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NOVO MODELO DE FERROVIAS
Reflexões sobre os desafios do setor
Danilo de Morais Veras1
SÃO PAULO
2015
1 Advogado, especialista em infraestrutura e novos negócios. Graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-Graduado em Gestão de Negócios pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais do Rio de Janeiro e em Direito Administrativo e Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. [email protected]
RESUMO: O Governo Federal tem discutido alternativas para a regulação do setor de
ferrovias. Embora tenha ganhado destaque no noticiário recentemente, com o esforço do
Ministério dos Transportes em lançar trechos para concessão, o assunto não é novo.
Trata-se do modelo inicialmente estudado em proposto em 2005 (Parceria Público-
Privada), modelado sob a égide da Concessão Comum, carregando consigo uma série de
desenquadramentos em relação ao modelo inicial, que suscitam discussões jurídicas
bastante sensíveis. A Seção 1 apresenta uma introdução ao tema, com o histórico e
primeiros desafios enfrentados pelo setor. A Seção 2 apresenta o novo modelo
desenvolvido para atacar as causas de não desenvolvimento das ferrovias brasileiras. A
Seção 3 apresenta alguns pontos de atenção tomando por base o edital do primeiro
empreendimento a ser implementado sob a nova regulamentação. A Seção 4 apresenta
as conclusões ao presente trabalho.
Palavras-Chave: Ferrovias, Regulação, Direito Administrativo, Operador Ferroviário
Independente, Unbundling.
2
ABSTRACT: The Brazilian Government have been discussing new methods and
alternatives for the regulation of railways. Although this issue have recently gained
some prominence in the media – with the Ministry of Transports initiative of releasing
some railways segments for biddings – the fact is that railroads have been a difficult
issue. It was initially studied and modeled as a Private Finance Initiative – PFI (called in
Brasil “Public-Private Partnership”), but the recent studies have presented several
modifications that raised sensitive legal discussions. In this sense, this article is divided
in 5 sections. Section 1 introduces the subject, with the historic line and first problems
faced by the sector. Section 2 presents de Government’s new model, developed to attack
the problems of the non-investment in railroads. Section 3 presents some points of
attention based on the announcement of the first project expected to be implemented
under the new regulation system. Section 4 presents the conclusions to this work.
Keywords: Railways, Regulation, Administrative Law, Independent Railroad Operator,
Unbundling.
3
Sumário
1. INTRODUÇÃO..................................................................................................................5
1.1. Brasil Império.............................................................................................................5
1.2. A Rede Ferroviária Federal S.A e a Ferrovia Paulista S.A.....................................8
1.3. Anos 80/90 – A Privatização do Setor Ferroviário e a Verticalização..................10
1.3.1. Regulamento dos Usuários do Serviço de Transporte Ferroviário de Cargas –
Resolução n. 3.964/11........................................................................................................13
1.3.2. Regulamento das Operações de Direito de Passagem e Tráfego Mútuo –
Resolução n. 3.695/11........................................................................................................16
1.3.3. Metas de Produção por Trecho e Metas de Segurança para as Concessionárias –
Resolução n. 3.696/11........................................................................................................17
2. O NOVO MODELO DA ANTT......................................................................................17
2.1. Análise do Novo Modelo Ferroviário pelo TCU.....................................................20
2.2. Regulação do contrato entre a VALEC e os Operadores Ferroviários
Independentes (“OFI”) – Resolução n. 4.348/14................................................................23
3. RÁPIDA ANÁLISE DA IMPLEMENTAÇÃO DO NOVO MODELO.......................26
3.1. Algumas reflexões sobre o Edital Porto Nacional/TO – Estrela D’Oeste/SP.......26
4. CONCLUSÃO..................................................................................................................29
5. BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................32
4
1. INTRODUÇÃO
O enfrentamento de questões de infraestrutura têm sido a tônica no Brasil nesta
última década, suscitando a discussão de modelos regulatórios que sustentem o
investimento privado. Com a logística ferroviária nacional não seria diferente, o
Governo Federal, diante do desempenho insuficiente do setor, decidiu rever as
disposições regulatórias, buscando maior competitividade e incentivo na ampliação da
malha ferroviária nacional.
Os desafios enfrentados pelo atual Governo não são recentes. Nasceram com as
primeiras empreitadas no setor ainda no Governo Imperial brasileiro e, apesar das
mudanças, se perpetuam, em maior ou menor medida, até a contemporaneidade. As
alternativas regulatórias se alternam entre a verticalização e a horizontalização,
revelando que a matéria não tem solução fácil e, ao contrário do que se apregoa
habitualmente, todas as evoluções propostas pelo Governo vinham tendo, em alguma
medida, sucesso.
Nesse sentido, passa-se a uma rápida apresentação do tema, nos mais diversos
momentos histórico-regulatórios.
1.1. Brasil Império
A Revolução Industrial, capitaneada pela Inglaterra no século XIX, foi
desencadeada pela utilização em massa de máquinas na produção. Inúmeros inventos
desta época ganharam destaque, dentre elas a máquina a vapor, descoberta por Thomas
Newcomen e aperfeiçoada por James Watt, base do desenvolvimento, por George
Stephenson, da primeira locomotiva (1814). A primeira “locomotion” foi capaz de, em
1825, tracionar uma composição ferroviária entre Stockton e Darlington, um percurso
de 15 quilômetros, a uma velocidade de 20 km/h.
5
A influência inglesa no Brasil promoveu o interesse do governo imperial na
interligação do país utilizando a tecnologia ferroviária. A primeira legislação específica2
foi o Decreto n. 101, de 31 de outubro de 1835-3, prevendo a concessão, com
privilégio de 40 anos, às empresas que se dispusessem a construir estradas de ferro,
interligando o Rio de Janeiro a São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. O
normativo estabelecia, dentre outros assuntos (i) o preço teto de vinte réis por légua por
transporte de arroba de peso e noventa réis por passageiro, (ii) passar nas cidades
delimitadas pelo governo, embora tendo liberdade para estabelecer o trajeto entre elas,
(iii) começar a construção em dois anos a partir da assinatura e se obrigar pelo menos
cinco léguas (trinta quilômetros) por ano, (iv) sujeição à multas, a serem estipuladas,
para os casos de descumprimento das determinações anteriores.
Esta legislação, isoladamente, não foi capaz de atrair investimentos para o
desenvolvimento da malha, talvez, porque os empresários não entenderam o
empreendimento como suficientemente rentável para justificar o risco de ingresso no
setor. Além disso, não estavam claras a demanda, as garantias, as eventuais multas, bem
como as especificações dos investimentos a serem realizados ou a alocação de riscos
entre o investidor e o governo imperial. A pressão foi exercida no sentido de garantir
maior rentabilidade ao parceiro privado, com incentivos e dispensas de impostos e apoio
ao setor.
Com isso, foi promulgado, na sequência, o Decreto Legislativo n. 641, de 26 de
julho de 1852-4, no qual foram tratados pontos como (i) possibilidade de ligação
ferroviária de cidades além das previstas na norma anterior, (ii) prazo de até 90 anos,
considerando-se o plano e o orçamento da obra projetada, (iii) possibilidade de
concessão de uso das madeiras e outros materiais existentes nos terrenos devolutos e
nacionais, para a construção do caminho de ferro, (iv) concessão de isenção de direitos
de importação sobre trilhos, máquinas e instrumentos e mais objetos destinados à
mesma construção, bem como o carvão consumido pela companhia durante certo prazo,
(v) monopólio do “caminho de ferro” por uma distância de cinco léguas (trinta
quilômetros) de ambos os lados, (vi) obrigatoriedade da não utilização de escravos,
(vii) garantia de juros de até 5% do capital empregado na construção do caminho de
2 Conforme registro histórico do DNIT, disponível em http://www1.dnit.gov.br/ferrovias/historico.asp, acessado em 28 de maio de 2014. 3 Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-101-31-outubro-1835-562803-publicacaooriginal-86906-pl.html, acessado em 28 de maio de 2014. 4 Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/Historicos/DPL/DPL641.htm, acessado em 28 de maio de 2014.
