UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia – CAMEAM
Departamento de Letras – DL Programa de Pós-graduação em Letras – PPGL
Curso de Mestrado Acadêmico em Letras
FRANCISCO EDSON GONÇALVES LEITE
O DUPLO COMO MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE
LOYOLA BRANDÃO
PAU DOS FERROS 2013
FRANCISCO EDSON GONÇALVES LEITE
O DUPLO COMO MANIFESTAÇÃO DO INSÓLITO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração em Estudos do Texto e do Discurso, Linha de Pesquisa: Discurso, Memória e Identidade Orientadora: Profª. Drª. Antonia Marly Moura da Silva.
PAU DOS FERROS 2013
Leite, Francisco Edson Gonçalves. O duplo como manifestação do insólito em contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão / Francisco Edson Gonçalves Leite. – Pau dos Ferros, RN, 2013.
175 f.
Orientador (a): Prof.ª Dra. Antonia Marly Moura da Silva.
Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de Concentração: Estudos do Discurso e do Texto.
1. Duplo – Dissertação. 2. Contos – Dissertação. 3. Literatura Fantástica – Dissertação. 4. Telles, Lygia Fagundes – Dissertação.
5. Brandão, Ignácio de Loyola – Dissertação. I. Silva, Antonia Marly Moura da. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.
UERN/BC CDD 401.41
Catalogação da Publicação na Fonte.
Bibliotecário: Tiago Emanuel Maia Freire / CRB - 15/449
A dissertação “O duplo como manifestação do insólito em contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão”, autoria de Francisco Edson Gonçalves Leite, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN
Dissertação defendida e aprovada em 06 de março de 2013.
BANCA EXAMINADORA
PAU DOS FERROS 2013
DEDICATÓRIA
A meus pais, José Leite Sobrinho e Joana Maria Gonçalves Leite, meus
maiores incentivadores. A meu irmão, Evandro Gonçalves Leite, a quem muito
admiro. Agradeço a Deus por tê-los ao meu lado.
AGRADECIMENTOS
A Deus, a quem devo, primeiramente, a vida e todas as vitórias conquistadas.
A meus pais e meu irmão Evandro, pelo apoio e incentivo.
Aos demais familiares que de alguma forma contribuíram para que esse trabalho
se tornasse possível. Em especial a: Tio Deca, Benedita, Cimar, Leidiane, Irlane e
minha afilhada Ana Gabriely; minhas tias Tereza, Laura, Fátima e Celina; Madrinha
Nana.
Aos amigos verdadeiros que sempre se fizeram presentes com boas palavras e
atitudes.
Aos professores do PPGL – UERN, pelos ensinamentos e valorosas discussões
realizadas.
A minha turma do mestrado, pelo convívio amigável e companheiro. Em especial a
Ana Alice, companheira de viagem durante o primeiro ano do curso; Da Luz, pessoa
com quem, apesar da distância, desenvolvi uma relação de amizade e partilhei as
dificuldades, as dúvidas e as inquietações que surgiram ao longo do processo.
A minha orientadora, Drª. Antonia Marly Moura da Silva, pela atenção que
dedicou a mim desde quando cursei sua disciplina como aluno especial. Esta
dissertação é o resultado daquelas primeiras discussões que se intensificaram no
decorrer desses dois anos e meio.
À banca examinadora da qualificação e da defesa, pela disponibilidade em
participar de momentos importantes da minha trajetória acadêmica. Em especial aos
professores Dr. Charles Albuquerque Ponte e Dr. José Vilian Mangueira, que
contribuem para minha formação acadêmica desde a graduação em Letras.
À Capes, pelo apoio financeiro durante o curso do mestrado.
[…] A arte literária põe em cena, com
suas articulações particulares, o
conhecimento – embora lacunar – do
homem (suas histórias, desejos, pulsões
etc.) traduzindo em saberes variados; a
diferença está na peculiar alquimia formal,
indecifrável segundo Freud.
Cleusa Rios P. Passos.
RESUMO
Questões relacionadas à identidade do eu sempre despertaram o interesse e a inquietação de estudiosos dos mais variados campos epistemológicos. O mito do duplo, concebido por Bravo (1998) como uma figura arcaica, atesta tanto a tradição desse interesse quanto sua atualização em diferentes discursos, encontrando na literatura lugar privilegiado para sua ressignificação. Tomando como referência essa realidade, objetiva-se, neste trabalho, analisar as configurações assumidas pelo mito do duplo em contos de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Trata-se de um estudo crítico-comparativo de base interpretativista acerca de um total de cinco contos. Desses, três são da autora de “A caçada”, “A mão no ombro” e “O encontro”; e os demais de Brandão, “A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”. Dentre os estudiosos mais representativos que embasaram essa pesquisa, podem-se citar: Campbell (2008), Augras (2008), Eliade (1992, 2007), Armstrong (2005) e Chevalier e Gheerbrant (2009), que tratam dos aspectos míticos e simbólicos; Jung (2000), Mello (2000), Bravo (1998), López (2006) e Lamas (2002), que debatem o tema do duplo e sua inscrição na literatura; Todorov (2008) e Calvino (2004), que estudam as características do discurso fantástico na literatura; e Bosi (2002), Coutinho (1971), Gotlib (1999) e Galvão (1983), que tratam do gênero conto. Nas narrativas de Telles, verifica-se majoritariamente o duplo por fusão, ao passo que em Brandão observa-se exclusivamente o duplo por cisão. A partir do cotejo das obras dos dois escritores, conclui-se que o duplo em Telles apresenta-se como uma possibilidade de encontro com o eu em um passado, numa espécie de retorno a uma unidade original, enquanto em Brandão a busca pelo duplo reflete uma procura do sujeito pelo resgate das potencialidades latentes do eu inibidas pela sociedade. Esse encontro do eu com o outro se efetiva, nas narrativas analisadas, graças às infinitas possibilidades abertas pelo discurso fantástico na literatura. Pode-se afirmar que os dois escritores abordam a difícil tarefa de constituição de uma identidade em um mundo atual instável. Considerando as devidas particularidades, ambos os escritores tentam representar a crise identitária vivenciada pelo homem moderno, segundo a qual o ser duplicado é signo de um eu esfacelado e fragmentado. Assim, o mito do duplo é atualizado no conto brasileiro contemporâneo, adequando-se às exigências do contexto histórico, embora mantenha em sua essência o símbolo da busca da identidade.
PALAVRAS-CHAVE: Duplo. Contos. Literatura fantástica. Telles. Brandão.
ABSTRACT
Questions related to the identity of self have always drawn the interest and inquietude of studious in the most varied epistemological fields. The myth of the double, understood by Bravo (1998) as an archaic figure, attests both the tradition of this interest and its update in several discourses, finding in the literature a privileged place to its resignification. Taking this fact as reference this research has the purpose of analyzing the configuration which the myth of double assumes in Lygia Fagundes Telles’ and Ignácio de Loyola Brandão’s short stories. It’s a critic and comparative study based on an interpretative paradigm concerning a total of five short stories. From these, three are by the author of “A cacada”, “A mão no ombro” and “O encontro”; and the others by Brandão, “A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”. Among the most representative authors on whom this research is based on, it can be mentioned: Campbell (2008), Augras (2008), Eliade (1992, 2007), Armstrong (2005) and Chevalier and Gheerbrant (2009), that work with the mythic and symbolical aspects; Jung (2000), Mello (2000), Bravo (1998), López (2006) and Lamas (2002), that debate the theme of double and its inscription in the literature; Todorov (2008) and Calvino (2004), that study the characteristic of the fantastic discourse in the literature; and Bosi (2002), Coutinho (1971), Gotlib (1999) and Galvão (1983), that deal with the short story genre. In Telles’ short stories, it’s verified mostly the double by fusion, while in Brandão’s it’s observed exclusively the double by fission. From the confrontation of the writer’s short stories, it’s concluded that the double in Telles represents a possibility of encounter with a self in a past time, as a kind of return to an original unity, while in Brandão the seek for the double reflects the subject search for the rescue of the self latent potentialities inhibited by the society. The encounter between the self and the other is achieves, in those narratives, due to the endless possibilities that the fantastic discourse promotes in the literature. It can be assured that both the writers present the difficult task of identity construction in an instable world nowadays. Considering such particularities, both the authors try to represent the crisis of identity experienced by the modern subject, according to which the doubled human being is the sign of a fragmented and unfolded self. Therefore, the myth of the double is updated in the contemporary Brazilian short stories, as a way of adapting to the demands of the historical context, in spite of keeping in its essence the symbol of the identity search.
Key words: Double. Fantastic Literature. Telles. Brandão.
LISTA DE SIGLAS
AC: “A caçada”
MO: “A mão no ombro”
OE: “O encontro”
MPCC: “A mão perdida na caixa do correio”
CBM: “As cores das bolinhas da morte”
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – O MITO DO DUPLO: CONSIDERAÇÕES GERAIS.................... 18 1.1 Confluências: o diálogo entre literatura e mito......................................... 18 1.2 O mito do duplo: conceitos e aspectos teóricos....................................... 33 1.2.1 O duplo na filosofia, na religião e na mitologia......................................... 38 1.3 O duplo na literatura................................................................................. 44 1.4 O duplo e a literatura fantástica: algumas considerações........................ 49
CAPÍTULO II – O DUPLO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO..................................................................... 55 2.1 O gênero conto: origens, evolução e tendências atuais........................... 55
2.2 Representações do duplo em Lygia Fagundes Telles: uma leitura de três contos................................................................................................ 60
2.2.1 “A caçada”................................................................................................ 64 2.2.2 “A mão no ombro”..................................................................................... 74 2.2.3 “O encontro”.............................................................................................. 86 2.3 Representações do duplo em Ignácio de Loyola Brandão: uma leitura
de dois contos........................................................................................... 100 2.3.1 “A mão perdida na caixa do correio”......................................................... 104 2.3.2 “As cores das bolinhas da morte”............................................................. 119
CAPÍTULO III – METÁFORAS DA DUALIDADE EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO: UM ESTUDO COMPARATIVO................................................................................................... 134 3.1 Lygia Fagundes Telles.............................................................................. 134 3.2 Ignácio de Loyola Brandão....................................................................... 144
3.3 Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão: um diálogo (im)possível?............................................................................................. 154
CONCLUSÃO....................................................................................................... 163
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 167
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INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea1 sofreu profundas modificações em sua estrutura
organizacional as quais, inevitavelmente, refletem na constituição do sujeito,
especificamente na construção do eu e nas relações estabelecidas entre o indivíduo
e o meio social. Conforme afirma Jameson (2006), o contexto contemporâneo
decreta a morte do próprio sujeito, ao enfatizar o seu descentramento. Hall (2006)
comunga dessa mesma ideia, ao afirmar que as identidades centradas e unificadas,
que promoviam estabilidade para o sujeito, não encontram mais espaço nesse
contexto: “[…] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2006, p. 10).
Bauman (2005, p. 19) vê a construção do sujeito na sociedade contemporânea –
que ele denomina de “modernidade líquida” – sob essa mesma ótica, ao afirmar que
“[…] o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados,
enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de
episódios fragilmente conectados”. A multiplicidade de papéis assumidos pelos
sujeitos como resposta às demandas dessa sociedade fluida e instável mina com a
concepção, até então vigente, da constituição homogênea da subjetividade,
questionando, com isso, a própria noção do eu como centro da consciência e
transparente a si mesmo. Esse cenário moderno traz, portanto, para o primeiro plano
as discussões sobre as representações identitárias.
Essas concepções teóricas sobre as sociedades contemporâneas
inevitavelmente são representadas no campo literário, influenciando, dentre outros
aspectos, a forma como os escritores constroem a(s) identidade(s) de suas
personagens, expressa por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos. A
literatura, considerada ela mesma como duplo, “[…] uma enganadora imitação da
1 O termo “contemporâneo”, bem como seu correlato “contemporaneidade”, aparecem no texto
referindo-se a um período histórico-cultural surgido a partir da segunda metade do século XX. Sendo assim, do ponto de vista histórico, o que aqui se chama de contemporâneo corresponde ao que ficou conhecido no pensamento atual como pós-modernidade e que tem início, segundo Santos (2005), a partir da década de 1950. No entanto, o pós-modernismo não é um movimento cultural homogêneo. Ele é fruto, de acordo com Jameson (2006), de uma terceira fase do capitalismo que se inicia nos centros e só depois se expande para as periferias. É um termo muito polêmico e carregado ideologicamente, pressupondo uma gama de teorias que não condizem com a finalidade desta pesquisa. Em virtude disso, optou-se, então, pelo termo “contemporâneo”, por se entender que a palavra parece mais oportuna e adequada para o que aqui se propõe.
11
realidade” (LAMAS, 2002, p. 50), a partir de suas relações estabelecidas com o
contexto sócio-histórico que a circunda, passa à representação dessas identidades
fragmentárias, como se verifica especificamente nas configurações do duplo no
contexto atual. No Brasil, especificamente, o sujeito fragmentado passa a ser alvo de
representação literária, principalmente a partir do Modernismo, e assume maior
intensidade na literatura contemporânea.
Por estarem intrinsecamente relacionadas à problemática do eu, as
representações do duplo na literatura seguem essa mesma tendência, pois se
inserem nesse debate maior sobre a construção das identidades ao longo da
história. Embora tenha ganhado proeminência na atualidade, o questionamento
“quem sou eu?” é antigo e inscreve-se, de formas variadas, na tradição de diferentes
sociedades. O mito do duplo, enquanto figura arcaica (cf. BRAVO, 1998), é
representativo dessa disseminação espaço-temporal das lutas travadas pelo eu na
angustiante, mas necessária, busca da afirmação de uma unidade.
No entanto, vale destacar que a temática do duplo não é exclusiva da
literatura. Ao contrário, suas representações estão presentes em várias mitologias,
como a grega, na qual são emblemáticos os mitos de Narciso e de Hermafrodito; na
filosofia, principalmente em Platão e em toda a tradição que é tributária do
platonismo (cf. ROSSET, 2008); na religião, especificamente a cristã, na qual o ato
cosmogônico da criação é permeado pelo duplo. A literatura, em relação às demais
formas de discurso, é considerada um campo privilegiado em que a mitologia de
modo geral, e particularmente o mito do duplo, são, numa transmutação alquímica,
constantemente retomados e (re)escritos, através de uma rede intertextual
indestrinçável. Assim, o mito do duplo, ao longo da história da literária, assumiu
diferentes representações, consoante o contexto de produção, embora conserve em
sua essência o símbolo da busca da identidade através da relação do eu com o
outro.
Desse modo, qualquer consideração do duplo nas representações literárias
modernas deve necessariamente observar as nuances assumidas por esse mito ao
longo da tradição, já que a ideia de dualidade é antiga e sua expressão na mitologia
abrange uma variedade de narrativas. Portanto, faz-se necessário considerar a
relação dialética entre literatura e mito, estabelecida aqui pela presença do mito do
duplo como motivo literário. Essa relação é defendida por vários teóricos, dentre os
quais vale destacar a valorosa contribuição de Mielietinski (1987, p. 329), que, em
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afirmação categórica, declara: “A literatura está geneticamente relacionada com a
mitologia através do folclore, e particularmente a literatura narrativa […] que se liga à
mitologia via conto maravilhoso e epos heroico”. O termo “geneticamente”
estabelece uma relação primordial e essencial entre mito e literatura, de modo que
esta se mostra inseparável e dependente daquele. No entanto, o status dessa
relação foi mudando ao longo dos tempos, não havendo mais, no mitologismo do
século XX, correspondência direta com os mitos antigos: “[…] ao serem usados os
mitos tradicionais, seu próprio sentido modifica-se acentuadamente, sendo
frequentemente substituído por um diametralmente oposto” (MIELIETINSKI, 1987, p.
441). Dessa forma, os mitos antigos são ressignificados, ou seja, assumem uma
representação moderna para se adequarem, de certo modo, às exigências da
sociedade atual. O discurso mítico continua imbricado indissoluvelmente no literário,
só que assumindo novas facetas e significados. Portanto, é necessário situar
qualquer análise das representações do tema da dualidade dentro do conjunto
dessa tradição, ressaltando os diálogos e as relações intertextuais, de modo a
compreender as apropriações metafóricas do mito do duplo na modernidade.
Embora esteja presente nas representações literárias desde a antiguidade, a
temática do duplo alcança maior destaque na literatura romântica a partir do final do
século XVIII, sendo reatualizada e ganhando novos contornos na
contemporaneidade (cf. LAMAS, 2002). No contexto literário brasileiro, a
problemática surge na literatura de Álvares de Azevedo e de Machado de Assis, mas
apresenta-se com maior força “[…] sobretudo na segunda metade do século XX […]
em contos fantásticos, na obra de Murilo Rubião e Lygia Fagundes Telles” (LAMAS,
2002, p. 15). No contexto moderno, em que as concepções de sujeito e de
subjetividade são significativas, o mito do duplo, mais uma vez, demonstra sua
fertilidade e seu poder de adaptação, configurando-se como um motivo literário
através do qual são representadas as batalhas do eu pela busca da identidade,
emblematizando a consciência da natureza fragmentada e dual do sujeito. Essa
recorrência ao mito do duplo na modernidade deve-se muito ao fato de que, nesse
contexto, a ilusão da personalidade una do Renascimento não encontra mais
ressonância no cenário atual. O sujeito moderno é cônscio de sua duplicidade, razão
pela qual as produções literárias das últimas décadas do século XX apresentam
nítida recorrência à temática do duplo.
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Assim, nota-se que as representações da dualidade aparecem, no âmbito da
literatura contemporânea brasileira, como uma questão que tem conquistado espaço
e proeminência. Desse modo, defende-se a hipótese de que uma análise crítica da
problemática do duplo nos contos de Lygia Fagundes Telles e de Ignácio de Loyola
Brandão permite observar facetas dessa nova perspectiva de identidade projetada
na sociedade atual – sobretudo verificar traços característicos da representação
literária – e, num caminho inverso, possivelmente refletir sobre a construção de
identidades nessa sociedade. Assim, considerando o duplo como uma das vertentes
pela qual a identidade é representada na literatura, pretende-se investigar, neste
trabalho, as configurações que tal mito assume na literatura contemporânea
brasileira, especificamente na contística de Lygia Fagundes Telles e de Ignácio de
Loyola Brandão, tomando como foco os seguintes objetivos específicos: (1) verificar
traços do duplo em três contos de Lygia Fagundes Telles e dois contos de Ignácio
de Loyola Brandão; (2) demonstrar de que modo as representações do tema da
dualidade humana em contos selecionados podem ser consideradas como
atualizações ou representações modernas do mito do duplo na ficção dos referidos
escritores; (3) analisar as especificidades e também as similaridades nas
representações do tema do desdobramento do eu nos textos selecionados, através
de uma leitura comparativa dos contos; (4) observar nos contos escolhidos o duplo
como manifestação do insólito à luz do fantástico.
A pesquisa ora apresentada é de base explicativa e interpretativa. Dessa
forma, para o estudo do duplo nos contos, utilizar-se-ão, nas análises, a explicação
e a interpretação enquanto formas de buscar compreender as manifestações do
fenômeno em questão em textos literários selecionados. É uma investigação de
caráter bibliográfico, que se enquadra no método de abordagem dedutivo, partindo
de conhecimentos já construídos sobre a temática do duplo, os quais permitirão
realizar considerações e chegar a conclusões sobre a natureza do duplo
representado nos textos do corpus. Serão utilizados os procedimentos analítico e
comparativo, visto que se objetiva não somente fazer considerações sobre a
natureza da representação do duplo nos contos selecionados, como também
estabelecer paralelos, observando possíveis similaridades e diferenças entre as
configurações do desdobramento do eu nos textos de Lygia Fagundes Telles e de
Ignácio de Loyola Brandão.
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Desse modo, constituem o corpus da presente pesquisa 5 (cinco) contos: 3
(três) de Lygia Fagundes Telles e 2 (dois) de Ignácio de Loyola Brandão. Os contos
de Lygia são: “O encontro” (OE)2, publicado no livro Histórias do desencontro
(1958); “A caçada” (AC), publicado no livro O jardim selvagem (1974); e “A mão no
ombro” (MO), publicado no livro Seminário dos Ratos (2009). De Brandão, foram
selecionados os contos “A mão perdida na caixa do correio” (MPCC) e “As cores da
bolinha da morte” (CBM), ambos publicados no livro O homem que odiava
segunda-feira: as aventuras possíveis (2000).
Na construção da análise, serão adotados os seguintes procedimentos: (1)
observação das especificidades da representação do duplo nos contos de cada um
dos autores; (2) construção de paralelos entre os dois autores quanto à temática em
estudo, de modo a ressaltar as similaridades e as diferenças; (3) demonstração de
que modo o fazer artístico, no que concerne à representação do tema da dualidade
humana nos contos selecionados, atualiza o mito do duplo na ficção dos referidos
escritores; (4) estabelecimento de relações, no âmbito dos contos que compõem o
corpus, entre a temática do duplo e o fantástico.
Neste estudo, optou-se por trabalhar com contos de Lygia Fagundes Telles e
Ignácio de Loyola Brandão por dois motivos principais: em primeiro lugar, ambos são
autores contemporâneos, com uma vasta produção literária, reconhecidos e
representativos da literatura brasileira atual; em segundo lugar, a temática do duplo
ocupa espaço privilegiado não somente nas narrativas selecionadas como corpus da
pesquisa, mas na produção literária desses escritores. Dessa forma, torna-se
pertinente, além de analisar a configuração do duplo nos contos de cada autor, fazer
também uma análise comparativa, procurando estabelecer possíveis semelhanças e
diferenças entre eles quanto à representação do referido tema.
Os contos de Lygia Fagundes Telles seguem uma veia subjetivista e
introspectiva, característica que se manifesta na literatura brasileira, principalmente
a partir da década de 60 do século XX. Em seus contos, a ênfase recai sobre o
plano psicológico das personagens: a autora procura desnudar a vida interior desses
seres da ficção, explorando seus conflitos interiores, suas angústias e medos. Nos
contos de Lygia, o psicológico aparece atrelado, muitas vezes, ao fantástico,
conforme se verificará nos contos escolhidos para o corpus desta pesquisa,
2 Entre parênteses constam as convenções simbólicas utilizadas para representar os contos nas
citações ao longo do texto.
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englobando temas que vão desde “[…] temas corriqueiros de história simples,
abarcando também situações complexas e estranhas, até desembocar no
sobrenatural e no fantástico, rompendo com os limites racionais do humano”
(LAMAS, 2002, p. 112).
A literatura de Ignácio de Loyola Brandão apresenta algumas semelhanças
com a de Telles, especificamente na representação do tema do duplo em contos de
natureza fantástica. Conforme afirma Couto (2000), há na literatura de Brandão uma
veia de inspiração kafkiana que metaforiza o absurdo da realidade, retratando em
suas obras a solidão do ser humano em meio ao mundo contemporâneo – uma
constante em suas obras –, através de personagens criadas “[…] à semelhança dos
seres humanos, de qualquer ser humano. Ninguém em especial […]” (COUTO,
2000, p. 105). Além da temática do duplo, a ficção de Brandão e, especificamente,
os contos que constituem o corpus dessa pesquisa são marcados pelo discurso
fantástico. As personagens se veem diante de situações insólitas, que geram uma
ruptura no cotidiano, criando, para o leitor, a sensação de estar diante de histórias
absurdas, surrealistas (cf. COUTO, 2002).
Em relação ao gênero conto, em particular, decidiu-se por trabalhar com essa
forma de narrativa porque, conforme declara Lamas (2002), o duplo ganha destaque
na representação literária brasileira em contos fantásticos – os contos que
constituem o corpus apresentam inclinação para o fantástico. Além disso, outro fator
que norteou a escolha das narrativas foi a razão de elas apresentarem variedade e
riqueza temática que incitam a investigação pretendida.
Portanto, nos cinco contos eleitos dos autores em pauta pretende-se observar
o estatuto do duplo, o outro com o qual a personagem estabelece relações múltiplas,
que podem ir da identificação total com ele até a oposição. Propõe-se, ainda,
partindo da afirmação de Brunel (1998, p. 17) de que “[…] a literatura é o verdadeiro
conservatório dos mitos”, estabelecer, nas análises, a ligação, há muito tempo
reconhecida pela Teoria da Literatura, entre literatura e mito, ao mostrar como o mito
do duplo é retomado e atualizado nas representações literárias da modernidade. A
partir disso, espera-se contribuir com os estudos da crítica literária sobre esses
autores, tomando como foco a resolução dos seguintes questionamentos: (1) que
facetas assume a representação literária do duplo em contos de Telles e Brandão,
ambos escritores representativos do cenário literário brasileiro contemporâneo?; (2)
de que modo o fazer artístico, no que concerne à representação do tema da
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dualidade humana nos contos selecionados, atualiza o mito do duplo na ficção dos
referidos escritores?; (3) qual(is) a(s) especificidade(s) nas representações do duplo
nos cinco contos, bem como a(s) similaridade(s) existente(s) entre eles?; (4) que
relação existe nos contos entre a temática do duplo e do fantástico nas narrativas
dos contistas em destaque?
O presente trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro, o foco é
o mito do duplo em seus aspectos gerais: suas origens míticas, seu desdobramento
em outros discursos, enfatizando principalmente sua representação na literatura, da
antiguidade aos dias atuais. Assim, discute-se o conceito de mito e sua influência na
sociedade, bem como sua imbricação com a literatura, a fim de justificar a relação
intertextual entre esses dois domínios discursivos, particularmente no tocante ao
mito do duplo. Em seguida, apresentam-se algumas conceituações do duplo,
apontando não uma definição última, mas determinadas constantes que permitam a
identificação desse fenômeno. A partir disso, passa-se à apresentação desse tema
em variados domínios para demonstrar sua recorrência em diferentes produções
discursivas, como a mitologia, a filosofia, a religião e principalmente a literatura,
enfatizando, em relação a este último domínio, as configurações assumidas pelo
tema em épocas diversas. Por fim, investigam-se possíveis relações entre o
fantástico na literatura e o tema da dualidade.
O segundo capítulo apresenta, de início, uma pequena introdução sobre o
gênero conto – sua origem, evolução e formas assumidas na modernidade – e,
antecedendo às análises, algumas considerações sobre a contística dos escritores,
destacando, principalmente, o modo como o tema do duplo inscreve-se na ficção de
cada um deles. Nas análises dos contos de Telles e Brandão, é observado de forma
mais atenta como o duplo se inscreve em cada narrativa.
No terceiro capítulo, é desenvolvido um cotejo entre a produção literária de
Lygia Fagundes Telles e de Ignácio de Loyola Brandão. O propósito do estudo
comparativo da ficção dos dois contistas é observar pontos convergentes e/ou
divergentes na configuração do duplo. A comparação será realizada em dois graus
distintos: primeiro, considerando o universo de cada autor, de modo a compreender
como o duplo se inscreve nos contos selecionados; segundo, comparando as
configurações assumidas pelo duplo em Telles e Brandão, de modo a identificar um
possível diálogo entre textos.
17
Sendo assim, ao abordar o tema do duplo em contos de Lygia Fagundes
Telles e Ignácio de Loyola Brandão, pretende-se que este trabalho possa contribuir
com outros desenvolvidos na área, além de ampliar as discussões sobre os estudos
críticos de obras dos dois escritores, de modo a avançar na compreensão dos
procedimentos formais e temáticos característicos da contística de ambos. Além
disso, considera-se a produção desses autores como campo fértil para o
desenvolvimento de variados estudos no âmbito da literatura, o que significa que
esta pesquisa se inscreve como uma entre tantas possibilidades de abordagem e
não objetiva realizar um fechamento da temática, mas, sobretudo, somar, num
diálogo intertextual com outras produções teórico-críticas.
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CAPÍTULO I – O MITO DO DUPLO: CONSIDERAÇÕES GERAIS
1.1 Confluências: o diálogo entre literatura e mito
Os seres humanos, desde os primórdios, sempre foram criadores de mitos. O
mito se inscreve de tal modo na história da humanidade, muitas vezes confundindo-
se inclusive com ela, que se torna tarefa difícil, e talvez impossível, separá-los a fim
de traçar e encontrar as origens da narrativa mítica, conforme salienta Cassirer
(1992). Essa inscrição do mito tão arraigada nos primórdios da sociedade humana é,
indubitavelmente, um indicativo poderoso de sua importância. Sobre isso afirma
Campbell (2008, p. 46) que “[…] Precisamos dela [a mitologia] como o marsupial
precisa da bolsa para superar a fase de filhote incapaz e se desenvolver […]”,
destacando, desse modo, seu valor vital para o desenvolvimento humano.
A dependência do primitivo em relação ao mito é justificada pela necessidade
humana de atribuir significado a sua existência, o que é possibilitado pela narrativa
mítica: “Uma ordem mitológica é um conjunto de imagens que dá à consciência um
significado na existência […]” (CAMPBELL, 2008, p. 34). Dessa forma, o mito
assume uma função psicológica e social importante: ele organiza interna e
externamente as atividades do sujeito, permitindo-lhe tomar conhecimento de si
mesmo e também do outro. O caos transforma-se em cosmos “[…] por meio da
palavra que nomeia os seres, atribuindo-lhes os respectivos lugares e papéis”
(AUGRAS, 2008, p. 17). Assim, o mito traz para a consciência e vivência do sujeito
aquilo que até então era desconhecido e, por conseguinte, temido, organizando a
experiência humana e permitindo o relacionamento satisfatório com a natureza que
o circunda. Desse modo, é somente através da palavra mítica, do verbo primordial,
que o ser primitivo conhece a si mesmo e ao mundo ao seu redor.
Esse fator estruturante e funcional é característico de todas as mitologias,
constituindo-se, inclusive, como uma das principais condições de sua existência.
Sendo assim, a narrativa mítica incide sobre acontecimentos e fatos considerados
significativos no contexto de cada sociedade, atuando como um elo que promove a
integração e a compreensão de fenômenos até então temidos e inexplicáveis,
porque inacessíveis ao entendimento humano. Desse modo, pode-se, mesmo diante
da grande variedade de mitos existente nas mais diversas culturas ao longo da
história, destacar algumas temáticas às quais ele se relaciona mais intimamente,
19
como a morte, a criação do mundo – acontecimentos esses a que muitos estudiosos
creditam o surgimento da narrativa mítica.
Morin (Apud AUGRAS, 2008) relaciona o surgimento do mito à revelação da
condição mortal do ser, que, para lidar com essa problemática, cria narrativas que se
apresentam como uma espécie de explicação dessa condição: “Ao descobrir-se
mortal, o Homo Sapiens conscientiza a possibilidade de ser e de não ser. É
inaceitável o não ser, mas a morte afirma sua realidade. Da necessidade de
sobreviver à contradição, de morar nela, surge a palavra, o símbolo, o mito”
(AUGRAS, 2008, p. 18).
Da mesma forma que o homem, ante a problemática da morte, cria narrativas
a fim de superar a ameaça de aniquilação do ser, também procura, no que se refere
à origem e criação do mundo onde vive, uma explicação através de mitos. Esses
mitos sobre a criação do universo, ou seja, as cosmogonias, são igualmente
recorrentes nas sociedades primitivas e representam o ato primordial da criação do
universo realizado pelos deuses quando da transformação do caos em cosmos. Nas
sociedades antigas, o ato cosmogônico realizado pelos deuses é erigido como
modelo de toda criação, razão pela qual “Toda criação repete o ato cosmogônico
pré-eminente (sic), a criação do mundo” (ELIADE, 1992, p. 7).
Obviamente, a mitologia, considerada no contexto das sociedades primitivas,
não se restringe apenas às temáticas da morte e às cosmogonias. Ao contrário,
abarca todos os aspectos da vida do homem, inclusive as tarefas consideradas mais
rotineiras, e oferece modelos de comportamento nas mais variadas esferas de
atividade, como enfatiza Eliade (2007, p. 13): “[…] a principal função do mito
consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas
significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a
arte ou a sabedoria”. Essa função de modelar comportamentos, destacada aqui por
Eliade (2007), dá a dimensão da importância do mito para as sociedades primitivas.
Nesse cenário, o mito, como aponta Patai (1974), assume uma dupla função: ao
mesmo tempo em que valida e autoriza certos costumes, ritos e crenças, é ele
também o responsável pela criação deles.
Compreendido sob essa ótica, o mito não é concebido como uma “ficção”,
conforme se verifica nas sociedades modernas desmitologizadas, mas como uma
verdade inquestionável que organiza e modela a vida social. A mitologia encontra-se
tão intrinsecamente conectada à vida, que é impossível separá-las ou concebê-las
20
isoladamente, de sorte que “[…] os homens aceitaram o mito sem discussão”
(PATAI, 1974, p. 19). Assim, a pergunta “o que é mito?”, colocada pela sociedade
atual – questão esta, aliás, de difícil solução –, já marca certo distanciamento do
homem em relação à mitologia, visto que reflete uma postura crítica e inquiridora
não verificada nas sociedades antigas. Considerando os riscos de qualquer
definição que tente abarcar a diversidade e a complexidade das práticas mitológicas,
Eliade (2007) apresenta uma conceituação que ele mesmo reconhece como a
“menos imperfeita”. Para ele, o mito conta uma história sagrada de seres
sobrenaturais ocorrida no tempo primordial, sendo, portanto, sempre a narrativa de
uma criação (cosmogonia). É também uma narrativa verdadeira, que realmente3
aconteceu.
Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 2007, p. 11. Grifos do autor)
Assim, é através da mitologia e dos modelos por ela oferecidos que o homem
se constitui enquanto ser e organiza suas relações com o mundo e com seu meio.
Campbell (2008), em seus estudos sobre a mitologia, apresenta quatro funções
desempenhadas pelo mito ao longo da humanidade, a saber: (1) buscar conciliar a
consciência dos indivíduos com as precondições de sua existência; (2) apresentar
uma imagem do cosmos, de modo que conserve no indivíduo uma sensação de
assombro místico; (3) preservar e validar um determinado sistema de leis
sociológicas, ou seja, o que se considera certo e errado numa determinada cultura;
(4) auxiliar o sujeito a atravessar as etapas da vida – aqui o mito funciona como
suporte psicológico.
Em seu conjunto, as práticas mitológicas de uma comunidade podem ser
consideradas como uma grande narrativa que engloba, ao mesmo tempo e de forma
interligada, diferentes áreas da atividade humana: desde práticas religiosas, normas
de conduta e convívio social até modelos de desenvolvimento psicológico. Assim
3 O próprio Eliade esclarece o que significa, dento de sua conceituação do mito, as palavras
“verdadeiro” e “realmente”: “[…] o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’, porque sempre se refere a realidade” (ELIADE, 2007, p. 12. Grifos do autor). Essa ideia é complementada pela afirmação de Patai (1974), para quem a verdade do mito não é simples tampouco factual, mas advém da crença que se tem nele.
21
sendo, na narrativa mítica, coadunam-se diferentes saberes articulados por meio de
uma linguagem singular, e, como um caleidoscópio, o mito produz uma profusão de
luzes em sentidos diversos. Como os raios de luz projetados pelo caleidoscópio, o
mito, devido a sua dinamicidade e complexidade, também não permite uma visão
totalizante e homogeneizante, mantendo sua vitalidade a cada novo olhar. É sabido
que os mitos são narrativas orais criadas pelo homem e passadas de geração em
geração através da tradição oral. A partir dessas considerações, tornam-se
inevitáveis os seguintes questionamentos: quem é o arquiteto dessa complexa obra
de estrutura caleidoscópica chamada mito? De qual(is) material(is) se serve esse
astuto arquiteto para construir seu engenhoso projeto?
Nesse terreno de estrutura labiríntica e cheia de veredas, que não permite ao
pesquisador uma caminhada fácil, as perguntas parecem proliferar mais
rapidamente e com maior força do que as repostas que se têm para elas. Contudo,
uma reposta a essas questões está mais próxima do homem e intimamente
relacionada a ele do que se possa imaginar.
Armstrong (2005) percebe no homem uma capacidade singular que o
diferencia das demais espécies, sendo este o ponto de partida para uma resposta ao
primeiro questionamento acima apresentado. Segundo essa autora, o homem,
desde tempos remotos, diferencia-se dos demais animais pela capacidade de
formular pensamentos que transcendem sua experiência cotidiana. Desse modo,
ele, via pensamento, consegue momentaneamente se desvencilhar de sua
existência empírica imediata (o seu presente) e projetar-se numa outra estrutura
temporal (passado ou futuro), distanciamento esse que possibilita reflexão,
compreensão e avaliação de sua experiência concreta. De acordo com Armstrong
(2005), é na busca de sentido para sua existência, possibilitada pelo pensamento
transcendente, que está o impulso criador dos mitos. Para tanto, o homem faz uso
de seu imaginário, definido por Armstrong (2005, p. 8) nos seguintes termos:
“Possuímos imaginação, uma faculdade que nos permite pensar a respeito de coisas
que não se situam no presente imediato e que, quando as concebemos, não tem
existência objetiva. A imaginação é a faculdade que produz a religião e a mitologia”.
Uma vez situado o campo do imaginário como a faculdade humana
responsável pela criação dos mitos, cabe agora decifrar quais são os elementos
utilizados por ele nessa engenhosa construção. Em primeiro lugar, cabe destacar,
como aponta Cassirer (1992), que a mitologia está duplamente relacionada à
22
linguagem: tanto em sua construção, já que o pensamento constitui-se através da
linguagem; quanto em sua expressão, ou seja, à forma narrativa que o mito assume
exteriormente e que permite sua reprodução e transmissão de geração a geração.
Além disso, Cassirer (1992, p. 28) aponta uma analogia entre a consciência mítica e
a linguística:
Do mesmo modo que a consciência linguística, a consciência mítica só diferencia configurações isoladas individuais à medida que vai colocando progressivamente essas diferenças, à medida que as vai “segregando” da unidade indiferenciada de uma percepção originária.
Nessa afirmação, Cassirer (1992) coloca a diferença como o processo que
permite, tanto na linguagem quanto na mitologia, a segregação de um todo
indiferenciado em unidades individuais. Aqui, pode-se supor uma possível influência
do pensamento de Saussure (1975), para quem cada termo do sistema linguístico só
adquire valor (tanto conceptual quanto fonologicamente) na medida em que se
relaciona e se diferencia dos demais, resultando em sua afirmação bastante
conhecida: “[…] na língua só existem diferenças […]” (SAUSSURE, 1975, p. 139).
Adaptando essas ideias ao pensamento mítico, a luz existe como tal em oposição à
sombra, o dia em oposição à noite, a vida em oposição à morte etc.
Reconhecida a necessária e importante relação da linguagem com as
narrativas míticas, em que medida estas diferem da linguagem usada na
comunicação cotidiana? Para Campbell (2008, p. 73), os mitos tiram sua força e
energia dos símbolos: “As mitologias fazem sua mágica por meio de símbolos. O
símbolo atua como um automático que libera energia e a canaliza”. Essa afirmação
é um passo importante na direção de uma maior compreensão do funcionamento do
mito. Contudo, determina agora a necessidade de entender como esses símbolos
são criados e por que são tão significativos para o homem, a ponto de inscreverem-
se na base de todos os sistemas mitológicos. Para compreender a gênese do
símbolo na psique humana, faz-se necessário recorrer à Jung (2000),
especificamente aos conceitos de inconsciente coletivo4, arquétipo e símbolo por ele
formulados.
Jung (2000) estabelece uma distinção entre dois níveis do inconsciente: o
inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. Segundo esse autor, no inconsciente
4A palavra “coletivo” não tem aqui significado metafísico. Refere-se a aspectos comuns aos seres
humanos (cf. CAMPBELL, 2008).
23
pessoal residem os conteúdos que, em algum momento, já foram conscientes, mas
que, por alguma razão, desapareceram da mente consciente e foram, portanto,
reprimidos e/ou esquecidos. Por outro lado, os conteúdos do inconsciente coletivo
nunca estiveram presentes na consciência dos sujeitos, não sendo, portando, uma
aquisição individual, mas o resultado de uma “herança” comum a todos os seres
humanos. Para cada uma dessas duas camadas do inconsciente, Jung (2000)
relaciona um tipo de conteúdo psíquico constituinte diferente: o inconsciente pessoal
é formado em grande parte por complexos, ao passo que o inconsciente coletivo
essencialmente por arquétipos. De acordo com Jung (2000, p. 53), “O conceito de
arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo,
indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo
tempo e em todo lugar” (Grifos do autor). Desse modo, os arquétipos podem ser
entendidos como estruturas fixas, comuns a todos os seres humanos
independentemente do tempo ou lugar. Contudo, como reconhece Jacobi (1995), o
arquétipo, acostumado à obscuridade e à profundeza do inconsciente coletivo, é um
conceito difícil de precisar, visto que não é possível ter acesso a ele de modo direto,
mas apenas indiretamente, por meio de sua manifestação na psique. A essa
manifestação do conteúdo arquetípico na consciência, Jacobi (1995, p. 72), baseado
em Jung, nomeia de símbolo: “Quando o arquétipo aparece no aqui e agora do
espaço e do tempo, podendo, de algum modo, ser percebido pelo consciente,
falamos então de um símbolo” (Grifos do autor). A etimologia da palavra “símbolo” já
revela a dualidade implicada no próprio nome: “[…] algo que, por trás do sentido
objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo” (JACOBI, 1995, p. 75).
Enquanto roupagem de um conteúdo arquetípico, o símbolo, contrariamente ao
signo, promove uma ruptura e uma descontinuidade, adquirindo significado através
da mediação tensa que estabelece entre consciente e inconsciente, visível e
invisível (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). Desse modo, o símbolo já
inscreve a ambivalência em seu próprio processo de constituição e instaura um jogo
indecidível entre presença e ausência, luz e sombra, ocultamento e revelação, real e
irreal, concreto e abstrato. Em razão disso, Jacobi (1995, p. 84) afirma que o
símbolo é, na compreensão de Jung, “[…] um fator psíquico que não é causalmente
solucionável nem compreensível e tampouco pré-determinável, mas sempre tem
sentido múltiplo e bipolar”.
Essa conceituação baseada na psicologia jungiana da universalidade das
24
estruturas e conteúdos arquetípicos dá suporte a teorias que afirmam existirem
semelhanças entre as diferentes mitologias situadas em esferas temporais e
espaciais distintas. Curiosamente, Lévi-Strauss (2003, p. 239), em seus estudos
sobre os mitos desenvolvidos no campo da antropologia estrutural, chega
praticamente à mesma conclusão: “Os mitos se reproduzem com os mesmos
caracteres e segundo os mesmos detalhes, nas diversas regiões do mundo”. Desse
modo, ambas as teorias, embora partindo de princípios distintos e percorrendo
caminhos diferentes, na verdade se complementam em vez de apresentarem
resultados divergentes, ao apontarem para uma relativa universalidade dos mitos no
tocante a temas e estruturas constituintes.
Uma vez expostas as principais características e aspectos constituintes dos
mitos, partir-se-á, agora, para uma análise diacrônica, buscando entender como o
homem se relacionou com a mitologia ao longo dos séculos e quais fatores
apresentaram-se como determinantes nessa relação. Como já foi exposto aqui – ao
discorrer sobre a funcionalidade do mito no contexto das sociedades primitivas –,
este era concebido como uma espécie de Carta Magna que, tomada como modelo
pela sociedade, determinava e guiava o modo de comportamento nas mais variadas
esferas da atividade humana. O mito era, portanto, indissociável da sociedade: por
um lado, a mitologia fundava o mundo através das cosmogonias; por outro,
mantinha esse mundo ou cosmos em ordem, protegido da ameaça de retorno ao
caos, pela repetição dos atos primordiais relatados nas narrativas míticas. Como
afirma Eliade (2007, p. 16. Grifos do autor.): “Se o mundo existe, se o homem existe,
é porque os Entes Sobrenaturais desenvolveram uma atitude criadora no ‘princípio’”.
Desse modo, o mito é, indiscutivelmente, um dos pilares centrais das sociedades
primitivas, talvez até o mais importante, pois ele atribui sentido ao mundo e à vida do
homem (“cria-os” no âmbito da consciência dos sujeitos) e, ao mesmo tempo,
mantém a organização social, por meio dos modelos de ações e comportamentos
“corretos” e “verdadeiros” que sugere. Como se vê, nas sociedades primitivas há
uma harmonia entre homem e natureza, sendo o mito o elemento estruturador.
Contudo, Eliade (2007) aponta uma diferença substancial entre o homem
arcaico e o moderno. Enquanto o primeiro se considera o resultado dos eventos
míticos, o segundo introduz uma ruptura nessa relação, ao conceber-se como o
produto da História. A mudança de orientação do homem moderno é,
indubitavelmente, reflexo das transformações ocorridas na forma de o sujeito
25
compreender e se relacionar com o mundo. Essa nova civilização surge, segundo
Armstrong (2005), no século XVI, na Europa, de onde se espalha para o restante do
mundo entre os séculos XIX e XX.
Severiano e Estramiana (2006) posicionam-se de forma parecida, ao
afirmarem que a modernidade surge com o Renascimento no século XV, e apontam
também o desenvolvimento do capitalismo como um fator determinante para o seu
estabelecimento e evolução. Essa nova forma de organização social, segundo esses
autores, marcada “[…] por uma descontinuidade temporal e uma ruptura no que diz
respeito à tradição” (SEVERIANO; ESTRAMIANA, 2006, p. 23), apresenta como
características principais: (1) desintegração do conhecimento mítico, religioso,
tradicional em nome da ciência; (2) separação entre homem e natureza, passando
esta última a ser objeto de estudos orientados pela razão; (3) intelectualização,
racionalização e instrumentalização; (4) método científico como meio pelo qual o
homem exerce seu poder; (5) ênfase do conhecimento científico sobre os meios, o
quantitativo, o formal e o mensurável em detrimento do valor, da perfeição, do belo,
do qualitativo e da finalidade; (6) autonomia da ciência e outras áreas em relação à
religião; (7) advento do estado moderno, administrado segundo os princípios da
racionalidade; (8) instituição de fatores como universalidade, individualidade e
racionalidade (cf. SEVERIANO; ESTRAMIANA, 2006).
A partir dessas considerações sobre a sociedade moderna, vê-se que uma
das bases centrais sobre a qual ela se apoia é o conceito de razão.
Indiscutivelmente, a modernidade é filha do logos, como destaca Armstrong (2005):
a racionalidade está intrínseca e organicamente ligada à vida moderna, fazendo-se
presente, mesmo que de forma imperceptível ou disfarçada, nas atividades mais
cotidianas. Uma vez compreendida a estrutura que sustenta essa sociedade,
percebe-se o motivo pelo qual ela tem imposto tão brutais ataques à mitologia e a
outras formas de conhecimento análogas: trata-se do instinto de autoconservação,
tão presente na vida animal, de eliminar e/ou anular o inimigo que representa
ameaça, a fim de garantir a própria sobrevivência. Adorno e Horkheimer (2006, p.
77) consideram que, na base da oposição entre a sociedade moderna e a mitologia,
encontra-se, respectivamente, o embate entre o racional e o irracional: “O princípio
segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é irracional
fundamenta a verdadeira oposição entre a mitologia e o esclarecimento”. Desse
modo, como um animal acuado e amedrontado, a sociedade moderna consegue sua
26
afirmação atacando e destruindo aquilo que se lhe contrapõe e que, potencialmente,
pode vir a retomar o lugar usurpado. Enquanto mecanismo de controle e
manutenção de uma ordem, a razão e o conhecimento científico, aliados e alienados
de si mesmos, cumprem perfeitamente o papel a eles delegado:
A ciência ela própria não tem consciência de si, ela é um instrumento, enquanto o esclarecimento é a filosofia que identifica a verdade ao sistema científico. […] Com a confirmação do sistema científico como figura da verdade […] o pensamento sela sua própria nulidade, pois a ciência é um exercício técnico, tão afastado de uma reflexão sobre seus próprios fins como o são as outras formas de trabalho sob a pressão do sistema. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 74)
Assim sendo, o esclarecimento, de acordo com esses autores acima
mencionados, elimina a autoconsciência e o pensamento reflexivo sobre si,
resultando em uma prática mecânica que, através de um sistema de conceitos
previamente formulados, anula a diversidade da práxis, ao submetê-la a esse
sistema fechado e sempre o mesmo. Nesse contexto, é também abolida a diferença,
uma vez que configura uma ameaça à uniformidade e à totalidade do sistema
estabelecido.
