Download - Perrusi, Artur. Entre o cristal e a fumaça: um estudo sobre equipe multiprofissional na psiquiatria
IN: Silva, Antonia; Costa, Iris do Céu; Alves, Maria do Socorro (orgs). Investigação em Saúde: múltiplos enfoques. Natal: EDUFRN, 2011.
Entre o cristal e a fumaça: um estudo sobre equipe multiprofissional na psiquiatria
Artur Perrusi*
Introdução
O texto possui como objeto de análise o trabalho em equipe no campo da psiquiatria. Ele
faz parte de um texto mais amplo, cujo objeto foi a identidade profissional do psiquiatra (Perrusi,
2003). Nesse sentido, é produto de uma pesquisa qualitativa realizada na cidade brasileira do
Recife, capital do Estado de Pernambuco, onde foram efetuadas 50 entrevistas semi-diretas com
psiquiatras, além de observação participante nos serviços psiquiátricos locais. A análise será
dividida basicamente em três partes:
• uma discussão teórica sobre as relações entre interação e prática, visando quais tipos de ação social que está em jogo nas práticas profissionais;
• uma discussão sobre o trabalho em equipe e o papel do consenso, tentando perceber as dinâmicas que regem as interações entre os psiquiatras e os outros profissionais numa equipe multiprofissional;
• e, enfim, uma análise concreta de uma situação concreta, em que interpretamos dados empíricos da pesquisa relacionados ao trabalho em equipe.
Interação e prática
Ao analisar o trabalho em equipe, tivemos a necessidade de examinar de que maneira
ocorre a relação entre interação e prática profissional, já que observamos uma situação em que
acontecem diversas interações e atividades envolvendo vários profissionais diferentes. Tal fato
levantou a necessidade de uma análise mais detalhada das práticas profissionais — ora, observar
as interações entre profissionais implica compreendê-las também enquanto práticas. Tornou-se,
assim, indispensável perceber as inserções das práticas no seu contexto de ação, o que significou
analisar também a sua delimitação pelas normas e regras do contexto profissional.
* Prof. Dr. do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade federal da Paraíba.
Não tivemos, contudo, interesse em examinar todo o espectro de práticas e interações
profissionais, até mesmo porque isso seria impossível, dada a nossa limitação metodológica; por
isso, focamos nossa atenção no trabalho envolvido nas equipes multiprofissionais, cuja
concepção e modo de funcionamento são considerados problemáticos pelos psiquiatras,
denotando provavelmente desafios identitários. Ora, o trabalho em equipe necessita de interações
multiprofissionais e práticas específicas que, para produzir algum resultado, exigem
competências cognitivas singulares e todo um jogo de negociação em torno do status e da
pertinência de cada saber profissional. Além do mais, as discussões e as decisões realizadas em
grupo geram disputas e conflitos, em relação aos quais a observação pode trazer à tona os
diversos momentos de afirmação e de insegurança dos psiquiatras quanto à legitimidade do saber
psiquiátrico.
Mas, por que a insistência em relacionar interações às práticas? Ora, não queremos
examinar apenas o tipo convencional de prática que visa, sobretudo, objetos materiais,
correspondendo a um modelo de atividade que podemos chamar de ação material ― não
queremos examinar o que alguns marxismos chamam de práxis (Vasquez, 1977). Na verdade,
temos em vista um exemplo de prática que possui como alvo a comunicação social; afinal, vamos
focar o trabalho em equipe, caracterizado pela discussão e tomada de decisões em grupo. Não
seria uma atividade que produziria um objeto alheio aos agentes da ação ou à própria atividade,
mas sim que teria seu fim em si mesma — a ação moral seria um exemplo desse tipo de prática.
Seria uma atividade criadora, mas produtora e construtora de símbolos, de significados e, no caso
que nos interessa, de interação social. Certo, ela não cria toda forma de interação social, mas sim
uma específica, embora bem abrangente no mundo social, relacionada à comunicação. De mais a
mais, seria uma ação comunicativa (Habermas, 1987) que produziria mediações criativas a partir
das interações sociais.
O leitmotiv dessa prática é a linguagem, sendo uma atividade, portanto, relacionada ao
uso da palavra — o uso prático da linguagem visa a comunicação no meio social. E, dependendo
tão intrinsecamente da comunicação, pode-se dizer que é uma ação bem mais imprevisível do que
a atividade material, pois dependeria das vicissitudes das interações sociais. Como se baseia na
interação, não é dominada pelo modelo da prática material ou instrumental, baseada na relação
sujeito/objeto (tipo agente/paciente ou meios/fins), e sim fundada na relação sujeito/sujeito. Seria,
assim, fundamentalmente intersubjetiva, envolvendo necessariamente a intencionalidade. Sendo
intencional, podemos deduzir que o sujeito da ação, inclusive por apresentar uma capacidade
reflexiva, pensa sobre a sua prática, possuindo uma reflexividade pragmática (Habermas, 1987;
Giddens, 2003).
Na realidade, toda prática é uma ação mais ou menos intencional. A ação comunicativa,
por exemplo, centra seu foco na interação, razão de sua intensa intersubjetividade, enquanto a
ação material fixa sua atuação nas relações estratégicas entre o sujeito e o objeto, nas quais são
utilizados meios que perseguem a maximização do resultado. Todas as duas modalidades de ação
dependem do contexto da ação e da situação do sujeito. E, dependendo de um sujeito socialmente
situado, toda prática estrutura-se — caso marcante da atividade comunicativa — a partir de
papéis sociais, existindo assim limites normativos à ação, principalmente em situações
institucionalizadas. Tais limites impõem também restrições ao alcance da racionalidade do sujeito
e às variações nos graus de intencionalidade. O desenvolvimento da ação possui uma relação
imediata com o modo pelo qual se vincula as capacidades de escolha e de decisão das pessoas às
condições estruturais do contexto, principalmente no que diz respeito a recursos e a relações de
poder, que podem favorecer ou não a ativação das competências dos indivíduos ― o sujeito
possui capacidade de escolha e de decisão (intencionalidade), embora seja limitado e situado
pelas suas posições e disposições sociais.
Interessa-nos, sobretudo, esse jogo entre a estruturação do contexto e a liberdade do
sujeito, pois acreditamos que isso seja fundamental para entender as práticas profissionais, em
particular numa situação de trabalho em equipe. A começar que, dependendo da
institucionalização do espaço de trabalho, as práticas profissionais diferenciam-se de
sobremaneira, seja numa situação em que exista uma forte pressão normativa (prática fechada),
enquadrando os indivíduos no seguimento e no respeito às regras, seja numa situação onde há
uma maior flexibilidade nas normas (prática aberta), permitindo aos indivíduos uma maior
espontaneidade e uma negociação mais livre com as "regras do jogo". Ou seja: a iniciativa
cognitiva do indivíduo, num determinado contexto de ação, é reduzida quando o sistema, no qual
está inserido, é fortemente normatizado e quando os recursos são escassos — vale frisar que
estamos usando a noção de recurso num sentido bem largo: pode ser desde uma relação de poder,
passando pelas condições de trabalho, até um quadro de referências sociais (pertença a um grupo,
por exemplo) que pode fornecer um apoio afetivo-cognitivo ao indivíduo. Por isso, dependendo
das pressões do contexto, a prática profissional pode variar sua configuração de várias maneiras:
• as interações entre os indivíduos, já incertas por definição, podem tornar-se mais ou menos previsíveis;
• a comunicação social pode fluir mais ou menos simetricamente; • as tomadas de decisão podem ser mais ou menos negociadas.