6
ferro, sendo facultado ao governo determinar a forma e prazo de pagamento do valor,
(viii) possibilidade de controle dos dividendos, a fim de que fossem estabelecidos
limites sobre os quais a tarifa devesse sofrer decréscimo, (ix) multa para o caso de
descumprimento de acordos de construção, (x) possibilidade de “resgate” da concessão
de acordo com a conveniência, convencionando com a Companhia a época e maneira de
fazê-lo.
A primeira ferrovia veio em 1852, concedida a Irineu Evangelista de Souza, o
Barão de Mauá, linha férrea que ligaria Porto Estrela, na cidade do Rio de Janeiro, e
Raiz da Serra, próximo à Cidade de Petrópolis. Em 30 de abril de 1854 a “Baroneza”5,
nome da primeira locomotiva a funcionar nesta ferrovia, iniciava a sua viagem pelo
trecho de 14,5km e bitola de 1,68, contando com a presença de D. Pedro II em sua
inauguração. A operação da ferrovia permitia a integração entre a serra fluminense e o
porto do Rio de Janeiro, sendo a primeira operação intermodal do Brasil.
Inúmeras outras operações se seguiram à iniciativa de Mauá6 e, no primeiro
centenário da Independência do Brasil, em 1922, existia no país um sistema ferroviário
de aproximadamente 29.000 km de extensão, cerca de 2.000 locomotivas a vapor e
30.000 vagões em tráfego. Apesar disso, alguns problemas foram gerados com o
modelo adotado pelo Governo:
(i) Inexistência de sinergia entre os trechos ferroviários (não formação de
uma “malha” ferroviária);
(ii) Concentração de trechos nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e;
(iii) Vinculação direta entre o interesse na exploração ferroviária e a economia
do café.
5 A locomotiva “Baroneza”, utilizada para tracionar a composição que inaugurou a Estrada de Ferro Mauá, continuou prestando seus serviços ao longo do tempo e foi retirada de circulação após 30 anos de uso. Foi a primeira locomotiva a vapor a circular no Brasil e transformada, posteriormente, em monumento cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Esta locomotiva, por seu importante papel, como pioneira, constitui pedaço da história do ferroviarismo brasileiro. Foi construída em 1852 por Willian Fair Bairns & Sons, em Manchester, Inglaterra, fazendo, atualmente, parte do acervo do Centro de Preservação da História Ferroviária, situado no bairro de Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro.6 Outras operações se seguiram à D. Pedro I, todas com bitola larga de 1,62m: (i) a ferrovia Recife-São Francisco, inaugurada no dia 8 de fevereiro de 1858, que ligaria a cidade até o Rio São Francisco, que, embora nunca tenha atingido sua finalidade, ajudou a criar e desenvolver as cidades por onde passava, constituindo o primeiro tronco da futura “Great Western”, (ii) Estrada de Ferro D. Pedro Segundo, inaugurada em 29 de março de 1858, com trecho inicial de 47 quilômetros ligando Queimados ao Rio de Janeiro e ostentou o que foi, à época, o maior túnel do país, com 2,3 quilômetros de extensão, aberto em 1864, (iii) a Ferrovia Bahia-São Francisco, em 16 de junho de 1860, (iv) Santos-Jundiaí, inaugurada em 16 de fevereiro de 1867, (v) Companhia Paulista, de 11 de agosto de 1872.
7
Com a vinculação econômica estabelecida em função da economia do café, o
modelo entrou em crise ensejada pelo colapso financeiro de 1929 e o colapso do setor.
1.2. A Rede Ferroviária Federal S.A e a Ferrovia Paulista S.A.
As ferrovias brasileiras são repensadas a partir 1930. O ambiente “pós-crise”
promoveu o entendimento de que o Estado deveria participar ativamente na economia,
com o objetivo de desenvolvê-la e guia-la, justificando a criação de comissões (gérmen
das futuras agências), empresas públicas (as “Brás”) e outras intervenções7. O Governo
Vargas inicia o processo de reorganização das estradas de ferro, com a encampação de
empresas estrangeiras e nacionais, inclusive estaduais, que se encontravam em má
situação financeira. Com isso, a União passou a administrar toda a malha ferroviária
brasileira por meio da Inspetoria Federal de Estradas, órgão do Ministério da Viação e
Obras Públicas8, encarregado de gerir as ferrovias e rodovias federais.
Dentre os objetivos da encampação das estradas férreas, estava o intento de
combater os problemas originados pela ausência de sinergia entre os trechos
inicialmente concedidos:
a) Falta de sinergia entre as malhas;
b) Interrupção brusca no tráfego;
7 A essa altura, o setor já havia sido impactado (i) pela introdução da tração elétrica (1930), substituindo a tração a vapor em diversos trechos, (ii) a substituição da tração a vapor pela diesel elétrica (intensificado em 1950).8 O IFE de origem, posteriormente, ao Departamento Nacional de Estradas e Rodagem – DNER e ao Departamento Nacional de Estradas de Ferro - DNEF
8
c) Sucateamento dos ativos operacionais, do aparato administrativo, das linhas e
do material rodante.
No início da década de 1950, o Governo Federal, decidiu pela unificação
administrativa de 18 estradas de ferro então pertencentes à União, o que totalizava
37.000km de linhas espalhadas pelo país.
Em 16 de março de 1957, a Lei n. 3.315-9 criou a Rede Ferroviária Federal S.A. –
RFFSA, com a finalidade de administrar, explorar, conservar, reequipar, ampliar e
melhorar o tráfego das estradas de ferro da União a ela incorporadas, que abrangiam as
regiões Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul do país. Posteriormente as malhas da
RFFSA foram agrupadas em 4 sistemas:
- Regional Nordeste: com sede em Recife;
- Regional Centro: com sede no Rio de Janeiro;
- Regional Centro-Sul: com sede em São Paulo;
- Regional Sul: com sede em Porto Alegre.
Em 1976 a RFFSA se organizou em 10 Superintendências Regionais – SR
(posteriormente ampliadas para 12), com atividades orientadas e coordenadas por uma
Administração Geral, a partir do Rio de Janeiro.
O Governo do Estado de São Paulo, com a edição da Lei Estadual n. 10.410/71,
unificou em uma só empresa as cinco estradas de ferro de sua propriedade. A (i)
Companhia Paulista de Estradas de Ferro, (ii) a Estrada de Ferro Sorocabana, (iii) a
Estradas de Ferro Araraquara, (iv) a Companhia Mogiana de Estrada de Ferro e (v) a
Estrada de Ferro São Paulo-Minas tiveram seus ativos absorvidos pela Ferrovia Paulista
S.A. – FEPASA, constituindo, aproximadamente, 5.000km de vias férreas.
A empresa teve um crescimento considerável, embora às custas de repasses
federais para cobrir suas custos financeiros e operacionais. De 1980 a 1992, os sistemas
ferroviários pertencentes à RFFSA e à FEPASA foram afetados de forma dramática. Já
em 1984, a RFFSA não gerava recursos suficientes para o serviço das dívidas
contratadas. A degradação da infra e superestruturas dos seus principais segmentos de
bitola métrica e da postergação da manutenção de material rodante ocasionaram
expressiva perda de mercado para o modal rodoviário.
Com a iniciativa de desestatização, quando a estratégia era gerar caixa para o
Governo, a RFFSA era um enorme desafio. Com valor de venda negativo, a alternativa
9 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3115.htm, acessado em 03 de junho de 2014.
9
era sanear o setor, repassar a malha viária para a iniciativa privada e repensar o modelo
regulatório que permitisse a exploração pelos novos players. A verticalização, naquele
momento, pareceu ser a alternativa mais apropriada, o que acabou acontecendo com o
modelo regulatório de privatização.
1.3. Anos 80/90 – A Privatização do Setor Ferroviário e a Verticalização
Aproximadamente um século depois da “Baroneza”, novamente o Estado
brasileiro se via diante do desafio de atrair o investimento privado para promover a
integração logística do país. Diante de uma crise financeira profunda, a decisão foi se
desfazer de ativos para garantir maior liquidez ao governo. O autor Carlos Thomaz G.
