UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS
LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS LITERÁRIOS NEOLATINOS
O DUPLO E A AUTOFICÇÃO
EM LA VERDAD DE AGAMENÓN
CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA
Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.
RIO DE JANEIRO
2011
CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA
O DUPLO E A AUTOFICÇÃO
EM LA VERDAD DE AGAMENÓN
Volume 1.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Mestre (Estudos Literários
Neolatinos, opção: Literaturas Hispânicas)
Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de
Arcuri.
RIO DE JANEIRO
2011
Lima, Carla Vidal Oliveira de.
O Duplo e a Autoficção em La Verdad de Agamenón. / Lima, Carla Vidal
Oliveira -- Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2011.
09, 112f.: 1il pb;
Orientador: Profa. Dra. Silvia Inês Cárcamo de Arcuri.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2011.
1. Javier Cercas 2. Literatura Fantástica 3. O duplo
I. Carcamo, Silvia Ines (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação, FL. III. La Verdad de Agamenón
CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA
O DUPLO E A AUTOFICÇÃO EM LA VERDAD DE AGAMENÓN
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literaturas
Hispânicas).
Aprovada em:
__________________________________________
Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ)
__________________________________________
Prof. Dr. Julio Aldiger Dalloz
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ)
__________________________________________
Profa. Dra. Ana Isabel Guimarães Borges
Universidade Federal Fluminense (FL/UFF)
__________________________________________
Profa. Dra. Eline Marques Rezende - Suplente
Universidade Federal Fluminense (FL/UFF)
__________________________________________
Profa. Dra. Lívia Maria de Freitas Reis - Suplente
Universidade Federal Fluminense (FL/UFRJ)
RIO DE JANEIRO
2011
A todo meu povo que luta, acredita e persegue a vitória.
Muito obrigada àqueles que são parte da minha
caminhada: ao passado, pelo esforço na construção de
uma base sólida; ao presente, pelo apoio e compreensão
nos momentos de grande dificuldade; ao futuro, por ser o
combustível da chama e do desejo de ser e fazer sempre
algo melhor. Essa vitória é dedicada a todos nós!
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela permissão de alcançar esse momento. Pai, obrigada por toda a dificuldade
porque ela serve para buscar e melhorar a forma de caminhar.
Ao meus antepassados, que com seus pés descalços abriram as primeiras trilhas.
Aos espíritos de luz que trabalham e ajudam a iluminar os trechos sombrios da estrada.
Aos meus avós, que como agricultor, vendedor de livros, lavadeiras e donas de casa
valorizaram o estudo.
Aos meus pais e minha irmã, por me amar, ensinar, orientar e acreditar em todos os
momentos.
Ao meu marido, que aguentou e sobreviveu à minha impaciência e insônia. Muito obrigada
pela compreensão e pelo apoio silencioso.
Àqueles me ajudaram a aparar algumas arestas. Minha prima Elaine, que em muitos finais de
semana e muitas madrugadas leu e opinou sobre a pesquisa. Muito obrigada, minha revisora
de plantão.
Ao meu tio Esequiel por aquela caneta.
À minha querida professora, Silvia Cárcamo, pela valiosa orientação, pela paciência e sua
grande generosidade.
Muito obrigada a todos!
“ O verdadeiro conhecimento, como qualquer outra coisa
de valor, não é para ser obtido facilmente. Deve-se
trabalhar por ele, estudar por ele, e mais que tudo, rezar
por ele.”
Thomas Arnol
LIMA, Carla Vidal Oliveira de. O Duplo e a Autoficção em La Verdad de Agamenón. Rio
de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
Indagamos sobre o sentido da conjunção de literatura fantástica e da proposta autoficcional
em La verdad de Agamenón, um conto longo do escritor espanhol Javier Cercas. Por
intermédio do duplo - que por sua natureza sobrenatural remete à tradição da literatura
fantástica - e da autoficção, termo cunhado por Serge Doubrovsky, fenômeno contemporâneo
de ficcionalização crítica, Cercas sinaliza para a necessidade das novas estratégias narrativas,
condicionadas pelas transformações ocorridas no processo de escritura e de leitura. As
aparições do autor em suas ficções confirmam uma tendência da literatura atual que consiste
na coincidência do autor, do narrador e do protagonista, sem, no entanto, deixar de ser um
relato de ficção. A literatura acompanha a transformação cultural que tem sua origem no
desenvolvimento tecnológico e na democratização do conhecimento na sociedade da imagem
e do consumo. O insólito e a ficcionalização da crítica se encontram nesse conto que
questiona tanto o racionalismo quanto o fazer literário na atualidade. Embora o corpus esteja
constituído por esse conto, estabelecemos relações com os textos ficcionais, críticos e híbridos
em nossa reflexão. O objetivo da pesquisa é averiguar a relação existente entre o duplo, a
autoficção e a Espanha atual. A busca de novas estratégias narrativas, em nossa proposta,
explica a utilização do duplo vinculada à crítica da realidade do mundo literário, o escritor, o
leitor, a circulação de obras na cultura pós-moderna.
Palavras-chave: Duplo, autoficção, Javier Cercas.
LIMA, Carla Vidal Oliveira de. The double and the autofiction in La Verdad de Agamenon.
Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.
We questioned about the meaning of the conjunction of fantasy literature and the
autoficcional proposal in La verdad de Agamemnon, a long tale of the Spanish writer Javier
Cercas. Via the double - that for your supernatural nature refers to the tradition of fantasy
literature and autofiction - a term coined by Serge Doubrovsky, contemporary phenomenon of
critical fictionalization, Cercas signalize the need for new narrative strategies, conditioned by
the changes occurring in the process writing and reading. The entrances of the author in his
fictions confirm a style in current literature is the coincidence of the author, narrator and
protagonist, without, however, not to be a story of fiction. The literature accompanying the
cultural transformation that has its origin in technological development and diffusion of
knowledge in society image and consumption. The unusual and fictionalization of this work
are critical questions that both rationalism and literary do today. Although the corpus is made
up of this tale, we have established relationships with fictional texts, and hybrids in our
critical reflection. The objective of this research is to investigate the relationship between the
double, the autofiction and the Spain today. The search for new narrative strategies, in our
research, explains the use of dual reality linked to criticism of the literary world, that is, the
writer, the reader, the circulation of works in postmodern culture.
Keywords: Double, Autofiction, Javier Cercas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 10
1 O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA _______________________________ 13
1.1 TEORIAS SOBRE A LITERATURA FANTÁSTICA _________________________ 15
1.2 A LITERATURA FANTÁSTICA E O DUPLO ______________________________ 22
1.2.1 LEITURAS E INTEPRETAÇÕES ____________________________________ 27
1.3 TEORIAS E FUNÇÕES DO DUPLO ______________________________________ 28
2 PROBLEMAS TEÓRICOS: DA AUTOBIOGRAFIA À AUTOFICÇÃO _________ 31
2.1 AUTOBIOGRAFIA, CONFISSÕES E MODERNIDADE _____________________ 33
2.2 A AUTOFICÇÃO E A PÓS-MODERNIDADE ______________________________ 43
2.3 A AUTOFICÇÃO EM JAVIER CERCAS __________________________________ 54
3 ANÁLISE DE LA VERDAD DE AGAMENÓN___________________________________ 58
3.1 A VERDADE ________________________________________________________ 58
3.2 - ESCRITOR E NARRADOR PÓS-MODERNO _____________________________ 62
3.3 PERSONAGENS: FICÇÃO E REALIDADE. _______________________________ 70
CONCLUSÃO ____________________________________________________________ 76
REFERÊNCIAS __________________________________________________________ 79
ANEXOS ________________________________________________________________ 84
ANEXO A – CAPA DE LA VERDAD DE AGAMENÓN ________________________ 85
ANEXO B – CÓPIA DE LA VERDAD DE AGAMENÓN ________________________ 86
INTRODUÇÃO
Javier Cercas é para a literatura espanhola o autor de um dos romances mais famosos
do início do século XXI: “Soldados de Salamina”. Nesse romance, o escritor narra a história
do fuzilamento frustrado de Rafael Sánchez Mazas, ideólogo e fundador da Falange
Espanhola. Cercas se apresenta como narrador-personagem para abordar e ficcionalizar os
sucessos históricos da Guerra Civil Espanhola e o processo de construção do romance. A
leitura do romance despertou o interesse em buscar mais informações sobre o autor e sua
produção literária e percebemos que a ficcionalização da figura do autor e a discussão literária
são uma constante em sua obra.
A obra de Javier Cercas é diversificada e reúne desde narrativas ficcionais curtas como
“El móbil” (1987), um livro de contos que é sua primeira obra publicada, a textos mais longos
como o romance como “La velocidad de la luz” (2005). É interessante observar também
experiências como Anatomia de um instante (2009), uma crônica sobre a tentativa de golpe de
estado ocorrida em 1981, seu mais recente lançamento, e a contribuição na edição catalã do
jornal El país. A atuação como professor de literatura nas universidades de Illinois e Gerona
compõe uma bagagem cultural e conhecimento técnico que permitem que o autor utilize o
discurso da crítica literária como matéria ficcional em sua escrita. Pela particularidade, iniciar
uma investigação mais detalhada sobre a obra de Javier Cercas contribui e participa do
desenvolvimento dos estudos literários, sobretudo em literaturas hispânicas.
À luz dos estudos e análises comparativas entre teorias sobre o fantástico e do duplo, a
autoficção e a cultura pós-moderna, objetivamos explicar uma orientação da narrativa
espanhola na atualidade. Embora nosso corpus seja constituído pelo conto La verdad de
Agamenón, baseada no caráter exploratório da investigação, a metodologia adotada é a
pesquisa bibliográfica e a leitura de textos ficcionais e híbridos .
Período de convivência de várias estéticas, na pós-modernidade há novos contornos e
formas de narrar as mesmas histórias. A utilização da figura do duplo tornou-se frequente na
narrativa contemporânea e nossa pesquisa está interessada em averiguar a relação existente
entre a autoficção e a Espanha atual nesse conto. Nosso objeto de estudo é a autoficção do
autor Javier Cercas que se realiza através do duplo no conto fantástico La verdad de
Agamenón.
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Ao tomar a autoficção como uma tendência que mescla a realidade e a imaginação
para refletir sobre a figura do escritor e as transformações ocorridas no processo de escrita,
trabalhamos inicialmente com duas hipóteses: na primeira, entendemos a autoficção como
uma nova dimensão narrativa para explorar a realidade e na segunda, uma forma de
revalorizar a figura do escritor. Compreendemos que há vínculos contraditórios que
constituem o intelectual na contemporaneidade porque, paralelamente, ocorre a valorização da
consciência crítica e negação de se pensar como um produtor de livros para o mercado.
A produção literária e a sua divulgação se dão através dos grandes meios de
comunicação e a literatura de Javier Cercas se move dentro dessa lógica. A busca de novas
estratégias narrativas, em nossa reflexão, explica a utilização do duplo e da autoficção
vinculada à problemática da realidade do mundo literário: a complexidade que envolve a
figura do escritor, a necessidade de inserção na lógica mercadológica de circulação de obras e
a construção de uma tradição que faz parte do mesmo sistema que critica.
O autor sinaliza que o avanço tecnológico influencia o individuo, sua escrita e a
necessidade de buscar novas estratégias narrativas na sociedade da imagem e do consumo.
Observamos que a conjunção de elementos de períodos cronológicos díspares, o duplo e
autoficção constituem importantes temas de investigação literária. Desta forma, buscamos
justificar, mais uma vez, a importância da pesquisa através do diálogo entre textos capitais
sobre a literatura fantástica e sua importância como precursora das mudanças sociais e
inovação de recursos literários; a autoficção como fenômeno gestado na passagem da
modernidade à pós-modernidade, que dentre vários questionamentos, problematiza a figura do
escritor e da literatura como instituição mercantilizada para finalmente chegar à análise do
conto fantástico, que é a nossa interpretação respaldada na teoria.
No primeiro capítulo, realizamos a revisão teórica sobre a literatura fantástica, a
importância do surgimento da figura do duplo nesse gênero literário e algumas de suas
interpretações e significados. Nesse capítulo figuram textos que valorizam o fantástico em sua
dimensão social, literária e estética. Nossa revisão parte do estruturalismo, o estudo da obra de
Tzvetan Todorov cujos postulados despertam o interesse teórico e crítico sobre a literatura
fantástica. Em nossa leitura, passamos das perspectivas psicanalíticas e linguísticas à
perspectiva antropológica de Ana María Barrenechea. Observamos estudos nos quais o
fantástico é avaliado no marco de referencia histórica e social no qual está inserido até
perspectivas mais recentes na visão pós-moderna. Não deixamos de considerar a contribuição
dos psicanalíticos estudos de Otto Rank e Zigmund Freud que permeiam questões do
12
narcisismo primário e a potência que visa contrariar a consciência da efemeridade, que
demonstram as preocupações com a identidade.
No segundo capítulo, pensamos nas formas literárias de representação biográfica que
aprofundam a discussão sobre a fragmentação do sujeito. Concentramo-nos na autoficção
como uma das formas que apontam para a mudança da modernidade para a pós-modernidade
e a necessidade de tornar explícita a complexidade que envolve a criação da imagem que o
sujeito faz de si e do seu entorno, sobretudo o escritor. Para tanto, recorremos a estudos sobre
autobiografia e romance uma vez que em ambos a autoficção encontra elementos
constitutivos. No capítulo, acompanhamos o desenvolvimento da autoficção como um
processo global, concentramo-nos na particularidade do âmbito hispânico e a forma como está
refletida na obra de Cercas.
Por último, buscamos atar as teorias e compreender de que forma o autor espanhol as
manipula para compor uma imagem do cenário espanhol da literatura contemporânea. Em
nossa análise, refletimos sobre os elementos textuais e para textuais, que em conjunto,
influenciam a formação do cenário espanhol da literatura contemporânea. Da capa à escolha
do gênero literário, o conto fantástico La verdad de Agamenón demonstra a preocupação de
um escritor em lançar um segundo olhar, mais minucioso, àquilo que lhe é cotidiano.
1 O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA
A literatura, assim como outras formas de manifestação artística do fantástico, nasce
como resposta ao desencanto provocado pelo choque entre o racionalismo do período da
Ilustração e o subjetivismo romântico, no final do século XVIII e início do século XIX. Na
Ilustração são enfatizadas ideias de progresso, que buscam aprimorar o ser humano através da
defesa do conhecimento racional como meio para a superação de preconceitos e ideologias
tradicionais. O Romantismo se desenvolve confrontando a rigidez da realidade, cultivando a
imaginação e o subjetivismo.
Até o século XVIII, o verossímil inclui a natureza e o sobrenatural de forma coerente
através da religião. No Século das Luzes, estes dois universos se opõem. Durante o período da
Ilustração, ocorre uma mudança radical com relação ao sobrenatural. Com o domínio do
racionalismo, o homem deixa de crer na existência destes fenômenos, deixando em descrédito
a religião e a superstição como meios para explicar e interpretar a realidade.
Para compreender a abrangência, transformação e conflitos dos modelos culturais
entre os século XVIII e XIX é necessário fazer referências às metamorfoses sociais e
antropológicas que incidiram profundamente na mentalidade e na sensibilidade coletivas. Tais
alterações com raízes fincadas na vida social, contribuem para a construção da nova
concepção do trabalho, do amor e da morte. As explicações religiosas e sagradas entram em
choque com o crescente ceticismo às explorações filosóficas e científicas, à importância que
assumiram os problemas da consciência, da verdade e do duvidoso. Ainda que Iluminismo e
Romantismo compartilhassem do objetivo de alcançar uma sociedade igualitária e feliz, o
caminho seguido pelos românticos não é o cultivo da razão para indagar sobre as facetas
ocultas do homem.
O fantástico fornece ao imaginário do século XIX a possibilidade de representar
momentos de inquietação, deixando essa tradição como espólio para modernidade. Remo
Ceserani (2006) destaca que há duas tendências contrapostas na crítica literária quanto à
identificação do fantástico. A primeira é referente à “literatura fantástica do romantismo
europeu”, que reduz o fantástico a um gênero limitado a alguns textos do século XIX. A
segunda, estende o fantástico, sem limites históricos, a toda produção literária, do romanesco
ao fabuloso, da ficção científica ao metarromance contemporâneo.
Conforme o estudioso é importante pensar no florescimento do romance gótico como
antecedente do gênero fantástico que tem Horace Walpole como seu principal representante
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com a publicação da obra O castelo de Otranto em 1764. Entre as características deste tipo de
romance estão o gosto pelo cenário histórico, estilo de ornamentação da Idade Média e do
Renascimento, gosto ambiguamente iluminado pelas manifestações do sobrenatural, visitação
e presença de espíritos, atração pelo mistério da maldade humana, perversão dos instintos e do
caráter. Esse imaginário gótico recebe particular enriquecimento na França pré-revolucionária
por meio de uma ampla exploração da sensibilidade romântica.
Na Alemanha reúnem-se as tendências do romance gótico inglês e francês dando
origem a uma síntese equilibrada que serve de modelo para a Europa. Na obra de Ernest
Hoffmann, escritor alemão e um dos expoentes da literatura fantástica, é possível observar
procedimentos e temas da literatura fantástica, pois em seus textos o inexplicável está inserido
na vida cotidiana realista e burguesa. Procedimentos de hesitação fazem parte da técnica
narrativa, problematizando pontos de vista, utilizando a potencialidade da linguagem criativa
em elementos geradores do efeito fantástico. No século XIX, através de Peças noturnas e o
conto O homem de Areia, o autor contribuiu para a difusão da literatura fantástica com temas
como o duplo, a loucura, a vida após a morte. No mesmo período, também as obras As
aventuras da noite de São Silvestre e Os elixires do diabo são textos basilares para o início da
discussão sobre o fantástico.
No decorrer dos decênios do século XIX, a produção literária fantástica mescla-se a
gêneros literários cuja percepção de mundo, individualidade e construção social é mais
otimista como o autobiográfico ou romance de costume, por exemplo. Com isso, o fantástico
antecipa experiências da literatura moderna como a representação subjetiva do tempo,
fragmentação de personagens unitários e coerentes. Neste sentido, o surrealismo é um
movimento de vanguarda que leva ao extremo a escritura automática, linguagem e as imagem
dos sonhos, elementos dos quais compartilha o gênero fantástico.
Na Espanha do século XX, merece destaque o cineasta surrealista Luis Buñuel que
demonstra também em sua escritura a valorização da imagem em poemas visuais como
“Redentora” (1974) que une imaginação, realidade e questão religiosa. Em nossa
interpretação do poema, o pecado é representado pela cor vermelha e fúria assassina do cão
que o persegue, enquanto a fé representa a redenção através da pomba branca e do amor
fraternal. O texto nos oferece uma visão peculiar da vida na qual a arte reflete a liberdade
imaginativa para descrever o conflito de sentimentos e as sensações do autor em relação ao
catolicismo, crença religiosa na qual está inserido culturalmente.
15
1.1 TEORIAS SOBRE A LITERATURA FANTÁSTICA
O interesse pela literatura do insólito gera um corpus amplo de aproximação entre
diversas correntes teóricas como estruturalismo, crítica psicanalítica e sociologia. Como
resultado, há uma grande variedade de definições, que ilumina vários aspectos do gênero
fantástico. Entretanto, não encontramos uma definição que considere em conjunto as muitas
da literatura fantástica.
Em Ceserani (2006), observamos que nos anos 50 e 60 do século XX, Pierre-Georges
Cartex, Roger Callois e Louis Vax propõem definições e foram predecessores nos estudos
sobre o gênero fantástico1. Entretanto, são os postulados de Todorov (1980) que despertam
interesse teórico e crítico sobre a literatura fantástica. Para refletir sobre o gênero literário,
ainda que seja para revisar certos conceitos e refutar outros, Introdução a literatura
fantástica(1980) é o texto basilar deste estudo.
Segundo Tzvetan Todorov, o fantástico é a vacilação experimentada, frente a um
acontecimento sobrenatural, por um ser que não conhece além das leis naturais. O efeito do
fantástico nasce da dúvida entre a explicação natural e sobrenatural dos fatos narrados. Diante
desse fenômeno, narrador, personagens e o leitor implícito são capazes de discernir se o texto
representa uma ruptura das leis do mundo objetivo ou se fenômeno pode ser explicado
mediante a razão. Entretanto, quando o leitor elege uma das opções, entramos em terrenos
vizinhos - o estranho ou o maravilhoso. O estranho aceita a explicação pelas leis da realidade
e o maravilhoso, quando o sobrenatural é aceito.
Existe ainda a subdivisão em estranho puro, fantástico estranho, fantástico
maravilhoso e maravilhoso puro. Dessa forma, o fantástico é uma categoria evanescente que
se define pela percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos relatados,
compartilhados com um narrador ou personagem. São três premissas básicas para que se
produza o efeito do fantástico: O leitor deve considerar o mundo dos personagens e vacilar
entre a explicação natural e sobrenatural; a vacilação está representada no texto, ou seja, é
sentida pelo personagem e o leitor deve rechaçar a interpretação alegórica ou poética. A
maioria dos críticos coincide na ideia de que para que se produza o efeito fantástico é
1 Segundo Pierre-Georges Cartex, o fantástico é caracterizado pela invasão repentina do mistério na vida real,
geralmente ligado a estados mórbidos da consciência que através de pesadelos e delírios projeta diante do
individuo imagens de suas angustias e horrores. Enquanto Roger Callois considera o fantástico como a ruptura
da ordem reconhecida, irrupção do inadmissível dentro do cotidiano, Louis Vax amplia o campo do fantástico
modificando os conceitos de Callois de inadmissível e indizível. Vax entende o fantástico uma sedução e não
apenas uma irrupção no real.
16
necessária a presença do sobrenatural. Para que uma história seja considerada fantástica, o
ambiente do leitor deve ser assaltado por um fenômeno que o desestabiliza.
Todorov propõe uma aproximação estruturalista frente aos estudos predecessores de
Roger Callois e Louis Vax, que fundamentam-se no aspecto temático. A contribuição de
Todorov é a elaboração de um conjunto de características do gênero fantástico. Devido a essa
limitação de características do fantástico, há teóricos, como veremos a continuação, que
compartilham da ideia de que é necessário levar em consideração o contexto sociocultural.
Seguindo um critério cronológico para recuperar alguns textos referenciais do gênero,
recorremos à obra Teorías de lo fantástico (2001) de David Roas. Nesta obra, é apresentado
um conjunto de textos fundamentais de teóricos como Irène Bessière, que parte da perspectiva
sociológica, apresentando o fantástico como um tipo de relato que explora as dualidades e as
contradições culturais. Além da base estruturalista proposta por Todorov, figuram em nossa
revisão teórica a dimensão psicanalítica de Bellemin-Nöel, a linguística de Campra e
Bozzetto, a ficcional de Reisz e a expressão de alteridade de Jackson e Nandorfy. Por último,
os novos caminhos do fantástico, os estudos de Jaime Alazraki sobre neofantástico.
