Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 2851
O ENSINO PROFISSIONAL EM DEBATE NO BRASIL OITOCENTISTA1
Carla Simone Chamon2
Na segunda metade do século XIX, especialmente a partir da década de 1870, a
preocupação com a criação de escolas de ensino profissional para as camadas populares
começava a crescer no Brasil. No Brasil, a mão de obra escrava estava cada vez mais sendo
substituída pela livre, que se tornava, paulatinamente, em padrão no mercado de trabalho
brasileiro. Junto a isso, o capitalismo industrial avançava na região Centro-Sul, povoando o
cenário das capitais com fábricas, e tornando disponível novas técnicas e tecnologias. Assim
como nos países europeus e nos Estados Unidos, essa industrialização, que entre nós foi
combinada com a abolição da escravidão, alimentou o debate em torno da necessidade de
qualificar a mão de obra, criando uma nova cultura do trabalho, mais racional, científica e
moderna, condizente com os novos tempos que demandavam um trabalhador capaz de lidar
com novas técnicas, ferramentas, máquinas, e de se inserir em um novo ambiente de
trabalho.
Junto a essas transformações, começava a aparecer no País, de maneira esparsa e
pouco sistemática, discursos e projetos elaborados pelas elites intelectuais e políticas,
apontado a necessidade de se adotar no Brasil um ensino mais sintonizado com as exigências
do mundo moderno que despontava por aqui, cujo traço mais evidente era o aumento da
produtividade, alavancada pelo domínio científico e tecnológico.
É nesse contexto que, em 1887, na cidade do Rio de Janeiro, foi publicado o livro “O
ensino técnico no Brasil”, ao que tudo indica a primeira obra brasileira dedicada inteiramente
a essa temática. Seu autor, Tarquínio de Souza Filho, nasceu em Recife, em 1859 e morreu na
cidade do Rio de Janeiro, em 19083. Era oriundo de segmentos médios da sociedade
brasileira que, naquele momento, não dispondo de terras e escravos, conseguiu, por meio das
relações familiares e da escolarização superior, distinção e projeção no cenário político
nacional. Era filho do doutor Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, deputado geral pela
1 Trabalho financiado pelo CNPq. 2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. Professora do Centro de Educação Profissional e
Tecnológica do CEFET-MG. E-Mail: <[email protected]>. 3 A trajetória de Tarquínio de Souza Filho foi elaborada a partir dos dados encontrados sobre ele no Dicionário
Sacramento Blake, no livro de Clóvis Bevilácqua sobre a história da Faculdade de Recife e nos periódicos da cidade do Recife e do Rio de Janeiro.
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província do Rio Grande do Norte e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do
Recife (Gazeta de Notícias, 30 jan. 1908, p. 2). Seu pai, juntamente com seus tios, Braz
Florentino Henrique de Souza e José Soriano de Souza, que também lecionaram na
Faculdade de Recife, eram figuras de relevo do Partido Conservador, tendo marcado a cultura
pernambucana e brasileira do Segundo Reinado como pensadores católicos tradicionalistas
(BLAKE, 1883, 1899 e 1902; BEVILÁCQUA, 1977; LARA, 1988).
Tarquínio cresceu num ambiente familiar de princípios católicos arraigados e
fortemente politizado e intelectualizado. Ali, ao lado da discussão em torno de temas como
revelação divina, tradição, razão, liberdade, autoridade, vivenciou também uma forte
preocupação com a realidade social brasileira, traduzidas na crítica à concentração da terra e
à escravidão, na defesa do trabalho livre, do ensino profissional e da utilidade da legislação
civil (BEVILÁCQUA, 1977, p. 320). Questões que acompanharão Tarquínio em sua trajetória
intelectual e em sua militância no Partido Conservador.
