Download - Plano de Aulas Ìndios
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
1
Fundamentos Antropolgicos para os Direitos dos Povos Indgenas
Autor: Jorge Gonalves de Oliveira Jnior 2 semestre/ 2012
Roteiro de Atividades Didticas
Atividade 1 ndios no Brasil contrariando o senso comum. Objetivos: Atacar os esteretipos redutores e preconceituosos existentes no senso comum sobre as caractersticas dos povos indgenas e sua histria, tais como: so selvagens e
preguiosos, esto apenas na Amaznia, so todos iguais, quando saem das aldeias ou
passam a usar tecnologia deixam de ser ndios e que esto acabando.
Previso de desenvolvimento: Duas aulas de 45 minutos.
Recursos necessrios: Laptop, data show e aparelhagem de som para reproduo do vdeo.
Dinmica utilizada:
Prope-se comear a aula perguntando aos alunos algumas destas questes: O que
um ndio?, Onde eles esto?, Como a cultura deles?, Eles esto acabando?. Sem
opinar ou corrigi-los, o (a) professor (a) deve anotar as respostas em lugar parte, talvez na
lousa, e ento mostrar-lhes o vdeo ndios no Brasil 1. Quem so eles? de Vincent
Carelli, com 18 minutos de durao, disponvel em:
http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php?c=83.
A srie ndios no Brasil foi realizada no ano 2000 e composta por dez programas
de aproximadamente 18 minutos realizados para a televiso e para ser exibido tambm nas
escolas, foi distribuda pelo Ministrio da Educao para 10.000 escolas e, dessa forma,
pode estar disponvel em vdeo na biblioteca escolar. Tambm so de domnio pblico e
podem ser baixadas gratuitamente. Dessa forma, caso a escola no tenha um laptop para
exibir o vdeo online, o prprio professor pode baixar na rede e gravar em DVD para a
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
2
reproduo em aparelhos domsticos. Mais informaes sobre a srie podem ser
acessadas no link: http://www.videonasaldeias.org.br/2009/indios_no_brasil.php.
Em seguida, retomar as questes e as respostas dos alunos e realizar um debate,
com a turma disposta em crculo ou em U, sobre as informaes que o documentrio
trouxe e as respostas dos populares do vdeo e dos prprios alunos.
Algumas questes com relao estrutura cinematogrfica da obra tambm devem
ser levantadas, como a forma flmica de desmontar os preconceitos; quando, por exemplo,
logo aps a fala de uma estudante de que, para ela, ndio deve andar nu, usar botoques e
falar outra lngua, imediatamente aparece um ndio, vestindo uma camisa e sem pintura, fala
em sua lngua original e, logo depois, de peito nu e pintado, fala em portugus (00:11:45); ou mesmo os vrios momentos em que aps uma fala equivocada de um popular, uma
liderana indgena fornece informaes diferentes ou contrrias, como, por exemplo, a ideia
de que os ndios estariam acabando (00:15:29).
Cena do filme ndios no Brasil 1. Quem so eles?
A questo da lngua tambm importante, vrios sotaques da Lngua Portuguesa
aparecem no vdeo e os alunos podem perceber ou comentar como, por exemplo, algumas
lideranas indgenas se expressam em um Portugus mais vernacular que os prprios
neobrasileiros, quebrando tambm o preconceito lingustico da fala de ndio. Tambm
bom lembrar que a dificuldade de alguns com o Portugus se deve ao fato de que, para
eles, trata-se de uma segunda lngua.
Nessa discusso tambm importante definir para os alunos a diferena entre
cultura e etnia, presentes no artigo que acompanha essa sequncia didtica. possvel
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
3
utilizar as informaes do vdeo para perceber, por exemplo, que, dentro da categoria
ndios, h vrias etnias e mesmo a diferenciao entre brancos e ndios se d a partir
desse conceito, pois no toda a cultura que diferencia uma etnia de outra ou os brancos
dos ndios, mas algumas categorias de diferenciao, e, portanto, tnicas. Nesse sentido, o
usar bigode ou vestir roupas no so elementos que fazem o ndio perder a sua
identidade, pois outros elementos etno-culturais que so representativos de uma etnia,
como a pintura corporal, a lngua e a realizao de certos rituais.