Conforme Bessière (2001), no estudo El relato fantástico: Mixto de caso e adivinanza,
a vacilação é um dado não específico para qualificar o fantástico, pois exclui o conteúdo
cultural. Nesta perspectiva, o fantástico não se distingue das manifestações do imaginário ou
expressões da tradição popular e, assim, não deve ser associado a meditações ou ao discurso
do subconsciente, pois está dominado interiormente “por uma dialética de constituición de la
realidad y desrealización propia del proyecto del autor (ibid, p.85)”.
O relato fantástico utiliza marcos sociológicos que definem o natural e sobrenatural
que variam segundo a época. Leem-se nas estrelinhas o novo universo elaborado na trama, o
jogo de imagens, afetos e contradições. O fantástico nasce da relação dialogal entre o sujeito,
suas crenças e incongruências. A esse respeito, a autora afirma:
Símbolo de un cuestionamiento cultural, gobierna formas de narración particulares,
ligadas siempre a los elementos y argumento de las discusiones - fechadas
históricamente – sobre el estatuto del sujeto y de lo real. No contradice las leyes del
realismo literario, pero muestra que esas leyes se convierten en las de un irrealismo
cuando la actualidad es tenida como totalmente problemática. (BESSIÈRE, op. cit.,
p. 87)
Bessière entende que para um estudo ou definição do fantástico, não se deve
privilegiar o exame da condição do sujeito e, a propósito dessa afirmação, utiliza A
metamorfose de Kafka, publicado pela primeira vez em 1915. Para a autora, no conto de
Kafka a consciência do homem transformado em inseto permanece intacta, dando importância
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apenas ao enigma do acontecimento. Assim, o estranho não é senão a circunstância, o indício
de transtorno do mundo.
O texto kafkiano se apresenta como separado da realidade. Desse modo, classificado
como maravilhoso na medida em que indica uma regulamentação que escapa à ruína e
fracasso do mundo concreto. A fim de excluir a ruína da ordem tida como natural, o texto
exerce a função sociocultural e representa a emancipação da representação literária do mundo
real.
O relato fantástico é um discurso coletivo e disparatado que concentra tudo aquilo que
não se pode dizer na literatura oficial, a exigência de uma ordem permanente. Os temas de
monstros e de outros mundos traduzem não apenas o medo e o afastamento da autoridade,
mas também a fascinação que exerce e a debilidade que suscita. Desse modo, o insólito expõe
a debilidade do indivíduo autônomo. A duplicidade se revela no estatuto literário já que em
uma sociedade laica, liberal e não hierarquizada diferentes tipos de texto tem valor
semelhante. Medos e incertezas calculadas e o desconhecido se convertem em organização
lúdica.
A narrativa fantástica marca o limite da leitura individual e privada e sem função
coletiva explícita, reafirmando a liberdade total do imaginário. Bessière (2001) adverte que
ainda para que o fantástico seja subversivo, não se deve confundir a modernidade literária e a
inovação estética como portadoras de uma mudança ideológica.
Há interpretações do fantástico como uma das formas de linguagem do inconsciente,
apontando sobretudo alguns aspectos temáticos deste tipo de narrativa e reconhecendo nelas
fáceis transcrições simbólicas dos sonhos e pesadelos do inconsciente coletivo. O crítico
francês Jean Bellemin-Nöel busca conjugar algumas concessões freudianas do inconsciente e
análises das estruturas narrativas e retóricas do fantástico e sustenta que o fantástico é
estruturado como o fantasma psíquico.
Na hipótese desenvolvida no texto de Rosie Jackson, Lo <<oculto>> de la cultura, o
gênero fantástico é menosprezado pelos críticos por ser considerado adesão à loucura,
irracionalidade ou narcisismo. Há ainda a implícita associação com o bárbaro e não humano,
o que exila o fantástico dos limites da cultura literária. Assim, as fantasias que adentram o
maravilhoso são as únicas toleradas, pois preenchem a lacuna da atualidade como algo
desordenado e insuficiente. Para compor seu argumento, a estudiosa recorre à A República,
pois nesta obra Platão expulsa as energias transgressoras como erotismo, loucura e o riso,
excessos que são expostos através do fantástico.
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A emergência da literatura fantástica em períodos de relativa estabilidade aponta para
a relação direta entre representação cultural e energias transgressoras. Conforme Jackson, a
fantasia tem a função de apresentar um revés da formação cultural do sujeito e complementa a
argumentação de que as identidades desconstruídas, demolidas ou divididas se opõem à
categoria de sujeitos unitários e revelam um sujeito em processo, ou seja, com outras
possibilidades. A autora compartilha da ideia de Todorov (1980) de que a fantasia está entre
realismo e a literatura:
(...) las fantasías imaginan la posibilidad de una transformación cultural radical, a
partir de la disolución o la destrucción de las líneas de demarcación entre lo
imaginario y lo simbólico. Se rechazan las categorías de lo <<real>> y sus
unidades. ( JACKSON, 2001, p.149)
A proposta linguística de Campra (2001) sugere que se agrupem os temas fantásticos
segundo categorias substantivas e predicativas. As substantivas remetem às situações
enunciativas que estabelecem oposições no eixo da identidade do sujeito (eu/outro), do tempo
(antes/depois) e do espaço (aqui/ali). As predicativas são referentes às dicotomias
concreto/abstrato, animado/inanimado, humano/não humano. Tal terminologia difere daquela
utilizada por Todorov como matéria e espírito ou real e irreal. Entende-se por concreto tudo
que está sujeito às leis de tempo e espaço, volume e lugar que ocupa no espaço. Abstrato, ao
contrário, aquilo que foge a essas especificidades.
Em Lo fantástico: una isotopia de la transgresión, a autora afirma que na atualidade
predomina o grupo de temas que constituem as categorias da enunciação (substantivas),
proliferação de desdobramentos, usurpações do eu e inversões temporais. Referindo-se à
instância narrativa do fantástico, a autora suscita o problema da percepção uma vez que a
realidade percebida é a realidade dos sentidos, portanto, uma aparência ou uma imagem
parcial. A organização do nível semântico está composta em função da experiência que se
contrapõe à verdade científica. O choque entre ambas significa a inconsistência de uma delas
e pode seguir combinações partindo do personagem, do narrador e do destinatário para o
acontecimento fantástico.
Recebe maior destaque a perspectiva do narrador que se coloca como primeira pessoa
no texto:
La primera persona siempre es sospechosa, porque nada, a excepción de ella
misma, garantiza lo narrado. ¿Cómo saber si el suyo es un testimonio
desinteresado? Esta característica se acentúa en el caso de identidad entre el
narrador y el protagonista. Todo lo que él vive y narra puede atribuirse a una
percepción distorsionada. ¿Por qué no definirlo como un loco o charlatán? La
realidad de la transgresión se reduce, tal vez, a una proyección de su mente, y
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permanece en los confines de lo abstracto. La primera persona protagonista tiene el
fatídico don de contaminar de duda la existencia misma del acontecimiento.”
(CAMPRA, 2001, p.170)
A verossimilhança no texto fantástico se deve à necessidade de afirmar sua existência,
explorando de modo particular aquilo que Roland Barthes chama de efeito de realidade.
Pode-se encontrar em textos narrativos sequencias descritivas sem finalidade de ação, apenas
para criar a ilusão de realidade. O relato fantástico oferece uma discrepância entre o aspecto
semântico e o sintático, consiste na inversão temporal - o fato que desencadeia a ação é
revelado ao final. Campra afirma ainda que, de modo geral, o relato fantástico se apresenta
como uma longa preparação que leva a um desenlace brevíssimo.
A passagem do fantástico predominantemente semântico ao fantástico do discurso é o
resultado da integração dos níveis formais. O nível semântico é referente à identificação de
motivos como monstros, vampiros e etc. No nível sintático, aquilo que diferencia o fantástico
de outros tipos de texto é a relação inicial de equilíbrio, ruptura e retorno ao equilíbrio que
nem sempre se completa. Tais transgressões aparecem como isotopia, ou seja, o mesmo plano
temático, que atravessa os limites em diferentes níveis do texto, permitindo a manifestação do
fantástico. Através do gênero se pode chegar a uma percepção do mundo representado na
escrita.
O horizonte cultural do produtor e receptor ajuda na categorização do fenômeno
fantástico. Compartilhando da opinião de que o fantástico nasce do confronto entre esferas
excludentes e antonímicas, os autores adotam diferentes nomenclaturas: natural e sobrenatural
para Todorov; normal e anormal, para Barrenechea; real e maravilhoso provável, segundo
Bessière e finalmente, Reisz2 que opta pela denominação possível e impossível.
Conforme Ana María Barrenechea(1985), na escrita fantástica é importante considerar
o marco de referencia histórica e social em que está inserida, pois o autor seleciona, elabora e
manipula informações para guiar o leitor e levá-lo a aceitar um contrato especial de leitura.
Ese marco de referencia le está dado al lector por ciertas áreas de la cultura de su
época y por lo que sabe de las de otros tiempos y espacios que no son los
suyos(contexto extratextual). Pero además sufre una elaboración especial en cada
obra porque el autor_ apoyado también en el marco de referencia específico de las
tradiciones del género_ inventa y combina, creando las reglas que rigen los mundos
imaginarios que propone(contexto intratextual). (BARRENECHEA, 1985, p.45)
2 Cf. Las ficciones fantásticas y sus relaciones con otros tipos ficcionales. In: ROAS, David. Teorías de lo
fantástico. (2001) p.193-221.
20
Seguindo a teoria de que a literatura fantástica depende também dos códigos culturais,
normal ou anormal estão diretamente ligados aquilo que é socialmente aceito, portanto não se
deve perder de vista que as crenças de uma sociedade não são homogêneas. Ainda que
organize um mundo distante no tempo e no espaço, o texto sempre é lido em contraste com o
tempo e o lugar da leitura. Como exemplo, podemos recorrer à interpretação da lenda cristã.
Tais relatos são considerados ficção somente para aqueles que não fazem parte do universo
religioso. Outro apontamento difere o conto de fadas da lenda porque desde o início é distante
do cotidiano e familiar. Os modos de começar os contos de fadas sugerem que as histórias
ocorreram em qualquer lugar concreto, um tempo que é todos os tempos e por intermédio de
expressões como “era uma vez”, “em um lugar distante” e “há muito tempo”, o narrador
renuncia à pretensão fática. O final feliz satisfaz a situação de que as coisas deveriam
acontecer sempre de uma mesma maneira, demanda primordial. Nas ficções fantásticas a
situação é inversa. Os impossíveis se localizam sempre dentro de situações de casualidade que
se apoiam nas ações cotidianas do homem de nossa época e cultura.
Reisz discorda da opinião de Todorov no que concerne ao narrador e justifica
afirmando que o narrador em primeira pessoa não necessariamente faz parte do universo
narrado, pode ser somente instância narrativa e não protagonista. Por isso, a visão ambígua
depende mais do “modo” narrativo que da “voz” narrativa. Não é indiferente que o autor
esteja presente no texto. O fundamental é que se adote ou não o ponto de vista correspondente
ao personagem.
Um dos pontos distintivos do fantástico é o fato de que o acontecimento impossível
esteja representado de maneira que não se possa afirmar se ocorreu ou não. É fundamental
que a ocorrência possível ou efetiva apareça apresentada como transgressora dentro de certas
coordenadas históricas e culturais precisas. Neste sentido é retomanda A metamorfose de
Kafka porque há o questionamento de mundos em duas direções. Por um lado, a realidade
subjacente da conduta dos personagens e a denúncia desse mundo que propõe a revisão das
noções de realidade e normalidade.
Em “¿Un discurso de lo fantástico?” (2001), Roger Bozzeto afirma que todo texto
literário manifesta uma intenção precisa e original e o fantástico infere uma dimensão
específica da relação do homem com o mundo. Assim como o trágico encontra sua forma
apropriada no drama, o lírico na poesia, o gênero fantástico encontra na narração curta, o
conto, sua forma apropriada. Logo, sua intenção específica pode ser descrita como a discussão
do universo da representação.
21
A proposta do autor é opor o discurso mimético, seus pressupostos e estratégias e o
discurso fantástico e suas especificidades. O primeiro pressuposto da ficção mimética é que
tudo é representável e o segundo, a representação passa a ser análoga, ou seja, a fabricação de
uma metáfora do mundo referencial. Como o objetivo de parecer o mundo concreto,
homogêneo, coerente são dadas muitas informações sobre a solidez do mundo dos
personagens.
Sob a ótica de Nandorfy em La literatura fantástica y la representación de la
realidad, o fantástico parece destinado a construir uma categoria negativa projetada contra
tudo que é normal, natural e objetivo. Sua proposta é dirigir-se aos problemas teóricos
derivados da tendência logocêntrica de excluir experiências da indeterminação da linguagem
tomando como base os estudos de Todorov (1980), Jackson (2001) e Alazraki (2001).
Ao falar de literatura oscilamos entre a noção de realidade, mundo da ação, e
representação, modalidade artística sujeita a convenções. Todorov (1980) ao considerar o
fantástico do ponto de vista estrutural se esquiva das consequências filosóficas sobre a
natureza da realidade. No século XX, a partir de várias disciplinas a separação é entendida
como ordem arbitrariamente imposta. Daí a tese de Jackson (2001) afirmar que o fantástico
não desapareceu, mudou de forma.
“La obra literaria es un producto social y también un espejo que refleja nuestros
deseos inconscientes, y que, en consecuencia, señala la vía de una cura para los
males de la sociedad:<<Desmitificar el proceso de lectura de relatos fantásticos
nos ofrecerá la entusiasmante posibilidad de neutralizar muchos textos que opera
forma inconsciente sobre nosotros.. Ello debería conducir en una última instancia,
una transformación social real.>>” ( Ibid, p.254 )
Nandorfy afirma que os estudos de Todorov (1980) e Jackson (2001) valorizam
critérios estritamente formais e sociais e, por isso, relegam o fantástico à condição de
alteridade negativa da realidade ou da cultura. Para a autora o significado mais preciso do
fantástico “ya sea en un contexto científico o artístico, será pues, „potencial‟; un potencial
susceptible de actualización en la experiencia y en la expresión, en tanto en cuanto no se vea
sometido a la práctica racional de la exclusión.” (NANDORFY , 2001, p. 259)
Em síntese, boa parte da produção literária recente converte em inoperantes as
distinções estruturais e lógicas entre o mimético, o fantástico e o maravilhoso uma vez que
permite que a indeterminação da linguagem entre em jogo. A partir do momento em que o
sujeito descentralizado deixa de ser reprimido e passa a ser desenvolvido nos personagens de
ficção, o fantástico pode ser incluído em novas análises de uma realidade enriquecida pela
diferença.
22
O texto de Jaime Alazraki, ¿Qué es lo neofantástico?, aponta para novos caminhos
para a literatura fantástica extraindo o critério do medo como fundamental à literatura do
insólito. Teóricos como Lovecraft (apud ALAZRAKI, 2001), reclamam o medo nesse gênero
literário como elemento que o distingue do maravilhoso, já que é o resultado ruptura da ordem
natural e desencadeando o questionamento daquilo que se crê como produto da imaginação.
Na atualidade, há controvérsias quanto a essa opinião. Baseado em A metamorfose,
Todorov (1980) sinaliza que no século XIX a literatura fantástica perde a função de
manifestar temas tabus, partindo da premissa de que a psique humana sofreu mudanças com o
advento da psicanálise, provocando alterações na censura social. O texto de Kafka é exemplar
porque rompe o paradigma da literatura fantástica tradicional, pois parte do sobrenatural para
o natural. Sem explicação, o protagonista Gregor Samsa é transformado em inseto e, diante da
transformação, não ocorre nenhuma vacilação nem assombro dele ou de sua família.
No universo do texto kafkiano o fantástico deixa de ser exceção e passa a ser uma
regra de funcionamento. Do mesmo modo, autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar
tem uma nova maneira de cultivar o gênero fantástico; Alazraki (2001) os define como
neofantástico e acrescenta:
“Una perplejidad o inquietud sí, por lo insólito de las situaciones narradas, pero su
intención es muy otra. Son, en mayor parte, metáforas que buscan expresar atisbos,
entre visiones o intersticios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la
comunicación, que no caben en las celdillas construidas por la razón, que van a
contrapelo del sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diario.”
(ALAZRAKI, 2001, p.277)
A literatura fantástica contemporânea se inserta na visão pós-moderna da realidade na
qual o mundo é indecifrável. Através de mecanismos diferentes, a literatura fantástica
tradicional ou contemporânea indica mudanças de uma sociedade.
1.2 A LITERATURA FANTÁSTICA E O DUPLO
O gênero fantástico se contrapõe à realidade na medida em que utiliza o sobrenatural,
induzindo a vacilação do leitor. Neste gênero, nos interessa tratar sobre o duplo, ou
doppelgänger, artifício frequente na narrativa contemporânea. A essa pesquisa interessa
averiguar a relação existente entre o duplo, a autoficção e a Espanha atual. Para tanto,
observamos o duplo como estratégia por intermédio da qual se realiza a autoficção no conto
fantástico La verdad de Agamenón (2006), de Javier Cercas.
23
A preservação da identidade é uma das grandes questões do indivíduo moderno, que
parte de suas idiossincrasias para identificar-se com um determinado grupo concreto de
pessoas ou ainda para diferenciar-se da coletividade. A literatura, a partir de uma reflexão
romântica, nos convida a indagar sobre quem somos, reconstruindo a realidade habitual a
partir da imaginação. O motivo do duplo, que de modo bastante genérico pode ser definido
como cópia idêntica ou desdobramento do ser, é fruto dessa indagação. Suas manifestações
podem ser representadas por intermédio das máscaras que o homem utiliza para representar
papéis sociais em diferentes contextos, reflexos especulares, sombras, irmãos gêmeos. Essa
polissemia da imagem adquire, em cada obra, sentidos diferentes. As inquietações causadas
pelo duplo vão além do estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias
da fragmentação do sujeito, revelando que fragilidade, temores e frustrações fazem parte de
todo ser humano.
Os textos canônicos nos quais figura o duplo datam em sua maioria do século XIX.
Citamos o célebre William Wilson (1839) de Edgar Allan Poe, que narra a história de um
jovem que conhece um indivíduo que, exceto pela voz, se assemelha a ele em tudo. Tal
indivíduo o acompanha em todos os lugares e, na medida em que se corrompe, o protagonista
passa a entender seu duplo como um perseguidor.
Muitas análises da literatura fantástica privilegiam a perspectiva psicanalítica,
marginalizando o componente fantástico e reduzindo-o a casos clínicos. Entretanto, é
importante não perder de vista o valor estético. Para estudar o motivo do duplo, é necessário
levar em consideração por um lado, suas raízes míticas e antropológicas, que interpretavam a
alma humana, as sombras, reflexos e as lendas. Por outro, a sua fundação literária, originada
na insatisfação dos postulados da Ilustração, que homogeneizava o homem, suprimindo a
liberdade de criação artística. Para a literatura da época o motivo obriga o homem a se dar
conta de uma faceta irracional e colocando em xeque a confiança na razão.
Através do estudo do doppelgänger, percebemos a mudança das noções de sujeito na
passagem da modernidade para a pós-modernidade. Uma das razões fundamentais para
proceder a uma investigação sobre o motivo idôneo é a reescritura de uma tradição e do jogo
referencial que elucida a recorrência questão da crise da identidade na modernidade. Desde a
antiguidade, o medo da duplicação assola a humanidade e permanece frutífero e ainda hoje
com o avanço da tecnologia em vários setores e a possibilidade de clonagem.
É necessário estabelecer um termo diáfano e coerente para explicar o doppelgänger.
Segundo o estudo de Rebeca Martín-López (2006), a dificuldade da crítica literária de
identificá-lo como tema ou motivo do fantástico advém das tradições alemãs e anglo-
24
saxônicas. Em resumo, se distingue tema como matéria em torno da qual se desenvolve um
argumento ou uma fábula com o protagonismo de um personagem e o motivo como
elementos históricos que conservam sua unidade em diferentes obras.
O duplo costuma aparecer com efeitos concretos como o encontro com o original, a
usurpação da identidade no âmbito público e privado e a dúvida sobre a própria identidade.
Martín-López (2006) opta pelo termo motivo porque goza de uma forma concreta,
paralelismos e interações que remetem o leitor a elaborações. A autora justifica sua escolha:
“El doble adquiere dicha calidad cuando se erige en el eje central que estructura la
narración, tal y como sucede por citar dos obras paradigmáticas en Willian Wilson
(1839) y El Doble (1846). Tanto para Poe como para Dostoievski sirven del motivo
para plantear temas universales que trascienden los límites del texto” (MARTÍN-
LÓPEZ, op. cit, p. 15).
Conforme Martín-López, embora sejam variadas as designações para definir o duplo,
que vão desde alter ego e sósia, a partir das comédias de Plauto ou o outro ou segundo eu
para aproximar-nos a Borges, o termo essencialmente romântico doppelgänger foi cunhado
por Jean Paul Friedrich Richter(1796), no romance “Sieblenkais”. É difícil ter uma definição
do duplo a partir de seus estudos críticos. O motivo se insere na linha de questionamentos
entre as noções de identidade e unidade do sujeito. Nestes termos, configura-se como um
mecanismo de linguagem e literário para veicular e dar uma forma coerente à digressão de tais
noções.
Ocupamo-nos de doppelgänger como personagem nascido no romantismo porque
ainda que suas origens reportem às comédias de Plauto, é no século XVIII que ele é adotado
como ponto de reflexão que condensa velhas tradições para tornar-se modelo canônico que irá
influenciar formulações posteriores. A proposta de estudo de Martín-Lopéz (2006) surge
principalmente das fontes de textos literários fundacionais como o de Jean Paul (1796) e a
crítica de disciplinas como a antropologia e psicanálise. Suas análises destacam, por exemplo,
o tratamento dado por a E.T.A Hoffmam em Os elixires do diabo (1815) e O Homem de areia
(1817) ; Edgar Allan Poe em William Wilson (1839) e O retrato oval (1842); Theóphile
Gautier em A morte amorosa(1836); El doble de Dostoieviski (1846); Aurelia de Nerval
(1855). A autora resume e analisa os textos esclarecendo sua importância no estudo do
doppelgänger.