Pode-se inferir que tais mudanças na configuração vão interferir nas relações entre as
práticas e os valores do profissional, em particular as representações profissionais — vale dizer
que são representações sociais típicas do mundo profissional, no caso aqui examinado, da
psiquiatria (concepção do objeto profissional — a doença mental —, ética profissional,
vocação...). Geralmente, as representações são instrumentalizadas pelas práticas ou podem surgir
como expressões do exercício profissional e de sua inserção no contexto do trabalho. As
representações, embora não interpelem imediatamente as ações, são referências que, muitas
vezes, podem estruturar as ações e guiar a prática (Moscovici, 1986; Jodelet, 1989). Como
contrapartida, as representações podem ser transformadas pelo resultado das ações,
principalmente no caso em que tais atividades mudam ou relativizam as normas ordenadoras do
contexto profissional. Além disso, as representações são também sensíveis às transformações
ocorridas nas interações entre os indivíduos, a começar se tais mudanças re-arranjarem as
posições de valor (concepção do objeto profissional, deontologia, campo do saber...) inscritas no
espaço profissional.
Concomitantemente, as representações profissionais seguem os condicionamentos já
discutidos acima, a saber: quando as práticas são fechadas, isso significa que há uma forte
pressão normativa e, conseqüentemente, as influências das regras básicas do contexto profissional
predominam em relação às representações do indivíduo — uma prática fechada vem
acompanhada de um sistema de influência poderoso. Quando as práticas são abertas, o contrário
acontece, e as interações sofrem uma influência das representações; logo, as influências são mais
flexíveis, não se esgotando nas normas do contexto profissional, deixando um maior espaço para
a ação das representações.
Embora possamos logicamente examinar as duas modalidades de práticas de modo
separado, as práticas profissionais nunca são, na verdade, completamente fechadas ou abertas,
apresentando ao contrário uma combinação — na qual pode predominar um dos pólos — ou uma
complementaridade entre as duas formas. Podemos explicar melhor essa afirmação utilizando os
aportes teóricos de Habermas (1987). Segundo esta posição, não se pode dissociar o mundo
sistêmico (reino da razão instrumental) do mundo vivido (reino da razão comunicativa). Sendo
assim, toda prática inscreveria no seu movimento tanto sistemas de ação racional visando a um
fim, como processos interativos e comunicativos relacionados a sistemas de poder e de
legitimidade, como também de liberdade e de reciprocidade. A base da socialização estaria, pelo
que se infere, localizada na dinâmica perpétua entre a esfera do trabalho e os processos de
interação social. Assim, voltando à nossa discussão, quanto mais fechada a prática, mais
semelhante à ação instrumental, isto é, mais os meios técnicos e organizativos são fundamentais
no contexto profissional; quanto mais aberta a prática, mais parecida com a ação comunicativa,
isto é, mais as interações entre os indivíduos e as representações são importantes.
As práticas profissionais, dessa forma, devem ser consideradas a partir dessa dupla
modalidade de ação. No entanto, pode-se ainda nuançar tal afirmação: muitas profissões se
alicerçam na interação com o cliente e/ou necessitam, na realização do serviço, de uma forte
integração com outros profissionais — ora, pode-se inferir desses casos que a prática
comunicativa é a ação predominante ou que, pelo menos, deveria ter logicamente a
predominância. E, em relação ao produto do trabalho, já que a prática instrumental produz uma
matéria tangível, indagamos até que ponto a realização de alguns serviços profissionais significa
a criação de um objeto alheio ao sujeito ou à sua atividade. Tais serviços, muitas vezes,
dependem de mediações técnicas que utilizam objetos, mas empregam fundamentalmente a
interação e a comunicação sociais como forma de realização da ação. Um serviço como o
médico, por exemplo, utiliza um saber especializado que produz, durante a interação com o
cliente, um conhecimento que, além de poder ser utilizado para produzir novas ações e novas
interações, possui a finalidade de resolver problemas. Aplica-se, nesse caso, um saber a partir da
disposição de uma interação social específica (médico/paciente), com o resultado do serviço
dependendo da manutenção da interação. O resultado não significa a criação de um objeto, e sim
a mudança na disposição da interação e a solução ou não de um problema.
Contudo, se estamos corretos em dizer que a psiquiatria, por exemplo, envolve uma
prática profissional que não produz um objeto tangível, como então se pode inferir sua
modulação pela ação instrumental, já que esta, por definição, é objetal? Obtém-se a resposta a
esta pergunta discriminando as práticas baseadas na interação social. Além da comunicativa,
consideramos a ação regulada por normas — os membros de um grupo social, por exemplo,
agindo conforme a orientação de normas e regras — como uma prática baseada na interação,
embora tenha também uma relação pronunciada com o mundo dos objetos. Nesse caso, o que
determinaria a ação seria a obediência à norma estabelecida. A norma, aqui, seria o equivalente
da linguagem na ação comunicativa, sendo assim uma mediação entre dois pólos de uma relação.
Mas não seria o medium, como no caso do agir comunicativo, entre um sujeito e um outro
respectivo, e sim, mais exatamente, entre o indivíduo e o mundo social. Não seria propriamente a
mediação de uma relação intersubjetiva, orientada apenas para a compreensão, e sim, mais
exatamente, a de uma relação objetiva, orientada para fins. Sendo assim, a relação entre o
indivíduo e o mundo social, mediada por normas, teria um caráter objetivo. Tal relação possui um
caráter instrumental porque é finalizada por um plano de ação, além de supor uma racionalidade
que pode ser objetivada pelo julgamento de um terceiro através de critérios normativos. Enfim,
por comodidade, chamaremos a ação regulada por normas, daqui por diante, de ação estratégica.
A ação estratégica é uma prática baseada na interação que possui um caráter instrumental.
Entretanto, a ação propriamente instrumental é fundada na relação entre o sujeito e o mundo da
natureza, em que a criação de objetos seria evidente. O mundo da ação estratégica, porém, não é
o da natureza e sim o mundo social. Ora, este é composto por objetos sociais, que não são
naturais nem técnicos, e também por indivíduos socializados. Na ação estratégica, tais objetos,
através das normas, podem ser fundamentais nas interações entre os indivíduos; entretanto, ao
contrário da ação comunicativa, a ação estratégica visa a maximização do resultado, através do
agenciamento dos sujeitos enquanto objetos. O agenciamento dos sujeitos seria realizado através
do controle normativo da ação. Ao visar um objetivo, ao maximizar o resultado, a ação
estratégica precisa direcionar e controlar a atividade do sujeito, tornando-o um meio para a
realização de um fim.
Se nosso raciocínio tem pertinência, as atividades profissionais baseadas na interação
podem ser definidas pelo jogo entre a ação estratégica e a comunicativa. A instrumentalidade e a
intercompreensibilidade da ação vão depender do contexto profissional e de que modo a atividade
profissional articula suas práticas, seus objetos e seus objetivos. Assim, tanto a ação estratégica e
a comunicativa podem interpelar fortemente o trabalho em equipe como influenciar a atividade
propriamente técnica ou organizativa dos profissionais. Para explicitar melhor tais afirmações,
iremos discutir duas situações concretas, utilizando-as como forma de ilustração do problema.
Nas nossas observações, reparamos que o trabalho em equipe, numa situação com forte pressão
normativa, seguia uma rotina na qual as regras do serviço estavam automatizadas, como se o
objetivo fosse uma economia de esforço. O fundamental da rotina era o respeito às regras e a
conformidade a determinados preceitos técnicos, do tipo observar totalmente as ordens médicas e
administrativas. Acreditamos que as interações aqui são dirigidas prioritariamente por ações
estratégicas visando a disciplina e a obediência às normas do serviço. Em outras situações, por
exemplo, numa instituição em que o trabalho em equipe não era tão normatizado e o poder não
estava tão concentrado, a rotina era menos uniformizadora, pululavam improvisações,
bricolagens e havia espaço para jogos de afirmação identitária entre os diversos profissionais.
Aqui, julgamos que as interações são guiadas preferencialmente por ações cujo foco são a
comunicação, as representações e a identidade — enfim, estamos diante de ações comunicativas,
baseadas na interação e em jogos de identidade.
