Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
No Ano Internacional da
BiodiversidadeContributos para o estudo do
Direito da protecção da biodiversidade
Coordenação: Carla Amado Gomes
Organização de Carla Amado Gomes e Tiago AntunesCom o patrocínio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
Instituto de Ciências Jurídico-PolíticasFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa
No Ano Internacional da
BiodiversidadeContributos para o estudo do
Direito da protecção da biodiversidade
Coordenação: Carla Amado Gomes
Edição:
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
www.icjp.pt
Novembro de 2010
Faculdade de Direito de Lisboa
Alameda da Universidade1649-014 Lisboa
E-Mail: [email protected]
ISBN: 978-989-97410-2-7
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
APRESENTAÇÃO
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas decretou 2010
como Ano Internacional da Biodiversidade. Num momento de
mobilização da comunidade internacional em torno do problema das
alterações climáticas, a chamada de atenção para a acentuada
degradação dos recursos da biodiversidade deve saudar-se vivamente.
O ICJP quis associar-se a esta comemoração, dando à estampa os
cinco estudos que ora se publicam. Todos se reportam a dimensões da
protecção da biodiversidade, um domínio que tem merecido pouca
atenção por parte da doutrina jurídica portuguesa. Ficam assim
disponíveis online cinco contributos para o enriquecimento da
bibliografia nacional nesta sede.
Que o público interessado nas questões do Direito do Ambiente
encontre nestes estudos matéria de utilidade prática e de reflexão
teórica.
A sequência obedece a uma ordem alfabética.
Lisboa, Outubro de 2010
A coordenadora,
Carla Amado GomesProfª. Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Profª. Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade 4
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
ÍNDICE
Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma: duplo eixo reflexivo
em tema de biodiversidade
Carla Amado Gomes
O dano à biodiversidade: conceptualização e reparação
Heloisa Oliveira
O velho, o novo e o reciclado no Direito da Conservação da Natureza
José Mário Ferreira de Almeida
Os desafios da tutela da biodiversidade na região autónoma dos
Açores: um trilho a seguir?
Rui Melo Cordeiro
Singularidades de um Regime Ecológico - O regime jurídico da Rede
Natura 2000 e, em particular, as deficiências da análise de incidências
ambientais
Tiago Antunes
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade 6
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma:
duplo eixo reflexivo em tema de biodiversidade*
"Every form of life is unique, warranting respect regardless of its worth to
man and, to accord other organisms such recognition,
man must be guided by a moral code of action"
World Charter for Nature (1982)
0. Considerações preliminares; 1. Biodiversidade: um conceito, vários
sistemas; 1.1. O(s) sistema(s) português(es) de conservação da Natureza:
vista panorâmica; 2. Biodiversidade: um valor, vários gestores; 2.1. A
gestão da biodiversidade em Portugal: entre o público e o privado; 3.
Observações finais
0. Através da Resolução 61/203, de 20 de Dezembro de 2006, a
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas designou o ano
de 2010 como Ano Internacional da Biodiversidade. A efeméride é por
demais relevante, não tanto a título de comemoração mas antes como
um ultimato aos Estados no sentido de tomarem a sério tal
problemática. Na verdade, o ano de 2010 foi apontado no Plano de
Implementação de Joanesburgo (2002) como o momento de balanço
da tendência de inversão desejada, o ponto de viragem "in the current
* Agradeço ao Dr. Tiago Antunes a leitura atenta de uma primeira versão deste trabalho e as suas sugestões de benfeitorias. Erros e omissões são da minha exclusiva responsabilidade.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
rate of biodiversity loss" (§44). Nesta linha, o Plano de Acção da União
Europeia para a Biodiversidade fixa identicamente em 2010 um primeiro
patamar de análise dos frutos da estratégia de recuperação1. Breve
utopia, que na Cimeira dos Ministros do Ambiente do G8 do ano
passado saiu desmascarada da Declaração de Siracusa, onde se
protela para um pós-2010 uma estratégia de salvação da
biodiversidade exangue (cfr. o Considerando VIII do Preâmbulo)2…
A tarefa é, decerto, hercúlea. Como fica demonstrado do Global
Biodiversity Observatory 3 (GBO3-2010), disponibilizado pela ONU no mês
passado3, nenhum Governo se reclama ter cumprido integralmente as
metas fixadas e um em cada cinco Estados-parte confessa ter ficado
totalmente aquém dos objectivos. Não só o ritmo de degradação é
assustador, como a multiplicidade das causas, todas de origem
humana (destruição de habitats; introdução de espécies invasivas;
sobreexploração; poluição), torna complexa a missão. Acresce o facto
de a "ditadura" da luta contra as alterações climáticas ter pontificado
nos últimos anos, deixando na sombra as vertiginosas perdas de
biodiversidade, tão ou mais preocupantes, tão ou mais irreversíveis4.