O estudo crítico do conto O homem de Areia feito por Sigmund Freud deu origem ao
ensaio O estranho (1919). O primeiro, narra a história do estudante alemão Natanael desde
suas primeiras experiências infantis, passando pelos tormentos da vida de estudante até a
25
trágica morte quando cai da torre. Para Freud, o texto é caracterizado como estranho, pois
suscita no leitor o efeito de incerteza intelectual. A análise de Freud nos conta duas histórias
paralelas de um jovem que é levado ao suicídio pelo poder maligno do homem de areia e a
gradual deterioração psíquica de um jovem fixado em seu pai pelo complexo de castração.
Ambas histórias estão relacionadas entre si pelo caráter ambíguo entre aquilo que é latente e o
que é manifesto à consciência e desse modo, O homem de areia (1817) é resultado do
complexo de castração. Neste são trabalhados temas dos olhos e da perspectiva de visão, a
cisão do eu e a formação do duplo/ sósia, das presenças e coincidências sobrenaturais.
Em As aventuras da noite de São Silvestre podem ser destacados os procedimentos
narrativos das transformações ou metamorfoses interiores e exteriores dos personagens, o
contínuo jogo de espelhos entre aparência e realidade, constante debate sobre a identidade dos
personagens. É refinada a elaboração dos temas relativos ao duplo como personagens que se
refletem em outros personagens, personagens duplicados e outros que se transformam na
própria sombra ou imagem.
A chegada dos contos de Edgar Allan Poe, radicados na sensibilidade gótica,
promoveram uma grande mudança nos gostos literários e introduziu novas formas no
fantástico. Dividido em duas partes, O retrato oval (1842) tem como tema central a relação
entre a vida e a morte, permeada pela relação entre a vida e arte. Na primeira parte o
protagonista narra ter passado uma noite em um castelo de aparência gótica e adornado com
muitos quadros e no qual havia um livro que continha a explicação de cada um. Um quadro
oval de uma jovem senhora exerceu sobre ele um efeito especial, pois parecia ter vida. Na
segunda parte, o anônimo narrador do conto relata a história da mocinha casada com um
pintor. Na medida em que era pintada na tela, perdia vitalidade até a morte declarada com o
término da pintura. O relato do livro coloca em crise a explicação fácil e sinaliza para o tema
da arte que se nutre da vida.
Em a Morte amorosa(1836), o protagonista-narrador é um homem convicto e
fervoroso em suas crenças religiosas que se refere à história de um monge, apresentando o
relato como advertência. O tema central é o duplo que joga com a relação de uma
personalidade diurna e outra noturna de Romualdo, pároco que no momento de fazer os votos
vê pela primeira vez Clarimunda, uma vampira e belíssima cortesã. Durante o dia leva a vida
normal de um padre e à noite, em seus sonhos, torna-se amante de Clarimunda.
Há três variantes classificatórias que tentam dar conta da riqueza do motivo do duplo
segundo Rebeca Martín-López. A primeira variante prega que os dos indivíduos coexistem
em diferentes dimensões espaço-temporais que acabam por fundir-se como nos contos As
26
montanhas escabrosas (1844), de Poe, A esquina Alegre (1908) de Henry James, Lejana
(1951) de Cortázar e El outro (1975) de Borges. A segunda, dois indivíduos homomórficos
coexistem na mesma dimensão, modelo seguido por Hoffman em Os Elixires do diabo
(1815). Já a última variante atesta que o indivíduo que assiste ao seu próprio funeral e
contempla a si mesmo morto. De acordo com o estudo de Rebeca Martín-López (2006) essa
variante é parte do acervo espanhol.
O estudo menciona as diferenças entre o duplo subjetivo e o objetivo, bastante útil na
descrição literária. O subjetivo apresenta as formas interna e externa. A personalidade
múltipla ou possessão são de ordem interna enquanto a externa é representada na forma física.
É importante relembrar que o duplo interno, em muitos casos é analisado como crítica
psicanalítica. Martín-López(2006) entende que o romance O estranho caso do Dr. Jekyll e
Mr. Hyde(1886) é um caso particular no estudo do duplo, pois nele é possível apontar a
carência de duplicação e presença sincrônica que mais se assemelham ao transtorno
psicológico que ao motivo literário.
O estudo de Todorov (1980), por exemplo, marca essa tendência destacando que no
século XIX, a literatura fantástica perde sua função porque os temas tabus por ela explorados
passam a ser explicados pela psicanálise. O duplo objetivo é quando o protagonista
testemunha uma duplicação alheia como em “O homem de Areia”(1817). Tal tipo de
duplicação é muito peculiar quando se pensa na reificação da mulher amada como em
retratos, estátuas .
As raízes antropológicas do duplo são muito anteriores a sua constituição como
motivo literário, pois remetem à mitologia e ao folclore universais como mito dos gêmeos e o
simbolismo que existe entorno da alma e suas representações como sombra, espelho e estátua.
Em ambas está associada a ideia do homem como ser binário. Devemos acrescentar as origens
míticas e lendária que dão fundamentos ao imaginário popular, o mito de Narciso, pares
independentes como D. Quixote e Sancho Panza e a tradição teatral. Segundo Rank (1914) e
Freud (1919), o instinto de conservação é a razão das origens ancestrais do duplo
antropológico.
O idealismo subjetivo e suas posteriores reinterpretações são uma manifestação da
consciência de cisão e duplicidade que caracterizam o motivo romântico. No século XIX , a
atração pelo doppelgänger não surge apenas das inquietações estéticas mais também de suas
obsessões e medos, objetivados pela ameaça de alienação e perda de vontade e no marco da
inquietação filosófica e científica centrada na psique humana que formou parte do acervo
27
literário daquele período 3 . Na Espanha o desenvolvimento da literatura fantástica e,
consequentemente, do duplo estão diretamente ligados ao desenvolvimento em suas
fronteiras.
O conto La verdad de Agamenón é também uma forma de demonstrar a dificuldade de
conciliar a vida social e a dedicação literária. Cercas utiliza o duplo para refletir sobre o
posicionamento do escritor frente sua obra e a vida cotidiana. Doppelgänger se faz presente
para substituir o protagonista, incapaz de sustentar a fachada de artista que construiu. Em “La
verdad de Agamenon”(2006), Cercas busca fugir de uma vida que o aborrece e desfrutar da
clandestinidade. A indiferença inicial do narrador se transforma em raiva quando percebe que
o duplo possui talento e uma capacidade de trabalho superiores às suas.
1.2.1 LEITURAS E INTEPRETAÇÕES
As distinções entre o doppelgänger e outros seres sobrenaturais está em sua própria
essência, pois é o aspecto físico que lhe dá sentido. A crítica psicanalítica extingue os
aspectos estéticos do duplo, entretanto, os estudos de Otto Rank e Sigmund Freud
transcendem as estreitas barreiras da psicocrítica e até hoje, oferecem importantes dados à
investigação literária. Otto Rank (1914) foi pioneiro no estudo do duplo no contexto literário,
pois sua perspectiva antropológica e histórica continuam a oferecer indispensáveis recursos
para chegar a gênese do doppelgänger. O estudo de Freud (1919) também tem importantes
reflexões sobre obras capitais na história do sobre a literatura fantástica e do duplo.
Em 1914, Otto Rank em seu estudo Don Juan et le doublé estabelece a ligação entre o
eu e a morte. Já para Freud em O estranho (1919) , contraria a pulsão de morte, sendo o
narcisismo primário. O duplo funciona nessa relação como uma potência que visa contrariar a
consciência da efemeridade e finitude do eu. O relato fantástico provoca o medo físico e o
medo intelectual. O medo metafísico define com melhor exatidão o sentimento suscitado pelo
doppelgänger e o temor da perda da identidade será desenvolvido na narrativa através da
descrição das sensações, pensamentos e atitudes do protagonista.
O duplo se insere no estudo dos temas do eu, caracterizados pela realização dos
desejos entre o homem e o mundo. Na autoficção de Javier Cercas (2006), a trama do gênero
fantástico é tecida em torno da relação desenvolvida entre o narrador e seu duplo. O conto
narra a história de um escritor insatisfeito tanto no campo profissional como no pessoal. Essa
figura, conforme Todorov (1980), cumpre duas funções. Na primeira, é signo de perigo e
3 Cf. Martín-López,2006, p. 150
28
morte, resultado do isolamento com o mundo concreto. Descrito como o mundo no qual está
inserido, o narrador-personagem, que precisa corresponder às exigências manter-se no sistema
com novos romances e entrevistas; na segunda, a possibilidade de recuperar o contato estreito
com pessoas e reintegrar-se ao convívio social, estando à margem do mesmo sistema.
A palavra alemã Heimlich analisada linguisticamente no estudo de Freud (1919)
significa, simultaneamente, aquilo que é familiar e agradável e o que está oculto e se mantém
fora da vista. Assim, a natureza estranha do duplo está radicada na transformação daquilo que
é familiar, o corpo do indivíduo, naquilo que é incompreensível, a presença sinistra da
duplicação. Refletindo a ambivalência de sentimentos provocada pela presença do
doppelgänger, sua concepção como produto da cisão entre o familiar e o estranho, ou seja, o
consciente do inconsciente está ligada a aplicação literária do conhecimento de si mesmo e as
consequências desse ato. Utilizam-se diferentes máscaras a depender da situação e a
identidade é construída em contextos determinados. O aparecimento do duplo obriga o
indivíduo a observar-se, revelando aspectos desprezíveis de sua personalidade como em
Willian Wilson (1839).
1.3 TEORIAS E FUNÇÕES DO DUPLO
No período de esplendor do romantismo, o protagonista da literatura sobre o duplo é
antagônico ao herói clássico, hipersensível e incapaz de discernir o real do imaginário. No
textos de Hoffman, Nataniel, de O homem de Areia; Medardo, de Elixires do diabo e em
menor grau Willian Wilson de Edgar Allan Poe são exemplos de anti-herói, personagem
introspectivo e de imaginação exacerbada torna-se característico da literatura fantástica.
Se considerarmos que o indivíduo modela sua identidade em função do seu entorno, a
presença do duplo modifica o vínculo com tudo aquilo que o rodeia. É dessa forma que o
duplo mostra sua face sombria, pois começa por apropriar-se da vida privada até suplantar a
existência pública do original. Por isso, do ponto de vista narrativo, predomina o relato
homodiegético e, quanto ao caráter subjetivo da experiência do desdobramento, parece mais
oportuno partir da perspectiva do eu.
O gênero fantástico se apoia na estética realista para conseguir o efeito verossímil,
pois seus ambientes são construídos com técnicas realistas. Doppelgänger demonstra que o
desconhecido não surge somente do cenário de aparência gótica, mas também da natureza
humana. A literatura fantástica nos coloca em contato com cenas insólitas para nos
surpreender e fazer com que dessa surpresa seja desencadeada uma reflexão sobre o real.
29
Jean Baudrillard (1991) afirma que o duplo é uma figura imaginaria que como a alma,
a sombra, a imagem no espelho, persegue o sujeito como o seu outro, fazendo com que faz
com que seja ao mesmo tempo ele próprio e nunca o mesmo. Conforme seu raciocínio, a
riqueza e poder do duplo encontram maior ressonância na sua imaterialidade, ser e
permanecer um fantasma. Isso equivale ao jogo de estranheza e intimidade do sujeito consigo
mesmo, ou seja, aquilo que lhe é natural e aquilo que lhe causa inquietação.
As manifestações do duplo estão ligadas ao gênero fantástico não apenas pelos
mecanismos de repetição do semelhante e acúmulo de coincidências, mas também pela função
subversiva de desmascaramento moral e social aos quais o protagonista é submetido com o
aparecimento da figura fantástica. É próprio do nosso tempo querer exorcizar este e outros
fantasmas e para tanto, é necessário torná-lo material, dar-lhe um corpo de carne e osso. Essa
necessidade é um contrassenso porque significa mudar a lógica do duplo que equivale a
trocar a morte do outro pela eternidade do mesmo. Umas das interpretações que cercam
doppelgänger é o pressagio de morte iminente do original ou real. Ao contrário, na escrita de
Cercas(2006) é o elemento fantástico o eliminado.
Em La verdad de Agamenón (2006) , as inquietações causadas pelo duplo vão além do
estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias da fragmentação do
sujeito no mundo em que a diferença é articulada através do sentido e do valor. Tal elemento,
testemunha a insuficiência do ser. Utilizando a forma de diálogo, a inserção de dados e locais
reais como Los Manueles y El diván de Tamarit na região de Granada, o narrador envolve o
leitor na atmosfera do fantástico e cria um terreno propício para seu desenvolvimento.
Conforme Felipe Furtado em A construção do fantástico na narrativa, a linguagem cotidiana,
o detalhamento das circunstâncias e a ideias de testemunho são estratégias adotadas para
estabelecer o pacto de leitura. O autor afirma que documentos, referências factuais e
testemunhos são recursos à autoridade daquele que escreve, são processos que buscam
adequar os dados insólitos à realidade objetiva, contribuindo para contaminar e cooptar o
leitor.
O nome permite que o protagonista seja crítico de sua própria obra, demonstrando o
caráter metanarrativo do texto. O protagonista Javier Cercas sempre desejou a fama e o
privilegio de ser consagrado como escritor e quando consegue abandona a pulsão de escrever.
Neste sentido, o elemento fantástico vem solucionar problemas de ambas as esferas nas quais
está inserido: a primeira que precisa corresponder às exigências de manter-se no sistema
literário e mercantil com novos romances e entrevistas; na segunda, a possibilidade de
30
recuperar o contato estreito com pessoas e reintegrar-se ao convívio social, estando à margem
do mesmo sistema e cumprindo a função de reconciliação com o ambiente familiar.
O primeiro nível da usurpação tradicional promovida pelo elemento fantástico é a
existência na vida privada. Enquanto o narrador Javier Cercas, protagonista, inicia o convívio
com a família do duplo e assume suas responsabilidades profissionais como zelador na
universidade, paralelamente, o outro reconquista sua esposa e filho, anulando sua existência
privada. O medo metafísico que define com melhor exatidão o sentimento suscitado pelo
doppelgänger é a identidade do sujeito. Além do nome, o traço que os unirá definitivamente
será a literatura. A identidade do narrador-personagem é totalmente assumida pelo duplo com
a publicação do romance La velocidad de la luz (2005)4, corresponde à invasão do último
espaço protegido, a vida pública.
Segundo a opinião de Felipe Furtado (1980), a hesitação construída pelo fenômeno
encenado é fruto do discurso verossímil que é construído e desconstruído, sucessivamente, e é
este efeito que é responsável pela percepção do leitor. Doppelgänger, no conto simbolizando
a impostura do narrador, é portador de aniquilação e morte. O desaparecimento progressivo
do narrador-personagem é resultado da incapacidade de assumir seu fracasso como escritor.
Em forma de um diálogo entre o protagonista e um interlocutor cuja identidade não é
revelada, o conto é construído com riqueza de detalhes e com um desenlace muito breve,
como convém não somente à narrativa de cunho fantástico como também ao romance policial.
Todorov (1980) afirma que, embora o romance policial com enigmas se relacione com o
fantástico, é ao mesmo tempo, seu oposto. Nos textos fantásticos, inclinamo-nos à explicação
sobrenatural, enquanto no romance policial, uma vez concluída, a explicação não deixa
dúvida alguma quanto à ausência de acontecimentos sobrenaturais.
Incapaz de manter a fachada de artista, o narrador abandona sua ambição literária e
muda de vida como doppelgänger para fugir do aborrecimento, desfrutando da
clandestinidade. A indiferença do escritor é transformada em raiva na medida em que constata
que o duplo tem capacidade laboral superior e talento para desempenhar bem seu papel social:
“Me llamo Javier Cercas, igual que tú. Te escribo para que sepas de mi existencia;
yo sé de la tuya desde hace tiempo. Soy aficionado a la literatura, y cuando
apareció tu primera novela la compré y la leí. Me gusto. Luego leí la segunda y me
gustó menos, igual que la siguiente. (...) Perdona que te hable con tanta franqueza,
pero supongo que el hecho de llamarme como tú me da el derecho a hacerlo, ¿no te
parece?(...) pero tenemos muchas afinidades, sobre todo literárias”. (CERCAS,
2006, p.270)
4 A edição original data de 2005. Utilizamos CERCAS, Javier. A velocidade da luz; tradução: Antonio Fernando
Borges. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.
2 PROBLEMAS TEÓRICOS: DA AUTOBIOGRAFIA À
AUTOFICÇÃO
Dentre as diversas formas de representação biográfica, nos interessa pensar de que
modo os homens representam suas vidas na contemporaneidade utilizando a linguagem, em
outras palavras, os modelos de construção do percurso vital com os quais criamos nossas
histórias pessoais. O ato de narrar envolve a elaboração de uma figura interior e outra exterior,
que não deve ser confundida com facticidade das experiências. No estudo Filiações e
rupturas do modelo autobiográfico na pós-modernidade, Delory-Momberger parte de dois
pressupostos para explicar os modelos que impregnam as construções biográficas bem como o
processo que desencadeou a sua transformação.
O primeiro pressuposto é que os homens não têm uma relação direta com o vivido,
eles o apreendem a partir de esquemas e figuras que tomam a forma de narrativas. As formas
às quais os indivíduos recorrem para biografar suas experiências são de dimensão histórica,
cultural e social. O segundo pressuposto é que os modelos biográficos variam de acordo com
os tipos e os modos de relação que os indivíduos mantêm com a coletividade segundo as
épocas e as culturas. No desenrolar de seu argumento, a autora toma como exemplo a
clivagem histórica que marca a passagem do período pré-moderno para o moderno, que
permite fazer a distinção entre o modelo de construção heterônomo e autônomo.
A teoria está baseada nas diferenças entre a Idade Média e Renascimento. O homem
medieval, exemplo do modelo heterônomo, busca seu principio de construção nos moldes de
tipos históricos e funcionalidades sociais conforme os parâmetros das sociedades feudais. O
processo que o torna um indivíduo, sua identificação, busca aproxima-se o máximo possível
de figuras típicas como o santo, o cavaleiro e o rei. Ao contrário, desde o principio da época
moderna, que se inicia com o Renascimento, a tendência do indivíduo é buscar em sua própria
experiência recursos para sua individualização.
Delory-Momberger afirma que as narrativas ou romances de formação são
exemplares ao demonstrar as etapas de desenvolvimento da individualidade e aprendizagem,
que através das experiências, corroboram o principio dinâmico do desenvolvimento pessoal.
De acordo com esse princípio, o romance de formação, herança da noção alemã de Bildung, é
o padrão biográfico da modernidade, ao mesmo tempo familiar e distante para o público não
germânico. Familiar porque é a base que inspira a prática narrativa desde o século XVIII e
distante por guardar em sua forma pressupostos históricos e filosóficos do contexto alemão.
32
Bildungsroman 5, o modelo germânico de narrativa, é formado pelo relato do processo
de formação de um ser humano, desde a situação primaria de inocência e inexperiência até a
maturidade, fase na qual consegue viver em harmonia consigo e com o ambiente ao qual
pertence, contexto europeu do final do século XVIII. A Europa, nesta fase evolutiva do
modelo biográfico, é marcada pelo aumento do poder da burguesia nas esferas política,
econômica e cultural. O princípio que rege o indivíduo impulsionado pela sociedade burguesa
liberal é a de um ser autônomo e responsável, que integra as noções de concorrência, luta pela
vida e busca alternativas. Tais características estão baseadas na relação de transformação do
mundo pelo capital. Esse modelo de projeção propagado pelo capitalismo será a base da
representação e das práticas biográficas modernas.
Daí se justifica o pensamento de Biuldung, entendido como o processo de formação
com a finalidade de desempenho de atividade produtiva na sociedade, ser o modelo que
impregna as práticas biográficas contemporâneas. A partir da retrospectiva, a relação dialogal
estabelecida entre situação final de adequação e harmonia e a inicial de inexperiência, a
relação de causa e efeito dá sentido de orientação e significação à didática do movimento de
aprendizagem. Na era moderna, a narrativa de formação corresponde a um estágio sócio-
histórico da relação entre o indivíduo e a sociedade, gerando o sentimento de identificação
pessoal atrelado ao percurso profissional.
Até os anos 70 do século XX, as narrativas biográficas apresentavam um padrão com
estrutura linear, contínua e orientada na qual a atividade profissional tinha a função de
integração e organização. Esta fase responde à concepção de que o indivíduo tem um lugar na
sociedade e que deve encontrá-lo através da experiência. No período posterior, denominado
pós-modernidade, as sociedades ocidentais iniciaram o processo de transformação que alterou
profundamente suas estruturas. O percurso biográfico e as atividades sociais são conduzidos
por relações temporárias e reversíveis de inserção em subsistemas como os de classe social e
gênero, que reduziu a capacidade de organizar uma narrativa de vida unificada.
A mudança da heteronímia para a autonomia, assim como a passagem do moderno ao
pós-moderno, trazem consequências como a perda de parâmetros e hierarquia. O compêndio
dessas transformações, unidos às descontinuidades dos percursos pessoais e profissionais
contribuem para a diversidade de tipos biográficos na atualidade. Surgem novos e variados
tipos de narrativa de representação biográfica às quais recorre o homem pós- moderno. Uma
5 Bildungsroman é a forma especificamente alemã do romance de educação, ideia de formação através da
vivencia. Podemos citar como um dos mais célebres exemplos a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister(1796), de Johann Wolfgang Von Goethe.
33
vez que são indissociáveis as experiências pessoais e as contribuições do meio social do qual
somos portadores, a consciência reflexiva do indivíduo pós-moderno é resultado dessa tensão
que resulta na construção da imagem de si e seu lugar na sociedade, a construção de figuras e
valores desse mesmo mundo.
Sob a denominação de escritas do eu, diferentes tipos de textos como confissões,
memórias, cartas e autobiografias são exemplos de narrativa biográfica que, além de
socializar a experiência individual, refletem a necessidade tornar explícita a complexidade
que envolve a criação da imagem que o sujeito tem de si e do seu entorno. Dessa forma, a
autoficção se torna um meio para realizar o desejo de narrar experiências vividas, conflitos e
inquietações sem ônus autobiográfico. Em La verdad de Agamenón(2006), o autor Javier
Cercas faz o jogo de esconder e mostrar, questionando a figura do escritor e a posição do
mesmo na produção cultural na pós- modernidade.
2.1 AUTOBIOGRAFIA, CONFISSÕES E MODERNIDADE
Em termos literários, a passagem da época moderna à pós-moderna significou a busca
de novas formas literárias que demonstrassem as novas configurações sociais e culturais. As
relações entre o homem e o mundo, a natureza crítica da ficção e os elementos a ela
vinculados se converteram em solo fértil para narrativas que mesclam realidade e ficção na
construção de novas subjetividades. A autoficção constitui uma estratégia literária capaz de
sugerir a identificação irônica do autor com o narrador, transgredir a autobiografia e a
referencialidade do nome próprio, uma vez que imita e subverte o pacto autobiográfico
proposto por Philippe Lejeune (1975). Por se tratar de uma estratégia relativamente recente,
os teóricos discutem ainda se a autoficção seria um gênero autônomo ou uma categoria em
formação.