Lopes sumariza o momento econômico:
A combinação da situação de pré-insolvência do Estado num quadro
evidente de crise fiscal, com o apelo das teses neoliberais levaram a década
dos oitenta a presenciar um inédito processo de abrandamento dos controles,
reformas fiscais profundas, redução de interferência do governo, de forma
geral, e privatizações de empresas estatais e atividades comandadas pelo
poder público. Em todo esse processo ficou patente o desencanto da solução
de entronização do Estado em substituição aos mecanismos de mercado, que
vicejou incólume no pós-guerra.
Independente de regimes políticos, o típico conjunto de decisões dos
anos oitenta procura restabelecer as funções convencionais dos mecanismos
próprios de mercado conjugadamente ao suporte conferido à atividade
produtiva e empresarial privada. Tal influência amplia-se inclusive de forma
a atingir as economias centralizadas, designadamente Rússia e China.
As privatizações atendem a interesses variados, seja como forma de
financiar o Estado bloqueado por endividamento e tributação excessivos,
seja para aumento do espectro de acionistas na sociedade (uma massificação
do capitalismo) mas, essencialmente, consiste numa fórmula considerada
inatacável para melhorar o desempenho das empresas controladas pelo
Estado
(...)
O processo inglês de privatização veio acompanhado de medidas que
tentavam reduzir o impacto das políticas intervencionistas anteriores: o
objetivo é liberar os controles, reduzir as taxas e eliminar as perdas.
10
Tenta-se, assim, recuperar a credibilidade – e portanto a legitimidade
– do Estado e simultaneamente atingir o reequilíbrio das contas públicas,
estimular a iniciativa privada, e respeitar os mecanismos próprios do
mercado.
De 1980 até 1988 foram vendidas empresas até então controladas pelo
Estado num total de U$31 bilhões, tendo, nesse período, aumentado o
número de acionistas de 9% para 21% da população adulta.10
Na tentativa de implementação deste ajuste institucional, a operação dos trens
urbanos foi passada à recém-criada Companhia Brasileiros de Trens Urbanos
(“CBTU”)11, permanecendo a operação da RFFSA com os trajetos mais deficitários.
Diante da dificuldade de geração de recursos necessários à operação, o Governo Federal
optou por incluir a RFFSA no Programa Nacional de Desestatização12, o que se deu pela
edição do Decreto n. 473, de 10 de março de 1992. O processo de desestatização se deu
pela lógica da Lei n. 8.987/95, retornando, embora com modificações, a opção pela
verticalização do setor.
A opção regulatória privilegiou o operador-usuário, tendo nas produtoras de
commodities as maiores interessadas nos trechos licitados. Após privatização da malha
ferroviária da RFFSA passou às seguintes operadoras:
Malhas
Regionais
Data do
LeilãoConcessionárias
Início da
Operação
Extensão
(Km)
Oeste 05.03.1996 Ferrovia Novoeste S.A. 01.07.1996 1.621
Centro-Leste 14.06.1996 Ferrovia Centro-Atlântica S.A. 01.09.1996 7.080
Sudeste 20.09.1996 MRS Logística S.A. 01.12.1996 1.674
Tereza Cristina 22.11.1996 Ferrovia Tereza Cristina S.A. 01.02.1997 164
Nordeste 18.07.1997 Cia. Ferroviária do Nordeste 01.01.1998 4.534
Sul 13.12.1998
Ferrovia Sul-Atlântico S.A. –
atualmente – ALL-América
Latina Logística S/A
01.03.1997 6.586
Paulista 10.11.1998 Ferrovias Bandeirantes S.A. 01.01.1999 4.23610 LOPES, Carlos Thomaz G. Planejamento, Estado e Crescimento. Ed. Livraria Pioneira, São Paulo, 1990, p. 129-130.11 A CBTU foi criada pelo Decreto n. 89.396, de 22 de fevereiro de 1984, o qual foi posteriormente revogado pelo Decreto de 15 de 1991.12 Programa Nacional de Desestatização, instituído pela Lei n. 8.031/90.
11
Total 25.895
Fonte: DNIT
A então Companhia Vale do Rio Doce (“CVRD”), no processo de sua
privatização, recebeu a outorga da Estrada de Ferro Vitória a Minas e Estrada de Ferro
Carajás a fim de garantir o escoamento do minério de ferro que produzia.
A opção pela verticalização do setor, que levava o operador a ser o responsável
pela (i) manutenção/ampliação da infraestrutura, (ii) gestão e operação da malha
ferroviária e (iii) prestação do serviço de transporte para terceiros (e não raro para si
próprio), promoveu o retorno de algumas características negativas já experimentadas na
primeira fase do setor no Brasil.
Ocorre que as malhas se desenvolveram apenas em corredores rentáveis e que
possuíam sinergia com determinadas atividades. Nesse sentido, os trajetos tiveram
maior incentivo para serem construídos em harmonia com a necessidade de escoamento
produtos específicos (minério de ferro, soja, combustíveis etc.), privilegiando a conexão
direta entre determinada região e o destino de escoamento, via de regra, um porto.
Novamente, não se consubstanciara o conceito de “malha”, mas de “corredores”.
Outra característica negativa do modelo foi o incentivo para que os
concessionários-usuários precificassem o serviço de transporte, quando prestado a
terceiros, em valor superior ao que experimentavam quando transportavam carga
própria. Ou seja, a atividade de transporte para terceiro subsidiava o custo próprio de
transporte, promovendo desequilíbrios severos nos diversos setores de commodities.
Novos pontos de atenção se apresentaram e a proposição de soluções não foi uma
tarefa fácil. Inicialmente, como os corredores ferroviários eram praticamente
independentes, não era raro que um produto não vinculado à malha inicial (e.g.
eletrônicos e vestuário) necessitasse da interface (inexistente) entre duas ou mais
malhas. Nesse sentido, seria necessária a comunicação entre players de transporte
ferroviário o que sempre representou desafio na regulação do setor.
Com o amadurecimento das privatizações e a mudança do panorama econômico, a
Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”) sentiu, nos últimos anos, ser
possível melhorar o cenário promovendo algumas exigências de investimento por parte
dos concessionários, regulando alguns assuntos que, em tese, promoveriam a integração
12
das malhas e a disponibilidade de percursos, bem como a possibilidade de que
concessionárias investissem em capacidade na malha de terceiro.
Nesse intuito foram editadas as seguintes resoluções:
a) Resolução n. 3.694/2011: que aprova o regulamento dos usuários dos serviços
de transporte ferroviário de cargas;
b) Resolução n. 3.695/2011: que aprova o regulamento das operações de Direito
de Passagem e Tráfego Mútuo, visando à integração do Sistema Ferroviário
Nacional, e;
c) Resolução n. 3.696/2011: que aprova o Regulamento para pactuar as Metas
de Produção por Trecho e as Metas de Segurança para as Concessionárias de
Serviço Público de Transportes Ferroviários de Cargas.
Passa-se à uma rápida abordagem de cada um dos normativos acima referidos.
1.3.1. Regulamento dos Usuários do Serviço de Transporte Ferroviário de
Cargas – Resolução n. 3.964/11
Diante do panorama descrito anteriormente, em 14 de julho de 2011 foi
apresentada a Resolução n. 3.694/11, aprovando o Regulamento dos Usuários dos
Serviços de Transporte Ferroviário de Cargas e revogando a Resolução n. 350, de 18 de
novembro de 2003-13.
O primeiro ponto de atenção do novo regulamento é a manutenção do conceito de
“usuário com elevado grau de dependência”14 (agora, sob a nomenclatura de “usuário
dependente”) e o tratamento dos conceitos de “usuário investidor” e “usuário
operador”.
13 O texto da Resolução n. 350/03 está disponível em https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=99413 acessado em 23 de junho de 2014.14 Para a Resolução n. 350/11, o usuário dependente era definido pelo art. 2º como sendo aquele que (i) “para recebimento ou despacho de produtos ou insumos, não disponha de outro modal que seja técnica ou economicamente viável, face a competitividade de seu negócio, depender da disponibilidade do transporte ferroviário” ou (ii) “realize ou se comprometa a realizar investimentos nas malhas concedidas, em instalações industriais, logísticas, de infraestrutura ou material rodante para o uso de transporte ferroviário”.A qualificação como usuário com elevado grau de dependência garantia que a ANTT controlasse e, de certa forma, garantisse que a concessionária de transporte colocasse à disposição serviços adequados e suficientes para o atendimento das necessidades constantes do registro. Ou seja, a demanda dos usuários registrados como de elevado grau de dependência deveria ser considerada no planejamento das concessionárias.
