Versão de divulgação (não contém o livro na íntegra)
É isso aí bicho!
Contracultura e Psicodelia no Brasil
Versão de divulgação (não contém todos os
capítulos)
Contém:
Introdução
Capítulo 4
Considerações finais
IGOR FERNANDES PINHEIRO
É isso aí bicho!
Contracultura e Psicodelia no Brasil
PINHEIRO. Igor Fernandes. É isso aí bicho! Contracultura e psicodelia no Brasil. Rio de Janeiro. Editora Multifoco. 2013.
Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.
Jack Kerouac, Na Estrada
Nosso som é o som do mundo para ser sacado e curtido.
Módulo 1000 (jornal Rolling Stone nº 4)
Sejam realistas. Peçam o impossível!
Cartaz dos estudantes franceses em maio de 1968
Há uma certa lógica nessa loucura
Sheakespeare, Hamlet
Tantas histórias, tantas perguntas
Bertolt Brecht
INTRODUÇÃO:
Vocês gostam de Wanderléa? (Não!) / Vocês gostam do rei Roberto Carlos? (Não!) / Vocês gostam de Serguei?/ Então eu vou cantar as minhas alucinações/ Mas a mamãe me diz assim/ Corta este cabelo, essa juba de leão/ Falei então pra ela, nunca uma tesoura/ Não quero ser careca eu prefiro ser Sansão/ Serguei alargue essas calças/ Que parecem dois funis/ Camisas coloridas faça delas cortinado/ Calça apertadinha só quem usa é transviado/Boca de sino pra marujo fica bem/ Bermudas de florzinha pra meu filho não convém [...] Burguesia respeitosa/ Escravizada a tradições/ Não entende nosso mundo/ Nosso mundo de emoções, ai vai nosso protesto/ Juventude sangue quente/ Nossa música avançada representa nossa gente/ Mamãe me compreenda/ Vossa lenda é do passado/ O agudo da guitarra é pra nós avançado/ Nossa meta é a liberdade/ Nossa música é a emoção/ Nossa vida é mais verdade
Serguei 1
A contracultura brasileira possui elementos que
produzem uma combinação explosiva e obscura, há um
misto de mitologias e esquecimentos a seu respeito. Ao
mesmo tempo em que grandes nomes foram cristalizados
como baluartes da oposição e da radicalidade como Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Novos Baianos, Raul
1“As alucinações de Serguei”, música presente no compacto simples do cantor Serguei, lançado em 1966. Gravadora Equipe.
Seixas e Secos e Molhados, há também um vasto número de
artistas contestadores que construíram experimentalismos
musicais nos palcos e nos estúdios que foram barrados pela
memória social e enquadramentos de memória. Nomes
como Ave Sangria, Módulo 1000, Spectrum e A Bolha
soam estranhos ao grande público. Talvez os artistas
abordados neste livro apareçam pela primeira vez ao leitor.
A geração que compôs uma multidão de jovens de
cabelos compridos que produziram manifestações
relacionadas à contracultura utilizando o rock como
linguagem nas décadas de sessenta e setenta parece estar
estacionada no tempo. As pesquisas não dão conta da
complexidade deste período, além da já mencionada
centralidade em alguns personagens, a história destes jovens
parece estar dispersa no tempo, longe dos livros que
compõem a bibliografia relacionada à música brasileira.
Com a exceção de raras notas na imprensa, alguns antigos
membros de bandas, jornalistas e fãs atuam em sites e blogs,
funcionando assim como memorialistas deste período, não
deixando estas manifestações desvanecerem no tempo.
Desta forma este trabalho busca organizar uma narrativa
acerca da contracultura no Brasil utilizando como referencia
artistas que não foram legitimados pela história e imprensa
especializada. Como não é possível dar conta de toda
conjuntura neste trabalho, o último capítulo realiza um
estudo de caso referente a uma destas bandas, a banda
Spectrum, a fim de abrir novos caminhos interpretativos
sobre este período.
A psicodelia, palavra presente no título desta
pesquisa, não se refere exatamente ao uso de substâncias
psicoativas alucinógenas como a mescalina e o LSD,
capazes de induzirem distorções percepcionais e cognitivas.
A palavra psicodelia é empregada no sentido estético-
musical alinhado à contracultura, capaz de realizar um som
experimental, distorcido e subjetivo, cujos temas das letras
muitas vezes fazem referência a pensamentos de liberdade,
comportamento rebelde, estilo de vida jovem, diversão,
natureza, temas políticos e as já mencionadas drogas. O fato
é que o psicodelismo foi intensamente expresso na música
brasileira, afinal nunca antes os chamados conjuntos de rock
influenciados pela contracultura foram tão populares.
Contrariando o diagnóstico preponderante na bibliografia
existente, os jovens que ensaiavam em garagens e tocavam
em circuitos de bailes em clubes não eram meros copiadores
americanizados, de certa forma até mesmo alguns elementos
da dita “tradição” brasileira aparecem nas gravações da
época. Proporcionando assim, mesclas de ritmos brasileiros
ao rock, além do deslocamento dos temas das canções para a
realidade brasileira.
O rock no Brasil passou a ocupar espaço nas notícias
com uma menina que interpretou versões brasileiras de
sucessos internacionais, como “Estúpido Cupido” (Stupid
Cupid) e “Banho de Lua” (Tintarella di luna). Celly
Campelo despertou junto com um grande número de
cantores e instrumentistas que mais tarde seriam
denominados como a Jovem Guarda (devido ao nome do
programa apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e
Wanderléa) o entusiasmo de milhares de jovens no país,
abrindo assim caminho para o que viria a seguir em matéria
de comportamento e contestação no período muitas vezes
denominado como “anos de chumbo”, expressão que
designa o período mais repressivo da ditadura militar no
Brasil, após o recrudescimento do regime militar com a
emissão do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 1968, durante o
governo do então presidente Costa e Silva. Este período se
estendeu até o governo de Ernesto Geisel quando finalmente
os Atos Institucionais foram revogados pela emenda
constitucional nº 11 de 1978.
Em meio a canções que praguejavam “quero que vá
tudo pro inferno”2 e a emissão de “acordes dissonantes pelos
cinco mil alto-falantes”3 da Tropicália, reflexos da arte e de
questões políticas se espalharam das mais variadas formas
pelo Brasil, unindo influências estadunidenses e europeias a
regionalismos brasileiros, representando assim o grito de
uma geração. Grito este que não se resumia necessariamente
a contestação estrita, era também o grito da diversão
proporcionada por algo novo que estava acontecendo
naquele período. Surgiram por todo país, principalmente nas
regiões metropolitanas, grupos de jovens que queriam fazer
músicas livres das amarras daqueles anos de
conservadorismo.
O modo de se vestir e de viver, os tabus enfrentados
e as apresentações mal comportadas nos palcos
demonstraram uma liberdade jamais vista até então. Porém
estas novidades esbarraram na censura militar, no
conservadorismo da sociedade e até mesmo no
estranhamento por parte das gravadoras. Todos estes fatores
e outros que serão abordados no decorrer deste livro
2“Quero que vá tudo pro inferno”, música gravada por Roberto Carlos, lançada pela CBS em 1965. É a primeira faixa do LP “Jovem Guarda”. 3“Tropicália”, música gravada por Caetano Veloso e lançada pela Phillips em 1967 no LP que leva o nome do cantor.
apontam para o esquecimento relegado a centenas de
bandas, hoje encontradas no underground4 da música
brasileira. As informações referentes a estes artistas hoje são
acessíveis através da internet, ferramenta da modernidade
que traz à luz informações ignoradas nos livros, mas que
podem ser vasculhadas e compartilhadas em horizontes
virtuais.