Independente da concepção adotada, é importante ressaltar que proposta autoficcional
reforça a ideia da fragilidade identitária e a produtividade da confusão
autor/narrador/protagonista. Seu centro de discussão é a confusão entre a pessoa real e o
personagem escritor, a figura pública. A autoficção induz a reflexão sobre os limites entre o
referente e sua representação literária, em outras palavras, ficção e realidade.
Antes de iniciar o estudo da autoficção é necessário revisar e compreender os alguns
dos problemas teóricos acerca da autobiografia, gênero com o qual compartilha
procedimentos. O debate sobre o ato autobiográfico está orientado em diversas direções
porque são muitos os problemas teóricos que o tema confronta tais como a referencialidade, o
34
estabelecimento do pacto entre autor e leitor, recuperação do passado e a estruturação do eu.
Todos esses estudos buscam apoio em ciências como a história, antropologia, psicologia e
filosofia para desenvolver sua argumentação e garantir sua validade. Por isso, convém
comentar brevemente as principais propostas que tentam responder às indagações acerca
desse tipo de escrita e que consideramos pertinentes a nossa análise. Em seguida, vamos
observar a teoria de Lejeune por ser aquela o ambiente propício para o desenvolvimento da
autoficção.
O primeiro grande modelo de obra autobiográfica surge na Idade Média, século IV,
com a obra Confissões (AD 397 ou AD 398) de Santo Agostinho. Embora teóricos não
tenham chegado a um consenso sobre o objetivo do escrito ou a existência de um elemento
unificador, é possível perceber diversos temas conectados entre si através de toda a obra. A
finalidade original poderia ser descrever a conversão de Agostinho do maniqueísmo ao
cristianismo católico. Outra teoria aponta para a possibilidade da obra ser a breve história das
origens do monacato africano. Entretanto, há aqueles que defendam com a razão o
reconhecimento da atuação da graça divinal na salvação alma humana e, com isso, a
utilização de episódio da própria vida para ilustrar a postura teológica.6
Confissões é amplamente estudada por destacar as complexas relações entre o
indivíduo e a sociedade, demasiado problemática ainda hoje, mesmo que o interesse se
estenda somente ao reconhecimento de sua vida ilustre em uma antropologia teológica que
não oferece a um leitor mais curioso informações biográficas bastante relevantes. Adquire
simbolismo porque seu conteúdo expõe a eterna disputa entre a vida terrena e a
espiritualizada, a constituição interior do ser humano e a constituição externa da sociedade.
Ainda que não proporcione uma autobiografia na acepção contemporânea da palavra, Santo
Agostinho contempla pontos fundamentais que serviram de base para o desenvolvimento da
autobiografia como gênero literário.
Antes de comentar as teorias sobre a autobiografia vamos tentar localizá-las dentro de
uma linha evolutiva que compõe a palavra. O empenho em estabelecer traços constitutivos da
autobiografia faz com que muitos autores se dediquem ao seu estudo. Assim, seus pontos de
vista e, consequentemente, suas conclusões são diferentes quanto aos problemas levantados
pelo gênero. No ensaio Problemas teóricos de la autobiografia, como aponta a postura crítica
de Loureiro (1991), são variados os recursos aos quais recorrem os teóricos para justificar a
6 Cf. STREFLING, Sergio Ricardo. A atualidade das Confissões de Santo Agostinho. In: Telecomunicação,
Porto Alegre, v37, nº 156, págs 259-272, junho de 2007. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/fefid/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2707/2058. Acesso:17/01/2011.
35
capacidade cognitiva da autobiografia. Como apoio para sua argumentação W. Dilthey recorre
a História; Georges Gusdorf, Antropologia; Phillipe Lejeune, ao Direito, Elizabeth Bruss se
fortalece nas Teorias da Linguagem e Paul Eakin se baseia na Psicologia para estabelecer
diálogos entre as ciências, a fim de explicar as articulações do sujeito como o mundo, a
referencialidade, a constituição do sujeito, a expressividade e etc.
No ensaio citado, Loureiro segue uma linha da investigação e comenta os críticos e as
teorias das três etapas que correspondem à formação do vocábulo autobiografia: autos, bios e
grafé. A primeira etapa contemplada é bios que diz respeito a reconstrução da biografia e
releitura da experiência, não apenas considerando os dados, mas na interpretação do entorno
no qual está inserido o autobiografado. O foco está na relação entre texto e história. A etapa
seguinte, autos, está centrada na conexão entre o texto e o sujeito, logo a questão fundamental
será entender de que maneira o sujeito é representado pelo texto e se essa representação é
realmente possível. Nesta fase, o estudo da autobiografia prioriza elaboração que o autor faz
dos fatos no momento em que escreve. A etapa grafé observa a linguagem e o sujeito,
reforçando a ideia de que é impossível captar a totalidade do ser.
Loureiro menciona W. Dilthey como responsável pela inauguração da etapa bios, pois
seu postulado elevou a autobiografia como base fundamental para compreender o processo
histórico de organização da experiência e modos de interpretação da realidade histórica. No
entanto, há tendências díspares no entendimento e interpretação dos problemas suscitados
pela autobiografia. No início dos estudos acerca do gênero autobiográfico, a ênfase foi a
reconstrução da vida e devido a isso as leituras e interpretações das obras autobiográficas
eram realizadas de modo comparativo. Exatidão e sinceridade foram palavras-chave para
investigar em fontes externas ao texto autobiográfico e em que medida ele era uma
representação do momento histórico.
Buscava-se encontrar a interseção entre aquilo que era narrado e os elementos
externos ao texto, ou seja, comprováveis fora do texto. O objetivo era compreender e
reconstruir um dado momento histórico, perceber e conhecer, através do texto, os valores e as
condições sociais de desenvolvimento do homem.
Em 1956, Georges Gusdorf desloca a base da discussão e a autobiografia passa a ser
entendida como uma leitura da experiência. Uma vez que, se não é possível reconstruir o
passado tal qual ocorreu, tampouco há a possibilidade de alcançar objetividade. O estudioso
observa que ao eu que vivencia a experiência é acrescentado um segundo eu criado pela
experiência da escrita e conclui que o mote da autobiografia deve ser: “Crear, y al crear ser
creado.” (GUSDORF apud LOUREIRO,1991,p.3)
36
Na linha evolutiva do estudo da autobiografia, autos não prioriza o fato passado, mas
elaboração do autor no momento da escrita. A linguagem é mediadora entre autor, texto e
leitor e esse fator nos leva a tentar entender em que medida ela serve não só como instrumento
para o sujeito, mas também como parte fundamental para sua construção. A memória
funciona como elemento fundamental no diálogo entre passado e presente na atribuição de
sentido.
Na etapa bios, há rupturas nas estruturas que tem o texto como história e o autor como
proprietário e portador de uma visão privilegiada. O leitor passa a ser um intérprete e não
receptáculo. Neste ínterim, surgem os trabalhos de Phillipe Lejeune e Elizabeth Bruss que
valorizam a atuação do leitor e que versam sobre a necessidade de dar uma definição e reunir
características gerais do gênero. Ambos insistem na coincidência nominal entre autor,
narrador e personagem essencial e peculiar na identificação da autobiografia. Também no
decorrer desta etapa, Olney chama atenção para autocriação do autobiógrafo no momento
também destacando a necessidade da participação do leitor.
A etapa grafé trata dois problemas: a linguagem e o sujeito. De um lado, linguagem
cria uma relação paradoxal, pois é através dela que o homem transmite sua experiência e, ao
mesmo tempo, o torna consciente de que a palavra não capta a totalidade do ser. Outra
questão é o desdobramento do eu, como narrador e objeto narrado. Dessa forma, o texto
autobiográfico, ao invés de reproduzir ou criar uma vida, na realidade, leva à desapropriação.
O texto não responde às indagações do sujeito e cria novas.
Paul de Man é um dos grandes expoentes dessa etapa. Sua teoria sustenta que os
obstáculos clássicos das teorias provêm do equívoco daqueles que consideram a biografia
como produto mimético de um referente. Para o crítico, autobiografia não é um gênero, mas
uma forma de textualidade que possui uma forma do conhecimento e da leitura.
Conforme Georges Gusdorf, autobiografia é um gênero literário que surge como
produto tardio do ocidente a partir do Renascimento. O homem desse período, consciente de
sua individualidade, procura dar conta de si mesmo tendo em mente seus atos e suas
motivações internas. Esta visão entende que o ato autobiográfico é resultado de preocupações
metafísicas e que, por isso, está associado à doutrina cristã de exame da consciência que
defende a confissão e consequente liberação da culpa.
O valor dado ao estudo do autobiográfico assume a perspectiva histórica e
antropológica para o estudioso. Acerca da posição teórica de Gusdorf, Betina Pacheco
acrescenta que , o autobiógrafo recorda sua vida lhe outorga transcendência histórica quando
37
toma a si mesmo como modelo, medida e valor expostos no texto sem desconhecer as
“implicações psicológicas” (op. cit, p.40).
A busca do ser humano no interior de si remete ao mito de Narciso, que para a
psicanálise é capital na formação da individualidade infantil. No espelho, a criança começa a
esboçar o aspecto essencial da identidade que é separar interior e exterior. “Da mesma forma,
a autobiografia se torna o espelho em que a pessoa reflete sua própria
imagem.”(GUSDORF, 1991, p. 11, tradução nossa) Os valores históricos se antepõem aos
valores literários no sentido de que os primeiros exigem objetividade e os últimos traduzem
um estilo em particular. A interseção entre ambos os valores é o veículo que conduz a busca
de si e é ali que a crítica deve indagar sobre seus significados.
Do ponto de vista literário, a autobiografia pode ser considerada como obra de arte e
edificação do eu, que implica por um lado uma confissão voluntaria de ser fiel à verdade e por
outro, uma autojustificativa. Ao reconstruir e decifrar a unidade de uma vida ao longo do
tempo a memória permite recapitular experiências. A apresentação dos fatos passados é feita
no presente. Isso traz novos significados, diferentes do momento em que aconteceu. Ou seja,
uma “segunda” leitura da experiência. Os obstáculos encontrados pela autobiografia são de
ordem psicológica(a seleção de detalhes e deformação da memória) e ética da imparcialidade.
A constituição do autobiografar deve ser mensurada desde o ponto de vista artístico, por
conseguinte, mais importante que a função histórica e objetiva.
A pertinência da classificação de textos em gêneros literários deve ser, para todos os
efeitos, uma ferramenta para auxiliar no melhor aproveitamento das leituras e facilitar seu
entendimento. O estudo e agrupamento dos textos não pode ser um critério rígido e inflexível
uma vez que a uma mesma estrutura podem ser atribuídas várias formas e funções. No estudo
Actos literários, Elizabeth Bruss leva em consideração a dificuldade da condição da
autobiografia devido à multiplicidade de formas nas execuções individuais e a reconhece
como gênero representativo tanto em continuidade como em ruptura. As perspectivas de
continuidade e ruptura são observáveis na história literária com a queda no uso da epístola e
da apologia como gêneros independentes. Ambas foram assimiladas pela autobiografia. Da
mesma forma, o realismo do romance burguês despojou da autobiografia o uso da primeira
pessoa como perspectiva de enunciação.
Bruss considera que o ato autobiográfico está condicionado pelas escolhas do autor e
do leitor quanto ao estilo, ao tema e às funções do texto. Reunidas essas características, que
são definidas pelo contexto de realização do ato, cada época reflete sua concepção de
38
autobiografia e permite estabelecer as expectativas do receptor em relação à obra. Dessa
forma recorre à linguística para aproximar a funcionalidade da linguagem e a literatura.
As ações de afirmar, ordenar, prometer e perguntar são realizadas por intermédio da
linguagem em contextos determinados. A literatura possui também um sistema de ações
cumpridas pelos gêneros, daí que num ato literário devem ser identificados papéis e
propósitos dentro de uma comunidade de leitores e escritores. Tendo em vista que os gêneros
literários são variáveis, para que haja autobiografia, é necessário reunir alguns traços
genéricos regidos pelas regras e convenções. Baseada neste fator Bettina Pacheco afirma:
“Sin olvidar que los géneros son variables y que el acto autobiográfico se realizará
siempre dentro de su naturaleza continua a la vez cambiante. De ahí que en nuestro
tiempo y continuidad literaria se pueda considerar a la autobiografía como un
género autónomo con sus funciones específicas, sobre todo porque puede
distinguirse de otros actos ilocutórios” (PACHECO, 2001, p. 50)
Se a autobiografia pertence ao sistema simbólico que configura nossa concepção de
literatura e cultura, é necessário estabelecer regras gerais para as funções que os textos podem
assumir que, de acordo como o estudo de Bruss são: o autobiógrafo representa o duplo papel
de ser responsável pela criação e organização de seu texto e ser tema do mesmo; aquilo que
afirma no texto tem valor de verdade ainda que se possa comprovar ou duvidar de sua
autenticidade; independente da recepção ou credibilidade que o leitor conceda ao texto, o
autobiógrafo dará a entender que crê naquilo que afirma.
Neste prisma, o ato autobiográfico está determinado pelo meio no qual se realiza, pela
comunidade literária e tradição cultural no qual se inscreve. Ainda que recebam tais
delimitações, autores e leitores de autobiografia contribuem para sua renovação do ato, pois
não há apenas novas obras mas também novas formas de lê-las. A autora completa sua
reflexão contrastando as autobiografias de John Bunyan, Boswell, Thomas de Quincey y
Vladimir Nabokov por serem de diferentes períodos históricos e pela articulação do ato
literário com as atitudes e esperanças dos autores e que provocam conceitos e interpretações
distintos sobre o ato autobiográfico.
A conclusão do estudo é que, ao analisar a linguagem adotada nos textos
autobiográficos, podemos compreender melhor o ambiente no qual foram produzidas as obras.
Elementos como o uso de determinadas pessoas gramáticas, títulos, as formas como os
autores buscavam envolver o leitor são índices que marcam as posições frente a discursos e
interpretações em uma época, definem atos de escrita e leitura.
39
Em contrapartida, Paul de Man confere à autobiografia uma posição de menor valor
em relação à tragédia e à comédia e entende como limitantes algumas das posturas teóricas
adotadas, principalmente as que a elevam à categoria de gênero literário. Seu posicionamento
está baseado na dificuldade de definições teóricas que a seu ver são ainda experimentais. A
teoria da autobiografia está marcada por uma série de interrogações e aproximações
problemáticas.
Outro fator relevante na discussão proposta por Paul de Man é que a infrutífera
distinção entre autobiografia e ficção. Para o estudioso, não é a vida que produz a
autobiografia, mas a autobiografia que produz a vida. O interesse do autobiógrafo não é ser
veraz, mas demonstrar que a totalidade é impossível. Se partimos da ideia de que o autor está
limitado pelos recursos e pela tradição escritural da época e da sociedade na qual está imerso,
é possível que projeto autobiográfico seja definitório para sua vida. Dessa forma, “la
autobiografía no es un género o un modo, sino una figura de lectura y entendimiento que se
da, hasta cierto punto, en todo texto.” (Op. cit., p. 114)
Nesta ótica, o problema da autobiografia está relacionado à linguagem e significação.
A linguagem entendida como figura, metáfora ou prosopopeia, não é mais que uma
representação, por conseguinte, não corresponde à realidade. Ao reelaborar as experiências
vividas, evocadas pela memória, o autor cria ficções e confere novos e significados diferentes
daqueles que os fatos tiveram no momento em que foram vivenciados.
No processo de recuperação da vida, paralelamente, revela e oculta a face do autor.
Paul de Man parece admitir que autobiografia é composta por elementos que não obedecem a
realidade ou verdade dos fatos, por isso, é uma figura. Uma figura é uma imagem construída
pelo autor, considerando a visão e o juízo que faz de si mesmo. Ao mesmo tempo, desfigura
porque é uma imagem distorcida que não corresponde à pessoa real.
Paul John Eakin afirma que a postura de Paul de Man se soma àquelas que versam
sobre problemas de identidade do eu que escreve. Dada a impossibilidade de existir um
sujeito autônomo e transcendente, surge a posição extrema da morte da autobiografia. Sua
argumentação parte da revisão teórica Paul de Man. Compartilhando da ideia de que é
legítima a recriação do eu através da linguagem, ele adere à noção contemporânea de que o
sujeito autobiográfico e a linguagem estão mutuamente unidos na construção simbólica. O
autor destaca ainda Elizabeth Bruss e sua identificação entre o eu e a autobiografia como
estruturas linguísticas análogas.
A proliferação e o interesse acadêmico pela autobiografia não significa que se tenha
alcançado um consenso sobre esse tipo de escrita. Os ensaios de Philippe Lejeune ao longo de
40
30 anos de investigação, além de prova de reflexão e pesquisa, são formas de legitimar o
gênero que foi tido como literatura menor. A teória tem a virtude de tentar fixar pautas
precisas de leitura e escrita para distinguir obras biográficas, autobiográficas, romances e
casos intermediários. A proposta de Lejeune se distingue daquelas que qualificam a
autobiografia como uma forma de ficção ou que decretam sua impossibilidade, haja vista que
não há sujeito estável, unificado ou introspecção verdadeira.
O primeiro livro de Philippe Lejeune dedicado ao tema data de 1971,
L‟autobiographie en France. Além de um inventario de textos autobiográficos com o objetivo
de compreender seu funcionamento, a obra busca legitimar o gênero. Com a mesma
finalidade, Le pacte autobiographique, seu ensaio mais conhecido, se torna um texto
fundamental para todo e qualquer estudo sobre o tema. O rigor e a busca pela neutralidade
traduzem a preocupação com o objetivismo acadêmico.
Em “O pacto autobiográfico”(2008), conforme sua teoria, o delinear da fronteira entre
gênero autobiográfico e ficção está baseado na relação leitor e ato de leitura, ou seja, Philippe
Lejeune tem como base a perspectiva do leitor para estabelecer o caráter contratual do gênero
autobiográfico. A definição de autobiografia da qual parte o autor põe em jogo elementos
pertencentes a quatro categorias diferentes e somente o cumprimento de todas elas qualifica
uma autobiografia. A definição e suas características são:
“Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade.
1- Forma da linguagem- a) narrativa, b) prosa.
2- Tema tratado- vida individual, história de uma personalidade.
3- Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e
do narrador.
4- Posição do narrador- a) identidade do narrador e do personagem principal; b)
perspectiva retrospectiva da narrativa.” ( LEJEUNE, 2008, p.14)
O corpus analisado por Lejeune parte das autobiografias clássicas, aquelas que são a
maioria do gênero, compostas por textos em primeira pessoa (Eu). A condição primordial para
que um texto seja lido como autobiográfico é que autor-narrador-personagem sejam
identificados pelo leitor como a mesma pessoa, independente da forma gramatical a partir da
qual emita seu discurso (Eu, Tu, Ele). É importante advertir que, embora não se tenha relatos
escritos inteiramente em segunda pessoa (Tu), esse tipo de narrativa marca a diferença entre o
sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, que será tratado como destinatário da
narrativa. A proposição do estudioso chama a atenção para as distintas consequências geradas
41
pelo uso da terceira pessoa (Ele) como efeitos de contingencia, desdobramento ou
distanciamento.
Quando englobamos ao texto o nome do autor, passamos a dispor de um critério
textual geral, que será uma questão profunda no estudo lejeuniano. A expressão pacto remete
à ideia que o gênero autobiográfico é contratual porque é um acordo implícito entre autor e
leitor que determina o modo e os efeitos atribuídos a um texto. Assim, este tipo de texto é ao
mesmo tempo uma forma de leitura e um tipo de escrita. Neste estudo são apresentados quatro
tipos de pacto autobiográfico, um que é a tônica do ensaio e outros três que lhe servem de
apoio.
O pacto autobiográfico é a afirmação identidade do narrador e personagem principal
da história no texto que remete ao nome do autor, que consta na capa do livro. Essa noção de
pacto foi a solução encontrada para estabelecer distinções entre os discursos fictício e factual,
posto que, conforme a declaração do próprio estudioso, não há diferenças estrutural entre o
texto autobiográfico e romance.
O pacto autobiográfico funciona como um contrato estabelecido entre autor, que se
compromete a ser sincero em sua narrativa vital e leitor, que aceita como verazes as
informações contidas no texto. Respondendo ao principio de identidade, inferimos que aquele
que diz eu é ao mesmo tempo autor, narrador e protagonista e a mesma pessoa que assina o
livro e que se responsabiliza por seu conteúdo.
Esse tipo de pacto pode ser estabelecido de forma implícita ou explícita. A forma
explicita não requer comentários. A implícita se dá de duas formas. Uma delas é a utilização
de títulos ou da primeira pessoa gramatical, que remetem ao nome do autor. Outra forma de
identificação que pode ser utilizada é a seção inicial onde é selado o compromisso com leitor,
uma espécie de declaração.
É no nome próprio que pessoa e discurso se articulam e, portanto, é em relação ao
nome que devem ser situados os problemas da autobiografia, de acordo com teoria de
Lejeune. Esse elemento está ligado pela convenção social ao comprometimento de
responsabilidade de uma pessoa real cuja existência é comprovada e verificável pelo registro
em cartório. Outro ponto que merece destaque é que construção identidade como
personalidade individual, familiar e social que se realiza através do nome e dessa forma:
“Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só
tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define
como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e produtor
de um discurso.” (LEJEUNE, 2008, p.23)
42
Simetricamente, Lejeune (2008) afirma que o pacto romanesco vai de encontro ao
autobiográfico. Há a prática patente de não identidade, ou seja, mesmo que haja semelhanças,
autor e personagem não têm o mesmo nome. Outro ponto que merece destaque é o atestado de
ficcionalidade, preenchido geralmente pelo subtítulo romance. Essas são duas formas de
distinguir romance autobiográfico e autobiografia.
Em sua proposta figuram ainda outros dois pactos que se referem às articulações entre
autobiografia, biografia e ficção, o pacto referencial e o fantasmático. Autobiografias e
biografias são tipos de textos que fornecem informações a respeito de uma realidade externa
ao texto e, por isso, podem ser submetidas a verificações, são textos referenciais. O pacto
referencial é, portanto, a relação entre as declarações do texto e sua comprovação na realidade
externa ao texto. Enquanto o pacto referencial tem o objetivo de chegar a uma imagem do
real, o pacto fantasmático convida a uma leitura do romance como uma forma de desvendar
os fantasmas do indivíduo. Daí a ideia propagada do romance ser mais verdadeiro que a
autobiografia.
