo da roupa

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IX

As Luzes Voltam A Acender-se

Olho o mais tentador dos delitos o homem que volta ao abismo seu corpo

para demolir uma noiva

no céu

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Dulcineia e o cisne

são a sua voltagem verdadeira

Imóvel como uma aula de desenho ele é

o passo estratosférico do mundo a imagem precipitada

a toda a altura

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X

A enfermeira que esqueceu o amor ciranda nos canteiros

e em cada quartel o sol

despedaça aviões

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Há tempo de m atar e tempo de curar

Meus jovens cigarros prontos

para serem usados ajudam

auxiliam sempre

o homem que nos não conhece

que nos rodeia logo que entra

de mochos fumantes, de armas de guerra

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XI

Antes de aparecer pelo avesso o primeiro

riso de sangue a morte dos outros o azul militar

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Abre as portas do teu coração é tão fácil

perder o homem das águias que nunca mudam!

Ele em verdade

está só e nunca foi ouvido

(Na ponte uma fogueira

calma)

(O final entre sombras)

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XII

Nenhuma enfermidade nenhum corpo

nenhum que tenha que viajar enquanto cresce

Nenhum que fixe os instrumentos do processo grandemente disseminado

nenhum que ainda simples seja um serviço de homem

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XIII

A vida às portas da vida

e o azul masculino de um rio

Amor Ardente de forma distinta

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XIV

0 fogo, ràpidamente ateado pelos barqueiros, atingiu enfim a outra margem: os peixes fogem em sobressalto apinhando-se em cima duma rocha onde, julgando-se se­guros, contemplam o espectáculo. A casa, realmente, está a chegar ao fim. Só as paredes mestras resistem ainda e com elas um pequeno guarda-chuva preto abandonado na confusão do incêndio. Os bombeiros envidam esforços sobre- -humanos para salvar de entre as ruínas o pequeno objecto, juntando-se-lhes uma multidão ululante e caótica. Furtan-

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do-me às Magirus furo as chamas e levo-o. É sensível e triste como uma criança. Desenvencilha-se da mão que lhe estendo para diligenciar andar sozinho, embora não tente fugir e caminhe sempre a meu lado. As últimas derrocadas e as siré- nes dos carros, no lado de lá da cidade, parece que saúdam a urgência da nossa fuga e da nossa boda.

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X V

Muito acima das nuvens seja o centro das nossas misteriosas poéticas o irresistível anseio de viajar

um só movimento trabalhado à mão nos ermos mais altos

mais desaparecidos

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XVI

Um corte nos dedos e agora que estamos no inverno

vale a pena esperar mais depressa a maravilha minúscula

o império que foi comprado para bêbedos

a dez centavos o hectar

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XVII

Não houve nunca

acima do mundo a alegre aventura de um sol militar

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XVIII

Ama como a estrada começa

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AL GU NS MITOS MA IO RE S A L G U N S MITOS M E NO RE S

P R O P O S T O S À C I R C U L A Ç Ã O PELO A U T O R

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O G A T O L E G ÍV E L

OU INLEGÍVEL. OU ILEGAL.A catástrofe do estabelecido : doença do sistema métrico legal, abandono da posição horizontal para os defuntos repúdio muito activo dos direitos do Pai, dos deveres da Mãe, da explora­ção do homem pelo Filho, etc.

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YIRGULAMPÉRAGEM — Dialéctica convulsiva. Libertação do objecto su­jeito, trepanação do sujeito fascinado pelo objecto.Primeiras concreções de grande estilo: os picto-poemas de Yictor Brauner.

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o G A T O DITO DOMÉSTICO (OU D E LINEU)

Primo em linha recta do Gato Legível, uma nem sempre fundada tradição de abandalho pesa sobre a origem egípcia, eminentemente cruel e aristocrática, dos da sua espécie.0 GATO urina com êxito nos objectos de lar, e quando a angina estala enfim os peitos da patroa que julgou poder

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fretá-lo para pequenas voltas, 0 GATO esfrega os olhos, abre uma janela e voa toda a noite, de barriga para cima. Nestas surtidas voantes encontra-se por vezes com os seus camaradas liber­tários, e então acendem fogos que, uma vez por ano, formam cortejo em direc­ção à Lua, onde um gato já cego os devolve aos espaços, transformados em cinza e em máquinas de luar.