Além do já mencionado panteão nacional da
contracultura, falado e querido pelos críticos, muito se
escreveu e se falou sobre a contracultura internacional,
principalmente as manifestações ocorridas nos EUA e na
Europa. Hoje Jimi Hendrix, Janis Joplin, Beatles e Rolling
Stones são figurinhas fáceis quando se trata do tema. O
Woodstock e o Monterey Pop Festival5 são eventos
lembrados pela memória referente a este período. Porém o
que estava acontecendo no Brasil em termos de
4Subterrâneo na língua inglesa. Termo utilizado para designar manifestações e produtos da indústria cultural que não são convencionais. 5 Woodstock Music & Art Fair, realizado em agosto de 1969 na cidade de Bethel, região rural de Nova York e Monterey Pop Festival, realizado na cidade de Monterey na Califórnia em junho de 1967. Dois grandes festivais de música que despertaram o interesse de milhares de pessoas para o rock devido à repercussão que causaram. Podemos dizer que estes festivais ajudaram a criar o “know how” técnico e administrativo dos grandes festivais tão difundidos hoje, como o Rock in Rio, Lollapalooza, Wacken Open Air, entre tantos outros.
contracultura? Será que como espaço de contestação só
existia o tão mencionado e mitificado Píer de Ipanema6,
onde se espalhavam pelo horizonte as dunas do barato
frequentadas por Gal Costa? Na verdade estes ambientes se
espalharam por várias garagens, comunidades, sítios e
praças do Brasil, assim como ocorreram diversos eventos
como o Festival de Verão de Guarapari em 1971 e a I Feira
experimental de música do Nordeste em 1972. Guardadas as
devidas proporções, afinal não se quer com isto comparar
tais eventos, muitas vezes fadados ao fracasso a
empreendimentos gigantescos como o Woodstock. É visível
que as manifestações e contestações pipocaram das mais
distintas maneiras em diversos locais, porém ainda são
pouco exploradas pelos pesquisadores que preferem
privilegiar acontecimentos como “A era dos Festivais”7 e
6Píer construído para viabilizar a construção de um emissário submarino entre 1970 e 1974. Localizado onde hoje é o posto nove. O local despertou primeiramente a atenção dos surfistas por causa do deslocamento da arrebentação das ondas produzidas de forma artificial devido ao deslocamento de areia. “Mas não tardou para que toda sorte de figuras também cruzasse a barreira artificial (as dunas e as cercas) e também chegasse àquele oásis. Lá instaurou-se gradualmente uma coletividade que cada vez mais se integrava ao que mundialmente ficou conhecido como contracultura”. ALONSO. Gustavo. O Píer da Resistência. Ver bibliografia. 7Os Festivais da Música Brasileira eram programas transmitidos pelas emissoras de televisão Excelsior, Record, Rio e Globo no período que vai de 1965 a 1985, mas que teve seu auge nos anos 1960-1970. Estes
tantos outros redutos consagrados da música brasileira. Não
que os temas mencionados estejam esgotados, porém há
uma grande concentração em determinados assuntos, em
detrimento de outros pouco observados.
Desta forma, nos próximos capítulos serão trazidos à
tona nomes esquecidos que involuntariamente desviaram do
caminho do sucesso. As variações relacionadas ao pop e ao
underground de certa forma serão abordadas a fim de se
descortinar velhos artistas que ainda hoje soam como
novidade, seja pela pouca familiaridade que a sociedade
brasileira possui com as bandas aqui apontadas, seja pelo
estranhamento que causaram e continuam causando, devido
à sonoridade e apresentações nos palcos, entre outros
elementos. O importante é transformar o olhar que observa a
festivais consolidaram o que chamamos hoje de MPB. Entre estes, o I Festival da Música Popular Brasileira (1965) vencido pela música “Arrastão” de autoria de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, defendida por Elis Regina; II Festival da Música Popular Brasileira (1966) vencido pela Música “A Banda” de Chico Buarque, interpretada pelo compositor e Nara Leão; III Festival da Música Popular Brasileira vencido pela música “Ponteio” de Edu Lobo e Capinam. Neste Festival o tropicalismo foi revelado para o grande público, através das músicas “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, defendida junto com os Beat Boys e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil, defendida junto com os Mutantes; III FIC (1968) vencido pela música “Sábia” de autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, neste festival a segunda colocada foi “Para não dizer que não falei de Flores” de Geraldo Vandré, emblemática música de protesto.
música brasileira muitas vezes em categorias homogêneas,
sem levar em consideração as reuniões criativas de
contradições existentes neste período, onde os jovens
estavam bastante distantes de um consenso estético-musical
e político.
4.1) A GERAÇÃO BENDITA
“Eu sou psicodélico /Eu sou
psicodélico/ A vida para um
hippie é mais vida/ O mundo é
uma flor/ Sem espinhos e sem
dor/ Plantada com amor”
Serguei 8
No Brasil as manifestações de caráter libertário
receberam atenção especial de Luiz Carlos Maciel, um dos
primeiros jornalistas a divulgar a contracultura no país,
através de veículos da imprensa alternativa como os jornais
O Pasquim, Flor do Mal e Rolling Stone. Para o jornalista, a
“Nova Consciência” alterou a velha sociedade estagnada,
contaminando todos, seres perplexos e decepcionados pelos
acontecimentos. Desta forma estes comportamentos se
concretizaram no bojo do underground, nas vozes que
clamam por paz e amor. Em um de seus artigos de jornal
8“Eu Sou Psicodélico” do compacto simples do cantor Serguei. Continental. 1968.
Maciel finaliza perguntando ao leitor: quem pode negar essa
transformação9?
Depositando esperança na contracultura,
posteriormente Luiz Carlos definiria o conceito de duas
maneiras: como um fenômeno concreto e particular dos
anos sessenta, e como um posicionamento crítico e radical
frente à cultura convencional10. O primeiro sentido do termo
o engessa no tempo, já o segundo o torna mais amplo, uma
conduta que mira o presente e o futuro.
Apontando tanto para os elementos globais quanto
para os elementos locais, Rodrigo Merheb em “O som da
revolução”11 acrescenta que o rock dos anos sessenta bebeu
da fonte oriental a fim de acrescentar um tipo de exotismo,
trazendo assim elementos espirituais e religiosos em
contraponto ao materialismo decadente da sociedade
ocidental. Os elementos da contracultura sob a marca do
rock mais o poderio econômico dos EUA e Inglaterra
criaram alicerces capazes de produzir um novo sumário para
9MACIEL. Luiz Carlos. Sol do Ano Novo. Rolling Stone. n. 36. 05/01/73. p. 21. 10MACIEL. Luiz Carlos. Revista Careta. n. 2736. Julho de 1981. p. 19. 11MERHEB. Rodrigo. Op. Cit.
a juventude. Ocorreram adaptações em todo o mundo onde
emergiram ingredientes locais12.