Enquanto, tradicionalmente, o advento da razão e sua dominância nos
sistemas de pensamento situam-se principalmente a partir do Iluminismo, Adorno e
Horkheimer (2006, p. 48) são audaciosos e recuam bem mais no tempo para
apresentar o início do embate entre mitologia e esclarecimento (razão): “De fato, as
linhas da razão, da liberdade, da civilidade burguesa se estendem
incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que ditam o
conceito burguês a partir tão somente do fim do feudalismo medieval”. Para
comprovar essa afirmação, os autores citam como exemplo o texto homérico.
Embora reconheçam que na epopeia de Homero os mitos se fazem presentes nas
diversas camadas do texto, Adorno e Horkheimer (2006, p. 49) afirmam que “[…] o
seu relato [dos mitos], a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo a
descrição do trajeto de fuga que o sujeito empreende diante das potências míticas”.
Assim, ainda de acordo com esses estudiosos, a oposição entre mito e
esclarecimento estaria expressa na narrativa pela oposição entre um ego,
exemplificado pela personagem central, Ulisses, e a potência, representada pela
natureza. Assim, as inúmeras peripécias do destino às quais a personagem
sobrevive no caminho de Troia a Ítaca expressam, simbolicamente, um percurso
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realizado por um eu fisicamente fraco. Para vencer os inúmeros obstáculos que se
colocam no retorno para casa, a astúcia, produto de uma atitude esclarecida e
racional, apresenta-se para Ulisses como a mais importante habilidade. No episódio
das sereias, por exemplo, essa personagem usa o estratagema de amarrar-se ao
mastro da embarcação, enquanto seus companheiros tapam os ouvidos. Desse
modo, consegue entregar-se ao canto das sereias sem ser seduzido por elas, pois
está preso ao mastro e seus suplícios são inaudíveis pelos seus seguidores. Mesmo
sem subestimar a superioridade das sereias, representantes aqui da natureza,
Ulisses consegue, com sua astúcia, romper a norma, ao ser o único humano a ouvir
o canto das sereias sem que isso resulte em sua entrega a elas e à morte. Outro
episódio representativo da astúcia de Ulisses é quando, para fugir de Polifemo, nega
seu próprio eu, através de um jogo de palavras intencionalmente criado com seu
nome em grego, que mantém relação homófona com a palavra também grega que
significa ninguém. Essa passagem exemplifica magnificamente uma das principais
consequências da modernidade: o eu coisificado e condicionado pelas normas
sociais. Assim, Adorno e Horkheimer (2006) demonstram como a epopeia homérica,
considerada um verdadeiro depositário dos mitos e o texto fundante de toda uma
tradição literária ocidental, já está, ela própria, iluminada pelo pensamento
esclarecido.
Contudo, a razão, mesmo considerada um dos principais pilares
estruturadores da sociedade moderna, não empreende esse trabalho sozinha. Para
tanto, encontra um importante aliado no sistema capitalista, formando um casamento
perfeito cujos efeitos se mostram na profunda transformação da sociedade realizada
na modernidade, quando comparada às organizações antigas. O capitalismo,
sistema político-econômico que se tornou hegemônico na sociedade moderna,
contribuiu profundamente para a organização da vida, interferindo nas relações entre
os sujeitos e destes com o mundo. A máquina, símbolo maior desse modelo
econômico, estabelece a tecnicização dos meios de produção e cria uma complexa
rede produtiva para atender às necessidades de consumo instituídas pelo próprio
sistema. Desse modo, a base econômica da sociedade moderna gira em torno da
produção de bens e serviços que visam mais à manutenção do sistema do que a
benefícios aos indivíduos: as necessidades supridas pelos artefatos técnicos
produzidos são, elas próprias, criadas pelo sistema, num círculo vicioso. Contudo, a
atuação do capitalismo não só influencia a esfera material, da produção de bens de
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consumo, como também determina formas e padrões de vida social. Como
destacam Adorno e Horkheimer (2006, p. 110): “A produção capitalista os mantém
tão bem presos [os consumidores] em corpo e alma que eles sucumbem sem
resistência ao que lhes é oferecido”. Para falar sobre a influência do capitalismo, o
que inclui não apenas o plano material, mas também o ideológico, os autores acima
citados cunham a expressão Indústria cultural, que abarca essas duas esferas. De
acordo com Zapparoli (2005, p. 48), “Indústria Cultural traz consigo todos os
elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel
especifico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido
a todo o sistema” (Grifos do autor). Dessa forma, a indústria cultural poderia ser
comparada a uma megaestrutura de nível global que abarca diversos setores da
atividade humana, moldando a sociedade e, consequentemente, o homem. Nesse
contexto social, a individualidade do sujeito não é mais do que mera ficção. Segundo
Adorno e Horkheimer (2006, p. 120), “A indústria cultural realizou maldosamente o
homem como ser genérico. Cada um é tão somente aquilo mediante o que pode
substituir todos os outros […]”. Portanto, ressaltam-se aqui a descartabilidade e a
substitutibilidade como características do sujeito imerso nessa cultura moderna que
massifica e elimina as diferenças: do sujeito, nada mais resta do que uma
pseudoindividualidade forjada pela poderosa indústria cultural.
O nascimento dessa sociedade marca o declínio da mitologia: sob a ótica e o
julgo do conhecimento racional, que assume a preponderância entre todas as
demais formas de pensamento, a mitologia passa a ser considerada como uma
“história inventada”, uma “ficção”, uma “mentira”, por não ser um conhecimento
verificável e validado pelas rigorosas técnicas científicas que determinam a
veracidade ou não de um fato, fenômeno ou acontecimento. A sociedade moderna
relega o mito ao esquecimento, banhada que é pelas águas “esclarecidas” da razão,
o Letes dessa humanidade desmitologizada. A morte de Deus proclamada pela
filosofia de Nietzsche torna-se o símbolo da descrença na mitologia como um todo.
Contudo, ao destronarem-se os mitos antigos, colocam-se em seu lugar
elementos da cultura moderna para ocupar, ainda que deficientemente, o vazio
deixado na existência do homem. Como atesta Armstrong (2005, p. 113-114):
Ainda ansiamos por “ir além” de nossas circunstâncias imediatas e entrar num “tempo completo”, uma existência mais intensa, satisfatória. Tentamos entrar nessa dimensão por meio da arte, de música como o rock, das
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drogas, ou aceitar a perspectiva “maior do que a vida” de um filme. Ainda buscamos os heróis. Elvis Presley e a princesa Diana foram ambos transformados em seres míticos instantâneos, até mesmo em objetos de culto religioso.
Como se vê, a sociedade moderna fornece outros elementos para suprir a
função antes ocupada pela mitologia tradicional. Os heróis modernos não são os
seres sobrenaturais de uma era primordial contidos nos mitos, mas os cientistas e
inventores, que promovem descobertas a fim de melhorar a condição de vida
humana; as grandes estrelas da mídia, fabricadas pela indústria cultural, como
enfatizam oportunamente Adorno e Horkheimer (2006). Contudo, esses heróis
modernos carecem da autenticidade, diferentemente do que se observa no mito.
Enquanto os primeiros são ídolos que despertam apenas a admiração e a
contemplação passiva, os segundos buscam estimular a heroicidade que existe
dentro do ser humano, guiando o sujeito à participação através da imitação do
modelo oferecido; enquanto os primeiros visam apenas a uma idolatria, cuja
finalidade é, em última instância, a submissão do homem a padrões sociais e a
perpetuação do sistema que o fabrica, os segundos promovem e suscitam o
desenvolvimento de qualidades positivas no homem.
Além disso, como destaca Armstrong (2005), muitos dos mitos criados pela
sociedade moderna, em vez de conduzir o homem a uma experiência mais
satisfatória de sua existência e desenvolvê-lo espiritualmente como faziam as
antigas mitologias, guiam-no rumo ao caminho inverso da destrutividade e da
barbárie. Nas palavras de Armstrong (2005, p. 114):
Somos criaturas criadoras de mitos, e durante o século XX vimos alguns mitos modernos extremamente destrutivos, que conduziram a massacres e genocídio. […] Eles não foram contemplados com o espírito da compaixão, do respeito pelo caráter sagrado de todas as formas de vida, ou com o que Confúcio chamava de “propensão”. Essas mitologias destrutivas têm sido estreitas, raciais, étnicas, paroquiais e egoístas, na tentativa de exaltar um ser pela demonização do outro (Grifos da autora).
Desse modo, a racionalidade moderna, que rompe com a tradição mitológica,
acaba ela própria criando mitos modernos que reconduzem o homem à barbárie,
como se pode observar na ideologia nazista e no fundamentalismo religioso. Adorno
e Horkheimer (2006, p. 23) percebem com perícia essa dialética intrínseca entre a
mitologia e o conhecimento esclarecido, reconhecendo ambos, cada um em seu
contexto e resguardadas suas devidas proporções, como formas de dominação e
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explicação do mundo: “Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o
esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a
cada passo que dá, na mitologia. Todo o conteúdo, ele o recebe dos mitos, para
destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do mito”.
Uma vez expostas algumas das características principais do mito e sua
representatividade ao longo da história da humanidade, é preciso, a partir de agora,
investigar uma possível conexão entre a mitologia e a literatura, tomando como norte
os seguintes questionamentos: há relações entre o discurso mítico e o literário? Se
há, sob quais aspectos se materializa esse diálogo?
De início, convém destacar que grande parte da tradição mítica das
sociedades primitivas chegou ao conhecimento do homem moderno graças a sua
expressão em textos literários. A Odisseia, de Homero, considerado um dos
principais textos da literatura ocidental, extrai sua força dos mitos que dão corpo ao
relato do retorno do guerreiro Ulisses a Troia. As peripécias enfrentadas pelo herói
são, em grande medida, construídas graças ao tratamento literário dado pelo escritor
ao conhecimento mitológico compartilhado pelos povos antigos e transmitidos ao
longo de gerações pela tradição oral. Adorno e Horkheimer (2006, p. 47) ligam a
gênese da epopeia, gênero ao qual pertence o texto homérico, à apropriação de
mitos: “Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao
mito: as aventuras têm origem na tradição popular”. Além do texto homérico, muitos
outros autores realizaram, dentro do âmbito literário, esse trabalho de “catalogação”
das mitologias, como o interesse de poetas pelos mitos do Oriente Próximo,
mencionado por Patai (1974).
Embora essas considerações acima apresentadas atestem a antiga ligação
entre literatura e mito, elas não são, por si só, suficientes para aclarar as indagações
anteriormente colocadas. Desse modo, para tentar responder a essas perguntas, é
pertinente destacar o posicionamento de Martinon (1977, p. 123), para quem “o mito
não é literatura, é a reinterpretação dos mitos que se torna literária […]”. Em
concordância com esse posicionamento, entende-se que o mito e a literatura,
resguardadas as semelhanças, são formas discursivas distintas. Assim,
compreende-se que, do ponto de vista da crítica literária, não interessa a análise do
mito enquanto documento histórico que apresenta costumes e tradições de uma
comunidade primitiva. Ao contrário, busca-se, nessa dialética entre literatura e mito,
explicitar alguns pontos de contato entre essas duas manifestações de linguagem,
31
de modo a apontar como o escritor, em seu fazer literário, incorpora o mito nas
obras e quais as implicações desta inscrição para a construção de sentido no texto.
O mito e a literatura, conforme já apontado anteriormente por Armstrong
(2005), são produções do imaginário humano. A partir disso, essa estudiosa
reconhece semelhanças entre mito e literatura quanto aos conteúdos e temas
abordados: “Como o artista e o romancista operam no mesmo nível da consciência
que os criadores de mitos, naturalmente recorrem ao mesmo tema” (ARMSTRONG,
2005, p. 119). De modo análogo, Jacobi (1995), partindo dos postulados jungianos,
vê na psique humana, e mais especificamente na capacidade desta de produzir
símbolos e imagens, um território fértil de onde brota tanto a produção mítica como a
literária:
Foi essa força criadora de imagens da alma humana […] essa força tornou-se, assim, a criadora do reino ilimitado dos mitos, contos, fábulas, epopeias, baladas, dramas, romances, etc.; vemos a sua atuação impressionante em todas as grandes obras atemporais da arte, que ligam o inesgotável passado arcaico ao futuro longínquo; podemos vê-la nas visões dos profetas e nas aparições e signos dos santos e dos buscadores religiosos, nas fantasias dos poetas e, não por último, no mundo noturno dos sonhos, de onde ela tira, de maneira incansável e incessante, novos símbolos do inesgotável tesouro dos arquétipos. (JACOBI, 1995, p. 74)
Desse modo, a matéria para a criação tanto das narrativas míticas quanto das
literárias tem uma origem comum: os símbolos. Estes são, em certo sentido,
representações de arquétipos pertencentes a uma esfera interpessoal inalcançável,
a saber, do inconsciente coletivo. Assim, o processo de construção do símbolo a
partir do arquétipo pode ser compreendido como uma transmutação alquímica, o
metamorfosear de uma estrutura psíquica inconsciente (o arquétipo) numa presença
viva e plurissignificativa (o símbolo). Essa concepção pode ser utilizada, em parte,
como justificativa e explicação para a atemporalidade dos discursos mítico e literário,
através da atualidade manifestada nos temas abordados.
Além da origem comum do material do qual se servem a literatura e o mito,
eles também utilizam um mesmo canal para sua reprodução/manifestação. Assim
como a literatura, o mito, segundo Barthes (2007, p. 199), materializa-se através da
linguagem humana, configurando-se como “[…] um sistema de comunicação, uma
mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é
um modo de significação, uma forma”. Ainda no âmbito formal, Sánchez (1998)
afirma haver uma simetria entre a estrutura do mito e a estrutura de textos literários.
32
Segundo ela, “A sucessão articulada de imagens e símbolos propicia, por outro lado,
o surgimento do mito, que compartilha com romances e relatos uma estrutura
narrativa comum5” (SÁNCHEZ, 1998, p. 80. Tradução nossa.), como as categorias
narrativas de tempo, espaço, personagens, entre outras.
Além dos aspectos acima mencionados, que colocam o mito e a literatura
como produções discursivas humanas originadas de uma fonte comum e
materializadas por meio de linguagem e de estruturas narrativas semelhantes, outro
elemento que age poderosamente para a construção e manutenção dessa relação
dialética é a intertextualidade. Muitos autores já se pronunciaram a esse respeito.
Samoyault (2008, p. 117) afirma que “A re-escrita do mito não é pois simplesmente
repetição de sua história; ela conta também a história de sua história, o que é
também uma função da intertextualidade: levar, para além da atualização de uma
referência, o movimento de sua continuação na memória humana”. Seguindo essa
mesma linha de raciocínio, segundo a qual a literatura incorpora em suas obras o
discurso mítico, Brunel (1998) afirma que ela é o verdadeiro conservatório dos mitos.
Mielietinski (1987) define mais enfaticamente essa dialética, ao propor uma relação
genética entre literatura e mitologia através da ficção narrativa, apontando que o
status dessa relação mudou ao longo dos tempos: de uma representação mais “fiel”
dos mitos passa-se a atualizações e ressignificações de temas mitológicos operados
pela literatura contemporânea. Por último, pode-se apresentar o posicionamento de
Martinon (1977, p. 126), para quem “O universo literário se anexa portanto o mito,
fazendo deste último o cofre de tesouros inesgotáveis visto que os temas e mesmo a
situação psicológica ou social de personagens podem ser remanejados a cada
interpretação de tal ou tal narrativa mitológica”. Nesse caso, destacam-se aqui a
plurivocidade da narrativa mítica e sua adaptabilidade a contextos sócio-históricos
variados, bem como o engenhoso trabalho do artista que lapida o mito, moldando-o
de acordo com seus desígnios.
Ademais, Armstrong (2005) ressalta ainda uma simetria entre a função do
mito e do texto literário. Segundo ela:
Se for escrito e lido com atenção e seriedade, um romance, como um mito ou uma grande obra de arte, pode servir como iniciação e nos ajuda a realizar o penoso rito de passagem de uma fase da vida, de um estado de espírito para
5 “La sucesión articulada de imágenes y símbolos propicia, por otra parte, el nacimiento del mito, que
comparte con novelas y relatos una estructuranarrativacomún”.
33
outro. Um romance, como um mito, nos ensina a ver o mundo de modo diferente; ele nos diz como olhar para dentro de nossos corações e ver nosso mundo de uma perspectiva que vai além de nosso interesse pessoal. Se os líderes religiosos profissionais não podem instruir no conhecimento mítico, nossos artistas e romancistas talvez possam ocupar esse papel sacerdotal e apresentar uma visão nova a nosso mundo perdido e avariado. (ARMSTRONG, 2005, p. 124-125)
Sendo assim, a literatura escrita e lida com atenção e rigor crítico pode
apresentar uma função análoga à desempenhada pelos mitos nas sociedades
antigas, dentre as quais vale destacar: (1) ajudar o indivíduo a superar etapas da
vida; (2) organizar suas relações com o mundo e com os outros seres; (3) promover
uma reflexão interior. E, numa sociedade moderna que decretou a morte de Deus e
da mitologia, a literatura se reveste também de uma função mítica, no sentido de
desempenhar parte do papel anteriormente relegado à mitologia: “[…] se a literatura
se serviu abundantemente dos materiais míticos, integrando-os aos diferentes
corpus (sic) literários, a própria literatura tornou-se o mito valorizado culturalmente
em nossa sociedade” (MARTINON, 1977, p. 128). Dentre as mais variadas
narrativas míticas que serviram de manancial para a literatura, a que interessa a
este trabalho diz respeito ao mito do duplo, assunto que será abordado na seção
que segue.
1.2 O mito do duplo: conceitos e aspectos teóricos
Conforme aponta Mello (2000), a duplicidade do eu é uma ideia antiga e
adquire várias concepções de acordo com o contexto em que se fala. De forma
semelhante, Bravo (1998) vê o duplo como uma figura ancestral, ressaltando, por
um lado, sua manifestação em culturas antigas e, por outro, sua permanência ao
longo de uma tradição, ao manter sua vitalidade e poder nas produções artísticas,
inclusive na Era Moderna. Além da disseminação temporal, o mito do duplo
apresenta, também, um caráter universal, no sentido de não se restringir nem a uma
cultura específica, tampouco a apenas uma área determinada, inscrevendo-se, ao
longo da história da humanidade, em diferentes produções discursivas. Essa
recorrência ao mito do duplo é também ressaltada por Mucci (2006), para quem tal
temática se encontra profundamente arraigada em diversas culturas orientais e
ocidentais.
34
Ao longo da história, o fenômeno da duplicidade adquiriu diferentes
nomenclaturas, embora todas elas, em última análise, mantenham a ideia central de
desdobramento do eu, seja este concebido objetiva ou subjetivamente. López (2006)
apresenta alguns dos termos correlatos à palavra “duplo”, como alter-ego, sósia, o
outro, segundo eu e doppelgänger, este último cunhado pelo romântico alemão Juan
Paul em sua novela Siebenkäs.
Se os termos para denominar o fenômeno da duplicidade são múltiplos, a
mesma diversidade verifica-se nas tentativas de conceituação e delimitação dele.
Essa dificuldade advém, em parte, da própria ambivalência que está na base de sua
constituição, bem como dos diferentes traços que adquiriu ao longo da tradição.
Contudo, López (2006, p. 17) identifica um ponto central para o qual diferentes
definições, em maior ou menor grau, convergem: “O proteico conceito de duplo gira
em torno das noções de dualidade e binarismo, e se constrói em função de uma luta
entre princípios, potências ou entidades opostas e complementares ao mesmo
tempo6” (Tradução nossa). Embora não se tenha aqui a pretensão de tentar atribuir
significação e delimitação definitivas sobre a natureza do duplo, faz-se necessário
abordar algumas tentativas de definição que possibilitam uma visão multilateral do
tema. Assim, as diferentes conceituações não são excludentes em si; ao contrário,
cada uma delas, ao abordar o duplo sob uma perspectiva específica, possibilita a
construção de uma melhor compreensão da dinâmica e complexidade do fenômeno
em questão.
Num primeiro momento, Bravo (1998, p. 263), baseado nos estudos de
Keppler, assim define o duplo:
[…] o duplo é ao mesmo tempo idêntico ao original e diferente – até mesmo o oposto – dele. É sempre uma figura fascinante para aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e complementar), e provoca no original reações emocionais extremas (atração/repulsa). De um e outro lado do desdobramento a relação existe numa tensão dinâmica.
No bojo dessa tentativa de conceituação do duplo, já se instaura sua natureza
dual e paradoxal, que pode ser nitidamente percebida através do jogo de palavras
antagônicas: “idêntico e diferente”, “interior e exterior”, “aqui e lá”, “oposto e
6“El proteico concepto de doble gira en torno a las nociones de dualidad y binarismo, y se construye
en función de una lucha entre principios, potencias o entidades opuestas y complementarias a la vez”. (LÓPEZ, 2006, p. 17).
35
complementar”, “atração e repulsa”. Dessa forma, vê-se que a duplicidade se
configura a partir de um paradoxo: ao mesmo tempo em que é idêntico ao original –
por ser uma cópia –, é diferente desse original duplicado. Esse resvalamento
incessante e insolúvel de semelhanças e diferenças entre o original e a cópia reflete
na indecidibilidade daquele. Sem natureza definida, o duplo é, ao mesmo tempo,
interior e exterior, oposto e complemento, está aqui e lá e, por essa razão, provoca
também sentimentos contraditórios que oscilam da atração à repulsa.
Rosset (2008) apresenta uma definição semelhante, ao comparar a
manifestação do duplo à estrutura oracular. Segundo Rosset (2008, p. 45), há uma
diferença sutil entre o acontecimento anunciado pelo oráculo e o acontecimento
efetuado: “[…] o acontecimento esperado ocorreu, mas percebemos, então, que
aquilo que era esperado não era este acontecimento aqui, mas um mesmo
acontecimento sob uma forma diferente”. Desse modo, o acontecimento que se
realiza é igual ao anunciado pelo oráculo e, ao mesmo tempo, diferente dele: a
profecia, ao se cumprir, frustra a expectativa desse mesmo acontecimento. A esse
outro acontecimento apagado pelo evento real, Rosset (2008, p. 46) relaciona a
constituição do duplo: “Nada distingue, na realidade, esse outro acontecimento do
acontecimento real, exceto esta concepção confusa segundo a qual ele seria, ao
mesmo tempo, o mesmo e um outro, o que é a exata definição do duplo”. Portando,
mais uma vez, o fenômeno da duplicação repousa sobre uma ambivalência
profunda, em que o “original” e a “cópia”, elementos necessários para a existência
do duplo (cf. ROSSET, 2008), encontram-se imersos numa dialética indissolúvel,
sendo o duplo o resultado de uma tensão constante na qual o mesmo e o outro são
opostos e complementares.
Živković (2000, p. 122) vê a temática do duplo, dentro e fora da literatura,
como um assunto que seduz. Segundo ela:
Como uma figura imaginada, uma alma, uma sombra, um fantasma ou um reflexo especular que existe numa relação de dependência para com o original, o duplo persegue o sujeito como seu segundo “eu” e o faz sentir-se como ele próprio e como o outro ao mesmo tempo. Enquanto seu poder imaginativo se origina de sua imaterialidade, do fato de que ele é e sempre foi uma fantasmagoria [produção da imaginação], o poder psicológico do duplo situa-se em sua ambiguidade, no fato de que ele pode significar contraste ou oposição, mas também semelhança
7 (Tradução nossa).
7 “As an imagined figure, a soul, a shadow, a ghost or a mirror reflection that exists in a dependent
relation to the original, the double pursues the subject as his second self and makes him feel as himself and the other at the same time. While its imaginative power springs from its immateriality, from
36
Assim como nas tentativas de conceituação anteriormente mostradas,
Živković concebe o duplo como um segundo eu, visto ao mesmo tempo como ele
próprio e como o outro. Dessa forma, o duplo se dá através de um jogo de reflexos
entre o eu e outro, jogo este que pode manifestar-se através de contraste, oposição
e também de semelhança, complementaridade. Além disso, reconhece a existência
de dois poderes exercidos pelo duplo: um concentrado no campo da imaginação,
devido a sua imaterialidade (alma, sombra, fantasma, reflexo do espelho); outro
relacionado ao âmbito psicológico e resultado da ambiguidade que dele emana – a
relação do eu com o outro por meio do contraste, oposição, semelhança.
Essa ideia de duplicidade, já presente em diferentes discursos ao longo da
tradição, tem sua força renovada pelos estudos realizados por Freud e Jung nos
campos da psicanálise e da psicologia analítica, respectivamente. Esses dois
teóricos rompem com a concepção até então vigente de uma unidade subjetiva do
sujeito e, ao conceberem-no como o resultado de uma dialética entre diferentes
estruturas psíquicas, inscrevem a dualidade no interior do homem, como elemento
constitutivo dele.
Freud (1996b) concebe o ser humano invariavelmente como o resultado do
embate entre forças psíquicas opostas. Sua primeira grande dicotomia, que norteia
possivelmente todas as demais, consiste na divisão do psiquismo humano em duas
instâncias distintas, como assevera Jordão (2009, p. 43): “[…] há pelo menos dois
sujeitos, que habitam o mesmo indivíduo; um consciente, outro inconsciente”. Essas
duas estruturas diferenciam-se, de acordo com a teoria freudiana, graças ao tipo de
conteúdo que as constitui: o consciente é formado por todos os conteúdos
acessíveis ao ego, ao passo que o inconsciente compõe-se das configurações
mentais não acessíveis à mente consciente, recalcadas e reprimidas (algumas das
quais, inclusive, já fizeram parte da vida consciente e foram excluídos dela por
alguma razão). Contudo, a relação entre essas duas realidades psíquicas não pode
nem deve ser reduzida a uma simples oposição, sob pena de se excluir a complexa
dinâmica representada pelo constante fluxo de conteúdos entre a mente consciente
e inconsciente e vice-versa. Além dessa dicotomia mais geral estruturadora do
psiquismo humano, que instaura a dualidade como elemento basilar da constituição
the fact that it is and has always been a phantasm, the psychological power of the double lies in its ambiguity, in the fact that it can stand for contrast or opposition , but likeness as well”
37
subjetiva do sujeito, a duplicidade também se faz presente em outros conceitos
freudianos, a saber: princípio da realidade/princípio do prazer, estranho/familiar,
impulso da vida/impulso da morte (Eros/Thanatos). Esses conceitos dizem respeito a
processos e/ou instintos antagônicos que determinam as relações do homem
consigo mesmo e com o meio social.
Jung (2008, p. 77), adotando um caminho parecido com o trilhado por Freud,
resguardadas, contudo, algumas especificidades conceituais, concebe a psique
humana como uma “[…] pluralidade contraditória de complexos”. Essa constituição
heterogênea da personalidade apresenta-se como o reflexo de dicotomias
fundamentais que norteiam a formação do sujeito: por um lado, a dualidade entre
mundo exterior/mundo interior, cujo equilíbrio exige uma negociação, numa atitude
desdobrada e dupla do sujeito; e, por outro, a coexistência e interação de conteúdos
conscientes e inconscientes. Desse modo, a ideia de unidade da personalidade não
encontra espaço na teoria de Jung, pois o sujeito, resultado do embate e da tensão
entre forças antagônicas, invariavelmente reflete essa contradição. Assim, Jung
(2008) afirma que a psique humana é formada por uma diversidade de estruturas,
cada uma com uma função determinada: o self refere-se à totalidade das
potencialidades do ser; o ego corresponde à consciência que se tem do self, ou seja,
às qualidades aceitas pelo sujeito, e tem como extremo oposto à sombra, formada
pelos conteúdos não aceitos e, portanto, reprimidos durante a formação do ego; por
fim, a persona constitui a parte mais superficial do ser, uma máscara social
desenvolvida consoante as exigências do meio e tem como correlatos opostos a
anima (presente inconscientemente no homem) e o animus (presente
inconscientemente na mulher), estruturas representativas da sexualidade feminina e
masculina, respectivamente, que instauram essa dualidade sexual na personalidade
de todos os seres humanos.
A partir dessa exposição sumária de alguns conceitos da teoria jungiana,
percebe-se que o sujeito é, antes de tudo, o produto de tensões constantes entre
opostos: ego/sombra; persona/anima-animus. Ao longo do processo de
desenvolvimento psicológico, o sujeito pode aprender a relacionar-se melhor com
seus conteúdos psíquicos, compreendendo mais profundamente suas
potencialidades; em suma, reconhecer sua individualidade. A esse processo, Jung
(2008, p. 49) denomina individuação: “Individuação significa tornar-se um ser único,
na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais
38
íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso
próprio si-mesmo [self]” (Grifos do autor). No caminho para a individuação, que Jung
tem o cuidado de diferenciar de individualismo, o sujeito consegue uma maior
consciência do self. Para tanto, faz-se necessária a realização de dois movimentos
psicológicos importantes: o diferenciar-se dos invólucros falsos da persona e/ou
anima-animus; bem como o adentrar nos conteúdos inconscientes, incorporando
potencialidades até então ocultas, a fim de desenvolver uma maior consciência da
totalidade representada pelo self e, por conseguinte, a afirmação de sua
individualidade.
Desse modo, essas considerações gerais sobre a duplicidade acima
apresentadas são suficientes para demonstrar que tal fenômeno caminha num
sentido contrário ao pensamento lógico-racional, uma vez que transcende a visão
mecanicista e unilateral à qual os olhos do homem moderno encontram-se
acostumados. Isso justifica também a inquietação, principalmente no contexto da
modernidade, que o duplo suscita, pois torna movediço o chão firme sobre o qual se
ergue toda a arquitetura conceitual baseada na filosofia do esclarecimento. Desde a
antiguidade, o mito do duplo vem, continuamente, inscrevendo-se nas mais variadas
formas discursivas da humanidade, mostrando ao mesmo tempo sua fertilidade
enquanto tema e seu poder de atualização e adequação aos mais diferentes
contextos. Desse modo, buscar-se-á trilhar e reconstruir alguns desses caminhos
percorridos pelo tema do duplo na história da humanidade, focalizando sua inscrição
em quatro principais domínios discursivos: a filosofia, a religião, a mitologia e a
literatura.
1.2.1 O duplo na filosofia, na religião e na mitologia
Na filosofia, podem-se destacar duas principais ideias a respeito do duplo. A
primeira delas diz respeito ao postulado platônico segundo o qual, conforme Mello
(2000, p. 111), “[…] todas as coisas conhecidas são o duplo de algo incognoscível
ou de uma realidade ideal. […] O real imediato só ganha sentido por ser expressão
de um outro real de que é apenas uma projeção imperfeita”(Grifos do autor).
Segundo essa concepção, todas as coisas existentes são frutos da duplicação de
39
uma realidade desconhecida e ideal8. Outro aspecto interessante do duplo na
filosofia diz respeito ao mito filosófico da androgenia, presente em O banquete
(1972), também de Platão. Neste livro, o mito é contado pela boca de Aristófanes,
inimigo de Platão, e baseia-se na perda de uma perfeição original:
Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino […] (PLATÃO, 1972, p. 28)
Dessa forma, o mito apresentado por Platão mostra três ancestrais da
humanidade: nos primeiros, descendentes do sol, se duplicam as particularidades
masculinas; nos segundos, descendentes da terra, as particularidades femininas; e
nos terceiros, descendentes da lua (a lua como símbolo da dualidade), as duas,
masculinas e femininas. Segundo Platão, essa unidade original, caracterizada pela
junção dos princípios masculinos e femininos num mesmo ser, foi perdida quando os
homens ameaçaram os deuses. Isso levou a um enfraquecimento do ser humano e
a uma constante busca deste por sua metade faltante.
Na religião, pode-se citar como exemplo do duplo o próprio ato cosmogônico
da criação presente no livro bíblico do Gênesis: Deus cria o universo para nele se
refletir. Ainda no Gênesis, a passagem da criação do homem é permeada pela
temática do duplo: Deus cria o ser humano (Adão e Eva) à sua imagem e
semelhança, o que caracteriza a ideia de androgenia de Deus, conforme destaca
Miguet (1998)9. Tem-se, ainda, a crença da alma que sobrevive ao aniquilamento do
corpo – um dos fundamentos de diversas tradições religiosas – como uma
manifestação do duplo no discurso religioso. Essa relação do eu com a alma é
antiga. Morin (Apud MELLO, 2000) afirma que a crença na alma enquanto duplo
remonta à era Paleolítica e representa uma tentativa de preservar a integridade do
eu frente à destruição simbolizada pela morte. Dessa forma, vê-se, aqui, a ligação
8Pode-se, inclusive, relacionar esse pensamento com o mito da caverna de Platão, segundo o qual o
mundo sensível, que as pessoas acreditam ser a “verdadeira realidade”, não passa de sombras, isto é, uma duplicação imperfeita de um mundo ideal: “[…] Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?” (PLATÃO, 2008, p. 210). 9Assim, percebe-se uma proximidade entre o mito bíblico e o apresentado por Platão, conforme
assinala Miguet (1998, p. 27): “[…] perfeição original de uma unidade dual, transgressão orgulhosa do homem, mutilação realizada pela divindade ofendida, andanças trágicas das metades divididas do homem, esperança de uma nova aproximação da unidade perdida no tempo e no sofrimento”.
40
entre a manifestação do duplo e a morte, relação esta presente no imaginário dos
povos, para quem “[…] a liberação do duplo pode ser vista como um acontecimento
nefasto que, seguidamente, pressagia a morte” (MELLO, 2000, p. 113). Para
Guiomar, outro estudioso citado por Mello (2000), é a atitude humana de busca de
conservação do eu frente à morte, aqui implicados o medo e a angústia da
decomposição e destruição por ela causado, que leva o homem a projetar um outro
eu. As figurações do duplo, quando relacionadas à morte, apresentam-se através de
lendas em que a alma deixa o corpo, entre outras variações.
No campo da mitologia, dois mitos são emblemáticos quanto à representação
do duplo: o de Hermafrodito e o de Narciso.
Hermafrodito é filho de Hermes e Afrodite e, desde criança, foi deixado aos
cuidados de ninfas. Aos quinze anos, a beleza desse jovem desperta o desejo em
Sálmacis, que tenta seduzi-lo, mas é rejeitada. Durante um momento de descuido,
Sálmacis abraça-o e, nesse instante, evoca aos deuses que nunca mais os
separem. Assim, as duas personagens do mito se unem eternamente. Aqui, a ideia
de androgenia, uma forma de manifestação do duplo, é representada pela união
entre Hermafrodito e Sálmacis que configura a conjunção, em um único ser, do
masculino e do feminino. Nessa narrativa mítica, a experiência andrógena é
vivenciada de modo diferente por cada uma das personagens: enquanto a primeira
assume uma postura ativa10, ao tomar a iniciativa e fazer a prece aos deuses,
Hermafrodito, passivo diante de tal situação, vê esse acontecimento como uma
desgraça: “[…] a metamorfose é vivida como uma insexualidade, uma eliminação
dos sexos […]” (MIGUET, 1998, p. 29). Além disso, Miguet (1998) observa que o
mito em questão apresenta conteúdo inverso aos dois anteriormente citados (o
bíblico e o de Platão). Enquanto os dois primeiros remetem a um começo
paradisíaco, na narrativa de Ovídio a unidade dual apresenta um final infeliz (pelo
menos sob a ótica de Hermafrodito)11.
10
Segundo Miguet (1998), Sálmacis tem uma tripla iniciativa, a saber: a da palavra, a da ação erótica e a da prece. 11
Embora com algumas particularidades, as três narrativas (nas esferas religiosa, filosófica e mítica)
acima apresentadas e que abordam o tema da androginia convergem em dois importantes pontos: (1) remetem aos tempos das origens; (2) colocam em jogo a relação entre o homem e a divindade, explicitando que “[…] a posse dos dois sexos é um temível reflexo do divino, e que este privilégio, concedido ao homem, arrisca-o a entrar em conflito com o demiurgo”(MIGUET, 1998, p. 29). Neste último ponto, o homem está exposto simultânea ou sucessivamente, por um lado, a uma guerra dos sexos ou, por outro, a um conflito com Deus.
41
O mito de Narciso é uma célebre representação do duplo, ou seja, uma
narrativa consagrada pela psicanálise e pela psicologia por representar de modo
emblemático o tema da dualidade. Conforme atesta Favre (1998), a origem dessa
personagem, assim como do mito, é desconhecida: a lenda já aparece constituída e
dotada de significação mítica nas Metamorfoses de Ovídio. Filho do rio Cefiso com
a Ninfa Líriope, Narciso era o mais belo dentre os mortais e imortais. Ao se tornar
jovem, passa a ser desejado por várias jovens e ninfas, dentre elas a Ninfa Eco. No
entanto, ele, extremamente soberbo e orgulhoso, rejeita Eco friamente, o que a faz
definhar e se transformar num rochedo. Diante disso, as outras ninfas pedem a
Nêmesis, deusa da ética, que puna Narciso, e esta o condena a amar um amor
impossível: a si próprio. É dessa forma que Narciso, ao curvar-se num lago para
saciar a sede, contempla sua imagem refletida nas águas e se apaixona por ela.
Essa paixão por si próprio, cumprindo a profecia de Tirésias, leva-o à morte. Sob
uma interpretação psicológica, vê-se que, nesse mito, o duplo se configura de
maneiras diferentes para Narciso e Eco. Enquanto Eco, símbolo da alteridade, está
para a contemplação e entrega a outrem; Narciso, fechado em si e símbolo da
egolatria, está para a contemplação/adoração de si mesmo.
Reconhecendo que os mitos em geral, e aqui particularmente o de Narciso,
são narrativas polissêmicas, que retiram sua força e vivacidade da justaposição e da
relação estabelecida entre os diversos signos e símbolos que o constituem, seria
autoritária qualquer tentativa de resumir esta narrativa a uma interpretação única.
Imerso nesse contexto plural, podem-se destacar duas leituras (não excludentes
entre si), possibilitadas pelo Mito de Narciso, tal como o relata Ovídio: uma literal,
situada numa camada mais superficial da narrativa; outra alegórica, metafórica,
situada nas entrelinhas do mito.
No primeiro caso, o mito representa a punição da deusa Nêmesis a Narciso
pela ultrapassagem do métron: sua beleza inigualável, somada ao orgulho e à
vaidade, impede-o de amar ao outro. Essa atitude egocêntrica é punida por
Nêmesis, que o faz apaixonar-se pela própria imagem refletida nas águas. Segundo
Favre (1998, p. 747), essa visão concentraria o sentido original da narrativa, ao
apresentar “[…] o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi
punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter recusado a amar alguém”.
A segunda interpretação do mito envereda pelas trilhas da psicologia.
Partindo da premissa de que toda narrativa mítica focaliza uma faceta do
42
desenvolvimento humano, Cavalcanti (1997) vê no mito de Narciso a representação
do processo de desenvolvimento psicológico do sujeito, particularmente o
nascimento, o desenvolvimento e a diferenciação do ego em seu percurso rumo à
construção da consciência e da identidade do sujeito. No início do mito, segundo
essa visão, Narciso constitui uma totalidade indiferenciada formada pela conjunção
eu, self12 e mundo: “O mundo envolve Narciso, que envolve o mundo num abraço
forte e significativo. Ele vive com o mundo e o mundo vive nele” (CAVALCANTI,
1997, p. 170). O momento de ruptura dessa totalidade acontece quando Narciso
contempla sua imagem refletida na água. Essa atitude marca o surgimento e o
progressivo desenvolvimento da consciência, em que o sujeito toma conhecimento
de sua finitude e delimitação em relação ao outro, através da contemplação da
imagem e identificação com ela. Desse modo, a construção da identidade egoica
constitui-se essencialmente pela diferenciação que o ego estabelece com o self e os
objetos. Por fim, o mergulho de Narciso rumo ao encontro com sua imagem
especular pode ser compreendido sob duas óticas opostas: de um ponto de vista
positivo, o mergulho representa uma religação com o self, processo distinto do
estado inicial de indiferenciação, na busca da totalidade representada pela
individuação; de um ponto de vista negativo, o mergulho é concebido como
regressão, ou seja, a fixação em um estado de fusão inicial ego-self, revelando,
portanto, a incapacidade do sujeito de superar essa etapa dominada por impulsos
narcísicos e sentimentos de onipotência.
Ao longo da tradição, o mito de Narciso configura-se como paradigma da
busca da identidade do eu, uma vez que retrata exemplarmente a importância da
imagem especular fornecida pelo espelho – em sua acepção física ou como
metáfora – no processo de constituição identitária: “[…] a busca do eu,
especialmente nas perturbações de desdobramento, está sempre ligada a uma
espécie de retorno obstinado ao espelho e a tudo o que pode apresentar uma
analogia com o espelho” (ROSSET, 2008, p. 90).
Essa busca da unicidade assumiu vários aspectos no decorrer dos séculos,
refletindo as mudanças na estrutura social. O advento da modernidade traz consigo
profundas mudanças tanto no plano social quanto no intelectual, compondo, desse
12
É importante destacar que o conceito de self na teoria jungiana difere do conceito psicanalítico. Enquanto Jung (2008) concebe-o como a totalidade da psique, a psicanálise compreende-o como a autopercepção e a autoimagem.
43
modo, o plano de fundo sobre o qual é pintado um sujeito em crise. Nesse contexto,
o mito de Narciso adquire, segundo Cavalcanti (1997), sua maior importância.
Contudo, nas representações modernas desse mito, aqui entendidas as atualizações
realizadas nas artes, o espelho não fornece mais uma imagem unificada e
confortadora do eu. O Narciso moderno é cônscio de sua cisão e reconhece-se
quando confrontado com seu reflexo, muito embora a imagem refletida seja
desdobrada, duplicada e múltipla, diferentemente do Narciso clássico, em que o
espelhamento marca o início de seu definhar (cf. ARAGÃO, 1991).
Para além da mitologia e das releituras efetuadas nas artes ao longo dos
séculos, o mito de Narciso imprimiu também sua marca em campos supostamente
menos presumíveis: os da psicologia e da psicanálise. Freud toma como base a
essência desse mito – o amor de Narciso por si mesmo – para ilustrar um estádio
psíquico humano que denomina de narcisismo – a semelhança com o nome da
personagem mítica não é mera coincidência. Para Freud (1996c) o narcisismo
consiste num investimento de energia libidinal no próprio ego e divide-se em dois
tipos: um primário, estágio intermediário entre o autoerotismo e o amor objetal, que
constitui, portanto, uma etapa normal e vivenciada por todos os humanos; outro
secundário, estágio patológico caracterizado pela retirada da libido dos objetos para
o ego.
Autores como Lowen (1993), além de reconhecerem o narcisismo como uma
condição psicológica, concebem-no também como um fenômeno cultural. No plano
psicológico, individual, o narcisismo “[…] indica uma perturbação da personalidade
caracterizada por um investimento exagerado na imagem da própria pessoa à custa
do self” (LOWEN, 1993, p. 9). Nesse caso, há uma supervalorização da imagem em
detrimento da consciência sobre o verdadeiro self13. Como condição cultural, o
narcisismo “[…] pode ser considerado como perda de valores humanos – uma
ausência de interesse pelo meio ambiente, pela qualidade de vida, pelos seres
humanos seus semelhantes” (LOWEN, 1993, p. 9). Aqui, o narcisismo, ao romper o
limite da psique individual, é entendido como uma dominante cultural sob cujo rótulo
se aglomera uma série de práticas e comportamentos caracterizada pela ausência
de sentimentos observados na sociedade moderna. Essas duas esferas do
narcisismo, a individual e a cultural, inevitavelmente, estabelecem entre si uma
13
Para Lowen (1993), o self corresponde a uma entidade corporal, perceptiva, ao passo que o ego constitui uma organização mental.
44
relação dialética, determinando-se mutuamente, pois do mesmo modo que o sujeito
é produto do meio em que vive, também é parte constitutiva desse meio: “O
narcisismo do indivíduo corre a par com o da cultura. Modelamos nossa cultura de
acordo com nossa imagem e, por sua vez, somos modelados por essa cultura”
(LOWEN, 1993, p. 9-10).
Seguindo uma linha de pensamento parecida, o narcisismo moderno é visto
por Lasch (1983) como um fenômeno social e cultural da sociedade atual, e é
definido por Rosset (2008, p. 108) nos seguintes termos:
[…] o erro mortal no narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O narcisista sofre por não se amar: ele só ama a sua representação. […] Este é o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro. (Grifos do autor).
Dessa forma, é o culto do simulacro, entendido como o duplo do eu projetado
pelo espelho, que representa a busca da identidade pela personalidade narcísica.
Essa imagem não reflete um sujeito uno e total, mas apenas fragmentos, símbolos
da identidade desdobrada e esfacelada do homem moderno.
.
1.3 O duplo na literatura
Na literatura, o tema do duplo encontrou campo fértil para sua propagação,
configurando-se, ao longo da tradição, sob diferentes aspectos. Segundo Mello
(2000), essa recorrência ao motivo do duplo na produção artística de diversas
épocas explica-se pelas questões inquietantes que essa temática sempre suscitou
para a humanidade: “‘Quem sou eu?’ e ‘o que serei depois da morte?’” (p. 11). Para
Mucci (2006), o duplo encontra-se intrinsecamente ligado ao campo literário,
reconhecendo, inclusive, que essa relação vai muito além da visão restrita que o
concebe apenas como tema ou motivo para a criação artística:
No campo exuberante da literatura e da teoria da literatura, o duplo reina como tema quase absoluto, em todo caso reiterado, em todas as eras literárias. No fundo, no fundo, o que é a literatura, senão a representação de algo, o espelho de um real, a construção simbólica da realidade, o outro do real, a mímesis da mímesis da mímesis, tal qual a rosa infindável de Gertrud Stein?? O que é o signo – linguístico, literário e não verbal –, senão algo vicário, a marca de uma ausência, a presença de um objeto, o duplo de uma coisa? (MUCCI, 2006, p. 3)
45
Além de ser um tema constante em todos os períodos da produção literária,
Mucci vê a literatura como um duplo, visto ser ela representação (mimeses) de uma
realidade mediatizada pelo signo linguístico. Desse modo, o duplo na literatura não é
apenas um tema do discurso; ao contrário, inscreve-se na própria origem do
discurso.
Enquanto motivo literário, o duplo manifesta-se como resultado de uma
confrontação entre duas facetas de uma mesma personagem (o original e a copia
deste), com uma continuação física e/ou psicológica entre os dois: “O duplo aparece
quando duas incorporações da mesma personagem coexistem em um mesmo
espaço ou mundo ficcional […]”14 (LÓPEZ, 2006, p. 18. Tradução nossa.). Esse
confronto pode realizar-se através da presença simultânea do original e da cópia,
por meio do espelhamento e da contemplação de sua imagem pela personagem, por
exemplo. O encontro com o duplo apresenta-se sempre como inquietante e
desestabilizador para o sujeito, visto que o desdobramento introduz
questionamentos sobre sua identidade e unidade, resultado do confronto entre o eu
e o outro. Desse modo, ao longo da tradição, as representações da temática da
cisão do eu parecem opor-se à concretização de uma união dos opostos rumo ao
ser perfeito; pelo contrário, a duplicidade aparece como perturbadora e ameaçadora
para o eu. Sua materialização no texto literário efetua-se através de elementos
recorrentes, como o espelho, o reflexo, a sombra, o retrato, bem como de
sequências narrativas que explicitam o conflito potencialmente presente nas
manifestações da duplicidade: confrontação entre o original e seu duplo, usurpação
de personalidade, dúvidas sobre a verdadeira identidade e impulso para aniquilar o
rival (cf. LÓPEZ, 2006).
Diante das diversas classificações sobre o duplo apresentadas por diversos
teóricos, López (2006, p. 18-19) sugere a consideração de três variantes para um
melhor entendimento desse fenômeno complexo e multifacetado:
Na primeira, o mesmo indivíduo existe em dois ou mais mundos alternativos (dimensões temporais e/ou espaciais distintas), que geralmente acabam fundindo-se; assim acontece em quatro contos considerados clássicos: ‘Um conto das montanhas escabrosas’ (1844), de Poe, ‘A esquina alegre’ (1908), de Henry James, ‘Distante’ (1951), de Julio Cortázar, e ‘O outro’
14
“El doble aparece cuando dos incorporaciones del mismo personaje coexistene nun mismo espacio
o mundo ficcional […]”.
46
(1975), de Borges. Na segunda variante, dois indivíduos com identidades distintas, mas homomórficos em seus atributos essenciais, coexistem na mesma dimensão; o paradigma é Os elixires do diabo (1815-1816). Em ambos os casos, o desdobramento pode originar-se a partir da intervenção de causas materiais como o espelho, a sombra, a fotografia, o retrato, a estátua ou o boneco. Na terceira, o protagonista geralmente assiste seu próprio funeral, contempla-se a si mesmo morto […].(Tradução nossa. Grifos da autora).