Uma vez esclarecidos os pactos da teoria lejeuniana, expomos na sequencia o quadro
classificatório, (quadro 1, p. 23), no qual o autor demonstra uma grade de possíveis
combinações. Os eixos determinados são o nome do personagem principal igual ou diferente
ao do autor e a natureza do pacto, romanesco ou autobiográfico. São duas as casas vazias, que
correspondem a casos excluídos por definição. Interessa-nos tratar daquela que dá origem à
autoficção, é dizer, a identidade nominal entre autor e o personagem principal.
Quadro 1 – Quadro classificatório (LEJEUNE, 2008, p.28) Nome do personagem
Pacto
= nome do autor = 0 ≠ nome do autor
Romanesco 1 a
Romance
2 a
Romance
= 0 1 b
Romance
2 b
Romance
3 a
Autobiografia
Autobiográfico 2 c
Autobiografia
3b
Autobiografia
O ponto cego dessa teoria levanta uma questão: o herói de um romance declarado
como tal poderia ter o mesmo nome do autor? Conforme Lejeune, “nada impediria que a
coisa existisse e seria talvez uma contradição interna da qual se poderia obter efeitos
interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo me vem à mente(...)” (LEJEUNE, 2008, p.
31). Em textos posteriores como O Pacto Autobiográfico (Bis), o estudioso demonstra uma
postura mais flexível que admite ambiguidades e transições.
43
Retomando sob novas bases a combinação do tipo de pacto com o emprego do nome e
contando com um exemplo, Ph. Lejeune preenche umas das casas vazias com o romance Fils
(1977). Dessa forma a autoficção tornou-se uma das formas de concretizar o desejo do autor
de narrar a si próprio sem o ônus da autobiografia e aproveitando a produtividade do jogo de
esconder e mostrar. A construção do sujeito pleno é ilusório, mas o desejo de falar sobre si é
real e está presente em autores de autobiografias e de autoficções.
2.2 A AUTOFICÇÃO E A PÓS-MODERNIDADE
O uso da autoficção como estratégia literária é um forte indício do impulso
autobiográfico na literatura contemporânea. Serge Doubrovsky (1977), criador do neologismo
e do primeiro romance considerado autoficcional – Fils, é responsável pelo preenchimento de
uma das lacunas existentes nos estudos realizados sobre a autobiografia por Philippe Lejeune.
A autoficção que consiste em tomar as características da autobiografia e do romance, dois
grande gêneros narrativos, suscita a reflexão sobre a figura do escritor e as transformações
ocorridas no processo de escrita.
Dentre vários teóricos como Vincent Colonna, Jacques Lecarme, Philippe Gasparini,
Philippe Vilain, que, atualmente, discutem as questões referentes ao gênero, recorremos à
teoria de Manuel Alberca(2007) por ser um estudioso que trabalha com a área de
concentração de nosso interesse, literaturas hispânicas. Desde a publicação do artigo
homônimo do livro utilizado como nossa base de estudo, El pacto ambíguo: de la novela
autobiográfica a la autoficción, na década de noventa, Manuel Alberca tornou-se uma
referencia obrigatória para investigação do campo autoficcional. Seu estudo combina história
literária, teoria e uma visão do panorama artístico, cultural e intelectual em que se desenvolve
a autoficção na Espanha.
Nesta obra, Alberca define e caracteriza a prática da autoficção espanhola buscando
relacioná-la com relatos afins. O teórico nos guia pelo território entre os pactos romanesco e
autobiográfico, flexibilizando as fronteiras entre ambos. Seu interesse reside nas escritas do
eu que estão submetidas ao pacto ambíguo: o romance autobiográfico, a autoficção e
autobiografia fictícia. Ao observar as nuances entre essas formas textuais de expressão da
subjetividade criativa do autor, Alberca tenta aperfeiçoar os limites entre as narrativas para
prevenir o uso indiscriminado dos termos.
44
O envolvimento do autor na obra altera a percepção que o leitor tem da realidade e da
ficção, que implica a abolição das fronteiras canônicas dos níveis entre ambas esferas. O
cruzamento dos gêneros configura o espaço narrativo dos perfis contraditórios porque
conforma o distanciamento entre autor e personagem do pacto ficcional e contraria o principio
de veracidade do pacto autobiográfico. Sua proposta tipológica está baseada na
permeabilidade dos limites de modo que o campo autoficcional é resultado da implicação,
integração ou superposição do discurso fictício e autorreferencial que gera a autoficção
biográfica, a auto bio ficção e a autoficção fantástica.
Manuel Alberca parte da Era burguesa como marco fundamental da representação do
autor em sua obra. No século XIX, o escritor e os artistas de forma geral se consagram como
figuras de maior relevância e prestígio social porque encarnam o idealismo e o individualismo
burguês. A meta do artista moderno consiste em fazer de si mesmo e de sua vida uma obra de
arte e, dessa forma, essa figura e sua subjetividade são matéria-prima da criação artística.
Construir uma personalidade artística significa também transgredir barreiras sociais e
desafiar instituições, criando a atmosfera e modelos de rebeldia e insatisfação e, nesse
contexto de valorização, a assinatura do artista adquire valor mercantil. A necessidade de se
fazer presente e notável desencadeia o processo confundir entre vida pública e privada e
abolir a intimidade. A difusão da imagem pública e de fácil reconhecimento e o conceito de
autoria compõem a estratégia de promover o artista como proprietário e beneficiário
econômico bem como responsável civil de sua produção.
Após a Segunda Guerra Mundial, já no século XX, sob maior pressão e interesses
mercantilistas, a arte e a literatura se convertem em meios para difundir a imagem e a
assinatura do artista, que significa o objeto artístico mais valorizado que o próprio conteúdo
da obra. Em consequência há a perda da imagem heroica e o artista passa a ser visto como
uma pessoa comum e sem maiores atrativos. Exemplo, disso são os textos nos quais o escritor
é improdutivo, frágil ou conformado como uma carreira burocrática.
Em A morte do Autor, Roland Barthes defende a ideia que o autor é a expressão da
ideologia possessiva e egoísta do individualismo burguês que, portanto, limitava a livre
circulação da obra e seus significados. Personagem produzido pela sociedade moderna e
capitalista, a figura do autor não deve ser considerada como a origem do texto e sim como
mais um reflexo da forma de atuação a expressão do cenário dominante. Retirou-se a possível
autoridade do autor para dá-la ao leitor. Devido a grande influencia do ensaio, o
individualismo se torna mal visto:
45
“Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas,
oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em
paródia, em contestação, mas o lugar onde se reúne, e esse lugar não é o autor, como
se disse até o presente, é o leitor: é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que
nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto
não está em sua origem, mas em seu destino, mas esse destino não pode mais ser
pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é
apenas alguém que mantém em um único campo todos os traços de que é constituído
o escrito.” (BARTHES, 1988, p. 70)
Em resposta à posição extrema, Michel Foucault (1969) indaga sobre ¿Qué es un
autor? e demonstra os diferentes pesos e valores atribuídos a presença da assinatura no
decorrer dos tempos. Na Idade Média, os textos adquirem valor de verdade com a condição de
estar marcados como o nome do autor. Ao contrario, no século XVII e XVIII, o campo
científico lança mão do nome apenas para batizar novas descobertas.
Sua sugestão é entender o autor como uma chave de recepção, uma função-autor,
signo e referencia que ajuda a compreender o texto, não sua origem ou depositário de seu
sentido original. Na literatura, exerce um papel em relação ao discurso, determina a forma
como o texto deve ser lido e designa. O autor é, sobretudo, uma função que limita os poderes
do leitor. A necessidade da figura é justificada como uma forma de evitar a proliferação
descontrolada de sentidos e a postura arbitrária da crítica:
“Una carta privada puede un firmante, pero no tiene un autor; un contrato puede
tener un garante, pero no tiene un autor. Un texto anónimo que leemos en la calle
sobre una pared tendrá un redactor, no tendrá un autor. La función autor es pues
característica del modo de existencia, de circulación y de funcionamiento de ciertos
discursos en el interior de una sociedad.” (FOUCAULT, 1969, p. 46)
Na literatura espanhola, o processo de recuperação do escritor é desigual e
contraditório porque oscila entre momentos de exaltação e esvaziamento da figura e neste
contexto, a autoficção adquire importância nos últimos trinta anos. O ato autobiográfico
reativa cenário contraditório. Por um lado, há o choque entre a postura de desconstrução da
noção tradicional de autor e, por outro, a necessidade que o leitor sente da presença autor e
sua figura textual como chave interpretativa.
A subjetividade e a personalidade se convertem em objeto mercantil;
consequentemente, mudamos ou adquirimos novas identidades por razões igualmente
mercantis. O auge da autoficção é a interseção entre a propagação da ideia de morte do autor e
a o auge da autobiografia. A partir dos anos setenta houve uma expansão no fenômeno
autobiográfico nas literaturas ocidentais, que segue os ditames de uma sociedade orientada ao
prestígio do individualismo. Na Espanha, este momento coincide com o final do franquismo,
46
o processo de transição democrática e desencantos das causas políticas e, com isso, alguns
escritores produzem material de teor mais íntimo e pessoal. O propósito fundamental do livro
é descrever os principais aspectos constituintes da autoficção e explicar suas conexões com o
campo literário e cultural espanhol, levando em consideração sua relação com outros relatos
novelescos e autobiográficos.
O autor de autoficção se protege sob um pacto narrativo que, em muitos pontos,
configura um antipacto autobiográfico, que simultaneamente leva à maior liberdade de
imaginação e maior valorização do pacto ficcional. Não se deve perder de vista que o pacto
ambíguo das autoficções questiona tanto a referencialidade externa das autobiográficas quanto
a autonomia dos romances.
O recurso da onomástica adquire valor funcional no estatuto narrativo e na pragmática
da leitura da autoficção. O nome é também suporte da individualidade, nos assegura direitos
civis, sendo também um elemento de controle social uma vez que é através dele que são
imputadas responsabilidades jurídicas. A veracidade que pressupõe o autobiográfico é a
característica mais específica diante dos textos de ficção. Mesmo pertencendo ao campo
literário e podendo ser reconhecida uma estrutura artística, a autobiografia está inscrita nos
campos da ética e da justiça que acarretam consequências reais fora do texto.
No artigo Verdade, mentira e ficção em autobiografias e romances autobiográficos,
Ruth Klüger indaga sobre o momento em que nossa sensibilidade estética e o sentido de
realidade se dividem. A verdade e a mentira de textos regidos pelo pacto autobiográfico não
são uma questão de estilo ou adaptação literária porque a difamação e perjúrio, além de causar
danos a outrem, põem em risco o prestigio do escritor.
Os romances do eu são um tipo peculiar de autobiografias e/ou ficções consideradas
com terra de ninguém entre dois pactos. Tendo em vista a necessidade de descrever o estatuto
da autoficção e das formas vizinhas a ela, é necessário relacionar em suas coincidências e
divergências entre os pactos narrativos mais importantes.
O pacto autobiográfico, conforme a teoria de Lejeune, é concebido na relação dialogal
entre autor, narrador e texto. Nesta relação, o autor propõe que se leia e interprete as
informações como fidedignas porque ele se compromete em narrar a verdade. Neste contrato
unilateral têm elevada importância os para textos, os dados textuais e extratextuais. É o
conjunto coeso desses elementos que compõem o cenário que autoriza a autobiografia como
registro factual.
A modo de simplificação, Philippe Lejeune esclarece que “una autobiografía no es
cuando alguien dice la verdad sobre su vida, sino cuando dice que la dice.” (apud
47
ALBERCA, p. 66) Implicitamente, além de anunciar e prometer a verdade, aquele que
escreve solicita a confiança daquele que lê. A fórmula funde os princípios de veracidade e de
identidade, pois autor, narrador e protagonista compartilham a mesma identidade, reafirmando
o desejo de convencer o leitor de que o eu que escreve é o mesmo que assina o livro, portanto,
é responsável por se conteúdo.
O nome próprio é um elemento que recebe grande destaque na teoria de Alberca
porque está intimamente ligado à construção de nossa personalidade individual e social,
fundamental na distinção entre autobiografia e romance:
“La importancia de la identidad nominal no es en la autobiografía, ni tampoco en la
vida cotidiana, una mera cuestión de registro civil, sino que es un tema de profundo
calado, pues no existimos socialmente hasta que no detentamos una identidad
administrativa y, por consiguiente, un nombre. Nuestra identidad se constituye en
torno a un nombre y el afán de muchos hombres de hacer famoso el suyo, además
de dotar de estructura argumental sus vidas, se convierte en el signo del ascenso y
el logro sociales.” (ALBERCA, 2007, p. 68)
As autoficções e demais romances do eu podem ser analisadas também a partir da sua
relação como o pacto ficcional. Em movimento contrário ao da autobiografia, o autor se
distancia do narrador, cedendo a ele seu lugar e função na narrativa. O romancista vai
gradativamente desaparecendo o que implicitamente pode ser tornar uma declaração de não
responsabilidade, ou seja, não pode haver reclamações ou acusações que recaiam sobre ele.
No romance, podemos citar nome como dado distintivo. Ainda que haja parentesco
entre os nomes, o autor não é o herói do relato. Mesmo que dados biográficos do escritor
sejam identificados sob o disfarce do personagem fictício ou que os se percebam
aproximações nominais, o parecido não é igual em termos de identidade. Todo relato de
ficção, seja romance ou conto, é narrado a imagem e semelhança da realidade. O leitor busca
coerência de ordem estética e não factual:
“El pacto de ficción nos deja mucho más libres, no tiene sentido preguntarnos si es
verdadero o no, nuestra atención no está focalizada en el autor, sino en el texto y la
historia, de la que podemos alimentar más libremente nuestro imaginario.”
(ALBERCA, 2004, p. 272)
O romancista sabe a história que conta é literalmente falsa, entretanto, engendra
recursos que para torná-la o mais verossímil possível. Por sua vez o leitor, mesmo sabendo os
dados da narrativa romanesca são irreais, suspende sua incredulidade e os recebe como
possíveis. A informação para textual da declaração genérica facilita a adesão ao pacto
ficcional.
48
O autor de autoficções questiona os princípios do eu do romance e do eu da
autobiografia. Alberca distingue e põe em evidencia as três mais importantes modalidades de
romances do eu que guardam funções e significados diferentes: a autobiografia fictícia, o
romance autobiográfico e a autoficção. Os critérios utilizados são a identidade nominal
(explícita ou implícita) e grau de proporção da mescla dos pactos (autobiográfico e ficcional).
A autobiografia ou memória fictícia tem como pioneira a obra Lazarillo de Tormes.
Conforme Puerta Moya, na tradição cultural espanhola, o romance picaresco é a manifestação
do direito da burguesia urbana de narrar sobre si mesma. Tais romances evidenciam o caráter
ficcional e retórico coformado com o uso da primeira pessoa, antecipando e consolidando
técnicas de narração e discurso no intuito de organizar textualmente o curso vital. Dessa
forma, romance de pícaros serve como protótipo de modelo para compreender a criação de
uma história baseada em uma vida real.
Lazarillo de Tormes é uma obra anômina, em forma epistolar que data do século XVI
e sugere várias interpretações e significados. Uma das sugestões do romance picaresco é que,
independente do estrato social, qualquer indivíduo pode narrar sua história e dessa forma se
desloca o olhar da biografia das grandes personalidades para as existências “irrelevantes”.
Ideologicamente, está se formando um eu cuja diretriz é o individualismo que oscila entre a
realidade autobiográfica e a ficção, que perpassa as manifestações artísticas e ganham novos
contornos nos dias atuais.
Naquilo que concerne à simulação, encontramos correspondência entre Lazarillo e os
romances de primeira pessoa, pois ambos adotam os mesmos procedimentos: a identificação
narrador personagem através do uso do pronome eu, simulação de uma história real; a forma
de autobiográfica de retrospectiva contando a vida ou episódios dela; a composição
personagem com elementos biográficos criados.
Alberca afirma que as autobiografias ou memórias fictícias costumam trazer no título
o indicativo referente à vida e à indicação do nome do personagem narrador como a
Autobiografia del General Franco, de Manuel Vásquez Montalbán e Memorias de Adriano,
de Ramón de Valle-Inclán. Em ambos os casos não se trata de um texto histórico, mas da
invenção de uma vida íntima do personagem feita pelo romancista, que goza de liberdade para
representar pensamentos e sentimentos.
O estudo dos romances autobiográficos é mais complexo pela variação de vozes
narrativas e possíveis nomes, porque contempla narrativas em primeira ou em terceira pessoa
anônimas ou com nomes expressos. É necessário levar em conta o conteúdo do relato, ou seja,
é fundamental ter conhecimento sobre a biografia do romancista para identificar o
49
autobiografismo do texto. Quando o narrador permanece inominado, a falta de indicação para
textual acerca do gênero narrativo, se romance ou autobiografia, aumenta a vacilação do leitor
diante do relato. Quando o protagonista do romance tem nome distinto do autor se acentua o
distanciamento que é próprio do romance e o caráter fictício é também ratificado, mesmo que
do ponto de vista argumental incorpore material biográfico do autor.
Podemos situar como pertencentes ao pacto ambíguo desde o romance histórico
clássico até falsos relatos biográficos ou pseudo-históricos, que fundem fatos históricos e
inventados. Essa foi a escolha de Javier Cercas em Soldados de Salamina, cujo narrador
protagonista é homônimo do autor, com simulada com ingenuidade que seu romance será um
relato real. Apesar de reclamar uma leitura ficcional, o romance recomenda a observação dos
fatos históricos, pois aspira revelar a verdade histórica que permaneciam o texto e a relevância
real ou simbólica dos personagens: o reconhecimento dos heróis anônimos da Guerra Civil
Espanhola que como Miralles, permaneceram à margem.
Na autobiografia fictícia, o ato autobiográfico é modelado pela imaginação, ou seja, a
história é formulada com o objetivo de parecer, ao máximo, com uma autobiografia real, mas
não tem correspondência real com a vida do autor. No romance autobiográfico, o escritor cria
baseado em fatos reais, se inspira em dados de sua biografia para criar uma fábula. Daí o uso
indiscriminado e abuso do termo romance autobiográfico. As generalizações do tipo “toda
literatura é autobiográfica” contribuem para que o processo de desenvolvimento do romance
autobiográfico não seja compreendido de forma adequada.
A tradição aristotélica, com respeito à natureza conceitual, separa historia e ficção. O
romance autobiográfico foi censurado por essa tradição devido a sua constituição, que é
confluência destes dois modos de representação. O resultado foi que o romance
autobiográfico, muito frequente no século XIX, não recebeu suficiente atenção da teoria e da
crítica literárias porque não pertencia ao cânone de orientação aristotélica para a qual a
literatura era formada por textos puramente fictícios, excluindo aqueles que tinham caráter
histórico.
A corrente formalista que predominou nos estudos literários na centúria posterior,
menosprezou os valores que não estavam em conformidade com os ideais de clareza textual e
estruturas puras, ou seja, informações subjetivas de caráter pessoal, social ou histórico.
Durante este período, foi decretada a superioridade da ficção sobre textos de conteúdo
histórico ou biográfico. Naturalmente, os relatos narrativos intermediários e híbridos não são
tão valorizados quanto as categorias literárias puras.
50
Sob essa ótica, as autobiografias e os romances autobiográficos, exemplares como
narrativas híbridas, são avaliados como literatura menor e isso explica a postura indecisa dos
escritores espanhóis. Ao mesmo tempo, a ampla utilização do termo romance autobiográfico
reflete a vigência, utilização e discriminação. O gênero autobiográfico e, por extensão, o
romance autobiográfico sofrem retaliações teóricas pela alegação de pureza literária. Ambos
foram igualmente reprovados partindo também de posições religiosas e morais que na
Espanha foram consideradas atos de vaidade e soberba dos autores. Seguindo tal pensamento,
o romance autobiográfico é um paradoxo que mostra a urgência de expressão individual e
necessidade de ocultação dado o contexto social.
No século XXI, é consensual a liberdade de falar e escrever sobre si. A valorização da
ficção em relação à literatura factual e à oportunidade de desviar da responsabilidade do ato
autobiográfico colaboram para que a fórmula do romance autobiográfico siga vigente. O
escritor reivindica falar sobre si mesmo e o realiza de forma segura sob o disfarce da ficção,
dissimula dados pessoais e coincidências suficientes para estabelecer uma relação entre ele e
seu personagem.
Encontramos ressonância no pensamento de Ana María Barrenechea (1982) que
enfatiza que crise do personagem na obra pode ser interpretada como transposição da crise do
sujeito na sociedade de massa. Tal perspectiva aceita a obra literária como reflexo da
sociedade na qual está inserida. A relação entre sociedade e literatura, entendida como uma
relação de causa e efeito, pode aceitar muitas outras interpretações. Uma delas é a repercussão
das mudanças no processo de comercialização, produção e distribuição dos livros. Outra, a
quebra dos antigos códigos em favor da nova articulação da arte contemporânea.
A quebra do contrato mimético nos chama a atenção para as alterações na estrutura
romanesca que tematiza e aprofunda as relações entre a linguagem, a literatura e o mundo. A
crise do contrato mimético afeta o nexo entre a obra e seu referente, sua composição interna e
realça a base intertextual, ou seja, o diálogo entre textos. Esse processo gera duas tendências
díspares na produção artística na atualidade. Uma vertente se concentra na relação obra e
mundo, conjetura sobre a função social da arte e os sentido que adquire a figura do escritor
dentro do circuito de produção e comercialização da arte. Outra vertente bloqueia a noção e o
reconhecimento no qual o mundo remete à obra e a obra remete ao mundo. Encontramos
ressonância no texto de Puerta Moya:
“El auge experimentado por la autoficción responde no sólo a la re-
individualización que coincide con el apogeo del sistema liberal como pensamiento
único(político, económico e ideológico) que se propugnan como factible en
51
exclusiva, sino también a motivaciones estéticas, que tienen que ver con el rutinario
encasillamiento en que en que las modalidades autobiográficas habían caído siendo
previsibles y tópicos sus resultados en muchas ocasiones, lo que obliga a romper
moldes y esquemas, empezando por esas transgresión de los márgenes entre de la
ficción, de modo que resultase un a duda metódica sobre la veracidad de lo relatado
en un texto supuestamente autobiográfico con la cercanía con los modelos de
narración novelesca.” (PUERTA MOYA. 2003, p. 640-641)
Houve um salto qualitativo entre o romance autobiográfico e autoficção, que passa da
dissimulação e ocultação para a simulação e aparência de transparência. A dificuldade de
definição genérica da autoficção reside na situação fronteiriça que ocupa, sua posição instável
é fruto dessa situação.
Ao inventariar e classificar romances em língua espanholas como autoficções, Alberca
aponta para um modelo genérico dinâmico, variações criativas e expectativas de leitura em
formação diante das quais autores, editores e leitores todavia permanecem resistentes. Essa
classe de textos poderia indicar o desejo de inovação na autobiografia espanhola ou uma
renovação novelística.