Merheb traz uma importante questão acerca do rock
brasileiro: de que maneira o Brasil existe neste contexto? É
apontado o exemplo dos Mutantes, banda muito cultuada
não apenas no Brasil como também no exterior. De acordo
com o autor, até meados dos anos 90 os Mutantes não
possuíam visibilidade para o resto do mundo, permanecendo
um fenômeno nacional. Mesmo no Brasil a banda não foi
referência para os artistas dos anos 80, estes foram
primordialmente influenciados pelo punk britânico e
estadunidense. A obra realizada pelos Mutantes ficou
restrita a poucos ouvintes até mesmo em sua época, a banda
não chegou a fazer um estrondoso sucesso no Brasil. A
barreira quanto ao conhecimento da banda pelos
estrangeiros se deu de diversas formas, afinal os Mutantes
estavam distantes geograficamente, à margem das cenas da
Califórnia e Londres, além disto, utilizavam o idioma
português e uma série de regionalismos. No Brasil havia
tanto o repúdio dos militantes de esquerda ao rock
estrangeiro praticado pela banda como também pelos
conservadores, devido ao som demasiadamente 12MERHEB. Rodrigo.Op. Cit. p. 11.
experimental13. É interessante observar que as músicas que
influenciaram os Mutantes e tantas outras bandas nacionais
eram lançadas no Brasil através de um catálogo carente e de
lentas mudanças, o mercado era caro e restrito. A troca de
informações também era muito distinta de hoje, onde os
sites possibilitam um grande número de informações, fotos e
músicas.
Do ponto de vista social e político, Marcos
Napolitano afirma que foram inventados novos espaços de
contestação e expressão, formando-se no final dos anos
sessenta uma rede alternativa de consumo, afastada das
grandes empresas, relacionada ao artesanato, imprensa
alternativa e ao cinema marginal14. Muitos destes circuitos
eram realizados pela população universitária que cresceu
significativamente entre os anos sessenta e setenta.
Napolitano afirma que uma das opções significativas para o
jovem contestador, naquele contexto, era o “desbunde”,
classificado pelo historiador como a busca pela vida “fora”
da sociedade estabelecida. Napolitano observa que a cultura
ligada ao lazer era relacionada à alienação por setores
críticos da juventude, sendo construída assim a visão de que 13Idem. p. 12. 14NAPOLITANO. Marcos. Utopia e Massificação 1950-1980. São Paulo: Contexto. 2001. pp. 82-83.
a forma alternativa de vida seria realizada de forma
individual e egoísta, diferente do modo tradicional
esquerdista que buscava a libertação coletiva e a expansão
da mente através do debate político e intelectual, não através
de drogas, religiosidade ou misticismo15.
Neste contexto, como já foi mencionado
anteriormente, existiam centenas de artistas atuando no país,
detentores de influências comportamentais e estéticas
bastante heterogêneas. Como exemplos podem ser citados:
The Beatniks, Os Baobás, The Galaxies, The Beat Boys
(argentinos radicados no Brasil), Os Brazões, Liverpool,
Spectrum, Bango, Módulo 1000, Equipe Mercado, A Tribo,
A Barca do Sol, Som Nosso de Cada Dia, Serguei, Moto
Perpétuo, Som Imaginário, Terreno Baldio, Recordando o
Vale das Maçãs, Soma, Veludo, Vímana, Utopia, Brazilian
Octopus, Os Canibais, Blow Up, Os Leif's, The Bubbles
(posteriormente A Bolha), O Terço, Bixo de Seda, Karma,
Achados e Perdidos, Ave Sangria, Analfabitles, Assim
Assado, O Bando, Brazilian Bitles, Casa das Máquinas,
Impacto Cinco, Os Lobos, Made in Brazil, O Peso, Sound
Factory, Pão com Manteiga, Flaviola e o Bando do Sol, Lula
Côrtes, Marconi Notaro, Robertinho Recife, entre tantos 15Idem. p. 84.
outros. Como não é possível dar conta de tamanha gama de
informações relacionadas a um universo repleto de artistas,
eventos culturais, festivais e discos, no próximo capítulo
será analisado o contexto que permeou a banda Spectrum, a
fim de trazer à tona uma parcela da conjuntura do rock
nacional, dentro do tema delimitado por esta pesquisa.
4.2) DA COSTA OESTE A SERRA FLUMINENSE
“Caminhando, caminhando
vou/ No Quiabo's vou chegar /
Lá encontro, lá encontro/ Em
verdade o meu lugar/ Gente
pura pra se amar/ Muita Paz,
vou meditar”
Spectrum16
Durante o contexto de guerra fria e ditadura militar,
acirrado pela competitividade e autoridade, muitos jovens
tornaram-se adeptos de um conjunto de pensamentos que
defendia a liberdade, criação e cooperação. Neste período,
16“Quiabo’s” da banda Spectrum. LP Geração Bendita. Todamérica, 1971. Composição de Toby e Fernando.
foi formada na região serrana do Rio de Janeiro, mais
especificamente em Nova Friburgo, a banda Spectrum17.
Nova Friburgo, cidade localizada próxima à capital,
possuía um modesto parque industrial e natureza
exuberante. Não é à toa que o cantor e compositor Beto
Guedes, integrante do Clube da Esquina, compôs um de
seus sucessos inspirado pelas belezas e simplicidade de
Lumiar, distrito da cidade: “Pra passar a noite/ Caçando
sapo, contando caso/ De como deve ser Lumiar [...] Acordar
em Lumiar/ levantar e fazer café/ Só pra sair caçar e pescar/
E passar o dia/ Moendo cana, caçando a lua” 18.
A cidade, uma das mais frias da região, foi
colonizada por suíços e alemães. Conhecida também como a
cidade das flores, a região foi mais um dos lugares em que a
influência da contracultura chegou.
Com o sucesso de bandas como os Beatles e Rolling
Stones, começaram a surgir diversas bandas na região. Uma
destas foi formada pelos irmãos Fernando e Ramon19. O
interesse pela música despertado pela família logo levou a
atração pela sonoridade de apelo jovem que se fazia naquele
período. Desta forma os dois garotos, alunos do tradicional 17Não confundir com a banda australiana Spectrum, formada em 1969. 18Beto Guedes. LP A página do relâmpago elétrico. EMI. 1977. 19Fernando Gomes Correa Jr. e Ramon Gomes Correa.
Colégio Anchieta, de influência jesuítica, frequentado pela
classe média e famílias mais abastadas da cidade,
conheceram outros alunos interessados em formar uma
banda: Caetano e Nando20. Desta forma a banda em um
primeiro momento teve Fernando na bateria, Ramon no
contrabaixo, Caetano e Nando nas guitarras. Os eventuais
ensaios eram realizados nas casas dos integrantes e
possuíam um repertório dominado pelos sucessos dos
Beatles e da Jovem Guarda. Os instrumentos eram um
problema, afinal eram nacionais, o que na época significava
péssima qualidade. Posteriormente os ensaios foram
transferidos para a escola e a banda recebeu um nome: 2000
Volts. Com o passar do tempo a banda foi compondo o
circuito de bailes realizado em clubes da região, assim como
passou a participar de eventos como festas de aniversário e
shows em colégios. Com o tempo a banda sofreu algumas
mudanças, o irmão de Caetano, o guitarrista Tião21 entrou
na banda e Nando saiu dando lugar a Serginho22. Ramon
também saiu da banda após um grande período fora de
atividade, devido a problemas de saúde. Com esta formação
a banda passou por um amadurecimento após os sucessivos 20José Luiz Caetano da Silva e Fernando José Teixeira de Almeida. 21Sebastião Luiz Caetano da Silva. 22Sérgio Nogueira Régly.
ensaios e apresentações, aprimorando as técnicas
instrumentais e recebendo influências de outros sons, como
a dupla Simon e Garfunkel, o que trouxe maior
aperfeiçoamento a técnica vocal dos integrantes.
Com o crescente prestígio no circuito local,
relacionado aos covers bem realizados das músicas dos
Beatles, a banda mudou de nome, a fim de se livrar da
identidade adolescente. O nome escolhido foi Spectrum por
soar mais universal.