13
O usuário dependente passa a ser definido de forma semelhante à norma anterior,
como aquele que “considere a prestação de serviço de transporte ferroviário de cargas
indispensável à viabilidade de seu negócio”, devendo apresentar uma declaração de
dependência e o fluxo a ser transportado para, pelo menos, os próximos cinco anos.
O “usuário investidor”, tratado pelo art. 38, é aquele que investe em concessão do
serviço público de transporte ferroviário de cargas por meio de (i) aquisição de material
rodante ou (ii) realização de obras em programas ou projetos de expansão ou
recuperação da malha ferroviária existente podendo negociar, com a concessionária,
mecanismo de compensação financeira pelo dispêndio. O investimento deverá ser
intermediado pela ANTT.
Outra figura tratada pela Resolução n. 3.694/11 foi a do “Usuário Operador de
Transporte Multimodal” (“OTM”). O OTM, que já era tratado pela Lei n. 9.611/98,
assume a responsabilidade pela execução de contratos de transporte multimodal e
participa de toda a operação, desde o recebimento da carga até a sua entrega no destino,
contratando os modais necessários para a realização do serviço.
A lógica estabelecida na Resolução n. 3.694/11 se norteia pelo registro da
capacidade ociosa na ANTT e, na ausência de disponibilidade de malha, a possibilidade
de que o próprio usuário invista no trajeto de que necessita ou transporte o próprio
produto. A questão se põe em torno de três conceitos de capacidade: (i) capacidade
instalada – sendo aquela possível em um trecho ferroviário, expressa pela quantidade de
trens que poderão circular, nos dois sentidos, em um período de 24h, (ii) capacidade
vinculada – sendo aquela definida pela quantidade de trens que poderão circular em um
trecho ferroviário, nos dois sentidos, em um período de 24h, definida em função da
meta de produção pactuada entre a concessionária e a ANTT, incluindo a utilização de
reserva técnica15, (iii) capacidade ociosa – sendo a diferença entre a capacidade
instalada e a capacidade vinculada.
15 Nos termos do inc. IV do art. 8º da Lei n. 11.483/11, a reserva técnica são bens imóveis não operacionais destinados à expansão e ao aumento da capacidade de prestação do serviço público de trabalho ferroviário. O art. 1º do Decreto n. 7.929/13 também trata do tema.
14
Outros pontos merecem atenção, dentre eles podem ser destacados:
a) A ANTT passou a estabelecer preços tetos para os serviços de transporte16;
b) A adequabilidade do serviço deveria garantir o transporte dos volumes
contratados sem interrupção (exceto em casos de força maior) e nos prazos
estabelecidos17;
c) Obrigatoriedade de transferência de capacidade ociosa para terceiros;
d) Participação dos Usuários na fiscalização das concessionárias;
e) Transparência na gestão do serviço de transporte ferroviário, sendo obrigatória
a divulgação do (i) transit time, (ii) relação das operações acessórias
realizadas e o respectivo preço, (iii) localização da carga, (iv) ocorrência de
eventos extraordinários, (v) valor exato da tarifa cobrada e (vi) condições
operacionais;
f) Proximidade no contato com clientes, o que deve ser garantido pela
manutenção de um canal de atendimento que processo e registre as
reclamações realizadas no prazo de 30 dias;
g) Algumas práticas foram discriminadas no regulamento como, por exemplo, a
discriminação injustificada de usuários, a prática de tarifas acima do limite
definido pela ANTT, exercer de forma abusiva o controle da infraestrutura
ferroviária, dentre outras.
1.3.2. Regulamento das Operações de Direito de Passagem e Tráfego Mútuo –
Resolução n. 3.695/11
Com a publicação do Regulamento dos Usuários, passou a ser ainda mais urgente
a regulamentação do uso e integração das malhas ferroviárias sob gestão de diferentes
concessionárias. A análise do desafio se prostrava, principalmente, diante dos
mecanismos existentes para a integração das malhas e dos interesses dos
concessionários.
Com isso, foi editada e Resolução n. 3.695 de 14 de julho de 2011, aprovando o
Regulamento das Operações de Direito de Passagem e de Tráfego Mútuo, visando à
16 As informações obtidas com players desse mercado indicam que, na realidade, o preço da prestação dos serviços de transporte ferroviário sempre foram ditados pela concorrência com o transporte rodoviário, uma vez que os preços da ANTT sempre estiveram acima, não servindo de parâmetro.17 O art. 18 do regulamento prevê, ainda, que os serviços de transporte ferroviário deverão se dar de forma regular, contínua, segura, atual, generalizada, pontual, transparente e módica.
15
integração da malha ferroviária então existente. A norma regula os contratos celebrados
entre as concessionárias e os usuários, estabelecendo, entre outras coisas, que o
compartilhamento de infraestrutura ferroviária ou de recursos operacionais dar-se-á
mediante tráfego mútuo ou, na sua impossibilidade, mediante direito de passagem.
Nos termos da referida resolução, tráfego mútuo é a “operação em que uma
concessionária compartilha com outra concessionária, mediante pagamento, via
permanente e recursos operacionais para prosseguir ou encerrar a prestação de serviço
público de transporte ferroviário de cargas. Direito de passagem, por sua vez, é “a
operação em que uma concessionária, para deslocar a carga de um ponto a outro da
malha ferroviária federal, utiliza, mediante pagamento, via permanente e sistema de
licenciamento de trens da concessionária em cuja malha dar-se-á parte da prestação de
serviço”18.
Na inexistência de capacidade ociosa, tanto a concessionária quanto as usuárias
poderão realizar investimentos na infraestrutura de atendimento. Os usuários que
realizarem tais investimentos poderão solicitar desconto na remuneração devida pela
utilização da infraestrutura da concessionária, embora a responsabilidade pela operação
e manutenção dos trechos expandidos permaneça com a última.
A resolução tratou ainda dos dispositivos sobre a solução de conflitos
apresentados à ANTT, condições especiais aplicáveis ao transporte de produtos
perigosos, entre outras disposições que deverão ser observadas pelos usuários e
concessionárias no âmbito dos contratos de direito de passagem e tráfego mútuo.
1.3.3. Metas de Produção por Trecho e Metas de Segurança para as
Concessionárias – Resolução n. 3.696/11
Como dito anteriormente, o segundo momento de regulação se preocupou não
apenas em passar os ativos deficitários da gestão pública para a gestão privada, mas em
18 Conforme pontuado pelo Engenheiro Flavio Forn, a quem ora registramos nosso agradecimento:a) “Licenciamento” é a liberação para um trem circular entre uma estação ou pátio e outra
estação ou pátio;b) “Condução” é o ato do maquinista ao conduzir o trem, fazer a sua circulação, dirigi-lo;c) “Abastecimento” é suprir as locomotivas com o combustível utilizado;d) “Carregamento e descarregamento” é colocar carga (mercadoria) nos vagões ou descarrega-la;e) “Manobra” é quando se faz a retirada ou a anexação de vagões e ou locomotivas nos trens,
também pode ser manobra de posicionar vagões nos terminais de carga ou descarga ou, ainda, ser manobra nos pátios para separar vagões por tipo e/ou formando trem/composição
16
estipular metas de investimento e de qualidade na prestação dos serviços públicos de
transporte ferroviário.
A principal previsão, nesse sentido, é a de obrigação de apresentação de proposta
de pactuação de metas de produção por trecho e metas de segurança das ferrovias
concedidas, contendo estudo de mercado, plano de negócios, inventário de capacidade
para cada um dos trechos, padrões operacionais e cadastro de todas as estações
operacionais. Com a apresentação da proposta, a concessionária deve negociar com a
ANTT as metas de produção e segurança aplicáveis vinculadas ao ano seguinte ao da
apresentação da proposta e indicativa para os demais quatro anos. O cumprimento das
metas é verificado anualmente pela ANTT estando a concessionária que não cumprir o
pactuado sujeita às penalidades previstas no contrato de concessão e na Resolução n.
288/03 da ANTT19.