A proposta de definição da qual parte Manuel Alberca (2007) é de caráter formal e
tem consequências na recepção do leitor: una autoficción es una novela o relato que se
presenta como ficticio, cuyo narrador y protagonista tienen el mismo nombre que el autor
(ALBERCA, 2007, p.158). Baseado na mescla gêneros contraditórios, autobiográfico e
ficcional, se produz a impressão de romper com os habituais esquemas receptivos e de leitura.
A permeabilidade dos limites entre os gêneros vizinhos resulta uma grande variedade
de formas e registros. Na tentativa de esboçar uma tipologia Alberca define três tipos de
autoficção: autoficção biográfica, auto bioficção e autoficção fantástica. Para melhor
exemplificar a complexidade das autoficções, expomos a continuação uma fusão dos quadro 2
do artigo ¿Existe la autoficción en hispanamérica?(2005-2006) e do quadro 4 do livro El
pacto autobiográfico(2007) traduzidos e ampliados, sob nossa responsabilidade. Como forma
de exemplificar e comprovar suas contribuições teóricas, Manuel Alberca recorre a autores
como Cesar Aira, Francisco Umbral, Vargas Llosa, Javier Cercas e Carlos Barral.
Conforme a aproximação ou afastamento do centro, os elementos fictícios e
autobiográficos se fazem mais reconhecíveis. Quando o leitor se inclina a interpretação mais
referencial, autoficção biográfica, ao contrário, vai ao encontro da autoficção fantástica.
Podemos observa no quadro a continuação.
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Quadro 2 – Quadro 2 ¿Existe la autoficción en hispanamérica?
≠Pacto
Autobiográfico
Pacto Ambíguo
Campo Autoficcional
Pacto
Romanesco Memórias
Biografia
Autobiografias
Autoficção Ficções em geral:
Romances,
Contos
Autoficção
biográfica
Auto bio ficção
Autoficção
fantástica
Referência
extratextual
A=N=P
A=N=P
A=N=P
Referencial textual
Menos invenção
Mais próximo do
autobiográfico
Mescla
indissolúvel de
elementos
autobiográficos e
fictícios
Mais invenção
Mais próximo do
ficcional
Exemplos de literatura autoficcional
Contra paraíso de
Manuel Vicent
La otra de Sonia
García Soubriet
La tía Julia y el
escribidor de Vargas
Llosa
La velocidad de la luz de Javier Cercas
Cómo me hice monja
de César Aira
Dafne y ensueños de
Gonzalo Torrente Ballester
O campo autoficcional é resultado da implicação, integração e superposição do
discurso fictício no autorreferencial e vice-versa. Nesse contexto, há a ambiguidades textuais
e para textuais em diferentes maneiras e graus. A integração de elementos fictícios e
autobiográficos e seu caráter indissolúvel podem deixar o leitor vacilante no momento de
decifrar os elementos do texto.
Conforme Manel Alberca, a autoficção biográfica tem como ponto de partida a vida do
escritor, sofrendo alterações para melhor adaptar-se à estrutura ficcional. Talvez por isso,
tome muitas vezes a forma de relato de infância. A trilogia de Manuel Vicent formada por
Contra Paraíso(1993), Tranvía a la Malvarrosa(1994) e Jardín de Villa Valeria (1996),
Escenas de cine mudo (1994), de Julio Llamazares e La otra (1987), de Sonia García Soubriet
são exemplos típicos para demonstrar que, embora haja aspectos que tornem evidente a
invenção de episódios ou aspectos isolados, a declaração de autobigrafismo encoberto, o grau
de aproximação com as autobiografias é elevado. Com isso, a crítica literária costuma
confundi-las com romances autobiográficos. O objetivo dessa estrutura é fazer com que o
leitor acredite que está diante de um relato autobiográfico.
No outro extremo, estão as autoficções fantásticas. A expressão é um empréstimo da
classificação de Vicent Colonna que declara: “el escritor se encuentra en el centro del texto
53
como en una autobiografía(es el heróe), pero transfigura su existencia y su identidad en una
historia irreal, indiferente a la verosimilitud biográfica” (Apud ALBERCA, 2007, p. 190).
Neste ponto, há divergência entre essa afirmação e a teoria de Alberca porque para Colonna,
as autoficções fantásticas podem ter como ponto de partida a biografia do autor. A
característica fundamental desse tipo de texto é o modo radical com que se afastam dos
elementos autobiográficos do autor, que inventa uma história e uma personalidade
radicalmente diferente. Da mesma forma que um sósia grotesco ou duplo o representa. Cesar
Aira (1993) é citado como grande expoente na literatura hispanoamericana pela mescla
deliberada de sua biográfica com dados irreais. O romance Cómo me hice monja (1993) é
destacado como uma dessas suas narrativas, pois nela Aira se identifica como o narrador
protagonista (César-Cesítar) e sugere que o protagonista masculino se transformará em uma
religiosa. Nesse espaço também se abre a oportunidade de criar um mito familiar e pessoal.
Gonzalo Torrente Ballester em Dafne y ensueños, utilizando um relato infantil, evoca através
de Gonzalito as origens familiares e pessoais para justificar sua dedicação à literatura.
A diferença das autoficções biográficas e fantásticas que deslocam do autobiografismo
ao ficcional, as auto bio ficções se caracterizam por forçar ao máximo a hibridação da
autobiografia e ficção. La tía Julia y el escribidor (1977), de Mario Varga Llosa e La
velocidad de la luz (2005) de Javier Cercas são romances diferentes quanto às estratégias de
ficcionalização. La tia Julia y el escribidor (1977) tem como eixo de construção episódios da
vida amorosa de Mario Vargas Llosa que rememora seu precoce matrimonio aos 18 anos
como a recém divorciada e ex esposa de seu tio, que contava quase 30. Paralelamente à sua
história romântica, são narradas historias da serie radiofônica de Pedro Camacho. As histórias
radiofônicas e a do casal apaixonado são ecos e contrapontos que terminam por convergir.
La velocidad da Luz (2005) narra a história de um escritor que busca sobreviver à
culpa e ao sucesso vendo a escrita como único caminho possível para redimir-se dos erros
cometidos. Embora não se faça nenhuma referência explícita ao nome do narrador-
personagem, é possível encontrar correspondência com a biografia do escritor espanhol Javier
Cercas que durante os anos de 1987 e 1989 em uma universidade de Illinois, meio-oeste
americano, compartilhou uma sala com um ex-combatente do Vietnã, Rodney Falk,
personagem, protagonista e eixo da narrativa, que encarna a figura do perdedor americano
cujos resquícios de sua participação na guerra, a culpa, o excesso de lucidez e a exigência
pessoal o levam ao suicídio.
A história de Rodney se entrelaça à história do personagem narrador, que atraído pela
peculiaridade do colega, tenta escrever um romance. Quinze anos após sua estada em Illinois,
54
o narrador alcançou fama e conheceu o fracasso pessoal e percebe que para ele o sucesso é
quase tão letal quanto a guerra foi para Rodney. A história do narrador-personagem tem
correspondência real com sabores e dissabores da positiva acolhida de crítica e de público da
obra Soldados de Salamina (2001) e, ainda que inominado, nos remete ao autor Javier Cercas.
O conjunto de elementos biográficos, pseudobiográficos e fictícios nos impedem discernir até
onde chega a identificação e a partir de que pontos ocorre o distanciamento, haja vista que a
autoficção não pode ser qualificada como discurso real tampouco ficcional.
Apesar de estabelecer explicitamente a correlação nominal, em Soldados de Salamina,
a construção de uma personalidade serviu para o desenvolvimento do romance, que por
intermédio de um molde pode engendrar referencias históricas e fictícias. Em La velocidade
de la Luz (2005), o uso da experiência particular sobrepõe o desafio ético sobre o estético
porque não é um fio condutor da história e sim o centro da análise sobre êxito e fracasso.
Embora tenham tramas diferentes, ambas as obras tratam o universo de relações que
envolvem um romance. Tal reflexão novamente será retomada como o objeto do nosso
estudo, o conto La verdad de Agamenón (2006), no qual o autor seguindo o caminho da
autoficção, joga com a possibilidade de um duplo perfeito.
2.3 A AUTOFICÇÃO EM JAVIER CERCAS
A ficcionalização da figura do autor e a discussão literária são constantes na produção
literária do espanhol Javier Cercas. Em Soldados de Salamina (2001), a narrativa versa sobre
o episódio do fuzilamento frustrado de Rafael Sánchez Mazas, ideólogo e fundador da
Falange Espanhola. No romance, o autor cria um narrador-personagem homônimo para
abordar e ficcionalizar sobre acontecimentos da Guerra Civil Espanhola. A identificação
nominal explícita e transparente serviu como um recurso a serviço da construção do texto,
trata-se somente de uma figura narrativa que conduz a historia e investigação.
Em La velocidad da luz (2005), a relação de identificação entre o autor e o
personagem narrador do romance é estabelecida de maneira tácita e encontra comprovação
nos elementos extratextuais. A utilização da própria experiência representa o desafio ético
sobre o estético, a narrador autor é o centro da reflexão de que o êxito público pode
representar o fracasso pessoal. A partir da ficcionalização de uma situação real, o autor
sinaliza a mudança de uma postura rígida sobre os acontecimentos, dos quais emerge discurso
descrente sobre o conhecimento e a história. La velocidad da luz tangencia a guerra do Vietnã,
55
tendo como eixo central não o fato histórico, mas a forma como afetou os indivíduos,
valorizando a realidade do acontecimento e a ficção da criação de histórias e personagens nele
envolvidos de forma indistinta.
Se retrocedermos na exegese do romance autobiográfico para a ficção biográfica,
receptivamente, perceberemos sua ocorrência nas duas obras: Soldados de Salamina e La
Velocidad da Luz. Seus narradores representam dois entes distintos. O primeiro é o molde
para organizar referenciam históricas e fictícias, enquanto o segundo serve de pretexto para
dissimular e criar uma ficção. Ambas assinalam e balizam a formação de uma personalidade
literária com a qual o escritor Javier Cercas joga com a imagem de si mesmo e critica a
complacência e vaidade. No conto La verdad de Agamenón, o duplo perfeito é uma estratégia
da autoficção.
La verdad de Agamenón (2006) é o texto que dá nome ao livro, um conjunto de textos
agrupados por temas do quais grande parte de seu conteúdo provém do jornal El País. A obra
La verdad de Agamenón está dividida em Autobiografías, Cartas de Batallas, Por la Realidad,
Nuevos Relatos Reales, Los Contemporáneos e Un cuento (A modo de Epílogo), “La Verdad
de Agamenón”. A seleção dos textos e a decisão de publicá-los em forma de livro é uma
tentativa de prolongar sua existência dada a natureza efêmera dos jornais e revistas para os
quais foram concebidos. No prólogo, Cercas afirma que sua iniciativa de selecionar, corrigir e
ordenar textos próprios equivale a buscar uma direção, um sentido comum, realizar um
experimento consigo mesmo.
Para compreender os significados do duplo e da autoficção na Espanha contemporânea
é capital recorrer à pós-modernidade, marco cultural em que se inserta o texto. A pós-
modernidade caracterizou as culturas ocidentais ou ocidentalizadas nas décadas de oitenta e
noventa gerando a ilusão homogeneização, a sistemática ficcionalização da realidade e
amnésia histórica. A produção e posse dos objetos são valorizados como sinônimo de bem
estar, introduzindo no imaginário atual a satisfação dos desejos como prioridade imperante.
A criação e recriação do eu no imaginário são alimentados pelo capitalismo. Há a
escravidão ansiada pela perfeição que exige a necessidade contínua de renovação. Na
Espanha, nação onde as opiniões modernas de democracia são ainda recentes, a liberdade
individual se confunde com extrema de facilidade de consumo. A possibilidade de remodelar
o corpo a gosto, copiando ou se apropriando de personalidades ou físicos de prestígio é um
fenômeno social tão potente e imbricado nos meios de comunicação que tem a mesma
velocidade das mudanças da moda. A literatura acompanha a transformação cultural gerada
56
pelo desenvolvimento tecnológico e a democratização do conhecimento na sociedade da
imagem e do consumo.
Indagamos sobre o sentido da conjunção de literatura fantástica e da proposta
autoficcional em La verdad de Agamenón, um conto longo de Javier Cercas. O duplo remete à
tradição da literatura fantástica e a autoficção está conectada à ficcionalização crítica. Cercas
sinaliza para a necessidade das novas estratégias narrativas, condicionadas pelas
transformações ocorridas no processo de escritura e de leitura. O insólito e a ficcionalização
da crítica se encontram nessa obra que questiona tanto o racionalismo quanto o fazer literário
na atualidade.
Há uma vertente da crítica literária que considera que a literatura espanhola como
realista. Entretanto, é necessário relativizar a afirmativa, pois quanto mais quis ser realista,
mais alucinação ela mostrou. Encontramos exemplos no romance picaresco, na literatura de
Galdós e Clarín, e antes, com Quixote. No ensaio La retórica del realismo: Galdós y Clarín,
John W. Kronik argumenta que sucessivas gerações se apegaram ao costume de buscar na
escrita realista a fonte fidedigna de conhecimento absoluto, quando é necessário ter em mente
a participação dos indivíduos responsáveis pela recriação da realidade. Assim para
romancistas tão complexos e profundos como Benito Pérez Galdós e Leopoldo Alas(Clarín) a
função “imitar” e a criação poética são indissociáveis no território textual. O realismo
ultrapassa o aspecto restrito do movimento literário da segunda metade do século XIX no qual
o escritor capta a vida tal como é, suprimindo suas observações subjetivas. Ambos autores
harmonizam as crenças do período decimonônico no mundo objetivo que o considera que
indivíduo passa a conhecer através da experiência dos sentidos.
A inovação sugerida por Javier Cercas é a utilização do elemento fantástico como
ferramenta crítica. A desfiguração, se retomamos a terminologia de De Man, toma corpo e
personalidade através do duplo. Ao retomar o doppelgänger e mencionar autores
paradigmáticos como Philip Roth, Poe, Dostoievski e Borges, Javier Cercas deixa claras as
suas referências. O escritor busca ainda legitimar seu discurso critico atento à problemática do
mundo, ou seja, a representação da figura do autor, a circulação de obras e a construção de
uma nova tradição.
Na atualidade, é impossível que um escritor desconsidere as teorias acerca de pontos
que tangenciam a produção de sua obra como a transitoriedade do processo de identificação
do sujeito na pós-modernidade e as questões estéticas e éticas que envolvem o aparecimento
do autor em sua obra. Cercas não ignora a ideia pós-moderna de que não há experiências
porque tudo é mediado pelos grandes veículos de circulação de informação, cultura e lazer
57
como a imprensa, cinema e internet. Dessa forma, emerge o questionamento de como
construir a figura do escritor que deixa de ter experiências sociais para ter somente
experiências literárias como feiras, viagens, jantares. Isso nos remete por exemplo à questão
ética suscitada pelas interseções entre romance VS autobiografia.
A tecnologia exerce grande influencia sobre a literatura, desencadeando o surgimento
de gêneros predominantes na cultura de massa. A narrativa biográfica independente da forma
que assuma, além de espaço de aprendizagem, veicula a socialização da experiência
individual. Esse tipo de leitura reclama um leitor que aprecie e suporte o jogo duplo de
propostas contrárias sem a exigência de uma solução total, pois falar muito de si mesmo é a
melhor maneira de se esconder.
Na medida em que o autor expressa a ironia e a fragilidade de sua posição, se
aproxima do público e acaba com a ilusão de que aquele que escreve é de alguma forma
superior. É interessante observar que os textos de Javier Cercas têm como característica
fundamental sua dimensão relacional tanto na reincidência do ato de escrever como a
centralidade do personagem escritor. Manuel Alberca afirma que na Espanha a autobiografia é
vista como literatura menor devido às circunstancias de sua formação social e política, a
ideologia católica que cerceia a livre expressão do sujeito e posteriormente o controle do
regime ditatorial. Logo, dessa forma é natural que para a maioria dos espanhóis o eu
autobiográfico seja suspeito de soberba e narcisismo.
O nome próprio no espaço da ficção reforça a necessidade de afirmação do autor que
busca complacência do leitor ao mostrar-se vulnerável, pois explora publicamente questões
pessoais sem sofrer as consequências do ato. Ao mesmo tempo, representa a necessidade de
autoconhecimento e construção de uma personalidade literária em crise, oscilando entre o
narcisismo e a introspecção.
Paralelamente, ocorre a valorização da consciência crítica. Entretanto, isso é feito
dentro de um sistema, pois a produção de literatura de consumo e sua divulgação se dão
através dos grandes meios de comunicação. O escritor não tem consciência somente do seu
papel como produtor de bens simbólicos, mas também da impossibilidade da arte
transformadora da realidade.
3 ANÁLISE DE LA VERDAD DE AGAMENÓN
“A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou seu
porqueiro.
Agamenon: - Conforme.
Porqueiro: - Não me convence7”
Iniciamos nossa análise observando alguns pontos acerca da escolha do título, da capa,
do gênero conto e seus possíveis significados. O título é uma alusão ao engenho filosófico
com que Antonio Machado inicia a obra Juan de Mairena, comentada por Cercas8 no prólogo
da obra homônima: “Mi libro está escrito contra el cinismo hipócrita, arrogante, feroz,
mentiroso y solemne de la verdad de Agamenón. O sea, contra la verdad oficial”.
A sentença inicial indica que a verdade independe das diferenças entre os homens.
Mas a prática demonstra que apenas Agamenon tem nome próprio, enquanto o porqueiro, não
tem nome, não é proprietário dos porcos ou de si mesmo, é simplesmente um servo. O
tratador de porcos sabe que a verdade do poder é a “única” verdade, mas conserva o desejo de
não se deixar convencer.
3.1 A VERDADE
No estudo Notas sobre la verdad del poder y el poder de la verdad9, Jorge Larrosa supõe
que o autor da afirmativa acerca da verdade é o filósofo. O filósofo é mais um servo do
soberano, ele é responsável por garantir sua força simbólica, ou seja, seu poder sobre a mente
e consciência dos súditos. Assim o que faz o servo de Agamenon é fixar as regras do jogo da
verdade ou as condições da luta pela verdade. A partir daí são propostas, no texto de Javier
Cercas, reflexões sobre a influência e o poder da palavra na época da globalização informativa
e comunicativa e sua influencia do universo literário e os elementos a ele relacionados.
Podemos entender a sociedade da comunicação como aquela em que os aparatos midiáticos
como os periódicos, o rádio, o cinema, a televisão e também os aparatos culturais e
educacionais são determinantes para a produção, a reprodução e também para a dissolver
aquilo que é considerado realidade.
7 Tradução nossa do original contido na abertura do libro “La verdad de Agamenón”. La verdad es la verdad,
dígala Agamenón o su porquero. Agamenón: - Conforme. Porquero: - No me convence.
9
Disponível em <http://e-educador.com/index.php/artigos-mainmenu-100/98-agamenon-e-seu-porqueiro.>
Acessado em 22/06/2010.
59
Neste contexto, emerge o questionamento de como construir a figura do escritor:
Todo escritor que no acepte ser un mero escribano(…) contrae un apasionado
compromiso con el lenguaje, pero al contraerlo contrae también, lo sepa o no –y
más le vale saberlo, un apasionado compromiso con la realidad”, pues “entraña la
toma de unas decisiones que no son únicamente lingüística, las que asume el
usuario de un lenguaje “tenso y exacto y ávido de verdad y de significación”.
(Prólogo de “La verdad de Agamenón.( CERCAS, 2006, p.18)
É interessante observar que nas obras Soldados de Salamina e La velocidad de la luz,
Javier Cercas tem como característica fundamental sua dimensão relacional tanto na
reincidência de buscar o significado do ato de escrever e do personagem escritor. Ao mesmo
tempo, representa a necessidade de autoconhecimento e construção de uma personalidade
literária em crise, oscilando entre o narcisismo e a introspecção, marcando a consciência dos
vínculos contraditórios que constituem o intelectual na contemporaneidade.
Observamos que há valorização da consciência crítica. Entretanto, sua atitude de
questionamento é desenvolvida dentro do sistema literário já estabelecido. Acreditamos que
seu objetivo é também demonstrar de que forma tais fatores afetam o sujeito e a escrita por ele
produzida, na medida em que o autor expressa a ironia e a fragilidade de sua posição.
Ilustração 1 – Capa do livro “La Verdade de Agamenón”
Em relação à capa, a fotografia é utilizada como paratexto que não explica o título ou
conteúdo do livro, mas é uma pista para que o leitor deduza sua finalidade. Com a cabeça na
60
boca do canhão, Buster Keaton, no filme El maquinista de la General, de 1927 representa um
momento de insensatez que se assemelha à postura de confrontar abertamente lógica
mercadológica. A imagem que inaugura o livro serve para atar as pistas do título e do engenho
filosófico à declaração implícita: opiniões e comentários comprometidos com a realidade
vivida pelo autor e lógica mercadológica, um ataque declarado contra a realidade da literatura
espanhola, equivale a colocar a cabeça em lugar perigoso e acarreta inúmeros problemas.
Pensamos na escolha do gênero textual, narrativa em prosa de menor extensão. Uma
vez que a construção de uma personalidade literária já estava presente nos romances Soldados
de Salamina(2001) e La velocidade de la luz (2005), procuramos pensar o porquê de utilizar a
forma de conto como um epílogo da obra La verdad de Agamenón. Parece coerente afirmar
que a opção do escritor se deve a fatores como explicitar e reforçar sua relação com o jornal,
origem principal dos textos contidos na obra, a adequação ao ritmo da vida moderna, que
estão atrelados à escassez de tempo, ao mercado e ao consumo. Tirando proveito dos
principais traços do conto literário: concisão, precisão e unidade de efeito, o final torna-se um
dispositivo para ultrapassar o sentido obvio do conto, a justificativa para um assassinato.
Apesar de ser un gênero firmemente estabelecido, acerca do qual narradores e críticos
refletem, não encontramos para o gênero conto uma teoria que integre elementos como o
texto, o leitor, o escritor e seu contexto social e cultural. O artigo de Gerald Gillespie realiza
uma revisão teórica sobre a questão terminológica do gênero, que nas línguas europeias é de
especial complexidade. Se considerarmos que os gêneros não têm tradução, os nomes
equivalentes, em distintos idiomas, marcam também diferenças de registro cultural e a
tradição literária. Seu objetivo é discutir as sutis diferenças de forma e analisar a evolução do
termo << novela corta >> comparando-o com outros termos próximos da literatura europeia.