Ao final da sequncia, importante enumerar as informaes e questes que o vdeo
trouxe e que contrariaram as noes iniciais dos alunos. Pode ser interessante mostrar
alguns dados de outras fontes com relao ao que foi mostrado, por exemplo, nmeros do
IBGE que mostram o crescimento vegetativo da populao indgena. Tambm importante
destacar as diferenas entre uma figura ideal de ndio, presente tambm no senso comum e
elaborada pelo indianismo romntico, com os indivduos reais que aparecem no vdeo e
suas demandas sociais verdadeiras.
Atividade complementar: Caso o professor se interesse, os programas da srie ndios no Brasil, dos nmeros 2 ao 9, apresentam costumes especficos de determinadas etnias (o
programa 10, sobre direitos, ser usado na ltima atividade) e talvez possa ser um
interessante exerccio mostrar um ou mais desses programas a fim de perceber e discutir
diferenas culturais. Em especial o programa nmero 3, Boa Viagem Ibantu! mostra um
grupo de adolescentes de diversos pontos do Brasil em uma visita a uma aldeia Krah, a fim
de presenciarem um ritual de iniciao. Nesse caso, vale a pena o professor pesquisar um
pouco sobre os costumes da etnia apresentada no filme, a fim de responder dvidas
pontuais que venham a surgir por parte dos alunos.
Atividade 2 Direitos dos Povos Indgenas: o caso Guarani Kaiow Objetivos: Apresentar aos alunos a problemtica dos direitos dos povos indgenas por meio de um estudo do caso dos Guarani Kaiow.
Previso de Desenvolvimento: Uma aula de 45 minutos.
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
4
Recursos Necessrios: Xerox da reportagem Decretem nossa extino e nos enterrem aqui de Eliane Brum. Disponvel em http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-
brum/noticia/2012/10/decretem-nossa-extincao-e-nos-enterrem-aqui.html Dinmica Utilizada: A turma deve ser dividida em pequenos grupos e, em seguida, uma cpia do artigo de Eliane Brum sobre a questo Guarani Kaiwo deve ser entregue a cada um deles. O
professor ento deve orient-los a responder algumas questes sobre a denncia da autora
do artigo: Qual problema apontado? Quais os grupos sociais envolvidos? Quais os direitos
envolvidos? De que lado a autora se posiciona?
Tais perguntas podem ser respondidas oralmente ou por escrito, dependendo da
dinmica da turma e interesse do professor. Em seguida, uma ltima e importante questo
deve ser lanada a fim de iniciar um debate: a autora cita trs cartas: a carta dos Guarani
Kaiow, a carta de Pero Vaz de Caminha e a Constituio de 88, tambm conhecida como
carta magna, qual o contexto da criao dessas trs cartas e qual o seu contedo?.
Pretende-se, por meio dessa discusso sobre o gnero epistolar, focar o problema
dos direitos dos povos indgenas e destacar a constituio de 88 como documento central
do estabelecimento desses direitos. preciso deixar claro que a Carta de Caminha marca
um momento de sujeio desses povos, a Constituio marca uma virada do
reconhecimento de seus direitos e a carta dos Kaiow indica um alerta de que tais direitos
no esto sendo respeitados.
importante destacar que a repercusso desse artigo na poca levou a uma
comoo popular e a diversos protestos no Brasil e manifestaes nas redes sociais no
facebook, muitos usurios acrescentaram Guarani Kawo a seus nomes. Tambm
surgiram outros artigos, tanto sobre o caso, quanto sobre sua repercusso na mdia, pode
ser interessante, caso o professor tenha tempo, cotejar o artigo sugerido com outros desses
materiais. Talvez, devido a essas manifestaes, a reintegrao de posse foi suspensa e o
caso continua aguardando uma soluo. Recomenda-se ao professor que se informe sobre
seus recentes desdobramentos, a fim de enriquecer o contedo da aula.