Em 1876, seguindo os passos de seu pai e tios, matriculou-se na Faculdade de Direito
do Recife, tendo se formado em 1880. Trabalhou como promotor público no sertão de
Alagoas (Gazeta de Notícias, 30 jan. 1908, p. 2) e em 1886 estabeleceu residência na cidade
do Rio de Janeiro onde viveu com sua mulher e seus cinco filhos até a sua morte em 1908. Na
cidade do Rio de Janeiro trabalhou como advogado, inspetor escolar, lente catedrático de
Direito Público e Constitucional da Escola Naval (a partir de 1887), e da Faculdade de
Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro (a partir de 1893) e professor do Liceu de Artes
e Ofícios do Rio de Janeiro, lecionando o curso público de Instrução Cívica e Direto Usual, a
partir de 1887 (Gazeta de Notícias, RJ, 23 nov. 1887, p. 1; Novidades, RJ, 23 nov. 1887, p. 1).
Na imprensa, Tarquínio teve atuação intensa, batalhando sempre pelo Partido
Conservador. Foi redator, no início da década de 1880, do jornal O Tempo, e colaborou nos
jornais da Corte O Cruzeiro e Brasil, ambos partidários dos Conservadores (A Vanguarda,
30 mar. 1886, p. 2). Tarquínio também integrou várias sociedades científicas e beneficentes4
engrossando o movimento associativo que se formava para defesa dos mais variados
interesses e opiniões e que se multiplicava no Brasil na segunda metade do século XIX. Como
membro da Sociedade Central de Imigração5, na qual já ingressou como membro-diretor em
4 Foi membro efetivo do Instituto dos Advogados do Brasil (Diário de Notícias, RJ, 25 mai. 1895, p.1), da Sociedade Central de Imigração do Rio de Janeiro, (1887), da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (Gazeta da Tarde, RJ, 10 out. 1887, p. 1), do Colégio dos Advogados de Lima, da Sociedade de Legislação Comparada de Paris (Gazeta de Notícias, Rio, 30 jan. 1908, p.2).
5 A Sociedade Central de Imigração era uma associação beneficente, sem fins lucrativos, criada em 1883, na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de promover, por meios diretos e indiretos, o aumento da imigração europeia para o Brasil. Pelo seu Estatuto, em seu artigo 2º, ela deveria se encarregar de fundar um escritório de
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fevereiro de 1887, que Tarquínio de Souza Filho publicou “O ensino técnico no Brasil”. Nessa
associação, entre os anos de 1887 e 1891, ele conviveu de maneira mais próxima com
Henrique Beaurepaire Rohan, Alfredo d’Escragnolle Taunay, André Rebouças e Domingos
Jaguaribe Filho, todos monarquista (liberais ou conservadores), formando com eles, segundo
Irina Vassilieff (1907, p. 148), a principal liderança dessa associação e seu núcleo
modernizador, preocupado em reformar a sociedade brasileira e buscar soluções para o
problema da mão de obra no País. Perseguindo esses objetivos, a Sociedade foi importante
espaço de discussão sobre a questão do trabalho livre, promovendo um debate abrangente
sobre a estrutura econômica, social e política do País e publicando livros de divulgação dos
posicionamentos da instituição, como foi o caso do livro de Tarquínio, quarto livro de
propaganda da Sociedade6.
Para Tarquínio de Souza Filho, o Brasil se modernizava economicamente e demandava
um novo tipo de ensino: “Vivendo no século da indústria, no regime da liberdade, é
necessário harmonizarmos o nosso sistema de educação e ensino com as condições de nossa
época” (1887, p. 47). Para o autor, essa harmonização demandava não só a instrução em
massa das novas gerações, a disseminação de conhecimentos por todas as camadas sociais,
como já defendiam os herdeiros dos ideais iluministas. Ela demandava um tipo novo de
saber: o saber útil, baseada na ciência: “a todos os espíritos quer o nosso século esclarecer,
instruir, moralizar; popularizando a ciência, divulgando os conhecimentos úteis, propagando
o ensino em todos os seus graus (...)” (SOUZA FILHO, 1887, p. 6). Por isso, sua preocupação
recaía no ensino técnico profissional que, segundo ele, era aquele que preparava “para as
carreiras laboriosas, para a vida do trabalho, para o comércio, a indústria e a agricultura” e
que seria aproveitado pela maior parte da população (Idem, p. 44).