15
No primeiro caso, López (2006) destaca a duplicação em que um mesmo
sujeito vê sua existência desdobrada em dois ou mais mundos e/ou dimensões
temporais que podem fundir-se. Como exemplificação dessa modalidade, López
(2006) cita alguns textos literários, entre eles o conto O outro, do escritor argentino
Jorge Luis Borges (1978). O conto relata um acontecimento acorrido em fevereiro de
1969. Nessa data, estava o narrador-personagem, que se apresenta como Jorge
Luis Borges, recostado a um banco na cidade de Cambridge, quando tem a estranha
sensação de já ter vivido esse momento antes. Na outra extremidade do banco,
senta-se um homem, com o qual o narrador inicia conversa e reconhece, nas
respostas daquele, episódios de sua própria vivência anterior. Diante disso, o
narrador compreende que o outro – expressão inclusive que intitula o conto – é, na
verdade, ele mesmo, situado em uma outra dimensão espaço-temporal – a figura do
outro representa o mesmo Borges, só que mais jovem e residente na cidade de
Genebra. Como se observa, o conto promove uma ruptura nas leis convencionais de
espaço e tempo: o Borges mais velho do banco da cidade de Cambridge vê-se
confrontado com outra personagem que, por fim, reconhece como sendo ele mesmo
quando jovem.
A segunda variante aborda o tema do duplo a partir das semelhanças físicas
(homomorfismo) entre dois seres situados em uma mesma dimensão. Nesse caso,
há entre os sujeitos, por um lado, uma continuidade física e, por outro, uma
descontinuidade psicológica, visto que ambos apresentam identidades distintas. A
título de exemplificação, López (2006) cita a obra Os elixires do diabo, de
15
“En la primera, el mismo individuo existe en dos o más mundos alternos (dimensiones temporales
y/o espaciales distintas) que generalmente acaban fundiendo se; así sucede en cuatro cuentos y a clásicos: “Un cuento de las Montañas Escabrosas” (1844), de Poe, “La esquina alegre” (1908), de Henry James, “Lejana” (1951), de Julio Cortázar, y “El otro” (1975), de Borges. Enla segunda variante, dos individuos con identidades distintas, pero homomórficos en sus atributos esenciales, coexiste nen la misma dimensión; el paradigma es Los elixires deldiablo (1815-1816).En ambos casos, el desdoblamiento puede originar se a partir de la intervención de causas materiales como eles pejo, la sombra, la fotografía, el retrato, la estatua o elmuñeco. Em La tercera, el protagonista, por lo general asistente a sus propias exequias, se contempla a si mismo muerto […].
47
Hoffmann (1824). Nessa narrativa, a personagem Medardus, de posse do elixir
(substância maligna), foge do mosteiro onde vive e se entrega às mais profanas
aventuras. É tida como responsável pela morte de um meio-irmão seu, Viktorin, de
quem usurpa a identidade, aproveitando-se da semelhança física, e sobre quem
projeta seus mais sombrios desejos e intentos criminosos. Desse modo, Viktorin
transforma-se no duplo de Medardus graças à similaridade anatômica: este, usando
de artifício, mata seu meio-irmão e usurpa-lhe a identidade, projetando neste os
instintos reprimidos pelo eu.
Na terceira vertente, López (2006) reúne as manifestações da dualidade em
que o sujeito contempla a si mesmo morto. Como exemplo, pode-se citar o romance
Memórias póstumas de Brás Cubas, do escritor brasileiro Machado de Assis
(2009). Narrado em primeira pessoa por um defunto autor (ou um autor defunto?), o
romance relata as experiências e memórias do fidalgo Brás Cubas, invertendo a
cronologia dos fatos ao começar pela narração de sua morte. Nesse episódio, o
narrador-personagem visualiza a si mesmo morto, graças à dissociação
corpo/espírito, em que este último, separado de sua materialidade corpórea,
contempla-a como duplo.
Ao lado dessas considerações mais gerais sobre a natureza do duplo na
literatura, mostram-se igualmente importantes conceituações que abordam o motivo
do duplo sob um ângulo mais restrito. Desse modo, impõe-se, agora, a consideração
de aspectos mais pontuais sobre esse tema, a fim de compreender as origens desse
fenômeno e suas implicações na narrativa.
Quanto à origem, Bargalló (Apud LAMAS 2002), identifica três tipos de duplo:
por cisão, em que o desdobramento é fruto de um corte; por fusão, efetuada quando
há uma identificação desejada entre os pares; e por metamorfose, quando há uma
transformação, podendo resultar numa multiplicidade de formas. Segundo Lamas
(2002, p. 60), “Na cisão, o corte mostra que o eu está em outro lugar e passa a ter
uma vida autônoma; na fusão ocorre o reconhecimento de uma unidade – um é o
outro: (sic) na metamorfose, há uma transformação relevante, reversível ou não”. Já
a tipologia de Jourde e Tortonese (Apud López, 2006) identifica basicamente dois
tipos de duplo: o subjetivo e o objetivo. No primeiro caso, o protagonista
(frequentemente o narrador) confronta-se com seu próprio duplo: é interno quando a
duplicação acontece psicologicamente, ou seja, como resultado de uma cisão na
psique do sujeito; e externo quando o duplo assume uma forma física, como no caso
48
dos gêmeos e sósias. No segundo, o fenômeno não é vivenciado pelo protagonista;
ao contrário, este apenas testemunha uma duplicação alheia.
Essas tipologias acima expostas tomam como ponto de partida a análise das
representações do duplo na literatura em diferentes épocas. Uma vez compreendida
em seus aspectos essenciais a natureza do duplo, cabe agora verificar sua trajetória
na literatura, da antiguidade até os dias atuais.
As primeiras representações do duplo, que datam da antiguidade até o final
do século XVI, apresentam um duplo homogêneo: exploram-se semelhanças físicas
entre dois seres para efeito de substituição e usurpação de identidade, e essa
tendência à unidade seria ainda mantida mesmo quando uma personagem
desempenhasse mais de um papel. São exemplos desses duplos os gêmeos e os
sósias.
No século XVII, estabelece-se uma nova perspectiva na abordagem do duplo
pela literatura. Conforme Bravo (1998, p. 267), “A abertura para o espaço interior do
ser, perspectiva que se inaugura no século XVII, força ao abandono progressivo do
postulado da unidade da consciência, da identidade de um sujeito, única e
transparente”. Esse caminho do duplo rumo ao heterogêneo é fruto da função que o
homem passa a desempenhar na natureza. Na concepção das religiões
monoteístas, o homem é constituído à imagem e semelhança de Deus; portanto, seu
duplo é objetivo. Com a independência do Ego em relação a Deus, no século XVII,
Deus é levado à morte (cf. BRAVO, 1998). Na filosofia, Descartes “[…] fundamenta
no ‘cogito’ as verdades da metafísica e da moral que antes se deduziam de Deus”
(BRAVO, 1998, p. 264). Toda essa conjuntura coloca o eu como centro das
reflexões, o que, inevitavelmente, leva a uma abertura para o espaço interior do ser
e ao abandono do postulado da sua unidade de consciência e identidade única e
transparente, culminando na representação do duplo rumo ao heterogêneo.
A heterogeneidade na representação do duplo, possibilitada, conforme Bravo
(1998, p. 269), pela “[…] emergência do sentimento de uma autêntica alteridade, de
uma visão romântica do eu”, dá-se mediante uma conjuntura histórica, política e
filosófica específica. No campo histórico-político, tem-se a Revolução Francesa, que
ataca as hierarquias e põe em discussão a autoridade do Estado e da Igreja, o que
leva a uma discussão sobre a identidade. No plano filosófico, aparece o pensamento
idealista que, segundo Bravo (1998, p. 270), “[…] serve de suporte metafísico à
teoria do eu duplo (duplicado)”, uma vez que essa corrente filosófica se contrapõe
49
ao materialismo e centra suas discussões no eu, considerando o mundo como “[…]
produto do espírito que dialoga consigo próprio” (BRAVO, 1998, p. 270). Diante
desse contexto, as representações do duplo caminham no sentido do heterogêneo e
assumem as mais variadas manifestações: o duplo como um simulacro técnico, a
exemplo do romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; o duplo como
busca da identidade do eu, através dos confrontos das personagens com seus
duplos ou da projeção em outros de partes por elas excluídas; o duplo como via de
acesso a uma suprarrealidade, uma realidade oculta; o duplo como divisão interior
do sujeito, no caso do romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson,
por meio da dualidade interior entre o ser de desejo e o eu social.
Essa heterogeneidade na representação do duplo assume uma forma ainda
mais radical a partir dos postulados da psicanálise freudiana no início do século XX.
Desse momento em diante, tem-se, na representação do duplo na literatura, o que
Bravo (1998) denomina de “abertura para o mundo”. Nesse período, as
representações do duplo são caracterizadas pela heterogeneidade e dispersão do
eu, de modo que a unidade da consciência é quebrada pela instalação do discurso
do outro, do inconsciente, instaurando a dualidade no interior do ser; pelo
esvaziamento da substância do eu, dando lugar a uma pluralidade de vozes que
falam por ele/nele; e, mais drasticamente, pela quebra/superação das fronteiras
espaço-temporais – a personagem pode viver simultaneamente em épocas
diferentes, estar em dois lugares, viver duas ou mais vidas ao mesmo tempo
(BRAVO, 2008).
1.4 O duplo e a literatura fantástica: algumas considerações
Ao longo deste capítulo, buscou-se compreender o fenômeno do duplo de
modo geral e, mais especificamente, sua representação e atualização na produção
literária em diferentes épocas. Nessa reta final do percurso, uma última problemática
cujo exame interessa aos propósitos deste estudo diz respeito à verificação de uma
possível relação existente entre o tema do duplo e a literatura fantástica. Desse
modo, objetiva-se, aqui, responder aos seguintes questionamentos: (1) há relação
entre o duplo e a literatura fantástica? A resposta afirmativa a essa questão
automaticamente conduz a outra: (2) Sob qual(is) base(s) repousa essa relação?
50
Para responder às perguntas acima elaboradas, faz-se necessário, em
primeiro lugar, contextualizar a literatura fantástica, explicitando as características e
especificidades desse tipo de relato, bem como sua inscrição em diferentes
momentos da literatura.
O fantástico, em maior ou menor grau, esteve, desde sempre, circunscrito ao
campo literário. Sua presença na literatura remonta a Homero, com suas Ilíada e
Odisseia16 ainda na antiguidade grega, passando por Dante com sua Divina
comédia na renascença, até chegar ao século XVIII e XIX, marco histórico no qual a
maioria dos estudiosos situa a eclosão da literatura fantástica como oposição ao
racionalismo em voga desde o Iluminismo. Embora Hoffmann seja o grande nome
da literatura fantástica no mundo, os críticos, dentre eles Magalhães Júnior (1972),
apontam na literatura do francês Jacques Cazotte, autor do século XVIII, as
primeiras narrativas dessa modalidade, a quem sucederam grandes nomes como o
já citado Hoffmann, bem como Mary Shelley, Robert Louis Stevenson, entre outros.
Todorov é um estudioso clássico do fantástico e um dos autores mais
referenciados nessa área. Embora alguns de seus postulados sejam passíveis de
críticas, suas categorizações mostram-se ainda pertinentes e atuais. Para ele, o
fantástico se dá no momento de hesitação do leitor17,o qual, diante de um fenômeno
insólito, não consegue enquadrá-lo numa explicação racional nem aceita esse
acontecimento como natural. Caso esta hesitação cesse, sai-se automaticamente do
terreno do fantástico para se adentrar em outro domínio, a depender da impressão
despertada no leitor: se a narrativa apresenta uma explicação racional para
acontecimentos considerados insólitos, ocupa-se o terreno do estranho; se esses
acontecimentos são aceitos como normais pelo leitor, pela admissão de novas leis
naturais que o expliquem, entra-se, então, no campo do maravilhoso18. Dessa forma,
16
Obviamente, os textos homéricos são considerados fantásticos aos olhos do homem moderno, para quem as aventuras relatadas nas narrativas pertencem ao domínio do insólito. Na sociedade grega da época, esses escritos, ligados ao imaginário mítico e religioso de seu povo, revestiam-se de simbologia e significados particulares. 17
Todorov (2008, p. 37) ressalta que o leitor ao qual ele se refere não corresponde a um leitor real: “Essa noção de leitor não é a de leitor real, mas uma função de leitor inscrita e implícita no próprio texto”. 18
Faz-se necessário, aqui, destacar uma particularidade conceitual de Todorov (2008), para quem o fantástico, assim como seus vizinhos – o estranho e o maravilhoso –, são denominados de gêneros. A fim de evitar ambiguidades, considera-se, em concordância com Bessière (2009), que o fantástico, no âmbito da literatura, não configura gênero autônomo, inscrevendo-se, ao contrário, como um modo discursivo com características próprias que se faz presente em diferentes gêneros literários ao longo da tradição.
51
percebe-se que a delimitação do fantástico ocorre na confluência com modalidades
vizinhas (de um lado, o estranho; de outro, o maravilhoso).
A partir disso, Todorov (2008) apresenta três condições que devem, segundo
ele, ser preenchidas para a manifestação do fantástico: (1) promover a hesitação do
leitor ante um acontecimento insólito; (2) compartilhar ou não a hesitação do leitor
com a personagem do texto; (3) implicar uma prática de leitura não poética nem
alegórica19. A primeira e a terceira são apresentadas como condições indispensáveis
para a existência do fantástico, enquanto a segunda é apontada como facultativa,
embora se afirme que a maior parte dos textos preenche essas três condições. A
partir disso, vê-se que o sobrenatural, conquanto seja elemento importante, não
constitui, por si só, condição única à instauração do fantástico, pois este interessa à
literatura fantástica unicamente quando é capaz de despertar no leitor sentimentos
ambíguos e desconfortantes, como o medo e o terror, levando-o à dúvida e à
hesitação.
Numa linha próxima à de Todorov, o contista Cortázar (2008) também
considera que um corte na realidade cotidiana é operado pela literatura fantástica,
uma vez que esta se opõe ao que o contista denomina de “falso realismo”. Desse
modo, o fantástico, para Cortázar, caminha num sentido contrário à racionalidade
que impera nas relações humanas cotidianas. Ao admitir que nem tudo pode ser
explicado pela ciência e pela razão, situa o fantástico numa ordem não dominada
pela “normalidade”, mas sim que vê nas exceções a ela uma abertura que possibilita
a construção de uma literatura avessa a um “realismo demasiado ingênuo”. Sendo
assim, o fantástico não é estranho à realidade, mas irrompe dela, desestabilizando-
a. Aqui, é a própria concepção de realidade que é questionada.
Referindo-se às produções século XIX, Calvino (2004) reconhece duas
vertentes principais assumidas pelo conto fantástico, as quais ele conceitua, de
acordo com suas características peculiares, de fantástico visionário e fantástico
mental/abstrato/psicológico/cotidiano: à primeira tendência Calvino relaciona as
produções literárias do início do século XIX; à segunda, as produções do final do
século XIX até o limiar do século XX. Mesmo reconhecendo que essa distinção seja
até certo ponto arbitrária, no sentido de haver textos pertencentes a esses dois
19
A alegoria compreende um duplo sentido: um literal, manifesto no texto, e outro figurado ou
espiritual. O jogo proposto pela alegoria é falar de uma coisa para fazer compreender outra (MOISÉS, 2004).
52
momentos, ele afirma que essa orientação da literatura fantástica, do visionário ao
cotidiano, configura um processo de interiorização do sobrenatural. Tal tendência, já
presente no final do século XIX, continua em voga nas produções do século XX, só
que assumido novas configurações. Se a literatura fantástica lida essencialmente
com acontecimentos inquietantes para o ser humano, que provocam sentimentos de
terror e medo, os fenômenos sobrenaturais que povoam as páginas da literatura
fantástica no século XIX encontram menos espaço nos escritos dos séculos XX e
XXI. Assim, a literatura fantástica contemporânea busca lidar prioritariamente com os
novos “medos” da sociedade atual e questiona a própria concepção de razão. É
nesse contexto que serão recorrentes no fantástico, especialmente no contexto da
literatura brasileira, temas existenciais, de denúncia social e que representam a
condição humana degradada imersa numa sociedade moderna opressora.
O fantástico, embora presente na literatura da antiguidade aos dias atuais,
tem sua eclosão situada historicamente entre os séculos XVIII e XIX. Segundo
Lamas (2002, p. 34), esse período histórico reúne as condições necessárias à
emergência do fantástico e sua consolidação na ficção literária “[…] haja vista todo
um contexto de rejeição ao sentimento e de crença na supremacia da razão,
possibilitadas por um número de invenções científicas que culminam na primeira
revolução industrial”. Quanto ao conto fantástico, modalidade de narrativa na qual
mais caracteristicamente se manifesta, Calvino (2004) situa seu surgimento nesse
mesmo contexto histórico, mais precisamente com o Romantismo alemão no início
do século XIX, influenciado pelo romance gótico inglês do século XVIII.
Mesmo ganhando destaque nas produções literárias de outros países, em
especial na literatura europeia, norte-americana e inclusive hispano-americana, a
produção fantástica não encontrou espaço na literatura brasileira, manifestando-se,
de forma incipiente, como acessório, nos escritos de autores a exemplo de Álvarez
de Azevedo e Machado de Assis. No Brasil, a eclosão do fantástico deu-se apenas
no século XX, com o Modernismo. Nesse cenário, destaca-se a figura de Murilo
Rubião, sendo seu livro O ex-mágico e outros contos (1947) considerado o marco
inicial da literatura fantástica no Brasil. Para justificar essa “lacuna” na literatura
brasileira, dois estudiosos apresentam hipóteses interessantes. Segundo Lamas
(2002), as condições históricas que possibilitaram a emergência da literatura
fantástica, especialmente na Europa, não se faziam presentes no Brasil. O contexto
brasileiro da época era marcado pelas lutas em prol da abolição da escravatura e
53
pela proclamação da República, pelo clima hostil entre brasileiros e portugueses,
pela busca de igualdade entre as classes e pelo Positivismo que se firmava
enquanto doutrina filosófica. Já as duas hipóteses apresentadas por Gabrielli (2002)
para explicar a pouca penetração do fantástico na literatura brasileira baseiam-se
em peculiaridades literárias e culturais do Brasil. A primeira explicação diz respeito à
própria natureza da representação literária no Brasil, ao defender que havia na
literatura brasileira, desde o Romantismo até o Realismo-Naturalismo, uma
tendência à observação e à documentabilidade, que inibiriam a liberdade imaginativa
necessária à literatura fantástica. A segunda hipótese toma como base estudos
desenvolvidos por Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire, que apontam para
um traço cultural específico da sociedade brasileira: o horror à estranheza, em prol
de um culto da familiaridade. Esse aspecto, de acordo com Gabrielli, impossibilitaria
a manifestação do fantástico, visto que este lida com acontecimentos sobrenaturais,
que fogem da realidade imediata do ser humano e que, por essa razão, provam
sentimentos inquietantes e perturbadores.
De posse desses conhecimentos sobre as características e configurações
essenciais da literatura fantástica, é preciso agora resolver as duas questões
deixadas em aberto no início dessa seção. Com base em López (2006), há relação
entre o duplo e o fantástico: segundo essa autora, muitos críticos posteriores a
Todorov consideram a duplicidade como um motivo capital desse discurso. Para
justificar essa imbricação do duplo na literatura fantástica, López (2006) apresenta
dois motivos principais: (1) é comum ao duplo e ao fantástico a confrontação entre o
real e o sobrenatural (esses opostos manifestam-se na estrutura do duplo,
respectivamente, através do embate entre a personagem original e seu duplo); (2)
ambos operam, dentro de suas especificidades, um corte na ordem natural e
racional (esse corte é representado, no fantástico, pela irrupção do insólito e, na
estrutura do duplo, pelo desdobramento da personagem – inexplicável do ponto de
vista científico). Além disso, López (2006) reconhece na função subversiva do duplo
outro motivo que contribui para a ligação deste com a literatura fantástica. Isso
porque a confrontação do ser com o duplo tem como consequência o
desmascaramento moral e social do protagonista, ao expor, possivelmente, partes
ocultas da subjetividade do sujeito, bem como suas fragilidades, medos, angústias
etc.
54
Por fim, pode-se, assim como López (2006), conceber a literatura fantástica
como um duplo do cânone realista, reconhecendo, inclusive, que há entre os dois
sistemas literários uma coincidência no que concerne à utilização dos códigos e
convenções:
O gênero, sim, supõe uma alternativa à versão oficial do mundo oferecida pela literatura realista, mas […] o relato fantástico não se apoia ocasionalmente nas convenções do realismo, mas que depende destas sem exceção: para conseguir que o feito sobrenatural resulte verossímil, o conto tem de se ambientar num mundo cotidiano construído com técnicas realistas
20 (LÓPEZ, 2006, p. 59. Tradução nossa.).
Desse modo, a própria literatura fantástica faz uso de técnicas do realismo
para descrever o acontecimento sobrenatural, com o intento de tornar o relato
verossímil. Ao mesmo tempo, há uma oposição entre esses dois sistemas literários
no que concerne à representação do mundo: enquanto o realismo preconiza o relato
supostamente transparente de uma dada realidade, o fantástico subverte a ordem
natural, ao trazer o sobrenatural e o inexplicável para o cotidiano das personagens:
“O relato fantástico apresenta um mundo com o qual o leitor se identifique sem
esforço, uma construção verossímil de seu entorno para que o impossível irrompa
com toda a contundência possível, atemorizando e quebrando as expectativas de
personagens e receptor”21 (LÓPEZ, 2006, p. 60. Tradução nossa.). Desse modo, o
fantástico, enquanto sistema literário, apresenta uma ambiguidade constituinte: faz
uso de técnicas realistas para contrapor-se ao realismo. A estrutura do duplo de
modo geral não repousa também numa indeterminação insolúvel, de modo que o
original e a copia são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes, indecidivelmente? Aqui,
mais uma vez, as semelhanças não são meras coincidências; ao contrário, apontam
para uma relação íntima entre os dois temas.
20
“El género, sí, supone una alternativa a la versión oficial del mundo ofrecida por la literatura realista, pero Ballesteros González olvida que el relato fantástico no se apoya ocasionalmente en las convenciones del realismo, sino que depende de éstas sin excepción: para conseguir que el hecho sobrenatural resulte verosímil, el cuento ha de ambientarse en un mundo cotidiano construido con técnicas realistas”. 21
“El relato fantástico presenta un mundo con el que el lector ha de identificarse sin esfuerzo, una
construcción verosímil de su entorno para que lo imposible irrumpa con toda la contundencia posible, atemorizando y quebrando las expectativas de personajes y receptor”.
55
CAPÍTULO II – O DUPLO EM CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
2.1 O gênero conto: origens, evolução e tendências atuais
A tentativa de traçar a origem do conto é preocupação recorrente em campos
epistemológicos diversos, motivando pesquisadores, invariavelmente, a vasculhar e
revisitar a própria história da humanidade. Como afirma Galvão (1983), a ação de
“contar”, prática imemorial e anterior mesmo à literatura, é uma característica
intrínseca ao homem, fazendo-se presente mesmo em comunidades que não
dominavam a linguagem escrita. Contudo, diferentemente do romance, herdeiro da
epopeia, o conto tem sua origem imbricada de forma indissolúvel na tradição oral, ao
derivar de “[…] várias formas de narrativa doméstica, a fábula, a anedota, o caso, o
provérbio, os enredos curtos de tom libertino, piedoso ou moralizante […]” (LUCAS,
1983, p. 106).
Mesmo ausente de teorização na Poética de Aristóteles, que elege os três
gêneros nobres (lírica, tragédia e epopeia), o conto está presente na literatura desde
a antiguidade, seja isolado, seja inserido no interior de narrativas mais extensas,
como na Odisseia de Homero, por exemplo. Contudo, é na literatura medieval que,
de acordo com Passos (2001), o conto individualiza-se, ganhando, paulatinamente,
os contornos delineadores do gênero. Para Galvão (1983), o conto, tal qual se
conhece hoje, estabelece-se no período da segunda revolução industrial e tem suas
bases fincadas na tradição americano-europeia.
Embora reconheça que a arte de “contar estórias” espraia-se por tempos
longínquos, Gotlib (1999) identifica três principais fases na evolução do conto, as
quais moldaram esse gênero ao longo dos anos: no início, tem-se o conto
transmitido oralmente de geração em geração; posteriormente, o conto, embora
mantendo características da oralidade, ganha um registro escrito; e por fim, a
categoria estética passa, no século XIV, a ser o princípio norteador e motivador da
produção do conto, momento esse em que nasce o conto literário. Nessa terceira
fase, entra em cena a figura do narrador que aglutina, ao mesmo tempo, as funções
desempenhadas pelo contador-criador-escritor, criando uma produção que “[…]
ressalte os seus próprios valores enquanto conto […]” (GOTLIB, 1999, p. 13). A
diferenciação entre o conto popular e o conto literário é também abordada, de forma
56
bastante didática, por Jolles (1976), a partir de sua distinção entre “forma artística” e
“forma simples”:
[…] Forma Artística ou Forma Simples, poder-se-á sempre falar de “palavras próprias”; nas Formas artísticas, todavia, trata-se das palavras próprias do poeta, que são a execução única e definitiva da forma, ao passo que, na Forma Simples, trata-se das palavras próprias da forma, que de cada vez e da mesma maneira se dá a si mesma uma nova execução (p. 195. Grifos do autor).
Essa conceituação de Jolles (1976) parte da consideração da natureza da
linguagem inerente a cada uma das formas por ele apresentadas: na artística, o
modo de expressão escolhido pelo poeta transforma-se na única realização possível
para a forma, sob pena de se perderem a especificidade e singularidade desta; na
simples, ao contrário, a linguagem é fluida, podendo sofrer alterações superficiais no
modo de expressão, desde que condizente com a forma, de modo que a mantenha
inalterada. Essa distinção no que concerne à linguagem pode, segundo o autor, ser
estendida a outros elementos, como personagens, lugares e incidentes, que, na
forma simples, mantêm sua natureza fluida, diferentemente da artística.
Enquanto gênero literário, o conto ganha destaque no âmbito da literatura
principalmente a partir do século XIX. Galvão (1983) reconhece como fator
determinante para esse apogeu a ligação íntima existente entre o fortalecimento e
disseminação do conto literário e os primeiros suspiros da nascente indústria
cultural, representados pelo surgimento da imprensa periódica. É nesse sentido que
Galvão (1983) afirma que a imprensa determina duplamente a forma do conto: por
um lado, no que concerne à economia dos meios narrativos, em virtude do espaço
limitado disponível, delineando importantes características, como extensão da
narrativa, tempo de leitura, efeito único etc.; por outro, a democratização da leitura
possibilitada pela reprodução técnica que impõe, no âmbito formal, uma menor
propensão “[…] a ousadias vanguardistas e códigos inovadores, por princípio de
decifração difícil” (GALVÃO, 1983, p. 169). Como se vê, essa extensão do
capitalismo ao campo cultural traz importantes implicações para a configuração do
conto, pois, tendo a imprensa como principal veículo de publicação, tal gênero sofre
necessariamente coerções dessa esfera da comunicação de modo a se adequar ao
contexto.
57
Apesar ter ocupado e ainda ocupar atualmente um lugar importante no
cenário das letras mundiais, o estudo do conto parece suscitar menor interesse dos
teóricos, se comparado ao romance (cf. CORTÁZAR, 2008). Além disso, o estudo do
conto vê-se diante de outra dificuldade, esta derivada da própria natureza do gênero:
dada sua diversidade, uma definição de valor geral parece um propósito ainda
distante. Entretanto, isso não anula a validade de investigações diversas realizadas
ao longo dos anos, cada uma das quais buscando, sob uma ótica particular, os
contornos adquiridos pelo conto na história da literatura. Tais investigações
permitem, em conjunto, a construção de uma visão panorâmica sobre esse gênero.
Uma das primeiras teorizações sobre o conto foi postulada pelo também
escritor americano Edgar Allan Poe. Para ele, o conto bem construído deve ser
governado por dois princípios interligados entre si: (1) todos os incidentes narrados
devem corroborar para a construção de um efeito de sentido único e singular; (2)
todos os eventos narrados são pré-concebidos, de modo que a cena final, ou seja, o
desfecho do enredo governa todo o andamento do conto. Para a consecução desses
propósitos, Poe (1842) impõe ainda restrições ao tamanho da composição, que não
deve ser nem breve nem longa demais, de sorte que o conto possa ser lido em uma
“só sentada”, a fim de preservar a unidade de efeito.
Cortázar (2008) também afirma haver muita confusão e mal entendidos nessa
área e que, em se tratando do conto, não se pode falar em leis que regem sua
composição, mas somente em pontos de vista e certas constantes que, embora de
modo caótico, delineiam aspectos estruturais importantes desse gênero. Nesse
sentido, ele apresenta uma definição de conto que parte da distinção entre conto e
romance: enquanto este está para o filme, uma vez que ambos retratam uma
multiplicidade de eventos, aquele está para a fotografia, visto que realizam um corte
na realidade, apresentando um fragmento, uma fração desta. Entretanto, o fato de o
conto retratar apenas um momento específico de uma realidade mais ampla não
remete a uma suposta superficialidade dele em relação ao romance, pois, como
afirma Cortázar (2008, p. 151), a significação do conto transcende o limite físico e
visual imposto pelo recorte, de modo a atuar “[…] como uma explosão que abra de
par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que
transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmera”. Essa ideia de síntese,
considerada não apenas no tocante ao aspecto físico do texto, mas também, e
principalmente, no que se refere aos elementos composicionais (evento único,
58
poucas personagens) e temáticos (corte da realidade cotidiana), é também
ressaltada por Bosi (2002, p. 7), para quem “[…] a narrativa curta condensa e
potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção”.
Como se perccebe, o conto apresenta grande variedade, é proteiforme e está
submetido ao constante processo de renovação, razão pela qual se deve desconfiar,
como assinala Gotlib (1999), de definições arbitrárias que se propõem a abarcar a
totalidade do gênero. Essas empreitadas conceituais dogmáticas são invalidadas
pela diversidade do próprio objeto que tentam encapsular.
Quanto à produção desse gênero, pode-se afirmar, concordando com Lucas
(1983), que, embora a sua tradição seja antiga, sua história é moderna. No Brasil, a
produção de contos aparece somente a partir da primeira metade do século XIX.
Essas primeiras narrativas eram, geralmente, publicadas na imprensa e não
apresentavam uma finalidade eminentemente literária, destacando-se, nesse
contexto, Noberto de Sousa e Silva, considerado pela crítica o pai do conto
brasileiro, com a publicação de sua narrativa “As Duas Órfãs”, em 1841. No entanto,
o conto brasileiro, como expressão literária, teria surgido, segundo Coutinho (1971),
apenas na segunda fase do Romantismo, com a publicação do livro Noite na
taverna, de Álvares de Azevedo, momento esse também considerado por Lucas
(1983) como o primeiro marco da contística brasileira. A importância desse primeiro
momento da história do conto reside, principalmente, em fixar, cronologicamente, o
marco inicial de uma produção ficcional que terá na obra de Machado de Assis seu
grande auge. Esse segundo marco da história do conto no Brasil é possivelmente o
mais importante, pois é o trato dado a esse gênero por Machado de Assis que ajuda
a fixar diretrizes importantes dessa narrativa. Segundo Coutinho: “É ele, portanto,
inegavelmente, o fixador das principais diretrizes do conto brasileiro, a vigorarem
durante meio século, pelos menos […]” (COUTINHO, 1971, p. 43). Outros momentos
da história do conto brasileiro mencionados por Lucas (1983) são as produções de
Monteiro Lobato (considerado o marco pré-moderno) e de Mário de Andrade, este
pertencente ao Modernismo. Ainda no contexto da modernidade brasileira, podem-
se citar os nomes de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, escritores que, a seu
modo, contribuíram para o estabelecimento estético desse gênero em constante
transformação e evolução. Estudiosos como Lucas (1983) e Galvão (1983) veem as
produções a partir da década de 60 do século XX como um período áureo da
contística brasileira. Candido (2006) chega a afirmar, inclusive, que a produção de
59
contos desse período representa o melhor da literatura brasileira recente. Isso se
deve, em parte, à adaptabilidade desse gênero ao contexto moderno, pois, segundo
Lucas (1983), o conto é um dos gêneros que mais se adequaram às exigências da
modernidade. É um gênero que acompanha e reflete o movimento da vida,
retratando diferentes situações da vida real ou imaginária. No ímpeto de retratar a
existência, o conto exerce “[…] ainda e sempre, o papel de lugar privilegiado em que
se dizem situações exemplares vividas pelo homem contemporâneo” (BOSI, 2002,
p. 8). Na modernidade, esse gênero literário volta-se para pequenos momentos da
vida ordinária, transformando pedaços efêmeros do cotidiano em instantes
singulares e significativos. Além disso, no conto moderno, acentuam-se a economia
narrativa e teor fragmentário do texto, o que passa a requerer do leitor participação
ativa para preencher possíveis lacunas deixadas e construir o sentido do texto.
Candido (2006) atrela essa linhagem da produção moderna de contos ao
conceito de “nova narrativa”, amplamente discutido no contexto da literatura da
América Latina, ressaltando, para tanto, não apenas semelhanças históricas, mas
também, e principalmente, simetrias no âmbito literário, como a imitação de
tendências europeias. Por outro lado, Bosi (2002, p. 21-22) identifica duas
tendências principais assumidas pelo conto na modernidade:
De um lado, o processo modernizador do capitalismo tende a pôr de parte o puro regional, e faz estalarem as sínteses acabadas, já clássicas, do neo-realismo, que vão sendo substituídas por modos fragmentários e violentos de expressão. […] De outro lado, a ficção introspectiva, cujos arrimos foram sempre a memória e a auto-análise, ainda resiste como pode à anomia e ao embrutecimento, saltando para universos míticos ou surreais, onde a palavra se debate e se desdobra para resolver com as suas próprias forças simbólicas os contrastes que a ameaçam.
À primeira vertente filiam-se os texto que, de acordo com Bosi (2002),
apresentam um “retrato fosco da brutalidade corrente”. Nesse caso, a visão captada
pelo conto não corresponde, pois, a uma referência clara e transparente à realidade
concreta, ou seja, a uma literatura realista ou neo-realista; ao contrário, a narrativa
apresenta uma percepção ofuscada da realidade que se materializa em uma
narrativa fragmentada. No segundo caso, estão as produções definidas por Bosi
(2002) como de “sondagem mítica do mundo, da consciência ou da pura palavra”.
Essas narrativas, vinculadas à linha introspectiva, transcendem a realidade imediata
e apontam para universos míticos e surreais. Essas duas perspectivas,
60
aparentemente divergentes entre si, são, na verdade, faces do mesmo rosto que
“[…] talvez componham a máscara estética possível para os nossos dias […]” (BOSI,
2002, p. 22).
Nesse cenário moderno, figura a produção de contos de Lygia Fagundes
Telles e Ignácio de Loyola Brandão. A considerar essas duas vertentes do conto
moderno apresentadas por Bosi (2002), pode-se, a partir da produção de contos
desses escritores, afirmar que a contística de Telles está mais próxima da
“sondagem mítica do mundo, da consciência ou da pura palavra”, ao passo que a de
Brandão vincula-se à representação de um “retrato fosco da brutalidade corrente”.
Embora partindo de posições distintas, resultado principalmente de suas filiações
literárias e do modo como cada autor refrata em sua ficção traços da sociedade na
qual se encontra imerso, ambos os escritores transpõem para suas obras os ares da
modernidade. Desse modo, são temáticas comuns na literatura desses escritores as
representações do contexto social amplo e do sujeito humano nele imerso. Nesse
campo fértil, destaca-se, pela recorrência e diversidade observadas, a
representação de um sujeito em crise, cindido, duplicado. É, pois, sobre esse sujeito
que recai a investigação proposta nesse trabalho, visando a compreender como se
dá a complexa relação entre a personagem e seu duplo no contexto contemporâneo,
bem como os desdobramentos e as reflexões decorrentes dela.
2.2 Representações do duplo em Lygia Fagundes Telles22: uma leitura de três
contos
Lygia Fagundes Telles, nascida em 19 de abril de 1923, é contista,
romancista e cronista reconhecida no cenário das Letras. Seu primeiro livro,
intitulado Porão e Sobrado, foi lançado em 1938, quando a autora tinha apenas 15
anos. Contudo, considera-se como seu verdadeiro livro de estreia a obra de contos
Praia viva, lançado em 1944, no qual já se esboçam alguns traços estilísticos que
caracterizarão posteriormente a marca de sua escrita dentre os quais vale ressaltar
22
Os contos de Lygia Fagundes Telles selecionados para análise, dentre outros, foram também objetos de estudos de Lamas (2002) em sua tese de doutoramento. Entretanto, as análises aqui propostas, embora sejam norteadas por perspectivas teóricas semelhantes, diferenciam-se do trabalho de Lamas, ao conceber o duplo como manifestação do insólito nas narrativas, e ampliam-no, uma vez que se propõe um estudo comparativo com vista a estabelecer relações de semelhança e diferença entre a manifestação do duplo na contística de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Desse modo, propõe-se uma análise que amplia o universo de observação e os procedimentos de análise crítica das narrativas selecionadas.
61
a introspecção das personagens. Às coletâneas de contos, soma-se também sua
produção romanesca, sendo Ciranda de Pedra, lançada em 1954, sua primeira
publicação nesse gênero.
Silva (2001) observa na produção de Telles certas características temáticas,
estilísticas e estruturais recorrentes e inalteráveis, ao que ela denomina de mitoestilo
da escritora. Assim, no mundo ficcional criado por Telles, podem-se destacar os
seguintes elementos: preponderância da metamorfose, utilização de imagens
recorrentes, como o jardim, a fonte, a estátua; preferência por determinadas cores,
como o verde; superposição de diversos planos temporais; entre outros.
O tema da metamorfose permeia toda a obra da referida escritora. Quanto à
metamorfose de personagens, Silva (2001) identifica três modalidades: (1) a
metamorfose no sentido ovidiano, de transformação física do ser; (2) a metamorfose
no sentido goethiano, pela mudança no comportamento psíquico da personagem; (3)
a metamorfose em sentido teleológico, compreendendo a transformação última
ocasionada pela morte.
O conto “Lua crescente em Amsterdã”, publicado inicialmente na coletânea
Seminário dos Ratos (2009), exemplifica a primeira modalidade, em que a
metamorfose, devido a causas naturais ou desconhecidas, realiza-se por meio da
transmutação física da personagem. Nesse conto, o leitor é surpreendido ao final da
narrativa. Diante de seus olhos, descortina-se um evento insólito, quando o jovem
casal em crise que discute em um jardim localizado na cidade de Amsterdã perde
sua forma humana e transfigura-se em animal: uma menina que passeava pelo
jardim “guardou o bolo no bolso e agachou-se para ver melhor o passarinho de
penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava se
esconder debaixo do banco de pedra” (TELLES, 2009, p. 104). Aqui, realiza-se a
metamorfose via zoomorfismo: o ser masculino transforma-se num passarinho e o
feminino, numa borboleta.
A metamorfose no sentido goethiano é mais frequente na ficção de Telles do
que a anteriormente abordada. Nesse caso, não se trata de uma mudança física,
mas de uma transformação radical no modo como a personagem se comporta ao
longo da narrativa em suas relações consigo, com o mundo e com os outros, como
resposta a fatores emocionais e/ou sociais. Essa mudança de comportamento pode
ser resultado de um processo de degradação pelo qual passa a personagem,
determinada por motivos externos (pressões sociais) ou internos (afetividade). Pode
62
ainda compreender um processo de melhora, como resposta à queda sofrida pela
personagem, numa tentativa de reabilitação, seja em relação ao outro ou a si
mesmo (SILVA, 2001). O conto “Venha ver o pôr do sol”, publicado originalmente no
livro Histórias do desencontro (1958), narra o último encontro entre as
personagens Ricardo e Raquel, esta prestes a se casar com um homem rico. Como
despedida, Ricardo convida-a para ver um lindo pôr do sol, em um cemitério
abandonado. Nesse local, induz Raquel a entrar em uma catacumba, onde, mesmo
diante dos suplícios dela, prende-a e abandona-a. Assim, o último encontro é usado
por Ricardo como um artifício para, de forma planejada, vingar-se pelo rompimento
do relacionamento amoroso em consequência do futuro casamento de sua amada. A
partir disso, verifica-se, na narrativa, uma drástica mudança de comportamento de
Ricardo para com Raquel, que de jovem apaixonado transforma-se em assassino
passional.
Por fim, tem-se a metamorfose em sentido teleológico, que corresponde à
transformação última realizada pela morte, seja através da decomposição da matéria
orgânica do ser, seja por meio da dualidade corpo e espírito, segundo determinadas
crenças. Nos contos de Telles, a morte, compreendida também em sentido
simbólico, é uma temática recorrente, embora nem sempre ocupe o primeiro plano
da narrativa. No conto “O tesouro”, publicado no livro Jardim Selvagem (1974), a
morte é simbolizada por um novo nascimento, representativo do mito do “eterno
retorno”: o quase afogamento de Guido, ao qual se segue o aprendizado (mergulhar
e pular as ondas do mar), funciona como uma primeira etapa de um rito iniciatório
rumo ao seu crescimento espiritual. Conforme destaca Augras (2008, p. 21): “Iniciar-
se é passar por um conjunto de ritos que levam o fiel de volta aos começos do
mundo, às origens do ser”. Esse retorno às origens, realizado através do rito
iniciático, conduz ao nascimento de um novo ser: “A iniciação, o recomeço e,
portanto, metamorfose: o outro que substitui o neófito, quem é, de onde vem, o que
quer dizer?” (AUGRAS, 2008, p. 21). Como se sabe, o nascimento do ser é uma das
etapas do complexo ciclo natural da vida, que tem a morte como destino inevitável.
Assim, o renascimento marca o início de um novo ciclo, estabelecendo uma linha
divisória e uma diferenciação entre o passado e o presente do ser. Como se pode
observar, a morte inscreve-se nesse conto: o mergulho representa uma morte
simbólica – a partir da qual a personagem renasce –, um passo à frente em direção
à conquista da maturidade.
63
Paralelamente à metamorfose, outro tema em especial chama atenção pela
recorrência tanto na produção da escritora quanto na literatura de modo geral: a
construção da identidade através do confronto com o duplo. O fenômeno da
duplicidade materializa-se no texto literário através do confronto do ser com seu
duplo e assume a função de busca da identidade pelo sujeito: “As personagens de
Lygia estão em busca da unificação, mesmo às portas da morte. A escritora desvela
em seus contos esta fragmentação do mundo e a percepção aguda de que seus
personagens mostram desse fato” (LAMAS, 2002, p. 261). Desse modo, a partir da
temática do duplo, a escritora aborda o complicado processo de construção de
identidade no contexto contemporâneo, marcado pela cisão e pela fragmentação do
sujeito. Nos contos de Telles, o encontro com o duplo apresenta-se, na maioria das
vezes, como uma confrontação com a morte, o que leva as personagens a uma
reflexão sobre si mesmas e sua condição.
Os contos de Lygia Fagundes Telles seguem uma veia subjetivista e
introspectiva, características essas que se manifestam na literatura brasileira
principalmente a partir da década de 60 do século XX. Em seus contos, a ênfase
recai sobre o plano psicológico das personagens: a autora procura desnudar a vida
interior desses seres da ficção, explorando seus conflitos interiores, suas angústias
e medos. A partir dessa caracterização geral, reconhece-se na produção de contos
da autora uma vinculação ao que, nos estudos literários, denomina-se conto de
atmosfera, justamente pela ênfase dada à análise psicológica dos sujeitos, expondo
os mais íntimos conflitos humanos.
Nos contos de Telles, o psicológico aparece, muitas vezes, atrelado ao
fantástico, englobando temas que vão desde “[…] temas corriqueiros de história
simples, abarcando também situações complexas e estranhas, até desembocar no
sobrenatural e no fantástico, rompendo com os limites racionais do humano”
(LAMAS, 2002, p. 112). A construção desse cenário fantástico é possibilitada não
somente pela natureza dos temas abordados, como a morte e a busca da
identidade, mas também, e especialmente, pelo modo como a escritora dá corpo e
vida ao relato, criando situações insólitas que promovem uma ruptura na ordem
natural e racional do cotidiano. A ambientação e o desenvolvimento temporal de
alguns contos de Telles elucidam essa ruptura, ao inserir a narrativa numa
indeterminação espaço-temporal (a título de exemplo, pode-se mencionar a sempre
recorrente imagem do jardim e suas variantes, suspensos no espaço e no tempo).
64
Desse modo, o conhecimento por parte do leitor dessa recorrência a certos
temas e símbolos observados na literatura de Telles mostra-se importante não só
para a interpretação de suas narrativas em sentido amplo, mas também para o
propósito específico apresentado neste trabalho, que é analisar as configurações
assumidas pela representação do duplo em contos selecionados dessa mesma
escritora.
2.2.1 “A caçada”
O conto “A caçada” integra a coletânea O jardim selvagem, publicada
inicialmente em 1965. Narrada em terceira pessoa, a ação do conto se passa
basicamente nos fundos de uma loja de antiguidades onde se localiza uma tapeçaria
antiga, objeto que instiga a curiosidade do protagonista. A tapeçaria representa a
cena de uma caçada. Nela, dois caçadores, com suas flechas apontadas, acuam,
em meio a um bosque, um pequeno animal escondido por traz de um arbusto.
Embora pareça aparentemente banal, essa cena constitui-se como o elemento
desencadeador e motivador da trama, determinando o desenrolar e o desfecho da
narrativa, pois é partir da crescente familiaridade e identificação do protagonista com
esse objeto que a narrativa ganha corpo.
O conto inicia descrevendo o espaço de uma loja de antiguidades, local onde
se encontra a tapeçaria. Além de situar o leitor quanto ao espaço físico em que
majoritariamente se desenvolve a narrativa, é interessante observar, nessa
descrição, a adjetivação utilizada pelo narrador para caracterizá-lo: “A loja de
antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e
livros comidos de traça” (TELLES-AC, 1974, p. 99). Esses dois signos (“bolor” e
“traças”), por si sós, já sinalizam para uma atmosfera mórbida e degradada,
evocando no imaginário do leitor a ideia de um lugar desabitado, esquecido e
largado em um passado longínquo.
Contudo, a descrição desse ambiente pode, se concebida em sentido
alegórico, extrapolar o limite meramente físico e exterior, passando a caracterizar,
também, processos psicológicos internos representativos de um estado de
consciência da própria personagem. Assim, a imagem da loja de antiguidades,
impregnada pelo mofo e corroída por traças, não poderia remeter também,
metaforicamente, a um espaço interior do protagonista no qual foram depositadas
65
memórias de fatos e acontecimentos passados? Essa interpretação é sustentada
pelo desenvolvimento da narrativa, uma vez que o processo de rememoração
realizado pelo protagonista, cujos primeiros indícios foram aqui apontados, será a
força maior atuante e o elemento desencadeador dos conflitos enfrentados pela
personagem na tentativa de construção de uma identidade.
Ainda nessa descrição inicial da loja de antiguidades, dois outros símbolos
chamam atenção do leitor, principalmente pela associação e pelo poder imaginativo
e metafórico que deles emanam: “Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra
uma imagem de mãos decepadas”. Conforme destacam Chevalier e Gheerbrant
(2009), a borboleta está associada ao simbolismo da ressurreição/renascimento.
Ambas as significações estão intrinsecamente relacionadas à ideia de morte: tanto a
ressurreição quanto o renascimento são fenômenos precedidos pela morte, em nível
físico ou simbólico, e que implicam mudança de estado do ser. Por outro lado, tem-
se a imagem do São Francisco de mãos decepadas. Obviamente, a figura desse
santo, na tradição católica, remete ao sagrado e ao divino. Quanto à simbologia das
mãos, Chevalier e Gheerbrant (2009) afirmam que ela é indissociável de atributos
como atividade, poder e dominação. É, portanto, o emblema por excelência da
atitude ativa. Assim, as mãos decepadas do santo remetem às noções de
passividade e submissão. Desse modo, as figuras da borboleta e do santo de mãos
amputadas conectam-se, respectivamente, à ideia de morte e à passividade do
protagonista diante das situações, constantemente evocadas ao longo da narrativa.