Em suma, percebe-se que o trabalho em equipe pode apresentar, dependendo do contexto
profissional, várias situações nas quais as duas modalidades de práticas aparecem misturadas,
neutralizadas ou dominadas, ainda que, seguindo nosso raciocínio, as práticas baseadas na
interação sejam logicamente predominantes e, inclusive, pontos de partida para se entender como,
em diversas circunstâncias, acontece o domínio das ações estratégicas no contexto profissional.
Tal fato pode ocorrer em diversas situações, pois, embora a interação seja dominante, pode estar
a tal ponto pautada por preceitos técnicos e administrativos, que as referências às representações
e ao jogo identitário estejam suplantados pelas ações estratégicas.
Neste momento, podemos perceber melhor as correspondências que fizemos entre as
práticas fechadas e abertas e as instrumentais e comunicativas. Como vimos, focamos nossa
atenção nas interações e suas vicissitudes. Dependendo do contexto, podem ser mais ou menos
normatizadas. Tal afirmação é banal, pois geralmente as interações são regidas por normas e
regras; na realidade, quando dizemos que são "normatizadas", significa que são interações
dirigidas para a maximização dos objetivos do serviço. Por isso o peso das interpelações de
ordem técnica e administrativa na condução da ação — digamos que as interações são
enquadradas pela instituição ou pela organização do trabalho. Já na outra situação, quando
estamos diante de práticas abertas e há uma flexibilidade normativa, as interações são mais
independentes da coerção institucional ou organizativa, estando mais enquadradas pelas
representações profissionais dos indivíduos e pelos jogos identitários.
Pode-se tentar resumir a discussão no seguinte quadro:
Práticas Normas institucionais ou organizativas
Tipo de Ação Inserção do profissional
Tipo de Interpelação
Práticas fechadas
Pressão normativa (+) ação estratégica (-) ação comunicativa
Heteronomia técnica e administrativa
Práticas abertas
Flexibilidade normativa
(+) ação comunicativa (-) ação estratégica
Autonomia Representações e jogos identitários
Se estivermos corretos, a autonomia do profissional vai depender das normas que
organizam seu serviço, dos recursos à disposição (condições de trabalho), das regras que regem a
sua prática e do poder heurístico de referências simbólicas tais como representações, valores de
grupo e posições identitárias. Assim, quando as práticas profissionais não entram em contradição
com as normas, e no momento em que as atividades são estabelecidas em comum acordo no
grupo, correspondendo a crenças mais ou menos partilhadas, a prática profissional sofre um forte
condicionamento afetivo-cognitivo e uma marcante orientação das representações profissionais.
Pode existir, todavia, uma situação em que a interpelação institucional é fraca e as
orientações do grupo de trabalho não são consensuais ou não apresentam uma influência muito
forte. Geralmente, tal condição manifesta-se da seguinte forma:
• em instituições onde a característica do trabalho não implica uma forte institucionalização das ações, nem uma necessária mobilização do grupo — observamos isso em clínicas privadas e em várias situações de trabalho no hospital dia.
• em instituições nas quais não há controle de parte a parte (anomia institucional) e há poucos recursos materiais e simbólicos, inclusive os que poderiam impor normas e crenças.
Em tese, o leque de escolhas não é diretamente predeterminado pela organização do
trabalho ou pelo consenso do grupo, deixando o indivíduo com uma maior liberdade de escolha.
Na segunda condição, a situação é mais complicada, pois, embora o indivíduo não sofra
injunções para determinar sua ação, sua margem de liberdade é limitada pela falta de recursos e
pela ausência de regras que "otimizem" a atividade — o lema é "vire-se como puder"... Inclusive,
percebemos essa conduta nas condições de trabalho que imperam no hospital público. O que
sobra realmente, nas duas condições, são comportamentos individualizados nos quais as
referências às representações profissionais são onipresentes, embora não sejam partilhadas.
Mas, se discutimos acima situações onde as representações têm algum papel na prática,
como elas ficariam num contexto onde as normas são imperativas, isto é, onde a ação estratégica
domina e estrutura todo o espaço profissional? Evidentemente, já respondemos em parte a essa
questão, mas podemos repetir a argumentação, examinando-a do ponto de vista do profissional.
Para tal, imaginamos os seguintes cenários:
• quando o profissional considera o sistema normativo reversível, mesmo quando há uma clara incompatibilidade entre as representações e as normas, ele adotaria condutas de resistência ou de luta aberta contra as regras do serviço. A prática sofreria grandes mudanças ou transformações circunstanciadas. No caso em que as normas permaneçam intactas, provavelmente o profissional protegerá suas representações (posição identitária), adaptando-as perifericamente e produzindo mudanças pontuais — as proteções, contudo, serão possivelmente carcomidas pelo tempo, havendo uma produção de representações intermediárias mais afinadas com as condições de exercício do trabalho, e as representações antigas sofrerão um processo de idealização ou simplesmente se extinguirão;
• quando o profissional não pode deixar de aceitar de alguma maneira as normas da organização do trabalho, considerando-as irreversíveis, o discurso (sobre a vocação e o objeto profissional, por exemplo) seria racionalizado, e as representações seriam conformadas à situação, podendo apresentar adaptações notáveis ou mesmo mudanças marcantes. É provável que o profissional defenda suas representações através de mecanismos de defesa (justificação, racionalização, substituição...), cujas produções ideativas acoplar-se-ão nas representações, causando mudanças periféricas ou substanciais no seu conteúdo. Caso não haja a possibilidade até mesmo de se utilizar mecanismos de defesa, a probabilidade é forte de as representações sofrerem mudanças brutais;
• existiria, é claro, situações nas quais ocorreria, apesar da pressão normativa, uma compatibilidade entre as normas e as representações profissionais. Neste caso, normas e representações confundir-se-iam, reforçando a significação global da representação. A interação seria determinada por normas e representações diretamente instrumentais. Tal situação seria ideal no caso da cirurgia, por exemplo, um tipo de medicina que exige uma base técnica acentuada e interações que visem expressamente a otimização do resultado. Já quanto às medicinas que exigem a interação, inclusive como garantia do resultado, a completa determinação (representação + norma) instrumental da interação traria provavelmente efeitos contraproducentes.
De qualquer forma, mesmo que a prática seja completamente imposta, ela precisa, pelo
menos hipoteticamente, ser de alguma forma apropriada e integrada ao sistema de representações
do profissional, senão estaremos diante de uma crise vocacional ou de identidade completamente
paralisante. A integração é o resultado, muitas vezes apenas transitório, de um processo que
envolve diversas transações entre as representações do profissional, as normas do serviço e os
valores do grupo. Tais transações podem ser consideradas um jogo identitário, no qual o
profissional projeta sentido sobre sua ação a partir das suas interações com o meio institucional e
com os outros profissionais. Percebe-se com nitidez tal fato na análise concreta do trabalho das
equipes, no qual a interação entre os profissionais é fundamental e, por isso mesmo, a
necessidade de adaptação e de conformidade entre os indivíduos de diversas profissões torna-se
tão importante. Apesar das diferenças e dos possíveis conflitos entre as normas do serviço, as
identidades e as representações profissionais, haveria uma busca de consenso — a procura de um
campo mínimo de ação — com o intuito de levar adiante o trabalho.
Prática, consenso e equipe multiprofissional
Aqui, nosso ponto de partida será justamente a questão do consenso, apenas assinalada
acima. Tentaremos mostrar sua importância na análise das relações entre a prática e o modo de
organização das equipes multiprofissionais. Pois, enquanto tal, a busca do consenso é uma
característica marcante de determinadas formas de organização do trabalho. Sua necessidade
surge, fundamentalmente, nas instituições onde o trabalho em equipe é valorizado. Buscá-lo é
desejável, pois o campo institucional médico, em particular o psiquiátrico, envolve competências
profissionais diferentes, cuja interdependência é objetivamente necessária para a realização das
atividades do serviço. Há uma imperiosa necessidade de entendimento e do estabelecimento de
um mínimo campo comum de ação.