Mas como convencer a sociedade como a brasileira da importância e da urgência de se
estabelecer no Brasil escolas de ensino técnico profissional? Como convencer de que esse era
um elemento importante para modernizar a sociedade brasileira?
A obra “O ensino técnico no Brasil”, além de outras que a Sociedade mandou publicar,
pode ser entendida como parte de uma estratégia de propaganda e convencimento interno
atendimento ao imigrante, servindo-lhe de suporte e fiscalizando o seu tratamento no Brasil. Além disso, a Sociedade deveria influir para que fossem decretadas as reformas necessárias para que o estrangeiro encontrasse “uma verdadeira Pátria no Brasil” e deveria criar um órgão de propaganda na Corte, “para formar opinião no País e exercer conveniente influência sobre a marcha das coisas públicas em relação à imigração europeia” (VASSILIEFF, 1987)
6 Além do livro de Tarquínio de Souza Filho, os demais livros de propaganda da Sociedade Central de Imigração foram: “Casamento Civil” (1886) e “A nacionalização ou a grande naturalização e naturalização tácita” (1886) ambos de Alfredo d’Escragnolle Taunay e “Pequena propriedade e imigração europeia” (1887) de Luiz Couty. Todos publicados pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro.
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quanto às necessidades de reformas modernizadoras da sociedade brasileira. Com 243
páginas, ela trata da reforma do ensino secundário, da necessidade de organizar o ensino
técnico no Brasil, das iniciativas no País e no estrangeiro em relação ao ensino técnico e do
papel do Estado e da iniciativa privada na sua organização. Comungando dos esforços da
Sociedade Central de Imigração de colocar “em discussão todos os problemas nacionais cuja
solução deve[ria] conduzir às expansões do novo Brasil, do Brasil americano”. (“A
Imigração”, Boletim nº 7, nov. 1884, p. 1), nela, Tarquínio de Souza Filho expunha a carência
de escolas de ensino técnico profissional no País e defendia a necessidade de sua implantação
como condição para enobrecer o trabalho, alcançar o progresso, a democracia e o
desenvolvimento econômico brasileiro.
O fio a conduzir a narrativa de Tarquínio de Souza Filho na análise e defesa do ensino
técnico profissional é a sua percepção do tempo como uma categoria móvel, em constante
avanço e carregado de novidades, qualitativamente diferente do anterior. Percepção que
aparece na obra por meio da associação entre sociedade moderna e termos como marcha
progressiva, marcha triunfal, difusão, progresso, evolução, agitação maravilhosa, renovação,
revolução, aperfeiçoamento, novos processos e outros correlatos. Além disso, o autor
trabalha sempre com o par de opostos “ontem e hoje” como forma de caracterizar a sucessão
do tempo como transformação em direção a algo novo: “outrora cuidava-se do ensino das
classes elevadas com exclusão das outras; hoje, porém, a grande preocupação da época é a
instrução das classes populares” (Idem, p. 8) 7. É alicerçado nessa noção de tempo móvel, em
avanço permanente, que Tarquínio defendia a difusão do ensino técnico como uma das
“urgências da atualidade”, uma das necessidades da sociedade moderna. Essa sociedade,
essencialmente marcada, segundo ele, por “tendências democráticas” e por uma “revolução
econômica” de resultados assombrosos e visíveis (SOUZA FILHO, 1887, p. 16), demandaria
um ensino amplamente difundido entre a população, mas também um ensino
qualitativamente diferente, organizado para atender o desenvolvimento econômico e a
democracia.
Na obra em questão, o século XIX é apreendido pelo autor como um tempo de
profundas transformações técnicas e econômicas, as quais exigiriam a difusão e a aplicação
dos conhecimentos científicos:
7 Segundo Kosseleck (2006), trata-se aqui de algo mais do que a mera diferenciação entre acontecimentos passados e presentes, entre o antes e o depois. Trata-se de uma qualificação do tempo como novidade, como algo “que jamais existiu”.