A relação do santo sem mãos com o protagonista é explicitada, inclusive, em outra
passagem do conto, através de uma comparação – “O homem estava tão pálido e
perplexo quanto a imagem” (TELLES-AC, 1974, p. 99) –, o que reforça a
interpretação aqui proposta. Observa-se, pois, que signos aparentemente
despropositados, assim como muitos outros que aparecem ao longo da narrativa,
encobrem significações que levam à descoberta de indícios importantes sobre o
desenrolar do conto, os quais somente uma leitura atenta revelaria.
Uma vez situado o espaço de forma geral, o narrador direciona o foco da
narrativa para as relações e conflitos vivenciados pelo protagonista ante a
contemplação do objeto artístico: “Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria
que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais” (TELLES-AC, 1974,
p. 99). Aqui, é mostrada ao leitor a grandiosidade da tapeçaria, a princípio no que
concerne ao aspecto físico, mas já indiciando, também, a amplitude subjetiva que
66
esta adquirirá para o protagonista no decorrer da narrativa. É interessante também
atentar para a similaridade do espaço que a tapeçaria ocupa tanto no ambiente da
loja quanto na vivência subjetiva da personagem. No espaço físico da loja, a
tapeçaria, apesar de sua grandiosidade, ocupa uma parede ao fundo, construindo,
com isso, a concepção de um recinto mais reservado e íntimo. De modo idêntico, a
tapeçaria se reveste de enorme significação para a personagem: sua vivência,
estranhamente, liga-se à representação, embora as lembranças desse fato
localizem-se no “fundo” da memória23, inacessível até determinado momento. Desse
modo, a tapeçaria é, também no plano subjetivo, grandiosa, apesar de ocupar um
local reservado, íntimo.
É nesse momento também que o leitor tem conhecimento da relação de
admiração e contemplação da personagem para com a tapeçaria, revelação que se
dá a partir do discurso da vendedora da loja: “– Já vi que o senhor se interessa
mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado” (TELLES-AC, 1974, p. 99). Esse
discurso não apenas ilustra o interesse do protagonista pelo objeto, como também
informa a anterioridade desse interesse ao momento presente na narrativa, já que se
infere não ser a primeira vez que ele contempla a tapeçaria. Isso reforça o laço e a
ligação entre os dois, levando, a partir daí, a uma intensidade crescente no conto,
resultado da progressiva familiarização do protagonista com a tapeçaria, até
culminar no momento final de reconhecimento. O percurso que leva a personagem à
identificação completa com a cena configura-se, desse modo, como um processo de
rememoração. Como afirma Vernant (1973, p. 112), “[…] a rememoração não
procura situar os acontecimentos em um quadro temporal, mas atingir o fundo do
ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual saiu o cosmo e que permite
compreender o devir em seu conjunto”. Esse processo põe em jogo,
inevitavelmente, a relação e a indeterminação entre os opostos passado/presente e
memória/esquecimento.
Esse processo de identificação com a cena representada na tapeçaria tem
início logo nas primeiras passagens do conto. Esse processo é indicado pela
percepção diferente que a personagem começa a ter em relação a esse objeto:
23
O poder sagrado da memória é representado no mundo grego pela deusa Mnemosyne. Os atributos imputados a essa deusa contrapõe-se, pois, aos perigos do esquecimento, simbolizado na tradição grega pelo rio Lethe (letal – esquecimento), passagem obrigatória no trajeto rumo ao mundo dos mortos, o Hades.
67
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. – Parece que hoje está mais nítida… – Nítida? – Repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. – Nítida, como? – As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? (TELLES-AC, 1974, p. 99)
Nessa passagem, observa-se claramente a diferença de percepção que
ambas as personagens demonstram quanto à tapeçaria, o que marca posições
discursivas antagônicas no interior da narrativa. Por um lado, a vendedora lança um
olhar objetivo para o objeto: a tapeçaria é simplesmente um produto dentre muitos
outros expostos em sua loja, sem qualquer significação especial. Isso é comprovado
pelos questionamentos dela (“nítida?”; “nítida, como?”), em resposta a perguntas da
personagem. Por outro lado, ela visualiza o objeto sob uma ótica particular,
subjetiva, de modo que o torna relevante e significativo para si, conforme demonstra
sua fala: “Parece que hoje está mais nítida”, “As cores estão mais vivas”. Isso se dá,
precisamente, porque o processo de reconhecimento se processa na psique do
protagonista. Assim, a cena representada na tapeçaria relaciona-se de algum modo
com a intimidade e a vivência da personagem, embora seja, até o momento,
inexplicável para ela. Disso decorre a percepção pela personagem dos mais ínfimos
detalhes, os quais passam apercebidos pelo olhar indiferente e desinteressado da
vendedora.
Cada uma das posturas assumidas pelas personagens pode ser vinculada à
atuação de duas forças antagônicas que demarcam discursivamente fronteiras bem
nítidas quanto à percepção do objeto: a vendedora guia-se pelo olhar frio da razão,
ao passo que o protagonista se entrega às volúpias da emoção. Essa diferença de
percepção do objeto entre os dois seres permanecerá ao longo da narrativa,
mostrando-se cada vez mais marcada no texto à medida que o processo de
identificação do protagonista avança. O embate entre o discurso das duas
personagens acaba instaurando ambiguidades insolúveis para o leitor: como saber,
em determinado momento da narrativa, se o pequeno ponto ao qual elas se referem
trata-se de uma seta (de acordo com a percepção do protagonista) ou de um
simples buraco provocado por traças (sob a perspectiva da vendedora)? Essa
ambivalência ajuda a criar a atmosfera de ambiguidade, de mistério e de
indeterminação, tão característica da narrativa fantástica.
68
Como dito anteriormente, a tapeçaria apresenta a cena de uma caçada. Nela
estão representados dois caçadores (um no primeiro e outro no segundo plano) e a
caça (escondida atrás de uma touceira), figuras inseridas numa espécie de bosque
que remete à ideia do Éden, o jardim primordial. O caçador em primeiro plano está
com um arco apontado para a caça, enquanto o outro não passa de uma “vaga
silhueta”, conforme descrição do narrador. Nessa cena, chama atenção a disposição
das personagens, o que leva à configuração explícita de relações de poder. Isso
acontece não apenas pelo destaque que o caçador assume na cena, ao ser
representado no primeiro plano, mas, principalmente, pelo modo como é descrito
fisicamente e pela natureza de sua própria atividade, que evidenciam uma relação
de superioridade em relação ao animal caçado. Como se sabe, a atividade de caçar
é antiquíssima, remontando aos primórdios da humanidade. No plano mítico, o ato
de caçar corresponde a uma prática sagrada no contexto de diversas civilizações. É,
conforme Chevalier e Gheerbrant (2009), uma atividade senhoril, reservada
unicamente ao dono da terra. A arma segurada pelo caçador é, por sua vez,
conferidora de poder a esse sujeito: de posse do arco e da flecha, ele detém em si a
autoridade para retirar a vida de outros animais. Na mitologia grega, o arco e a
flecha, sob a posse do arqueiro Apolo, estão relacionados à manutenção/imposição
de uma lei: “Principalmente os humanos ser-lhe-ão submissos, pois, na sua
qualidade de arqueiro, ele é o senhor de seus destinos” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 77). Ademais, a descrição física do caçador apresentada
pelo narrador corrobora a interpretação aqui sustentada: “Poderoso, absoluto era o
primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos,
à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta” (TELLES-AC, 1974, p.
100). Nessa passagem, o narrador destaca características relacionadas à virilidade,
à força e à bravura do caçador. Sua barba, comparada a um “bolo de serpentes”,
evoca um rastro de significações míticas que se relacionam a forças primitivas
criadoras do cosmos e às potencialidades do sujeito. Considerado o reservatório de
todas as latências, a serpente é também, na figura da uróboro – serpente primordial
que morde a própria cauda – , símbolo da dialética entre vida e morte. A partir disso,
verifica-se que a figura do caçador no conto reveste-se de uma simbologia e de um
poder que o conectam aos princípios vida/morte. A caça, por sua vez, encontra-se
numa posição de inferioridade e submissão, não apenas por sua oposição ao
caçador em primeiro plano, como também pela indeterminação de sua constituição
69
física e de sua individualidade, já que se encontra escondida por trás de um arbusto.
Essas considerações aqui propostas sustentam, portanto, a ideia de hierarquização
presente na cena da tapeçaria.
Além da composição e disposição das personagens acima comentadas, é
importante destacar o simbolismo de outros elementos pictóricos presentes na
tapeçaria. Estes, por seu turno, remetem, de modo explícito ou não, a duas forças
gerais que estão intimamente ligadas na trama, a saber, a ideia de dualidade, que,
no conto, ajuda a compor a atmosfera de prenúncio da morte do protagonista. O
narrador descreve a tapeçaria do seguinte modo:
[…] tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno (TELLES-AC, 1974, p. 100).
Aqui, dois campos semânticos principais chamam atenção do leitor: de um
lado, a combinação dos signos céu/tempestade; de outro, a relação das cores
verde/violeta. Com relação ao primeiro campo, entende-se que ambos os símbolos
remetem de imediato ao divino: o céu como manifestação direta da transcendência e
a tempestade como símbolo da onipotência e da cólera divina. No segundo caso, a
simbologia do verde, se considerado isoladamente, está intimamente ligada ao
despertar da vida. Contudo, ele aparece associado a outra cor, o violeta, que é
assim descrita por Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 960): “[…] o violeta, no
horizonte do círculo vital, situa-se do lado oposto ao verde: ele significaria, não a
passagem primordial da morte à vida, i. é., a evolução, mas a passagem outonal da
vida à morte, a involução” (Grifos dos autores). Desse modo, o violeta,
contrariamente ao verde, está associado à ideia de morte. Na descrição apresentada
pelo narrador, o violeta escorre da folhagem (que se supõe aqui verde) e espalha-se
no chão como um “líquido maligno”, impregnando também a touceira24 na qual se
escondia a caça, o que simboliza a disseminação de uma atmosfera mórbida ao
longo da representação como prenúncio do desfecho da narrativa.
Assim, o cenário circundante, em concordância com a hierarquia estabelecida
na disposição das personagens na cena, corrobora a ideia de opressão da “caça”,
24
A ressalva feita pelo narrador quanto às manchas na cor violeta presentes na touceira (se faziam parte do desenho ou se eram efeito do tempo sobre o pano) instaura uma certa ambiguidade no discurso ficcional. O interessante, aqui, é a presença desses elementos e a simbologia que deles emana.
70
materializando, através dos signos céu/tempestade e verde/violeta, a força e os
desígnios de uma transcendência e a inevitabilidade de um destino por eles
prenunciado. Isso reforça as percepções, anteriormente discutidas, de passividade e
submissão do animal caçado.
O motivo pelo qual a tapeçaria, numa espécie de magia, prende a atenção do
protagonista somente é revelado no final da narrativa. Desse modo, o leitor é
testemunha de uma busca frenética da personagem em precisar sua ligação com o
objeto, compartilhando de sua angústia e lamentação por não conseguir relembrar
quando e onde assistira à cena representada: “Sua mão tremia. Em que tempo, meu
Deus! Em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?” (TELLES-AC,
1974, p. 100). Paulatinamente, a personagem consegue rememorar lembranças
relacionadas à tapeçaria, reconstruindo, através desses fios de memória, sua
relação com esse objeto: “Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu –
conhecia tudo tão bem, mas tão bem!” (TELLES-AC, 1974, p. 101). Nessa
passagem, o homem consegue relacionar a cena a um episódio por ele vivenciado.
Embora afirme conhecer alguns dos elementos representados na tapeçaria – o
bosque, o caçador, o céu – e lembrar-se, inclusive, de sensações relacionadas a
essa experiência – o perfume dos eucaliptos, o rio da madrugada etc –, não
consegue precisar em que momento se deu essa ação. Esse discurso, constituído
de forma fragmentária, não ilumina nem esclarece a situação. Apesar da
personagem lembrar-se de alguns elementos representados na cena, não consegue
construir bases sólidas que possibilitem compreender racionalmente a situação.
Esse fenômeno pode ser relacionado ao que Freud (1996a) denomina como
Estranho:
[…] todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho.
Nesse caso, as vivências do protagonista relacionadas à cena representada
na tapeçaria foram reprimidas e, por essa razão, retornam como estranhas e não
familiares para a personagem. Conforme observa Moreira (2008, p. 33), nos contos
de Lygia Fagundes Telles “[…] o estranho surge como um encontro a ser evitado, o
fatídico encontro com a morte e consigo mesmo”. Até o final do conto, permanece a
71
indeterminação espaço-temporal quanto à cena representada na tapeçaria: as
lembranças da personagem esfumaçam-se em seu passado, o que torna impossível
associá-las tanto a um tempo histórico e cronológico, quanto a um espaço
geograficamente determinável. Como se verá adiante, essas vivências e
experiências reprimidas, que retornam como estranhas, estarão estritamente
relacionadas às questões do duplo e da morte.
A busca de explicações que justifiquem a familiaridade e identificação da
personagem com a tapeçaria revela, na verdade, a tentativa e a necessidade de
responder satisfatoriamente à clássica pergunta: “quem sou eu?” Toda a narrativa
gira em torno da procura dessa verdade interior pelo sujeito, demonstrando o
sofrimento e a angústia desse homem ao longo de um árduo percurso. Desse
questionamento inicial desdobram-se muitas outras perguntas, o que demonstra a
necessidade da personagem em precisar sua identidade diante da cena
representada: “Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem
sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual?”
(TELLES-AC, 1974, p. 101). Mais adiante, ele afirma ainda: “E se tivesse sido o
pintor que fez o quadro?” (TELLES-AC, 1974, p. 101), “E se fosse um simples
espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese?” (TELLES-
AC, 1974, p. 101-102), “Era o caçador? Ou a caça?” (TELLES-AC, 1974, p. 103).
Dessa forma, vê-se que a tentativa de determinar a razão de sua familiaridade com
a situação representada na tapeçaria é, na verdade, a tentativa de constituir uma
identidade determinável. Nessa busca, que está inscrita no próprio título do conto,
acontece a identificação do eu com o outro (ou o duplo), que assume,
hipoteticamente, as formas do caçador, do companheiro, do pintor, de um
espectador casual ou mesmo da caça.
A procura da identidade através da relação com o duplo provoca no
protagonista sentimentos conflitantes e contraditórios, conforme se percebe nos dois
fragmentos destacados abaixo:
Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos (TELLES-AC, 1974, p. 101); Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na
72
vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo (TELLES-AC, 1974, p. 102).
Isso se justifica porque, conforme afirma Bravo (1998), a relação do eu com o
duplo é sempre conflitante, gerando sentimentos que oscilam entre a atração e a
repulsa. Nessas passagens, verificam-se tais sentimentos: a inquietude da
personagem ante a contemplação da tapeçaria – “enxugando o suor das mãos” –; a
sensação contraditória e vazia que ela caracteriza como “paz sem vida”; os
sentimentos, ao mesmo tempo, de repulsa e de atração exercidos pela tapeçaria
perante o protagonista, expressos na atitude de sair vagueando pelas ruas – numa
tentativa de fuga – e, repentinamente, de ver-se diante da mesma loja,
contemplando sequiosamente a tapeçaria.
Na última parte do conto, o leitor se vê diante de uma situação inusitada: a
cena representada na tapeçaria invade a realidade, instaurando uma atmosférica
fantástica na narrativa. É nesse momento também que se configura o encontro do
eu com seu duplo:
“Conheço o caminho” […] E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. […] Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... […] Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor! “Não...” – gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração. (TELLES-AC, 1974, p. 103)
A realidade é, então, invadida pelo “mundo” representado na tapeçaria: o
cheiro da folhagem e da terra, os galhos e os troncos de árvores, enfim, o bosque
adentra no mundo real. Dessa forma, o protagonista, embora lute contra isso ao
tentar agarrar-se à realidade – aqui o armário pode ser entendido como
representando metonimicamente a tentativa de manter-se preso à realidade
concreta –, é também transportado para esse tempo e espaço míticos, deslocado da
realidade imediata: sabe-se apenas, através dos indícios apresentados pela
personagem e pelo narrador, que a ação acontece num bosque, em uma
determinada madrugada. Nessa experiência mítica, o protagonista reconhece no
73
outro seu próprio eu: a caça assume a condição de duplo da personagem. O
compadecimento, anteriormente demonstrado pelo protagonista para com a caça –
“compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para
prosseguir fugindo” (TELLES-AC, 1974, p. 101) –, já prenunciava, ainda que de
modo velado, a identificação que se efetua nessa cena final.
Nesse conto, a confronto com o outro realiza-se através de um processo de
fusão: a personagem não apenas se identifica com o outro, mas se funde a ele. O
encontro com o outro é, aqui, um encontro com a morte: a seta atirada pelo caçador
atinge-lhe o peito, causando-lhe a morte, o que confirma as evidências
anteriormente apontadas sobre o prenúncio da morte do protagonista. Partindo da
classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002), o duplo neste conto realiza-se
através de uma fusão: dois seres diferentes passam por um processo gradual de
identificação que culmina na união total. Já segundo a tipologia de Jourde e
Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), tem-se um duplo subjetivo (protagonista confronta-
se com seu duplo) e externo, já que a caça se apresenta no final do conto como o
outro da personagem.
Vale dizer que no conto “A caçada” o tema da dualidade não se restringe
apenas à duplicação da personagem. Ao contrário, aparece organicamente
imbricado nas diversas camadas do texto, instaurando ambivalências insolúveis. A
relação do protagonista com a tapeçaria, fato estruturante do enredo dessa
narrativa, oscila entre o estranho e o familiar, indecidivelmente: a cena representada
mostra um fato familiar que, ao ser reprimido pela personagem, retorna para sua
percepção como estranha. Isso justifica o angustiante e doloroso processo de
rememoração, dada a natureza inquietante dos acontecimentos que, por isso
mesmo, foram reprimidos. Esse processo de identificação da personagem com a
tapeçaria é, de igual modo, governado por um complexo jogo entre os opostos
memória e esquecimento e, por sua vez, instaura outras dualidades, a saber, a
ambivalência entre vida e arte, passado e presente. A dualidade vida/morte,
vivenciada pelo sujeito, manifesta-se na narrativa através de vários símbolos: a
combinação do verde com o violeta, conforme já demonstrado anteriormente, que
simboliza uma passagem da vida à morte; a poeira que impregna e sustenta a
tapeçaria, em que o pó é, ao mesmo tempo, símbolo da origem da vida e da morte
(na tradição cristã, o homem nasce do pó e ao pó retorna). No plano espacial,
observam-se também uma fusão e uma indeterminação entre as polaridades
74
interior/exterior e dentro/fora: a tapeçaria, embora se constitua como representação
exterior, retrata uma realidade íntima, interior da personagem; esta, apesar de situar-
se fora da representação, sente-se, em determinados momentos, inserida dentro da
cena – “Mas se detesto caçadas! Por que estar aí dentro?” (TELLES-AC, 1974, p.
101). Essas fronteiras são anuladas quando o bosque, presente na tapeçaria, invade
a realidade do protagonista, momento em que há a identificação definitiva com a
caça.
Na configuração do duplo nesse conto, verifica-se uma íntima relação com o
discurso fantástico. A duplicação da personagem, embora contrária à racionalidade
cotidiana, adquire coerência interna graças ao modo como o autor organiza os fatos
do enredo, de modo a construir uma atmosfera fantástica que torna verossímeis
acontecimentos aparentemente inaceitáveis de um ponto de vista racional. É assim
que se tornam críveis para o leitor, no referido conto, a incursão do bosque da
tapeçaria na realidade concreta do sujeito e a fusão deste com a caça. Assim, o
duplo manifesta-se na narrativa graças às infinitas possibilidades abertas pelo
fantástico na literatura, em que o real e o irreal convivem lado a lado de forma
harmoniosa e não excludente.
2.2.2 “A mão no ombro”
O conto “A mão no ombro” faz parte da coletânea Seminário dos ratos,
publicada em 1977. É narrado em terceira pessoa, com presença marcante do
discurso indireto livre, em que a fala do narrador entrelaça-se com a da personagem.
Sua ação pode ser dividida em três partes: a primeira, formada pelo sonho do
protagonista que se encontra em um jardim; a segunda, quando o homem acorda e
se encontra em sua casa; e a terceira, correspondente ao momento em que o jardim
do sonho adentra a realidade.
A narrativa inicia-se imersa no sonho da personagem, apresentando a
descrição de um jardim, espaço no qual o ser ficcional se encontra inserido naquele
momento: “O homem estranhou aquele céu verde-cinza com a lua de cera coroada
por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo
opaco” (TELLES-MO, 2009, p. 105). Contudo, não se trata aqui de um jardim
qualquer, mas, como a própria personagem afirma, “Um jardim fora do tempo mas
dentro do meu tempo […]” (TELLES-MO, 2009, p. 105), carregado, portanto, de
75
importância subjetiva e simbólica. Deslocado no tempo e no espaço, esse jardim
dialoga e, ao mesmo tempo, rompe com a concepção do Éden, ao adquirir uma
conotação misteriosa e sombria que inquieta o protagonista. Na descrição inicial
desse espaço, presente no primeiro parágrafo do conto, o narrador estabelece o
jogo com uma série de palavras antagônicas que ajuda a construir a atmosfera de
indeterminação na narrativa: não se sabe se a luminosidade fosca do jardim
emanava da lua ou de um sol apagado; tampouco se era primavera, verão, inverno
ou outono. Ainda na descrição do jardim, apresentada no parágrafo inicial, é
expressiva a ausência da pulsão de vida nesse ambiente: não viu borboletas, nem
pássaros, nem formigas. Essa escassez de vida aqui assinalada será uma
característica marcante desse jardim, ao mesmo tempo inocente e inquietante.
Apenas um inseto e o caçador parecem habitar esse espaço e mover-se nele.
Do sonho da personagem, que é descrito na primeira parte do conto, podem-
se destacar três elementos principais: a simbologia da estátua presente no jardim;
as lembranças de acontecimentos da infância que emergem no sonho; a fixação do
homem na figura do caçador.
Em suas andanças pelo jardim, a personagem depara-se com um objeto que,
por um instante, prende sua atenção: uma estátua. O narrador descreve da seguinte
forma esse episódio: “Aproximou-se da mocinha de mármore arregaçando
graciosamente o vestido para não molhar nem a saia nem os pés descalços. Uma
mocinha medrosamente fútil no centro do tanque seco, pisando com cuidado,
escolhendo as pedras amontoadas em redor” (TELLES-MO, 2009, p. 106).
Surpreendido por um inseto que saía da orelha da estátua, a personagem prossegue
seu caminho, com as mãos nos bolsos e “[…] pisando com a mesma prudência da
estátua” (TELLES-MO, 2009, p. 106). Como destaca Freud (1996d), o sonho é
formado por um complexo processo de deslocamentos e condensações de
conteúdos psíquicos, responsáveis pela roupagem que o material onírico adquire. A
pergunta lançada pelo narrador – “[…] mas o que significava essa estátua?”
(TELLES-MO, 2009, p. 106) – é também um questionamento que ecoa na mente do
leitor em sua tentativa de construir sentido. Como se observa, o próprio narrador
ajuda a esclarecer esse fato, ao estabelecer uma analogia entre a postura da
estátua (pisando com cuidado para não molhar os pés) e o modo como a
personagem dá continuidade a sua caminhada. Estendendo essa interpretação,
pode-se compreender esse modo de se postar da estátua como representativo da
76
postura assumida pela personagem ao longo de sua vida. Nessa imagem, pode-se
identificar uma série de elementos simbólicos que justificam essa relação. A estátua
adota uma postura de prudência e cuidado para não se molhar. Como se sabe, a
água é símbolo universal de vida, de fertilidade, de regenerescência e purificação
(cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). Essa carga simbólica ajusta-se
perfeitamente à analogia aqui estabelecida: a personagem adotou, ao longo de sua
existência, a mesma postura de prudência, selecionando cuidadosamente os
caminhos a serem percorridos. Desse modo, a simbologia da estátua aponta para as
atitudes que a personagem assume perante a vida: nunca se comprometer, não criar
raízes, pautando-se na efemeridade das relações cotidianas – “Como ele mesmo,
tanto cuidado em não se comprometer nunca, em não assumir a não ser as
superfícies. Uma vela para Deus, outra para o Diabo” (TELLES-MO, 2009, p. 113).
Do mesmo modo, a imagem do tanque seco representa o ceifar da água da vida,
que remete à sensação de vazio da personagem: “Sentiu-se oco […] se abrisse as
veias, não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada” (TELLES-MO, 2009, p.
105-106).
Das lembranças de acontecimentos da infância da personagem que são
retomadas no sonho, duas em especial chamam atenção pelo poder imaginativo que
sugerem. A primeira delas liga-se às festividades da Semana Santa, particularmente
à procissão com o senhor morto na Sexta-Feira Santa. A personagem, com sua
roupa de Senhor dos Passos, relembra a angústia e o remorso que pairavam sobre
as pessoas nessa celebração, chegando a se questionar: “[…] o que mais nos
espera, se até com Ele...” (TELLES-MO, 2009, p. 107). Rememora, ainda, como
tudo isso o afetava internamente, provocando a vontade de evasão e o desejo de
que o Sábado de Aleluia e o momento da ressurreição chegassem logo. A segunda
corresponde a lembranças da morte de um trapezista num circo, a qual presenciara
quando criança. No sonho, uma teia de aranha que se cola em sua calça estabelece
a ligação com esse fato: “[…] o trapezista de malha branca (foi na estreia do circo?)
despencou do trapézio lá em cima, varou a rede e se estatelou no picadeiro”
(TELLES-MO, 2009, p. 108). Desse acontecimento, fixa-se na memória da
personagem a imagem do trapezista contorcendo-se até a imobilidade e a morte.
Ambas as lembranças que insurgem no sonho do protagonista, apesar da aparente
aleatoriedade, guardam entre si uma conexão profunda: remetem, ainda que de
modo indireto, à condição mortal à qual todos os seres humanos se encontram
77
irremediavelmente presos, o que ajuda a criar a atmosfera de anúncio e presságio
da morte do protagonista.
Por fim, merece destaque nessa primeira parte do conto o papel
desempenhado pelo caçador, figura impressiva sobre a qual é depositada
importante carga simbólica. No sonho do protagonista, o caçador aparece em dois
momentos distintos: primeiramente, ligado às lembranças da infância; depois, como
personalidade integrante do sonho. Como lembrança da infância, a figura do
caçador remete às brincadeiras de criança com o pai. Num jogo de quebra-cabeça,
a personagem procurava apressadamente pelo caçador escondido em meio a um
bosque para não perder a partida: “[…] Vamos, filho, procura nas nuvens, na árvore,
ele não está enfolhado naquele ramo? No chão, veja no chão, não forma um boné a
curva ali do regato?” (TELLES-MO, 2009, p. 106). Por fim, vem a grande descoberta:
“Está na escada […]” (TELLES-MO, 2009, p. 107). Na condição de personagem que
integra o sonho do protagonista, o caçador personifica a morte: “Esse caçador
familiarmente singular que viria por detrás, na direção do banco de pedra onde ia se
sentar. […] Para não me surpreender desprevenido […] discretamente ele daria
algum sinal antes de pousar a mão no meu ombro” (TELLES-MO, 2009, p. 107).
Como observam Chevalier e Gheerbrant (2009), a simbologia da atitude de
colocar a mão sobre um objeto denota tomada de posse ou afirmação de poder
sobre ele. No conto, o gesto do caçador de assentar a mão sobre o ombro da
personagem assume a significação de um aviso ou alerta de que a morte chegara. A
simbologia que emana da imagem do caçador descendo a escada para anunciar sua
resolução ajuda a compor essa atmosfera mística. De acordo com Chevalier e
Gheerbrant (2009), a escada reflete o simbolismo da relação entre céu e terra,
configurando-se como um objeto que permite as idas e vindas entre estes dois
espaços cósmicos. Nesse cenário, o caçador corporifica os atributos de uma força
transcendental e metafísica, que impõe sua superioridade e suas determinações.
Isso fica evidente através do controle que essa entidade detém do espaço e da
impossibilidade de escapar do encontro com ela: “[…] todos os caminhos iam dar na
escada […]” (TELLES-MO, 2009, p.109). Diante do exposto, podem-se estabelecer
algumas correlações entre a representação da figura do caçador no sonho da
personagem e as lembranças desta acerca das brincadeiras da infância com o pai:
nesses dois casos, apresenta-se a figura de um caçador em meio a um jardim que
desce através de uma escada. Contudo, o sonho promove uma inversão de papéis:
78
o protagonista, que no quebra-cabeça procurava o caçador escondido, passa, no
sonho, à condição de criatura procurada. Do mesmo modo, o caçador, considerando
sua representação no jogo da infância e no sonho, vai da passividade à atividade,
respectivamente, já que assume a incumbência de anunciador da morte.
É diante desse cenário que o protagonista sente a proximidade da morte:
Calou-se, ouvindo os passos [do caçador] que desciam tranquilamente a escada. […] Agora está nas minhas costas, ele pensou e sentiu o braço se estender na direção do seu ombro. Ouviu a mão ir baixando numa crispação de quem (familiar e contudo cerimonioso) dá um sinal, sou eu (TELLES-MO, 2009, p. 108-109).
No intuito de evitar esse encontro, a personagem procura evadir-se dessa
situação, o que reflete sua atitude de negação e de luta contra a morte: “Preciso
acordar, ordenou se contraindo inteiro, isso é apenas um sonho! Preciso acordar!
acordar. Acordar, ficou repetindo e abriu os olhos” (TELLES-MO, 2009, p. 109).
Nem cinquenta anos… A morte parece ter batido cedo demais na porta da
personagem. Essa é a conclusão a que chega quando acorda e relembra o sonho
que tivera. Não obstante, essa atitude de negação da morte apresenta-se, na
verdade, como o reflexo de determinados comportamentos e posturas assumidos
pelo homem moderno. Na sociedade moderna, o homem encontra-se
demasiadamente preso às ocupações e à correria cotidianas e se esquece
(consciente ou inconscientemente) de sua condição de ser finito. Projetos e planos
arquitetados parecem grandes demais para se ajustarem à efemeridade e à finitude
da vida humana. Em virtude disso, a morte apresenta-se como uma realidade
distante, a perder-se na extensão das veredas da vida: “Um dia, quem sabe? Um dia
tão longe, mas tão longe que a vista não alcançava essa lonjura, ele próprio se
perdendo na poeira de uma velhice remota, diluído no esquecimento” (TELLES-MO,
2009, p. 109).
Percebe-se, pois, que o jardim do sonho instaura uma ruptura na vivência da
personagem: “Habituara-se tanto ao quotidiano sem imprevistos, sem mistérios. E
agora a loucura desse jardim atravessado em seu caminho” (TELLES-MO, 2009, p.
106). As experiências vivenciadas nesse espaço, especificamente a da proximidade
com a morte, deixam marcas profundas nesse ser, levando-o à adoção de um novo
olhar sobre a vida. A demarcação dessa tomada de consciência pode ser
representada, simbolicamente, pela seguinte atitude: “Voltou-se para a janela e
79
estendeu a mão para o sol” (TELLES-MO, 2009, p. 109). A simbologia desse ato
exemplifica o estado de espírito da personagem. Como notam Chevalier e
Gheerbrant (2009), a janela representa uma abertura para o ar e para a luz,
caracterizando-se, portanto, como símbolo da receptividade. Por outro lado, o sol é
símbolo universal da luz, do calor, da vida. Assim, o gesto da personagem
representa uma abertura do eu para a vida em todas as suas potencialidades,
contrapondo-se, portanto, aos comportamentos cotidianos automatizados e
mecanizados aos quais estivera presa por tanto tempo. O fato da personagem
estender a mão para o sol sinaliza que a iniciativa parte dela. Essa nova postura é
evidenciada em outras passagens do texto, como no fragmento a seguir: “Cumpriu a
rotina da manhã com uma curiosidade comovida, atento aos menores gestos que
sempre repetiu automaticamente e que agora analisava, fragmentando-os em
câmera lenta, como se fosse a primeira vez que abria uma torneira” (TELLES-MO,
2009, p. 110).
Sua atitude contemplativa e reflexiva estende-se para além dos “pequeninos
prazeres” cotidianos que a personagem, após o sonho, passa a enxergar de um
modo diferente. Como que tomado por uma epifania, empreende questionamentos
existenciais, analisando suas relações consigo mesmo, com os outros e com o
mundo.
“Conhece-te a ti mesmo?” Não – provavelmente responderia o protagonista.
Ele prova desconhecer seus próprios sentimentos, mostrando-se, inclusive, surpreso
com algumas situações: “[…] não sabia que amava assim a vida. Essa vida da qual
falava com tamanho sarcasmo, com tamanho desprezo” (TELLES-MO, 2009, p.
110). O desconhecimento de si mesmo aparece de forma tão marcante no conto que
a personagem não reconhece sua própria silhueta: “Examinou-se no espelho: estava
mais magro ou essa imagem era apenas um eco multiplicador do jardim?” (TELLES-
MO, 2009, p. 110). Aqui, é importante destacar a atitude contemplativa do sujeito, o
que, inclusive, permite uma conexão direta com o mito de Narciso, especificamente
no que tange ao simbolismo do espelhamento. O olhar para o reflexo no espelho
representa, em última análise, uma tentativa de reconhecimento de si empreendida
por um sujeito em conflito. Entretanto, o espelho oferece-lhe tão somente o reflexo
de sua exterioridade corporal que, inclusive, não condiz com a imagem que projeta
de si.
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Do mesmo modo, as relações da personagem com os outros,
especificamente com os membros de sua família (sua esposa e o filho do casal),
mostram-se problemáticas e submetidas à automatização da vida cotidiana.
A vivência do casal parece refém de uma rotina em que qualquer expressão
de sentimentalismo não encontra mais espaço: “[…] mas há quanto tempo tinha
acabado o amor? Ficara esse jogo. Essa acomodada representação já em
decadência por desfastio, preguiça” (TELLES-MO, 2009, p. 111). Desse modo,
estabelece-se entre os dois uma relação fria, de conveniências e aparências,
representada por conversas sobre assuntos frívolos e superficiais: “Ela passava
creme na cara, fiscalizando-o através do espelho, mas ele não ia fazer sua
ginástica? Hoje não, disse massageando de leve a nuca, chega de ginástica”
(TELLES-MO, 2009, p. 109). Além da preocupação excessiva das personagens com
padrões estéticos, percebe-se também que não há conversa face a face: a mulher,
fazendo uso de produtos de beleza, “fiscaliza” seu esposo através do espelho. Esse
diálogo, realizado de modo indireto (o marido é mantido no campo visual da esposa
através do reflexo projetado pelo espelho), ilustra de modo exemplar as relações
sociais estabelecidas entre os sujeitos no contexto da modernidade. Cada um
encontra-se preocupado demais consigo mesmo e com sua imagem, conforme se
verifica também no fragmento transcrito abaixo:
Lá fora, um empresário de sucesso casado com uma mulher na moda. A outra fora igualmente ambiciosa mas não tinha charme e era preciso charme para investir nas festas, nas roupas. Investir no corpo, a gente tem que se preparar como se todos os dias tivesse um encontro de amor, ela repetiu mais de uma vez. Olha aí, não me distraio, nenhum sinal de barriga! (TELLES-MO, 2009, p. 112)
Nessa passagem, compreende-se claramente a importância que ambas as
personagens atribuem à constituição e manutenção de uma imagem socialmente
prestigiada e valorizada. O ser masculino não só mantém uma imagem de
empresário de sucesso, como também associa a ela sua condição de homem
casado com uma mulher que segue padrões da moda. A junção desses dois
atributos permite a construção e a projeção de uma imagem social ainda mais
vigorosa, de um sujeito bem-sucedido e realizado profissional e pessoalmente. É
interessante atentar para a observação do narrador referente à primeira esposa da
personagem, que, embora fosse igualmente ambiciosa, não tinha charme para
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investir em festas, roupas, corpo. Aqui, mais uma vez, percebe-se extrema
valorização da estética e do corpo. Esses comportamentos refletem a intensificação
do narcisismo na sociedade contemporânea, instaurando uma verdadeira tirania
narcísica no seio da sociedade. Entretanto, a expressão “lá fora” demarca com
exatidão o caráter exterior e superficial dessas “falsas” identidades – a persona, de
acordo com a nomenclatura jungiana – as quais, no fundo, não condizem com a
interioridade do sujeito.
A relação entre pai e filho é também governada pelo mesmo automatismo e
frieza. O narrador observa, no beijo dado no filho, a simples reprodução de um ato
mecânico, desprovido de emoções: “Beijou o filho de uniforme azul, entretido em
arrumar a pasta do colégio, exatamente como fizera na véspera” (TELLES-MO,
2009, p. 111). O mesmo comportamento se verifica no beijo de despedida que o filho
lhe dá: “O beijo que lhe deram [filho e esposa] foi tão automático que nem sequer se
lembrava agora de ter sido beijado” (TELLES-MO, 2009, p. 112). De igual modo, a
indiferença e a impermeabilidade estão presentes na relação com o empregado:
“[…] há mais de três anos aquele homem trabalhava ali ao lado e quase nada sabia
sobre ele” (TELLES-MO, 2009, p. 112).
A partir dessas reflexões, percebe-se a atomização do núcleo familiar na
sociedade moderna. Embora, aparentemente, passem a imagem de uma família feliz
– empresário de sucesso, bem casado –, vê-se a precariedade de relações
autênticas no convívio íntimo deles. A pressa nas relações dentro de casa acaba
distanciando e isolando os sujeitos. Isso se reflete na falta de afetividade entre os
membros do grupo familiar, evidenciada por comportamentos mecânicos e
automáticos. A abertura que leva o eu ao outro parece bloqueada pelo fenômeno do
narcisismo, entendido em sua amplitude psicológica e social – a pedra
drummondiana no caminho dos sujeitos modernos. Enquanto o protagonista do
conto vivencia a angústia da proximidade da morte, as demais personagens estão
por demais absorvidas em suas atividades e ocupações rotineiras, conforme se
verifica no fragmento transcrito abaixo:
Como se não soubesse que naquela manhã (ou noite?) o pai quase olhara a morte nos olhos. Mais um pouco e dou de cara com ela, segredou ao menino que não ouviu, conversava com o copeiro. Se não acordo antes, disse para a mulher que se debruçou na janela para avisar ao motorista que tirasse o carro. Vestiu o paletó: podia dizer o que quisesse, ninguém se
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interessava. E por acaso eu me interesso pelo que dizem ou fazem? (TELLES-MO, 2009, p. 111-112)
Aqui, evidencia-se a solidão vivenciada pelo sujeito. Apesar da proximidade
física e do convívio diário, as personagens aparecem distanciadas psicologicamente,
configurando-se como verdadeiras ilhas. Essa passagem ilustra significativamente a
natureza do isolamento à qual o homem moderno está submetido: a vivência de um
sentimento de solidão ainda que imerso fisicamente em espaços de convívio familiar
e social.
Como se vê, o sonho estabelece uma ruptura na vida ordinária do
protagonista: “O sonho do jardim interrompera o fluxo da sua vida num corte”
(TELLES-MO, 2009, p. 112). Isso porque a experiência onírica traz para a
consciência do sujeito uma realidade até então mantida na obscuridade de seu
inconsciente: a inexorabilidade do ceifar da vida. Entretanto, tal circunstância não
somente inscreve a certeza da condição mortal do ser humano, como também alerta
sobre sua iminência. Várias passagens sinalizam essa angústia do protagonista,
resultado do pressentimento da chegada da morte. Embora reconheça em seu
íntimo a impossibilidade de evadir-se da situação, a personagem reluta em aceitar
conscientemente seu destino: “Hoje entraria mais tarde, queria fumar um último
cigarro. Teria dito último!” (TELLES-MO, 2009, p. 111. Grifos da autora). A repetição
de cenas como esta criam uma atmosfera de despedida, numa espécie de ritual que
envolve o protagonista: “Acendeu o cigarro atento à chama do palito queimando até
o fim” (TELLES-MO, 2009, p. 112). Essa imagem do fogo consumindo o palito até o
fim não remeteria, em última análise, ao apagar da chama da vida do protagonista?
A cena em que o cachorro vem ao encontro de seu dono parece fechar o ciclo
de episódios que alude ao prenúncio da morte do protagonista, ideia esta que
governa toda a narrativa: “Afagou o cachorro que veio saudá-lo com uma alegria tão
cheia de saudade que se comoveu, não era extraordinário? A mulher, o filho, os
empregados – todos continuavam impermeáveis, só o cachorro sentia o perigo com
seu faro visionário” (TELLES-MO, 2009, p. 112). Nessa passagem, há dois aspectos
significativos a serem observados.
O primeiro é o sentimento que emana do animal ao se aproximar da
personagem: uma alegria cheia de saudade. Esse misto de sensações, que extrai
sua singularidade justamente da conjunção dos opostos, ajuda a compor um clima
de despedida, em que a alegria é contaminada pela precipitação de um sentimento
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de saudade. Ainda no plano das emoções, é interessante observar o contraste que
se instaura entre a postura assumida, de um lado, pelo animal e, do outro, pelos
familiares e empregados da casa. Enquanto o primeiro se faz notar pela afetividade
e pelo misto de emoções que demonstra no encontro com a personagem, os demais
permanecem impassíveis e impermeáveis a qualquer sentimento, fechados que
estão em si mesmo. Sob esse aspecto, há, por um lado, a humanização do cachorro
e, por outro, a animalização dos familiares e dos empregados, o que leva à reflexão
sobre a precariedade das relações no mundo moderno.
O segundo é a simbologia associada à imagem do cachorro. Conforme
Chevalier e Gheerbrant (2009), em todas as mitologias esse animal encontra-se, de
alguma forma, conectado à ideia de morte, sendo sua primeira função mítica a de
guia do homem na noite da morte. Somando-se a essa função, Chevalier e
Gheerbrant (2009, p. 177) destacam outros pontos importantes:
Mas o cão, para o qual o invisível é tão familiar, não se contenta em guiar os mortos. Serve também como intercessor entre este mundo e o outro, atuando como intermediário quando os vivos querem interrogar os mortos e as divindades subterrâneas do país dos mortos.
Como se vê, a figura do cachorro encontra-se intimamente relacionada à ideia
de morte, seja como guia, seja como intermediária entre o mundo dos vivos e o dos
mortos. Essas considerações ajudam a compreender o papel que esse animal
desempenha na narrativa: enquanto guia do homem no momento da morte, o
cachorro, com seu “faro visionário” e para quem o “invisível é tão familiar”, pressente
o perigo ao qual seu dono estava exposto. Esse perigo, obviamente, refere-se à
possibilidade iminente de encontro com a morte.
Desse modo, tanto o sonho quanto os episódios subsequentes a este atuam
como uma espécie de rito de preparação para a grande e última passagem que se
configurará no final da narrativa. Entretanto, a personagem, presa à materialidade do
mundo terreno, não parece disposta a encarar tal situação. Isso porque o medo da
morte é, também, o temor da destruição completa do sujeito. Numa sociedade em
que as individualidades e o investimento na imagem pessoal afloram com vigor, a
possibilidade de aniquilamento do eu representada pela morte parece um golpe duro
demais, principalmente quando surpreende por sua precocidade. Ante a tensão
criada pela iminência da morte, uma passagem, aparentemente despropositada,
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carrega um simbolismo oculto que reflete a angústia desse sujeito em sua tentativa
de apegar-se a algum porto seguro: “Colheu um bago cor de mel e pensou que se
houvesse uma abelha no jardim do sonho, ao menos uma abelha, podia ter
esperança” (TELLES-MO, 2009, p. 111). Diante disso, o leitor pode se perguntar: por
que a presença da abelha no jardim configura motivo de esperança, ao passo que o
besouro que sai do ouvido da estátua causa repugnância? Esse questionamento é
aclarado pelo simbolismo associado à imagem da abelha. Para Chevalier e
Gheerbrant (2009, p. 4), esse animal aparece como símbolo da alma: “Encontramo-
las representadas nos túmulos como sinais de sobrevivência além-morte, pois a
abelha torna-se símbolo de ressurreição”. Desse modo, a esperança propiciada pela
presença da abelha no jardim atuaria como uma possibilidade de sobrevivência
além-morte, evitando, portanto, a destruição total do eu.
Todo esse processo de questionamentos empreendido pela personagem
após o sonho da noite anterior pode ser concebido como um despertar para si
mesmo, quando passa a enxergar diversas situações para as quais estivera cega e
indiferente até o dia anterior. Um dos aspectos mais importantes de todo esse
processo reflexivo diz respeito ao conhecimento maior de sua personalidade.
Analisando suas relações com o mundo em volta, o protagonista consegue visualizar
o quanto investira numa falsa imagem do eu. Essa tomada de consciência, em que
consegue avaliar criticamente sua persona, representa um primeiro passo rumo ao
maior reconhecimento de si e de suas potencialidades – o autoconhecimento –,
processo que Jung (2008) denomina individuação. Entretanto, vale ressaltar que
esse processo não chega a se completar, uma vez que é interrompido pela
insurgência do sonho na realidade imediata da personagem.
Assim, na parte final do conto, o protagonista tem novamente um encontro
com a morte. Dessa vez, a atmosfera onírica adentra a realidade, surpreendendo o
protagonista:
Entrou no carro, ligou o contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recusando-se a obedecer. […] Fechou o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse perfume de ervas úmidas? Descansou no assento as mãos desinteressadas. A paisagem foi se aproximando numa aura de cobre velho, estava clareando ou escurecia? […] Vacilou na alameda bordejada pela folhagem escura, mas o que é isso, estou no jardim? De novo? E agora acordado […]. (TELLES-MO, 2009, p. 112-113)
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O protagonista, que estava tentando ligar o carro a fim de sair para o trabalho,
sente novamente uma espécie de paralisia dos membros do corpo. Numa atmosfera
de silêncio e quietude, a realidade é invadida pelo universo onírico. O espaço
imediato no qual a personagem se encontrava sofre uma transformação quando os
elementos do jardim do sonho da noite anterior passam, paulatinamente, a integrar o
ambiente, numa espécie de fusão: o perfume de ervas úmidas, a paisagem a se
aproximar, a indeterminação entre o clarear e o escurecer, a alameda, a folhagem
escura; enfim, o jardim em sua totalidade. Novamente, a personagem se depara
com a figueira, o tanque seco, a estátua, o banco ao centro desse espaço, e afloram
também as lembranças do Cristo da procissão e do trapezista. O ambiente do jardim
e a progressiva perda do controle do corpo, representada pela metalização e
imobilização dos membros da personagem, criam, mais uma vez, a atmosfera de
prenúncio da morte. Entretanto, este ser, a exemplo do que fizera em toda sua vida
e também no sonho da noite anterior, procura uma alternativa para fugir desse
encontro:
[…] Descobri! Descobri. A alegria era quase insuportável: da primeira vez, escapei acordando. Agora vou escapar dormindo. Não era simples? Recostou a cabeça no espaldar do banco, mas não era sutil? Enganar assim a morte saindo pela porta do sono. Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se. (TELLES-MO, 2009, p. 113-114)
Como da primeira vez escapara acordando do sonho, agora o faria realizando
o contrário, ou seja, adormecendo. No entanto, esse estratagema racional não
funciona, e ele se vê diante do encontro inevitável: o sonho fora retomado
exatamente do ponto em que tinha sido interrompido na noite passada. Dessa
forma, o protagonista pressente a aproximação do caçador, aqui entendido como
mensageiro da morte, que, com o gesto de colocar-lhe a mão no ombro, anuncia-lhe
a morte.
Na narrativa, o fenômeno da duplicidade mostra-se mais evidente e com
maior força na cena final, quando há a fusão de dois espaços ficcionais, a saber, o
jardim onírico que adentra no espaço imediato da personagem, tornando possível a
confrontação do eu com seu duplo. Nesse conto, a temática do duplo, conforme
observa Ribeiro (2008), manifesta-se através do homem que sonha. Na concepção
de Silva (2001), o sonhador possui uma dupla posição e, portanto, duas identidades:
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o eu como sonhador e o eu como personagem do seu sonho. Entre o sujeito e seu
duplo percebe-se continuidade física e psicológica, pois o eu personagem do sonho
é uma projeção do eu sonhador. O duplo possibilita o acesso desse sujeito a duas
esferas distintas: uma volta ao passado, através de lembranças da infância do
protagonista que afloram no sonho; e uma visão de futuro, através do presságio da
morte informado no sonho. De acordo com a classificação de Bargalló (Apud
LAMAS, 2002), o fenômeno da dualidade manifesta-se nesse conto como resultado
de uma cisão, pois de um único indivíduo originam-se dois: o eu sonhador e o eu
personagem do sonho. Desse modo, a duplicidade mostra-se possível nesse conto
graças a dois fenômenos opostos: de um lado, a fusão entre o jardim do sonho e o
espaço do carro; de outro, a cisão entre aquele que sonha e o outro que vivencia a
ação onírica. Seguindo a tipologia proposta por Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ,
2006), tem-se um duplo subjetivo (duplicação do protagonista) e interno, já que a
cisão ocorre na mente da personagem sem adquirir forma física.