2. O NOVO MODELO DA ANTT
A experiência vivenciada no mercado, marcada por preços pouco competitivos, a
malha insuficiente e a falta de interação entre as concessionárias, demandou que o
Governo Federal repensasse o modelo regulatório do setor de ferrovias. A mudança foi
registrada no Decreto n. 8.129 de 23 de outubro de 2013, sendo resultado de intensos
debates sobre as alternativas para solucionar os gargalos do setor.
Alguns problemas permaneceram presentes, apesar das valiosas tentativas da
ANTT em popularizar o setor e promover a integração de players, dentre esses
problemas podem ser citados:
(i) A competição desigual com o modal rodoviário;
(ii) O desinteresse dos administradores de malhas específicas em deixar que
terceiros ocupassem a capacidade disponível em períodos críticos;
(iii) Necessidade de abertura de outros trechos ferroviários para estimular a
integração econômica em outras áreas do território nacional.
Com os problemas que se perpetuaram desde a origem do setor no Brasil, a
solução implementada pela norma era a de desagregar (“to unbundle”) os segmentos de
(i) infraestrutura ferroviária, (ii) serviços de transporte ferroviária e o (iii) mercado de
usuários. O objetivo com a divisão é permitir que os usuários tenham livre acesso 19 Cujo texto está disponível em http://www.antt.gov.br/index.php/content/view/1288/Resolucao_n__288.html, acessado em 24 de junho de 2014.
17
(“open access”) ao mercado de transporte ferroviário e, com isso, tentar a promoção de
maior competição interna do setor.
A tentativa de equacionamento da questão deu-se pela desverticalização do setor,
buscando a exploração de características específicas de cada atividade no segmento
ferroviário. A infraestrutura ferroviária, por exemplo, considerada típico caso de
monopólio natural20, que demanda a intervenção regulatória a fim de garantia a
concorrência. Os serviços de transporte, por sua vez, trazem consigo a possibilidade de
concorrência em circunstâncias normais de acesso aos players, o que traz a necessidade
de regulação a fim de garantir a igualdade de competição e o amplo acesso. O mercado
de usuários, por fim, é naturalmente concorrencial, sendo necessário algum cuidado
com a eventual concentração de mercado.
Dessa forma, tem-se o seguinte panorama:
Nesse sentido são editados o (i) Decreto 8.129/13, que institui a política de livre
acesso ao Sistema Ferroviário Federal (“SFF”) e dispõe sobre a atuação da VALEC –
Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. e o (ii) Decreto n. 8.134/2013, que estrutura a
VALEC para a execução das atividades de desenvolvimento dos sistemas de transporte
ferroviário e aprova o Estatuto Social da Empresa.
O art. 1º do Decreto n. 8.129/13 lida diretamente com os desafios de modelagem
anteriormente expostos. A primeira providência tomada pelo normativo foi estabelecer a
política de livre acesso ao Subsistema Ferroviário Federal, no intuito de promover
competição entre os operadores ferroviários. Para a promoção de tal competição, foram
separadas as outorgas para exploração da infraestrutura ferroviária e a prestação de
20 O conceito de monopólio natural pode ser simplificado como “um monopólio em uma indústria na qual é mais eficiente (considerando o custo médio de longo prazo) concentrar a produção em uma única firma”, conforme conceito registrado por William J. Baumol (BAUMOL, William J., 1977. On the proper cost tests for natural monopoly in Multiproduct Industry, American Economic Review 67, 809-22) disponível em http://www.jstor.org/discover/10.2307/1828065?uid=3737664&uid=2&uid=4&sid=21104364298803, acessado em 24 de junho de 2014.
18
serviços de transporte ferroviário e instituído o livre acesso dos usuários à malha
integrante do SFF.
Nesse desiderato, de acordo com o art. 3º do Decreto, a VALEC deverá (i)
planejar, administrar e executar os programas de exploração da capacidade de transporte
das ferrovias das quais detenha o direito de uso, (ii) adquirir e vender o direito de uso da
capacidade de transporte das ferrovias exploradas por terceiros21, (iii) expandir a
capacidade de transporte no SFF, (iv) promover a integração das malhas e a
interoperabilidade da infraestrutura ferroviária, observada a regulação da ANTT.
O art. 4º do Decreto estabelece que a VALEC poderá adquirir o direito de uso de
parte ou de toda a capacidade de transporte, presente ou futura, de ferrovia concedida,
podendo, ainda, antecipar em favor do concessionário até 15% dos recursos referentes
aos contratos de cessão de direito de uso da capacidade de transporte da ferrovia, desde
que haja previsão expressa no edital e no contrato, com garantias e cautelas necessárias.
O Decreto n. 8.134/13, por sua vez, aprova o novo estatuto social da VALEC.
Merece destaque a adoção do padrão internacional de contabilidade (de acordo com o
International Financial Reporting Standards – IFRS) bem como a inclusão, no
parágrafo único do art. 6º do Estatuto, da atividade de “fomento” de operações
ferroviária a fim de harmonizar os estatutos da empresa com o modelo proposto pelo
Decreto n. 8.129/13, permitindo que a VALEC execute o (i) planejamento,
administração e execução de programas de exploração da capacidade de transporte das
ferrovias das quais detenha direito de uso, (ii) aquisição e venda do direito de uso da
capacidade de transporte ferroviário explorado por terceiros, (iii) expansão da
capacidade de transporte no SFF e (iv) promover a integração das malhas e a
interoperabilidade da infraestrutura ferroviária, observada a regulamentação da ANTT.
2.1. Análise do Novo Modelo Ferroviário pelo TCU
Foi nos autos do relatório no TC n. 031.086/2013 (Apenso: TC n. 031.596/2013-
4) que o TCU registrou seus entendimentos acerca do acompanhamento do processo de
desestatização, primeiro estágio de concessão de exploração de infraestrutura
21 Interessante perceber que o Decreto estabelece, no §1º do art. 3º, a obrigatoriedade de que a aquisição e venda da capacidade de transporte das ferrovias deverá ser precedida de oferta pública, observados critérios objetivos e isonômicos, no entanto, não esclarece exatamente como se dará a tal oferta pública e quais serão os critérios utilizados.
19
ferroviária, no trecho da EF-354, compreendido entre Lucas do Rio Verde (MT) e
Campinorte (GO), com 883,69 km de extensão. A concessão faz parte do Programa de
Investimento em Logística (“PIL”) para ferrovias, concebido pelo Governo Federal. A
aprovação do modelo operacional e das condições gerais da outorga desse trecho
ferroviário foi realizada pelo Conselho Nacional de Desestatização, por meio da
Resolução – CND n. 19, de 27 de novembro de 2013, que alterou a Resolução n. 16, de
11 de outubro de 2013.
O modelo é exposto pelo TCU com a seguinte sistemática:
a) a concessionária é responsável pela implantação da infraestrutura,
sinalização e controle da circulação de trens e deterá o direito de exploração da
ferrovia;
b) a Valec compra a totalidade da capacidade da ferrovia, remunerando a
concessionária por uma Tarifa (Tarifa pela Disponibilidade da Capacidade
Operacional);
c) a Valec subcede, a título oneroso, partes do Direito de Uso aos Usuários;
d) a concessionária presta serviços de operação diretamente aos Usuários,
que a remunera através de outra Tarifa (Tarifa de Fruição), na medida da
utilização da Ferrovia.
A essa concessionária terá uma remuneração composta por um componente
atrelado à disponibilização da Capacidade Operacional (que remunera os
investimentos e os custos fixos incorridos na manutenção da via) e outro atrelado à
utilização dessa capacidade (que remunera os custos fixos variáveis gerados pela
movimentação de trens). A disponibilização é paga trimestralmente e calculada a partir
da Tarifa pela Disponibilidade da Capacidade Operacional (“TDCO”), ainda que a
VALEC não consiga subceder a capacidade adquirida. Nesse sentido, a VALEC arcará
com o ônus de remunerar a Concessionária pelo capital investido e pelos custos fixos
incorridos, independentemente das condições reais de demanda, assumindo o risco do
empreendimento.
O modelo do edital também previa que, durante o período de obras, a VALEC
anteciparia o valor equivalente a 15% do total de investimentos em bens de capital
(Capex) que seria abatido linearmente durante o período de operação da ferrovia.