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a ciência alarga seu domínio, faz todos os dias novas conquistas, avassala a matéria pelo vapor e pela eletricidade, pelos agentes físicos e químicos de toda a espécie, põe à disposição do homem novos e poderosos recursos, suprime as distâncias e facilita os meios de comunicação e transporte, tornando-se por inúmeras aplicações um auxiliar inseparável da indústria. O universo tornou-se o grande mercado internacional e a força expansiva da atividade humana parece ter centuplicado (SOUZA FILHO, 1887, p. 16).
Daí a necessidade da criação de escolas técnicas que preparassem os operários para que
eles pudessem ter, além do aprendizado regular, “conhecimento das leis universais que
regem a natureza e presidem as maravilhosas transformações da matéria” (Idem, p. 187).
Logo nas suas primeiras páginas, nosso autor identificava a educação como o grande
problema das sociedades moderna, cujo ideal, em matéria de ensino, era a dispersão dos
conhecimentos por todas as camadas sociais, sendo a instrução do povo uma “questão capital
da atualidade” (Idem, p. 12).
Nessa matéria, o pouco que o Brasil tinha feito estava em desacordo com os interesses e
o desenvolvimento do mundo moderno. Suas críticas se direcionavam principalmente às
escolas secundárias, cujo ensino se voltava para a preparação das novas gerações para as
funções públicas, deixando no abandono a preparação para o comércio, a agricultura e a
indústria:
Há em nossa organização escolar um forte desequilíbrio. Todo o ensino das nossas escolas propõe-se exclusivamente a preparar as novas gerações para as funções públicas, deixando em esquecimento as funções privadas; destina-se àqueles que têm de exercer funções úteis e necessárias sem dúvida, porém menos produtivas economicamente falando. O ensino, como se acha organizado, pode servir, apesar de seus defeitos, para preparar o político, o funcionário público, o advogado, o militar, o médico, mas deixa em inteiro abandono os que têm que exercer as funções de comerciante, de agricultor e industrial. É contra esta tendência, que constitui uma clamorosa desigualdade, que reclamamos (SOUZA FILHO, 1887, p. 27).
Esse direcionamento dos estudos secundários, fazendo aumentar “as vítimas da
burocracia, vampiro devorador na frase enérgica de Humboldt”, matava talentos e aptidões e
afastava a mocidade das carreiras industriais (Idem p. 34). Era preciso, por isso, reformar o
ensino brasileiro.
Essas críticas começavam a ser recorrentes no Brasil a partir das últimas décadas do
século XIX8. No final da década de 1870, o abolicionista Joaquim Nabuco diagnosticava: “Do
que vós precisais é principalmente de educação técnica (...) os sacrifícios que temos feito para
8 Sobre essa questão, ver Chamon 2014.
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formar bacharéis e doutores devem agora cessar um pouco enquanto formamos artistas de
todos os ofícios” (apud CUNHA, 2000, p. 169).
A pretensão quase “exclusiva” da população aos empregos públicos, era uma das
críticas que as elites reformistas do País – conservadores ou liberais, de dentro ou de fora do
status quo imperial – lançavam contra o ensino brasileiro (ALONSO, 2002). Na perspectiva
de parte das elites brasileiras, era preciso combater essa tendência e apagar a identificação do
trabalho manual e mecânico com a escravidão, criando uma moral do trabalho. O que estava
em jogo era a valorização do trabalho produtivo como fator de ordem pública e de progresso
material, capaz de tornar o homem em trabalhador “útil a si e à pátria”, expressão tantas
vezes repetidas na fala daqueles que defendiam as escolas de ensino profissional. Em sintonia
com essa perspectiva, Tarquínio de Souza Filho (1887, p. 51) apontava para a importância do
ensino técnico, que contribuiria “para o nosso engrandecimento, elevando as classes
laboriosas, as carreiras profissionais, tão desprestigiadas entre nós”.