Do século XV até começo do XVIII, a palavra britânica novel é utilizada como
substantivo com duas acepções: algo novo, uma novidade ou uma noticia. Entre os séculos
XVI e XVIII surge uma terceira acepção, espanhol novela, que aludia a relatos, contos e
outros tipos de textos que seguem o mesmo estilo. Devido à variedade e amplo significado o
termo novela engloba do relato à narração fictícia em prosa com personagens e ações
representativas da vida, no passado ou no presente.
Entre novela e romance se mantém a distinção baseada na extensão daí a definição de
Chesterfield, de 1774: Una novela es una especie de abreviación o compendio de un
<<romance>>( GILLESPIE,1997, p.133). Ademais da característica de designar um tipo de
ficção, ao longo do século XVIII, a elaboração da forma acompanha o desenvolvimento do
61
conceito. Pode-se fazer uma observação interessante ao comparar a literatura inglesa e a
espanhola porque a Espanha é a principal nação que utiliza o termo novela para referir-se à
ficção longa. As novelas encontram referência especialmente na contribuição da Novela
Picaresca e Don Quijote no desenvolvimento da literatuta inglesa do período.
A questão terminológica torna-se mais complexa se consideramos que na Espanha há
escritores de novella. Miguel de Cervantes é exemplar nesta questão, pois se destaca na
escrita desde o conto à narrativa mais extensa. Conforme Gillespie, os espanhóis sob a
categoria de novela não atentam para a distinção genérica entre narrativas menores e maiores
e para exemplificar sua tese recorre aos romances de Cervantes, La Galatea(século XV) e
Persiles e Segismunda(século XVI), que figuram como novelas. O autor esclarece ainda que
romance em língua espanhola serve para designar composições poéticas, sobretudo épicas,
que permanecem ligada a materiais antigos. Em sentido moderno, o termo romance transferiu
sua significação para novela e mais recentemente, novela corta, para designar ficções que são
demasiado curtas para estar sob a nomenclatura conto. Ao contrário, as literaturas italiana,
francesa e alemã têm um conjunto de designações mais elaboradas para a prosa de ficção.
A designação novella aplica-se tanto às produções mais antigas quanto mais recentes,
isto é, abarca das hitórias aos relatos mais elaborados. Românticos alemães como Johann
Wolfgang von Goethe, impulsionados pela doutrina da ironia cultivaram uma tensão entre as
facetas objetivas e subjetivas da novella. O raciocínio seguido por Gillespie(1997) expõe o
questionamento sobre se há diferenças estruturais ou unicamente de extensão nas
nomenclaturas utilizadas para ficções.
Partindo da genealogia do conto e dada a complexidade da investigação, a
denominação conto, curto ou longo, limitada ao número de páginas é ainda vaga. Optamos
por chamar o texto La verdad de Agamenón de conto longo.
De acordo com o estudo de Pozuelo Yvancos, Escritores y teóricos: La establidad del
gênero cuento, o conto literário, desenvolvido no século XIX, nasce vinculado a publicações
periódicas como jornais e revistas, que como é sabido, tem uma limitação espacial. Tal fator
favoreceu a permanência da contenção e condensação estrutural para a adaptação a um
número máximo de palavras ajustadas a uma página ou coluna. A atenção do leitor e o
chamado súbito na ação do conto continuaram indispensáveis já que o leitor era um
consumidor de um periódico e, nesse sentido, o conto implica uma extensão comercial. No
conto La verdad de Agamenón, o escritor Javier Cercas chama a atenção para relação entre o
comércio e a literatura e sua própria adesão e questionamento desse sistema.
62
A abrangência do conto, em nossa opinião, também contribuiu para a utilização do
gênero. Independente do nível cultural, poucas pessoas deixaram de ter contato com a
narrativa curta na vida infantil, familiar ou escolar. Por mais rápidas que sejam as
transformações, com a velocidade da vida cotidiana, sempre há 10 ou 15 minutos para
apreciar uma narrativa que se adéqua ao tempo disponível do homem moderno: entre um
compromisso ou outro, ainda no percurso entre a residência e o trabalho, antes de dormir. Por
isso, é clara a identificação do conto com a escassez de tempo dos habitantes das grandes
urbes, também a linguagem e acessível, a estrutura de começo, meio e fim claramente
determinados.
Outro aspecto explorado nos contos é o final, que funciona como um dispositivo de
abertura a espaços simbólicos de maior transcendência, ou seja, projeta significados e
interpretações que estão além do sucesso narrado. Dessa forma, a facilidade de circulação e a
intenção de narrar uma segunda historia nas entrelinhas da primeira encontram explicação na
extensão da narrativa:
El tamaño reducido del cuento no perjudica su representación o imagen de la
totalidad a la que alude, antes al contrario, la potencia, porque explotando la
diferencia entre dimensión mínima y significación máxima, proyecta su
interpretación simbólica a una esfera más rica que la anécdota, momento, emoción
o episodio que le sirve de base.(POZUELO-YVANCOS, 2004,p.70)
A utilização do gênero conto demonstra intenção do autor em marcar a adaptação da
literatura ao ritmo da vida moderna, sem abandonar consciência crítica que cerca a obra de
arte.
3.2 - ESCRITOR E NARRADOR PÓS-MODERNO
Vivemos uma época de relatividade na qual o conceito de verdade está em constante
discussão e ato de narrar tornou-se um grande desafio. Os textos de Walter Benjamin e
Theodor Adorno, O narrador (1980) e Posição do narrador no romance contemporâneo
(1980), respectivamente, esclarecem o porquê. A perda da capacidade de narrar se deve ao
fato de que já não há experiência a ser compartilhada uma vez que esta é fruto da relação vital
com objetos culturais via tradição, ou seja, vida comunitária e relações com o entorno do
período pré-capitalista e urbano. Em substituição, ganhamos a vivência característica do
individualismo da sociedade capitalista.
A função da narrativa era transmitir experiências orientadas ao trabalho, distante no
tempo e no espaço dispensando explicações. Em contrapartida, a velocidade gerada pelo
63
avanço tecnológico é intensa, valorizando a informação como ferramenta construtora da
realidade. A nova escrita é modelada pelas forças produtoras e formas de trabalho do mundo
capitalista, refletindo o término do mundo harmônico com destinos, lugares e papéis
determinados. Na narração da atualidade, já não há ordem e a arte tampouco é responsável
pelo seu reestabelecimento. Não são admitidos elementos sem transformação ou
posicionamento.
No mundo dominado pela tecnologia e utilitarismo, o poeta e o homem de letras
adquirem nova importância porque oferecem outra visão dos aspectos cotidianos da vida, sua
essência. Assim, o poeta e o homem de letras são considerados o tipo de herói genuinamente
moderno (SANTIÁNEZ, 2002, p.170). Pelas atuais condições de trabalho que lhes permite
gozar de uma reputação mundial e viver com comodidade material, o protagonismo social e
político daqueles que se dedicam ao labor intelectual aumentaram em comparação a etapas
anteriores da modernidade. Ainda que a imagem de contestação do profissional
intelectualizado esteja associada ao imaginário coletivo nem todo homem de letras é um
herói, apenas aqueles que têm uma função social decisiva. Neste ínterim, é necessário
ressaltar que há aqueles que são assimilados pelo sistema e aqueles que vivem à margem dele.
A literatura de Javier Cercas é ladina e paradoxal, pois não adota uma postura radical.
Nessa nova configuração surge nas letras europeias o personagem artista, do
profissional de letras ou personagem sensível alienado pela sociedade ou que se opõe a ela,
heróis decadentes, protótipos que obedecem inseridos em uma realidade concreta: “la toma de
conciencia del hombre de letras y del artista de su ambigua posición en una sociedad regida
por las leyes del mercado, por valor del dinero y por un mentalidad práctica en esencia”.
(SANTIÁNEZ, 2002.p 173). O personagem literário está vinculado ao fenômeno complexo
impulsionado pela modernidade e começa a aparecer de maneira mais sistemática na Espanha
a partir do século XIX, fase em que artistas e escritores refletem acerca de suas ideias
literárias, filosóficas e artísticas.
A estrutura histórica apresenta modificações que se sobrepõe na passagem do tempo.
Há porém a continuidade da figura o herói decadente, que sem abandonar seu caráter
reflexivo, adquire novos contornos no panorama atual. A produção e posse dos objetos
culturais são valorizadas como sinônimo de bem estar e por isso, a realidade passou a ser uma
representação e o indivíduo não um agente, mas um ator dentro dessa representação.
Na escrita de Javier Cercas, por exemplo, esse personagem literário é apresentado de
formas distintas obedece a um modelo, utilizando a autoficção como recurso. La verdad de
Agamenón o personagem vai de encontro aos valores mercantis e modernos dados à literatura
64
e a seus produtores. Daí a utilização de um protagonista que não esboça posicionamento ou
ideias políticas. Uma vez abandonadas as grandes narrativas que mobilizaram a humanidade,
surge o problema de como justificar o saber na sociedade contemporânea, enfatizando a
influência da tecnologia sobre o saber e a transmissão/circulação de conhecimentos.
Surgem questionamentos sobre o que determina a autenticidade de um texto, quem
pode narrar uma história, se é aquele que experimenta ou aquele que observa e quem a
autenticidade é atribuída. Na concepção de Silviano Santiago, o narrador pós-moderno
observa a ação como espectador, não como atuante. Isso ocorre porque na medida em que a
sociedade se moderniza o diálogo entendido como uma troca de informações vivenciadas
torna-se mais difícil. Encontramos ressonância dessa teoria na escrita de Javier Cercas.
Através de mecanismos diferentes, tanto a literatura fantástica tradicional como aquela que se
desenvolve em nossos dias indica mudanças de uma sociedade. Pretendemos analisar que tipo
de mudanças o conto La Verdad de Agamenón sinaliza através da retomada do duplo com
estratégia de autoficção do escritor para refletir sobre a figura do escritor e o fazer literário.
Conforme estudo de Silviano Santiago, o narrador pós-moderno é também um
ficcionalista na medida em que a verossimilhança é produto da lógica interna do relato.
Consciente de que “real” e “autêntico” são construções de linguagem, é preciso dar
legitimidade a uma ação que não tem respaldo na vivência e, por isso, a ficção existe para
falar da incomunicabilidade de experiências do autor, do narrador, do personagem:
A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência. Pelo olhar, o
narrador, homem atual, oscila entre o prazer e a crítica, guardando sempre a
postura de quem, mesmo tendo se subtraído à ação, pensa e sente, emociona-se com
o que nele resta de corpo e/ou cabeça. (SANTIAGO, 2002, p. 59)
A produção artística de Cercas é astuta ao abordar a obra literária como produto
mercantil, buscando uma literatura que se mova dentro dessa realidade. O discurso literário é
mais rico e intenso, pois sua relação com a história e o contexto político e social é construída
de forma cifrada. Em La verdad de Agamenón, é a exigência do mercado que pressiona o
artista a “produzir” novos textos e faz surgir o desejo de quer ser outro. O autor evidencia sua
preocupação em encontrar uma forma de escrever sem abandonar o tom crítico.
Iniciamos nossa análise do conto La verdad de Agamenón fazendo uma digressão que
consideramos interessante porque nos conecta à tradição literária espanhola. Recorremos ao
célebre El Conde Lucanor, um livro de contos moralizantes do escritor e político Don Juan
Manuel, que data do século XIV. As narrativas que compõem a obra buscam ilustrar lições de
sabedoria ou ética, utilizando personalidades imaginárias ou reais de índoles diversas.
65
Destacamos o conto XI- “Lo que sucedió a un deán de Santiago con don Illán, el mago de
Toledo”10 por apresentar a estrutura in media res, a mesma utilizada no texto de Javier Cercas.
Inicia-se a narrativa no meio da história na qual o Conde Lucanor conversa com
Patronio, seu conselheiro, e lhe expõe um problema. A fim de ajudá-lo, o conselheiro conta
uma história da qual pode extrair um ensinamento. Através de uma viagem no tempo, o
futuro, se transmite o ensinamento: “Cuanto más alto suba aquel a quien ayudéis, menos
apoyo os dará cuando lo necesitéis”. Narrativa contada por Patronio versa sobre um
estudioso que, desejando aprender a arte da necromancia, busca como mestre Don Illán, mago
de Toledo. Para convencer o mago a transmitir seus ensinamentos, o estudioso garante que em
troca pode conceder-lhe qualquer benefício que desejar. Após diversas escusas, Don Illán
aceita o estudioso como aprendiz, revelando que é necessário um lugar isolado para ministrar
os ensinamentos. Ambos seguem para um aposento subterrâneo, onde permanecerão durante o
tempo necessário a aprendizagem.
A curta estadia no salão de estudos, cuja caracterização revela a experiência insólita, é
uma espécie de túnel do tempo no qual acontecimentos e atitudes futuras serão antecipadas. O
estudioso de Toledo, sucessivamente, ascende a cargos superiores na Igreja Católica até
chegar a papa. Entretanto, ele não honra o compromisso assumido com Don Illán e ameaça
prendê-lo por ser herege e mago. Diante disso, o mago de Toledo demonstra, através da
experiência de viagem no tempo, que não poderia confiar na palavra do estudioso.
La verdad de Agamenón, já nas primeiras linhas, apresenta o narrador-personagem
Javier Cercas que busca relatar detalhada e objetivamente sua história a um interlocutor não
identificado. A narrativa promete ser o relato verídico da história entre ele e seu duplo, que
serve para justificar a motivação de um assassinato do qual se furtam maiores informações,
em principio, por parecer um caso conhecido.
O diálogo inicial entre o narrador e seu interlocutor é realizado com discurso direto,
deixando claras as falas de ambos. Esse tipo de discurso cumpre, simultaneamente, duas
funções. A primeira, iniciar a construção do fantástico na narrativa através da linguagem
cotidiana e o esclarecimento da circunstância em que se dá o relato. A segunda função é
facilitar que o leitor identifique do leitor com o protagonista pela ideia de testemunho.
“- Quiero contárselo todo- dijo-. Usted lo entenderá.
- Claro.
10 Cf. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/el-conde-lucanor--0/html/ acessado em
19/07/2011.
66
- Le advierto que es una historia larga. Usted sólo conoce una parte. La que
importa es la que no conoce.- No se preocupe- dije-. Cuéntemelo todo. Tengo mucho
tiempo.
- No sé por donde empezar.
- Empiece por el principio.
Entrecerró los ojos en un gesto de fatiga; reflexionó un momento, mirando sin ver la
mesa con la jarra de agua y el vaso vacío que había entre nosotros; dijo:
- El principio es una carta (…)” (CERCAS, 2006, p. 269)
O equilíbrio entre narração e descrição são pontos que acrescidos à precisão da
linguagem compõem a atmosfera verossímil. Enquanto a narração faz progredir uma história,
a descrição consiste justamente em interrompê-la, detendo-se ora nos personagens ora no
cenário captando traços peculiares e significativos. No conto, a descrição tem a função
visualizadora que pode ser cumprida em modos e graus diferentes, uma vez que o ambiente
influencia a força dinâmica da trama. Anderson Imbert argumenta que “la descripción y la
narración son dos aspectos del modo de ser del cuento en el mundo literario, de igual manera
que el cuerpo y el alma son dos aspectos del modo de ser del hombre en el mundo real”.
(ANDERSON IMBERT,1979, p.330). Exemplo disso, em La verdad de Agamenón é a
locomoção dentro da cidade de Granada, o percurso dos ambientes e de pontos referencias
como Palacio de los Condes de Gabia, o restaurante Los Manueles e Divan de Tamarit, que
surgem para situar o leitor não apenas no ambiente físico mas também no caminho intelectual
que será seguido na narrativa.
Transitar por conhecidos pontos granadinos é demonstrar conhecimento sobre suas
peculiaridades. É interessante notar a forma como o narrador menciona a província de
Estremadura e as cidades de Granada e Madrid, mas não se detém em sua descrição como se
elas fossem seus atributos, uma extensão da personagem. De forma semelhante, transitar pelas
cidades significa também percorrer autores e esclarecer quais foram tomados como paradigma
para a construção do texto, o caminho seguido. Dessa forma, o escritor Javier Cercas exibe
com desenvoltura o caráter intertextual de sua escrita, dialogando com autores como Philip
Roth, Poe, Dostoievski e Borges que compõem sua formação intelectual.
O autor espanhol demonstra conhecimentos sobre crítica literária, transformando a
bagagem teórica em matéria ficcional para sua escritura. Daí uma das características que se
destaca é a imediata conexão do conto La verdad de Agamenón com a literatura sobre o duplo
e autoficção, promovendo a convivência entre clássicos mais tradicionais como Poe e
Dostoievski e referentes mais contemporâneos como Borges, Auster e Roth, feitas as devidas
ressalvas. Nos célebres William Wilson de Poe e O Duplo de Dostoievski , conto e romance,
os autores não são matéria ficcional para o desenvolvimento da obra enquanto em El otro yo
67
de Borges, A Cidade de vidro, de Auter e Operação Shylock, de Roth ocorre justo ao
contrário.
Receber a carta de um leitor, fato trivial para todo escritor alcança alguma projeção no
mercado editorial, é a situação que serve à ação narrativa. Esse elemento, que é a primeira
conexão entre o remetente e o destinatário, confronta aberta e simultaneamente o campo
pessoal e profissional do protagonista. O sentimento de perplexidade, comum à narrativa
fantástica, é um dos veículos que torna possível a reflexão sobre o questionamento da
realidade em nossos dias e o significado desse questionamento.
O protagonista toma ciência de que existe um homem com o qual compartilha muitas
afinidades. A carta torna claro que identidade é tema central, aproveitando a coincidência
nominal para produzir o efeito de estranheza. Conforme a informação contida no conto, o
sobrenome Cercas é pouco comum e o fato de não se tratar de uma ramificação familiar, torna
ainda mais rara e instigante a duplicidade dos nomes. Também a meia idade, o convívio
acadêmico, a condição de chefe de família e a afeição literária são pontos comuns a ambos.
A partir do momento em que se estabelece o diálogo entre o protagonista e seu duplo a
distinção entre as vozes das personagens se torna menos marcada. O diálogo entre eles ocorre
de forma constante na narrativa, dando a sensação de ser complementares, mais um dos
indícios da dificuldade de distingui-los. Restam apenas os sinais de pontuação para indicar as
pausas, sem, no entanto, ter a intenção de tornar mais evidentes as falas do personagem Javier
Cercas e seu doppelgänger.
Ao contrário, as intervenções do interlocutor não identificado, aquele a quem o
protagonista revela sua história, se tornam mais espaçadas na narrativa, precedido sempre de
algum recurso visual que esclarece que não se trata das sentenças dos personagens principais.
Em nossa reflexão, o interlocutor inominado ocupa na narrativa o lugar do leitor passivo cujas
breves interferências servem não para crítica ou julgamento, mas para sua melhor
compreensão sobre o caso. Essas intervenções são também indícios da realidade que
paulatinamente se revela no texto. O escritor está obrigado a cumprir prazos e produzir textos
e é por causa dessa pressão que o personagem cria uma segunda personalidade para assumir
suas tarefas e compromissos.
“Fue un error, porque el caso es que ya no faltaba mucho tiempo para que venciera
el plazo acordado y yo ni siquiera había empezado a escribir. Ni tenía intención de
hacerlo. Así que cuando vi que mi tocayo tenía una novela inédita pensé que tal
vez… Pero no me atreví a hacerlo.
- ¿Por qué?
Dudó un momento, se encogió de hombros.
- No lo sé.
68
- Y , entonces, ¿ cómo salió del aprieto?
- No salí: me sacaron. Es lo iba a contarle. Pero antes déjeme que le cuente
otra cosa, porque si no a lo mejor no entiende cómo acabó todo.”(CERCAS, 2006,
p. 289)
A falta de habilidade com o ambiente familiar assim como a recusa do personagem em
integrar-se ao convívio social chama a atenção para sua tendência ao isolamento.
Interpretamos que a insatisfação e o distanciamento com respeito ao mundo gera o desejo de
querer ser outro. O autor explora o conflito do narrador-personagem para abordar umas das
dificuldades do universo literário: a conciliação da arte e da vida, em outras palavras, o
profissional e pessoal porque, conforme o personagem central, a escrita é um sonho
excludente. É interessante observar que a insatisfação do narrador não se refere às etapas da
infância ou da juventude, mas ao momento presente, a vida madura com suas
responsabilidades e compromissos.
Os recursos da linguagem demonstram a tênue fronteira entre a interioridade do ser
humano (frágil, fragmentado e que zela por sua individualidade) e seu posicionamento crítico
(pensador e profissional das letras absorvido na lógica do mercado). Dessa forma, o duplo é
utilizado como um recurso da autoficção do autor Javier Cercas para refletir sobre ambos os
domínios. O trabalho de selecionar e ordenar torna singulares os elementos manipulados no
conto e funciona como um filtro subjugado aos critérios do escritor. O olhar lançado sobre um
objeto, que neste caso é a realidade da produção literária espanhola na atualidade, é
participativo e integrante do sistema sem estar isento de intenção. É necessário, portanto
esclarecer que o resultado, sua visão, é também parcial e a imagem do descrito se transforma
e se reinventa sob o cristalino do descritor. Em conjunto, o vocabulário e a forma de conduzir
a narrativa são formas inserir seu estilo e dar graça ao conteúdo a seu texto.
O protagonista Javier Cercas deixa de ter experiências interpessoais na medida em que
se compromete com entrevistas, jantares, feiras literárias de divulgação. O duplo configura a
possibilidade de desvencilhar-se de um conjunto de editores, leitores, críticos que
representam„un humillante papelón de literato que me impedía llegar a ser del todo quién por
entonces creía que quería ser‟. (CERCAS, 2005, p.274).
O ponto alto da narrativa fantástica é o encontro entre o original e cópia. As
circunstâncias do encontro revelam o conhecimento e destreza do manejo da narrativa
fantástica. A ambientação e a situação cotidiana do estabelecimento de conversas, degustação
de aperitivos e bebidas no restaurante Los Manueles; o entorpecimento, o acontecimento
extraordinário que assalta o cotidiano. O vocabulário indica utilização do campo semântico
que envolve o duplo na literatura fantástica relacionando-o ao olhar. A cena que de forma
69
incisiva declara a existência de doppelgänger, que em La Verdad de Agamenón é indivíduo
fisicamente idêntico, de existência autônoma em relação ao original, faz alusão à superfície do
espelho; o consumo do whisky e a vertigem do encontro sugerem a uma falha nas faculdades
mentais e a loucura do protagonista.
A troca de vidas significa retornar a uma vida simples e sem as responsabilidades
implícitas ao papel de escritor e por outro lado, a chance de alcançar o reconhecimento e
fama. A contribuição quinzenal para o suplemento dominical de um periódico é único vínculo
que o narrador-personagem mantém com a antiga rotina e também o último a ser eliminado
entre o original e a cópia. Definitivamente, o elo de ligação literatura.