A banda então mudou a formação novamente com a
saída de Tião e o ingresso de Toby23, músico que tocava
contrabaixo em outra banda da cidade. A partir deste
momento a banda passou a tocar covers de bandas mais
pesadas como Led Zeppelin e Steppenwolf, porém não
abandonou as harmonizações vocais, incluindo em seu
repertório músicas de grupos como The Mama’s and the
Papa’s.
Imersos no ambiente da contracultura, sinalizado
pela música, veio o convite de Carlos Roberto Bini para
realizar a trilha sonora de um filme que ele, morador de uma
comunidade hippie da região, iria realizar. Assim a banda
deixou de lado o palco para se unir aquela empreitada, desta 23José Carlos Corrêa da Rocha.
forma o amigo David24 foi convocado para integrar a banda
como guitarrista e ajudar nas composições.
A banda Spectrum realizou contatos com diversas
gravadoras que recusaram o projeto, até que uma pequena e
tradicional gravadora do Rio de Janeiro, a Todamérica
Música Ltda, aceitou participar. Assim, o LP Geração
Bendita, foi produzido em 1971. Este momento que deveria
ser a guinada da banda trouxe uma grande frustração aos
integrantes. Com a censura do filme, indiretamente ocorreu
um cerco à banda, afinal as músicas não estavam
censuradas, porém com esta “mancha”, a pequena banda do
interior foi ignorada pelas rádios apesar do trabalho de
divulgação e publicidade realizado na época. Este ponto
relacionado ao filme e à censura será apresentado no
próximo capítulo.
O disco Geração Bendita possui pouco menos de
trinta minutos, apresentando um repertório que inclui a
mistura de músicas em português e inglês, os temas estão
diretamente relacionados à contracultura em voga como paz,
amor, liberdade, natureza e o desprezo pela sociedade
tecnocrática, como pode ser observado na música “Pingo é
24David John Giecco.
Letra” 25: “O homem tingiu vermelho a terra/ O branco, a
Paz, perdeu há muito a guerra/ Gente, eu vou me embora/
Vou sair por aí/ Vou procurar um mundo melhor”. Outra
música como “A paz, o amor e você”26 confirma a temática
de fuga que persiste ao longo do disco: “Pelo caminho eu
quero abraçar/ Liberdade/ Gente da vida que vive a cantar/
Liberdade/ Gente que esquece que a vida é má/ Liberdade/
Pelo caminho do Amor/ Liberdade/ Pelo caminho da Paz”.
A palavra liberdade dita sucessivas vezes demonstra a busca
pela libertação na sociedade brasileira, onde a repressão não
era apenas militar, mas também moral.
O objetivo do disco de acordo com a banda era
contestar a “sociedade decadente”, como diz o texto
presente na contracapa do disco:
Lá nas redondezas de Nova Friburgo qualquer um sabe informar onde fica "O Sítio de Carlos Kohler" onde um grupo que todos chamam de "Os Barbudos" rodava o primeiro filme hippie brasileiro:"Geração Bendita". Durante três meses, as duas casas do sítio - Quiabo's e Abobora's - foram transformados em galpões de um estúdio cinematográfico. Carlos Bini tinha deixado a profissão de advogado para ser ator e diretor de uma obra que iria contestar
25Spectrum. 1971. Op. Cit. Composição: Toby e Fernando. 26Idem.
exatamente tudo aquilo que ele tinha abandonado. O Osservatore Della Domênica, órgão do Vaticano escreveu: "os hippies são na maioria, jovens que renegaram a sociedade em que viviam, precisamente por abominarem a violência sob qualquer forma". Os próprios participantes do filme, dentre eles Toby, Fernando, Caetano, Serginho e David, formaram um conjunto - Spectrum - fizeram as músicas do filme e gravaram este LP, resultado de uma pesquisa de um som livre. O filme versa sobre uma filosofia que para os autores do enredo simbolizam a "sociedade decadente"27.
Quando se observa o panorama global, é possível
perceber que a contracultura brasileira estava alguns anos
atrasada, os discos norte americanos e europeus que
possuíam tais temáticas haviam sido gravados
principalmente na década anterior, desta forma um
observador menos atento poderia considerar que “Geração
Bendita” possuía pitadas de nostalgia, já que o “verão do
amor” já havia perdido bastante força na década de setenta.
Referente à sonoridade do LP, as dissonâncias geradas pela
distorção davam um tom “sujo” à trilha sonora, o que num
primeiro momento parece destoar das mensagens de paz e
27Texto presente na contracapa do LP. Spectrum. 1971. Op. Cit.
amor, presentes nos vocais harmoniosos. Neste ponto, é
importante destacar que sonoridade de um trabalho musical
tem tanta importância quanto às letras, porém quando
observamos as pesquisas dedicadas à história da música,
percebemos a ênfase na análise das letras, o que torna a
estética sonora um mero acessório que não acrescenta muito
à mensagem da música. O LP da banda Spectrum demonstra
o contrário, os riffs psicodélicos, por vezes caóticos se unem
às harmonias e temas de paz, não destoando da letra e sim
completando o sentido, já que a “a vida é má”, num mundo
que era palco da Guerra do Vietnã e onde a tortura era usada
cotidianamente durante o governo militar. Além destes
aspectos, outro fator que influenciava bastante a sonoridade
das pequenas bandas espalhadas pelo Brasil, fugindo até
mesmo do controle dos músicos, era a baixa qualidade dos
instrumentos acessíveis no país, até mesmo para os garotos
da classe média. Neste período os instrumentos de qualidade
tinham que ser trazidos do exterior. Como relatou Caetano
anos depois em uma entrevista28: "Não tínhamos recursos
técnicos, os instrumentos eram nacionais, de segunda,
terceira mão, mas havia uma coisa maior que nos movia,
28Show Bizz. ROSA. Fernando. Disponível no site: http://www.spectrum.mus.br . Acessado em 01/07/2013.
que era o sentimento daquela geração". Além do precário
acesso a instrumentos, a falta de “know how” técnico para
se produzir músicas psicodélicas em estúdio atrapalhava
bastante. A desinformação quanto à gravação do rock no
Brasil ainda era grande, as dificuldades eram ainda maiores
quando as músicas apresentavam cunho experimental. Os
jovens influenciados por bandas como Led Zeppelin,
Beatles, Pink Floyd, entre outras, ficavam frustrados com os
técnicos de som e produtores da época, afinal estes não
conseguiam traduzir do campo técnico para o campo sonoro
os pedidos imaginativos dos integrantes das bandas. Estes
pedidos se tornavam ainda mais complicados devido à
quantidade reduzida de canais que os estúdios dispunham. O
sistema de canais é o que possibilita que os instrumentos
sejam gravados separadamente, este sistema passou a ser
amplamente utilizado em experimentos musicais através de
George Martin, produtor dos Beatles29. Martin mesmo com
as limitações da tecnologia da época conseguiu explorar
sonoridades nunca vistas até então. Frutos desta
inventividade podem ser observados principalmente nas
faixas dos discos “Revolver”, “Sgt Pepper’s” e “Abbey 29Para saber mais leia MARTIN. George. Paz, amor e Sgt. Pepper: os bastidores de Sgt. Pepper. Rio de Janeiro: Dumará. 1995.
Road”. Porém como os jovens que formavam a banda
Spectrum estavam em uma realidade bastante diferente dos
Beatles e não possuíam experiência em estúdio, bons
equipamentos e uma grande gravadora a sua disposição,
Geração Bendita possui um som bastante peculiar para os
desavisados, acostumados com as gravações atuais.