Assim, para combater o “parasitismo burocrático” e atender aos novos interesses
criados pela civilização moderna, Tarquínio de Souza Filho afirmava que a principal
necessidade do País em matéria de ensino era “menos bacharéis e mais industriais, menos
ensino clássico e literário e mais ensino técnico e científico” (SOUZA FILHO, 1887, p. 72).
Propunha, então, reformar o ensino secundário, instituindo paralelamente ao ensino
clássico-literário – segundo ele de caráter especulativo – o ensino científico-prático, baseado
no conhecimento das ciências, no estudo das línguas vivias e da literatura moderna. Para ele,
a educação secundária deveria se estender a todas as classes sociais por meio de um
“dualismo fecundo”: o ensino clássico se destinaria àqueles que se destinassem às profissões
liberais, ao passo que o ensino científico prepararia aqueles que se dedicassem à
“generalidade das profissões, à vida industrial”, atendendo assim aos diferentes interesses de
classe e às “diferentes tendências dos espíritos” (SOUZA FILHO, p. 32).
Além disso, Tarquínio Souza Filho propunha a criação urgente escolas técnicas
comerciais, agrícolas e industriais no País, questão com a qual se ocupa na quase totalidade
da obra.
São grandes as lacunas do nosso sistema de ensino público, sensíveis os seus defeitos, nenhum, porém, nos parece maior nem mais notável do que a falta, quase absoluta, de escolas técnicas ou profissionais, que se nota em nosso país. O que existe entre nós nesse assunto é pouco, é insignificante, comparado com as necessidades de nossa população e as urgências da atualidade. (SOUZA FILHO, 1887, p. 42)
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A falta de capacidade profissional, a ausência de aptidões e vocações para as carreiras do trabalho tem sido um dos fatores principais do nosso pouco adiantamento industrial e artístico. As escolas e institutos técnicos, as universidades do trabalho (...) atestarão no futuro a grandeza e prosperidade do Brasil (Idem, p. 176).
Cabe ressaltar que a preocupação do autor não era com o ensino profissional ofertado
nas Faculdades Jurídicas e Médicas ou na Escola Politécnica. Ao falar em ensino técnico
profissional, ele se referia ao ensino que prepararia “para as carreiras laboriosas, para a vida
do trabalho, para o comércio, a indústria e a agricultura” (SOUZA FILHO, 1887, p. 44).
Voltado para a aplicação da ciência, onde ao lado da habilidade técnica, e do domínio no
manejo dos instrumentos de trabalho, se daria o conhecimento das leis científicas que regiam
a natureza e governavam as transformações da matéria (Idem, p. 187), ele seria aproveitado
pela maior parte da população e promoveria o adiantamento industrial e o progresso
econômico. A finalidade do ensino técnico seria, assim, a preparação moral, científica e
profissional “das classes industriais que existem e que tendem a formar-se pela abolição da
escravidão e pela corrente de imigração” (Idem, p. 51)
O autor lamentava que o Brasil ainda estivesse atravessando uma fase rudimentar no
desenvolvimento desse tipo de ensino. As balizas dessa percepção eram dadas pelo seu
conhecimento de outros países, nos quais buscava elementos para projetar o progresso do
Brasil. Como forma de convencer seu leitor, o autor apresentava “o grande interesse que nos
outros países civilizados se tem ligado a este assunto” (Souza Filho, 1887, p. 107),
discorrendo longamente sobre as experiências de ensino técnico profissional da França,
Inglaterra, Alemanha, Áustria, Suíssa, Bélgica, Holanda, Itália, Portugal, Espanha, Rússia,
Dinamarca, Argentina, Chile, México e Estados Unidos. A constatação do adiantamento das
nações modernas em matéria de ensino profissional servia de modelo e parâmetro para
medir o nosso atraso, mas também, e principalmente, para mirar o nosso futuro:
A comparação que estabelecemos entre a nossa instrução profissional e a dos outros países cultos faz-nos estremecer de vergonha. Não pode ser mais triste o paralelo (...). Não desanimemos, porém, e em face destes autorizados exemplos, destas sábias lições procuremos estabelecer o ensino técnico (...)” (SOUZA FILHO, 1887, p. 175, 176).