2.2.3 “O encontro”
O conto “O encontro” foi publicado inicialmente por Lygia Fagundes Telles na
coletânea Histórias do desencontro (1958). É narrado em primeira pessoa por um
narrador-personagem, não nomeado na narrativa, que relata ao leitor as
circunstâncias e os desdobramentos de um encontro singular. O foco da narrativa é
direcionado para o momento em que se efetua a coexistência e o confronto em um
mesmo plano espacial entre duas mulheres que, por fim, demonstram ser
representações de um único sujeito desdobrado em planos temporais diferentes.
Assim, uma delas representa a configuração do ser no momento presente, enquanto
a outra corresponde a um tempo passado.
Como em outros contos de Telles, o espaço em que a ação se desenvolve é
cuidadosamente preparado com riqueza de detalhes e minúcias, dando suporte ao
enredo:
Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Ao longe, contra o céu, erguiam-se negros penhascos, tão retos e tão agudos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, vermelho e lúcido como um olho, o sol espiava friamente através de uma nuvem. (TELLES-OE, 1958, p. 15)
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Nessas primeiras linhas, a narradora pinta um cenário campestre formado por
campos e penhascos, espaço este no qual a história se esboçará. Esses índices
espaciais não apenas situam fisicamente a ação, mas também trazem consigo
ambivalências e indeterminações importantes para a criação da atmosfera mística
na narrativa. Se, de um lado, há a “névoa branda” que recai sobre o campo,
tornando o verde “pálido e opaco”; de outro, há um sol que, “vermelho e lúcido como
um olho”, espreita onipotentemente de sua elevada posição. Existe nitidamente aqui
um jogo entre ofuscamento/visão, baixo/alto; por conseguinte, uma forte carga
simbólica nasce dessa relação. A névoa, que na parte inicial do conto oblitera e
ofusca a visão dos contornos da paisagem, não seria análoga à que, no plano
metafórico, interpõe-se ao longo de quase toda a narrativa entre a personagem e
suas lembranças de vivências passadas, impedindo, de imediato, o reconhecimento
do presente como um reviver do passado? O sol, em sua altura e onipotência,
comparado no conto a um olho, não remeteria, em última análise, ao “Olho divino
que tudo vê” (Chevalier; Gheerbrant, 2009, p. 654. Grifos dos autores), o olho do
mundo, símbolo da transcendência, a observar “friamente” o desenrolar dos destinos
humanos? Por fim, a imagem dos negros penhascos a se erguerem “retos” e
“agudos” contra o céu não evocaria a simbologia da verticalidade, ao estabelecer a
comunicação entre diferentes espaços cósmicos? Certamente sim.
É também no início do conto que a narradora introduz o motivo que será o fio
condutor de todo o desenvolvimento da narrativa, a saber, o processo de
reconhecimento pela personagem da vivência presente (ambiente, personagens)
como a duplicação de um acontecimento passado: “‘Onde, meu Deus?! – eu
perguntava a mim mesma. – Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim
igual?…’” (TELLES-OE, 1958, p. 15). A partir desse questionamento, instaura-se
uma ambivalência no conto, que será resolvida apenas com o desfecho da narrativa.
Essa indeterminação, que desconforta o leitor durante todo o desenvolvimento do
enredo, advém essencialmente da impossibilidade de harmonização entre duas
concepções antagônicas defendidas pela narradora até a resolução do conflito no
final: (1) por um lado, a narradora afirma categoricamente que nunca estivera
naquele espaço e que, portanto, vivencia uma experiência inédita – “Tudo aquilo –
disso estava bem certa – era completamente inédito para mim” (TELLES-OE, 1958,
p. 15); (2) por outro, a narradora consegue, ao mesmo tempo, identificar o momento
presente como repetição ou reapresentação de uma situação vivenciada no passado
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– “No entanto, o quadro se identificava, em todas suas minúcias, a uma imagem
semelhante que irrompera das profundezas de minha memória” (TELLES-OE, 1958,
p. 15). Que situação difícil em que se encontra o leitor de Telles! Afinal, como pode
uma imagem ser inédita e, paradoxalmente, relacionar-se, “em todas as minúcias”, a
uma cena vivenciada no passado? É, pois, sobre esse fio tênue que se equilibra o
leitor na tentativa de compreender esse estranho evento: a repetição do inédito.
Entretanto, vale destacar que esses paradoxos e indeterminações não prejudicam a
verossimilhança da narrativa; ao contrário, ajudam a compor uma atmosfera
fantástica, mantendo uma tensão constante até o desfecho do enredo. Em alguns
casos, a personagem chega, inclusive, a brincar com a situação em que se
encontra: “‘Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio25.’ E cheguei a sorrir,
entretida com aquele curioso jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra
golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda” (TELLES-OE, 1958, p. 17).
É, pois, nesse clima misterioso, mas ao mesmo tempo conduzido com extrema
leveza, que se desenvolve a narrativa de Telles.
Esses questionamentos acompanham a personagem em seu caminhar
naquela tarde “absurda”, estabelecendo constante tensão na narrativa. Na busca por
respostas e explicações satisfatórias, a narradora lança hipóteses: teria ela sonhado
com aquela cena? Ou estaria sendo sonhada? Numa tentativa desesperada, a
personagem aperta contra seu dedo um espinho. Entretanto, o sangue a jorrar e a
dor sentida atestavam a realidade do evento: “A dor era tão real quanto aquela
paisagem” (TELLES-OE, 1958, p. 18). Diante disso, compreende a impossibilidade
de solucionar o problema, pois “[…] não havia mesmo explicação para aquela tarde
absurda, completamente disparatada na sua inocente aparência. Tinha que aceitar o
inexplicável e resignar-me a ele até que o nó terrível se desatasse na hora exata”
(TELLES-OE, 1958, p. 18). Então, toma conta de seu ser a sensação de perigo
eminente: “Mas que perigo era esse e em que consistia?” (TELLES-OE, 1958, p.
16).
Paralelamente a esses movimentos psicológicos, a personagem realiza um
percurso físico: do vale, local ao qual estava habituada, segue pela colina, envereda
pelo campo e caminha, por fim, em direção aos penhascos, parando à beira de um
25
A expressão “pedra fendida ao meio” apresenta-se indiscutivelmente como símbolo da dualidade e pode ser entendida como uma referência à experiência vivenciada pela personagem, que se vê dividida entre o eu/outro e o passado/presente.
89
abismo. Essa caminhada revela uma simbologia interessante, já que compreende
uma jornada que vai do conhecido ao desconhecido, portanto, do cosmos ao caos.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 929), o vale é receptivo às influências
celestes, configurando o ponto de encontro entre a terra e a água do céu; a colina,
diferenciada do caos inicial, apresenta-se como a primeira manifestação da criação
do mundo; e o campo remete à simbologia do paraíso. Nesses três lugares,
percebe-se a manifestação do sagrado que, com sua presença, transforma o caos
em cosmos, organizando o espaço. Por fim, o abismo, à beira do qual a personagem
encerra sua caminhada, constitui um símbolo presente em todas as cosmogonias,
enquanto gênese ou fim da evolução universal, aplicando-se ao “[…] caos tenebroso
das origens e às trevas infernais dos dias derradeiros” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 5). Desse modo, o abismo representa aqui uma desordem,
um espaço que transcende o mundo conhecido e organizado pela insurgência do
sagrado. Remete, diretamente, às profundezas, ao mundo dos mortos. Ademais, do
abismo, assemelhado a uma boca aberta entre as pedras, segundo palavras da
narradora, brota um som de água corrente: “Um vapor denso subia como um bafo
daquela garganta áspera, de cujo fundo insondável vinha um remotíssimo som de
água corrente” (TELLES-OE, 1958, p. 16). Além da analogia do abismo com a
anatomia animal, através dos signos boca e garganta, prontos para tragar a
personagem, percebe-se, também, a presença de uma água corrente que, como
destacam Chevalier e Gheerbrant (2009), simboliza o mal e a desordem, casando-
se, portanto, com a atmosfera de agitação e de suspense criada na narrativa.
A aparente calmaria que paira no ambiente esconde, na verdade, sentimentos
e lembranças fortes que continuamente desconfortam a personagem: “A tarde
estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela
quietude, eu sentia qualquer coisa de misterioso e de terrível à espreita” (TELLES-
OE, 1958, p. 16). Em muitas passagens da narrativa, há, inclusive, simetria entre a
caracterização física do ambiente e os movimentos psicológicos da personagem: é
assim com a evocação da imagem do sol sangrando como um olho ferido,
prenunciando o turbilhão de sentimentos dolorosos que estavam por aflorar na
consciência da protagonista.
Ao longo de sua caminhada, a personagem vivencia uma série de situações
que podem ser interpretadas como presságios e indicativos do desfecho da
90
narrativa. Dessas, duas em especial merecem destaque pelo simbolismo implícito
que evocam.
Na primeira delas, a personagem esbarra ante uma teia com uma aranha no
centro: “‘A cilada’ – pensei diante de uma teia singularmente brilhante, suspensa
entre dois galhos. No centro, a aranha, uma aranha vermelha, toda encolhida e
atenta, aguardando a presa” (TELLES-OE, 1958, p. 17). Conforme Chevalier e
Gheerbrant (2009, p. 71), a aranha simboliza a criadora cósmica, a divindade
superior ou o demiurgo: “Tecelã da realidade, ela é, portanto, senhora do destino, o
que explica sua função divinatória, tão amplamente atestada ao longo do mundo”.
Por outro lado, o vermelho, cor do sangue e do fogo, é universalmente considerado
como símbolo do princípio de vida. Desse modo, a presença da aranha neste conto
pode representar, num plano metafórico, a insurgência de uma divindade que detém
o poder sobre os destinos humanos – interpretação esta que é reforçada pelo
simbolismo da cor vermelha. A teia, formada pelos quase invisíveis “fios” a se
enredarem uns nos outros, compondo uma totalidade, pode ser compreendida como
uma grande metáfora da vida e do trilhar dos destinos humanos. A comparação da
teia à “cilada”, com a aranha ao centro atenta e no aguardo da presa, suporta esse
mesmo simbolismo: a personagem visualiza nessa imagem a representação do
desenrolar de sua própria vida. Assim, a teia é assimilada por ela como uma ameaça
porque indicia acontecimentos futuros negativos, o que justifica sua atitude de
desespero: “Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu rota” (TELLES-
OE, 1958, p. 17). Infelizmente, destruir a teia da aranha não seria o bastante, pois a
“teia” da vida, na qual a figura feminina estava enredada, permanecia vigorosa e
inexorável, fato esse reconhecido pela narradora: “E a teia para a qual
inevitavelmente eu caminhava, quem? quem iria desfazê-la?” (TELLES-OE, 1958, p.
17). Assim, através dessa metáfora, em que a aranha assume o simbolismo de
tecelã dos destinos humanos, pode-se considerar a “cilada” representada pela teia
como o prenúncio de futuros obstáculos no curso do destino da personagem.
A segunda situação, que pressagia acontecimentos futuros na narrativa,
compreende o momento em que a mulher é surpreendida por um pássaro que passa
num voo atribulado: “Um pássaro cruzou meu caminho num voo atribulado. Soltou
um grito tão dolorido, que cheguei a vacilar num desfalecimento” (TELLES-OE,
1958, p. 18). Dessa imagem, dois aspectos principais se sobressaem. O primeiro
liga-se estritamente ao simbolismo que a figura do pássaro evoca. De acordo com
91
Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 687), “O voo dos pássaros os predispõe, é claro, a
servir de símbolo às relações entre o céu e a terra. Em grego, a própria palavra foi
sinônimo de presságio e de mensagem do céu”. Assim, o pássaro indica uma
possibilidade de comunicação entre diferentes espaços cósmicos. Como mensageiro
do céu, ele, no seu voo “atribulado” e através de seu “grito tão dolorido”, não estaria
advertindo a personagem sobre o desenrolar de situações futuras? O segundo,
ainda que apoiado no simbolismo acima destacado, tira sua força da relação de
contraste que se estabelece entre a condição do pássaro e da personagem naquela
situação. O voo do pássaro remete diretamente à ideia de liberdade: sem “amarras”,
a ave parece traçar seu caminho livremente, de acordo com seu próprio arbítrio.
Isso, juntamente com os prenúncios, desperta na protagonista a real possibilidade e
necessidade de evasão daquela situação. Entretanto, ela encontra-se
irremediavelmente presa a um destino traçado previamente, guiada por uma força e
um impulso maiores do que ela, dos quais não consegue se desvencilhar: “E se
fugisse? E se fugisse?… Voltei-me para o caminho percorrido, a se perder por entre
os troncos num labirinto sem esperança. ‘Agora é tarde!’ […] ‘Por que tarde?’”
(TELLES-OE, 1958, p. 18). Essa possibilidade de fuga já havia sido cogitada em
outra passagem: “‘Vá-se embora, depressa, depressa!’ – ordenava-me a razão,
enquanto uma parte mais obscura de meu ser, mergulhada numa espécie de
encantamento, se recusava a voltar” (TELLES-OE, 1958, p. 16). Aqui, percebe-se
claramente o embate entre ego e sombra: enquanto aquele lhe apresenta a fuga
como solução, uma parte “obscura” de seu ser, dominada por um “encantamento”,
impulsiona-lhe a continuar sua peregrinação por esse “caminho sem volta”. A partir
dessas observações, vê-se que nem mesmo a mulher consegue entender sua
impotência diante de tal situação.
Por fim, verificam-se, na narrativa, cenas em que a personagem parece
tomada por um ritual de despedida, surpreendo o leitor e a si mesma: “Encostei-me
a um tronco e por entre uma nesga da folhagem crestada, vi o céu, lá longe, pálido e
irreal. Era como se o visse pela última vez” (TELLES-OE, 1958, p. 17). Passagens
como essa ajudam, juntamente com as acima destacadas, a compor a atmosfera
trágica que prevalecerá no final da narrativa.
O encontro da personagem com uma amazona, como o próprio título do conto
já indicia, marca um momento auge e crucial, em que alguns dos fatos do enredo
começam a ser aclarados, encaminhando a narrativa para o seu desfecho:
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“Enveredei por entre dois carvalhos; ia de cabeça baixa e coração pesado, mas ia
firmemente, como que impelida por uma misteriosa força. ‘Agora vou encontrar uma
fonte. Sentada ao lado, está uma moça’” (TELLES-OE, 1958, p. 18-19). Essa
passagem, como muitas outras presentes na narrativa, ilustra também o processo
de reconhecimento do ambiente realizado pela figura feminina e evidenciado aqui
pela antecipação de elementos constituintes do espaço, conforme já destacado
anteriormente. Ademais, essa cena apresenta alguns elementos simbólicos que
valem a pena ser destacados. Primeiro, dois carvalhos demarcam a entrada da
mulher no ambiente em que se realizará o encontro. O carvalho evoca diretamente a
ideia do eixo do mundo, já que representa, por excelência, a figura da árvore:
“Árvore sagrada em numerosas tradições, o carvalho é investido dos privilégios da
divindade suprema do céu […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 195. Grifos
dos autores). Desse modo, os dois carvalhos atuam como espécie de porta
simbólica, sendo que a passagem da personagem por ela demarca a entrada num
espaço sagrado no qual se realizará o inesperado encontro. Ao adentrar neste
espaço, depara-se, primeiramente, com uma fonte. Esta é um símbolo
universalmente relacionado à fonte da vida, da imortalidade, da juventude e do
conhecimento. Sua sacralização é universal, “[…] pelo fato de constituírem a boca
da água viva ou água virgem” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 445. Grifos
dos autores). Como se vê, o encontro entre a personagem e a amazona não se
realiza em um lugar qualquer. Ao contrário, a presença dos carvalhos bem como da
fonte sacralizam aquele ambiente, evocando a simbologia do centro e criando uma
atmosfera mítica propícia ao desenrolar do enredo. Compondo esse quadro, é digna
de citação também a postura corporal da personagem – “de cabeça baixa e coração
pesado” –, que demonstra sua total submissão e falta de controle sobre a situação.
Ao lado dessa fonte, a personagem depara-se com outra mulher que, a
princípio, causa-lhe estranheza: “Ao lado da fonte, sentada numa pedra, estava uma
moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito pálido uma
expressão tão ansiosa, que era evidente estar à espera de alguém” (TELLES-OE,
1958, p. 19). No imaginário coletivo, a figura da amazona é símbolo de mulher forte,
poderosa. Entretanto, a personagem lygiana herda da amazona apenas o modo de
vestir-se, já que, no plano interior, mostra-se um ser fragilizado e totalmente
entregue à situação presente, sem forças para superar a dor que lhe afligia o peito:
“[…] parecia completamente desligada de tudo. […] Devia ter chorado muito. E
93
agora ali estava numa atitude de patética exaustão […] Perdera toda a esperança e
resignara-se. Mas sentia-se sua debilidade naquela resignação” (TELLES-OE, 1958,
p. 19-20). Imediatamente, percebe, pela fisionomia da amazona, que esta estava à
espera de alguém, e o estranho jogo de reconhecimento mais uma vez se faz
presente: como que numa resposta imediata ao discurso incompleto da amazona –
“Eu esperava uma pessoa…” (TELLES-OE, 1958, p. 20) –, o nome Gustavo saiu
com “incrível naturalidade” da boca da protagonista – “Gustavo?” (TELLES-OE,
1958, p. 20). Sabia também que Gustavo jamais retornaria, nunca: “‘E nem virá.
Nunca mais. Nunca mais’” (TELLES-OE, 1958, p. 21).
Nesse momento, a personagem parece em crise, inundada que se encontra
pelo aflorar tumultuado de lembranças em sua mente: “As lembranças também
esvoaçavam em meu redor, ora próximas, ora distantes como mariposas tontas em
torno da chama. Ah! Se pudesse agarrá-las” (TELLES-OE, 1958, p. 21). Em meio a
essa agitação, uma cena, resgatada do fundo obscuro da memória, começa a se
esboçar em sua mente: “Pressentia agora um obscuro drama entremeado de
discussões violentas, lágrimas, renúncias… Discussões violentas. Discussões…”
(TELLES-OE, 1958, p. 21). Paulatinamente, a personagem rememora o momento de
uma discussão. Lembra-se das vozes de homens e vultos humanos visualizados
através de uma vidraça embaçada. Tudo parece transcorrer numa penumbra, sob a
fraca luz de um candelabro, até que se percebe uma movimentação na sala e um
clarão: “Alguém avançou. Foi Gustavo? Uma garrucha avançou também. E a cena
explodiu em meio de um clarão” (TELLES-OE, 1958, p. 21). A rememoração da
cena, mesmo que de forma fragmentada, traz consigo também um turbilhão de
sentimentos e emoções que a inunda: a náusea, o confranger-se de dor do coração,
as mãos apertando a cabeça em desespero, a violência com que o sangue
golpeava-lhe as fontes.
Diante de tal situação, a personagem aconselha a amazona: “Você devia
voltar para casa” (TELLES-OE, 1958, p. 22); “Por que não vai procurá-lo amanhã?”
(TELLES-OE, 1958, p. 22). Entretanto, aquela também conhecia a verdade. Nada
mais adiantava. Tudo estava acabado. E mais uma vez, a memória falha coloca-a
numa situação desconfortante: “Encarei-a demoradamente. Era parecidíssima com
alguém que eu conhecia, que conhecia tanto!…” (TELLES-OE, 1958, p. 22). Como
explicar esse insistente jogo de reconhecimento? Seria apenas fruto de mera
coincidência?
94
O vento gelado, que sopra com fúria levantando poeira e folhas secas,
desperta o bosque, pondo, portanto, fim à falsa atmosfera de calmaria que pairava
sobre o ambiente. Como apontam Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 963), os ventos
atuam como mensageiros divinos: “[…] são instrumentos da força divina; dão vida,
castigam, ensinam; são sinais e, como os anjos, portadores de mensagens”. Assim,
esse vento gelado, que irrompe perturbando o ambiente, não seria um aviso do
turbilhão de acontecimentos que ainda estavam por vir? É esse vento também que
desperta a amazona, tirando-a de sua inércia: “O mesmo vento que despertara o
bosque, despertou-a também. Senti-a fremir em cima do cavalo, elétrica como as
folhas vermelhas que rodopiavam em seu redor. Arreliado, o animal batia
freneticamente com os cascos nos pedregulhos” (TELLES-OE, 1958, p. 22-23).
Como se vê, o despertar da amazona acontece em sentido amplo: não apenas sai
da imobilidade em que se encontrava, como também promove uma mudança radical
em sua fisionomia – “Seus olhos pareciam agora dois furos negros. A face adquirira
um tom acinzentado de pedra” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Verifica-se, portanto, uma
simetria entre a agitação do espaço externo do bosque e a psicologia da
personagem. Uma imagem significativa dessa interação pode ser encontrada na
fragilidade da pluma vermelha que se debate na ventania: “A pluma vermelha de seu
chapéu debatia-se como uma labareda louca, desafiando a ventania” (TELLES-OE,
1958, p. 23). Em sentido literal, a agitação da pluma deve-se à ventania que agita o
ambiente. Entretanto, se considerada em sentido simbólico, a pluma vermelha pode
ser compreendida como representando metonimicamente a situação da amazona
como um todo: a fragilidade da pluma é análoga à situação adversa por ela
enfrentada. Em outras palavras, assim como a pluma, a personagem luta contra os
“ventos” íntimos que sopram nos recônditos de sua interioridade.
A personagem tenta desesperadamente impedir a fuga da amazona: “Há
ainda uma coisa! – repeti agarrando as rédeas do cavalo” (TELLES-OE, 1958, p.
23). Aqui, segurar as rédeas do animal significa uma tentativa de assumir o controle
da situação, o que, entretanto, é impedido pela amazona numa atitude enérgica de
recusa: “Ela chicoteou o animal. E aquela chicotada atingiu em cheio o âmago do
mistério. O nó terrível se desatou como um bolo atarantado de serpentes fugindo em
todas as direções” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Como destacam Chevalier e
Gheerbrant (2009), o chicote é, em geral, símbolo do raio que, por sua vez,
assemelha-se, no plano simbólico, ao relâmpago. Este, entre outros aspectos,
95
remete ao simbolismo do esclarecimento e da iluminação: “Arma de Zeus, forjada
pelos Ciclopes no fogo (símbolo do intelecto), o relâmpago é o símbolo do
esclarecimento intuitivo e espiritual ou da iluminação repentina” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 777. Grifos dos autores). Desse modo, a chicotada pode
ser compreendida sob duas perspectivas diferentes, embora não excludentes: em
sentido literal, representa uma ação física em reposta à atitude da personagem de
segurar as rédeas do cavalo; em sentido metafórico, a chicotada, como um raio,
ilumina a situação, permitindo finalmente a compreensão dos fatos até então
considerados insólitos e inexplicáveis.
Esse esclarecimento alcançado no final da narrativa corresponde
efetivamente ao reconhecimento do outro como constituinte ou parte do eu. Em
outras palavras, a personagem e a amazona eram, na verdade, um único ser, mas
separados temporalmente um do outro: “Eu fui você – balbuciei. Num outro tempo fui
você! […]” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Essa identificação final já vinha sendo
anunciada desde o início da narrativa, principalmente por meio do constante jogo de
reconhecimento vivenciado pela protagonista: cenas, ambientes, personagens, tudo
remetia a experiências ou vivências que finalmente consegue compreender como
fragmentos e recortes de seu próprio passado. Há ainda um momento em que,
explicitamente, a voz da amazona aparece na narrativa como eco da voz da outra
personagem, o que, indubitavelmente, remete à ideia de duplicidade e de fusão que
se processa no final da narrativa: “Gustavo – repetiu ela como um eco” (TELLES-
OE, 1958, p. 20). Assim, a ideia do duplo inscreve-se aqui duplamente: o eco como
reprodução de um original; e o eco como possível relação com a ninfa grega Eco,
castigada por Hera a apenas repetir o que os outros dissessem, símbolo, portanto,
da alteridade – o que se relaciona com a condição de entrega da personagem ao
amante.
A identificação com a amazona permite à outra personagem, por conseguinte,
uma visualização em sentido macro de sua existência e uma compreensão global da
situação na qual se encontrava: “Tão simples tudo! O bosque, o encontro, sua figura
que me pareceu tão familiar, Gustavo… Estremeci. Gustavo! A cena da saleta
esfumaçada voltou-se com uma nitidez atroz. Então, lembrei-me do que tinha
acontecido. E lembrei-me do que ia acontecer” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Desse
modo, tanto é possibilitado enquadrar os eventos presentes numa linha temporal de
sua vida, como também antecipar acontecimentos vindouros, já que se trata de uma
96
repetição: é o passado como futuro e o futuro como passado, tudo confluindo num
presente, indecidivelmente.
Apesar disso, a tentativa de estabelecer um distanciamento nítido entre
passado e presente se esboça desde o início da narrativa, quando a personagem
reconhece no momento presente o reviver de fatos passados, embora não consiga
precisar o quando e o onde das situações: “Já vi tudo isto, já vi… Mas onde? E
quando?” (TELLES-OE, 1958, p. 15). Passagens como estas, que o leitor poderia,
num primeiro momento, creditar a um suposto lapso de memória, multiplicam-se ao
longo da narração. Além desses momentos de Déjà vu vivenciados, algumas outras
referências ajudam nessa percepção de distanciamento entre passado e presente.
Ao se deparar com a amazona sentada ao lado da fonte, a personagem faz
observações interessantes e reveladoras sobre a composição daquela,
principalmente em relação a sua “estranha” vestimenta: “Sentei-me numa pedra
coberta de musgo. E fiquei a olhar em silencio seu traje completamente antiquado
[…]” (TELLES-OE, 1958, p. 19). A palavra “antiquado” ajuda a reforçar um
distanciamento temporal entre a amazona e o outro ser, que é sustentado ao longo
de toda a narrativa. Em outra passagem do conto, verifica-se esta mesma ideia:
“Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem que mais
parecia a figura de um antiquíssimo álbum de caçadas. Um álbum que eu já folheara
muitas vezes” (TELLES-OE, 1958, p. 21). Por fim, há uma referência espacial que
corrobora para atestar o lapso temporal existente entre as duas figuras. À resposta
da amazona de que morava em Valburgo, segue-se o seguinte questionamento:
“Valburgo, Valburgo… – fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido.
Contudo, não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região”
(TELLES-OE, 1958, p. 20). E conclui: “Conheço – respondi prontamente. Tinha
agora a certeza de que esse lugar não existia mais” (TELLES-OE, 1958, p. 20).
Assim, o fato de Valburgo ter existido anteriormente, porém não mais no momento
presente, atesta grande distância temporal que separa as duas personagens. Aqui,
definitivamente, emoldura-se a amazona como figura pertencente a um passado não
tão próximo.
Uma vez compreendida a relação de pertencimento entre a amazona e a
personagem, esta tenta, num gesto violento, segurar as rédeas do animal, o que é,
entretanto, abruptamente impedido por uma segunda chicotada imposta ao animal
pela amazona: “Não! – gritei, puxando violentamente as rédeas. Mas sob uma
97
segunda chicotada, o cavalo empinou e arrancou-se das minhas mãos. Estatelada,
vi-o afastar-se num galope desenfreado” (TELLES-OE, 1958, p. 23). Apesar do
esforço empreendido pela personagem – correndo alucinadamente por entre
“espinhos” e contra um “vento gelado e negro” que a cegava, guiada apenas pela
“pluma vermelha” a debater-se por entre árvores e na escuridão – não consegue
êxito. Nesse trajeto realizado, chamam atenção os obstáculos que se erguem,
impedindo-a de interromper “[…] o que já sabia inevitável” (TELLES-OE, 1958, p.
24). O vento gelado e negro reveste-se, essencialmente, de um simbolismo
negativo: o gelo opõe-se ao fogo e, por conseguinte, à ideia de vida; e a cor negra
relaciona-se, essencialmente, ao sombrio, ao oculto. Os espinhos, por sua vez,
remetem à ideia de terra selvagem não cultivada e, portanto, inexplorada (cf.
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009). Esses símbolos ajudam a compor, portanto, a
atmosfera mórbida que se faz presente na parte final do conto.
Apesar do esforço, a mulher não consegue deter a amazona com seu cavalo
em fuga. De joelhos, assiste ao desfecho da história que é, na verdade, sua própria
história:
Um relâmpago estourou dentro da noite e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbrar ao longe uma pluma vermelha debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo. (TELLES-OE, 1958, p. 24)
Aqui, a noite envolve as personagens. Na escuridão, é o brevíssimo clarão do
relâmpago que permite a visualização da amazona em desesperada fuga. Em
seguida, há apenas o grito da personagem a unir-se ao ruído de cavalo e cavaleira
caindo no abismo. Nessa passagem, três aspectos principais se sobressaem.
Primeiro, a fusão das duas personagens, representada pelo eco do grito que se une
ao “ruído pedregoso” da queda da amazona no abismo. Segundo, a simbologia
evocada pela figura do cavalo. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009, p.
202-203): “Uma crença, que parece estar fixada na memória de todos os povos,
associa originalmente o cavalo às trevas do mundo ctoniano […]. Filho da noite e do
mistério, esse cavalo arquetípico é portador de morte e de vida a um só tempo […]”.
Na Bíblia Sagrada, a imagem do cavalo aparece no livro do Apocalipse, em conexão
com acontecimentos que antecedem o fim dos tempos. Aqui, interessa
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particularmente a simbologia do quarto cavaleiro, o da Morte: “Vi aparecer um cavalo
esverdeado. Seu cavaleiro era a Morte. E vinha acompanhado com o mundo dos
mortos” (APOCALIPSE, 6, 8, p. 1596). Por fim, Chevalier e Gheerbrant (2009) veem
ainda o cavalo como montaria, veículo que conduz o homem. A partir dessas
significações, e analisando o contexto em que tal animal aparece no conto, percebe-
se sua vinculação direta com a ideia de morte: o cavalo atua como um meio que
conduz a personagem para o mundo dos mortos. Terceiro, a simbologia do abismo,
já anteriormente destacada, que se relaciona ao mundo das profundezas. Assim, a
queda no abismo representa um regresso, uma descida ao mundo dos mortos ou
uma morte em sentido físico ou simbólico.
Nesse conto, a ideia de duplicidade se inscreve numa atmosfera dual: através
da confrontação entre as duas facetas de um mesmo ser e da suspensão da
continuidade temporal pelo coexistir do passado e do futuro em um presente
atemporal. No primeiro caso, observa-se continuidade física e psicológica entre as
duas personagens, já que ambas são a representação de um único ser, situado em
dimensões temporais diferentes. A confrontação entre o sujeito e o seu duplo é
proporcionada pela indeterminação espaço-temporal que se instaura na narrativa: no
plano espacial, o bosque, onde se dá o encontro, parece desconectado do mundo
concreto; no plano temporal, a continuidade cronológica e ordinária é rompida,
criando uma atemporalidade mítica necessária à efetivação do encontro. No
segundo caso, a dualidade manifesta-se pelo coexistir do passado e do futuro (ou o
passado como futuro, ou o futuro como passado), visto que a personagem assiste a
uma cena que é a repetição de sua própria história. Desse modo, na repetição do
mesmo instaura-se uma indeterminação temporal na narrativa: por um lado, o
desenrolar da ação conecta-se ao passado, porque já vivenciada pela personagem;
por outro, remete ao futuro, pois também se inscreve no plano do porvir, ao permitir
à personagem antecipar acontecimentos futuros. A estrutura desse conto de Telles é
muito parecida com a do conto “O outro”, do escritor argentino Jorge Luis Borges
(1978), uma vez que em ambos a temática do duplo se manifesta através da
confrontação simultânea de duas representações de um mesmo sujeito situadas em
dimensões espaciais e temporais distintas, em que o outro revela-se como sendo o
eu.
Nesse conto, como nas demais narrativas de Telles analisadas neste
trabalho, observa-se uma íntima conexão entre a manifestação do duplo e o
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discurso fantástico. Na verdade, a ideia central do conto depende diretamente da
criação de uma atmosfera fantástica para sua plena realização. Todo o jogo de
reconhecimento experimentado pela personagem – e pelo leitor também – se dá
graças à impossibilidade de determinar com precisão sua razão de ser. Com base
nessa ambivalência sustentada até o final da narrativa – seriam as impressões
levantadas meras coincidências ou resultados de uma experiência íntima e
profunda? –, cria-se no texto uma tensão constante, prendendo a atenção do leitor
que, assim como a personagem, procura sequiosamente por respostas satisfatórias
para esses questionamentos levantados. Ademais, é também graças às
possibilidades abertas pelo discurso fantástico que se torna possível a confrontação
da personagem com seu duplo: a fusão entre esferas espaciais e temporais diversas
adquire verossimilhança no contexto narrativo, sendo, inclusive, o aspecto
determinante para a realização bem-sucedida do drama das personagens. Por fim,
vale a pena destacar a atmosfera de mistério, também característica do discurso
fantástico, presente nessa narrativa de Telles. Isso se deve, principalmente, ao
modo como a narradora pinta o ambiente que envolve os seres: a narrativa inicia-se
envolta numa “névoa branda”; a cena em que Gustavo é atingido por um tiro
acontece num espaço de pouca iluminação; o desfecho da narrativa consuma-se em
meio a uma “noite negra”. A obscuridade que paira sobre o ambiente é interrompida
somente em duas situações: primeiro, pelo clarão quando do disparar da arma de
fogo, momento em que se tem, mesmo que por brevíssimo tempo, a visão de
Gustavo; segundo, pelo relâmpago que irrompe em meio à negritude da noite,
permitindo também por curto tempo a visualização da situação em que a amazona e
o cavalo precipitam-se no abismo. Percebe-se, pois, que a obscuridade que paira
durante toda a narrativa, dificultando, ao mesmo tempo, a visão da personagem e,
por extensão, do leitor, filia-se a um propósito maior, ajudando a compor um cenário
de mistério adequado ao desenvolvimento do enredo.
De acordo com a classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002), há nesse
conto de Telles o duplo por fusão: reconhece-se uma unidade entre as duas
personagens, as quais, na verdade, são representações de um único ser em
períodos temporais diferentes. Quanto à terminologia de Jourde e Tortonese (Apud
LÓPEZ, 2006), verifica-se a existência de um duplo subjetivo, já que há a
confrontação com seu próprio duplo, e externo, já que este adquire uma forma física
na narrativa.
100
2.3 Representações do duplo em Ignácio de Loyola Brandão: uma leitura de
dois contos
Ignácio de Loyola Lopes Brandão é romancista, contista, cronista e jornalista.
Publicou seu primeiro livro em 1965, uma coletânea de contos intitulada Depois do
Sol; três anos depois, lançou Bebel que a Cidade Comeu, seu primeiro romance.
Couto (2000) reconhece na literatura de Brandão uma veia de inspiração kafkiana
que metaforiza o absurdo da realidade, ao retratar em suas obras a solidão do ser
humano em meio ao mundo contemporâneo (uma constante em suas obras). Essa
filiação ao fantástico é explicitada pelo próprio escritor, que afirma ser esta ligação
antiga e inspirada pela leitura da Bíblia: “Esse meu apego ao fantástico começou,
então, com a leitura da Bíblia, dos Evangelhos – de repente o cego vê, o coxo anda.
Os milagres, para mim, eram uma coisa fantástica e isso foi ficando guardado, até
aparecer na minha ficção” (BRANDÃO, 2002, p. 38).
Contudo, o fantástico assume um aspecto peculiar na literatura de Brandão,
pois, diferentemente de outros que constroem cenários místicos, a grande maioria
dos contos desse escritor são ambientados no contexto urbano da cidade grande,
tendo como personagem o indivíduo mediano, anônimo e sozinho, ainda que
cercado pela multidão da metrópole. É nesse espaço de aparente normalidade que
irrompe o evento insólito, estabelecendo, com isso, uma ruptura nas relações
cotidianas. Embora a fantasia seja o recurso usado pelo autor a fim de criar a
atmosfera fantástica em seus contos (homens que perdem a mão ou a sombra, por
exemplo), sua literatura não é, de forma alguma, alienada em relação ao contexto
social circundante. Conforme afirma Silva (2002, p. 163), “A fantasia torna-se
recurso para acolher melhor a realidade […] com a diferença de que o elemento
fantástico cumpre uma função de iluminar o contexto para a denúncia social, não
para justificar o status quo”. Esse comprometimento com a realidade pode ser
evidenciado porque o fantástico em Brandão não apresenta um fim em si mesmo; ao
contrário, assume uma dimensão crítica que pode ser observada por dois aspectos
principais. Em primeiro lugar, pela escolha dos próprios temas atuais, que
questionam aspectos importantes da realidade social moderna. Em segundo, pela
construção de suas personagens, criadas “[…] à semelhança dos seres humanos,
de qualquer ser humano. Ninguém em especial […]” (COUTO, 2002, p. 105) e,
101
segundo o próprio escritor, derrotados pelas próprias situações que enfrentam:
“Meus personagens são derrotados pela sociedade, pelas circunstâncias, pelo
mundo. Ora, no mundo existem mais vencidos do que vencedores; a grande
pergunta então seria: o que é vencer?” (BRANDÃO, 2002, p. 48). Além disso, o
próprio Brandão reconhece que faz uma literatura comprometida com a realidade:
“[…] acho que fiz uma literatura ‘comprometida’, vamos dizer isso entre aspas, com a
realidade, mas na verdade ela transfigurava essa realidade” (BRANDÃO, 2002, p.
40).
Como homem de seu tempo, Brandão interessa-se pelos problemas do ser
humano contemporâneo, e sua literatura aparece como forma de expressar esses
conflitos. Entre os temas abordados por esse escritor em sua contística, um mostra-
se particularmente interessante, tanto pela recorrência na obra desse escritor,
quanto pela especificidade no modo como é representado na narrativa: o motivo do
duplo. Uma análise preliminar permite a identificação de três variações dessa
temática na produção de contos desse escritor: (1) o duplo como resultado da
projeção de traços da personalidade do escritor numa personagem; (2) o duplo
representado pela busca e encontro da outra metade, símbolo do amor; (3) o duplo
através da cisão/mutilação do sujeito.
A concepção do duplo como projeção de traços psicológicos do autor para a
construção da personagem compreende uma perspectiva de estudo antiga pela qual
muitos teóricos enveredaram. Nesse caso, há uma simetria entre determinados
aspectos da personalidade do autor e do ser da ficção, a ponto de este ser
considerado, em certa medida, uma extensão do escritor. Contudo, deve-se ter o
cuidado de não reduzir a literatura a um mero biografismo, limitando as
possibilidades interpretativas do texto, o que pouco contribui com a crítica literária.
Na contística de Brandão, pode-se observar essa modalidade de duplo no livro de
contos Depois do sol (2005), no qual a personagem Bernardo pode ser considerada
um alterego do autor, conforme afirma Pierini (2005, p. 14-15):
Em quase todos os contos, encontra-se a figura de Bernardo, um repórter vindo do interior do Estado para tentar a sorte na capital e que, graças à sua profissão pôde circular de uma camada social para a outra, conhecendo lugares, pessoas e fatos diversos e importantes.
102
No conto “A ascensão ao Mundo de Annuska”, integrante do referido livro,
uma passagem exemplifica essa relação:
Uma noite em Araraquara ainda, sentara-se à mesa e redigira febrilmente uma crítica de cinema. Levara hora e meia à máquina, catando milho, a fim de datilografá-la e deixara de ir à sessão de quinta-feira, dia em que as meninas todas lá estavam, nos lugares habituais. E correra ao jornal bissemanário do velho Rocha. Que não queria atendê-lo. Teve de invocar o nome do pai, ex-ferroviário (como o Rocha) que também escrevera vários contos. (BRANDÃO, 2005, p. 48)
Nesse trecho destacado, podem-se estabelecer três principais conexões entre
os fatos narrados no conto referentes à personagem Bernardo e a vivência do
escritor Brandão: a menção à cidade de Araraquara, terral natal de Ignácio; a alusão
à iniciante carreira de Bernardo no jornalismo, área na qual também trabalhou o
escritor; a referência ao pai de Bernardo como um escritor e ex-funcionário
ferroviário, em conformidade com a trajetória de vida do pai de Brandão. Desse
modo, essas evidências dão suporte à interpretação que considera Bernardo como
um alterego, ou simplesmente o duplo, do escritor.
Uma segunda configuração assumida pelo duplo nos contos do escritor em
pauta expressa-se através do tema da constante busca empreendida pelo homem
por sua metade faltante, sua alma-gêmea, numa referência ao mito platônico da
androgenia. De acordo com esse mito, o amor é o meio que possibilita a reunião dos
opostos, restaurando a totalidade original perdida quando da separação dos
princípios masculino e feminino. Como exemplo dessa vertente, destacam-se dois
contos: “Lígia, por um momento!” e “45 encontros com a estrela Vera Fischer”,
ambos publicados no livro Cabeças de segunda-feira (2008). Nesses contos, a
mulher amada assume a função do duplo, configurando-se como a outra metade da
personagem, muito embora a tão desejada reunião das duas metades não se efetive
na narrativa.
No conto “Lygia, por um momento!”, a personagem Zé Mário conhece Lygia,
por quem se apaixona à primeira vista. Durante o pouco tempo em que se
encontraram, parecia haver cumplicidade entre os dois; contudo, Zé Mário viaja para
Blumenau, em busca de sua “carreira”, seu “futuro”, ao passo que Lygia retorna para
o convívio com seu marido, de quem havia se separado. Não tendo conseguido o
sucesso esperado, Zé Mário retorna para São Paulo e, após algum tempo, decide
reencontrar Lygia, que naquele momento achava-se doente. Entretanto, a decisão é
103
tomada tarde demais; Lygia morrera dois dias antes, fato que é dado ao
conhecimento do leitor pelo narrador do conto, o amigo-confidente de Zé Mário:
“‘Tem de ser hoje. Para o que der e vier. Vamos lá?’ E sorria. Firme, confiante. Tran-
quilo. Como vou contar que ela morreu há dois dias?” (BRANDÃO, 2008, p. 116).
Nesse conto, percebe-se claramente que a união de Zé Mário com Lygia, sua outra
metade, esbarra num poderoso obstáculo erigido pela sociedade moderna: a
necessidade de construção e manutenção de uma imagem socialmente valorizada,
representativa de sucesso e poder, em detrimento das realizações no campo
subjetivo.
No conto “45 encontros com a estrela Vera Fischer”, a mulher amada assume
também a condição de duplo, compreendida como o complemento ou a outra
metade do sujeito. Um bancário, narrador e personagem do conto, descreve os
supostos quarenta e cinco encontros com a famosa atriz Vera Fischer. Entretanto, os
encontros íntimos mencionados nunca aconteceram de fato: tudo não passava de
fantasias criadas pela personagem e alimentadas pela indústria cultural (gastos com
publicações sobre a atriz, idas ao teatro repetidas vezes para assistir à mesma
peça). Esse conto apresenta, de modo exemplar, o tipo de relação intersubjetiva
estabelecido pelo sujeito na era da modernidade. A atriz Vera Fischer, no conto, não
passa de mera imagem representativa de um modelo de mulher socialmente
valorizado, construído e mantido pela poderosa indústria cultura. Nesse caso, o
encontro com a outra metade, com o complemento, nada mais é do que uma ilusão:
a Vera Fischer pela qual a personagem do conto se apaixonou é simplesmente um
simulacro fabricado pela mídia. Como se vê, nos dois casos apresentados, Brandão
atualiza esse mito antigo da duplicidade, adequando-o ao contexto moderno.
Por fim, há a modalidade em que o fenômeno do duplo manifesta-se como
resultado de uma cisão/mutilação da personagem. Além da modificação efetuada no
corpo, acontecem também mudanças importantes no modo como o sujeito se
relaciona com as pessoas e com o mundo. A mutilação física aparece como um
indício externo que tem seu correspondente interno na nova postura que o sujeito
adquire perante a sociedade. É pelo processo de reflexão/esclarecimento
desencadeado nas personagens que o membro cindido/mutilado assume,
metonimicamente, a função do duplo, do outro que fornece a imagem especular a
partir da qual o sujeito problematiza sua identidade enquanto ser social. Num
processo de iluminação repentina, o sujeito consegue enxergar e compreender
104
retrospectivamente sua postura e comportamentos adotados consigo e com os
outros ao longo dos anos. Assim, a busca da “cura”, realizada solitariamente pelo
sujeito, representa, na verdade, uma procura pela essência do próprio eu, numa
tentativa de individualizar-se num mundo cada vez mais massificado. No conto “O
homem do furo na mão”, publicado no livro O homem do furo na mão e outras
histórias (2007), um evento insólito estabelece uma ruptura na ordem cotidiana:
inesperadamente, o homem visualiza um furo em sua mão, indolor, cujas causas ele
não consegue explicar. O furo aparece, a princípio, como uma entidade exterior ao
sujeito, justamente pela estranheza que caracteriza seu surgimento. Assim, o furo,
dada sua exterioridade, confere singularidade à mão da personagem, estabelecendo
uma dualidade entre a parte íntegra de seu corpo e o membro mutilado. Contudo, é
através dessa mutilação verificada em seu corpo que o ser se individualiza, embora
essa diferenciação não adquira no conto uma conotação positiva, pois resulta na sua
exclusão das diferentes esferas da vida social (família, emprego etc).
Desse modo, o processo de construção da identidade do sujeito,
problematizada no contexto da sociedade moderna, apresenta-se como tema
recorrente na ficção de Brandão. A maioria de seus textos aborda a penosa luta do
homem não só pela sobrevivência física, mas também, e principalmente, pela
estabilidade psíquica num cenário inóspito para a constituição egoica. Nesse
contexto, visualiza-se a angústia do sujeito moderno, largado à própria sorte. O leitor
acompanha, página a página, o drama de personagens irremediavelmente presos à
engrenagem do capitalismo, a uma rotina automatizada e burocratizada, que poda
as possibilidades humanas de realização pessoal e o desenvolvimento da
individualidade.
Os dois contos de Brandão que serão analisados a seguir integram a obra O
homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis, coletânea na qual
os eventos insólitos, ao aparecerem sob o rotulo de “aventuras possíveis”, apontam
para a banalização do absurdo na sociedade atual. A escolha se baseou,
principalmente, pela correlação verificada nessas narrativas entre o duplo e o
fantástico, já que o fenômeno da duplicidade aparece nesses textos como a
manifestação do insólito. Soma-se a isso a vinculação também observada nos dois
contos entre a experiência da duplicação e o confronto com a morte.
2.3.1 “A mão perdida na caixa do correio”
105
O conto “A mão perdida na caixa do correio” foi publicado originalmente na
coletânea O homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis, no ano
de 1999. É narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente e, como o próprio
título já sugere, apresenta a saga de um homem em busca de sua mão, perdida
numa caixa de correio. Em uma dada segunda-feira, a personagem vai depositar
uma correspondência (um cupom semanal para concorrer a determinados prêmios)
e se vê diante de algo inusitado: sua mão, inesperadamente, descola-se do braço e
cai dentro da caixa do correio. O fenômeno da perda da mão cumpre um importante
papel na arquitetura da narrativa, pois assume o status de fio norteador de todo o
enredo, governando o desenvolvimento e o desfecho da história e instaurando uma
atmosfera fantástica. Ademais, o evento insólito suscita uma série de reflexões que,
entre outros aspectos, parece constituir, metaforicamente, um questionamento sobre
a condição do sujeito humano na sociedade atual.
Como grande parte da literatura de Brandão, a narrativa é ambientada no
contexto urbano de uma grande metrópole: o enredo acontece na cidade de São
Paulo, maior centro produtor e consumidor do país e ícone da modernização
brasileira. Imersa nesse espaço, a trama evidencia as contradições de uma cidade
grande, permitindo uma visualização, ainda que limitada, da heterogeneidade que a
constitui. Essa visão panorâmica é possibilitada, em parte, pelo perambular da
personagem por diferentes espaços, na tentativa de recuperar a mão perdida na
caixa do correio. Assim, são apresentados ao leitor tanto a imponência das grandes
obras arquitetônicas como também o ambiente degradado dos subúrbios, o
submundo às margens dos grandes centros, marcas estas imprimidas como
inerentes à própria modernidade. Ao abrir espaço, em sua literatura, para as esferas
marginais da sociedade moderna, Brandão põe em cena indivíduos marginais, a
quem comumente, na literatura, não foram dadas nem vez nem voz. É, portanto,
desse estrato social que brota o protagonista da narrativa em análise: um escrevente
de cartório de meia idade.