Claro, a divisão de trabalho e a interdependência profissional, por si só, não tornaram
inevitável a procura do consenso. O serviço pode funcionar simplesmente utilizando uma
hierarquia e uma centralização de poderes, dispensando a necessidade da construção de um
consenso, pois as decisões não seriam propriamente consensuais e sim impostas de cima para
baixo. O consenso é desejável e necessário, na verdade, quando a organização do serviço é
orientada por valores que exigem a participação dos profissionais. No campo psiquiátrico, tais
valores entraram em cena historicamente com a hospitalização do antigo asilo, império da
hierarquia e do monopólio de poder do psiquiatra. A hospitalização correspondeu a uma
democratização na organização do trabalho, bem como à valorização crescente das outras
profissões do campo da saúde mental (enfermagem, psicologia...). A concentração do poder nas
mãos dos psiquiatras diminuiu consideravelmente e a hierarquia foi se tornando cada vez mais
funcional e horizontal.
No trabalho em equipe, pelo menos enquanto ideário, a participação dos profissionais nas
tomadas de decisão é estimulada e colocada como condição sine qua non do consenso. Logo,
para haver consenso é preciso participação (Moscovici & Doise, 1992). Não é o acordo que o
caracterizaria, e sim a associação entre os indivíduos. Somente desse modo as atitudes e as
decisões individuais poderão tornar-se atitudes e decisões sociais, isto é, partilhadas e construídas
socialmente num grupo de profissionais.
Mas, se o consenso depende da participação, infere-se que o tipo de participação é
fundamental para a qualidade do acordo entre os profissionais. Moscovici e Doise (1992)
defendem que, num grupo no qual é possível uma participação livre de pressões, o indivíduo
tende a polarizar o seu discurso. Ocorreria uma polarização de grupo em que o consenso é
estabelecido a partir dos extremos, isto é, a partir das posições que polarizam as discussões no
grupo. Tal tese é interessante, porque vai de encontro a posições que afirmam que, nas discussões
coletivas, os indivíduos procuram o meio-termo ou o compromisso. Contudo, oferece uma certa
limitação, pois a construção do consenso geralmente acontece em situações nas quais a
participação ocorre sob uma pressão normativa. Tendo consciência dessa limitação, podemos
inferir algumas hipóteses sobre a relação entre consenso e participação (1992):
• há uma relação de reciprocidade entre a participação e as interações. A qualidade das interações seria fundamental na estruturação da participação do indivíduo, sendo mais importante, na tomada racional das decisões, do que a competência dos indivíduos
• o consenso estabelece-se a partir dos extremos preferidos (polarização no grupo) quando a participação não é coagida por normas e regras que diminuam a liberdade de opinião do indivíduo;
• quanto mais intensa e mais livre a participação, maior a implicação do indivíduo nas tomadas de decisão do grupo. A implicação significa que o indivíduo está engajado nas discussões e nas decisões, e que tomou partido e posição nas deliberações coletivas. Ao se engajar e ao tomar partido, o indivíduo inscreve suas posições de valor (representações, cultura profissional...) nas discussões e nas decisões do grupo. Num grupo estruturado para o trabalho em equipe, a implicação do indivíduo leva-o na direção de suas posições e valores; assim, caso a implicação torne-se coletiva, os indivíduos são levados na direção das crenças e valores do grupo.
Se tais hipóteses têm alguma pertinência e, ao mesmo tempo, acoplando-as ao debate
anterior sobre as práticas fechadas e abertas, pode-se inferir duas formas gerais de participação
(Blin, 1997):
• consensual: envolvem grupos onde as práticas abertas imperam e, portanto, há participação e implicação dos profissionais — cada indivíduo pode ter acesso às decisões coletivas. Há engajamento, e a performance dos indivíduos é a medida de sua participação. Havendo discussão, ocorrem as polarizações de grupo, produzindo tensões e, ao mesmo tempo, movimentos de reconciliação no sentido de uma ação conjunta. O consenso é construído, assim, a partir do dissenso e da recomposição das posições em torno de valores e representações partilhadas pelo grupo. O acordo é fundado, segundo Moscovici e Doise (1992), a partir dos conflitos sócio-cognitivos (choque entre posturas afetivas, representações e posições de valor) que precederiam as tomadas de decisão;
• normativa: envolvem grupos onde o peso da hierarquia e a pressão normativa influem na tomada de decisões. Há uma regulação das possibilidades das decisões. Estamos no reino das práticas fechadas. Há um baixo grau de implicação e a participação, embora muitas vezes obrigatória, é passiva, levando os indivíduos a buscarem um compromisso nas decisões e a procurarem o meio-termo entre as diversas posições existentes no grupo. As ações são enquadradas pelas regras e pela obediência à hierarquia;
Podemos resumir a discussão acima através do seguinte quadro:
Participação Interação Prática Implicação Consenso Ação Consensual Conflitos sócio-
cognitivos Prática aberta Engajada Baseado na
Polarização Performativa
Normativa Conformismo Prática fechada
Desengajada Baseado no compromisso
Enquadrada
Pode-se acrescentar ainda que cada tipo de participação vai produzir um efeito diferente
nas representações profissionais. Na participação consensual, o profissional, por causa do
engajamento, implica sua representação na sua ação performativa; assim, a representação pode
sofrer transformações e mutações consideráveis, principalmente quando é partilhada pelo grupo.
Já na participação normativa, como não há engajamento, a representação não é ativada na ação.
Cada um mantém a sua representação e procura o compromisso e o meio-termo no processo
decisório, geralmente regulado pela hierarquia e pelas normas do serviço. Conclui-se, dessa
forma, que a transformação das representações profissionais pré-existentes, numa determinada
organização de trabalho, é dependente dos modos de participação e da forma como é estabelecido
o consenso.
As condições empíricas do trabalho em equipe
Vamos agora aplicar concretamente todas essas inferências discutidas acima no nosso
material empírico. Antes será importante caracterizar as organizações de trabalho. Para fins de
comparação, dividimos as observações segundo as instituições. A primeira seria ente o público e
o privado. Assim, na esfera pública, examinamos o trabalho em equipe e as reuniões num
hospital fechado e num hospital aberto (hospital-dia); na esfera privada, examinamos o trabalho
numa clínica privada.
No hospital fechado, observamos a mecânica do trabalho, as discussões e as tomadas de
decisões em todas as enfermarias. No hospital-dia, observamos de forma geral os procedimentos
de trabalho e as reuniões no serviço, aberta a todos os profissionais. Já na clínica privada,
observamos as atividades profissionais no local de trabalho.
No hospital psiquiátrico público (HPP), estamos diante de uma situação na qual a
interpelação institucional é fraca e, em tese, o psiquiatra tem uma autonomia profissional
relativamente grande. Contudo, os recursos humanos, organizativos e materiais são tão escassos
(incluindo os baixos salários) que questionam a margem de manobra do profissional. Na verdade,
o psiquiatra é mais independente do que autônomo, isto é, suas ações não sofrem tanta
interferência externa (normas e regras do serviço), mas são limitadas pelas condições de trabalho,
impedindo-o de formular de forma autônoma as normas de sua atividade. As regras e as normas
do serviço existem, evidentemente, mas têm pouca eficácia no enquadramento da conduta
profissional. Na forma, até que poderiam, caso fossem completamente aplicadas, produzir uma
pressão normativa que enquadraria as atividades profissionais. Porém, não é o que ocorre. Talvez,
para isso acontecer, fosse necessária uma articulação entre uma melhoria geral dos recursos e
uma pressão vinda da administração e da hierarquia do serviço.