Apesar de ignorado na época, hoje o LP é bastante
procurado por colecionadores e ocupa lugar privilegiado nas
“want lists”, os discos mais procurados no mundo. De
acordo com Hans Pokora, autor da coleção “Record
Collector Dreams”: “Ele é uma jóia da música
psicodélica”30, “o disco é um dos LPs mais procurados em
todo o mundo nesse gênero de música e é uma pepita para
qualquer Colecionador"31. Este tema foi tratado na matéria
do Jornal do Brasil que anunciou: “Disco gravado em 1971
por uma obscura banda de Friburgo vira cult na Europa,
onde colecionadores pagam até US$ 2 mil pelo LP” 32. De
fato o preço reflete a raridade do LP original. O disco foi
relançado em outubro de 2001 pelo selo alemão Shadoks
Music do site Psychedelic Music, frequentado por
30Jornal do Brasil. ESSINGER. Silvio. Um clássico Psicodélico. 14/02/2002. 31Show Bizz. Op. Cit. 32Jornal do Brasil. 14/02/2002. Op. Cit.
colecionadores de todo o mundo. A tiragem limitada
realizada pelo selo, constituída por pouco mais de 400
discos foi totalmente vendida em questão de dias, hoje o
site33 estrangeiro vende a versão em CD por €15,00 mais
postagem, e anuncia: “Você vai adorar este disco se você
gostar de guitarras distorcidas e grandes canções com vocais
fortes. Todas as faixas são de autoria da banda. O registro
foi feito para um filme que foi o primeiro filme hippie da
América do Sul. A banda também atuou, foi uma produção
de orçamento muito baixo, poucos devem ter visto. Se você
quer um som pesado e psicodélico este é para você” 34. O
jornal Folha de São Paulo35 não foi tão cordial quanto ao
LP, de acordo com o periódico “Eram rocks toscos cantados
em português e inglês, brincando de psicodelia & paz &
amor & liberdade. Foi tudo riscado do mapa - filme,
gravadora, disco, grupo”. A matéria ainda menciona que a
versão pirata da edição alemã é comercializada em CD-R no
centro paulistano. Alguns anos depois a banda Spectrum
33 http://www.psychedelic-music.com 34 tradução livre: You´ll love this one if you´re into screeming psychguitar and great songs with strong vocals. All tracks are by the band. The record was made for a movie which was the first hippy film in South America. The band where the actors too. It was a very low budget production and I think not many have seen it. If you´re into extra heavy Psych this one is for you. 35 Folha de São Paulo. 01/08/2003.
figurou novamente no jornal, recebendo o status de destaque
na matéria “Blogs colocam na rede raridades da música
brasileira”36.
Como pode ser observado, o disco Geração Bendita
hoje desperta interesse de quem procura por músicas
psicodélicas produzidas no período em que a contracultura
despontava no país, e o interesse pela banda não termina aí,
talvez o fato mais interessante a ser analisado envolvendo a
banda, seja a realização do filme, assim como toda a
truculência militar e repúdio moral por parte de moradores
da cidade. Reside nestes fatos narrados até aqui um ponto
interessante, embora estes acontecimentos estejam
relacionados a uma banda e seus integrantes, isto não
ocorreu de modo isolado. Centenas de bandas em solo
brasileiro viram a derrocada de seus lançamentos naquele
período. Hoje há o movimento de valorização e busca por
estas raridades, muitas vezes chamadas de “nuggets”
(pepitas, uma referência às raras pepitas de ouro). Há
também um segmento do mercado que busca relançar estes
discos raros ou lançar coletâneas que incluem diversas
bandas do período. Na internet há também blogs como o
36Folha de São Paulo. SUZUKI. Shin. Blogs colocam na rede raridades da música brasileira. 29 de maio de 2006.
Brazilian Nuggets37 e o Lágrima Psicodélica38, dedicados à
música underground e psicodelismo produzido no Brasil,
onde é possível baixar raridades e ler resenhas de discos
“perdidos” na história da música brasileira.
4.3) É ISSO AÍ BICHO
Um a um, os jovens foram chegando aos
sítios Quiabo's e Abóbora's, em Friburgo, e
acabaram formando a primeira comunidade
"hippie" do Brasil. Cultivavam flores e
plantavam para colher. Viviam do
artesanato, vendido na cidade. Em 1970, os
quinze integrantes do grupo quiseram
mostrar sua experiência e pensaram em
fazer um filme, agora já copiado e pronto
para entrar em cartaz. Nome: "Geração
Bendita" ou" É Isso Aí, Bicho".39
Assim como o trecho do jornal acima, várias fontes
indicam esta credibilidade: a primeira comunidade hippie do
Brasil. O que de fato é um exagero, visto que as
comunidades se espalhavam pelo país desde a década de
37http://brnuggets.blogspot.com.br 38http://lagrimapsicodelica2.blogspot.com.br 39O Globo. Filme mostra a vida de hippies em Nova Friburgo. 8/3/1973
sessenta, porém esta frase deixa transparecer o
estranhamento que as comunidades hippies ainda causavam
naquele período.
A ideia de realizar a película foi de Carl Kohler, o
dono do sítio Quiabo's. O hippie abriu em 1968 uma loja
onde vendia as flores que plantava no sítio, em seguida,
após fechar a loja, pois “achava que não se deviam vender
rosas; não eram produto para comércio”40, abriu uma
mercearia no interior, a onze quilômetros da cidade, onde
ficava o sítio. Com o tempo foram chegando amigos que
passaram a se instalar nas duas casas rústicas do sítio de
cinquenta e dois mil metros quadrados, cortado por um rio e
com uma cachoeira. Para sobreviverem, como era de praxe
entre os hippies, começaram a produzir artesanatos que
passaram a ser vendidos na feira de Nova Friburgo.
A comunidade foi aumentando e Carlos Bini, um dos
novos moradores, chegou com uma câmera e algumas
películas de 16 mm e logo passou a documentar o cotidiano
do sítio. Desta forma Kohler decidiu fazer um filme:
“resolvi fazer uma coisa nova [...] nessa época, estava
acontecendo Woodstock e nós formávamos a única
40Idem.
comunidade hippie do país”41. Desta vez a comunidade é
lembrada como a única no país de então mais de 90 milhões
de habitantes, além disto, o fragmento demonstra outro fator
interessante, os ecos do festival de Woodstock que já havia
sido realizado alguns anos atrás e continuava influenciando
a geração.
De todos os integrantes da produção do filme,
apenas Carlos Bini possuía algum conhecimento na área do
cinema. Bini e Kohler começaram a escrever o roteiro com
o objetivo de apresentar ao público a possibilidade de se
viver de forma comunitária, longe da sociedade decadente.
Fato que está fortemente presente na trilha sonora produzida
pelos integrantes da banda Spectrum, que passaram a
frequentar e até mesmo morar no sítio, já com os cabelos
compridos e com ideias bastante diferentes da época do
Colégio Anchieta, quando a banda ainda se chamava 2000
Volts. O artesanato cessou e a venda foi fechada, todos os
esforços agora deveriam estar voltados para a produção do
filme. A empresa Meldy Filmes Ltda. foi contratada e Max
Mellinger da equipe foi convocado para ser o diretor de
fotografia, utilizando uma câmara de 35 mm sem zoom.
41Idem.
O filme começou a ser rodado em 1970 com material
da Meldy Filmes, tendo como atores os próprios moradores
da comunidade hippie. Foram utilizadas como locações, o
sítio e as proximidades, tudo isto em clima de improvisação.