Seguindo a tendência dos textos fantásticos, a história inicia-se operando um
corte na realidade cotidiana, representado pela perda da mão pelo protagonista.
Esse acontecimento insólito irrompe em meio a uma atmosfera de aparente
trivialidade e que, a princípio, não teria nenhum outro desdobramento, afinal, são
inúmeras as pessoas que diariamente depositam correspondências em caixas de
106
correios: “Forçou o envelope pela abertura, não entrou. A caixa devia estar cheia”
(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 25). No entanto, é dessa situação corriqueira que se
desencadeia um evento não convencional: “Ele forçou a tampa da caixa postal.
Ficou assustado ao ver sua mão se soltar e cair dentro da caixa junto com o
envelope. Não sentiu dor. Nem o mais leve comichão. A mão simplesmente se
desprendeu, como se estivesse presa por parafusos frouxos” (BRANDÃO-MPCC,
2000, p. 26-27). Some-se a isso o modo como a mão se separa do restante do
corpo: “A mão deixando o braço, sem sangue e sem dor, deslocando-se
mansamente, era para deixar qualquer um desequilibrado […]” (BRANDÃO-MPCC,
2000, p. 27). Aqui, o narrador deixa expressa a exata impressão da falta do fluxo de
vida entre o membro decepado e o restante do corpo: a ausência de sangue e de
dor no momento da ruptura atesta essa interpretação. Do ponto de vista simbólico, o
sangue, conforme destacam Chevalier e Gheerbrant (2009), é universalmente
considerado como símbolo de vida. Assim, a ausência do fluxo sanguíneo, quando
da cisão do membro, abre a possibilidade para duas interpretações não excludentes
entre si: uma literal, que representa, biologicamente, a cessação da vida no
organismo animal; outra metafórica, que aponta para uma morte simbólica do
sujeito, posição esta que é confirmada ao longo da narrativa. Apesar da natureza
inusitada do evento, o narrador apresenta-o de maneira direta, o que contribui para
uma impressão maior de realismo.
Nessa narrativa, os eventos incomuns se somam a outros, compondo um
quadro até certo ponto dantesco. É por isso que se pode afirmar que, tão absurdo
quanto o evento em si da perda da mão, são outras situações que a partir dele se
desdobram. O que falar dos fantasiosos pensamentos da personagem sobre a
possibilidade de partes do corpo humano, como cabeça, membros, dentre outros
órgãos, serem destacáveis e reimplantáveis? E as notícias de acontecimentos
bizarros que brotam todos os dias ao redor do mundo, elencadas em abundância
pelo narrador, cada uma mais absurda que a outra? Mesmo diante dessas situações
inquietantes que parecem normalizar o absurdo, o evento da perda da mão
permanece incompreendido.
Nesse contexto em que o insólito se acomoda de modo tão “natural” à
realidade das personagens, a tentativa da figura masculina de culpar a segunda-
feira pelo acontecimento nem chega a surpreender tanto o leitor: “Era uma situação
nova, inesperada. Culpa da segunda-feira, nem precisava pensar, um dia tenebroso”
107
(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 27). Racionalmente, a segunda-feira em nada difere
dos demais dias da semana. Entretanto, do ponto de vista místico, esse dia em
particular pode sugerir algumas interpretações interessantes. De acordo com
Chevalier e Gheerbrant (2009), os dias da semana constituem uma totalidade
representada pelo número sete, sendo cada um desses dias relacionado a um
planeta. A segunda-feira é representada pela Lua. Esta, por sua vez, evoca um
simbolismo que pode ser resumido em suas duas características fundamentais: (1) a
Lua é privada de luz própria, configurando-se como o reflexo do sol; (2) a Lua
atravessa diferentes fases e adquire também formas diferentes. Considerando, pois,
a segunda-feira dentro desse contexto místico evocado pelo símbolo lunar e tendo
em vista sua recorrência em todas as narrativas que compõem a coletânea O
homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis (2000), pode-se,
ainda que de modo indireto, relacionar essas duas características acima destacadas
ao evento insólito vivenciado pelo protagonista. Assim como a Lua depende da
existência do sol para brilhar, a personagem, para existir, parece necessitar de sua
mão, que assume, metonimicamente, a função do outro. Ademais, as diferentes
fases e formas assumidas pela lua remetem diretamente a um processo de
mudança, o que também se reflete no horizonte do ser ficcional: a perda da mão
implica uma mudança física e, principalmente, comportamental dele.
A perda da mão, dadas às circunstâncias em que se processou, desinquieta a
personagem, estabelecendo uma ruptura radical em sua rotina diária, e a leva a uma
busca frenética e incessante por essa parte faltante de seu corpo. Entorpecido pela
atmosfera de mistério e estranheza que envolve tal evento, o protagonista é
constantemente inundado por conjecturas e pensamentos difusos e absurdos. Isso
inclusive é o motivo, em algumas partes da narrativa, do protagonista perder
parcialmente o contato com o contexto imediato que o cerca, sendo trazido de volta
pela perturbadora realidade da perda da mão: “Outra vez os pensamentos o
afastavam da mão. Precisava se concentrar” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 43).
A ruptura efetuada pelo episódio insólito no cotidiano da personagem
acarreta-lhe sérias consequências. A partir desse momento, o protagonista parece
adentrar em outro nível de realidade, em que uma série de eventos estranhos
passam a ser aceitos por ele com certo ar de naturalidade. Em algumas passagens,
o nítido contraste que se apresenta entre as bizarras atitudes do protagonista e a
postura, considerada racional pela sociedade, de outras personagens da narrativa,
108
chega a se tornar risível. Como exemplo, pode-se citar a passagem em que o
protagonista tenta evitar que uma mulher deposite uma correspondência na caixa
em que, pouco antes, perdera a mão:
−Pode me dar licença? A voz irritada despertou-o, viu a mulher suada, com um perfume doce, desesperador, agitando um envelope roxo. −Posso colocar minha carta? Se não for perturbá-lo muito! −Claro que pode. Mas não deve! −E por que não? −A caixa está engolindo mãos. −Ora, faça-me o favor. Gozações logo de manhã, com esse calor, a chuva ameaçando? Quem garante que não vem outra inundação? Cada dia tem mais louco e ladrão em São Paulo, não dá pé! (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 37)
Dessa forma, percebe-se, na figura da mulher que vem depositar a carta, o
protótipo do cidadão “comum e racional” que tem uma vida corrida e uma série de
outras preocupações diárias. Aqui, tem-se a síntese do perfil de uma parcela da
sociedade atual, de homens que são “esmagados” pelas ocupações e preocupações
cotidianas e que levam uma vida automatizada. Na referida situação, a mulher não
acredita na advertência – a caixa engole mãos! – feita pelo homem para não
depositar a carta e a ignora. Esse instante desestabiliza também o leitor, que se vê
diante de duas reações opostas – a do protagonista e a da mulher. A confrontação
entre esses dois extremos (o racional e o irracional) chega, em algumas situações, a
beirar o limite do ridículo, caso representado pelo diálogo entre o protagonista e um
funcionário dos correios:
Ele chegou diante do guichê. O funcionário espirrava. Tinha um lenço verde na mão. −Sim, sim, atchim, sim, atchim… posso ser útil? −Perdi a mão. −E por que vem ao correio? Perdeu aqui dentro? −Numa caixa de coleta. −Estava endereçada? −Como endereçada? −Tinha destinatário? Remetente? CEP correto? −E por que eu iria colocar CEP na mão? −Está no manual, doutor. Preciso fazer as perguntas. Atchim. (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 50)
Nessa cena, o funcionário, preocupado em seguir estritamente as normas
burocráticas para atendimento aos clientes, não demonstra qualquer surpresa com o
objeto procurado pela personagem (inclusive, parece desconsiderá-lo). Dessa forma,
109
o diálogo não se torna absurdo unicamente pela natureza do objeto procurado, mas,
principalmente, pela forma como o atendente conduz a situação, ao fazer perguntas
absurdas, considerando o contexto. Isso se deve, substancialmente, à obediência
irrestrita do funcionário aos manuais, que, supostamente, reúnem um conjunto de
protocolos a fim de racionalizar o atendimento ao público, visando à eficácia, à
eficiência e à produtividade. Aqui, percebe-se, na verdade, através da ironia e de um
humor sutil, uma crítica ferrenha às instituições públicas, que, burocratizando
excessiva e desnecessariamente seus serviços, chegam ao limite do absurdo.
Durante o processo compreendido entre a perda da mão e o desfecho da
narrativa, a personagem vivencia uma série de outras situações inusitadas que
rompem com os padrões da normalidade cotidiana, enredando-se completamente
nelas: passa a noite inteira a vigiar a caixa do correio em que perdera a mão, a fim
de flagrar o momento da coleta; como não obtém sucesso, segue para a Agência
Central dos Correios, dirigindo-se especificamente para o guichê “Encontrados”, na
expectativa de recuperar o membro perdido; de lá, é direcionada, por fim, para outro
departamento dos Correios, a Expedição, onde um funcionário obsessivamente
amedrontado de perder o emprego finda matando-a estrangulada.
Estrangulou-o e manteve o arrocho bastante tempo, até certificar-se de que o outro estava morto. Envolveu o corpo num saco plástico, grosso, jogou-o dentro de uma embalagem de lona, onde estava escrito em letras vermelhas: CORRESPONDÊNCIA EXTRAVIADA. (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 63)
O funcionário da Expedição leva a personagem para um lugar reservado e
mata-a. Dessa forma, a busca pela mão tem um desfecho trágico, uma vez que
resulta em sua morte. Tão emblemático quanto isso é o nome anotado na
embalagem para descarte do corpo dele, “correspondência extraviada”, escrito em
caixa alta, numa clara tentativa de chamar a atenção do leitor para a atroz ação
realizada pelo funcionário. Isso, evidentemente, aponta para a descartabilidade do
sujeito humano no mundo moderno e ressalta a frieza que impera nas relações
humanas.
A narrativa encerra-se com um fato ainda mais surpreendente, acrescentado
pelo narrador como uma espécie de apêndice no qual é revelado ao leitor o real
destino da mão: encontrada por uma funcionária dos correios, é trazida para a casa
desta e, dada sua inutilidade, atirada no quintal para o cachorro. Aqui, o narrador
110
não deixa dúvidas de que a personagem realmente havia perdido sua mão numa
caixa de correio – se é que essa dúvida ainda pairava na mente do leitor –, uma vez
que a mão é encontrada, na caixa localizada onde descrevera o protagonista, por
uma funcionária dos correios. No entanto, esse acontecimento insólito é
apresentado pelo narrador de forma natural e, por conseguinte, aceito também pelo
leitor, no final da narrativa, dessa mesma maneira – embora esse fato não diminua
em nada a estranheza do evento, que permanece inexplicável. O que chama
atenção, na verdade mais até do que o acontecimento incomum em si, é a finalidade
com que a funcionária recolheu a mão e trouxe-a para sua casa: obter algum tipo de
compensação financeira. Acrescenta-se a isso a naturalidade com que essa mesma
personagem, para se desfazer da mão, joga-a no quintal para o cachorro,
demonstrando frieza e nenhum interesse em sequer questionar como tal membro
fora parar numa caixa de correio.
Tão importante quanto o fato principal gerador do enredo, no caso, a perda
da mão, são as reflexões efetuadas e as situações vivenciadas no interstício entre o
momento da perda e o desfecho da história, que ajudam o leitor a compreender
melhor o contexto em que as ações se desenvolvem. Nesse percurso, o
protagonista se vê inundado por uma série de questionamentos e outros
pensamentos difusos que, dentre outros aspectos, suscitam significativas reflexões
sobre o homem e a sociedade atuais. Isso porque o fantástico, nessa narrativa,
assume uma perspectiva crítica: a realidade é ela própria tornada absurda, o que
permite ao narrador questionar, de forma irônica e com algumas doses de humor,
aspectos importantes da sociedade atual, aqui implicados o mundo moderno, bem
como homem e instituições sociais por ele criadas e sustentadas.
O conto expressa em suas páginas marcas indeléveis impostas pela
modernidade, com suas contradições e conflitos característicos. A importância da
abordagem de tais aspectos reside basicamente na consideração de que é no seio
das relações sociais que o sujeito se constitui: o contexto circundante interfere
diretamente no modo como o indivíduo constrói sua identidade.
Fica evidente na narrativa a relação conflituosa entre o velho e o novo,
dialética essa inscrita nas entranhas da sociedade moderna e que afeta,
inevitavelmente, os sujeitos imersos nesse contexto. A própria personagem enfrenta
os problemas trazidos pela modernidade no âmbito das relações profissionais e de
trabalho. Na condição de escrevente, oficio esse, aliás, ameaçado de extinção, esse
111
ser sente na própria pele as consequências da modernização, representada pela
introdução do computador no ambiente de trabalho: “‘Se cuide você! Esses livros
velhos e incômodos vão se acabar levando a tua raça junto. Ninguém mais escreve
à mão’” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 39). Como se vê, a modernidade impõe uma
dinâmica própria à sociedade. Cabe ao indivíduo adaptar-se a esse novo contexto
ou, do contrário, ser excluído dele. Nesse sentido, a advertência contida na voz do
patrão é esclarecedora quanto a isso. A instabilidade provocada pela constante
inserção do novo, que por sua vez, requer uma reorganização do sistema, é temida
pela personagem, possivelmente influenciada por sua experiência pessoal: “Como
entender o mundo crescendo à sua volta? Muita gente tem medo de coisas novas,
pensou, incluindo-se entre os que tinham receios” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 47).
Essa mesma estrutura dialética entre o velho e o novo se reflete nos aspectos mais
simples e superficiais do cotidiano apresentados na narrativa: a substituição das
cartas pelo telefone, pelo fax e pelo e-mail; e o ofício das cartomantes em vias de
extinção, já que computadores “[…] ditam a sorte, analisam dados, fazem
combinações astrológicas, preveem o futuro” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 44).
Os indivíduos da sociedade moderna convivem diariamente com essas
incertezas. Possivelmente, muitos deles nem sequer tenham consciência desses
fatores, imbricados que se encontram no sistema e automatizados pelo ritmo
frenético da rotina diária: “A maioria passa o dia assim, daí a nebulosidade do
cotidiano, a sensação de que todos vivem semiadormecidos ou hipnotizados,
trabalhando e vivendo sem emoções” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 30).
Esse modelo de vida pregado e exigido pela modernidade reflete
inevitavelmente no modo como o indivíduo vê o mundo e relaciona-se com ele. Com
foco no individual, perdem-se as relações estáveis e autênticas com o outro e o
sentimento de coletividade, resultando numa atomização e na solidão vivenciada
pelo sujeito moderno. A personagem do conto, abandonada pela mulher, isola-se do
mundo em termos afetivos. O que sobra dessa relação é uma foto de sua esposa
pelada, na qual ele parece projetar os sentimentos que nutria pela sua companheira
real: “A foto ficou. Ela, no fundo, gostou de deixá-la ali, confessou. Adorava ser
lembrada. Todas as manhãs e todas as noites ele estaria diante do espelho, a
adorá-la. Você é a minha oração de cada dia, ele disse” (BRANDÃO-MPCC, 2000,
p. 42). Aqui, percebe-se claramente um culto do simulacro, em que uma imagem
passa a ocupar o lugar antes destinado à pessoa real.
112
Além de interferir no plano das relações pessoais, a modernidade também
altera profundamente o modo como o sujeito se relaciona com a sociedade a sua
volta. Se, como observa Lukács (1999), o romance nasce como oposição à epopeia
clássica, com vista a representar retratos da vida privada numa sociedade centrada
no sujeito individual, a modernidade acelera esse processo de atomização do
homem, em que o sujeito, em sua individualidade, passa a agir segundo convicções
próprias que não mais coincidem com as expectativas da totalidade. Na narrativa de
Brandão, verifica-se a radicalização dessa postura, no momento em que uma
personagem do conto convoca o protagonista da história a se juntar a um
movimento em prol da extinção da segunda-feira:
‘Tudo é culpa da segunda-feira, um dia terrível, nada dá certo nele. Aceitem meu convite, venham para a reunião. Vamos debater o porquê da existência da segunda-feira. Vamos propor sua extinção. Precisamos fazer um movimento nacional, que empolgue o povo, como o Diretas-já. Vamos para as ruas com as caras pintadas’ (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 38).
Mais uma vez, utiliza-se do humor para criticar e ridicularizar um
pseudoativismo que se mostra absurdo. O discurso acalorado conclamando a
personagem para se unir a um movimento nacional à semelhança do “Diretas-já”
revela dois aspectos sintomáticos da perda do sentido de coletividade no contexto
da modernidade. Primeiro, o movimento tem como origem um sentimento de uma
pessoa em particular, que odiava a segunda-feira por se sentir doente nesse dia. Em
todos os contos da coletânea O homem que odiava a segunda-feira: as aventuras
possíveis (2000), as personagens comungam desse “ódio” pela segunda-feira.
Entretanto, essa passagem em que um sujeito faz campanha pelo fim da segunda-
feira remete mais diretamente à narrativa “O homem que odiava a segunda-feira”,
também integrante da referida coletânea. Nela, um dado ser, alegando sentir-se
doente nesse dia da semana, passa a organizar uma campanha, recolher
assinaturas e realizar panfletagem em prol da abolição desse dia, de acordo com
ele, tão detestado por todos. Segundo, trata-se de uma causa fútil, a saber, a
abolição da segunda-feira. O engajamento em tal movimento revela, na verdade, a
falência e/ou a falta de ideais autênticos compartilhados por uma coletividade. No
caso específico da narrativa em análise, a apologia pelo fim da segunda-feira,
consideradas as devidas proporções, simboliza as falsas “bandeiras” erigidas pela
sociedade moderna, a fim de preencher a lacuna deixada pela perda do sentimento
113
de coletividade. Portanto, a ausência de um sentimento de continuidade e a relação
de atrito entre homem e meio social ajudam a reforçar a sensação de solidão
vivenciada na modernidade: “Tinha vergonha de perguntar a alguém: ‘O que faço?
Minha mão acaba de cair na caixa!’ Iam julgá-lo maluco” (BRANDÃO-MPCC, 2000,
p. 44).
Ajudando a compor essa visão panorâmica da sociedade moderna, podem-se
mencionar impressões particulares reveladas em cartas escritas por sujeitos
comuns, a que o funcionário da Expedição tinha acesso: “‘Ele conhecia, através das
cartas extraviadas, quanta desilusão, desesperança, frustração, incompreensão
existem nas vidas. Por que as pessoas escrevem tão poucas coisas alegres e
felizes’” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 58). Através dessa fala, pode-se, num caminho
que vai do fragmento a totalidade, construir uma concepção do mundo moderno
representada no conto. Dessa forma, partindo da visão de mundo de pessoas
particulares (visões estas presentes nas cartas violadas pelo funcionário dos
correios), pode-se construir uma concepção de mundo negativa, em que impera a
desilusão, a frustração, a desesperança etc.
Ainda com relação à sociedade e o mundo moderno, merecem destaque, pela
recorrência com que aparecem na narrativa, questões relacionadas ao
conhecimento científico e ao narcisismo.
O conhecimento científico, baseado na lógica e na razão, é várias vezes
criticado na narrativa, ainda que de uma forma bem-humorada. A primeira crítica
advém de sua insuficiência para explicar racionalmente a perda da mão pela
personagem na caixa do correio. Como um homem de seu tempo, ou seja, como
sujeito historicamente situado, filho de uma sociedade centrada no logos e na razão,
é prudente a tentativa de enquadrar o evento insólito dentro de uma estrutura
racional de pensamento, quando questiona: “A mão na caixa. Haveria nos recortes e
livros uma explicação?” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 29). Visto que a ciência
desempenha na sociedade atual um papel de destaque, subjugando outras formas
de compreensão do universo (a religião, a mitologia), e tem pretensão de explicar
todos os fenômenos e dominar, através do conhecimento, o universo, nada mais
compreensível do que a personagem, diante de tal situação, buscar amparo no
conhecimento científico. Entretanto, nem mesmo a Enciclopédia do Inexplicável,
de Jerome Clark, O Estranho e o Extraordinário, de Charles Berlitz, e Casos
Malditos, de Charles Fort, obras essas integrantes da biblioteca particular da
114
personagem, apresentam-lhe uma resposta satisfatória. Como se sabe, os livros, de
modo geral, configuram-se como o repositório do conhecimento científico e racional
produzido pelo homem, sendo disseminado ao longo de gerações através da forma
escrita. Nesse conto de Brandão, os nomes dados aos títulos dos livros, por si só, já
chamam atenção do leitor, principalmente pela natureza incomum dos conteúdos
que sugerem, adentrando, portanto, num universo de ilogicidade e irrealidade. No
entanto, a crítica realizada à ciência de modo geral é indissociável de um humor sutil
que ajuda a criar um clima leve na narrativa.
Considerado em sentido amplo, ou seja, como sintoma de uma sociedade, o
narcisismo, no contexto da modernidade, pode ser considerado uma dominante
cultural (cf. LOWEN, 1993), compreendendo um conjunto de comportamentos e
atitudes do sujeito para com seu corpo e sua imagem pessoal. No conto, as marcas
de comportamentos narcísicos relacionam-se, principalmente, ao culto do corpo,
observados em algumas atitudes da ex-esposa da personagem que revelam sua
obsessão por um corpo perfeito: “Era uma preocupação de sua mulher – quando
viviam juntos – ter uma pele de pêssego. Comprava cremes e mais cremes”
(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 36). Em outra passagem, o narcisismo aparece
atrelado a um fenômeno mais complexo da sociedade moderna, ao qual Adorno e
Horkheimer (2006) denominam indústria cultural. Na passagem destacada abaixo,
os indícios do narcisismo despontam como resultado de uma busca de identificação
com os grandes artistas da indústria cinematográfica, conforme a fala da ex-esposa
da personagem, abaixo destacada:
“A vida com ele [o dono de uma locadora de vídeos] é mais excitante, todos os dias temos de ver filmes e mais filmes e ele sempre me diz: Para mim você é essa mulher. E cada dia sou Demi Moore, Julia Roberts, Sandra Bullock, Nicole Kidman. Depois de ver os filmes, cada dia faço um cabelo diferente para agradá-lo, o cabelo que a artista usa” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 41)
Aqui, percebe-se como os produtos da poderosa indústria cultural,
especificamente as produções cinematográficas, chegam a influenciar e a interferir
em aspectos da vida privada do homem moderno. De um lado, o novo companheiro
da mulher infla diariamente o ego de sua amada, ao compará-la com personalidades
famosas do cinema, consideradas paradigmas de beleza pela sociedade. De outro,
a figura feminina busca uma identificação física com a estrela do cinema, ao fazer “o
115
cabelo que a artista usa”, como forma de agradar o marido. Esse jogo diário de
projeções e identificações torna, sob a ótica da mulher, a vida com o dono da
locadora de vídeos “mais excitante”, já que parece fugir da mesmice e de uma rotina
fatigante. Isso insere as personagens num círculo vicioso que tem como
consequência a perda de relações autênticas entre os sujeitos, ilustrando como a
vida do homem atual se encontra cada vez mais dependente dos próprios artefatos
criados pela modernidade. Isso porque os produtos da indústria cultural, aliando o
campo da cultura ao sistema capitalista, não apenas objetivam divertir, mas,
principalmente, erigem modelos e padrões de beleza que passam a ser buscados
incessantemente pelo homem moderno.
Por fim, podem-se destacar algumas críticas feitas a dois aspectos mais
específicos da sociedade brasileira: o mundo da política e campo das relações
profissionais. Quanto ao primeiro, a narrativa denuncia a inércia de muitos políticos,
que restringem sua atividade pública à busca de coisas insignificantes ou que
praticam atividades ilícitas, como o nepotismo. Em relação ao universo das relações
profissionais, são apresentadas várias críticas, como promoções por conveniências
e não por mérito, burocratização nos serviços públicos, privilégios de um pequeno
grupo de funcionários.
É, portanto, nesse contexto heterogêneo e tumultuado da modernidade que
Brandão insere a saga de um ser fictício que, inesperadamente, vê-se diante do fato
insólito da perda da mão. Perante isso, faz-se a seguinte pergunta: por que a mão
era tão importante para a personagem, a ponto de ela perder sua vida na busca por
esse membro? O conto apresenta algumas pistas que sinalizam para uma relação
de proximidade afetiva entre este ser e sua mão. Em primeiro lugar, sua profissão de
escrevente dependia diretamente de sua mão, e o próprio reconhece isso: “Um
escrevente sem mãos?” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 47). Além disso, partindo para
um lado mais simbólico, pode-se estabelecer uma relação da mão da personagem
com sua vida, relação esta explicitada ao se referir às linhas presentes nela como
representativas das linhas de sua vida: “‘ Na palma estão as linhas de minha vida,
não gostaria de perdê-las’” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 58); “‘As linhas da vida…
ah, aquelas linhas” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 60). Por fim, o protagonista assinala
e reconhece o impacto causado em sua vida pela perda da mão, através do que se
percebe a importância e o valor que esse membro assumia para ele: “Nem quando a
116
mulher o tinha deixado para se juntar ao dono de uma locadora de vídeos tinha
sentido tanto”. (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 41).
Além dessas evidências apresentadas pelo conto, a mão, conforme Chevalier
e Gheerbrant (2009), é símbolo de atividade, poder e dominação, o que corrobora a
linha de interpretação que considera a mão como uma parte importante e
significativa para a personagem, ao representar seu agir e seu poder. A partir disso,
pode-se interpretar a simbologia da mão no conto como representativa,
metonimicamente, do duplo do sujeito. A mão é como uma espécie de extensão do
eu, por ser uma parte do próprio ser, mas que, devido à importância assumida com
sua perda, é alçada a uma condição de quase ser autônomo (ou o outro da
personagem), razão pela qual ela se reveste de uma significação tão especial, a
ponto do sujeito perder sua vida na busca por ela. Dessa forma, opera-se uma cisão
no ser, o que o leva a buscar pela mão, ou melhor, pelo seu duplo. Uma vez que se
coloca em cheque a problemática da identidade, a perda da mão o conduz,
inevitavelmente, a um questionamento de seu próprio eu e de sua existência e o faz
reavaliar uma série de situações anteriores de sua vida.
Além do evento principal representado pela perda da mão, o tema da cisão
aparece recorrentemente na narrativa, por exemplo, através das divagações da
personagem: “Vai ver, há partes que se destacam, só que nunca precisamos retirá-
las […]” (BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 31). Essa possibilidade de fragmentação física
do corpo humano é levada a consequências extremas pela personagem em seus
devaneios: “E se todas as partes do corpo forem removíveis? De repente, solta-se a
perna, o joelho, a coxa, a barriga. Que maravilha ser a cabeça e olhar pedaços do
próprio corpo espalhados”(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 35). Por fim, a imaginação
fantasiosa leva o protagonista da narrativa aos limites do absurdo, quando visualiza
a possibilidade de duplicação de si mesmo caso perdesse também a cabeça,
tornando-se, portanto, dois: o homem-cabeça ou o homem-sem-cabeça.
Evidentemente, por mais absurdo que possa parecer a um primeiro olhar,
nada é gratuito numa narrativa curta. Qual seria, então, a razão de ser desses
eventos fantasiosos na narrativa? Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que tais
episódios não se encontram desarticulados da trama narrativa. Ao contrário, eles
relacionam-se com o acontecimento inicial da perda da mão e são, por assim dizer,
consequências deste: é a cisão do membro que leva o pensamento da personagem
para essas veredas da fantasia e da imaginação. Além disso, em decorrência da
117
ocorrência primeira, a temática da cisão, ao longo da narrativa, tem a função de
complementar a impressão inicial deixada no leitor pela perda da mão, reforçando,
portanto, a noção de fragmentação do ser.
Esse esfacelamento físico e exterior tem como seu correspondente interno a
psicologia de um sujeito em crise: um homem de meia idade, escrevente de um
cartório (oficio este, aliás, em vias de extinção), abandonado pela mulher; enfim, um
sujeito solitário, marginalizado na vida e no trabalho e que, inesperadamente, perde
sua mão numa caixa de correio, fator este considerado o estopim responsável pela
sua desestabilização completa. De um ponto de vista alegórico, pode-se considerar
esse esfacelamento físico da personagem no conto como uma metáfora do sujeito
moderno. Afinal, não seria essa a imagem mais emblemática do homem moderno, a
do ser dividido, esfacelado, fragmentado? Aragão (1991), discutindo sobre as
facetas do Narciso moderno, aponta, possivelmente, um dos mais importantes
traços que caracterizam o sujeito na modernidade, a saber, a consciência de sua
dualidade e de sua fragmentação: “O mito de Narciso, hoje, espraia-se pela vida,
para além da literatura […] Em nossa sociedade de consumo, esta figura é cada um
de nós, multiplicados e dilacerados nos espelhos, nos vídeos, nas vitrines, no
tempo” (ARAGÃO, 1991, p. 73). No conto, a figura do sujeito mutilado se torna
impressiva e forte, uma vez que a divisão rompe os limites da identidade e da
constituição subjetiva do sujeito, para se materializar em sua constituição física,
através da imagem do corpo esfacelado. Dessa forma, o sujeito humano percorre
um caminho que vai da totalidade do ser a sua fragmentação no mundo moderno
Como se vê, a perda da mão é o elemento insólito que se inscreve na
narrativa e promove ruptura na ordem racional do cotidiano da personagem,
instaurando uma atmosfera fantástica. No entanto, verifica-se que o episódio insólito
não inquieta as demais personagens do conto, e, para o leitor, o fato de o
protagonista perder a mão numa caixa de correio não parece uma situação mais
absurda do que os demais acontecimentos relatados no conto. O caráter ilógico da
narrativa instaura uma atmosfera fantástica no conto, uma vez que tal
acontecimento, ao transcender a racionalidade, pertence à categoria de fatos não
explicáveis pelas leis naturais. Isso provoca a hesitação do leitor – uma das
condições para a instauração do fantástico, conforme Todorov (2008) –, haja vista
que ele não consegue compreender e enquadrar tal acontecimento como um evento
118
natural, nem tampouco aceitá-lo como um elemento sobrenatural. Desse modo, o
leitor flutua, ao longo da narrativa, entre esses dois polos, indecidivelmente.
Além disso, o fantástico apresenta no conto uma perspectiva crítica muito
clara: algumas das situações absurdas, conforme mencionado acima, denunciam
abertamente comportamentos e práticas ilícitas verificadas em instituições públicas,
assim como certas posturas assumidas pelo homem e a sociedade modernos.
Nesse sentido, o fantástico adquire, aqui, um tom de denúncia, em que a aparente
banalidade e absurdez do enredo encobrem um tom irônico e crítico, entrecortado
com algumas doses de humor. Além das críticas já mencionadas às instituições
públicas e a determinadas condutas nelas existentes – favorecimentos, propinas –, o
desfecho do conto revela, possivelmente, a crítica mais nua e incisiva ao homem e
mundo modernos, através de uma imagem forte e impactante: a mão, em cuja busca
seu dono perde a vida, é comida por um cachorro. Isso aponta para uma imagem de
mundo em que as relações humanas autênticas valem cada vez menos e a vida
torna-se sem valor e descartável.
Nesse conto de Brandão, a temática do duplo assume uma configuração
particular. A mão, embora sem vida própria, é alçada à condição de duplo da
personagem, principalmente por introduzir no interior desse sujeito o
questionamento de sua identidade. A perda desse membro leva o protagonista a
uma busca frenética por essa parte faltante de seu corpo, que é também a procura
por si mesmo. Como se sabe, a cisão impõe um corte entre a mão e o restante do
corpo, instaurando uma dinâmica específica na relação entre o sujeito e seu duplo:
embora separada, mantém uma relação de pertencimento com seu dono, além de
ser metonimicamente considerada como representativa do outro da personagem.
Apesar disso, não se pode falar aqui de uma continuação física, como se concebe
numa acepção tradicional, entre o indivíduo e seu duplo: mais importante do que a
relação de espelhamento é a problematização da identidade inserida na psicologia
do sujeito por meio da perda da mão. Desse modo, a busca da mão perdida na caixa
do correio, empreendida pelo sujeito, assume duas dimensões: no plano exterior,
trata-se da recuperação do membro perdido; no plano subjetivo, reflete uma procura
por si mesmo. Quanto à origem, evidencia-se na narrativa um duplo por cisão, de
acordo com a classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002). Seguindo a tipologia
de Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), trata-se de um duplo subjetivo, já que o
protagonista da narrativa se confronta com seu próprio duplo, e externo, pois este
119
assume uma forma física, no caso a mão, que representa, metonimicamente, o outro
da personagem.
Por fim, pode-se estabelecer uma análise comparativa entre essa narrativa de
Brandão e o conto “O nariz”, do russo Nicolau Gogol. Nesse conto, que também se
filia ao fantástico, o major Kovalev, assessor do colégio, percebe, ao acordar, que
seu nariz sumira inexplicavelmente:
Kovalev, assessor do colégio, levantou-se cedo, murmurando ‹‹Brr››, o que fazia sempre ao acordar, embora não apresentasse qualquer explicação para tal procedimento. Kovalev espreguiçou-se e mandou que lhe trouxessem um espelho de tamanho médio, dos que se colocam em cima da mesa. Tudo isso na intenção de observar uma borbulha que na véspera lhe tinha nascido no nariz. Mas, para seu grande espanto, viu que, no sítio do nariz, tinha apenas uma superfície lisa. Kovalev, alarmado, pediu água e esfregou os olhos com um pano molhado: era verdade, tinha-lhe desaparecido o nariz. Apalpou-se; beliscou-se, para se convencer de que não estava a dormir. Não, pareceu-lhe que estava acordado. O assessor Kovalev saltou então da cama e lavou-se: nem sinais do nariz... Vestiu-se prontamente e voou para o posto da polícia. (GOGOL, 1983, p. 169)
Assim como no conto de Brandão, em que o protagonista se vê,
inesperadamente, sem sua mão, a personagem do conto de Gogol também percebe,
ao acordar e ver sua imagem refletida no espelho, que uma parte de seu corpo
também desaparecera: o nariz. Na busca empreendida para recuperar o membro
perdido, ambos os seres enfrentam situações absurdas. Assim como na narrativa de
Brandão, também no conto do escritor russo o membro cindido, no caso o nariz,
assume a função de duplo. Apesar disso, o conto de Gogol apresenta algumas
especificidades: o nariz, em determinada parte do conto, apresenta-se como uma
personagem com vida própria, dotada, portando, de ação; e, no final do conto,
Kovalev consegue recuperar o nariz que, da mesma forma inexplicável com que se
despregara da superfície do rosto, retorna a seu lugar de origem. Vê-se, portanto,
um final bastante diferente do conto de Brandão, em que, além de o protagonista
não conseguir recuperar sua mão perdida na caixa do correio, perde ainda a vida em
consequência da busca por esse membro.
2.3.2 “As cores das bolinhas da morte”
Este conto é também parte integrante da coletânea O homem que odiava a
segunda-feira: as aventuras possíveis, publicada originalmente em 1999. Narrado
120
em terceira pessoa, apresenta um enredo intrigante, no qual um acontecimento
insólito irrompe inesperadamente no cotidiano e provoca uma reviravolta na vida do
protagonista, que num certo dia percebe que perdeu sua sombra. Toda a narrativa
gira em torno da busca angustiante e incessante desse homem pela sua sombra e
das reflexões e questionamentos resultantes dessa busca.
O conto tem como cenário o espaço urbano da grande cidade. A parte inicial
da narrativa se passa na cidade de São Paulo e a outra, na qual se dá o desfecho
da história, na cidade de Belo Horizonte. Em ambos os cenários, o narrador faz
descrições desses ambientes, caracterizando um espaço moderno em que o
aglomerado de pessoas e a existência de prédios suntuosos e favelas – ambientes
degradados – constituem símbolos distintivos da cidade grande. É nesse cenário em
que são desenvolvidas as ações das personagens.
Nesse contexto, um juiz aposentado se vê, certo dia, ante uma situação
incomum ao perceber que sua sombra sumira: “Olhando para o chão, não viu a sua
sombra” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 95). Entretanto, a personagem reluta em aceitar
essa perda; afinal, não estaria ela disfarçada num dia em que o sol se mostrava
fraco? Apesar disso, o fato inexplicável se confirma. E numa segunda-feira, dia que
mais detestava: “como era possível?” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 99). Aqui, é
interessante destacar o simbolismo desse dia da semana. Conforme destacam
Chevalier e Gheerbrant (2009), a segunda-feira é representada pela Lua, que
remete às ideias de reflexo e dependência (reflete a luz do sol) e mutabilidade
(passa por quatro fases distintas). Esse simbolismo relaciona-se, particularmente,
com o momento que a personagem vive na narrativa: a dependência da sombra e o
processo de mudanças psicológicas, o qual tem início com a perda dela.
O desaparecimento da sombra desestabiliza completamente a personagem.
Tragada por essa atmosfera nebulosa, é convencida por um transeunte (que
também perdera a sua), a procurar uma cientista chamada Cristina Agostino.
Especialista em sombras – aliás, começara pesquisando o porquê de os políticos
sempre agirem à “sombra26” –, o protagonista visualiza nessa cientista a
possibilidade de obter uma explicação sobre o motivo da perda da sombra e, por
conseguinte, recuperá-la. Nesse intuito, abandona sua rotina de juiz aposentado em
26
Observa-se, aqui, um humor sutil atrelado a uma crítica social aguda, o que se repete em várias passagens dessa mesma narrativa.
121
São Paulo e desloca-se para a cidade de Belo Horizonte, onde residia tal
pesquisadora:
Por que ele tinha entrado neste círculo? Até ontem vivia tranquilo, cumpria as obrigações rotineiras, não atrasava pagamentos, recebera até um diploma honoris causa da Receita Federal, por sempre ter declarado honestamente o imposto de renda. De um momento para outro estava rodando, em uma cidade desconhecida, sem lógica. Nada era racional e não sentia vontade de ir embora, poderia ficar a vida inteira aqui, se houvesse emprego. (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 127)
Verifica-se, desse modo, uma ruptura total no cotidiano desse sujeito: ele
abandona suas atividades diárias e, de forma mais impressionante e radical, o
ambiente ao qual estava habituado, para se aventurar numa cidade desconhecida
por ele. À primeira vista, parece uma atitude nada racional, mas é,
contraditoriamente, motivada internamente pela razão: a crença de que o
conhecimento científico, personificado na confiança nutrida pela cientista Cristina
Agostino, dar-lhe-ia uma resposta convincente e aceitável. Essa atitude ilustra de
modo exemplar o papel desempenhado pelo discurso lógico-científico na sociedade
moderna, afirmação esta que encontra sustentação no pensamento de Armstrong
(2005), para quem a sociedade ocidental moderna é filha do logos. No entanto, essa
atmosfera racional é suplantada, na narrativa, pelo acontecimento fantástico, uma
vez que esses questionamentos praticamente cessam na parte final da narrativa, e o
protagonista se deixa envolver completamente pela atmosfera misteriosa do
desaparecimento da sombra.
O confronto entre o racional e o irracional constitui uma das linhas de força
estruturadoras do conto. Dada a natureza insólita das situações nas quais o
protagonista se enreda, o leitor é levado a julgar grande parte das ações e atitudes
dele como expressamente contrárias à racionalidade. O que pensar de um homem
que chega para um atendente de uma universidade perguntando por uma professora
que supostamente estaria a estudar o desaparecimento de sombras? A
recomendação dada pelo funcionário é exemplar nesse sentido: “‘O senhor não quer
consultar uma psicóloga?’” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 113). Assim, o julgamento
que esse atendente faz da situação condiz perfeitamente com a interpretação
realizada pelo leitor.
Desse modo, é com o desaparecimento da sombra que esse embate se
apresentará de forma mais complexa, visto que tal acontecimento provoca uma
122
reviravolta na vida do protagonista. Tal acontecimento insólito, que contraria a lógica
e a razão, rompe com a rotina da personagem, que, no entanto, passa a aceitar
essa situação sem grande resistência. Embora durante boa parte da narrativa se
deixe levar por essa atmosfera misteriosa, a racionalidade invade-a em alguns
momentos, instaurando o conflito no interior de sua psicologia: “E a racionalidade o
invadiu. Deu conta de que não fazia sentido estar em Belo Horizonte, uma cidade
que não conhecia, dela só tinha ouvido falar […]” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 138-
139). Aqui, o discurso racional atua como espécie de superego, que lhe alerta sobre
o perigo e a absurdez da situação insólita na qual se encontra. Além disso, ele se
autodefine como um ser racional: “Era um homem racional […]. O insólito não existe.
Nem o absurdo. Quanto a isso, estava tranquilo” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 104).
Essa confrontação, embora seja evidenciada com maior relevo a partir da
perda da sombra, já se esboçava na mente do sujeito anteriormente a esse evento.
Através de diálogos com outras personagens e do discurso do narrador, é dado a
conhecer ao leitor que o homem sem sombra é um juiz aposentado. O fato de ser
um magistrado é particularmente interessante. No contexto ocidental, o judiciário é
caracterizado por um discurso lógico-racional e impessoal e tenta passar a imagem
de uma rigidez comportamental condizente com as leis e normas que organizam a
vida em sociedade. Na figura do protagonista, a quebra com esse discurso ocorre
nas inúmeras rupturas de protocolos realizadas pelo juiz: flertava com as juradas,
dormia durante as sessões de julgamento, aplicava sentenças discrepantes com a
gravidade do delito cometido (brandas ou pesadas demais). Essas condutas
desviantes atingem um patamar insustentável quando do anúncio de uma sentença
considerada extremamente absurda, que provoca indignação no tribunal:
“Assombrou o tribunal ao propor ao réu a escolha da sentença: Jogar bolinhas de
gude com mil delinquentes ou a morte” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 132). Como
punição, o magistrado recebe uma aposentadoria compulsória, o que significa, por
um lado, o afastamento do trabalho no judiciário, mas, por outro, a manutenção de
seu alto salário e de regalias adquiridas.
Como a primeira frase da narrativa já atesta a ocorrência do acontecimento
insólito – “Olhando para o chão, não viu a sua sombra” (BRANDÃO-CBM, 2000, p.
95) –, a ênfase do enredo recai sobre a saga da procura empreendida pela
personagem. Isso porque o sentimento de perda de uma parte de si mesmo
vivenciado pelo homem sem sombra instaura em seu âmago uma série de
123
questionamentos que, em última análise, refletem a psicologia de um sujeito em
crise: “Se eu soubesse, ao menos, o que estou procurando; o que todos estão
buscando” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 98). Desse modo, a busca da sombra
empreendida relaciona-se inequivocamente à instabilidade das identidades
representadas no contexto da sociedade moderna. Essa procura exterior pela
sombra perdida tem como correlato interior um movimento psicológico realizado pela
personagem na tentativa de encontrar a verdadeira essência de seu eu.
Sendo assim, a sombra é representada, no conto, como uma espécie de
desdobramento ou duplicação do eu, como símbolo da existência humana. Isso
justifica a relação de proximidade mantida com o “si” da personagem.
[…] As sombras são dependentes, fiéis, carentes, estimam a pessoa, se apegam. Sombras sofrem se, por alguma razão, se desligam dos corpos a que pertencem. Não sabem viver sozinhas, não sabem se adaptar a outros corpos. Vi um homem que tendo perdido a sombra, roubou uma. Só que o contorno da sombra era diferente do formado pelo corpo dele. Ficou muito estranho. Além disso, a sombra estava habituada a trajetos que o outro fazia e, às vezes o que roubou virava a esquina e a sombra continuava. Ele quase ficou louco. (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 106)
Nessa passagem, é nítida a relação estabelecida entre a sombra e o sujeito.
Ela é como que uma parte duplicada do eu e que, por essa razão, mantém uma
relação de proximidade para com este. É a projeção de um eu, o complemento
deste, sua outra face, e individualizada como esse eu, uma vez que assume a forma
e os contornos deste, não se adequando a outros indivíduos. Além disso, às
sombras são imputados certos sentimentos e a faculdade da memória – as sombras
roubadas conservam em sua memória trajetos percorridos pelo seu eu original.
Nesse sentido, verifica-se uma relação simbiótica entre homem e sombra,
representada, na narrativa, como muito mais do que simples fenômeno físico.
Entretanto, não é somente o sentimento da perda que torna a sombra
significativa para a personagem. A relação de proximidade estabelece-se
anteriormente a esse evento incomum, conforme confessa o narrador da história:
“Ninguém se dá conta se tem sombra ou não, a maioria pouco se importa. Parece
não nos dizer respeito, está ali, podia não estar. Ele não. Costumava contemplá-la
ao longo do dia, cheia de variações” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 96). Evidentemente,
quando da percepção de sua ausência, a sombra adquire importância ainda maior.
Parte natural, integrante de todo ser humano, sua falta transforma-se em
124
característica diferenciadora desse sujeito: seria um “sintoma grave”? Alguma
“doença”? A verdade é que o desaparecimento da sombra impactara-o
profundamente, muito mais do que outros acontecimentos de sua vida: “Sua vida
mudara mais no momento em que a sombra desapareceu do que quando a
aposentadoria compulsória caiu sobre ele” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 139).
A partir dessas considerações, que significados podem ser atribuídos à
simbologia da sombra no conto? Considerando o contexto moderno no qual a
narrativa foi produzida, que sentidos a perda da sombra e sua busca podem
adquirir?
Para tentar elucidar essas duas questões, considerar-se-á a sombra sob três
óticas, que, em todo caso, mantêm relações importantes com a arquitetura ficcional:
a primeira refere-se à simbologia da sombra ao longo das sociedades; a segunda
remete a uma visão da psicologia analítica, pautada nos postulados de Jung; a
terceira considera a sombra como motivo literário, tomando como referencia o teor
poético e metafórico da palavra no discurso narrativo, principalmente a partir do
século XIX.
Se se voltar ao texto bíblico, ver-se-á que a sombra precede a existência
humana: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia;
as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas” (Gn, 1:
1-2, p. 14). Nessa narrativa cosmogônica, as trevas estão associadas ao caos
primitivo: a terra encontrava-se vazia e amórfica. É a partir da palavra sacralizada de
Deus, do Verbo, que esse caos originário transforma-se em cosmos: “Deus disse:
‘Que exista a luz!’ E a luz começou a existir” (Gn, 1: 3, p. 14). À luz, Deus chamou de
dia e, às trevas, de noite, inscrevendo a dualidade no âmago da criação cósmica.
Há no conto, inclusive, uma referência a essa passagem bíblica, quando a
personagem interroga se os homens teriam nascido da sombra: “Vai ver, os homens
tenham nascido delas, porque quando o mundo ainda não existia, já havia a sombra,
ela era tudo, era o universo. Até que surgiu a luz, surgiu o homem e elas decidiram
que fariam parte desse mundo, de alguma forma” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 109).
Assim, enquanto na Bíblia a sombra pré-existe ao homem, no conto, a presença
dela, segundo palavras do protagonista, parece confirmar a existência humana: “A
sombra é a prova de que existimos” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 102). Em ambos os
casos, a sombra relaciona-se, de algum modo, com a existência humana,
precedendo-a ou confirmando-a. A partir disso, e também considerando outros
125
aspectos da simbologia da sombra, pode-se relacioná-la, portanto, ao primitivo, ao
sombrio, ao desconhecido, às trevas, em oposição à luz: “A sombra é, de um lado, o
que se opõe à luz; é, de outro lado, a própria imagem das coisas fugidias, irreais e
mutantes” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009, p. 842). Por fim, algumas
sociedades estabelecem relação de proximidade entre a sombra e o ser. O homem
primitivo considerava a sombra seu misterioso duplo, associando, desse modo, a
alma imortal à sombra. De igual modo, vários povos africanos consideram-na como
a segunda natureza dos seres e das coisas; e em diversas línguas indígenas da
América do Sul, uma mesma palavra significa sombra, alma e imagem.
Possivelmente, essa visão esteja implícita na crença tradicional de que o homem
que vende sua alma ao diabo perde, como consequência, sua sombra: “[…] por não
se pertencer mais, ele deixou de existir enquanto ser espiritual, enquanto alma”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 843).
Na psicologia, Jung, ao teorizar sobre aspectos constituintes da psique e da
personalidade humana, apresenta um conceito de sombra como oposto da
consciência: “A sombra é, por assim dizer, o ponto cego da natureza individual. É
aquilo que não se quer considerar sobre si mesmo”. (CAMPBELL, 2008, p. 99).