Segue a ntegra do artigo sugerido:
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
5
Decretem nossa extino e nos enterrem aqui ELIANE BRUM
A declarao de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovs demonstra a
incompetncia do Estado brasileiro para cumprir a Constituio de 1988 e mostra que
somos todos cmplices de genocdio uma parte de ns por ao, outra por omisso
- Pedimos ao Governo e Justia Federal para no decretar a ordem de despejo/expulso,
mas decretar nossa morte coletiva e enterrar ns todos aqui. Pedimos, de uma vez por
todas, para decretar nossa extino/dizimao total, alm de enviar vrios tratores para
cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este o nosso pedido aos
juzes federais.
O trecho pertence carta de um grupo de 170 indgenas que vivem beira de um rio no
municpio de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram
ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis Caiovs), aps
receberem a notcia de que a Justia Federal decretou sua expulso da terra. So 50
homens, 50 mulheres e 70 crianas. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistncia
morrer com tudo o que so, na terra que lhes pertence.
H cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1 de maio de 1500, que so documentos
de fundao do Brasil: fundam uma nao, ainda sequer imaginada, a partir do olhar
estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E h cartas,
como a dos Guaranis Caiovs, escritas mais de 500 anos depois, que so documentos de
falncia. No s no sentido da incapacidade do Estado-nao constitudo nos ltimos
sculos de cumprir a lei estabelecida na Constituio hoje em vigor, mas tambm dos
princpios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formao do que
se convencionou chamar de o povo brasileiro. A partir da carta dos Guaranis Caiovs,
tornamo-nos cmplices de genocdio. Sempre fomos, mas tornar-se saber que se .
Os Guaranis Caiovs avisam-nos por carta que, depois de tantas dcadas de luta para
viver, descobriram que agora s lhes resta morrer. Avisam a todos ns que morrero como
viveram: coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indgenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e Justia Federal que, por fim, j perdemos a
esperana de sobreviver dignamente e sem violncia em nosso territrio antigo. No
acreditamos mais na Justia Brasileira. A quem vamos denunciar as violncias praticadas
contra nossas vidas? Para qual Justia do Brasil? Se a prpria Justia Federal est gerando
e alimentando violncias contra ns. Ns j avaliamos a nossa situao atual e conclumos
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
6
que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. No temos e nem teremos perspectiva
de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui
acampados a 50 metros do rio Hovy, onde j ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram
por meio de suicdio, 2 em decorrncia de espancamento e tortura de pistoleiros das
fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy h mais de um ano. Estamos sem
assistncia nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos at hoje. Comemos
comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso territrio
antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso
territrio antigo esto enterrados vrios de nossos avs e avs, bisavs e bisavs, ali est o
cemitrios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histrico, ns j vamos e
queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde
estamos hoje. () No temos outra opo, esta a nossa ltima deciso unnime diante do
despacho da Justia Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcanar o desespero de uma deciso de morte coletiva? No podemos.
No sabemos o que isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por
nossa ao ou inao. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que at hoje tm
na violncia sua principal interseco.
Desde o nicio do sculo XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getlio
Vargas, iniciou-se a ocupao pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovs. Os indgenas,
que sempre viveram l, comearam a ser confinados em reservas pelo governo federal,
para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de A Grande
Marcha para o Oeste. A viso era a mesma que at hoje persiste no senso comum: terra
desocupada ou no h ningum l, s ndio.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na poca foi confin-los como gado, num
espao de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo ou, na palavra
que deles, Teko Por (o Bem Viver). Com a chegada dos colonos, os indgenas
passaram a ter trs destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas como mo de obra
semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis
Caiovs, a terra a qual pertencem a terra onde esto sepultados seus antepassados. Para
eles, a terra no uma mercadoria a terra .
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonizao do Mato Grosso do Sul se intensificou.
Um grande nmero de sulistas, gachos mais do que todos, migrou para o territrio para
ocupar a terra dos ndios. Outros despacharam pees e pistoleiros, administrando a
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
7
matana de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam e vivem at
hoje como cidados de bem, fingindo que no tm sangue nas mos.