20
A parcela de remuneração da concessionária vinculada à utilização da capacidade
operacional visa cobrir os custos variáveis gerados pela movimentação de trens sobre a
via e será calculada a partir da Tarifa de Fruição (“TF”), a qual será utilizada para fins
de pagamento devido pelos Usuários da ferrovia, ou seja, os operadores ferroviários
que adquirirem da VALEC o direito de uso para trafegar seus trens.
Os problemas elencados pelo TCU foram os seguintes:
a) No regime de concessões comuns, é indispensável que a exploração do serviço
seja sustentável e ofereça rentabilidade, de modo que a amortização do capital
investido, o custeio da operação e o lucro empresarial sejam remunerados pela
percepção de tarifa cobrada dos usuários do serviço. No modelo proposto pela
ANTT, a amortização dos vultosos investimentos a serem realizados pela
concessionária e os custos operacionais fixos serão pagos pela VALEC, por
meio da aquisição de uso correspondente a 100% da capacidade operacional
de cada ferrovia concedida, sem, contudo, ser usuária do serviço;
b) O empreendimento não pode ser concedido na forma de concessões comuns
de que tratam o art. 2º, inc. III, da Lei n. 8.987/95, a não ser que o subsídio
fosse previsto nos moldes do art. 17 da mesma lei, ou seja, com prévia
autorização legal;
c) O adiantamento pela VALEC, a título de incentivo, de 15% do valor do Capex
investido pela concessionária não encontra guarida na Lei n. 8.987/95 (só
sendo possível sob a égide da Lei n. 11.079/04) tampouco a garantia de renda
mínima, em virtude do veto ao art. 24 do projeto da referida lei para evitar o
incentivo a ineficiência operacional da concessionária e o risco de dispêndio
com subsídio pelo poder público;
d) A assunção integral pelo Poder Concedente do risco de demanda não encontra
respaldo na Lei n. 8.987/95. Para a melhor modelagem do projeto, dever-se-ia
aplicar a Lei n. 11.079/04 e modelar a concessão desverticalizada da
infraestrutura sob a égide das concessões administrativas;
e) A Lei n. 11.772/08 não confere competência à VALEC para atuar como
Anuente/Interveniente na compra e venda de capacidade operacional
ferroviária de toda a malha nacional, tampouco assim dispõe o edital;
f) Não foram definidas regras claras em relação aos seguintes pontos: (i) os
direitos e obrigações da VALEC, da concessionária e dos transportadores
independentes; (ii) a forma como a VALEC irá comercializar a capacidade
21
operacional adquirida por meio dos Contratos de Cessão Onerosa do Direito
de Uso e (iii) o critério de compra e venda da capacidade ociosa das ferrovias
existentes;
g) Falta justificativa para a adoção de apenas parte dos parâmetros de qualidade
da Federal Railroad Administration (“FRA”) no cálculo da TDCO;
h) Não estabelecimento dos parâmetros do material rodante que será permitido
trafegar na ferrovia e as regras a serem seguidas pelos operadores ferroviários,
bem como o seu impacto nos custos de manutenção e no cálculo da TF;
i) O estudo de demanda carece de uma metodologia que seja consagrada no
mercado e no meio acadêmico, dê tratamento uniforme ao universo de dados
brutos considerados e garanta o máximo de consistência à série temporal
calculada, evitando que produtos sejam computados mais de uma vez na
demanda total prevista.
Outro ponto é o relativo à atividade de “fomento”. O TCU argumenta que a
atividade de fomento pela VALEC é ilegal. Ocorre que o art. 174 da Constituição
Federal determina que “o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização,
incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado”. Nesse sentido, o exercício da função de fomento depende de lei, não
sendo o Decreto n. 8.129/13 conferir à VALEC uma atribuição que não foi prevista pela
Lei n. 11.772/08.
Além disso, o órgão aponta que a utilização do modelo para o negócio geraria
uma despesa total da ordem de R$ 17,1 bilhões. Dessa forma, estaria também violada a
alínea “a” do inc. VI do art. 84 da Constituição Federal, a qual prevê que o exercício,
pela Presidência da República, da competência privativa para dispor por meio de
decreto autônomo não pode implicar aumento de despesa. Desse modo, o TCU entende
ser inconstitucional a atuação da VALEC consubstanciada em ações de fomento para o
desenvolvimento dos sistemas de transportes sobre trilhos, estabelecidos no Decreto n.
8.129/13.
Por fim, o TCU determinou à ANTT, dentre outras obrigações não relacionadas
com a modelagem jurídica, o seguinte:
a) Que adotasse as providências necessárias para corrigir as ilegalidades
anteriormente citadas;
22
b) Que definisse regras claras de compra e venda da capacidade ociosa das
malhas já existentes, para possibilitar a venda ponta-a-ponta pela Estatal do
direito de uso da ferrovia;
c) Que ajustasse os termos da minuta de contrato de forma que contenha como
partes de um lado a VALEC (entendida como subconcedente) e de outro a
pessoa da ”subconcessionária”, devendo à ANTT participar como “Poder
Concedente Interveniente”;
O órgão ainda recomendou que a ANTT estruturasse a concessão na forma de
uma parceria público-privada, na modalidade administrativa, conforme estabelecido no
art. 2º, §2º da Lei n. 11.079/04.
2.2. Regulação do contrato entre a VALEC e os Operadores Ferroviários
Independentes (“OFI”) – Resolução n. 4.348/14
Após longos debates sobre a forma pela qual deveria se dar o contrato entre a
VALEC e os operadores ferroviários independentes, foi editada a Resolução n. 4.348,
de 05 de junho de 2014, a qual aprova o Regulamento do OFI para a prestação do
serviço de transporte ferroviário de cargas não associado à exploração da infraestrutura
da ferrovia.
O primeiro ponto de atenção na norma é a utilização da ”autorização” como meio
para que a ANTT se relacione com o OFI para a prestação do serviço de transporte
ferroviário de cargas não associado à exploração de infraestrutura ferroviária22.
O segundo ponto é a divisão das concessionárias. A primeira, chamada
concessionária horizontal, é a pessoa jurídica detentora do direito de exploração da
infraestrutura ferroviária à qual é vedada a prestação do serviço de transporte
ferroviário de cargas nos termos do respectivo contrato de concessão. A segunda, por
sua vez, é a concessionária vertical, pessoa jurídica detentora do direito de exploração
da infraestrutura ferroviária, incluído, nos termos constantes no respectivo contrato de
concessão, qualquer direito relacionado à prestação dos serviços de transporte
ferroviário de cargas.
22 A Resolução ANTT n. 4.348/14 elenca, em seu art. 3º, os itens que a autorização deverá conter, quais sejam: (i) identificação do requerente, (ii) número de ordem em série crescente da autorização e o ano de sua expedição, (iii) o objeto da autorização, (iv) o número do processo administrativo em que foram juntados os documentos que comprovem o atendimento pelo OFI dos requisitos legais e os fundamentos de direito e de fato da autorização, (v) os direitos e deveres da autorizada, (vi) as hipóteses de extinção da outorga e (vii) as sanções pecuniárias a que está sujeito o OFI.
23
Nesse sentido:
O terceiro ponto é o tratamento dos contratos específicos, nos termos da exigência
feita pelo TCU. O “contrato de cessão onerosa do direito de uso da capacidade de
tráfego”, por meio do qual a VALEC formaliza a cessão do direito de uso da capacidade
de tráfego aos OFI, o “contrato de cessão onerosa do uso de capacidade ociosa”, por
meio do qual as concessionárias verticais cedem à VALEC o direito de uso da
capacidade ociosa da infraestrutura ferroviária outorgada, mediante pagamento da tarifa
de disponibilidade de capacidade ociosa e o “contrato operacional de transporte”, que
regulamenta as regras de acesso e utilização da infraestrutura ferroviária, celebrado
entre as concessionárias e os OFI, mediante o pagamento da tarifa de fruição.