O filme idealizado pela dupla Bini e Kohler conta a história
de um advogado insatisfeito com a profissão enfadonha e
burocrática que resolve abandonar a vida urbana e se unir
aos hippies da cidade. De fato a cena interpretada pelo
próprio Carlos Bini (o protagonista do filme), em que o
advogado renuncia o trabalho gritando “tô louco, tô louco!”
ao som de vozes que ecoam dizendo “aleluia, aleluia” para
enfim abandonar a sociedade e viver em uma comunidade
hippie (o fenômeno “drop out”) traz questões abordadas por
Theodore Roszak em 1969:
muito mais do que receber atenção, a contracultura necessita urgentemente dela; pois não sei onde poderemos encontrar, salvo entre os jovens rebeldes e seus herdeiros das próximas gerações, a insatisfação radical e a inovação capazes de transformar essa nossa desnorteada civilização em algo que um ser humano possa identificar como seu habitat. Eles constituem a matriz em que está gestando um futuro alternativo, mas ainda excessivamente frágil. Admito que a alternativa se apresenta vestida com uma bizarra colcha de retalhos; suas
vestes foram tomadas emprestadas de fontes variadas e exóticas [...] No entanto, quer me parecer que isso constitui tudo de que dispomos para opor-nos à consolidação final de um totalitarismo tecnocrático no qual nos vemos engenhosamente adaptados a uma existência de todo dissociada das coisas que sempre fizeram da vida uma aventura interessante. 42
A película traz ecos da realidade, já que Carlos Bini
havia abandonado a profissão de advogado para viver no
sítio Quiabo’s. No decorrer do filme, os hippies são
perseguidos por um insistente pastor que tenta a todo custo
converter o grupo. No ínterim destes acontecimentos o ex-
advogado mantém relacionamento com uma menina de
classe média, de origem familiar conservadora, o que traz
vários problemas ao romance do casal. Desta forma a
família, o Estado e a religião, tentam recuperar os hippies,
alça-los ao status quo43.
Durante o final das gravações surgiram os
problemas, decorrentes dos constantes estranhamentos que a
42ROSZAK. Theodore. Op. Cit. p. 8. 43BOUILLET. Rodrigo. Ah, mas que caretice! Texto escrito para a sessão do cineclube Terra Brasilis, realizada no MAM-RJ. Disponível em http://www.vivacine.org.br/site/textos/ver/?id=59 . Acessado em 18/01/2013.
sociedade de Nova Friburgo tinha com aquele peculiar
grupo. Durante uma cena realizada no centro da cidade, o
delegado da cidade, Amil Nei Richard tomou então uma
atitude drástica em relação aos envolvidos na produção do
filme, como anunciou o jornal O Dia44 em letras garrafais:
“Artistas presos e cabeças raspadas”. De acordo com o
jornal “Os artistas, diretores e produtores foram todos presos
e desfigurados da personalidade de hippies autênticos [...]
todos os protagonistas do filme, depois de terem as
cabeleiras raspadas e a barba escanhoada, além de
despojados de suas roupas exóticas, foram postos em
liberdade”45. Durante a reclusão dos cerca de vinte hippies,
aconteceu um protesto coletivo contra as prisões, protesto
este que não cessou após os jovens receberem a liberdade,
devido à arbitrariedade na maneira como as ações foram
conduzidas, além do fato de que a saída dos ex-detentos
ocorreu sem os longos cabelos e barbas, símbolos da
rebeldia frente ao autoritarismo. A manifestação culminou
em uma confusão generalizada que foi resolvida pelos
policiais após “ameaças de depredação”, de acordo com a
matéria. Em mais uma demonstração de autoritarismo, antes
44O Dia. 27/11/1970. 45Idem.
de serem soltos, todos os hippies que não moravam na
região foram ordenados pelo delegado a abandonar a cidade
em cinco dias.
Os integrantes da equipe que foram presos tentaram
argumentar que estavam abordando problemas existentes na
sociedade que não poderiam ser ignorados, porém nada
adiantou. No jornal o protesto por parte da equipe
encarcerada é visível, o delegado é chamado por eles de
quadrado e retrógrado. De acordo com Amil Nei Richard, a
motivação da ação aconteceu devido “a cidade haver-se
transformado, com a presença dos estranhos, pois temia que
muitos fossem responsáveis por aliciamento de menores de
outros locais”46. O delegado salientou que diante das
reclamações dos cidadãos friburguenses, mobilizou vários
policiais para prender os hippies e convocou barbeiros para
realizar o que chamou de “Operação Tosquia”, palavra
usada para designar o ato de cortar rente a lã de ovelhas.
Após este absurdo episódio, as filmagens foram
concluídas, porém para que o filme fosse lançado em 1971,
a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) que
controlava a produção artística no país, censurou diversas
46 Idem.
cenas do filme47. Novas cenas tiveram que ser filmadas para
substituir as cenas proibidas, e o nome do filme foi alterado
para “É isso aí bicho”, nome que consta no catálogo da
cinemateca brasileira. Mesmo com estas mudanças o filme
que estreou apenas em 1972, ficou pouco tempo em cartaz e
teve as cópias recolhidas pela Polícia Federal48. Em
entrevista concedida a alunos de comunicação em Nova
Friburgo no ano de 2008, Carl Kohler afirmou ter sido preso
e obrigado a assinar uma confissão no DOPS, cujo conteúdo
permanece desconhecido até hoje49. Nesta ocasião ele e o
produtor Carlos Doady permaneceram na prisão por cerca
de quarenta dias.
O filme hoje circula livremente no youtube50,
capturado através de uma exibição do Canal Brasil. Parte
disto é fruto do trabalho de resgate da película realizado em
2002 por Carlos Doady e Hernani Heffner, curador de
47Certificado de Censura 71649 de 12/01/1973. 48MARTINS. Thamyres Dias Saldanha. É Isso Aí, Bicho: narrativas sobre o filme Geração Bendita no Jornal A Voz da Serra durante a ditadura militar. Trabalho apresentado no XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação em 2009. p. 3. 49Idem. p. 4. 50Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=blVJzhwf-jQ .Acessado em 01/07/2013
documentação e pesquisa da Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro51.
O produtor Lucien Mellinger depositou os negativos
do filme hippie no final dos anos setenta na cinemateca.
Carlos Doady buscou reaver o filme décadas depois, porém
não sabia onde o rolo estava armazenado. Então após
vasculhar outros lugares procurou a cinemateca localizada
no Aterro do Flamengo. Hernani Heffner encontrou a
película tempos depois dentro de uma lata sem grandes
especificações, havia apenas a palavra “Geração”. Após
isto, foram anos de trabalho e dedicação para que o filme
fosse restaurado digitalmente, o áudio necessitou de
cuidados especiais para ser reparado52.
No dia 31 de maio de 2007 foi realizada uma sessão
única do Cine Clube Terra Brasilis na Cinemateca do
MAM, onde finalmente foi lançado o DVD do filme. O
DVD foi financiado com recursos dos próprios produtores e
buscou visibilidade internacional, possui a opção de sete
legendas, incluindo até mesmo a de idioma japonês.
Retornando aos acontecimentos da década de
setenta, é importante realizar um questionamento. E a mídia 51MARTINS. Op. Cit. p. 4. 52Hernani Heffner concedeu estas informações em depoimento realizado na Cinemateca do MAM no dia 12/07/2013.
local, como reagiu a todos estes acontecimentos dignos de
manchetes, ainda mais se tratando de uma cidade do
interior? O jornal A Voz da Serra, o principal jornal da
cidade na época ignorou o assunto. Em novembro, o mês
das prisões, nada foi noticiado. O silêncio só foi cessado no
final de dezembro quando o jornalista Pedro Paulo Cúrio,
com o pseudônimo W. Robson deu nota dez para o diretor
Carlos Bini em sua coluna, que tinha como objetivo fazer
menção às pessoas que se destacaram naquele ano de 1970:
Para Carlos Bini, cineasta da jovem geração. Idealista em eterna ebulição. Com a inteligência que Deus lhe deu, soube aproveitar um caso de polícia na mais completa máquina publicitária em torno do seu filme Geração Bendita, que segundo o linguajar dos nossos filhos: Vai ser um barato53.