Com a redemocratizao do pas, a Constituio de 1988 representou uma mudana de
olhar e uma esperana de justia. Os territrios indgenas deveriam ser demarcados pelo
Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, no foi. O processo de identificao,
declarao, demarcao e homologao das terras indgenas tem sido lento, sensvel a
presses dos grandes proprietrios de terras e da parcela retrgrada do agronegcio. E,
mesmo naquelas terras que j esto homologadas, em muitas o governo federal no
completou a desintruso a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e
fazendeiros , aprofundando os conflitos.
Nestas ltimas dcadas testemunhamos o genocdio dos Guaranis Caiovs. Em geral, a
situao dos indgenas brasileiros vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovs, o segundo
grupo mais numeroso do pas, considerada a pior de todas. Confinados em reservas como
a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil
hectares, eles encontram-se numa situao de colapso. Sem poder viver segundo a sua
cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corrodos pelo
alcoolismo dos adultos e pela subnutrio das crianas, os ndices de homicdio da reserva
so maiores do que em zonas em estado de guerra.
A situao em Dourados to aterradora que provocou a seguinte afirmao da vice-
procuradora-geral da Repblica, Deborah Duprat: A reserva de Dourados talvez a maior
tragdia conhecida da questo indgena em todo o mundo. Segundo um relatrio do
Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o ndice de
assassinatos na Reserva de Dourados de 145 para cada 100 mil habitantes no Iraque, o
ndice de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado mdia brasileira, o ndice de
homicdios da Reserva de Dourados 495% maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiov se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a
prpria vida. A maioria deles enforcou-se num p de rvore. Entre as vrias causas
elencadas pelos pesquisadores est o fato de que, neste perodo da vida, os jovens
precisam formar sua famlia e as perspectivas de futuro so ou trabalhar na cana de acar
ou virar mendigos. O futuro, portanto, um no ser aquilo que se . Algo que, talvez para
muitos deles, seja pior do que a morte.
Um relatrio do Ministrio da Sade mostrou, neste ano, o que chamou de dados
alarmantes, se destacando tanto no cenrio nacional quanto internacional. Desde 2000,
foram 555 suicdios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
8
deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o ndice de suicdios em 2007 foi de 4,7 por
100 mil habitantes. Entre os indgenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o
ndice de suicdios entre os Guaranis Caiovs chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados
oficiais. Os pesquisadores acreditam que os nmeros devem ser ainda maiores, j que parte
dos suicdios escondida pelos grupos familiares por questes culturais.
As lideranas Guaranis Caiovs no permaneceram impassveis diante deste presente sem
futuro. Comearam a se organizar para denunciar o genocdio do seu povo e reivindicar o
cumprimento da Constituio. At hoje, mais de 20 delas morreram assassinadas por
ferirem os interesses privados de fazendeiros da regio, a comear por Maral de Souza,
em 1983, cujo assassinato ganhou repercusso internacional. Ao mesmo tempo, grupos de
Guaranis Caiovs abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas
tekoh, terras originais, na luta pela retomada do territrio e do direito vida. Alguns grupos
ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30 acampamentos beira da estrada,
numa situao de absoluta indignidade. Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrio
infantil avassaladora.
A trajetria dos Guaranis Caiovs que anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino
ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianas empreenderam um
caminho em busca da terra tradicional, localizada s margens do Rio Hovy, no municpio de
Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de
fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e cercados por pistoleiros, a mando dos
fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros j derrubaram dez vezes a ponte mvel feitas por
eles para atravessar um rio com 30 metros de largura e trs de fundura. Em um ano, dois
indgenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram.
Em tentativas anteriores de recuperao desta mesma terra, os Guaranis Caiovs j tinham
sido espancados e ameaados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos
vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasio, mulheres, velhos e
crianas tiveram seus braos e pernas fraturados. O que a Justia Federal fez? Deferiu uma
ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundao Nacional do ndio) afirmou que est
trabalhando para reverter a deciso.