O que existe, no fundo, não é uma flexibilidade normativa, e sim um relaxamento geral
das regras do serviço (o que chamamos de anomia institucional) devido à falta de recursos,
incluindo os recursos de poder que poderiam ser utilizados pela administração para impor a
ordem. Nossa impressão foi a de que não existe legitimidade para a cobrança, por parte da
hierarquia funcional e administrativa, de ações profissionais condizentes com as normas
existentes. Não existe legitimidade na exigência de compatibilidade entre normas e atividade
profissional, pois os baixos recursos não são funcionais a uma articulação ideal entre o
desempenho profissional e o trabalho no serviço. A maioria das regras torna-se pro forma,
sofrendo na prática uma adaptação geral às condições dos recursos disponíveis. Exigir que se
respeitassem as normas do serviço poderia paralisá-lo, pois não haveria recurso para tanto. O
jeito é respeitar as regras quando puder, adaptá-las quando necessário e ignorá-las de quando a
quando. Os profissionais têm mais ou menos consciência do "jeitinho" — a noção de "jeitinho"
foi empregada por alguns entrevistados, bem como por membros da enfermagem e da
administração do HPP — e muitos justificaram que são obrigados a adotá-lo para garantir um
mínimo funcionamento do serviço.
No hospital-dia, os recursos são, proporcionalmente, um pouco maiores do que no
hospital fechado, até porque a quantidade de paciente, de profissionais, principalmente de
psiquiatras, e a própria estrutura do serviço são menores. Não encontramos propriamente uma
anomia institucional e sim uma tentativa permanente de combatê-la. O "jeitinho" existe, mas não
é realizado de maneira individualizada ou isolada, e sim coletivamente, tentando adaptar ao
máximo as condições de trabalho do serviço às normas vigentes. Aparentemente, há uma
predisposição dos profissionais em trabalhar de forma coletiva, incentivados talvez pelo lema
maior, dito informalmente por uma psicóloga, "todos estão mesmo no mesmo barco...".
Provavelmente, essa situação seja condicionada pelas próprias características da população de
pacientes. São pacientes relativamente estáveis ("compensados", no jargão) que necessitam de
mais atenção psicoterápica do que clínica e de uma preocupação com a sua re-inserção social —
um ambiente de trabalho onde, em tese, os papéis do psicólogo e do serviço social seriam mais
relevantes; enfim, um ambiente "relacional", necessitando de interações e um certo grau de
cooperação coletiva. Acreditamos, desse modo, que não foi uma mera coincidência encontrar,
nesse serviço, psiquiatras que ou eram psicanalistas ou profissionais que fizeram uma formação
analítica, sendo assim predispostos a um trabalho "relacional".
Já na clínica privada, o que há é um enquadramento dos profissionais pelas normas do
serviço, e os psiquiatras, apesar de manterem uma certa independência profissional (controlam as
regras da intervenção clínica), não têm tanta autonomia profissional (não controlam as regras do
serviço). O "jeitinho" existe, mas é mitigado e, geralmente, apenas no sentido de garantir uma
outra jornada de trabalho. Não há anomia institucional, mas sim o esforço de se seguir as regras
e, da parte da administração e da hierarquia do serviço, de se instituir práticas fechadas. Nas
entrevistas, foi-nos revelado que o controle era razoável, com o profissional sentindo-se mais
fiscalizado na realização do seu trabalho. Outra questão importante, encontrada nos discursos, foi
a relação entre conformismo com as regras do serviço e a falta de estabilidade no emprego. De
fato, tal situação cria objetivamente uma correlação de forças desfavorável da qual o profissional
não pode tirar proveito, deixando-o numa posição de subordinação.
Aparentemente, no HPP, o "jeitinho" não se esgota na articulação entre as normas do
serviço e a atividade profissional, pois repercute, inclusive, na questão da contribuição-
retribuição, isto é, na relação entre a carga horária a ser cumprida pelo profissional e o salário
recebido. Todos os profissionais do HPP afirmam de forma enfática que recebem um péssimo
salário, argumentando que o valor da contribuição (tempo de trabalho) não corresponde ao valor
da retribuição (salário recebido). Como disse um entrevistado: "esse trabalho aqui é uma
exploração, pois eu ganho uma porcaria"; afirmação que foi dita de várias formas, inclusive de
maneira eufemística. Por isso, como não há dedicação exclusiva, muitos têm, a começar pelos os
psiquiatras, uma dupla ou mesmo uma tripla jornada de trabalho, exercendo a profissão em outras
instituições, geralmente clínicas privadas ou consultórios. Ora, principalmente entre os
psiquiatras, observamos um comportamento que, nitidamente, redefine a relação entre a
contribuição e a retribuição: os psiquiatras, com exceção de um, não assumem toda a carga
horária do serviço, seja chegando atrasado, seja saindo mais cedo, isto é, um psiquiatra que tem
uma carga horária de seis horas, trabalhará assim apenas quatro, pra mais ou pra menos. A
redefinição da relação contribuição-retribuição, assim, seria a seguinte: diminui-se o tempo de
trabalho, compensando aparentemente o baixo valor da retribuição. Porém, na verdade, diminui-
se a carga horária, ao mesmo tempo em que se aumenta a intensidade do trabalho. Todo o
trabalho, de fato, é realizado com rapidez (consultas, reuniões e atendimentos aos pacientes, por
exemplo), permitindo que o profissional possa sair mais cedo, sem prejudicar, em princípio, a
realização do serviço. Os psiquiatras são pagos pelo tempo de trabalho (seis horas, por exemplo),
contudo, como precisam trabalhar em outro local, justamente para compensar o baixo salário,
saem do HPP antes de se completar toda a carga horária. Para isso, compensam a inobservância
da carga horária realizando todo o trabalho necessário com o máximo de rapidez. Evidentemente,
pode-se argumentar que, elas por elas, a intensidade do trabalho compensa a redução do tempo de
trabalho, o que não evita, sem dúvida, a perda da qualidade do serviço, mas permite ao
profissional manter mais de uma jornada de trabalho, gerando ao mesmo tempo a ilusão de que,
diminuindo o tempo de atividade, reduz-se o valor da contribuição, nivelando-o ao valor da
retribuição — contudo, existiram várias situações onde o profissional, inclusive o psiquiatra, não
intensificava o trabalho, deixando várias tarefas por fazer.
Observamos, também, esse tipo de comportamento no hospital-dia e nas clínicas privadas,
embora com maior parcimônia. Aparentemente, a conduta é mais velada e sujeita a adaptações.
Mas o objetivo é o mesmo: permitir ao psiquiatra a manutenção de várias jornadas de trabalho,
redefinindo a relação contribuição-retribuição. Um comportamento, vale frisar, que não é
explicitado pelos profissionais, embora seja assumido diante de um questionamento direto. O
discurso é velado, com toda uma série de racionalizações justificando a postura, ainda que, no
limite, reconheça-se a contradição evidente dessa conduta com as normas e regras do serviço.
Portanto, o "jeitinho" tem várias conseqüências, inclusive em relação às práticas. Certo, o
"jeitinho" vai oferecer uma certa liberdade ao psiquiatra e, portanto, um certo poder de decisão,
principalmente no hospital-dia. Assim, a abertura ou não das práticas no local de trabalho vai
depender essencialmente da postura do profissional ou, em outras palavras, de sua "cultura
profissional", principalmente numa situação como a encontrada na organização de trabalho do
HPP, onde o modus faciendi segue a tradição de "todo poder ao médico" — tudo indica que, em
tal ambiente, a autonomia dos outros profissionais da saúde mental é bem mais restrita do que a
dos médicos. No hospital-dia, ao contrário, o "relacional" condiciona as práticas com um peso
semelhante ao das normas institucionais — na realidade, o "relacional" funciona como uma
norma do serviço. Nessa situação, o poder do psiquiatra encontra-se relativamente diminuído em
detrimento da enfermagem e, principalmente, da psicologia. O ambiente parece ser mais
favorável ao trabalho em equipe, alicerçado em práticas consensuais. Já na clínica privada, o
psiquiatra tem pouca margem de manobra, logo, pouca iniciativa. Ele está no topo da hierarquia
profissional, mas ainda subordinado às regras do serviço ou, em outras palavras, ao (s) dono (s)
da clínica. Há trabalho em equipe, mas sob uma estrita coordenação médica e com uma nítida
pressão normativa.