Entretanto, apesar de ser uma percepção compartilhada pelas elites intelectuais e
políticas, essa não era uma tarefa fácil de se realizar, seja porque não havia “uma” proposta
de reforma – a de Tarquínio era uma entre tantas – seja pela dificuldade de se definir a quem
caberia redirecionar (e financiar) o ensino. Ou, como diria nosso autor, “ não basta formular
um programa, é necessário achar meios de realizá-lo” (SOUZA FILHO, 1887, p. 228)
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Nessa seara, Tarquínio optou pelo pragmatismo: face a debilidade da iniciativa privada,
setor a quem, segundo ele, deveria caber a condução e organização do ensino, era necessário
apelar para a ação do Estado. Sua conclusão era a de que, lamentavelmente, no caso do Brasil
de fins dos Oitocentos, não era possível contar apenas com as ações capitaneadas pela
sociedade civil para renovar e promover a educação nacional. Reforma e Estado deveriam
caminhar juntos, com pena de nada ser realizado.
É preciso que se diga que, em diversos momentos da obra, Tarquínio queixou-se da
fraqueza da iniciativa individual, “da grande extensão que entre nós tem as atribuições do
Estado” e da “tendência para a abdicação da autonomia individual nas mãos do governo, de
quem tudo se espera e a quem tudo se pede” (Idem p. 50). Mas no caso da educação era
preciso abrir exceção. Em tese, o autor se declarava adversário “de toda interferência do
Estado naquela ordem de funções que podem, sem prejuízo, ser exercidas pelo indivíduo ou
pela associação”, sendo o ensino uma dessas funções:
Em tese, o direito do Estado em matéria de educação não vai além da manutenção da ordem, da garantia da moral social e do respeito pelas prescrições da higiene (...). Somos partidários convencidos da emancipação do ensino da tutela do governo, queremos a mais ampla descentralização intelectual, abraçamos com entusiasmo o grande e fecundo princípio da liberdade de ensino (...) (Idem, p. 229)
Para o autor de “O ensino técnico no Brasil”, não restavam dúvidas de que as ações,
individuais e coletivas, oriundas da sociedade, eram o caminho natural para a expansão do
ensino: “Por que deixaremos enervar as nossas forças pela inatividade, esperando tudo da
ação do Estado?” (p. 236). Contudo, e apesar de reclamar os esforços de todos “em assunto de
tanto alcance social”, Tarquínio admitia a impossível de esperar até que se concretizasse
entre nós a “ação fecundante” da inciativa individual e das associações particulares. Se “nas
regiões da teoria pura, isto se afigura indiscutível”, na prática esse princípio precisava se
adaptar ao meio social ao qual era aplicado. Dadas as condições da sociedade brasileira,
notadamente a debilidade da iniciativa privada, a ausência do Estado “seria nossa ruína
intelectual e moral” (p. 229). Mais uma vez, Tarquínio trabalha com a urgência do tempo,
fator a impedir a espera do amadurecimento da iniciativa individual e reclamar a ação
“enérgica” do Estado.
A argumentação que nosso autor desenvolve ao longo de toda a obra é baseada na
percepção da existência de uma correlação direta entre o estado do ensino e o estado da
sociedade: “são fenômenos que se refletem”. Não seria possível, pois, reformar a sociedade
sem reformar o ensino. Apoiado em economistas bem conhecidos do público letrado
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brasileiro como o francês Emile de Levasseur9, e o belga Emile de Laveleye10 e em outros com
menor circulação por aqui11, Tarquinio afirmava que “a falta de capacidade profissional, a
ausência de aptidões e vocações para as carreiras do trabalho” seria “um dos fatores
principais do nosso pouco adiantamento industrial e artístico” (Souza Filho, 1887, p. 176).
Baseado nas reflexões desses autores, ele insistia que “para entrar no largo caminho do
progresso” era necessário enobrecer o trabalho, por meio da disseminação do ensino técnico
e assim aumentar a produtividade do trabalho.