Os Guaranis Caiovs esto sendo assassinados h muito tempo, de todas as formas
disponveis, as concretas e as simblicas. A impunidade a maior agresso cometida
contra eles, afirma Flvio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso do Sul. Nas
ltimas dcadas, h pelo menos duas formas interligadas de violncia no processo de
recuperao da terra tradicional dos indgenas: uma privada, das milcias de pistoleiros
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
9
organizadas pelos fazendeiros; outra do Estado, perpetrada pela Justia Federal, na qual
parte dos juzes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na regio, toma decises
que no s compactuam com a violncia , como a acirram.
Quando os pistoleiros no conseguem consumar os despejos e massacres truculentos dos
indgenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na
Justia, afirma Egon Heck, indigenista e cientista poltico, num artigo publicado em relatrio
do CIMI. No momento em que ocorre a ordem de despejo, os agentes policiais agem de
modo similar ao dos pistoleiros, visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas,
ameaam e assustam as crianas, mulheres e idosos.
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder aps a
Constituio de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos,
Lula reconheceu que deixava o governo com essa dvida junto ao povo Guarani Caiov.
Legava a tarefa sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indgenas escreveram, ento, uma
carta: Presidente Dilma, a questo das nossas terras j era para ter sido resolvida h
dcadas. Mas todos os governos lavaram as mos e foram deixando a situao se agravar.
Por ultimo, o ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas no resolveu.
Reconheceu que ficou com essa dvida para com nosso povo Guarani Caiov e passou a
soluo para suas mos. E ns no podemos mais esperar. No nos deixe sofrer e ficar
chorando nossos mortos quase todos os dias. No deixe que nossos filhos continuem
enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperana de futuro () Devolvam nossas
condies de vida que so nossos tekoh, nossas terras tradicionais. No estamos pedindo
nada demais, apenas os nossos direitos que esto nas leis do Brasil e internacionais.
A declarao de morte dos Guaranis Caiovs ecoou nas redes sociais na semana passada.
Gerou uma comoo. No a primeira vez que indgenas anunciam seu desespero e seu
genocdio. Em geral, quase ningum escuta, para alm dos mesmos de sempre, e o que era
morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferena desta carta o fato de ela ecoar
algo que repetido nas mais variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os
mais diversos, considerado at um comentrio espirituoso em certos espaos
intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor sem os ndios.
Desqualificar os ndios, sua cultura e a situao de indignidade na qual vive boa parte das
etnias uma piada clssica em alguns meios, to recorrente que se tornou quase um clich.
Para parte da elite escolarizada, apesar do esforo empreendido pelos antroplogos, entre
eles Lvi-Strauss, as culturas indgenas ainda so vistas como atrasadas, numa cadeia
evolutiva nica e inescapvel entre a pedra lascada e o Ipad e no como uma escolha
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
10
diversa e um caminho possvel. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da
ignorncia, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas vises de
mundo das 230 etnias indgenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a Histria do Brasil, a partir da descoberta e da colonizao, marcada pelo olhar de
que o ndio um entrave no caminho do progresso ou do desenvolvimento. Entrave
desde os primrdios primeiro, porque teve a deselegncia de estar aqui antes dos
portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus.
A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a prpria sociedade tenha
mudado em muitos aspectos, a concepo do ndio como um entrave persiste. E persiste de
forma impressionante, no s para uma parte significativa da populao, mas para setores
do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestes passadas.
Entraves precisam ser removidos. E tm sido, de vrias maneiras, como a Histria, a
passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das explicaes possveis para o
impacto da carta de morte ter alcanado um universo maior de pessoas. Desta vez, so os
ndios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte forma: isso o que
vocs querem? Nos matar a todos? Ento ns decidimos: vamos morrer. Ao devolver o
desejo a quem o deseja, o impacto grande.