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O FU TU RO REI R AP A Z DE ESPADAS

Morfologia psicológica :

a coroa — o sexo o ceptro — a vírgula as asas — as garras as pernas — o fogo a cabeça — o túnel

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a mão esquerda — a gruta a pata direita — a lua os pés — o desejo as membranas — o olhar

Primeiro surgimento experimentado : o caso Mirin Da,]'os, na Holanda.

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O MARINHEIRO

0 que vai ao mar buscar dinheiro. Rapaz nave-gado que pratica a arte da marinharia.AMARINHEIRAR — O mesmo que amarinhar.Pôr-se a pessoa à moda de amarinha (caso Fernando Pessoa, no drama: «O Marinheiro»).

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A ESTRELA

0 copo nupcial,O carro.A casa.

0 beijo universal de Arcturus e As- tralis, um a noite sem estrela, o outro a estrela sem noite.

10 + 3, 10 + 7. Lua em alemão..

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O SOL D A D O (A NOITE DA CIDADE ERA)

Aforismo — 0 sol dado não custa o que custa é sabê-lo dar.Endc.a — Liga-se à solda dura hoje usada na tropa e que é uma mistura de estanho e de sol dado a que primi­tivamente se chamou Solda Desca, por ser o sol da primeira rainha nada em Desca.

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L it .a —

«Entre a noitenenterraço e a mortenentelescópio O Sol Dado assoma ao ralo e faz o sinal anti-grito»

(Arturo Lapinski — «Trovas»)

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A CABEÇA DE ARCAIFAZ (SIS M O)

Localização fonética :a) A cabeça : onde cabe a eça. Pop.0 : cabe a eça agora!b) de Arcaifaz (sismo): o ar (que) cai, faz (produz) sismo. Faz sismo: o ar cai. Caindo o ar, fica o caifascismo,

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o que dá cai, dá sismo, e re tira o ar que caiu. Por isso se diz que não há ar onde há alguém que faz sismo, podendo no entanto sufixismar-se o prefixo, o que dará a CAIFAZCISMAÇÃO, sublima- ção da cisma que Caifaz.

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A N 0 1 V A D I A G E M (SERPENTE)

Mistura clássica de noiva e de vadio. Vista com bons olhos na antiguidade (Zaratustra, Ulisses, Aquiles e Pátro- cles); ligeiramente encarada por Só­crates; reformada de alto a baixo por Platão; cruzando já a estrada do sacri­fício com o florescimento dos impérios cristãos — Tristão e Isolda, a Cavala­ria Andante —, o advento da burguesia

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lançou a noivadiagem na morte civil, criando perspectivas absolutamente modernas à sua força inicial de amor físico, heróico, transfísico e alquímico.

«A verdadeira poesia (isto é: a noiva­diagem) é de malditos», Antônio Maria Lisboa, carta ao autor.

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A G R AF IAR A N H A M AIO R

A Grafiaranha vive nos poços de água limpa rodeada de espelhos diamantífe- ros que se transformam em pássaros quando são descobertos. O seu sinal é uma forma roxa, extraordinàriamente vagarosa, que avança a custo por uma

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planície cujo chão é o espaço e cuja noite é o mar.

ARANHOGRAFIA — A Grafia do Gê­nio. Pintura = Grafia e a Antigrafia. Teoria dos Espaços Intersticiais. Ope­ração do Sol.A Pintura de Maria Helena Vieira da Silva.

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A CRIANÇA

Objecto que se usava para provocar so­lidão. Os últimos a conhecerem o seu emprego foram os druidas, que lhe chamavam «o prego da melancolia» e o cravavam na testa das mulheres para

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que fossem puras e isentas de precipi­tação.Há fósseis que permitem localizar o aparecimento deste utensílio durante todo o segundo glacial.