No HPP, percebemos melhor a iniciativa dos profissionais, observando os procedimentos
de dois psiquiatras que eram os responsáveis pelas enfermarias nas quais estávamos alocados.
Havia uma diferença na postura dos dois profissionais que provinha fundamentalmente de suas
representações profissionais. Por exemplo: um dos psiquiatras era mais tradicional, admitindo o
trabalho em equipe, mas sob estrita coordenação médica: todo o procedimento era controlado
pelo psiquiatra — diagnóstico, tratamento, prognóstico e alta. Não só possuía a última palavra,
mas a iniciativa na tomada de decisões. Nessa enfermaria, as práticas podem ser consideradas
como um meio-termo entre fechadas e abertas, justamente por combinar o trabalho em equipe
com uma alta centralização das decisões nas mãos do psiquiatra — no caso, a prática torna-se
fechada menos pela pressão normativa proveniente das regras do serviço do que pela imposição
de uma hierarquia profissional. Contudo, quanto ao tipo de participação, percebemos que, por
causa do quase monopólio das decisões, assemelha-se mais ao tipo descrito como "normativo",
em que os membros adotam sem muita discussão as decisões do psiquiatra, evitam atos
problemáticos, assumindo um nítido conformismo com as condições de trabalho.
Na outra enfermaria, o profissional tinha como posição de valor o trabalho em equipe, não
encarnando uma posição normativa e decisória no ambiente de trabalho. As decisões eram
produzidas pela dinâmica das discussões em grupo. Pode-se dizer que, nessa enfermaria, as
práticas eram abertas, já que a participação dos profissionais era consensual, permitindo que os
procedimentos do serviço fossem controlados, de fato, pelo grupo e não pelo psiquiatra.
Apesar das diferenças, as duas situações têm muito em comum, até porque a iniciativa das
mudanças, principalmente a instauração de fato do trabalho em equipe, partiu dos psiquiatras. Ao
mesmo tempo, as duas situações possuem, no fundo, um caráter experimental, preenchendo
inclusive um vazio normativo, já que, do ponto de vista formal, as normas do serviço não
previam nem validavam o trabalho em equipe. Por isso, talvez, a dinâmica de grupo fosse
construída cautelosamente, com vários recuos e muitos impasses, embora as atividades, na
primeira situação, fossem mais previsíveis, até porque a hierarquia e a centralização das decisões
preestabeleciam rapidamente as condutas "adequadas" ao serviço; enquanto que, na segunda
situação, ocorria a necessidade de restabelecer, a todo momento, o consenso diante de cada novo
acontecimento. De todo modo, as experiências estavam, nas duas enfermarias, completamente
particularizadas e restritas ao local de trabalho — não encontramos outras experiências do mesmo
tipo no restante das enfermarias do HPP — contando com as duas examinadas, o HPP possuía
seis enfermarias ao todo.
Na verdade, nas outras enfermarias, encontramos o que poderíamos chamar de
participação anômica: as atividades de trabalho eram de praxe e, praticamente, não existiam
reuniões, havendo um reduzido engajamento por parte dos profissionais seja nas interações
profissionais, seja na melhoria do serviço. Os problemas eram resolvidos caso a caso, na maioria
das vezes individualmente, somente ocorrendo a consulta ao psiquiatra quando havia algum
impasse. Como disse informalmente uma enfermeira: "nosso método de trabalho é 'empurrar
com a barriga" — o que talvez signifique, se nossa interpretação é válida, uma espécie de
repetição mecânica de procedimentos baseados na mera manutenção do cotidiano do serviço. Tal
método conferia até algum poder e responsabilidade ao psiquiatra, já que, em tese, a tomada de
decisões ficava sob sua alçada; contudo, na prática, o alcance de seu poder e de sua influência
não ultrapassava a simples reprodução do dia-a-dia do serviço, isto é, o poder de se continuar,
como já foi dito, empurrando tudo com a barriga... — como disse um psiquiatra: "você me
pergunta se tenho algum poder... Mas que poder é esse se não consigo fazer nada do que
quero?!"
Se tais inferências tentam explicar a participação do profissional nos serviços
psiquiátricos, prestaremos a atenção agora a um problema correlacionado: o modo de
participação dos profissionais. Como tal, está relacionado às questões discutidas acima, pois o
modo de participação pode elucidar alguns problemas concretos da implicação. Observamo-lo em
todos os serviços; no caso do hospital fechado, examinamos todas as enfermarias, inclusive
definindo a participação nas enfermarias, onde não há trabalho em equipe, como "anômica",
fazendo assim contraponto às duas outras formas de participação já assinaladas, a consensual e a
normativa. De nossas observações, retiramos seis itens que podem ser definidos como
"indicadores de participação". Para cada item, fizemos a descrição do modo de participação.
a) Função das reuniões: as reuniões são situações privilegiadas para denotar o modo de
participação, pois podemos, através da observação, perceber o tipo de enquadramento que sofre o
participante. Nas duas enfermarias onde havia trabalho em equipe, as reuniões aconteciam
diariamente, enquanto nas outras, semanalmente; no hospital-dia, as reuniões eram diárias; na
clínica privada, semanais. Assim, percebemos as seguintes características e diferenças:
• consensual: transmissão das informações; troca e confronto de opiniões; procura de soluções, tomada coletiva e respeito às decisões — não encontramos, de fato, equipe alguma sem coordenação médica. De qualquer forma, na participação consensual, a gestão do médico é menos hierarquizada do que na participação normativa, principalmente nas condições de trabalho do hospital-dia;
• normativa: transmissão de informações; troca de opiniões a partir da avaliação do psiquiatra; hierarquia na tomada de decisões;
• anômica: transmissão dispersa de informes; assentimento da rotina do serviço; hierarquia na tomada de decisões.
b) Liderança: observamos o modo pelo qual eram tomadas as decisões no grupo. A
observação da liderança mostra bem como ocorre a circulação das informações, como se toma as
decisões e qual o peso da hierarquia:
• consensual: visivelmente, a liderança era do psiquiatra, embora o entrevistado, no discurso, admitisse um rodízio na coordenação da equipe. De qualquer forma, pode-se dizer que a liderança era do tipo democrático, baseado fundamentalmente na confiança do grupo. No hospital-dia, apesar da nítida coordenação médica, durante as discussões na reunião, encontramos vários líderes informais, a começar pelo psicólogo;
• normativa: o psiquiatra possui aqui o monopólio da coordenação da equipe. Não há a possibilidade de um rodízio entre os profissionais. A liderança é firmemente ancorada na hierarquia profissional, em que o psiquiatra tem uma predominância evidente;
• anômica: há hierarquia sem liderança. No fundo, o que acontece é um "laisser-aller" — cada um assume a rotina do serviço, dá continuidade ao trabalho, pouco se importando com o serviço do outro.
c) Comunicação social: aqui, demos atenção, digamos assim, à forma da comunicação.