O distanciamento do narrador Javier Cercas e o doppelgänger se realiza
paulatinamente e pode ser percebido também na mudança do meio de comunicação entre
ambos: em primeiro lugar a carta, de tom mais íntimo, pessoal e físico; depois o telefone que
está ainda em um nível de concretude e permite a comunicação à distancia; por último, e-mail,
mensagem virtual de grande abrangência que pode ser emitida e recebida a partir de qualquer
lugar do planeta. O canal de comunicação entre eles é o e-mail, forma eficaz e segura que está
inserida no contexto informativo da pós-modernidade, elucida uma sociedade cada vez mais
individualista que valoriza o saber racional e científico.
A tecnologia traz inúmeros benefícios, mas junto a eles há também o processo cada
vez maior de isolamento dos indivíduos. No conto, essa representação aparece com a
transmissão de notícias e dados pela internet. Já não há a necessidade do encontro para trocar
informações e, sobretudo, o conteúdo mais relevante transmitido virtualmente é o artigo. Este
último é uma forma de apontar para a influência da tecnologia no cotidiano. A menção do
artigo é importante para vincular o caráter mercantil e inserir a literatura neste contexto.
“(...) escribir un artículo quincenal para el suplemento dominical de un periódico:
como era una fuente de ingresos importante de la que no convenía prescindir,
acordamos que seguiría escribiendo el artículo y que yo se lo enviaría a él por
correo electrónico para que él se lo enviara por el mismo procedimiento al
periódico, de forma que este no notara cambio alguno en el remitente.”(CERCAS,
2006, p.282)
Ainda que haja outros fatores, a morte do pai antecipa o sentimento de usurpação do
protagonista que acompanha o funeral à distancia. A descrição da cena é utilizada como
pretexto para retornar ao início do conto, que faz alusão ao lançamento do romance La
velocidad de la luz e esse fator assinala também a estrutura do conto dentro do conto.
Ironicamente, autor qualifica La velocidad de la luz como superior a Soldados de Salamina
quando na realidade ocorre ao contrario: Soldados de Salamina lança um novo olhar sobre a
70
Guerra Civil Espanhola, narrativa apaixonante que é parte da cultura e formação do escritor,
enquanto La velocidad de la luz repete a fórmula do romance anterior de forma empobrecida
porque a história de um veterano da Guerra do Vietnã não é parte do acervo cultural do Javier
Cercas.
(…)vi pasar a unos metros de mí a mi mujer y a mi hijo y a mis hermanas y sobre
todo distinguí la irritación inconfundible del llanto en los ojos de mi tocayo, cuando
sentí por primera vez una nostalgia hiriente de mi otra vida, de mi vida anterior y
verdadera, de mi mujer y de mi hijo y mi hogar y mi trabajo de escritor y también de
mi padre, y la tristeza y la nostalgia se me confundieron con una furia asesina
contra mi tocayo, como si hubiera sido él quien me hubiera robado la vida sin aviso
y no yo quien hubiera insistido en que me prestase la suya a cambio de que yo
hiciera lo mismo con él. (CERCAS, 2006, p.290)
Na medida em que constata que o duplo tem capacidade laboral e talento superiores
aos seus para desempenhar, a indiferença do narrador-personagem é transformada em raiva.
Ao se dar conta de que o duplo desempenhou o papel de órfão com perfeição, o narrador
percebe que está preso em uma a armadilha hermética:
“(...) Me he cansado: quiero recuperar a mi mujer verdadera, quiero recuperar a
mi vida verdadera y a mi hijo verdadero y mi trabajo verdadero, quiero recuperar a
mi vida de verdad. ¿Pero no te das cuenta? Aunque quisieras, tu mujer ya no es tu
mujer, tu hijo ya no es tu hijo, tus libros ya no son tus libros. Tu vida ya no es tu
vida: es la mía. Yo soy tu tú. ¿No lo entiendes?” (CERCAS, 2006, p.292)
3.3 PERSONAGENS: FICÇÃO E REALIDADE.
Não há escrita sem intenção. Todo discurso tem uma dimensão ideológica que
relaciona as marcas deixadas no texto com as suas condições de produção. A literatura opera
nessa dimensão, pois mescla entre o empírico e o imaginário, convertendo-se assim em
veículo apropriado para tratar de questões complexas. A relação entre a literatura e o
mercado, a construção do campo cultural, pertencimento a uma tradição e a influência da
tecnologia na produção artística são alguns dos pontos tocados nessa estreita relação.
No senso comum, o termo ideologia é sinônimo conjunto de ideias, de pensamentos
ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo para orientar práticas sociais e
políticas. Em sua concepção crítica, pode ser considerado um instrumento de dominação que
aliena a consciência humana, mascarando a realidade. Neste sentido, o fazer literário combate
o pensamento conformista:
“A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na
realidade social sendo, no entanto, sua outra face. A arte abre uma dimensão
inacessível a outra experiência, uma dimensão em que seres humanos, a natureza e
71
as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida.
Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na
sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens
distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda
não é percebido, dito e ouvido na vida diária.” (MARCUSE, s/d, p.78)
A obra de arte tenta operar na conscientização dos sujeitos da mudança. La verdad de
Agamenón é uma forma de protestar contra os valores mercantis dados a literatura e a seus
produtores que nas personagens encontra maior nitidez e torna mais livre a ficção. Daí a
utilização de um protagonista sem de ideologia e opinião, que assume um posicionamento
crítico. Annatol Rosenfeld (1970, p.29), afirma que é através da personagem de ficção que a
camada imaginária se adensa e se cristaliza e, por isso, “(...) as personagens ao falarem,
revelam-se de um modo bem mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem
ou procuram disfarçar a sua opinião verdadeira”.
Dessa forma, interpretamos o protagonista Javier Cercas como insatisfeito no campo
pessoal e profissional, alheio ao seu entorno. Doppelgänger, seu antagonista, personificação
da necessidade do escritor de manter-se no mercado literário e adotar uma posição crítica
também com relação ao seu ofício. A mulher do duplo, personagem sem nome, representa o
leitor formado pela literatura facilitada, que na Espanha coincide com a transição
democrática.
O período de transição do regime ditatorial ao democrático (1975 a 1981) constituiu
uma nova etapa cultural para Espanha, pois a morte de Franco e a subsequente evolução
política afetaram radicalmente as regras que condicionavam a criação artística 11 . O
desenvolvimento econômico e a incorporação à nova ordem mundial se converteram em meta
nacional e tais elementos estão diretamente relacionados a um movimento de democratização
da literatura.
Uma nova etapa literária se inicia com a democracia comprometendo a história
política com a literatura. O estudioso parte da premissa de que há correspondência entre a
nova ideologia política democratização e a paralela produção literária. A transição de um
regime a outro impacta diferentes níveis de comportamento social, expressão do imaginário e
discurso narrativo. Desse modo, houve a necessidade de adaptação dos escritores a um perfil
comercial sem abandonar a tônica de sua literatura.
O valor literário de uma obra e seu valor como mercadoria é polêmico. A questão
contribui para a desqualificação do produtor de literatura de consumo, taxada como
11 Cf. MONLEÓN, José B. Del franquismo a la posmodernidad. Ediciones Alcalá, 1995. p.5
72
descomprometida com a tradição literária. Diante da crítica, com relação à tradição culta
estabelecida, a popularização de obras com interesses comerciais foi o motivo de serem
descritas como obras menores. O mercado editorial se ampliou e produção literária periférica
acompanhou tal crescimento. Neste ínterim, no século XX houve a busca pela construção de
uma nova configuração do literário.
O início da escrita de Cercas está inserido neste processo de transformação e
adaptação ao meio europeu de contexto especificamente espanhol. Durante os anos de 1980 e
1990, o leitor foi formado pela leitura facilitada de best-sellers, romance policial e histórico,
que são transpostas à linguagem fílmica com o objetivo de atingir as grandes massas. Em uma
sociedade na qual é muito fácil publicar é necessário confrontar o comportamento passivo
formado na sociedade da imagem e se deseja um leitor participativo, que compartilhe da
discussão da obra.
Citar a primeira obra do escritor Javier Cercas enriquece a discussão sobre a crítica
literária, a participação do leitor na obra e amplia a compreensão da escrita do autor espanhol.
A primeira edição de El móbil data de 1987 e conta com cinco textos. Utilizamos a edição de
2003 que é constituída apenas pelo conto que lhe dá nome. Em El móbil (2003), toda a trama
é desenvolvida como um jogo que serve para refletir sobre os mecanismos da literatura e a
contradição que consiste em abandonar a humanidade pelo reconhecimento da obra. Álvaro, o
escritor que protagoniza a trama, tem o objetivo de escrever um romance de verdade, uma
obra definitiva que redimisse suas tentativas anteriores frustradas. O escritor fictício concebe
a história de um crime, escolhe seus vizinhos como modelos reais para seus personagens e
extrai da observação de suas vidas o material para sua obra.
Na medida em que avança na redação do texto, o protagonista constrói uma densa
relação entre a realidade e a ficção que foge ao seu controle ao longo da narrativa. Javier
Cercas arquiteta o texto de forma que os personagens manipulados entendam que Álvaro, o
protagonista, enlouquece com suas obsessões. A necessidade de representar um crime real na
ficção leva o escritor Álvaro a provocá-lo na vida real. O real motivo do crime é a literatura,
um crime sem perdão.
Em seus estudos sobre a obra de Javier Cercas, Nei Duclós faz a defesa da literatura de
Cercas estabelecendo relações entre El móbil e o ilustre “Crime e Castigo” de Dostoievski e
acrescenta que as obras compartilham o mesmo mote: um solitário sente-se injustiçado pela
sociedade e precisa encontrar nisso os motivos para o seu isolamento. Descobre que essa
doença é geral, todos estão confinados em suas vidas medíocres e encerra seu argumento
73
afirmando que Javier Cercas é um “escritor raro, que tem o principal motivo para fazer
literatura: contar toda a verdade, mesmo que isso pareça ser apenas um sinistro parque de
diversões”.
Retomando a análise de La verdad de Agamenón e tomando novamente a literatura
como fio condutor de todas as ações, a morte do pai é o acontecimento pessoal que promove a
nostalgia e o desejo de retornar à vida anterior e verdadeira. Entretanto, é o lançamento do
livro La velocidade de la luz o fator determinante para a ruptura do pacto e desejo de encerrar
da experiência.
A narrativa remete ao período que sucede o lançamento de Soldados de Salamina e
contabiliza pouco mais de um ano desde o início, o recebimento da carta e o suposto
assassinato do duplo. Por fim, o único pedido do protagonista Javier Cercas é não ser visto
como um louco. Em sua alucinação, ele crê que matou um homem e, por isso, merece ser
castigado:
Estoy perfectamente cuerdo. Entiendo que tengo que ser castigado: He matad a un
hombre y tengo que ser castigado. No pido perdón. Lo único que pido es que no me
tomen por loco, que me crean, que usted por lo menos me crea, que crea que todo lo
que le he contado es la verdad, la pura verdad, sólo le pido eso. Usted me cree,
¿no?
- Claro (CERCAS, 2009 ,p. 294)
Um diagnóstico científico explicaria que todo o relato é a alucinação de um
esquizofrênico. Em nossa análise, entendemos que o cenário que alberga a narrativa é a cela
de um manicômio e que o interlocutor não identificado é o psiquiatra ou enfermeiro
responsável pelo cuidado e tratamento do paciente. Nesta perspectiva, a armadilha hermética,
o pesadelo a qual se refere o narrador-personagem se torna real e é o resultado do seu
progressivo isolamento.
Em resumo, a esquizofrenia é um transtorno psíquico que se manifesta através de
alterações do pensamento, promovendo alterações no contato com a realidade e a distinção
entre experiências internas e externas. Na teoria freudiana, a origem desse transtorno é a
ausência de relações interpessoais satisfatórias, que justifica recorrer à figura do duplo como a
possibilidade de resgatar o convívio social e familiar. Neste sentido, é também interessante
observar o esmero de compor ambos os personagens, Javier Cercas e o doppelgänger,
assinalando hábitos diferentes. Enquanto é possível notar no protagonista o comportamento de
74
ansiedade e algumas compulsões como fumar, beber, roer e as unhas; o duplo não os
apresenta, representando a autocrítica e qualificando-o como superior.
Especialistas afirmam que não existe apenas um fator responsável pelo transtorno.
Admite-se que várias são as causas que colaboram para seu aparecimento como quadro
psicológico (consciente e inconsciente). Dessa forma, acreditamos que os elementos inseridos
no conto como a ambientação das cenas, o histórico de doença familiar (a internação do pai
em uma residência de anciãos), a possibilidade do uso de substâncias (bebidas alcoólicas)
consumidas no desencadeamento de surtos e afloração de quadros psicóticos podem reforçar a
ideia de que a narrativa é um delírio.
Reconstruindo a realidade habitual a partir da imaginação, a literatura nos convida a
indagar sobre quem somos. Nessa “lógica”, a obra de ficção é “um espaço privilegiado no
qual o homem pode “viver” e contemplar, por intermédio de personagens variadas, a
totalidade de sua condição” (ROSENFELD, 1970:29). Retornando a reflexão inicial, o
mundo que conhecemos é regido por leis naturais rígidas e imutáveis onde se buscam
respostas baseadas na lógica e na ciência. Em contrapartida, o espaço do imaginário é um
imprevisível universo de possibilidades que precisam do leitor para realizar-se.
A fase em que é gestada a produção literária de Javier Cercas é marcada pela intensa
busca por novos caminhos e formatos literários que possam melhor expressar a realidade do
mundo capitalista e suas contradições. Neste ínterim, a literatura muda o foco do interesse
pelas relações entre o homem e mundo para uma crítica da natureza da própria ficção. A
transformação cultural gesta o nascimento de diferentes modos de articulação e discursos
sobre o real.
O estudo O dualismo, Kalina e Kovadloff (1989) afirma que o dualismo é uma
condição inerente ao ser humano e seu sentido deve ser considerado como resposta ao
enfrentamento das circunstâncias vivenciadas. Em relação à arte os autores afirmam que ao
contrapor a visão cotidiana do mundo e a visão estética, podem ser observados ao menos dois
sentidos: o que é dado pelo costume e o que é conferido pelo assombro ao redescobri-lo.
Assim, graças à arte e à vida cotidiana, a realidade se bifurca revelando-se ante nós como
dualidade semântica. Enquanto na arte, a técnica e o saber estão colocados a serviço do
inusual, na vida cotidiana, a técnica e o saber asseguram a vigência do usual, isto é, ratificam
a crença do domínio pleno da natureza e de si mesmo.
O duplo do homem do nosso tempo não escapa ao temor da morte, das incertezas e
ambivalências da vida afetiva, descontrole das emoções, a necessidade de afirmação da sua
75
identidade. A conjunção da literatura fantástica e da autoficção indicam uma nova estratégia
literária. A literatura fantástica foi utilizada para questionar a racionalidade dando uma nova
significação ao duplo, uma segunda personalidade crítica. A autoficção moderniza a questão
identitária partindo da figura do escritor dentro da transformação cultural como personagem
não unificado, em constante processo de construção.
CONCLUSÃO
Segundo Tzvetan Todorov, uma das referências fundamentais nos estudos do
fantástico, o gênero teve seu auge no século XIX. A partir desse momento, desenvolve-se a
problemática da irrupção do fato inexplicável segundo as leis naturais no mundo que
conhecemos. Diante da afirmação de que o fantástico é vacilação entre aceitar uma explicação
natural ou sobrenatural dos fatos narrados, na proposta de Todorov, narrador, personagens e
leitor implícito são capazes de discernir se o texto representa a ruptura das leis do mundo
objetivo ou se fenômeno pode ser explicado mediante a razão. A partir do momento em que se
aceita o sobrenatural, entramos no terreno do maravilhoso; do contrário, no estranho.
A literatura fantástica demonstra uma nova percepção do mundo, da individualidade e
construção social, fornecendo ao imaginário a possibilidade de representar momentos de
inquietação deixados como espólio para a modernidade. Nesse viés, é fundamental considerar
as referências históricas e sociais em que um texto está inserido, base da teoria de Ana María
Barrenechea. Independente da organização de espaço e tempo, todo texto é lido em contraste
com o tempo e o lugar da leitura e, por isso, depende também dos códigos culturais. Dessa
forma, as noções de normal ou anormal estão diretamente ligadas àquilo que é socialmente
aceito.
Dentre as contribuições do gênero fantástico para a modernidade, observamos mais
atentamente a questão identitária. No conto La verdad de Agamenón, Javier Cercas explora o
tema da identidade do autor na atualidade. Indagamos o modo como o escritor utiliza o
fantástico no século XXI. Tentando responder a essa pergunta, desenvolvemos a presente
dissertação.
A construção e a preservação da identidade são preocupações do indivíduo moderno.
O duplo (doppelgänger), figura fantástica definida como cópia idêntica ou desdobramento do
ser, reflete essa preocupação e adquire em cada obra sentidos diferentes. Na literatura de
Cercas, a ficcionalização do autor e da crítica são recorrentes. La verdad de Agamenón
representa a personificação da crítica como segunda personalidade. Buscamos compreender
de que forma o fantástico e a identidade do autor estão relacionados à autoficção, estratégia
literária que sugere a identificação irônica entre narrador e autor. A proposta autoficcional
utiliza a produtividade da confusão autor/narrador/protagonista para reforçar a ideia da
fragilidade da identidade, que tem como centro de discussão a confusão entre a pessoa real e o
personagem escritor, a figura pública.
77
No conto, a conjunção de literatura fantástica e da proposta autoficcional constitui
uma inovação sugerida por Javier Cercas, que utiliza o elemento fantástico como método
crítico. Ao longo da dissertação, nos perguntamos que tipo de conflito está sendo manifestado
no texto. Percebemos a preocupação em demonstrar o conflito do produtor de bens
simbólicos, por isso, Cercas une o problema da identidade com a complexidade que envolve a
criação da figura do escritor na contemporaneidade. O autor constrói uma personalidade
literária em crise, valorizando pensamento crítico sem deixar de perceber que o mesmo está
inserido na lógica de produção e comercialização da literatura.
Tomando como base a teoria de Manuel Alberca, a autoficção consiste em tomar as
características da autobiografia e do romance e suscita a reflexão sobre a figura do escritor e
as transformações ocorridas no processo de elaboração da narrativa. A proposta autoficcional
é uma tendência que explora os limites entre o referente e sua representação literária, em
outras palavras, ficção e realidade, numa nova configuração da literatura. A análise do
estudioso explicita de que maneira se desenvolve a autoficção espanhola, oferecendo uma
visão do panorama artístico, cultural e intelectual da Espanha no período histórico de sua
gestação, a transição democrática.
O período de transição do regime ditatorial ao democrático (1975 a 90) constituiu uma
nova etapa cultural para a Espanha, pois a morte de Franco e a subsequente evolução política
afetam também as regras que condicionam a criação artística. A passagem de um regime a
outro impacta diferentes níveis na economia e no comportamento social com reflexos na
expressão do imaginário e discurso narrativo. A mudança significou maior liberdade tanto
individual quanto para o debate de ideias, conquista sociais como reforma da educação,
concessão de bolsas de estudo e ajudas a camadas desfavorecidas que contribuem também
para novos hábitos de consumo.
A questão do consumo está presente na teoria de Jean-François Lyotard, que entende
parte da pós-modernidade como fenômeno próprio da sociedade tecnológica para a qual
grande das produções tem como finalidade o mercado consumidor. A principal crítica de
Lyotard é referente ao saber, que passa a ser valorizado não para a construção dos
metanarrativas, entendidas como discursos de liberdade e humanidade, mas para tratar
diretamente de técnicas e produtos. Ao longo da pesquisa, mostramos que a tecnologia exerce
grande influencia sobre a literatura, desencadeando o surgimento formas literárias que operem
nessa lógica.
Na Espanha, o processo de desenvolvimento da autoficção coincide com a transição
democrática e paulatino desencanto do discurso político, que são demonstrados na literatura
78
através do conteúdo mais íntimo e pessoal na literatura sem, no entanto, ter o mesmo ônus do
autobiográfico ou adoção de uma postura política determinada. Na pós-modernidade
diferentes estilos e técnicas são aceitos com a intenção de formar um mesmo mercado
consumidor e a ideia de eliminar fronteiras se faz muito presente. Em La verdad de
Agamenón há uma integração entre o duplo e a autoficção. Ao mesmo tempo é interessante
observar que essa junção de elementos rompe com o realismo que se costuma atribuir à
literatura espanhola uma vez que utiliza introduz um elemento fantástico.
Dessa forma, emerge a reflexão de como construir a figura do escritor que representa a
necessidade de autoconhecimento e construção de uma personalidade literária em crise. As
manifestações do duplo e a autoficção têm a função subversiva de desmascaramento moral e
social da situação em que se encontra o escritor na atualidade. Essa perspectiva vai ao
encontro da primeira hipótese formulada, a valorização da figura do escritor. Chegamos à
conclusão de que Javier Cercas tem consciência não apenas do seu papel como produtor de
bens simbólicos, mas também da impossibilidade da arte transformadora da realidade. Na
medida em que o autor expressa a ironia e fragilidade de sua posição acaba com a ilusão de
que aquele que escreve é de alguma forma superior.
É necessário confrontar o comportamento passivo gerado pela facilidade de circulação
e consumo de obras. A literatura de Javier Cercas, gestada nesse processo de democratização
do conhecimento, faz surgir a necessidade da formação de um leitor participativo. A proposta
autoficcional valoriza e subverte os pactos romanesco e autobiográfico, reclama um leitor que
aprecia e suporta o jogo duplo de propostas contrárias, valorizando o pensamento crítico.
Embora o foco de nossa investigação tenha sido a obra do escritor Javier Cercas,
comprovamos que contexto social, político e a realidade literária da Espanha aparece também
em outros autores. A preocupação em produzir uma literatura que reclama uma forma distinta
de leitura é compartilhada, por exemplo, por Juan José Millás e Enrique Vila-Matas,
contemporâneos de Cercas e autores com os quais busca dialogar através de sua literatura.
Uma futura investigação dará lugar ao questionamento sobre de que forma essa literatura
contribui para a formação do novo leitor, aquele que compartilha da discussão da obra.
O percurso de planejamento, desenvolvimento e conclusão do nosso trabalho é mais
uma etapa do longo e contínuo processo de amadurecimento intelectual. Por isso, oferecemos
uma possibilidade de interpretação do texto La verdad de Agamenón sem a pretensão de
esgotar o tema e com o desejo de contribuir e participar de futuras investigações.
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ANEXOS
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Anexo A – CAPA DO LIVRO LA VERDAD DE AGAMENÓN
Ilustração 2 – Capa do livro La Verdad de Agamenón
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Anexo B – CÓPIA DE LA VERDAD DE AGAMENÓN
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