importante lembrar que carta palavra. A declarao de morte coletiva surge como
palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que a palavra
para os Guaranis Caiovs. Em um texto muito bonito, intitulado e' a palavra alma, a
antroploga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos d
algumas pistas:
A palavra a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos
chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experincias da vida so
experincias de palavra. Deus palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a
palavra se senta ou prov para si um lugar no corpo da criana. A palavra circula pelo
esqueleto humano. Ela justamente o que nos mantm em p, que nos humaniza. (...) Na
cerimnia de nominao, o xam revelar o nome da criana, marcando com isso a
recepo oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida doenas, tristezas,
inimizades etc. so explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra
divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforam para trazer de volta, voltar
a sentar a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a sade.(...) Quando a palavra no tem mais
lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um no-ser, uma palavra-que-no--
mais. (...) e' e ayvu podem ser traduzidos tanto como palavra como por alma, com o
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
11
mesmo significado de minha palavra sou eu ou minha alma sou eu. (...) Assim, alma e
palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-
palavra, sendo a alma no uma parte, mas a vida como um todo.
A fala, diz o antroplogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Amerndios
da Universidade de So Paulo, a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis
Caiovs. A palavra o cerne da resistncia. Tem uma ao no mundo uma palavra que
age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite entre o discurso e a profecia tnue.
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita,
interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovs mais de 500 anos depois.
Na carta-fundadora, o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha
para os ndios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovs, so os ndios
que olham para ns. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que
nos dizem?)
A declarao de morte dos Guaranis Caiovs palavra que age. Antes que o espasmo de
nossa comoo de sof migre para outra tragdia, talvez valha a pena uma ltima pergunta:
para ns, o que a palavra?
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prmios nacionais e internacionais de reportagem. autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de trs livros de reportagem: Coluna Prestes O Avesso da Lenda (Artes e Ofcios), A Vida Que Ningum V (Arquiplago Editorial, Prmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentrios: Uma Histria Severina e Gretchen Filme Estrada. [email protected].
Atividade 3 A mobilizao dos povos indgenas
Objetivos: Apresentar conceitos e leis especficas relativas aos direitos indgenas e concluir a sequncia didtica.
Previso de Desenvolvimento: Uma aula de 45 minutos. Recursos Necessrios: Laptop, data show e aparelhagem de som para reproduo do vdeo.
-
Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH Departamento de Sociologia
Laboratrio Didtico - USP ensina Sociologia __________________________________________________________________________
12
Dinmica Utilizada: O professor dever iniciar a aula retomando a questo da Constituio de 88 como marco do reconhecimento dos direitos indgenas, apresentar a problemtica do
estatuto do ndio (que faz parte do corpo de leis do cdigo civil) como sendo ainda um fator
limitador do direito de autodeterminao pela viso do ndio como um cidado inferior, e a
diferena entre leis orientadas para um integracionismo, ou seja, assimilao do ndio na
comunidade nacional, e leis que respeitem a sua autodeterminao.
Ento exibir o ltimo filme da srie vdeo nas aldeias que trata justamente sobre a
questo dos direitos: http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php?c=86
Nesse ltimo vdeo da srie, os mesmos atores do primeiro vdeo falam agora sobre
a questo dos direitos e citam, vrias vezes, tanto a Constituio de 88 quanto o Estatuto do
ndio (da a necessidade de explicar esses documentos antes da exibio).
Observar, finalmente, como o depoimento do lder Ashaninka e dos lderes da FOIR
(Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro) acrescentam a questo da
organizao dos prprios ndios em federaes e rgos polticos no sentido de garantir a
realizao dos seus direitos. necessrio ressaltar essa virada importante, pois em vez de
esperar a aplicao das leis, esses grupos procuraram se organizar para exigir que a
Constituio seja cumprida, principalmente no que se refere demarcao de suas terras.
Tambm ser possvel notar a semelhana de alguns depoimentos com o artigo de Eliane
Brum com relao discrepncia entre o texto da lei e a realidade da aplicao dos direitos
dos ndios. Essa ltima parte pode ser feita por meio de um debate no qual o professor
retome os principais pontos apresentados durante a sequncia de atividades.
Como concluso, caso haja a possibilidade, o professor pode exibir, ou no mnimo
recomendar, o excelente curta de animao Pajerama de Leonardo Cadaval, presente em:
http://vimeo.com/4873626 e facilmente encontrado do youtube e em outros canais de vdeo.