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H OM OSEXOALM A

Inversão teratológica :

A ALMA SEXO DO HOMEM

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O ESTUPROPULSOR D1ATÉRM1C0 DA H O N R A

Investigar nos lares e outras associa­ções secretas. Tem revestido o aspecto duma forma benigna do cancro : A DAMA ANTI-NOMA.Mata à terceira vez que lhe aparecem.

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A ROSA IRIS, R A P A R IG A T A Ü D E

Forma da Rosa Mundo.Os lados da visão. A morte do Poeta. Isis e Osiris, a «realidade misturada» por oposição a «realidade eleita».O CRUCIFIC ADOR CRUCIFICADO.

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P IN T A R O SETE

Voltar ao fim.Pintar três vezes o sete : ficar doido.

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O ASSASSINOS

O que vende sinos assados.Lit.a — «EIS O TEMPO DOS ASSAS­SINOS», J. A. Rimbaud. No original : VOIS SI LE TEMPS (DES) DÉS A SA SANG (sua sangue). Trad. : Vê se o tempo dos dados conhece o seu pró­

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prio assassinos. O assassinos tipo Rim­baud lança a perturbação nos espíritos os mais variados, dando lugar a dísti­cos, sonetos e parafrases de requintado travor.

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O BERLINDE BERG

Oposição Forma-Conteúdo muito usada pela crítica.Escat.la :

A forma : o berlinde.0 conteúdo : o Lindberg.

Resolução da antinomia :O BERLINDBERG

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O A L M 1 R A N T E X U G 0

A procurar entre os grandes respon­sáveis da actual Miséria Humana. En­contrado pelo autor na noite de 14 de Dezembro de 1947.Hèlicereja. Hèlicevado. Crocodilupa.

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O H O M E M M Ã E

Pai — ai.Mãe — Em.Um ai.Em.Homem.Ó Mãi.

M H O M E ME I O M Ã I M Ã I M Ã I O M Ã I E I H O M E M

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Ín d i c e

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A POESIA CIVIL

Políptica de Maria Klopas, Dita Mãe dos Homens

Prólogo ............................................................... .............................11Prólogo ......................................................................................... ........13Prólogo ....................................................... .................... ... 14I ........15II . .........................................................................................17III ........18IV ... 20Y ........23VI ... ....................25VII ................ ................... ... 26

Nicolau Cansado Escritor

Nota do Fiel D ep ositário .................... ............ ............ ........31Em Torno da Poesia de C an sad o ..................................... ........33Os Poemas: M igração ......................................... . ....................39A Ti .. ......................................................................................... ........40H e r ó i .......................................................................................................42Reabastecimento ............ .............................................. *.. 44B ra sile ira .................................... ... ... ............................. ........45L e v e ............ ................... . ....................................................... ........47

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Rural . ... Poem a. ... Raio de Luz

495152

Um Auto Para Jerusalém

Fragmento ........................................................................................ 55

Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos

Fragmento .. ................................................................ ... ... 75

DISCURSO SOBRE A REABILITAÇÃO DO QUOTIDIANO

D isc u r so ........................................................................ ............ 89II ................................................................................................. 90III . ......................................................92

IV ... 94V ......................... ....................................................................... 96VI ... .......................................................................................... 99VII . ....................................................... 101V II I .............................................. 102IX ... ... .......... . ................................................................ 104X ........................................................................................ ... 107XI ................... 111XII ... ................................................................................. ... 113XIII ............................ ................................................................ 1.15XV 116XV I ............................................................. ... 118X VI I 120X VII I .......... . ................................................................ 122X I X . ................................................................................. 123XX 124XX I 125Poema Podendo Servir de P ó sfá ç io .......................... . ... 127