A vulgarização das leis gerais que presidem a transformação da matéria, o aniquilamento da rotina, o conhecimento das leis científicas e econômicas que regem o mundo do industrial, a prática de novos processos usados pelos povos mais adiantados, todas estas vantagens que concorrem para o aumento progressivo do valor econômico do trabalho, para o incremento da produção, serão outras tantas consequências do ensino profissional (Idem, p. 60).
Além disso, o ensino técnico, ao elevar o valor econômico do trabalho, corrigiria
o preconceito que tem contribuído para fazer da geração que se levanta, em vez de homens aguerridos e preparados para as grandes conquistas da indústria moderna, uma legião de pretendentes que aspira desde o mais elevado cargo de administração até a mais insignificante função burocrática (SOUZA FILHO, 1887, p. 52)
É importante que se diga que esses argumentos que encontramos na obra “O ensino
técnico no Brasil”, estavam presentes no vocabulário político de alguns intelectuais e agentes
do Estado que creditavam nosso atraso econômico à ausência de mão de obra qualificada,
defendendo que a organização do ensino era fundamental para o desenvolvimento industrial.
Nesse momento, a crítica ao bacharelismo estéril e a defesa do ensino técnico como fator de
desenvolvimento econômico começava a disputar espaço com os argumentos mais
frequentes, nos discursos do século XIX, sobre a necessidade de uma educação profissional
para os meninos pobres e desvalidos como forma de os habilitarem a viver de forma útil e
9 Pierre Emile Levasseur (1828-1911), francês, economista, geógrafo e historiador. Publicou várias obras e angariou distinção em muitos congressos de estatística e de geografia, tanto na Europa quanto na América. (VAPEREAU, 1893). O livro de Levasseur citado por Tarquínio em sua obra foi Precis d’économie politique, publicado em Paris, em 1883.
10 Emile Louis Victor de Laveleye, (1822-1892), um dos mais célebres economiscas belga do século XIX, colaborador da Revue de Deux Mondes e de várias outras, de grande circulação no Brasil na segunda metade do século XIX. Os livros de Laveleye citado por Tarquínio foram: Eléments d’économie politique e L’instruction du people, publicado em Paris, em 1872. Ambos bastante conhecidos e citados no Brasil (CALLIPO, 2009). Ver também http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k299202d/f942.image.r=levasseur.langPT.
11 Como Edmond Villey, jurista francês nascido em 1848 e professor de Economia Política na Faculdade de Caen.
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honrada, possuindo qualificação que os permitissem escapar da miséria por meio do
trabalho12.
Mesmo quando a ênfase se colocava no ensino profissional como estratégia
assistencialista e como fator de moralização das camadas populares, a importância da
educação e mais especificamente da educação técnica (agrícola, industrial e comercial) como
condição de superação do atraso e de desenvolvimento econômico do País não deixava de ser
sublinhada, como fizeram José Liberato Barroso (1867), Félix Ferreira (1876), João Alfredo
Correa de Oliveira, Antônio de Almeida Oliveira (1873), José Ricardo Pires de Almeida
(1886) e Rui Barbosa (1882). Assim como Tarquínio de Souza Filho, eles eram leitores do
economista Laveleye, e em seus discursos a menção ao ensino profissional se fazia
acompanhar de uma percepção das “exigências da atualidade” como dizia Rui Barbosa, e
também pelos termos desenvolvimento, valorização do trabalho, aumento da riqueza,
progresso material, sociedade industrial.