A abordagem foi bastante concisa, considerando que
a prisão dos hippies havia ocorrido há quase um mês. De
fato nada foi explicado e a alusão à “máquina publicitária”
possivelmente se refere ao fato de Carlos Bini estar
vociferando pela cidade acerca dos acontecimentos recentes,
53 Idem. p. 8.
assim como ter dito aos jornais metropolitanos que iria
processar o delegado Amil Rechaid.
O caso só aparece novamente na Voz da Serra em 30
de janeiro do ano seguinte:
Que a rapaziada friburguense fique “baratinada” com a providencial vassourada de Amil Rechaid, em prol da moralização de nossos costumes, até certo ponto achamos graça da turma raivosa batendo com as perninhas, tão somente porque o Delegado não está ligado na dêles... – Afinal de contas, são jovens amadurecendo nesta intranqüila metamorfose de uma juventude que ainda pergunta pra onde vai. O que não perdoamos é a inconcebível revolta de certos pais tidos como “prafrentex”, que se consideram ofendidos com a aplaudida ação daquela autoridade, que com as suas “batidas-blitzes” tanto incomoda os seus adoráveis filhinhos. Êstes, minha gente, estes não tenha a menor dúvida, estão realmente com a cuca totalmente fundida, no linguajar maroto dessa gente nova e em ebulição. Como se pode reprovar, repudiar, combater um trabalho tão útil oportuno em prol da coletividade friburguense? Amyl vem procedendo uma ação digna de elogios gerais. Fiscaliza tudo. Aconselha. Repreende. Prende os salafrários. A então rendosa “indústria” dos mendigos turistas, já se sente profundamente abalada em sua estrutura de abuso aos corações
moles de Friburgo. (...) A“gang” do tóxico explora outras bandas, sabendo que subir a serra com ele aqui é uma temeridade. (...) Aplaudimos, sem reservas, Amyl Rechaid (...) Merece êle dos pais sensatos o mais decidido apoio. Faz êle muito bem em mostrar o sol a nascer quadrado àqueles que tentam botar um “arco íris na moringa” de uma juventude tão bela como sói ser a nossa (...)54
O tom moralista e ambíguo do jornalista Pedro Paulo
Cúrio, o mesmo que no ano anterior havia elogiado os
hippies, indica o estereótipo da alienação por parte dos
“salafrários” da classe média. Diferente do repúdio aos
jovens, a atitude do delegado Rechaid é elogiada “sem
reservas”. Isto de certa forma demonstra o aspecto
autoritário daquela sociedade. O sociólogo José Murilo de
Carvalho chama isto de “função do cacete”, capaz de
dissuadir os que fogem do espírito nacional de cooperação e
patriotismo55. Esta perseguição não era corrente apenas na
cidade serrana, neste período era comum que os hippies
54Voz da serra, A. CÚRIO. Pedro Paulo. Na tonga da mironga do cabuletê! 30/01/1971. 55CARVALHO. José Murilo de. Cidadania a porrete. in Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte. Editora Itatiaia/INL. 1984. p 309.
vissem “o sol nascer quadrado”, como indicou a revista
Veja de março de 1970 que anunciava: “hippies sem paz”:
a Polícia Federal ordenou a todos os Estados uma campanha rigorosa contra os jovens de colar no pescoço e cabelos compridos. Na semana passada, perto de duzentos deles foram presos na Feira de Arte de Ipanema, no Rio, e doze foram expulsos de sua minifeira na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, onde vendiam pinturas. Cento e vinte estão presos em Salvador e mais alguns foram para a cadeia no Recife, onde serão investigados um a um 56.
Fato parecido ocorreu em Búzios, aonde “soldados
chegaram de surpresa e perseguiram os hippies pelas ruas da
cidade. Muitos tentaram se esconder, mas todas elas foram
vasculhadas e os cabeludos foram levados para a cadeia de
Cabo Frio, em grandes caminhões”57.
Dos casos truculentos da década de setenta,
relacionados à contracultura, talvez um dos mais famosos
seja o que envolveu os integrantes do grupo “hipongo”, Os
Doces Bárbaros, cujos integrantes eram Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. No dia da
56Veja. 04/03/1970. Edição 76. p. 70. 57Intervalo. Presa a filha de Carlos Manga. n. 419. Janeiro de 1971.
estreia das apresentações na cidade de Florianópolis, a
polícia invadiu os quartos do hotel onde os baianos
dormiam. Como resultado desta operação Gilberto Gil foi
condenado a tratamento psiquiátrico “como medida
necessária e de urgência” na cidade de Florianópolis. O
tratamento depois foi direcionado para um sanatório no Rio
de Janeiro58.
Em relação aos hippies de Nova Friburgo, o tom
moralista apresentado anteriormente no jornal A Voz da
Serra permaneceu uma semana depois de forma bem afinada
com o “Brasil grande” entoado pelos militares, “o país que
vai pra frente” do “ame-o ou deixe-o”. Este pequeno
fragmento diz muito sobre o silêncio reservado ao caso
envolvendo os hippies do sítio Quiabo’s:
À imprensa cabe o papel de evitar o sensacionalismo, encarando o problema em ângulos essenciais sobriamente. Vamos enaltecer a juventude produtiva, a que ama o país e seu desenvolvimento. Aquela que não é notícia, mas precisa ser 59.
Se o filme e os hippies não possuíam prestígio
naquela época, hoje passadas mais de quatro décadas desde 58ARAÚJO. Paulo César de. Op. Cit. p 138. 59Voz da serra, A. 06/02/1971.
a realização da obra, a película parece ter recebido
reconhecimento, além da já referida exibição no MAM-RJ,
o filme fez parte da mostra “O rock no cinema brasileiro”,
realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de
Janeiro em 2011. Como indica o Jornal do Brasil, a mostra
tinha como objetivo “traça a evolução do rock de forma
cronológica a partir da cinematografia brasileira”60,
“Geração Bendita” estava na programação junto a filmes
como “Juventude e Ternura”, estrelado por Wanderléa, e
“Bete Balanço”.
De fato o filme é um destaque na cinematografia
brasileira, não exatamente por seu valor técnico ou
linguagem cinematográfica, e sim por retratar de forma
quase documental aquela época onde a contracultura era
uma realidade em meio ao conservadorismo brasileiro. A
obra de Carlos Bini quanto à produção cinematográfica, não
é um “Hair” 61 tupiniquim, nem o longa-metragem nacional
pioneiro a abordar a temática da contracultura. O filme
60Jornal do Brasil. 29/09/2011. Disponível em: http://www.jb.com.br/programa/noticias/2011/09/29/o-rock-no-cinema-brasileiro-2/ . Acessado em 01/07/2013. 61Musical estadunidense dirigido por Milos Forman em 1979.
“Meteorango Kid: o herói intergalático” 62, de 1969 já havia
abordado o assunto por outro viés.
Em “Geração Bendita”, os cortes entre as cenas
foram mal realizados, os atores eram amadores e a
dublagem deixa a desejar. Para completar, os diálogos são
pouco desenvolvidos durante os 86 minutos de projeção.