Observamos as assimetrias no processo comunicativo, a ocorrência de "ruídos e dissonâncias":
• consensual: acesso livre à discussão; escuta dos argumentos; criatividade na elaboração das respostas; participação no debate; desacordos sem constrangimentos; expressão dos conflitos; escuta dos argumentos — vale dizer que, devido à liderança consuetudinária do psiquiatra, raramente percebemos conflitos ou desacordos frontais com o líder, exceto em algumas situações bastante circunscritas nas reuniões do hospital-dia;
• normativa: passividade (mutismo) na discussão, com exceção do psiquiatra; participação incipiente no debate; esquiva dos conflito e dos desacordos; bloqueio dos argumentos; conformismo e espera da decisão do líder;
• anômica: ausência de debate; ausência de conflito; passividade e espera ansiosa do final da reunião;
d) Tomada das decisões: observamos, essencialmente, como era obtida a decisão,
entendida como resultado da discussão:
• consensual: as decisões eram tomadas de forma coletiva, embora não devamos subestimar o peso da palavra do líder na argumentação e na influência no resultado da discussão. Como na discussão ocorrem polarizações, a tendência é a formação de pequenos grupos, apresentando opiniões diferentes, até que um ou
outro grupo apresente uma maior influência no resultado do debate. Enfim, a decisão era tomada consensualmente, a partir de um leque de soluções;
• normativa: hierárquica, embora em assuntos incontroversos a tomada de decisão pudesse ser coletiva. Nessa situação, como dificilmente há polêmica, a influência ocorre via a percepção de que a maioria está de acordo com determinada posição. A decisão era tomada por compromisso, seguindo a maioria e a hierarquia;
• anômica: hierárquica. Mesmo em assuntos incontroversos, a expectativa fica toda centrada na tomada de decisão do psiquiatra. Há uma conduta passiva, no sentido de seguir de forma acrítica a decisão hierárquica;
e) Engajamento na discussão: observamos aqui a qualidade da implicação dos
participantes e a forma do engajamento;
• consensual: engajamento público e implicação dos membros do grupo na discussão;
• normativa: engajamento mitigado e pouca implicação; • anômica: ausência de engajamento e implicação.
f) Condutas: este item é um prolongamento do anterior, pois aqui observamos um tipo de
comportamento relacionado ao engajamento e à implicação — uma espécie de descrição da
postura do engajamento no grupo. Seriam diversas variáveis que corporificam o engajamento e a
implicação:
• consensual: assiduidade nas reuniões; exposição de opiniões pessoais; procura do convencimento do colega; sugestão de soluções; gestão dos conflitos e desacordos; respeito da decisão e realizá-las na prática;
• normativa: moderada assiduidade nas reuniões; opiniões de compromisso; procura da maioria e do argumento "médio"; passividade na sugestão de soluções; esquiva do conflito;
• anômica: baixa assiduidade nas reuniões; falta de opiniões e de argumentação; espera da decisão hierárquica; indiferença às soluções apresentadas.
Pode-se facilmente inferir de toda essa discussão que o modo de participação tem uma
relação com a implicação. Quanto mais anômica a participação, provavelmente menor será a
implicação; quanto mais consensual, maior a implicação. Como vimos, a implicação do
entrevistado possui outras explicações, mas é evidente que, numa situação anômica, o estímulo à
participação será menor e, portanto, menor sua implicação. Pode-se deduzir que, em geral, quanto
maior a participação, maior a implicação; contudo, tal relação dependerá do contexto, isto é, do
modo concreto em que ocorre a participação. E, se existe uma relação entre participação e
implicação, provavelmente há também uma relação entre o modo de participação consensual e o
trabalho em equipe — o tipo consensual favorece as atividades em equipe.
Por outro lado, a participação pode ser interpretada em função da instituição. Assim,
analisando a forma predominante de participação e inferindo um modelo ou tipo ideal de
participação adequada a cada instituição, podemos inferir o seguinte:
a) a participação consensual aparece, em tese, nos serviços extra-hospitalares.
Aparentemente, tais serviços são dominados pelo "ideário psi", cujos valores hegemonizam as
interações profissionais:
• valores baseados na interação e no "relacional"; • quebra da verticalidade hierárquica; • apologia do trabalho em grupo; • valorização de todas as competências profissionais; • polivalência das competências; • diminuição do poder médico; • valorização da psicoterapia; • estímulo à participação, à polarização das posições e à busca do consenso; • visão de equipe com rodízio profissional, isto é, sem monopólio médico.
Do ponto de vista dos psiquiatras, o grande embate identitário seria contra os psicólogos.
Os conflitos são visíveis, principalmente quanto às decisões sobre o diagnóstico e o tratamento.
As polarizações no grupo são reflexos desse embate.
b) A participação normativa aparece principalmente na clínica privada. Aqui é o "ideário
profissional" que impera, podendo ser caracterizado da seguinte forma:
• respeito às normas e regras do serviço; • hierarquia; • trabalho em grupo com divisão hierárquica e nítida fronteira entre as profissões; • discriminação das competências profissionais ("cada macaco no seu galho"); • poder médico; • valorização do tratamento medicamentoso; • participação formal: a busca do consenso é realizada através do compromisso e da
procura de posições que expressem o meio-termo; • visão de equipe com coordenação médica e hierarquia funcional.
Nessa situação, o embate identitário acontece entre a enfermagem e os médicos. Os
psicólogos apresentam um relativo conformismo e, geralmente, são aliados da enfermagem. As
discussões mais comuns centram-se na legitimidade das normas e das regras do serviço.
c) A participação anômica é característica do hospital público. O que predomina é a falta
de recursos e, também, uma pressão normativa apenas volátil. Há pouca integração profissional e
administrativa. Apresenta as seguintes atribuições:
• valores difusos, dependendo da iniciativa individual, principalmente do psiquiatra. Normalmente, são suas representações que normatizam predominantemente as atividades no local de trabalho;
• respeito pela hierarquia; • o trabalho em grupo é apenas formal, cada profissional cumprindo sua rotina e
suas tarefas; • poder predominante do médico; • tomada de decisões monopolizada pelo médico. As reuniões são vistas como o
momento de distribuição de tarefas; • tratamento exclusivamente medicamentoso; • baixa qualificação profissional e pouca expressão das competências cognitivas; • participação passiva e burocrática.
Praticamente não existe polarização identitária. Há uma certa resistência por parte da
enfermagem, e na psicologia reina um conformismo acentuado.
Mas, se a implicação, o modo de participação, o engajamento e a situação institucional
podem condicionar o trabalho em equipe, o que dizer das representações dos entrevistados? Ora,
de toda essa discussão, podemos concluir que a opinião dos entrevistados a respeito do trabalho
em equipe teve, na prática, uma influência relativamente marginal. Se, de um lado, o trabalho em
equipe vai depender prioritariamente de uma decisão institucional; do outro, caso não seja uma
norma institucional, tudo vai depender da implicação, do engajamento e do modo de participação
no qual está inserido o psiquiatra. Todavia, embora marginal na prática, as representações dos
entrevistados revelaram importantes questões identitárias. Inclusive, não deixa de ser importante
assinalar que houve uma grande polarização: enquanto 26 entrevistados defenderam uma equipe
sem a obrigatoriedade de uma coordenação médica, havendo, no caso, um rodízio na
coordenação, 21 entrevistados sustentaram a necessidade da mesma — já três entrevistados
assumiram uma posição sui generis: trabalho em equipe sem funções profissionais, em que todas
as diferenciações e especializações seriam superadas pela atividade coletiva.
Em relação aos dois primeiros grupos, foi notória a preocupação, quase uma obsessão no
segundo grupo, em delimitar as fronteiras profissionais. A inquietação do primeiro grupo seria a
seguinte: a equipe pode trabalhar sem coordenação médica, na base do rodízio, contanto que seja
respeitada a competência de cada profissional. Nesse sentido, todo saber especializado deve ter o
seu locus apropriado, desde que isso não traga privilégio algum. A equipe é multiprofissional,
sendo um espaço de igualdade entre as profissões, onde não há propriamente uma hierarquia e
sim uma horizontalidade baseada na função profissional. "Cada macaco no seu galho" — como
fez alusão um entrevistado. Nessa visão, a autonomia profissional é garantida pela independência
de cada função e pelo respeito que se deve a cada saber. A palavra-chave é a complementaridade
de competências, sem misturas, com fronteiras nítidas.