Há que se notar que a crítica à visão tradicional de desprezo pelas profissões mecânicas,
aviltadas pela escravidão, e a aposta na valorização do trabalho como condição de
desenvolvimento material do País vinha acompanhada em Tarquínio de Souza Filho da idéia
de qualificação que produz o mérito:
O merecimento pessoal, o valor real do operário, do trabalhador, do industrial (...) deriva em grande parte das luzes que dispuser a sua inteligência e só uma educação científica pode esclarecê-lo, dando-lhe até a aptidão e habilidade necessárias para melhorar os processos, métodos e sistemas de trabalho, concorrendo assim para o desenvolvimento da produção e elevação dos salários (1887, p. 186)
A ideia de um “merecimento pessoal”, derivado da maior capacidade do trabalhador se
relacionava aqui à possibilidade de uma melhoria nas condições materiais do trabalhador
(elevação dos salários) e nos revela uma tentativa de ruptura com a mentalidade aristocrática
e escravista.
Esse pensamento estava bem sintonizado com os princípios defendidos pela Sociedade
Central de Imigração, que publicou o livro em 1887. Essa associação, combatendo o regime
de privilégios, tinha na defesa do trabalho livre, das reformas liberais e na democracia rural o
centro de sua atuação (VASSILIEFF, 1987). A democracia rural, termo desenvolvido por
André Rebouças, com quem Tarquínio de Souza conviveu à frente da Central de Imigração,
significava a defesa da pequena propriedade e da divisão dos latifúndios em pequenos lotes
12 Sobre o ensino profissional como estratégia de moralização e assistência para os “desvalidos da sorte” no século XIX ver Fonseca (1961) e Cunha (2000).
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de terra a serem distribuídos, por meio da venda, aos imigrantes, aos colonos e ao
trabalhador nacional.
Nos marcos do pensamento liberal, a ideia da democracia rural estava assentada na
defesa da propriedade (só que pequena) e não na sua supressão, muito menos na sua
expropriação. Era necessário combater e diminuir as desigualdades socialmente produzidas,
mas colocando em evidência o mérito, o esforço e o trabalho. Nesse sentido, é possível dizer
que a crença de Tarquínio de Souza Filho, como de resto da Sociedade Central de Imigração,
não era a da produção de qualquer igualdade econômica (bastante criticada por eles e
denominada de nivelamento), mas de uma desigualdade baseada no mérito e na qualificação,
e por isso justa, tarefa para a qual a educação, particularmente o ensino profissional, seria
fundamental:
Nesta elevação intelectual e moral de todas as classes, consiste a verdadeira igualdade, a igualdade pela instrução. Não compreendemos a igualdade como querem os niveladores, os comunistas e coletivistas. O verdadeiro espírito de igualdade não é o que pretende abaixar os que estão em cima, é o que procura elevar, por meios decentes, até ao nível superior, os que estão em baixo. Par isso é preciso por à disposição do povo as vantagens da vida intelectual e moral, sob uma forma adequada e nenhuma nos parece mais conveniente do que o ensino técnico ou profissional (SOUZA FILHO, 1887, p. 56).
Havia que combater a desigualdade artificial e injusta produzida pelos privilégios, mas
era também imperativo organizar a sociedade a partir dos talentos, dos méritos e da
capacidade de cada um.
O que estava em jogo aqui era uma mudança fundamental de mentalidade: de uma
sociedade patrimonial, na qual a herança e o patrimônio acumulado (no caso brasileiro leia-
se terras e escravos) por gerações e gerações garantia o bem estar de quem a possuísse, para
uma sociedade do trabalho, na qual o mérito, a qualificação por meio da educação escolar e a
capacidade cumpririam esse papel13. De uma sociedade estruturada pela hierarquia dos
patrimônios para uma sociedade fundada pela hierarquia do mérito e do trabalho: “Ao antigo
predomínio das grandes propriedades, à preeminência da riqueza territorial, vai sucedendo o
regime de pequena propriedade e a supremacia da riqueza móvel. (...) o bem estar intelectual
e econômico generalizam-se” (SOUZA FILHO, 1887, p. 8).
Assim, na aliança tecida entre o ensino profissional e as “urgências da atualidade”,
ganhavam centralidade o trabalho, a qualificação e a capacidade/mérito do trabalhador, nos
13 Sobre essa questão ver Piketty 2014.
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levando a compreender o projeto de ensino técnico de Tarquínio de Souza Filho como um
projeto de modernização do Brasil.
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