No modelo proposto a partir da resolução, o OFI deverá requerer a concessão de
autorização junto à ANTT e, para obtenção, deverá cumprir os requisitos jurídicos23,
23 Tratados no art. 10 da Resolução ANTT n. 4.348/14, prevendo: (i) no caso de sociedade empresária: ato constitutivo devidamente registrado na junta comercial da respectiva sede, acompanhado de documento comprobatório de seus administradores, e (ii) no caso de sociedade por ações: ato constitutivo devidamente registrado na junta comercial da respectiva sede, acompanhado de documento de eleição de seus administradores e publicação em Diário Oficial.
24
econômico-financeiros24, fiscal25 e técnico26. A autorização será outorgada por prazo
indeterminado, devendo o OFI requerer o recadastramento nos 12 meses antes do
término do prazo de 5 anos, contados da data de publicação da autorização ou de seu
recadastramento anterior.
A Resolução n. 4.348/14 também altera (i) os incisos III e XVI do art. 2º da
Resolução n. 3.695/11, vinculando a definição de capacidade ociosa à consideração dos
volumes de transporte realizados por OFIs, (ii) o art. 9º da Resolução n. 3.696/11, para
que seja obrigatória a venda de capacidade ociosa dos trechos ferroviários também para
a VALEC (e não apenas a outros usuários e OTM). O objetivo do dispositivo foi
integrar os dois sistemas regulatórios, para que a VALEC possa ser, ao menos
legalmente, detentora de toda a capacidade ociosa da malha ferroviária instalada.
3. RÁPIDA ANÁLISE DA IMPLEMENTAÇÃO DO NOVO MODELO
Como visto, a solução para o setor não é simples. As paulatinas evoluções do
modelo têm obedecido condições conjunturais e contribuído para o enfrentamento de
questões importantes no setor. Novamente, a ANTT parece tomar decisões coerentes
com as limitações e com as demandas, sem esquecer limitações de ordem orçamentária,
sempre presentes nas decisões e políticas públicas. Por outro lado, as críticas à
segurança das garantias ofertadas (e.g. Equity Support Agreement na VALEC) são
levantadas como motivos justificadores da timidez dos investidores com o setor.
24 Tratados no art. 11 da Resolução ANTT n. 4.348/14, prevendo: (i) certidão negativa de falência e recuperação judicial ou extrajudicial expedida, com data não anterior a 60 (sessenta) dias da data da apresentação do Requerimento de Autorização, pelos órgãos competentes com circunscrição na sede da sociedade empresária, (ii) plano econômico, que contemple a previsão de tráfego, receitas, evolução dos custos operacionais e as fontes de financiamento, de forma a demonstrar a capacidade da atendimento dos índices de liquidez geral, índices de liquidez corrente e índices de solvência geral definidos, (iii) balanço patrimonial e demonstração de resultado contábil do último exercício social exigível; (iv) termo de comprovação de boa situação financeira, (v) termo de compromisso de contratação de seguros.25 Tratados no art. 12 da Resolução ANTT n. 4.348/14, prevendo: (i) certidão de regularidade de débitos relativos aos tributos federais e à dívida ativa da União expedida pela SRF; (ii) certidão de regularidade de débitos relativos aos tributos estaduais e à dívida ativa do Estado ou do Distrito Federal, expedida pela SEF, (iii) certidão de regularidade de débitos relativos às contribuições previdenciárias expedida pela SRF; (iv) certidão de regularidade de débitos relativos às contribuições previdenciárias expedidas pela SRF; (v) certidão de regularidade do FGTS expedida pela CEF; (vi) regularidade de obrigações pecuniárias vencidas e não pagas perante a ANTT e (vii) certidão de regularidade de débitos trabalhistas expedida pela Justiça do Trabalho.26 Tratados no art. 13 da Resolução ANTT n. 4.348/14, devendo comprovar que a requerente dispõe de organização apta a acessar e operar a infraestrutura em 30 (trinta) dias.
25
Aqui, acredita-se não ser necessário se repetir nos pontos de atenção suscitados
pelo TCU. Embora muitos autores tenham dedicado inúmeras linhas à crítica do
modelo, muito se esvai diante da pergunta: “qual é a alternativa?”. Com as premissas e
os desafios econômicos postos, ainda não foi apresentada uma proposta viável para o
setor que não aquela apresentada pela ANTT. Com isso, em um primeiro momento
parece mais atraente o convite a fortalecer o modelo do que a destruí-lo.
3.1. Algumas reflexões sobre o Edital Porto Nacional/TO – Estrela
D’Oeste/SP
Um dos 6 principais trechos27 a serem licitados é o do trajeto Porto Nacional
(Tocantins) a Estrela D’Oeste (São Paulo), com 855km de extensão, contemplando os
seguintes pátios de carga/descarga: Porto Nacional, Gurupi, Porangatu, Uruaçu, Santa
Isabel, Jaraguá e Porto Seco de Anápolis. O trecho corta 12 municípios em Tocantins e
18 em Goiás e já se encontra em obra de implantação pela VALEC a quem o trecho
encontra-se concessionado.
O primeiro ponto interessante é quanto ao modelo. Enquanto em outros trechos os
contratos serão firmados entre a ANTT e os concessionários horizontais – figurando a
VALEC como interveniente anuente – no caso de Porto Nacional/Estrela D’Oeste a
VALEC já é concessionária, configurando-se a relação com o concessionário horizontal
como subconcessão, figurando a VALEC como subconcedente.
Alguns outros pontos, frutos de intensos debates durante as audiências públicas,
tiveram destaque no Edital. Inicialmente, a inversão de fases, garantindo maior
celeridade ao processo. Em seguida, a mudança na sistemática de remuneração da
concessionária, que, neste trecho, é formado por 3 tarifas diferentes (e não 2, como
anteriormente), sendo (i) Tarifa de Geração, (ii) Tarifa de Manutenção e (iii) Tarifa de
Fruição, além da possibilidade de se remunerar pela percepção de Receitas
Extraordinárias e exploração de Operações Complementares.
Especificamente quanto a este ponto, o modelo discutido pela ANTT vinha no
sentido de dividir a remuneração em 2 tarifas, sendo a (i) Tarifa pela Disponibilidade da
Capacidade Operacional e (ii) Tarifa de Fruição. A primeira, era definida como “valor a
ser pago pela Interveniente Anuente (VALEC) à Concessionária em função da cessão
27 Submetidos a PMI. Os demais são (i) Açailândia/MA – Barcarena/PA, (ii) Anápolis/GO – Corinto/MG, (iii) Belo Horizonte/MG – Guanambi/BA, (iv) Sinop/MT – Itaituba/PA e (v) Sapezal/MT – Porto Velho/RO.
26
do Direito de Uso da Capacidade Operacional da Ferrovia, calculada nos termos do
Contrato de Concessão e do Contrato de Cessão Onerosa do Direito de Uso”. A
segunda, por sua vez, era definida como “valor a ser pago pelos Usuários à
Concessionária, em função da prestação dos Serviços, calculada nos termos do Contrato
de Concessão”.
Com isso, permanece inalterada a Tarifa de Fruição, mas passam a existir duas
tarifas para tratar da disponibilidade. A primeira, Tarifa de Geração, definida como
“valor a ser pago pela Interveniente Subconcedente à Subconcessionária, em função da
geração da Capacidade Operacional da Ferrovia”. A segunda, Tarifa de Manutenção,
como “valor a ser pago pela Interveniente Subconcedente à Subconcessionária, em
função da manutenção da Capacidade Operacional da Ferrovia, calculada nos termos do
Contrato de Concessão”. Ou seja, o modelo remunera (i) a construção da ferrovia, (ii) a
manutenção da capacidade operacional da ferrovia e (iii) a prestação do serviço de
operação, manutenção, monitoração e gestão relativos à ferrovia.
A divisão da “Tarifa pela Disponibilidade de Capacidade Operacional” em “Tarifa
de Geração” e “Tarifa de Manutenção”, deixa clara intenção do modelo em isolar a
“construção” da “capacidade operacional efetivamente disponibilizada”. Ou seja, fica
isolada a remuneração pela construção da remuneração inerente a outras prestações do
contrato, o que parece razoável, dado a questões de ordem prática como, por exemplo,
as exigências de financiamento.