Entre as cenas do filme é mostrado o cotidiano do Sítio
Quiabo’s, onde os moradores cozinham, fumam maconha,
tocam instrumentos, tomam banhos coletivos de cachoeira e
até mesmo caçam e matam um porco em tom solene de
sacrifício. É importante frisar que na película há um
delegado que em certo ponto da história exige a captura de
todos hippies que “estiverem dando sopa”. Os hippies após
serem presos sem nenhum tipo de reação permanecem a
noite toda na cadeia. Após a soltura, o grupo resolve “se
mudar para bem longe da civilização, para ter como
companheira apenas a natureza”, e um hippie afirma
“iremos buscar um lugar para nossa filosofia, aqui está
dando azar, vamos em busca de paz”.
Como é possível observar, realidade e ficção se
confundem em “Geração Bendita”. Não é à toa que durante
62Meteorango Kid: o herói intergalático. Brasil. 1969. Diretor: André Luiz Oliveira.
o trailer do filme o narrador diz: “delegado interrompe filme
hippie e ordena: corta! [...] artistas presos e cabeças
raspadas” e finaliza “você precisa saber, conhecer de
verdade o que é viver numa filosofia sem preconceitos e
sadia”. Desta forma, além das cenas onde o grupo jovem,
formado por homens e mulheres aparece nu na cachoeira,
violando os bons costumes, a clara menção ao delegado
Amyl Rechaid incomodou bastante os censores. O fato é
que com os sucessivos problemas que vão desde o
amadorismo do filme, assim como a repressão moral e
política, fizeram com que o filme fosse um fiasco. O sítio
Quiabo’s teve que ser colocado à venda para cobrir os
prejuízos e a banda Spectrum, já com o disco gravado não
voltou a se apresentar na cidade depois do duro baque.
Algum tempo depois, com uma nova formação a banda
tentou viver de música nas noites de Ipanema, porém a
empreitada não vingou. Por fim os integrantes da banda
voltaram a participar de uma nova produção de Carlos Bini:
“Guru das sete cidades”, gravado no Piauí, porém sem o
mesmo entusiasmo. Depois desta experiência a banda
Spectrum chegou ao fim e os integrantes se dispersaram.
Mais de trinta anos depois da gravação do LP, o
funcionário público aposentado José Luiz Caetano
lembraria: ''Chorava de alegria e tristeza. Sentia um arrepio
ao ver a amplitude do trabalho que tínhamos feito. E tudo se
perdera no vento, jogado em alguma prateleira''63.
63Jornal do Brasil. Um clássico psicodélico. ESSINGER. Silvio. 14/02/2002.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultado de uma entrevista concedida por
John Lennon em 1970, a revista Rolling Stone publicou as
famosas palavras: “O sonho acabou. E não estou falando
apenas que os Beatles chegaram ao fim, falo de toda a
geração. O sonho acabou e tive de encarar a chamada
realidade”64. Isto somado ao fatídico resultado do Festival
de Altamont, ocorrido em dezembro de 1969, onde durante
uma apresentação dos Rolling Stones um dos espectadores
que engrossava a multidão foi esfaqueado e morto, sinalizou
opiniões que indicavam o fim da contracultura como um
movimento capaz de trazer resultados significativos para as
questões existentes no início da década de setenta. O
movimento hippie parecia se deteriorar no final dos anos
sessenta, porém como foi exposto nestes capítulos, a
contracultura perdurou e alçou novos horizontes. Embora o
movimento enfrentasse uma “ressaca” e reformulação nos
EUA, no Brasil a comunidade formada no sítio Quiabos’s
em plena década de setenta se organizava e desenvolvia
“Geração Bendita”, enfrentando sinais de esgotamento
64WENNER. Jann S. (Org.). Lembranças de Lennon. São Paulo: Conrad. 2001.
apenas alguns anos mais tarde. Nesta conjuntura a banda
Spectrum através das músicas e letras demonstrava certa
amargura diante das circunstâncias sociais e políticas
presenciadas no Brasil.
Apesar da dita derrocada do movimento hippie e das
críticas às condutas da contracultura, o fato é que os novos
comportamentos existentes nos anos sessenta foram
incorporados à sociedade, assim como levaram à políticas
reformistas que atualizaram alguns destes anseios. A música
relacionada à contracultura foi intensamente incorporada à
indústria cultural, atingindo não apenas os jovens rebeldes
identificados com os valores daquela geração, tornando-se
assim uma referência cultural dos novos tempos.
No que diz respeito à História, embora distante dos
enquadramentos de memória, a produção de estética
psicodélica contracultural realizada no Brasil continua
existindo no que o historiador Paulo César de Araújo
chamou de patrimônio afetivo. Em uma rápida busca na
internet é possível ter acesso a uma grande quantidade de
LPs raros e as mais diversas informações sobre estas bandas
que ainda são incógnitas, verdadeiras raridades.
Informações guardadas, compartilhadas e apreciadas por
gerações distintas: a que viveu as décadas de 1960-70 e a
dos jovens de hoje que possuem admiração por aquele
período.
A contracultura brasileira possui diversas fases e
centenas de personagens, desta forma é um campo de
pesquisa que necessita de novas abordagens, a fim de trazer
à tona memórias subterrâneas. Além disto, a música é
apenas uma das faces da contracultura, há um grande
universo, permeado por artistas plásticos, cineastas,
artesãos, entre tantos outros indivíduos que através de
distintas formas se manifestaram neste período. O estudo
destas manifestações é capaz de gerar novas perspectivas
históricas.
De acordo com o Jornal do Brasil65, após a
dissolução da banda Spectrum, José Luiz Caetano casou e
passou a trabalhar como professor de Shiatsu e
posteriormente se tornou funcionário público. Caetano foi
quem tratou do processo de relançamento do LP pelo selo
alemão Psychedelic Music. Este trâmite envolveu buscas e
encontros com os outros músicos de “Geração
Bendita” ainda vivos: os guitarristas David John Giecco
(pecuarista na cidade de Bom Jardim, município vizinho de
65Jornal do Brasil.14/02/2002. Op. Cit.
Nova Friburgo) e Sérgio Nogueira Régly (o Serginho,
desenhista na área de construção civil em Nova Friburgo), o
baterista Fernando Gomes Correa Jr. (um dos idealizadores
da banda, trabalha no Rio de Janeiro na área de
informática). O baixista José Carlos Corrêa da Rocha
(Toby) morreu na década de 90 em um acidente de carro.
Carl Reinhard Kohler - o antigo dono do sítio Quiabo’s e
um dos idealizadores do filme - faleceu aos 72 anos, após
ser vítima da tragédia que atingiu Nova Friburgo em janeiro
de 2011, causada pelas fortes chuvas66.
Apesar de não terem sido um fenômeno da indústria
cultural, o LP e o filme possuem grande valor como
documentos de uma época de conflitos e sonhos. Os
produtos possuem qualidade técnica amadora, mas estão
recheados de audácia. O que desagradou alguns dos
conservadores moradores da cidade, gerando represálias
através do aparato repressor vigente no governo militar. A
história da banda Spectrum é uma entre centenas que
merecem ser contadas a fim de se demonstrar
comportamentos e composições que vão além do que
66Portal do Ministério Público: www.mp.rj.gov.br/.../RELACAO_NOMINAL_01_06_2011.xls .Acessado em 18/01/2013
estamos acostumados. Novas possibilidades serão assim
reveladas.
Para compreender melhor o fenômeno da
contracultura, assim como suas inúmeras possibilidades e
representações, verifique a relação de filmes, LPs e livros
presentes nas páginas seguintes.