Desse modo, a sombra é aquilo que não é apreendido pela personalidade individual
e é por ela excluído. Nesse sentido, sob o signo da sombra se aglomeram todos os
elementos reprimidos pelo sujeito ao longo de sua formação enquanto ser social.
Complementando essa caracterização da sombra à luz da psicologia jungiana,
Campbell (2008, p. 99) acrescenta:
A sombra é aquilo que você seria se tivesse nascido do outro lado da linha do trem: o outro indivíduo, o outro você. Compõe-se dos desejos e das ideias que você está reprimindo – todo o id introjetado. A sombra é o aterro sanitário do self. Também é, porém, uma espécie de cofre: guarda dentro de você enormes potencialidades não realizadas.
Nessas duas visões da sombra, que englobam seu aspecto simbólico e
psicanalítico, observa-se uma complementaridade. Em ambos os sentidos, a sombra
é vista como relacionada ao primitivo e como oposta da luz (ou consciência).
Na literatura, a sombra aparece como motivo literário e assume configurações
próprias, muito embora sofra influência direta das duas outras dimensões do
conceito acima apresentadas. Moraes (2002) reconhece, na literatura oitocentista,
duas variantes desse motivo. Na primeira, verifica-se uma ênfase no encontro e na
126
confrontação com o duplo: “A sombra aqui representa uma extensão do eu que, uma
vez revelada, condena o indivíduo a um enfrentamento consigo mesmo fazendo-o
recordar, a todo instante, o destino trágico de sua condição” (MORAES, 2002, p.
101). Um exemplo dessa variante do motivo é a narrativa O médico e o monstro,
de Stevenson (2010). Na referida obra, a personagem Hyde aparece como espécie
de extensão do Dr. Jekill, ou seja, como seu contraponto inconsciente. A segunda
variante do motivo destaca a perda da sombra, tema tradicional de diversas lendas
europeias, dentre elas as sagas escandinavas (cf. MORAES, 2002). Diferentemente
da posição anterior, a sombra, embora se apresente também como uma extensão
do eu, separa-se de seu dono, adquirindo independência. Como exemplo, pode-se
citar a narrativa “A maravilhosa história de Pedro Schlemihl”, de Chamisso (1983).
Nesse texto, Pedro Schlemihl vende sua sombra a um desconhecido, em troca de
uma “inesgotável bolsa da fortuna”, e perde-a para sempre. A ausência de sombra é
interpretada pelo corpo social como signo de uma maldição, condenando esse ser a
uma vivência solitária e errante.
Partindo dessas considerações e tendo em vista o contexto moderno no qual
a narrativa é produzida, pode-se afirmar que a perda da sombra pelo protagonista e
sua busca angustiante por ela representam, na verdade, a procura pela verdadeira
essência do ser humano em um mundo cujas identidades se mostram instáveis,
numa referência à constituição fragmentária do eu. Essa interpretação pode ser
inferida pela combinação estabelecida entre diversas passagens da narrativa. De um
lado, pode-se mencionar o bordão de um locutor de rádio que o protagonista,
quando criança, costumava ouvir: “Ninguém sabe o mal que se esconde nos
corações alheios. O sombra sabe” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 105). Aqui,
estabelece-se claramente um jogo possibilitado pela dupla referência da palavra
“sombra”: numa interpretação mais literal, remete ao apelido do radialista; num plano
simbólico, pode remeter à sombra concebida como um estrato da psique humana ao
qual são relegados os impulsos e desejos incompatíveis com a ordem socialmente
estabelecida, denominados como “o mal que se esconde nos corações alheios”.
Desse modo, essa passagem, que, à primeira vista, pode parecer gratuita, confirma
a tese de Cortázar (2008), segundo a qual todos os elementos presentes no conto
são significativos e desempenham um papel previamente determinado. De outro
lado, verifica-se, na narrativa, um jogo semântico criado pela correspondência entre
o substantivo “sombra” e o adjetivo “sombrio”: “[…] conheço a vida, já vi o outro lado
127
do mundo, o aspecto sombrio do homem, sempre pronto a velhacarias” (BRANDÃO-
CBM, 2000, p. 107); “Melhor que elas [as sombras] sumam, assim desaparece o
lado sombrio da vida” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 148). Aqui, não se trata
unicamente da sombra compreendida como fenômeno físico. Impõe-se, portanto, a
necessidade de concebê-la também sob uma perspectiva mais ampla que considere
e explore todo o simbolismo a ela inerente. Ao representar também o lado sombrio
da existência humana, pode-se estabelecer uma nítida correlação com a sombra em
sua acepção psicológica, tal como postula Jung (2008). Em outra passagem da
narrativa, lê-se: “A sombra é luz morta” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 102). A imagem
criada pela caracterização da sombra como luz morta reflete, de modo inequívoco, a
acepção desse conceito no campo psicanalítico. Evidentemente, a luz está para o
conhecimento: “A luz sucede às trevas, tanto na ordem da manifestação cósmica
como na da iluminação interior” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 568). A
expressão “luz morta”, usada para definir a sombra, traz à tona o jogo de oposições
e contradições que se encontram na origem desse conceito psicanalítico: um
conjunto infindável de potencialidades inerentes ao sujeito humano, as quais,
entretanto, permanecem adormecidas nas obscuras camadas do inconsciente. Por
fim, a sombra é também considerada por outra personagem da narrativa como
representativa da sensação de vazio humano, numa possível referência ao lado
sombrio do ser humano: “Não tem importância. A sombra é o nosso vazio”
(BRANDÃO-CBM, 2000, p. 148). Não seria essa sensação de vacuidade justificada
pela existência de conteúdos psíquicos não assimilados pela consciência e que,
portanto, permanecem desconhecidos pelo sujeito?
No campo estritamente literário, o conto em análise filia-se à segunda variante
do motivo literário da sombra, conforme postulado por Moraes (2002), pois nele a
sombra não apenas se apresenta como uma extensão do eu, mas também adquire
independência como resultado de uma cisão operada no sujeito. Desse modo, tal
narrativa pode ser inserida no conjunto de uma tradição que estabelece diálogos
com outras narrativas produzidas em diferentes épocas. Dentre essas narrativas,
pode-se citar a já mencionada narrativa de Chamisso “A maravilhosa história de
Pedro Schlemihl”, que, segundo Moraes (2002, p. 101), precipita “[…] a criação de
várias [narrativas] com enredos semelhantes”. É o caso de “Aventuras da noite de
São Silvestre”, de Hoffmann (1983), e “A sombra”, de Andersen (1983). No primeiro,
Erasmo Spikher dá o seu reflexo para Giulietta. A perda do reflexo cai sobre ele
128
como uma maldição, sendo relegado pela sociedade e pela própria família. No
segundo, um ser conhecido como “o sábio” depara-se com uma situação inusitada:
certo dia, sua sombra desprende-se de seu corpo e desaparece. Depois de um
tempo, ela retorna, assumindo um corpo próprio. A sombra, agora corporificada,
convence o sábio a tornar-se sua sombra. Nessa inversão de valores, a sombra
casa-se com uma princesa e mata o sábio, que assumira a condição de sombra da
personagem sombra.
A recorrência de narrativas que tematizam a perda da sombra ressalta, pois, a
importância da inscrição desse motivo literário em diferentes épocas, permitindo ao
leitor analisar a narrativa como pertencente a uma tradição. Praticamente todas
essas narrativas inserem, inevitavelmente, o questionamento sobre a identidade no
interior do sujeito. A cisão operada por meio da separação entre o corpo e a sombra
é sempre sentida como a perda de uma parte importante e integrante do sujeito,
resultando numa diferenciação negativa em relação aos demais membros do corpo
social e, consequentemente, no enfraquecimento do sujeito. Entretanto, enquanto
nas demais narrativas a perda da sombra parece estar atrelada a uma atitude
consciente da personagem, no conto de Brandão tal evento insurge repentinamente,
surpreendendo inclusive o leitor. O acontecimento insólito desestabiliza o
protagonista da história, provocando uma reviravolta em seu cotidiano.
Diferentemente das demais narrativas, nas quais a perda da sombra é percebida por
todos, levando o sujeito portador dessa particularidade à completa exclusão das
relações sociais, a personagem desse conto de Brandão passa praticamente
despercebida em meio à massa de desconhecidos habitantes das cidades grandes,
ressaltando, com isso, a solidão vivenciada pelo homem moderno: “Ficou parado, as
pessoas passavam indiferentes, ninguém repara em nada” (BRANDÃO-CBM, 2000,
p. 99).
Desse modo, percebe-se que a temática da perda da sombra leva
inevitavelmente ao questionamento da real essência do sujeito, problematizando a
construção da identidade no contexto da contemporaneidade. Em determinada cena
do conto, o protagonista, referindo-se aos processos que julgara quando juiz,
questiona se estaria nos autos o verdadeiro homem, ou seja, o sujeito que rompeu
“[…] todos os limites, desprezou as normas que alguém algum dia, em alguma parte
remota, por alguma razão, estabeleceu, impondo preceitos, diretrizes, fórmulas,
regimentos e doutrinas para o viver?” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 156). A esse lado
129
escuro da natureza humana, verificada não só nos processos mas também
diariamente através dos noticiários dos meios de comunicação, Abrams e Zweig
(2000) denominam de “sombra coletiva”, ou seja, a maldade humana.
Embora a sociedade atual seja caracterizada por certa libertação do indivíduo,
no âmbito social e religioso, por exemplo, essa liberdade é apenas parcial. Em seu
texto O mal estar na civilização, Freud (1996b) já reconhecia que a civilização “[…]
é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais
felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”. Enquanto
organização coletiva, a sociedade moderna, em prol de uma estabilidade e baseada
num constructo social, dita o que é permitido ou não. Em virtude disso, muitos dos
desejos e potencialidades do eu, por não condizerem com as normas de convívio
social, acabam sendo reprimidos e excluídos para uma parte da psique, a fim de que
não tragam ameaças à estabilidade do sujeito e da sociedade. Essa é a reflexão que
faz a personagem em determinada passagem da narrativa:
A civilização não passa de fingimento, inibição. Os conceitos foram formulados para evitar que a humanidade se comporte como é, e deseja, e gostaria. Foram criados para nos tornar impotentes e angustiados. Por que nossas angústias […] nascem da incapacidade que sentimos em não poder matar, roubar, violentar, mentir, cagar na rua, mijar na mesa em que se come, cuspir na igreja, tocar cuíca no tribunal, escrever provas em neozelandês nas universidades, praticar todo tipo de sexualidade, não ter religião, pudor, consideração, decência. (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 157)
Verifica-se, no fragmento destacado, um ataque e uma crítica ferrenhos às
noções de civilização e moralidade que governam a vida em sociedade. Essa
reflexão alinha-se, em certo sentido, ao pensamento do influente filósofo alemão
Friedrich Nietzsche, no que se refere a sua postulação da transvaloração dos
valores, que visa a libertar o homem dessas amarras morais historicamente
construídas (cf. SANTOS, 2010). Contudo, embora reflita sobre essas ideias, a
personagem encontra-se ainda distante do “homem do futuro” ou “além-do-homem”,
a quem Nietzsche delega tal atitude.
Compondo esse quadro de crítica ao sujeito moderno, o narrador apresenta
um sujeito que “amava o vazio”: seu apartamento não tinha móveis e sua enorme
biblioteca era completamente vazia, à exceção de um livro volumoso sobre uma
cômoda – este, por sua vez, também em branco. Não seria essa a síntese do sujeito
atual, em que o apego dessa figura humana ao vazio remeteria, em última análise,
130
ao indivíduo humano esvaziado e dessubstancializado? A descrição da enciclopédia
em branco aponta indubitavelmente nessa direção: “‘Este é o primeiro volume. Obra
excepcional, sintetiza o pensamento universal, condensa o homem atual. Define a
mente da era globalizada’. […]. Folheei em busca de um texto. […] Nada, páginas e
páginas” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 150).
Desse modo, tanto o homem que perde sua sombra (esta entendida em sua
acepção psicanalítica, ou seja, como um estrato inconsciente da psique humana)
quanto o homem que amava o vazio podem ser concebidos, em sentido genérico,
como metáforas que ajudam a caracterizar o sujeito atual. Esvaziado de sentimentos
e emoções, por um lado, e podado pelas rígidas normas de convívio social, por
outro, eis a síntese do homem moderno que a leitura do conto permite inferir.
Na parte final da narrativa, especificamente quando o homem consegue
entrar no prédio onde morava a escritora Cristina Agostinho – e não a cientista
Cristina Agostino, que supostamente estudava sombras e parece não existir –, ele
percebe que havia um resquício de sua sombra e se pergunta: “Estaria voltando? Se
pudesse retê-la, ou quem sabe puxá-la, retirá-la dali, obrigá-la a se expor”
(BRANDÃO-CBM, 2000, p. 145). Esse acontecimento pode ser entendido como
indício de começo da descoberta da essência do eu, a qual se efetivará na parte
final do conto. No desfecho, o protagonista se vê imerso em uma atmosfera obscura
e inquietante: “Ele sabia e não queria ser aquilo em que tinha se transformado. Não
podia admitir. De modo algum” (BRANDÃO-CBM, 2000, p.163). Logo em seguida, o
narrador afirma: “Ele, o juiz, homem sem sombra era o escuro” (BRANDÃO-CBM,
2000, p. 163). É nesse contexto que acontece a fusão entre homem e sombra, o que
sinaliza a junção entre o eu e sua parte oposta: “E o juiz entendeu que, ao encontrar
a sombra perdida, incorporara-se a ela. Tornara-se sua própria sombra” (BRANDÃO-
CBM, 2000, p. 164). Nesse momento, além da fusão, há uma inversão hierárquica: o
eu, a princípio superior, é absorvido e passa a ser subjugado pela sombra.
Dessa forma, o encontro da sombra perdida simboliza, antes de tudo, a
descoberta da essência do sujeito. Nessa união, completa-se o processo de
individualização, assim como o postula Jung (2008), na medida em que o sujeito
assimila o outro como parte do eu, o que contribui para uma maior consciência da
totalidade de sua personalidade. Assim, o percurso realizado pelo ser ficcional ao
longo da narrativa pode ser compreendido como processo de aprendizagem e
conhecimento de si, que tem seu ápice na consecução da individualização.
131
Conforme destaca Cavalcanti (1997, p. 80), “Jung viu o confronto com a sombra,
seja sob que forma se apresente, e o desnudamento da persona, como a condição
básica inicial para o processo de individuação, para o encontro com o eu
verdadeiro”. No conto, o confronto da personagem com esse lado sombrio de sua
personalidade é simbolizado pela perda da sombra e a consequente procura
desencadeada. O sentimento de falta, resultado da cisão que separa o homem de
sua sombra, leva-o a um profundo questionamento de sua existência, induzindo
esse indivíduo a um maior conhecimento de si. Como decorrência desse processo,
verifica-se também um paulatino desvestimento da persona, ou seja, da imagem ou
máscara social sustentada pelo protagonista. Isso porque o juiz de direito, cuja
função profissional é determinar, através de suas sentenças, o destino de outras
pessoas, não é capaz, no âmbito de sua vida privada, de direcionar e controlar,
mesmo que parcialmente, seu próprio destino, subjugado que se encontra pelos
eventos incomuns que irrompem no seu cotidiano. Desse modo, o processo de
individuação é aqui caracterizado por um duplo movimento, indissoluvelmente
relacionado: de um lado, o confronto com a sombra; de outro, o desmascaramento
da persona.
Diante do exposto, pode-se concluir que a busca da sombra pelo protagonista
é, na verdade, a procura pela essência do sujeito com todas as suas
potencialidades. Considerando o ambiente burocrático no qual viveu imerso grande
parte de sua vida, ditado por regras e normas rígidas de convívio, percebe-se, nessa
procura angustiada realizada pelo protagonista, uma tentativa de libertação e de
resgate de um eu reprimido por essas normas sociais. Este conto permite, pois, uma
reflexão sobre o sujeito imerso nessa sociedade moderna, em que os indivíduos
cada vez mais se identificam com papéis sociais, relegando sua verdadeira essência
para partes obscuras da psique: “Nada como a ausência de sombra para nos obrigar
a pensar” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 142). Neste sentido, há, no conto, uma perfeita
caracterização do sujeito moderno, fragmentado e descentrado, cuja estabilidade e
coerência não encontram mais espaço. Dessa forma, o conto delineia o retrato de
um sujeito em crise, em constante atrito com o mundo no qual está imerso, cujas
ações e atitudes não se revestem de nenhum heroísmo sobre-humano: o heroísmo
é o do homem moderno em sua luta diária pela sobrevivência em uma sociedade
cada vez mais inóspita.
132
Além de permitir uma reflexão sobre a condição humana no contexto da
sociedade moderna, o conto apresenta críticas a alguns elementos que ajudam a
sustentar tal sociedade, a saber: a ciência, com sua pretensão de explicar todos os
fenômenos e fatos da existência humana e apresentar soluções para eles; as
normas e leis sociais, que encapsulam o sujeito e inibem sua liberdade criativa, o
desenvolvimento de suas potencialidades e a espontaneidade; a violência, quando
nem as sombras escapam da ação de ladrões. Nesse sentido, a partir de uma
literatura com inclinação para o fantástico, Brandão faz uma severa crítica à
sociedade moderna, que, de modo geral, não consegue apresentar respostas
satisfatórias para o sujeito. Isso pode ser inferido a partir do testemunho do próprio
narrador: “[…] há quinhentos anos não se dá, no Brasil, uma única resposta
satisfatória, concreta e inteligente a qualquer pergunta” (BRANDÃO-CBM, 2000, p.
154). Esse posicionamento desvela algumas das mazelas sociais e permite uma
reflexão sobre a realidade: “O real é a mentira na qual nos agarramos para não
sermos considerados loucos, para não nos internarem, nos retirarem do que
chamam sociedade. O real é impalpável” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 161).
Nesse conto, a sombra configura-se como o duplo da personagem. Essa
interpretação advém não apenas do simbolismo que a sombra adquiriu para o
homem ao longo dos tempos, mas, principalmente, pelo modo como o escritor
problematiza a relação entre o ser ficcional e sua ausência de sombra. A
proximidade e a intimidade entre o sujeito e sua sombra são reafirmadas inúmeras
vezes ao longo do conto: ela é apresentada, inclusive, como estabelecendo uma
relação única com o corpo que a projeta, ou seja, é individualizada, o que reforça a
ideia de complementaridade entre essas duas partes. Se, no plano físico, a sombra
é concebida como uma projeção, uma continuidade do sujeito; no plano simbólico –
mais especificamente em sua acepção psicológica –, passa a figurar como um
aglomerado de conteúdos psíquicos reprimidos, estabelecendo, portanto, a
dualidade entre o consciente e o inconsciente. Essa interpretação ganha
sustentação na narrativa pela frequente vinculação da sombra com o “lado sombrio”
da existência humana.
Assim, a cisão que estabelece a separação entre o protagonista da narrativa
e sua sombra revela uma relação dual há muito tempo já reconhecida pelo homem.
Essa cisão acaba deixando profundas e graves consequências para o sujeito, uma
vez que passa a ser portador de uma deformidade no plano físico que,
133
inevitavelmente, reflete-se também, e principalmente, na psicologia desse sujeito,
instaurando nele um conflito interior. O protagonista da narrativa de Brandão é
emblemático quanto a isso, pois, ao verificar que sua sombra desaparecera,
direciona toda a sua atenção e esforço para esse problema, na tentativa de
encontrar uma solução. Entretanto, como observa Moraes (2002, p. 101), a cisão
apresenta-se apenas como um primeiro estágio rumo à decomposição final: “[…] em
várias narrativas a perda da sombra sugere uma antecipação da morte […]”. A parte
final do conto não deixa claro o que realmente aconteceu com a personagem.
Entretanto, a fusão do homem com sua sombra sinaliza para uma nova etapa na
vida desse sujeito: “Estava iniciando uma viagem para o desconhecido absoluto”
(BRANDÃO-CBM, 2000, p. 164). O novo ser que nasce dessa experiência de fusão
com sua sombra pressupõe, ao menos no plano simbólico, a morte daquele
indivíduo cindido anterior. Seguindo a classificação de Bargalló (Apud LAMAS,
2002), tem-se, quanto à origem, um duplo por cisão. Em relação à tipologia de
Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), evidencia-se um duplo subjetivo, resultado
da confrontação da personagem com o seu outro, e externo, já que o duplo é
representado fisicamente pela sombra.
134
CAPÍTULO III - METÁFORAS DA DUALIDADE EM CONTOS DE LYGIA
FAGUNDES TELLES E IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO: UM ESTUDO
COMPARATIVO
Uma vez realizada a análise individual das narrativas selecionadas de Lygia
Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão, passa-se, agora, ao desenvolvimento
de um estudo comparativo desses textos. A comparação adentra neste trabalho
como um recurso analítico e interpretativo (cf. CARVALHAL, 2001), o qual
possibilitará melhor entendimento da natureza do duplo na literatura desses
escritores. Neste capítulo, a comparação se dará em dois níveis diferentes: (1)
considerando o universo formado pelos contos selecionados de cada escritor; (2)
colocando lado a lado as produções de Telles e Brandão. No primeiro, mediante as
análises dos contos dos dois escritores, procurar-se-á desenvolver generalizações
sobre a natureza da manifestação do duplo nas narrativas de Telles e Brandão. No
segundo, a partir dos resultados dessas análises, será realizada a confrontação
entre as representações do duplo em Telles e em Brandão, de modo a ressaltar
semelhanças e diferenças no modo de representação da identidade das
personagens. A comparação entre as narrativas desses escritores possibilitará
traçar – considerando as devidas limitações de qualquer estudo desse tipo,
principalmente pela quantidade limitada de narrativas analisadas – algumas
vertentes e direcionamentos que a representação do tradicional tema do duplo vem
adquirindo no contexto literário brasileiro na contemporaneidade.
3.1 Lygia Fagundes Telles
Conforme observando anteriormente, Silva (2001, p. 42) reconhece na
contística de Lygia Fagundes Telles uma recorrência de determinados temas,
imagens e símbolos, o que denomina de mitoestilo: “O mitoestilo caracteriza-se pela
insistência em um grupo restrito de temas que se repetem, pela recorrência de
certas imagens e situações e pela utilização de determinados artifícios de estilo e de
efabulação que têm a propriedade de reforçar o sentido mítico dos temas”. O
reconhecimento de determinadas constantes no conjunto de contos de Telles ajuda
a compreender as muitas semelhanças e dessemelhanças entre os contos “A
caçada”, “A mão no ombro” e “O encontro”. Similaridades dizem respeito não
135
somente ao plano temático, em que se verifica a representação da dualidade
humana e da consequente busca da identidade, mas também ao modo como
estruturas menores da narrativa repetem-se e organizam-se, criando a atmosfera
propícia que permite a confrontação da personagem com seu duplo. Desse modo,
considera-se que a temática da duplicidade presente nos contos de Telles encontra-
se organicamente imbricada aos demais elementos componentes da narrativa, o que
aponta para a necessidade de tratá-los em conjunto.
Nos três contos de Telles analisados nesta pesquisa, observa-se uma série
de elementos análogos que se repetem: personagens e certos artefatos que
compõem o espaço físico no qual as ações se desenvolvem, bem como
determinadas estruturas narrativas e situações. Estes não apenas antecedem a
confrontação do eu com seu duplo, como também contribuem de modo significativo
para a construção da atmosfera adequada na qual se efetua esse encontro. Apesar
disso, é importante pontuar algumas especificidades e variações desses temas
verificadas nas narrativas, de modo a compreender melhor a natureza do duplo na
literatura de Telles.
A figura do caçador é recorrente na literatura lygiana. Segundo Silva (2001, p.
47), “A presença do caçador […] surge nos contos de Lygia como imagem da morte
[…]”. A imagem do caçador aparece em “A caçada” e “A mão no ombro”. No
primeiro, o caçador é o responsável por desferir a flecha que acerta em cheio o peito
da caça. No segundo, é também um caçador que, com o gesto de colocar a mão
sobre o ombro do homem, anuncia-lhe a morte. Nesses dois casos, vê-se uma
mesma relação de poder que estrutura a ação das personagens, em que o caçador,
imbuído dos poderes da transcendência, domina a cena. Na mitologia grega, o arco
e a flecha, sob a posse do arqueiro Apolo, são as armas utilizadas para impor seus
desígnios sobre os destinos humanos. A possível relação entre o caçador e o
arqueiro Apolo permite o entendimento daquele como a manifestação de uma força
transcendental no conto “A caçada”, já que a posse desse armamento confere a
esse ser o poder sobre a vida da caça. No conto “A mão no ombro”, o caçador,
embora desprovido de qualquer armamento concreto e perceptível, também domina
todo o espaço e detém o poder sobre a personagem: o ato de colocar a mão no
ombro simboliza a posse sobre o objeto, no caso, sobre a vida do sujeito. Nessa
narrativa, a conexão do caçador com a transcendência é explicitada tanto pelo poder
conferido a esse ser ficcional quanto pelo fato de ele descer por uma escada para
136
anunciar seus desígnios – aqui, a escada estabelece a ligação entre os espaços
cósmicos.
Enquanto a figura do caçador parece dominar a cena nessas duas narrativas,
o duplo dos protagonistas representados pela caça, em “A caçada”, e pela
personagem do sonho, em “A mão no ombro”, assumem uma posição passiva, de
inferioridade e de submissão. Na primeira narrativa, a caça mostra-se impotente
ante o poderio de destruição representado pela flecha apontada para si. A imagem
de um São Francisco de mãos decepadas ajuda a compor o clima de impotência
daquele sujeito. Na segunda, a personagem sentada em um banco espera
passivamente a aproximação do caçador e o toque sobre o seu ombro.
No conto “O encontro”, não há explicitamente referência à figura do caçador.
Entretanto, algumas imagens ajudam a compor uma atmosfera que, de alguma
forma, revela a presença de uma força maior que impele a personagem a seguir um
caminho que a levará à destruição: o sol como um olho a espiar sobre uma nuvem,
em alusão ao “olho divino que tudo vê” (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009); a
aparente calmaria do ambiente, à qual se segue um “vento gelado” que acorda o
bosque; o encontro com uma teia de aranha, em que a aranha representa a criadora
cósmica e a teia, uma armadilha à espera de sua vítima – aqui é perceptível uma
referência, ainda que indireta, à bipolaridade caçador/caça, tão presente nos outros
dois contos acima mencionados. Nesse caso, a onipotência do ambiente,
possivelmente governado por um poder transcendente, contrasta, pois, com a
passividade da personagem em “O encontro”. Mesmo suspeitando dos perigos, ela
prossegue em sua caminhada rumo ao fatídico encontro consigo mesma. A posição
corporal dessa mulher, ao adentrar no local em que efetivamente acontece o
encontro, é exemplar quanto a isso, conforme se nota no trecho que segue: “[…] ia
de cabeça baixa e coração pesado, mas ia firmemente […]” (TELLES-OE, 1958, p.
18).
Além da repetição de determinadas personagens, observa-se na contística de
Telles a recorrência de determinados espaços e imagens. Quanto ao espaço, Silva
(2001, p.16) afirma que a prosa de Telles “[…] não se circunscreve aos estreitos
limites do aqui e do agora, mas transcende-os”. Nos três contos analisados neste
trabalho, essa característica peculiar da escritora revela-se através da presença de
um jardim, deslocado no tempo e no espaço – possivelmente, uma das imagens que
ela mais utiliza. Segundo Silva (2001, p. 46), o jardim representa, nos contos de
137
Telles, “[…] o lugar de regresso: a um tempo passado, a um estado de paz, à
inocência perdida. É ao mesmo tempo o Éden e o ventre materno, a selva e o
aprisco, é o lugar da revelação”. Os três contos referidos apresentam variações do
jardim primordial. É nesse lugar indeterminado, demarcador, em diversas tradições
religiosas, do início e do fim da vida, que acontece a grande revelação para as
personagens, momento no qual reconhecem o outro como parte do eu. Ademais,
outros elementos, atrelados à imagem desse jardim, contribuem para o simbolismo
aqui destacado: a presença da fonte nos contos “A mão no ombro” e “O encontro”,
que remete diretamente à simbologia da fonte da vida e do centro do mundo,
delineando, portanto, um lugar sagrado; o banco, também nos contos “A mão no
ombro” e “O encontro”, que configuram, segundo Silva (2001, p. 47), “[…] o instante
de repouso e o momento da revelação” – ambos os seres dos contos mencionados
passam por esse momento de reflexão que permite o reconhecimento do duplo; a
persistência do verde nos três textos, cor ambígua que, de acordo com Silva (2001),
representa tanto a juventude e a esperança quanto a decomposição, o que ajuda a
inscrever o tema da dualidade nas mais diversas camadas dos textos.
Do ponto de vista da estrutura da narrativa, podem-se destacar também
algumas semelhanças. Os três contos são narrados em terceira pessoa por um
narrador onisciente, o que possibilita a apresentação dos sentimentos e movimentos
íntimos da psicologia de cada personagem. Os protagonistas são seres anônimos,
privados da identidade jurídica conferida pela posse de um nome próprio e que,
repentinamente, veem-se enredados em situações insólitas, causadas pela
insurgência de acontecimentos incomuns. Em “A caçada”, a inusitada familiaridade
do homem com a cena representada na tapeçaria não apenas desinquieta-o, como
também o leva à procura de uma resposta que justifique essa relação de
proximidade. Em “A mão no ombro”, a curiosa experiência vivenciada pelo sujeito
em um sonho provoca uma reviravolta em sua vida ordinária, fazendo-o refletir sobre
sua existência. Aqui, a possibilidade da iminência da morte informada pelo sonho
leva a personagem a reavaliar sua vida, refletir sobre as relações consigo mesma e
com os outros, rompendo, portanto, com a automatização que governava sua vida
cotidiana. A narrativa “O encontro” já se inicia com a personagem se deslocando
para um local aparentemente desconhecido para ela, onde se realizará o encontro
final.
138
O enredo dos contos “A caçada” e “O encontro” seguem uma estrutura muito
parecida, já que o processo de rememoração e a progressiva identificação das
personagens constituem o fio norteador da trama. No conto “A caçada”, a cena
representada na tapeçaria ganha, paulatinamente, valor subjetivo para a
personagem, como é explicitada pela voz da vendedora da loja de antiguidades: “ –
Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado”
(TELLES-AC, 1974, p. 99). Isso ocorre, precisamente, pela progressiva identificação
desse ser com a tapeçaria, embora, num primeiro momento, desconheça o porquê
desse sentimento de proximidade: “Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria
assistido a essa mesma cena. E onde?…” (TELLES-AC, 1974, p. 100). De igual
modo, o caminho percorrido pela personagem em “O encontro” apresenta-se como
“estranhamente familiar”, pois afirma ser a primeira vez que pisa em tal lugar: “Tudo
aquilo – disso estava bem certa – era completamente inédito para mim. No entanto,
o quadro se identificava, todas as minúcias, a uma imagem semelhante que
irrompera das profundezas de minha memória” (TELLES-OE, 1958, p. 15). A
narrativa “A mão no ombro” difere da estrutura acima comentada, já que não há um
processo de rememoração conduzindo as ações e comportamentos do ser ficcional.
Também nas três narrativas, todos os fatos do enredo direcionam e preparam
o leitor para o encontro final das personagens com seus respectivos duplos. Nesse
percurso, elas deparam-se com diversas situações inquietantes e incomuns,
algumas das quais se configuram como prenúncio da morte. No conto “A caçada”, a
cor violeta – símbolo da involução, conforme Chevalier e Gheerbrant (2009) – que
escorre da folhagem e espalha-se pelo chão como um “líquido maligno”, atingindo
inclusive a touceira por traz da qual a caça se escondia, simboliza o envolvimento
desse ser pela atmosfera mórbida e atua como um prenúncio de acontecimentos
futuros. O conto “A mão no ombro”, além da aproximação do caçador descendo
pelas escadas, apresenta outras referências à futura morte do protagonista: as
lembranças de infância que emergem no sonho, relacionadas às festividades da
Semana Santa, especificamente, à procissão com o Senhor morto; a morte de um
trapezista a qual presenciara quando criança. Essas imagens que evocam a morte,
juntamente com aquelas que parecem configurar um ritual de despedida – fumar um
último cigarro e afagar o cachorro que apresentava “uma alegria cheia de saudade”
–, ajudam a compor o clima de prenúncio de sua morte. Em “O encontro”, o
presságio da morte da protagonista é indicado por uma série de pistas lançadas ao
139
longo da narrativa. Em primeiro lugar, pode-se mencionar a sensação íntima de
perigo que toma conta da personagem no seu percurso rumo ao encontro final. Em
segundo, a simbologia que emerge das imagens da teia com a aranha ao centro e
do pássaro que passa num “voo atribulado” e solta “um grito dolorido”. A aranha com
a teia pode, no plano metafórico, representar a “cilada” na qual a personagem
progressivamente se enredava com sua obstinação de prosseguir a caminhada. Já o
grito “dolorido” que emana do pássaro apresenta-se como um alerta de que
acontecimentos também doloridos estariam por vir. Em terceiro, o ritual de
despedida que também parece, inconscientemente, tomar conta da figura feminina,
assim como acontece com o protagonista da narrativa “A mão no ombro”.
Apesar desses avisos, representados pelas mais diversas situações que
atuam como prenúncios da morte, as personagens dos três contos parecem estar
irremediavelmente presas a um destino pré-determinado, impossibilitadas, portanto,
de escapar das situações em que se enredam. Ademais, nos contos “A caçada” e “O
encontro”, verifica-se não somente a inevitabilidade do destino, mas também um
sentimento profundo que impulsiona e motiva as personagens a prosseguirem e
desvendarem o mistério da identificação esboçada desde o início. A partir do
desfecho dessas duas narrativas, em que se efetiva o encontro entre a personagem
e seu duplo, pode-se conceber essa força interior como símbolo de uma busca por si
mesmo, ou seja, por sua verdadeira essência e identidade, deixadas em um
passado indeterminado.
Entretanto, tentativas de fuga são esboçadas nas três narrativas. Em “A
caçada”, essa busca de evasão se inscreve em três passagens: (1) quando o
homem tenta se afastar fisicamente da tapeçaria, de modo a evitar o fascínio que
esse objeto desperta nele – “Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida
e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado
na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo” (TELLES-AC, 1974, p. 102);
(2) no momento em que se inicia a conjunção entre o espaço da loja de antiguidades
e a cena representada na tapeçaria, e quando a personagem tenta
desesperadamente agarrar-se a um armário como forma de evitar o confronto final;
(3) na cena em que, identificado com a caça, tenta fugir da mira do caçador,
escondendo-se por trás de uma touceira – “Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu
o assobio da seta varando a folhagem, a dor!” (TELLES-AC, 1974, p. 103).
Entretanto, não obtém êxito em nenhuma das três tentativas de fuga empreendidas.
140
Em “A mão no ombro”, a personagem tenta por duas vezes fugir do encontro com a
morte: na primeira, imersa em seu sonho e visualizando a iminência do toque do
caçador sobre o seu ombro, consegue exitosamente acordar e, portanto, adiar tal
confronto – “Preciso acordar, ordenou se contraindo inteiro, isso é apenas um
sonho! Preciso acordar! acordar. Acordar, ficou repetindo e abriu os olhos” (TELLES-
MO, 2009, p. 109); na segunda, frustrada, procura usar do mesmo estratagema
quando, sentindo o jardim do sonho fundir-se com o espaço imediato em que se
encontrava, adormece para enganar a morte pela “porta do sono” – “Preciso dormir,
murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-cinza, viu que retomava
o sonho no ponto exato em que fora interrompido. A escada. Os passos. Sentiu o
ombro tocado de leve. Voltou-se” (TELLES-MO, 2009, p. 114). Na narrativa “O
encontro”, a possibilidade de fuga e de controle da situação se inscreve por duas
vezes: primeiro, através do conflito que se verifica na psicologia da personagem,
representado pelo confronto entre a razão e a emoção – “‘Vá-se embora, depressa,
depressa!’ – ordenava-me a razão, enquanto uma parte mais obscura de meu ser,
mergulhada numa espécie de encantamento, se recusa a voltar” (TELLES-OE, 1958,
p. 16); segundo, por meio da ação frustrada da personagem de segurar as rédeas
do cavalo montado pela amazona, numa clara intenção de assumir o controle da
situação.
Nas narrativas analisadas, todas as possibilidades de fuga visualizadas pelas
personagens mostram-se fracassadas e frustradas, com exceção da ação exitosa do
protagonista do conto “A mão no ombro” que consegue adiar, mas não evitar, o
confronto com a morte. Esses comportamentos podem ser explicados pelo temor da
destruição do ser ocasionado pela iminência da morte: “O homem recusa-se a ver
na morte o destino natural de todos os seres vivos. A consciência da própria morte
aguça-lhe o desejo de perdurar, tanto em sua existência aqui e agora como em
algum outro lugar, além da vida” (SILVA, 2001, p. 185).
Nos três textos, o confronto entre personagens e duplos realiza-se graças à
fusão que se observa entre a realidade imediata e um jardim (ou suas variações,
como o bosque, por exemplo), suspenso espacial e temporalmente. Como resultado
dessa conjunção, cria-se na narrativa uma indeterminação que rompe abruptamente
com a concretude do contexto sócio-histórico imediato. No conto “A caçada”, a fusão
entre a realidade imediata do ser de ficção e o espaço representado na tapeçaria se
processa na parte final da narrativa, quando se realiza a identificação e o confronto
141
do homem com seu duplo: “Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e
terra, de onde vinha aquele cheiro? […] estendeu os braços até a coluna. Seus
dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era
uma coluna, era uma árvore!” (TELLES-AC, 1974, p. 103). É notável aqui a
ambivalência presente no discurso do narrador: é o espaço da tapeçaria que invade
o contexto imediato da personagem, ou é esta que adentra no espaço representado
na tapeçaria? Ou seriam os dois ao mesmo tempo, indecidivelmente? Na narrativa
“A mão no ombro”, há exatamente a repetição dessa mesma estrutura, representada
pela fusão entre o espaço imediato da personagem, que se encontra em seu carro, e
o jardim onírico presente no sonho da noite anterior: “Entrou no carro, ligou o
contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recusando-se a obedecer. […] Fechou
o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse perfume de ervas úmidas?”
(TELLES-MO, 2009, p. 112-113). No conto “O encontro”, verifica-se semelhante
resultado, ou seja, o confronto com o duplo se realiza na estrutura da narrativa
graças à fusão dos espaços, pondo numa mesma dimensão espacial
representações de um mesmo sujeito em momentos temporais diversos. Entretanto,
neste conto, a fusão já está efetivada desde o início da narrativa, diferentemente do
que acontece nos dois anteriormente discutidos.
A indeterminação espaço-temporal, resultado da fusão entre o contexto
imediato das personagens e o jardim (ou o bosque), permite um interessante jogo
entre o passado, o presente e o futuro nas três narrativas analisadas. Segundo Silva
(2001, p. 16), nas narrativas de Telles constata-se um frequente jogo entre
temporalidade e atemporalidade: “Temporalidade e atemporalidade permutam-se,
intercambiam-se num jogo que mescla fragmentos do passado com o presente,
sobre o fundo sempre lembrado da inexorabilidade da morte e de seus mistérios”.
Em “A caçada” e o “Encontro”, o passado e o futuro se unem num presente,
indecidivelmente. Nesses contos, alguns fatos do enredo apresentam-se como
acontecimentos já vivenciados em outro momento. A repetição dessas ações
assume uma dupla filiação: de um lado, conectam-se ao passado, uma vez que
pertencem ao leque de experiências já vivenciadas – “[…] ah, essa madrugada!
Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirara aquele mesmo vapor que
baixava denso do céu verde…” (TELLES-AC, 1974, p. 101); de outro, estabelecem
uma conexão com o futuro, pois a repetição das ações permite antecipar e prever
acontecimentos futuros, visto que já se conhece a sequência dos acontecimentos –
142
“‘Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio’. E cheguei a sorrir, entretida com
aquele curioso jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com
tufos de erva brotando na raiz da fenda” (TELLES-OE, 1958, p. 17). Ademais,
embora se procure estabelecer nessas duas narrativas um distanciamento entre o
passado e o presente, a partir da tentativa de enquadrar o presente como o reviver
de um passado longínquo – em “A caçada”, a tapeçaria está impregnada de poeira,
metáfora da passagem do tempo, e não aguentava a mais leve escova; em “O
encontro”, a amazona usava um traje antiquado, parecendo a figura de um “antigo
álbum de caçada” –, a repetição do passado no presente aproxima paradoxalmente
essas duas esferas temporais. Já no conto “A mão no ombro”, o sonho do
protagonista configura-se como um liame ou negociador entre fatos do passado e do
futuro: o primeiro manifesta-se pela afloração de lembranças da infância da
personagem (procissão da Semana Santa, morte do trapezista, brincadeiras com o
pai); o segundo, pelo clima de prenúncio da morte do protagonista que se instaura
na narrativa, simbolizado pelo temido, mas inevitável, toque no ombro.
Verifica-se também nos três contos uma cuidadosa preparação das
personagens e do ambiente que as circunda para o momento capital do enredo, que
é o confronto com o duplo. Nos contos “A caçada” e “O encontro”, a parte final da
narrativa marca o momento em que os protagonistas, num lampejo repentino,
reconhecem o presente como reviver de um passado. É aqui também que se efetiva
a identificação completa entre o sujeito e seu duplo: em “A caçada”, a caça assume
a função de duplo, enquanto em “O encontro” tem-se a amazona como o duplo. Há,
portanto, o reconhecimento do outro como parte do eu: o outro é, na verdade, o eu,
só que deslocado no tempo. Essa cena final cria um efeito de sentido para o
inquietante processo de rememoração vivenciado pelas personagens ao longo
dessas duas narrativas, confirmando, pois, a tese de Poe de que o desfecho deve
governar todo o andamento do conto. Já em “A mão no ombro”, não se observa um
processo progressivo de reconhecimento e identificação tal qual discutido acima, por
não se tratar de um reviver do passado no presente. Entretanto, assim como nos
demais textos, o confronto com o duplo se manifesta de forma mais evidente
também na cena final, quando acontece a fusão entre os espaços.
Nas três narrativas, nota-se também a persistência da temática da morte
atrelada à manifestação do duplo. De acordo com Lamas (2002), a morte é um dos
mais importantes domínios da representação do duplo, pois insere no âmago do
143
sujeito o medo da destruição do ser. Desse modo, o duplo aparece como um
conforto e uma forma de driblar esse perigo, ao perpetuar a existência desse sujeito
em outros planos. Essa parece ser uma temática recorrente na literatura de Telles,
conforme afirma Lamas (2002, p. 259): “O questionamento em torno da vida e da
morte, apoiado pela questão da temporalidade, constitui-se em um de seus grandes
núcleos temáticos”. Nos contos de Telles aqui analisados, verifica-se nítida conexão
entre o duplo e a morte, já que a confrontação com o duplo é, também, um encontro
com a morte. Em “A caçada” e “O encontro”, os sujeitos visualizam diante de si uma
cena dolorosa vivenciada no passado: no primeiro, o homem, identificado com a
caça, é atingido pela flecha desferida pelo caçador; no segundo, a amazona, duplo
da personagem, precipita-se num abismo. Em “A mão no ombro” a iminência da
morte é informada à personagem no sonho, estando, portanto, indissoluvelmente
ligada à representação do duplo. Apesar das variações observadas, nas três
narrativas os seres parecem condenados à morte, dada a impossibilidade de
evadirem-se das situações que conduzem a ela.
De acordo com a classificação de Bargalló (Apud LAMAS, 2002), existe, nos
contos “A caçada” e “O encontro”, o duplo por fusão: reconhece-se uma unidade
entre personagem/caça e personagem/amazona, respectivamente. No conto “A mão
no ombro”, o duplo manifesta-se graças a uma cisão operada no sujeito, dividindo-o
entre o eu sonhador e o eu personagem do sonho. Segundo a tipologia proposta por
Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), verifica-se nos três contos analisados um
duplo subjetivo, já que todos são resultados da duplicação do próprio sujeito. Esse
duplo é interno em “A mão no ombro”, pois não assume forma física exterior, e
externo em “A caçada” e “O encontro”, já que adquire forma física, representada,
respectivamente, pela caça e pela amazona.
Entretanto, o tema da dualidade nesses contos não se encontra restrito
unicamente ao plano da composição das personagens. Ao contrário, ele se
manifesta em toda a arquitetura ficcional, o que ajuda a compor a atmosfera de
indeterminação verificada nessas narrativas. Nos três contos de Telles, a irrupção do
jardim quebra com a ordem racional cotidiana, instaurando dualidades insolúveis nas
narrativas: vida e arte em “A caçada”; sonho e vigília em “A mão no ombro”;
realidade concreta e espaço mítico do bosque em “O encontro”. Ademais, nos
contos “A caçada” e “O encontro”, os polos opostos presente/passado,
memória/esquecimento e estranho/familiar apresentam-se organicamente
144
imbricados na narrativa, compondo, de modo orgânico e sintonizado, a construção
do tema da dualidade.
Por fim, é importante ressaltar a íntima relação estabelecida, nas três
narrativas analisadas, entre o duplo e o discurso fantástico. Conforme demonstrado
anteriormente, o fenômeno da duplicidade materializa-se nessas narrativas por meio
do confronto entre personagem e seu duplo. No plano narrativo, esse encontro se
realiza por meio da conjunção dos espaços que põe lado a lado duas
representações de um mesmo sujeito em dimensões temporais diferentes: em “A
caçada”, o homem, identificando-se com a caça, vê-se inesperadamente dentro do
ambiente representado na tapeçaria; em “O encontro”, existe a mesma estrutura,
resultado da confrontação da personagem com uma representação de si mesma em
outro plano temporal; no conto “A mão no ombro”, as imagens oníricas não só
adentram no contexto imediato da personagem, como se fundem e confundem-se
com a realidade. Apesar da estranheza que esses episódios possam causar no leitor
num primeiro momento, tais fatos tornam-se aceitáveis e críveis graças à coerência
interna que adquirem no contexto narrativo. Desse modo, o duplo e o fantástico
nessas três narrativas encontram-se organicamente imbricados: os enredos
apresentam-se como verossímeis graças às infinitas possibilidades abertas pelo
discurso fantástico na literatura.
3.2 Ignácio de Loyola Brandão
Os contos de Brandão analisados nesta pesquisa foram “A mão perdida na
caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”, ambos publicados na
coletânea O homem que odiava a segunda-feira: as aventuras possíveis (1999).
Os dois contos citados apresentam importantes semelhanças quanto à estrutura
narrativa e à temática abordada. Isso se explica não apenas porque os textos
pertencem ao mesmo autor, mas também pelo fato de os dois contos estarem
reunidos em uma mesma coletânea e, em certo sentido, conectados à ideia geral
expressa no título da obra, que atua como força aglutinadora dessas “aventuras
possíveis” narradas ao longo de mais de cento e sessenta páginas. É assim que
Antunes (2000, p. 257) apresenta, em linhas gerais, a coletânea de contos de
Brandão: “[…] por baixo desse mau-humor incurável, desse horror às segundas-
feiras, desse horror a tudo, que vai perpassar todas as falas e reflexões dos
145
personagens destes quatro contos e uma quase-novela, há inúmeras aventuras
possíveis”.
Ambos os contos são narrados em terceira pessoa, por um narrador
onisciente que tem acesso livre aos pensamentos e movimentos psicológicos das
personagens. As ações dos contos são ambientadas no contexto da cidade grande
e, graças à mobilidade dos seres nesse espaço, é permitida ao leitor, ainda que de
modo limitado e fragmentado, a visualização dos contrastes inerentes à sociedade
moderna.
O protagonista de cada uma das narrativas é do sexo masculino: em “A mão
perdida na caixa do correio”, há um escrevente de cartório de meia idade que já
visualiza a proximidade da aposentadoria; em “As cores das bolinhas da morte”,
trata-se de um juiz também de meia idade e aposentado compulsoriamente. Os dois
protagonistas comungam de uma existência pacata e solitária, já que foram
abandonados por suas esposas: o escrevente foi trocado pelo dono de uma
locadora de vídeo; o juiz teve sua separação provocada devido a fantasias sexuais
que nutria com as juradas.
As duas narrativas têm início no exato momento em que cada uma das
personagens se depara com uma situação insólita. Em “A mão perdida na caixa do
correio”, o escrevente vai depositar um envelope numa caixa de correio e,
inesperadamente, vê sua mão cair dentro dela. O inusitado da amputação do
membro é exatamente o modo não habitual com que ela se processa: “Não sentiu
dor. Nem o mais leve comichão. A mão simplesmente se desprendeu, como se
estivesse presa por parafusos frouxos” (BRANDÃO-MPCC, 2000, 27). O fragmento
acima transcrito dispensa qualquer comentário sobre a natureza estranha do evento.