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PENA CAPITAL

I

Notícia ......................................................................................... .... 135Homenagem a Cesário V e r d e ........................................... .......138Vinte Quadras Para Um Dádá ..................................... .....140Parada ......................................................................................... .....146De Profundis A m am u s.......................... ................. . ... 148A Um Rato Morto Encontrado Num Parque .................151O Jovem M á g ic o .............................................................................153Uma Certa Quantidade .............................................. ... 156B a rr ica d a ................................. . ... ... ... ... ... ... 158Poem a. ... ...................................... ........................... . ... 160Os Bantús e As A v e s ........................................... . ... ... 162Radiograma ........................................... . ... ..........................164

IIYou Are Welcome To Elsinose ............ ..........................167A utografia ............................................................................. ... 169A Edgar Allan P õ e ..................................................... . ... 180A Antônio Maria L is b o a .............................................. ... 188A Antonin A r ta u d ............................................................ ... 186Do Capítulo da D evolução............................................................ 190D itiram b o ................................. . ........................... ... ... 192Concreção de Saturno .. .................................................... ........194L em b ra-te ............................................................ ... ... ... 198Intensamente Livre ... ............................................ . ... 200

III

Corpo Visível ........................................................ ......................... 205Os Braços Sobre a A r e ia ................... . ............ ... ... 215Um Canto T elegráfico ........................... ............................. ......222Pena Capital .. ................................... .................................... ......229

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MANUAL DE PRESTIDIGITAÇÃO

Arte de Inventar os P erson agen s............................................251Arte de Ser Natural Com Eles ............................................252Exercício Espiritual ..................................................................... 254Cena Para o Final de Um Terceiro A c t o .................... ......256Variante da Cena A n ter ior..................................................... ......257Cena de Libertação Nos Jardins do Palácio de Epami-

nondas Im perador................................................................... 260Ars Magna .... ........................................................................ ......262Mágica ......................................................................................... ......264Vida e Milagres de Pápárikáss Bastardo do Imperador 267Colapso ............................................................................................... 270A Imaculada Concepção ....................................................... ......272Julião Os A m a d o res......................................................................274C am arim ........................................................................ ..................276O Prestidigitador Organiza Um E spectácu lo .......... ... 280Discurso do Príncipe de Epaminondas Mancebo de

Grande Futuro ....................................................... ... 282Manuel I ................................................................... . ............ ......284Coro dos Maus Oficiais de Serviço na Corte de Epami­

nondas Im perador............................................ ..................285Tal Como C a te d r a is ......................................................................2880 Prestidigitador Vai a Roma Implorar a Benção Papal..... 290 Enquanto..................................... ................. ..................................292

ESTADO SEGUNDO

1 ......295II ......296III ... ...............................................................................298IV ................................................................................................. ......300V ..................... ...................................... ......302

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VI . 303VII 305VII I . ............................................................................... 307IX . 308X 310XI . .................................... 312XII 314XII I 315XI V 316XV 318XV I ................... 319XVI I 320XVII I ...................................................... 321

ALGUNS MITOS MAIORES ALGUNS MITOS ME­NORES PROPOSTOS À CIRCULAÇÃO PELO AUTOR

O Gato Legível ..................................................... ............... . 325O Gato Dito Doméstico (ou de L in e u ) ............................. 327O Futuro Rei Rapaz de E s tr a d a s ..................................... 329O M arinheiro .......... ...................................... .................... 331A E s tr e la ...................................................................................... 332O Sol D a d o .......................... ...................................................... 333A Cabeça de Arcaifaz (Sismo) ..................................... 335A Noivadiagem (S erp en te )..................................................... ,3.37A Grafiaranha M a io r ............................................................... 339A C ria n ça .......... . .................................................................... 341A Hom osexoalm a............ ....................................................... 343O Estrepropulsor Diatérmico da Honra ... .................... 344A Rosa íris, Raparigataúde .............................................. 345Pintar o S e t e .............................................................................. 346O A ssassin os........................... ..................................................... 347O Berlinde B e r g ........................................................................ 349O Almirantexugo ........................................................... ... 350O Homem Mãe ........................................................................ 351

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C O M P O S T O E I M P R E S S O N A ED ITO RA G R A F IC A PO RTUGUESA , LDA. R. NOVA DO LOUREIRO, 18 A 34, LISBOA

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