O setor de ferrovias também incorporou algumas experiências positivas de outros
setores. A utilização de fatores é uma delas, tendo sido elencados 3 para impactar na
remuneração da concessionária horizontal: (i) o fator “d” (Fd), incrementador da Tarifa
Básica de Geração, utilizado como mecanismo de aplicação do Acréscimo de
Reequilíbrio, (ii) o fator “i” (Fi), fator que reflete a Capacidade Operacional da Ferrovia
efetivamente disponibilizada pela Subconcessionária, (iii) o fator “c” (Fc), medido em
percentual, que representa o ajuste baseado na evolução da produtividade da
Subconcessionária.
Nesse sentido, a fórmula da remuneração da concessionária deixa ainda mais clara
a intenção em segregar construção e prestação do serviço, quando dispõe que:
RMt = (TMr * Fit)
Em que:
Rmt = Remuneração em função da manutenção da Capacidade Operacional
apurada no trimestre “t”;
27
TMk = Tarifa de Manutenção vigente no ano “k”; e
Fit = Fator i apurado no trimestre “t”.
Por outro lado:
TGk = (TBGk * Fd) * IRT
Em que:
TGk = Tarifa de Geração vigente no ano “k”;
TBGk = Tarifa Básica de Geração vigente no ano “k”;
Fd = Fator d;
IRT = Índice de Reajustamento Tarifário do ano “k”.
Ou seja, enquanto a manutenção da Capacidade Operacional é impactada pelo
fator i (efetiva disponibilização), a geração é impactada pelo fator d, que simplesmente
reajusta a tarifa. Com isso, a geração – ou construção – seria prejudicada apenas com o
eventual atraso no cronograma de execução.
A modelagem do contrato, no entanto, não pareceu estimular o investimento,
durante todo o período, em qualidade da malha. Após o investimento inicial, inexiste
qualquer incentivo para que a Subconcessionária Horizontal permaneça incorporando
novas tecnologias à estrutura construída, o que pode, ao final do prazo da subconcessão
(35 anos) gerar alguma incompatibilidade de tecnologias.
Outro ponto de interesse é a alocação da responsabilidade pela disponibilidade da
malha em caso de acidente. Suponha-se, por exemplo, que por uma má conduta do
usuário ocorra um sinistro. É responsabilidade da Subconcessionária restabelecer a
operação da ferrovia e a integridade dos bens da concessão, realizando o desembolso
necessário à recuperação. Apenas na sequência poderá ajuizar ação de regresso contra
os responsáveis pela ocorrência dos acidentes e contra as suas respectivas seguradoras,
o que é normal. No entanto, os impactos do sinistro podem afetar diretamente a Tarifa
de Geração e a Tarifa de Manutenção já num primeiro momento, antes mesmo da
apuração final sobre a responsabilidade. Talvez, esse seja um ponto para futuras
reflexões e que não cabe nesta apresentação geral sobre o tema.
Outro ponto referente à disponibilidade da malha é a possibilidade de comboios
ficarem parados à espera de liberação para ingresso na malha de outra empresa. Ocorre
que, apesar de serem obrigadas a permitirem a passagem, os horários ainda não são
28
obrigatórios28. Com isso, existe a possibilidade de que uma composição fique
aguardando a sua liberação na ponta do traçado, o que geraria a necessidade de mais um
pátio de manobra e, com isso, investimentos extras. Esse parece ser um ponto
importante para o sucesso do open access e parece não ter sido tratado em detalhes e
podendo ensejar futuras divergências.
Outros pontos parecem razoáveis. A limitação do valor da insígnia
“desapropriação” e a alocação do excedente com o parceiro público (embora por meio
de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato) são pontos merecedores de elogio.
Outra questão que chamou positivamente a atenção foi a responsabilização da Empresa
de Planejamento e Logística (“EPL”) pela obtenção da Licença Prévia e de Instalação,
com incentivo para a obediência do trajeto proposto com base na possibilidade de
reequilíbrio econômico-financeiro.
4. CONCLUSÃO
As primeiras tratativas no setor têm buscado soluções pragmáticas para as
premissas estabelecidas. Se a ordem é não comprometer o resultado do Governo, pouco
(ou nenhum) sentido faz a insistência em manter um modelo que, aparentemente, não
viabiliza a injeção de investimentos privados no setor.
Aqui, cabe a reflexão sobre o ideal e o possível. A impressão, no diálogo com os
atores deste mercado, é a de que existe uma apreensão geral sobre o modelo e um
interesse, de todos os envolvidos, na construção de uma solução economicamente
atrativa. No entanto, não há de se perder de vista a problemática histórica do setor, que
sempre tende a uma baixa competitividade interna e fica sujeita à uma concorrência
externa com o setor de rodovias.
Além disso, há de se refletir sobre o uso desmedido do unbundling como
imposição a setores onde a demanda por investimentos ainda supera, em muito, a oferta.
Ocorre que, todas as vezes em que se impõe o compartilhamento e segmentação de
infraestruturas, perde-se muito do interesse do parceiro público em investir relevantes
somas a longo prazo. Parte disso é explicado pela impossibilidade de o investidor gerir
autonomamente o comportamento financeiro de seus ativos, estando sempre dependente
do desempenho de outros players que podem não compartilhar de visões de estratégia e
comerciais harmônicas, comprometendo a segurança do projeto.
28 Questiona-se, inclusive, se estipulação neste sentido é possível.
29
Além disso, é importante refletir sobre a implementação desse modelo. Via de
regra, o unbundling vem como resposta à um cenário em que a demanda é
violentamente alta, o mercado é maduro e o compartilhamento de infraestruturas acaba
por se tornar economicamente mais eficiente. Ao se colocar em perspectiva esta
solução, percebe-se, novamente, a tendência de que a história seja contada de forma
inversa no Brasil, nos mesmos termos do que aparentemente ocorreu com o próprio
conceito de regulação29.
Como esperar que, não conhecendo o comportamento do setor, inexistindo um
mercado estabelecido e desconhecida a rentabilidade, possa se discutir o
“compartilhamento” da infraestrutura “a ser implementada”? O novo modelo de
ferrovias proposto parece não se sensibilizar com as reais necessidades dos investidores
e, com isso, tem tendido a sufocar-se durante a própria concepção.
Durante a elaboração deste artigo, a Presidenta Dilma Rousseff deu sinais de que
a inércia de investidores promoveria mais uma crise de infraestrutura no país,
demandando a flexibilização na implementação do modelo regulatório até então
aventado. A alternativa, conforme noticiado por veículos de comunicação30, foi persistir
no modelo regulatório da verticalização, dando a oportunidade para que as
concessionárias apresentassem planos de investimentos que justificassem a prorrogação
dos contratos por até mais 30 (trinta) anos e promovessem a ampliação do parque
ferroviário do país.
Entende-se, embora deva ser reconhecida a vontade política do Governo Federal
em endereçar os pontos de infraestrutura (historicamente problemáticos, como visto),
que o caminho do unbundling não faz sentido para a atual realidade brasileira, a qual
ainda carece de grandes players que disputem espaço para a execução de investimentos.
Ao contrário, diante da escassez de investimentos, necessário se faz conceder ainda
mais segurança, repensando-se, por exemplo, a instabilidade promovida pelas regras
gerais de contratos administrativos e a fixação do governo no controle da taxa interna de
retorno de projetos, ainda que presentes limitações de preço e índices de performance31.
29 Aqui, vale a referência de que, no Brasil, a regulação veio a reboque da redução do tamanho do Estado com as privatizações, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde passa a ser uma resposta do Estado a abusos da propriedade privada frente ao interesse público, o que pode ser entendido como um “aumento” da presença estatal.30 Conforme jornal Valor Econômico, em 08 de junho de 2015, disponível no link http://www.valor.com.br/brasil/4083408/dilma-estica-prazo-de-ferrovia-em-troca-de-investimento, acessado no dia 09 de junho de 2015.31 Modelo este que nos parece estranho, dado que o BNDES, conforme dados recentemente divulgados pelo próprio banco, participará com até 70% de financiamento dos projetos ferroviários com taxas
30
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subsidiadas, o que seria dispensável caso a TIR pudesse ser flutuante, o valor da tarifa base fosse critério de licitação e critérios de quantidade e qualidade pudessem ser justamente delineados.
31
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32