Em “As cores das bolinhas da morte”, a narrativa também se inicia no exato
momento em que a personagem se apercebe da perda de sua sombra: “Olhando
para o chão, não viu a sua sombra. Estremeceu” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 95).
Nos dois contos, o acontecimento insólito inscreve-se em meio à realidade cotidiana
dos sujeitos, estabelecendo uma ruptura em sua rotina. Embora os desestabilizem,
os fatos são apresentados de forma bastante natural pelo narrador. Assim,
diferentemente de outras narrativas, em que se cria uma atmosfera mística na qual
um fenômeno fantástico se inscreve, nesses dois contos de Brandão o insólito
parece brotar com naturalidade da concretude sócio-histórica do contexto imediato
das personagens. Esses eventos incomuns (a perda da mão e a perda da sombra)
146
assumem importância capital nas narrativas, já que se configuram como os
acontecimentos principais dos enredos, a partir dos quais todas as demais ações
desdobram-se, estando, portanto, conectadas a tais fatos direta ou indiretamente.
Seguindo a tendência apresentada pelo título da coletânea, os dois
acontecimentos insólitos se realizam numa segunda-feira (apesar de no conto “As
cores das bolinhas da morte” os indícios da perda da sombra serem percebidos
anteriormente pelo juiz, é somente numa segunda-feira, quando o sol reaparece
depois de períodos nublados e de céu fechado, que tal suspeita se confirma).
Conforme destacado nas duas análises anteriores, esse dia da semana é
representado pela Lua, que, por sua vez, evoca um simbolismo particularmente
interessante para os propósitos dessa análise: (1) a relação de dependência para
com a luz do sol; (2) as diferentes fases e formas assumidas pela Lua. Nos dois
contos em análise, as personagens parecem extremamente dependentes das partes
do corpo perdidas, tal qual a lua necessita da luz solar para brilhar. De igual modo,
ao caráter mutante da lua relaciona-se o processo de reconhecimento e, portanto,
de mudança, verificados no comportamento desses seres ao longo das duas
narrativas.
Ao narrar o exato momento em que a personagem experiencia uma perda, os
dois contos dão foco à saga empreendida por ela para recuperar sua parte faltante.
Nessa busca, ambos os indivíduos passam por situações incomuns parecidas,
muitas delas resultado do confronto entre o racional e o irracional. A irrupção do
acontecimento insólito no cotidiano mostra-se particularmente interessante pela
quebra que se instaura na rotina dos seres envolvidos, já que ambos estão ligados a
ambientes burocráticos, regidos pela racionalidade e por rígidas normas de convício
social: em “A mão perdida na caixa do correio”, trata-se de um escrevente de
cartório; em “As cores das bolinhas da morte”, de um juiz aposentado. Apesar disso,
os sujeitos dos dois contos apresentam-se de tal forma enredados nos sucessivos
acontecimentos excepcionais que chegam a protagonizar situações que beiram o
ridículo. O que pensar do diálogo entre o homem que perdeu a mão na caixa do
correio e o atendente dos correios, que faz perguntas idiotas? Essa mesma cena
repete-se no conto “As cores das bolinhas da morte” quando da conversa entre o
homem sem sombra, que procurava pela cientista Cristina Agostino, e o atendente
da universidade, que o aconselha a consultar uma psicóloga.
147
Ademais, nos dois contos, a vivência da perda de uma parte do corpo
considerada importante pelos sujeitos envolvidos desencadeia uma busca externa
que tem como correlato interior a problematização da própria identidade do sujeito,
através de questionamentos sobre a condição existencial humana na sociedade
moderna. No conto “A mão perdida na caixa do correio”, o momento em que a mão
se desprega do braço e cai dentro da caixa do correio é bastante representativo: “O
toco de braço mostrava artérias, veias, músculos e terminais de ossos limpos, secos.
Pareciam microtomadas, nas quais se encaixavam os plugues da mão” (BRANDÃO-
MPCC, 2000, p. 27). Nessa passagem, podem-se destacar dois aspectos principais.
Em primeiro lugar, a inexistência de sangue, considerado a seiva da vida, aponta, no
plano físico e biológico do termo, para a falta de fluxo de vida no membro e, no plano
simbólico, para o estado de vida degradante ao qual esse sujeito estava submetido.
Em segundo lugar, a comparação das artérias, veias etc. com microtomadas
apresenta-se particularmente interessante no contexto da contemporaneidade, dada
a influência que os artefatos tecnológicos desempenham na vida diária. Aqui, a
imagem da robotização do homem pode ser entendida como uma hipérbole que
reflete o caráter mecânico e automático que impera nas relações sociais. Assim,
concebendo a mão como representação metonímica do duplo da personagem,
visualiza-se, na busca empreendida para recuperar essa parte faltante, um processo
de resgate e reconhecimento da identidade do próprio sujeito.
A perda da sombra no conto “As cores das bolinhas da morte” também aponta
para um estado de vida degradante do sujeito. Ao longo dessa narrativa, a
personagem atesta inúmeras vezes a conexão entre o homem e a sombra, sendo
esta, inclusive, considerada como condição para a existência humana. Do ponto de
vista psicológico, a sombra é concebida como um estrato da psique no qual se
aglomera o conjunto de conteúdos não assimilados pela personalidade, tratando-se,
pois, de uma potencialidade latente. Admitindo-se o simbolismo da sombra, não se
pode considerar, pois, sua ausência como uma metáfora do esvaziamento do
sujeito, do ceifar de sua vida? Essa interpretação se tornará mais contundente no
decorrer da narrativa, quando se estreitam os laços entre o eu e o outro (a sombra).
Também nesse conto de Brandão, os questionamentos existenciais afloram com
maior vigor a partir da oposição que se estabelece entre essas duas faces contrárias
da personalidade. Assim, problematiza-se, principalmente, a tensa e conflituosa
148
relação entre sujeito e sociedade no processo de constituição da identidade
individual.
Nos dois textos aqui analisados, observa-se, pois, que a parte do corpo
perdida assume a configuração de duplos desses sujeitos. Além dos elementos
simbólicos já destacados acima, acrescenta-se a importância que tanto a mão
quanto a sombra apresentavam para tais indivíduos. A mão é símbolo por
excelência de atividade, poder e dominação. Na condição de escrevente, o
protagonista de “A mão perdida na caixa do correio” dependia diretamente desse
membro para o desempenho de suas atividades laborais. Num plano místico, a mão
continha também as “linhas de sua vida”, o que permite compreender esse membro
como representação metonímica da vida da personagem. Desse modo, o impacto
causado em sua rotina quando da perda da mão na caixa do correio é diretamente
proporcional à importância que esse membro desempenhava em sua vida: “A mão.
Percebeu que tinha rodado horas, procurando se distrair com o impacto da perda.
Era um estranhamento muito grande. Nem quando a mulher o tinha deixado para se
juntar ao dono de uma locadora de vídeos tinha sentido tanto” (BRANDÃO-MPCC,
2000, p. 41).
De igual modo, a perda da sombra no conto “As cores das bolinhas da morte”
apresenta-se como um trágico acontecimento que quebra a rotina do sujeito.
Interessante perceber que esse sujeito também demonstrava certa afeição pela
sombra anteriormente ao evento que acarretou a perda dela: “Ninguém se dá conta
se tem sombra ou não, a maioria pouco se importa. […] Ele não. Costumava
contemplá-la ao longo do dia, cheia de variações” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 96).
Obviamente, a ausência da sombra intensifica o interesse antes demonstrado.
Ademais, pode-se mencionar a relação íntima existente entre a personagem e sua
sombra: “Gostava dessa ideia. A sombra a segui-lo. Fosse para onde fosse. Estava
com medo de constatar que ela faltava” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 99). Nesse
contexto moderno, em que se vivencia com extrema angústia a solidão, a sombra
parece significar muito mais do que simples reflexo projetado no chão, conforme fica
demonstrado em outra passagem da narrativa: “Pois eu ia ficá chatiado sem ela [a
sombra], é a única amiga qui tenho” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 123). Por fim, os
contornos simbólicos e psicológicos atrelados à concepção de “sombra”,
principalmente pela teoria de Jung, que a concebe como um estrato da psique do
149
sujeito, ajuda a consumar essa relação dupla que se manifesta entre a personagem
e a sombra perdida.
Nos dois contos, o fenômeno da duplicidade opera-se através de uma cisão
imposta às personagens. Essa cisão instaura um processo de busca pela parte
faltante, o que, num plano metafórico, aponta para a procura da verdadeira
identidade do sujeito em um mundo burocratizado e governado por rígidas normas
de conduta e de comportamento que inibem a liberdade individual em prol de um
suposto bem-estar coletivo. Para Chevalier e Gheerbrant (2009), a mutilação
assume valor simbólico de iniciação. Nas duas narrativas, essa iniciação é
representada pelos questionamentos existenciais instaurados no interior dos sujeitos
em razão da perda, o que os leva a uma melhor compreensão de si e do mundo a
sua volta. Assim, embora o intervalo entre a cisão e o desfecho da narrativa, que
resulta na morte dos dois sujeitos, seja curto, pode-se compreendê-lo como o início
de uma jornada (não completada) rumo à individuação. Assim, a cisão exterior,
verificada devido à perda da mão e da sombra, reflete, no plano subjetivo, um
esfacelamento interior desses sujeitos, expressão da instabilidade psíquica e de
uma crise de identidade.
Dessa forma, pode-se concluir que a busca da mão e da sombra nos contos
“A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas da morte”,
respectivamente, remete à procura do duplo especular que permite ao sujeito
diferenciar-se e reconhecer-se como uma individualidade. São pessoas cujas
identidades correspondem e obedecem a demandas sociais e que, para tanto,
negam e reprimem determinados conteúdos psíquicos numa tentativa de aceitação
no meio social. A busca da mão e da sombra revela, simbolicamente, a procura pela
verdadeira natureza e essência do ser, o resgate e o desenvolvimento das
potencialidades do sujeito que o guiam no caminho de sua individuação. Nesse
percurso, os elementos mão e sombra funcionam como espécie de espelho, pois, ao
configurarem o outro das personagens, fornecem a imagem especular que, no nível
psicológico, permite a confrontação com o duplo e a construção de uma identidade
autêntica. Essa procura pela individualidade e pela diferenciação contrasta, pois,
com os movimentos de massificação no processo de construção identitária e de
dessubstancialização do sujeito humano verificadas no contexto atual, as quais
acabam por igualar os sujeitos pela impossibilidade de expressão de suas
potencialidades. Portanto, a perda da mão e da sombra nos contos de Brandão
150
desperta as personagens, que pareciam viver no que Cavalcanti (1997, p. 214)
define como escravidão psíquica: “A escravidão psíquica significa funcionar segundo
a expectativa do outro, numa tentativa de adaptação, negando a verdadeira
essência e excelência […]”.
Nas duas narrativas, a confrontação do sujeito com a duplicidade é uma
experiência que leva à morte: a busca pela parte cindida conduz irremediavelmente
ao confronto com a morte. Em “A mão perdida na caixa do correio”, existe, em meio
a outras tantas, a situação absurda em que o protagonista é estrangulado e morto
por um funcionário da repartição dos correios. A motivação do assassinato – o medo
do funcionário de perder seu emprego – revela, em última instância, a precariedade
das relações humanas num mundo em que o individualismo se sobrepõe e subjuga
o conceito de coletividade. Em “As cores das bolinhas da morte”, o reencontro e a
fusão com a sombra representam um momento repleto de significados para o juiz, já
que torna possível a reintegração entre o eu e o outro. Essa fase demarca uma
morte ao menos no plano simbólico, uma vez que o sujeito que emerge desse
confronto diferencia-se do ser anterior cindido, que estava à procura de sua sombra.
De acordo com as categorizações do duplo apresentadas por Bargalló (Apud
LAMAS, 2002), há, nos dois contos de Brandão analisados, o fenômeno da
duplicidade como resultado de uma cisão imposta ao sujeito. É graças a isso que a
mão e a sombra passam a assumir a função de duplo das personagens. Seguindo a
tipologia proposta por Jourde e Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), verifica-se, nas
duas narrativas, o duplo subjetivo, já que se trata da duplicação do próprio sujeito, e
externo, uma vez que o duplo adquire uma forma física exterior representada pela
mão e pela sombra.
Nota-se, pois, que a manifestação do duplo nas duas narrativas de Brandão
está intimamente relacionada às infinitas possibilidades abertas pelo discurso
fantástico. Em função disso, torna-se crível para o leitor a história de um ser que,
inesperadamente, vê sua mão despregar-se do braço e cair dentro de uma caixa de
correio, e de um outro que visualiza a perda de sua própria sombra. Aqui, é a própria
concepção de realidade que é questionada, uma vez que o acontecimento incomum
irrompe dessa mesma realidade. Desse modo, o fantástico não é estranho à vida
diária dos sujeitos, mas brota dela, desestabilizando-a.
Além de permitir o fenômeno da duplicação, o fantástico abre também
espaço, nas narrativas de Brandão, para a crítica a determinados aspectos da
151
sociedade atual. Dentre esses, um merece atenção especial pela recorrência com
que aparece nas duas narrativas e pela importância que desempenha na construção
da trama narrativa: o conceito de racionalidade, aqui incluído o campo das ciências
em geral. Ambos os acontecimentos insólitos, pontos de partida das duas narrativas,
opõem-se claramente à razão, afinal, a perda da sombra e da mão nas
circunstâncias em que se processou não se encaixa no conjunto de ações aceitáveis
e consideradas possíveis pelo corpo social. Exteriores ao sistema de pensamento
que governa a sociedade atual, tais eventos estabelecem uma quebra e são,
portanto, uma ameaça para sua manutenção. A esse respeito, veja-se o que
pensam Adorno e Horkheimer (2006, p. 72):
O sistema deve ser conservado em harmonia com a natureza. Do mesmo modo que os fatos são previstos a partir do sistema, assim também os fatos devem por sua vez confirmá-lo. […] O pensamento que não consegue harmonizar o sistema e a intuição desrespeita algo mais do que simples impressões visuais isoladas: ele entra em conflito com a prática real. Não apenas a ocorrência esperada deixa de ter lugar, mas também o inesperado acontece: a ponte cai, a simetria definha, o remédio faz adoecer.
Os referidos autores veem o pensamento racional como um sistema uno e
coerente a partir do qual derivam as particularidades. Estas, por sua vez, são
explicadas e confirmadas pelo sistema, criando-se, portanto, um círculo vicioso em
que o equilíbrio aparece como resultado da harmonia entre o sistema e a natureza.
Nos dois contos de Brandão aqui analisados, essa harmonia é quebrada,
culminando no desequilíbrio e no questionamento do próprio sistema. Ademais, é a
partir dessa ruptura que a trama narrativa ganha corpo, tornando-se, portanto, o
centro irradiador de grande parte das questões e dos conflitos vivenciados pelas
personagens. Ante a experiência do acontecimento insólito, os sujeitos, nas duas
narrativas, buscam reestabelecer a ligação entre o sistema e os fatos particulares
vivenciados (a perda da mão e da sombra), ao procurarem por uma explicação
racional baseada na ciência. A postura assumida por esses sujeitos apresenta-se,
inclusive, extremamente arraigada no âmago da sociedade moderna, já que o
homem se encontra subordinado à razão e faz dela um verdadeiro mito. Uma vez
que o sistema não consegue dar conta desses acontecimentos insólitos particulares
(as personagens não encontram explicação científica plausível que as ajude a
enfrentar a situação), ambas abandonam a linha de pensamento racional, deixando-
se tragar pela atmosfera misteriosa que as rodeava. Portanto, a crítica feita à razão
152
e à ciência nessas narrativas parte precisamente da insuficiência desses domínios
do conhecimento para explicar um fato concreto, a saber, a perda da mão e da
sombra.
Disso depreende-se uma característica que marca a espécie humana ao
longo dos tempos: o homem está sempre buscando explicar os acontecimentos que
o rodeiam. O homem moderno esclarecido subjugou outras formas de explicação do
universo. Nessa sociedade desmitologizada, o homem erige a racionalidade como
forma suprema de conhecimento, em detrimento da mitologia presente nas culturas
primitivas. Entretanto, o que Adorno e Horkheimer (2006) defendem é que entre o
mito e a razão verifica-se não uma diferença qualitativa, mas apenas maneiras
diferentes de relacionamento entre o homem e a natureza. A razão é, por
conseguinte, o mito moderno no qual o homem se engendrou. A tentativa de fugir da
mitologia e de outras formas de conhecimento consideradas menores é, também,
um retorno ao mito. Dessa forma, as narrativas de Brandão problematizam essa
autossuficiência da razão e da ciência, apontando os seus impasses e suas
limitações, já que nem tudo pode ser explicado por elas.
A crítica à insuficiência do conhecimento científico para explicar os problemas
enfrentados pelo homem moderno é endossada pela presença, nas duas narrativas,
de imagens de bibliotecas que fogem ao padrão convencional. Como se sabe, a
biblioteca constitui um repositório do conhecimento produzido e acumulado pela
humanidade através dos séculos e reflete a tentativa do homem de entender a si
mesmo e ao mundo a sua volta. Em “A mão perdida na caixa do correio”, a
biblioteca é formada por títulos que apontam para eventos incomuns (Enciclopédia
do Inexplicável, de Jerome Clark; O Estranho e o Extraordinário, de Charles
Berlitz; e Casos Malditos, de Charles Fort). Entretanto, nem mesmo esses livros,
inseridos no campo epistemológico do inusitado e do irreal, trazem relatos que
ajudem o homem a resolver o problema da perda da mão. Em “As cores das
bolinhas da morte”, a biblioteca é formada por um espaço totalmente vazio, à
exceção de um livro volumoso. Entretanto, tal livro que sintetizaria o pensamento
universal contém apenas páginas em branco. Se a síntese de todo o pensamento
universal está presente nessa obra, conclui-se, portanto, pela sua nulidade,
expressa pela imagem do livro em branco. Nos dois casos, consideradas as devidas
especificidades, o que está em pauta é a insuficiência do conhecimento lógico e
científico para explicar a realidade das personagens. Assim como a biblioteca do
153
conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges (1999), aparece como metáfora
do universo, as bibliotecas apresentadas por Brandão nessas duas narrativas
também imprimem um saber significativo sobre o homem e a sociedade moderna: de
um lado, existe a ilogicidade e a irracionalidade que imperam no cotidiano,
expressas pelos títulos de livros de teor insólito presentes em “A mão perdida na
caixa do correio”; de outro, apresenta-se o esvaziamento dos sujeitos, a inexistência
de valores e de verdades, sinalizados pelas páginas em branco do livro em “As
cores das bolinhas da morte”. Nesse último caso, o não registro de uma tradição,
bem como de sua história e sua memória, são emblemáticos, de modo direto ou
indireto, do esvaziamento da identidade social do ser.
Por fim, pode-se destacar o tom risível que adquirem algumas situações
vivenciadas pelos seres nas duas narrativas. Abundantes nos dois textos, elas
conectam-se, direta ou indiretamente, ao fenômeno insólito motivador da trama (a
perda da mão e da sombra), brotando com naturalidade ao longo de toda a história.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), a mutilação está, quase sempre,
relacionada a uma desqualificação, já que imprime uma marca que diferencia
negativamente o sujeito das demais pessoas que constituem a sociedade: “O
deformado, o amputado, o estropiado têm isso em comum: acham-se colocados à
margem da sociedade humana […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 628).
Assim, a deformidade física das personagens, na medida em que as diferencia das
demais pessoas, aparece, a princípio, como um campo em potencial do riso a ser
explorado. Tratando especificamente do riso, Bergson (1983) destaca alguns
aspectos importantes sobre ele: (1) é próprio do ser humano; (2) é insensível; (3)
funciona como uma forma de correção de uma imperfeição individual ou coletiva; (4)
é inconsciente, pois o sujeito cômico torna-se visível para os outros e invisível para
si mesmo. Nos contos analisados, verificam-se com nitidez esses aspectos acima
apontados: as personagens são seres inseridos num corpo social e que, devido a
uma imperfeição causada pela perda de uma parte de seu corpo, diferenciam-se
negativamente dos demais. À medida que se entregam por completo à tentativa de
recuperar a parte do corpo mutilada, vivenciam situações inusitadas que causam o
riso no expectador (e no leitor). Esse efeito é conseguido graças à insensibilidade do
narrador (e mais uma vez do leitor que o acompanha) em relação aos
acontecimentos, pois no riso não há espaço para a emoção. Bergson (1983) lembra
ainda que a ridicularização é um fator propiciador do riso. Em Brandão, o
154
esfacelamento do corpo ou a inexistência da sombra constituem atributos que
causam a diferença. Assim, a quebra de um protótipo pode motivar o riso. Nos dois
contos, essas situações aparecem em abundância. Como não rir ao ler o diálogo
absurdo entre o homem que perdeu a mão e o atendente dos correios? O mesmo
efeito se observa quando o homem sem sombra procura informações em uma
universidade sobre uma cientista que supostamente estudava o desaparecimento de
sombras.
Em alguns casos, o humor é indissociável de uma crítica a determinados
aspectos da sociedade brasileira. No conto “A mão perdida na caixa do correio”
enquanto a personagem vivencia a angústia da perda do membro, um transeunte
dispara: “‘Onde comprou essa? Legal, tio! Boa pra pedir esmola’” (BRANDÃO-
MPCC, 2000, p. 46). Em outra passagem, a própria personagem ridiculariza e
zomba da situação em que se encontrava: “Um escrevente sem mãos? O último
sonho que resta a quem perde a mão é tornar-se pirata” (BRANDÃO-MPCC, 2000,
p. 47). Na narrativa “As cores das bolinhas da morte”, verifica-se o mesmo tom de
humor impresso à narrativa: “‘Claro, já surgiu o mercado negro. Gente que falsifica
sombras. Trapaceiros desviam a sombra dos outros. Embustes de todo tipo. Para
tudo há um logro” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 107). Assim, embora circulando ao
longo dos anos no domínio extraoficial e na literatura considerada menor (cf.
BAKHTIN, 1987), o riso aparece nos contos de Brandão como uma importante
ferramenta que ajuda a compor uma visão crítica do homem e da sociedade
modernos. Bakhtin (1987, p. 81) afirma que “[…] o riso, menos do que qualquer
outra coisa, jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do
povo. […] Ele permaneceu sempre uma arma de liberação nas mãos do povo”. Nos
contos de Brandão analisados, o riso aparece atrelado a uma crítica social
contundente, atuando, pois, como importante ferramenta de denúncia de condições
sociais degradantes às quais o homem moderno está submetido. Desse modo, o
“sério” é expresso por meio de uma literatura bem-humorada, dialética intrínseca à
produção de contos desse escritor.
3.3 Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão: um diálogo
(im)possível?
155
Nessa reta final de percurso, é chegado o momento de colocar lado a lado a
literatura de Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Reconhecendo a
proeminência e a recorrência do duplo na obra desses literatos, procura-se aqui
determinar semelhanças e diferenças quanto ao modo de representação desse tema
em contos selecionados desses escritores. Nessa análise comparativa, será
observada tanto a configuração particular que o tema da dualidade adquire nas
narrativas, quanto os recursos estilísticos e narrativos direta ou indiretamente
relacionados a ela.
As cinco narrativas analisadas – “A caçada”, “A mão no ombro” e “O
encontro”, de Telles; e “A mão perdida na caixa do correio” e “As cores das bolinhas
da morte”, de Brandão – giram em torno de um acontecimento insólito que irrompe
no cotidiano das personagens, estabelecendo uma ruptura na rotina. Nas narrativas
de Telles, o insólito manifesta-se principalmente pela irrupção, no contexto imediato
dos seres da ficção, do jardim ou bosque, indeterminável espacial e temporalmente.
Nos contos “A caçada” e “O encontro”, observa-se ainda um processo de crescente
familiaridade e identificação das personagens que visualizam no presente o reviver
de um passado longínquo, fato que desconforta e inquieta o leitor dos textos. Nos
contos de Brandão, a perda da mão e da sombra, em “A mão perdida na caixa do
correio” e “As cores das bolinhas da morte” respectivamente, instaura o insólito
nessas narrativas, dada a forma ilógica com que tal evento se desenvolve: no
primeiro, um homem vai depositar uma correspondência e, inesperadamente, vê sua
mão cair dentro da caixa de correio; no segundo, um juiz aposentado, ao sair de
casa num dia ensolarado, percebe que sua sombra sumira. Tanto nos contos de
Telles quanto nos de Brandão, a inscrição do insólito na realidade das personagens
desestabiliza-as psicologicamente, provocando um misto de sentimentos como
inquietação, apreensão, medo, temor, entre outros.
O desenrolar desses acontecimentos incomuns invariavelmente leva os
protagonistas das cinco narrativas ao confronto com sua outra parte, ou seja, com
seu duplo. Nesses contos, as personagens principais parecem impulsionadas por
um forte sentimento interior que as leva a uma busca incessante por algo, embora
esse objeto nem sempre adquira forma identificável ou apareça explicitamente
especificado nos textos. Nos contos de Telles, essa procura assume uma
configuração inconsciente, como é demonstrado principalmente nos contos “A
caçada” e “O encontro”. Nessas duas narrativas, a tentativa de entender e explicar a
156
familiaridade da personagem com determinadas situações e ambiente, ou seja, a
busca por respostas, leva-a, inevitavelmente, ao reconhecimento e confronto com o
duplo. Nessas narrativas, existe, de um lado, o fascínio despertado nos sujeitos pela
familiaridade com o ambiente, bem como a vontade de prosseguir nessa progressiva
descoberta e reconhecimento; de outro, parece haver uma voz interior que os alerta
quanto aos perigos envolvidos nessa aventura. Desse modo, as personagens se
veem diante de um conflito interior que as divide entre continuar a trilhar o percurso
rumo ao confronto com o outro ou evadir-se das situações. O conto “A mão no
ombro” difere desse esquema, já que nele é a personagem que é procurada pelo
caçador e de quem tenta fugir por mais de uma vez. Ainda nesse conto, o ser tem
consciência de que o confronto com o outro pode trazer consigo o encontro com a
morte, razão pela qual tenta evitá-lo.
Nos dois textos de Brandão, a saga da busca é motivada por uma experiência
bastante inusitada. Desse modo, a ação das personagens nesses contos representa
a luta na tentativa de recuperar a parte faltante de seu corpo. Essa procura reveste-
se também da simbologia da busca pelo outro, já que a mão e a sombra adquirem a
configuração de duplo desses sujeitos.
A possibilidade iminente de confronto com o outro parece inscrever nos
sujeitos envolvidos na narrativa questionamentos existências, o clássico “quem sou
eu?”, que, dentre outros aspectos, problematizam a identidade individual desses
seres. Essa constatação pode ser verificada nos contos de Brandão e de Telles. Nas
duas narrativas analisadas de O homem que odiava a segunda-feira (2000) e no
conto “A mão no ombro”, de Telles, a problematização da identidade está
diretamente relacionada ao ritmo acelerado e automatizado da vida moderna
imposta pela sociedade. Em tais textos, há a representação de sujeitos
completamente tragados pela correria e pela automatização da vida diária. Essa
entrega exagerada às exigências do corpo social tem como correlato um
atrofiamento das potencialidades do eu: para atender e adequar-se às demandas
sociais, os sujeitos negam cada vez mais sua individualidade. É o que acontece com
a personagem do conto “As cores das bolinhas da morte”, um juiz de direito que
acabou transformando-se numa “máquina de sentenças”. Já a personagem da
narrativa “A mão no ombro” escondia, por trás da imagem de um empresário de
sucesso, casado com uma mulher atenta às tendências da moda, a precariedade
das relações imperantes em seu âmbito familiar. As situações vivenciadas por esses
157
sujeitos, entre elas a iminência de confronto com o duplo, parecem inscrevê-los num
processo de reavaliação de suas relações consigo mesmos e com os outros, algo
parecido com a individuação definida por Jung (2008) – embora, nos dois casos,
essa etapa não seja completada, dado o curto intervalo de tempo em que os fatos
do enredo acontecem.
Também nas cinco narrativas analisadas, a manifestação do duplo está
intimamente ligada à morte, já que o confronto com o outro parece inscrever a
consciência de ser finito no horizonte do sujeito. No conto “A mão no ombro”, de
Telles, podem-se observar os suplícios da personagem, que considera precoce sua
morte: “[…] Não quero! gritou. Agora não, meu Deus, espera um pouco, ainda não
estou preparado!” (TELLES-MO, 2009, p. 108). A inserção do jardim onírico na
realidade desperta no ser a certeza de que daquela vez não conseguiria escapar,
apesar das tentativas empreendidas. O toque no ombro pelo caçador é o aviso de
que chegara sua hora: “A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve.
Voltou-se” (TELLES-MO, 2009, p. 104). Em “A caçada”, a personagem, ao
reconhecer a caça como duplo de si, funde-se a ela, momento em que o caçador
desfere a flecha que lhe atinge o peito: “‘Não…’ – gemeu de joelhos. Tentou ainda
agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração” (TELLES-
AC, 1974, p. 103). Por fim, em “O encontro”, a fusão da personagem com a
amazona e a precipitação desta no abismo representam o momento do declínio do
ser: “E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído
pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo” (TELLES-OE, 1958, p.
24). Nessas três narrativas, o momento do confronto com o duplo e com a morte
realiza-se mediante atmosfera mística e nebulosa, gerando uma indeterminação
quanto ao desfecho dos enredos.
Nos contos de Brandão, ocorre algo parecido. Neles, a perda de uma parte do
corpo leva as personagens a uma busca frenética que tem como resultado a morte
desses sujeitos. O conto “A mão perdida na caixa do correio” escancara a
insensibilidade e a falta de respeito pelo outro imperante na sociedade moderna. A
frase escrita em letras vermelhas destacadas no saco plástico em que foi colocado o
corpo do homem morto aponta para a falta de sensibilidade humana e para a
descartabilidade do sujeito na era moderna: “CORRESPONDÊNCIA EXTRAVIADA”
(BRANDÃO-MPCC, 2000, p. 63). Na parte final do conto “As cores das bolinhas da
morte”, realiza-se a fusão entre a personagem e sua sombra e, nesse momento,
158
uma morte, no mínimo no sentido simbólico do termo, já que se efetua uma
mudança qualitativa no íntimo do protagonista, invadido que é por grande calma e
tranquilidade: “Não havia dor, angústia, inquietação, amargura, tristeza. Somente
paz inefável” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 164). A atmosfera criada nesse conto de
Brandão no momento do confronto e da fusão entre o homem e sua sombra está,
portanto, mais próxima da ambientação criada por Telles em seus contos.
Quanto às tipologias de classificação do duplo, verifica-se a predominância de
duplos originados por meio de uma cisão nas duas narrativas de Brandão e em um
dos contos de Telles (“A mão no ombro”). Seguindo a categorização de Jourde e
Tortonese (Apud LÓPEZ, 2006), observa-se que as cinco narrativas analisadas
apresentam o duplo subjetivo, já que o fenômeno da duplicidade incide no
protagonista, e externo, uma vez que o duplo assume uma forma física, com
exceção do texto “A mão no ombro”, de Telles, que apresenta um duplo interno (a
cisão ocorre no interior da personagem).
Ainda em se tratando das semelhanças, verifica-se, nos contos analisados de
Telles e Brandão, íntima conexão entre a representação do duplo e o discurso
fantástico. Em todos os textos, o fenômeno em que a duplicidade se manifesta
desdobra-se de uma situação insólita. Nos contos de Telles, o confronto entre o eu e
o outro só é possível graças à fusão espaço-temporal que se realiza principalmente
na parte final das narrativas. Nos textos de Brandão, a problemática da identidade
aparece como desdobramento de um evento insólito que acontece no início do
enredo, a saber, a perda da mão e da sombra, que no decorrer das narrativas
assume a configuração de duplo, como já foi dito neste trabalho.
Apesar de abordarem uma temática bastante tradicional no campo da
literatura universal e das semelhanças acima apresentadas, Telles e Brandão
imprimem em suas narrativas características próprias do seu estilo, resultando numa
abordagem singular do duplo. São, portanto, essas diferenças e particularidades na
representação do duplo que serão agora explicitadas.
A própria composição dos ambientes em que se desenvolvem as ações das
personagens é bastante díspar. Em Telles, principalmente no final das narrativas,
predomina a recorrência a espaços naturais como bosques e jardins, distantes de
uma concretude sócio-histórica. Cria-se, portanto, uma atmosfera indeterminada
espacial e temporalmente, onde se efetiva o encontro entre o sujeito e seu duplo.
Mesmo nos contos “A caçada” e “A mão no ombro”, em que os respectivos
159
protagonistas parecem viver em ambientes urbanos, o jardim brota na realidade
deles, instaurando uma indeterminação. A constituição da ambientação em Brandão
difere bastante dessa atmosfera mística que constitui traço determinante das
narrativas de Telles. Nele, as personagens são cravadas em um ambiente urbano de
uma grande metrópole, com seus contrastes e problemas, onde vivenciam as mais
inusitadas situações na procura pela parte cindida do corpo.
Também a vivência do evento insólito se processa de modo diferente nas
narrativas dos dois autores em pauta. Na ficção de Telles, o insólito é resultado de
uma experiência subjetiva das personagens, vivenciada por elas em espaços físicos
fechados e reservados. No conto “A caçada”, por exemplo, a contraposição entre a
percepção da tapeçaria pela vendedora da loja e pelo protagonista, para o qual,
paulatinamente, ganha valor subjetivo, revela um processo interior ao sujeito:
“Parece que hoje tudo está mais próximo – disse o homem em voz baixa. É como
se… Mas não está diferente?” (TELLES-AC, 1974, p. 100). Ainda nessa narrativa, a
localização física da tapeçaria nos fundos da loja de antiguidade colabora para a
construção de um ambiente reservado no qual acontece a experiência íntima de
fusão entre a cena representada na tapeçaria e o espaço da loja. Na narrativa “O
encontro”, toda a ação se desenvolve num local desabitado, suspenso espacial e
temporalmente da concretude sócio-histórica, onde se realizam o confronto e a
fusão da personagem com seu duplo. Observa-se, pois, que, tanto em “A caçada”
quanto em “O encontro”, o fio norteador do enredo das narrativas – os processos de
reconhecimento e de identificação do presente como um reviver de um passado
longínquo – é também uma experiência privada, vivenciada intensamente pelas
personagens em seu íntimo. Por fim, no conto “A mão no ombro”, o primeiro
confronto do protagonista com seu duplo se realiza durante o sonho, o que revela a
intimidade do evento. No momento final dessa narrativa, quando acontece a fusão
dos espaços, a personagem também se encontra num local reservado, sozinha
dentro de seu carro. Assim, nos contos de Telles, os sujeitos, dilacerados ante a
iminência do confronto com o duplo e com a morte, vivenciam solitária e intimamente
essa angústia.
Já nos contos de Brandão, o insólito não se dá num contexto privado. Ao
contrário, realiza-se em meio aos olhos da multidão habitante da grande metrópole,
sob a vigilância e o julgamento da comunidade. No conto “A mão perdida na caixa
de correio”, a perda da mão acontece no meio da rua, quando o homem tenta
160
depositar uma correspondência. Este busca ainda advertir outras pessoas sobre o
perigo de depositar cartas em tais caixas, chamando atenção dos demais para o que
ocorrera com ele. Em “As cores das bolinhas da morte”, o evento insólito é também
visível para as demais pessoas, já que, ao andar pelas ruas num dia ensolarado,
torna-se facilmente perceptível a falta de sua sombra. Nesse conto, a ausência da
sombra é também percebida por outros seres, entre eles um também sem sombra,
que se aproxima e indica-lhe procurar a cientista Cristina Agostino. Assim, nos
contos de Brandão, o absurdo brota da realidade das personagens e não é
apresentado de forma velada, dada a própria natureza dos espaços abertos e
públicos em que os eventos ocorrem.
Como já destacado anteriormente, observa-se, em todas as narrativas
analisadas neste trabalho, que as personagens buscam, explicita ou implicitamente,
algo que, no final, revela-se como a identidade do próprio eu. Apesar disso, há uma
diferença considerável no decurso dos eventos vivenciados por eles em cada
narrativa. Nos contos de Telles, especialmente nas narrativas “A caçada” e “O
encontro”, eles enveredam por situações que, de algum modo, conectam-se a
eventos vivenciados num passado indeterminável num primeiro momento. Desse
modo, toda a trama gira em torno de um processo de rememoração e de
identificação que paulatinamente permite-lhes compreender e desvendar o mistério
da familiaridade para com determinadas situações, eventos, lugares ou
personagens. A cena final demarca o momento de revelação, apresentando o
confronto do ser com seu respectivo duplo. Esse confronto com o duplo parece ser
inevitável, já que os sujeitos se encontram irremediavelmente presos a um destino
previamente estabelecido, apesar das tentativas de fuga empreendidas. Já as
personagens de Brandão vivenciam situações até então inéditas para elas, que
causam estranheza justamente por romperem com a estrutura racional imperante na
sociedade atual. Desse modo, é a saga da busca pela parte do corpo mutilada que
constitui o fio norteador das narrativas, o que justifica as situações inusitadas nas
quais eles se enredam. Aqui, a mão e a sombra adquirem a condição de duplo das
personagens, sendo essa cisão externa o reflexo de uma fragmentação e
esfacelamento que atinge o âmago do sujeito.
Em virtude disso, estabelece-se diferença substancial quanto à finalidade da
busca empreendida pelas personagens nas narrativas de Telles e de Brandão. No
primeiro caso, o confronto e fusão com o duplo revelam, em última instância, a
161
busca de uma identidade num passado, representado pelo encontro consigo mesmo
em outra dimensão temporal. A imagem do jardim e suas variantes, espaços nos
quais se efetiva o confronto com o duplo, ajuda a compor a simbologia dessa
tentativa de retorno e fusão com um eu original. No segundo, a procura pela parte
cindida, alçada à condição de duplo, representa a tentativa de recuperar a unidade
do eu. Entretanto, não se trata aqui de retorno a uma unidade original, como
acontece na prosa lygiana, mas de procura pela essência dos sujeitos com todas as
suas potencialidades em uma sociedade que encapsula o sujeito e inibe as
liberdades individuais.
Quanto à origem do duplo, seguindo a classificação de Bargalló (Apud
LAMAS, 2002), constata-se o duplo por cisão nos dois contos de Brandão e a
predominância do duplo por fusão em dois dos três contos de Telles, a saber, “A
caçada” e “O encontro”. Contudo, em ambos os casos, procura-se representar a
angústia do sujeito moderno em constituir e manter uma identidade estável. Em
Telles, há a representação de um sujeito dividido psicologicamente e sua luta pelo
restabelecimento de uma unidade. Em Brandão, o esfacelamento transpõe o campo
psíquico, materializando-se através da imagem impressiva do corpo mutilado, o que,
em última análise, revela a precariedade e a profunda crise do sujeito moderno.
Por fim, apesar de ambos os escritores apoiarem-se no discurso fantástico
para representar o fenômeno da duplicidade em suas narrativas, o fantástico
assume em Brandão uma perspectiva crítica clara e incisiva contra alguns aspectos
integrantes da sociedade moderna. Dentre eles, pode-se citar a crítica ao
conhecimento racional e científico, tanto pela recorrência com que aparece nas duas
narrativas quanto pelo tom contundente que adquire na arquitetura ficcional. A
impossibilidade de explicação racional dos acontecimentos insólitos, bem como a
impotência da ciência para solucionar tais problemas, abalam esses dois
importantes pilares da sociedade moderna. A sucessão dessas situações absurdas
que irrompem no cotidiano e seus desdobramentos passam, portanto, a questionar a
própria concepção de realidade: “Quem quer saber do real? Tão desequilibrado,
inconsistente, fictício, tão frágil! O real é a mentira na qual nos agarramos para não
sermos considerados loucos, para não nos internarem, nos retirarem do que
chamam sociedade. O real é impalpável” (BRANDÃO-CBM, 2000, p. 161). Outro
aspecto que também apresenta tom crítico em Brandão é o uso do humor e do riso
como formas de ridicularizar e denunciar atributos humanos e valores da sociedade
162
moderna. O risível encontra-se, contudo, indissociável das situações absurdas
enfrentadas pelas personagens na tentativa de recuperar a parte cindida do corpo.
163
CONCLUSÃO
Falar sobre identidade é tratar de um tema que inquieta a humanidade desde
os primórdios; afinal, a clássica pergunta “quem sou eu?” inscreve-se ao longo dos
séculos, revelando ser uma indagação milenar. Um tema tão antigo e que persiste
com vigor ao longo da história da humanidade tem sua razão de ser: interessa ao
homem porque trata justamente do que há de essencial nele. Diversas produções
humanas revelam essa preocupação com questões relacionadas ao eu desde as
mitologias, passando pela filosofia e pelas artes em geral, entre outros domínios, o
que demonstra a centralidade da problemática em diferentes épocas.
Várias foram as tentativas de resposta para esse questionamento existencial,
cada uma delas em estrita consonância com as demandas sociais do período. Na
modernidade, dadas as importantes mudanças na estrutura das sociedades, o tema
novamente ganha destaque. Conforme salienta Hall (2006), essas transformações
ocorridas no espaço social no contexto contemporâneo interferem diretamente na
maneira como os sujeitos constroem sua(s) identidade(s). Assim, nessa conjuntura
atual, as identidades, antes tidas como fixas e unificadas, caminham rumo ao
deslocamento e à fragmentação.
Neste trabalho, a problemática da identidade foi abordada tendo como
referência norteadora o mito do duplo, à luz de perspectivas clássicas e modernas.
Apesar de sua tradição, verificada por sua inscrição em diferentes discursos
humanos ao longo da história (religião, filosofia, mitologia, literatura), o mito do duplo
vem, no decorrer desses séculos, mostrando sua fertilidade. Dentre os campos do
conhecimento acima citados, a literatura apareceu no decorrer dos séculos como
verdadeiro “conservatório dos mitos”, segundo palavras de Brunel (1998), em virtude
da adaptabilidade de tal tema a diferentes contextos e as suas infinitas
possibilidades de reescritura. Prova disso é a recorrência, na literatura, à figura de
Narciso, considerado o mito fundante e representativo da busca da identidade.
Entretanto, o mito não funciona aqui como uma camisa de força que aprisiona o
autor e obriga-o a seguir determinadas condutas, pois, conforme afirma Mielietinski
(1987), o conteúdo do mito, no campo literário, é ressignificado e reinventado,
renovando-se continuamente. É essa liberdade que torna possível falar hoje no
Narciso moderno, uma forma de adequação desse conteúdo mítico antigo à
literatura moderna, em resposta às novas demandas da sociedade. Cônscio de sua
164
duplicidade, o espelho no qual o Narciso moderno se reflete não fornece uma
imagem unificada do eu; ao contrário, essa imagem é múltipla, duplicada e
desdobrada.
No contexto moderno, o tema da identidade é problematizado de maneira
incisiva em diversos domínios e, particularmente, na literatura, em que as
representações de sujeitos cindidos e esfacelados se colocam como determinantes
no conto brasileiro contemporâneo. Sendo assim, procurou-se, nesse trabalho,
verificar as configurações assumidas pelo mito do duplo em contos selecionados de
Lygia Fagundes Telles e Ignácio de Loyola Brandão. Ambos são autores
contemporâneos e representativos da literatura brasileira atual em que a
problemática da identidade, e especificamente o tema do duplo, ganham destaque.
Nas narrativas de Telles, foram verificadas algumas constantes quanto à
representação do duplo, como: a fusão espaço-temporal que promove uma
indeterminação na narrativa, possibilitando o confronto do eu com o outro; a
importância do discurso fantástico para criar a atmosfera propícia para a
confrontação; a repetição de algumas figuras e imagens, como o caçador e o jardim,
que compõem o mitoestilo da escritora; o duplo majoritariamente por fusão. É
graças a isso que o encontro e o confronto da personagem com o outro acontecem:
em “A caçada”, a caça assume a condição de duplo do protagonista; em “A mão no
ombro”, a dualidade se manifesta por meio do confronto entre o eu sonhador e o eu
personagem do sonho; em “O encontro”, a amazona exerce a função de duplo da
personagem.
Nos contos de Brandão, o tema da dualidade aparece como consequência ou
desdobramento de uma situação insólita vivenciada pelas personagens: um evento
inusitado acomete-as, quando acontece a perda de uma parte de seu corpo; uma
busca é instaurada na tentativa de recuperação da parte mutilada, a qual passa a
configurar o duplo da personagem; o duplo é resultado de uma cisão e também é
permitido pelas possibilidades abertas pelo discurso fantástico. Na narrativa “A mão
perdida na caixa do correio”, a mão que inesperadamente cai dentro da caixa
funciona, metonimicamente, como duplo do protagonista; em “As cores das bolinhas
da morte”, a função de duplo é assumida pela sombra perdida.
Confrontando Telles e Brandão por meio de uma análise comparativa,
sobressaem-se os seguintes pontos em comum: as narrativas giram em torno ou
resultam de um acontecimento insólito; o desenrolar das narrativas leva as
165
personagens a uma busca, explícita ou implicitamente, pelo seu duplo e ao
confronto com ele; o encontro com o duplo é possibilitado pelos infinitos caminhos
abertos pelo fantástico e leva os sujeitos invariavelmente à morte, em nível físico ou
simbólico. Apesar disso, percebem-se também diferenças quanto à representação
do duplo, o que demonstra a particularidade de cada escritor. Em Telles, predomina
a presença de ambientes naturais, representados principalmente pelo jardim e pelo
bosque que irrompem na realidade, especialmente no final das narrativas; a vivência
subjetiva e privada do insólito; a busca empreendida e a consequente fusão entre a
personagem e seu duplo como representação majoritariamente da procura da
identidade do eu em um passado indeterminado. Em Brandão, a ação das
personagens ocorre exclusivamente no ambiente urbano; a vivência do
acontecimento insólito realiza-se no meio da rua, em público; a busca da parte do
corpo cindida assume a simbologia de busca da identidade e de resgate das
potencialidades latentes do eu; o fantástico, atrelado ao humor que emana das
situações vivenciadas pelas personagens, assume nítida perspectiva crítica contra
determinados elementos constituintes da sociedade moderna. Como se vê, é
inegável a centralidade do tema da identidade nessas narrativas. A iminência do
confronto com o outro desencadeia uma crise existencial nos sujeitos, questionando
a suposta unidade do eu.
A leitura crítica das narrativas de Telles e Brandão permitiu a confirmação da
força com que o tema do duplo se inscreve como motivo literário em diferentes
épocas. Essa pujança é justificada por dois fatores principais interligados entre si.
Em primeiro lugar, apesar de ser uma figura arcaica, o duplo vem, ao longo dos
séculos, mostrando sua fertilidade na literatura, verificada pela constante recorrência
a esse tema nas mais diversificadas tradições literárias. Isso demonstra, entre outros
aspectos, sua capacidade de penetração em diferentes culturas e, em consequência
disso, a universalidade que atingiu. Em segundo, essa proeminência e vitalidade da
temática do duplo ao longo da história da literatura só foram possíveis devido a sua
maleabilidade e adaptabilidade. Desse modo, as representações do duplo, embora
mantenham em sua essência o emblema da busca da identidade, se adaptaram, ao
longo dos séculos, a diferentes contextos, respondendo às demandas de cada
momento histórico. No contexto da modernidade (cf. BAUMAN, 2005), em que as
identidade se mostram instáveis e descentradas, o mito do duplo aparece com vigor,
inscrevendo-se como importante motivo literário a partir do qual se realiza a
166
representação dessa crise identitária do homem moderno, esfacelado, fragmentado
e cônscio de sua duplicidade. Na literatura contemporânea, o mito do duplo vem se
reinventando e se atualizando, como se verifica no caráter mimético dos contos
investigados e no diálogo entre a literatura e o mito.
Chegado o final desse percurso que adentrou pelas veredas do duplo em
contos de Telles e Brandão, espera-se que as ideias aqui plantadas possam
encontrar outros solos férteis para germinar e dar novos frutos, de modo a ampliar
os estudos críticos sobre a obra desses escritores ainda pouco estudados.
Considerando também a importância do diálogo para a construção de conhecimento
na academia, espera-se, por fim, que a voz aqui lançada (ela própria já inserida
nessa teia comunicativa inextricável) possa ecoar mundo afora, suscitando
respostas diversas (concordância, discordância etc.), pois somente através dessa
relação dialógica se produz verdadeiramente o conhecimento.
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