Já do grupo que defende a equipe com coordenação médica, pode-se dizer que sua
inquietação é mais premente, beirando a ansiedade. A coordenação da equipe é valorizada,
apresentando três exigências: responsabilidade, qualificação e saber profissional abrangente. Ora,
todas as três determinações, segundo os entrevistados, são características marcantes do médico.
Pelo que interpretamos, basicamente o argumento seria o seguinte: como o saber médico (no
caso, o saber psiquiátrico) é o mais abrangente, ponto de referência inclusive das outras
profissões de saúde, seria inevitável que o médico tenha uma maior qualificação e assuma uma
maior responsabilidade. Como disse um entrevistado: é natural que o médico seja o líder, pois é
o mais qualificado — a maior qualificação implica um saber mais abrangente do que todos os
outros do campo da saúde.
Noutras entrevistas, a mediação entre o saber e a responsabilidade foi realizada a partir do
reconhecimento profissional. O saber médico é mais valorizado, logo, mais reconhecido. Mas,
nas argumentações, a responsabilidade não adviria necessariamente do maior status da medicina,
e sim da maior cobrança pela qual é submetida. Sendo assim, a medicina não só teria mais status,
como também seria, por causa disso, mais cobrada e exigida, logo, teria mais responsabilidade.
Com efeito, o problema da cobrança foi, várias vezes, ressaltado pelos entrevistados: Quem
responde pelo paciente é o médico, não é a enfermagem, nem outro profissional — argumentou
um entrevistado. Equipe com rodízio é uma beleza, mas qualquer bronca quem vai responder é o
médico — acrescentou ainda outro psiquiatra. De certa maneira, através do argumento da
cobrança, os entrevistados escapam, principalmente num ambiente onde existe uma sensibilidade
igualitária, da percepção de que a maior responsabilidade da medicina viria do seu status ou
privilégio. Enfatizar a relação entre a responsabilidade e a cobrança tem como estratégia
legitimadora um raciocínio meritocrático: a medicina implica um saber mais abrangente e a
necessidade de uma vasta qualificação, logo, uma competência que engloba ou, pelo menos,
condiciona o campo inteiro da saúde. O reconhecimento profissional, assim, viria mais da
competência de seu saber do que propriamente de seu status — o qual seria um subproduto
meritocrático. Saber ►reconhecimento ► competência ► responsabilidade seria um raciocínio
mais legítimo do que privilégio ou status ► reconhecimento ► responsabilidade.
Os entrevistados, ao defenderem a necessidade da coordenação médica, estavam
preocupados em delimitar as competências profissionais. Se, no grupo anterior de entrevistados,
admitiu-se um rodízio na coordenação, embora fosse sempre ressaltado que isso não devia apagar
as fronteiras entre as profissões, neste grupo, a exigência da delimitação está relacionada à
manutenção da coordenação nas mãos dos médicos. Seria como se, sem coordenação médica,
ocorreria inevitavelmente a mistura de competências e, conseqüentemente, uma diminuição
sensível da performance da equipe. Por que tanto medo da mistura e tanta preocupação em
preservar as diferentes competências? Inferimos que há, aqui, um medo difuso e velado de que o
psiquiatra seja "despossuído" de seu saber e competência. O psiquiatra pode-se transformar,
segundo um entrevistado, num "passador" de medicamentos ou, ainda, tornar-se um profissional
igual a qualquer outro da equipe, perdendo sua identidade e especificidade. Acontecendo a
"despossessão", o procedimento médico-psiquiátrico ficaria espalhado pelo coletivo e, assim, a
tríade fundamental da medicina — diagnóstico/prognóstico/tratamento — seria realizada
coletivamente e não mais através da performance individual de um profissional.
O medo da despossessão não é sintoma apenas desse grupo de entrevistados; na verdade,
encontramo-lo entre quase todos os psiquiatras entrevistados, com exceção dos três já assinalados
que defenderam uma equipe sem delimitação de funções profissionais. O medo, entretanto, é
mais pronunciado entre aqueles que exigem a coordenação médica. Mas, afinal, o medo tem
algum fundamento na realidade ou é uma ilusão, quase uma paranóia? Vários entrevistados
afirmaram que o medo baseia-se numa possibilidade que pode tornar-se realidade daqui a algum
tempo. Ora, numa equipe de saúde mental interdisciplinar, por que a enfermagem ou a psicologia
não poderiam emitir diagnósticos? E o tratamento e o prognóstico? Por que tais procedimentos
seriam monopólio dos psiquiatras? Um entrevistado alegou que, em tese, não há interdito técnico
algum para que um psicólogo, por exemplo, possa dar um diagnóstico psiquiátrico. E que seu
medo, caso seja permitido o fim das delimitações das tarefas profissionais, é que ocorra uma
diminuição considerável da valorização profissional do psiquiatra. O psiquiatra seria "rebaixado"
(sic), tendo o mesmo valor de um enfermeiro ou de um psicólogo. Mesmo a parte clínica já é
realizada por um clínico... O que iria sobrar pra gente? — disse o entrevistado. Iria sobrar
apenas a administração de medicamentos, pois até a psicoterapia teria a concorrência dos
psicólogos.
Na realidade, o nó da questão seria justamente esta: a possibilidade técnica ou não da
enfermagem ou da psicologia, por exemplo, darem conta de alguns, quando não da totalidade dos
procedimentos médicos. Com exceção de quatro entrevistados (o logo acima descrito e os outros
três já citados), todos os entrevistados colocaram que as tarefas realizadas por um psiquiatra
exigiam justamente a qualificação e a especialização de um... psiquiatra. Não haveria a
necessidade, para o bom funcionamento da equipe, de uma mistura de competências, já que
tecnicamente, para a realização das tarefas, precisa-se de vários profissionais especializados, com
suas respectivas qualificações. O que existiria seria uma complementaridade técnica entre as
diversas profissões — uma do tipo igualitária, sustentada pelos defensores do rodízio, e uma
outra do tipo "complementaridade com predominante", em que a predominância estaria com o
psiquiatra, visto possuir a maior qualificação, exigindo-se, por isso, a coordenação médica. Neste
último caso, pode-se perceber que a defesa da coordenação médica seria a garantia da
permanência do status profissional do psiquiatra, justamente porque sua qualificação técnica é
imprescindível ao trabalho da equipe — sem médico, não tem trabalho. Tire qualquer outro e o
trabalho ainda pode continuar... (entrevistado). O status adviria da exigência técnica e não de um
privilégio ou do poder. É o bom funcionamento da equipe que não pode prescindir do papel do
médico. Com tal argumento, escapa-se do constrangimento em defender o status da medicina via
privilégio ou poder. Não haveria, como disse um entrevistado, um problema ético. O argumento
técnico torna-se um argumento meritocrático e, como tal, basta a si mesmo, não infringindo
nenhuma sensibilidade igualitária. Pois seria muito mais eficiente defender a coordenação médica
através de um argumento baseado no mérito do que utilizando outras fontes de legitimação — no
geral, fundar o status ou o reconhecimento profissional via um discurso baseado no privilégio ou
no poder compromete a legitimidade da profissão numa sociedade de base igualitária.
Fechando, enfim, a discussão, podemos inferir que as representações e as práticas
profissionais são dependentes da força dos sistemas normativos da instituição. A autonomia do
profissional vai depender do efeito que tal coerção produz na sua prática. A pressão normativa,
caso seja inibidora da autonomia, afasta a prática da representação, podendo até implicar um
antagonismo. Geralmente, a obediência institucional ou a conformidade ao grupo prescrevem e
orientam as práticas através das normas do serviço. Quando há efetivamente uma maior
autonomia, representações e práticas formam "sistema", possuindo uma circularidade sem
contradições.
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