1 Disponível em: http://ec.europa.eu/environment/nature/biodiversity/comm2006/pdf/sec_2006_621.p
df2 Disponível em: http://www.g8ambiente.it/public/images/20090424/docita/09_04_24_Carta%20di
%20Siracusa%20sulla%20Biodiversit%C3%A0.pdf3 Acessível em: http://gbo3.cbd.int/the-outlook/gbo3/foreword/foreword-by-the-
united-nations-secretary-general.aspx4 Com efeito, o excessivo protagonismo da problemática da luta contra as
alterações climáticas revela-se prejudicial a dois títulos: por um lado, porque desvia a atenção do fenómeno da perda acentuada de biodiversidade e, por outro lado, porque, apesar de as Convenções-quadro sobre a luta contra as alterações climáticas e sobre a Diversidade Biológica terem sido geradas no seio da ECO92 e assinadas na sua sequência, não existe na Convenção sobre a Diversidade Biológica ─ nem, de resto, nas convenções sobre protecção da biodiversidade em geral ─ qualquer mecanismo de adaptação (nomeadamente ao nível das obrigações de conservação in e ex situ, previstas nos artigos 8 e 9) às consequências do aquecimento global. Desenvolvidamente sobre esta lacuna, que se vem revelando dramática, Arie TROUWBORST, International nature conservation law and the adaptation of biodiversity to climate change: a mismatch?, in Journal of Environmental Law, 2009/3, pp. 419 segs, 426 segs.
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Segundo dados da União para a Conservação da Natureza5, 70% dos
recifes de coral (que são abrigo de múltiplas espécies e por isso fonte
de alimento, asseguram protecção contra tempestades, além de
constituírem fascinantes zonas de lazer) foram destruídos ou estão
gravemente ameaçados; 17.291 espécies de 47.677 monitorizadas
estão ameaçadas de extinção; dos 5.490 mamíferos recenseados no
Planeta, 79 estão extintos, 188 criticamente ameaçados, 449
ameaçados e 505 vulneráveis; no que toca a anfíbios, 1.895 de 6.285
encontram-se em vias de extinção, constituindo o grupo de maior risco
da actualidade. Estamos em face da maior extinção massiva desde
que os dinossauros desapareceram da Terra, há 65 milhões de anos6.
Esta constatação não preocupa apenas os ecologistas mas também
os economistas. No Relatório The Economics of Ecosystems and
Biodiversity (TEEB Report), elaborado por uma equipa de mais de 100
cientistas e economistas liderada por Pavan Sukhdev sob a égide do
Programa das Nações Unidas para o Ambiente e com o auxílio
financeiro da União Europeia, Alemanha, Reino-Unido, Holanda,
Noruega e Suécia, apresentado em Bruxelas em Novembro de 2009,
ficam bem demonstrados os custos da perda de biodiversidade7. O 5 Cfr. http://www.iucn.org/iyb/about/biodiversity_crisis/─ consultado em 14 de Março
de 2010.6 Sobre a evolução da biodiversidade na história da Humanidade, Humberto ROSA,
Conservação da biodiversidade: significado, valorização e implicações éticas, in RJUA, nº 14, 2000, pp. 9 segs, 23 segs.7 Lembre-se o precedente, em sede de luta contra as alterações climáticas,
traduzido no Stern Review on the Economics of Climate Change – acessível em http://www.hm-treasury.gov.uk/sternreview_index.htm. Nas palavras do próprio Nicholas Stern, na primeira apresentação pública do Relatório, em 30 de Outubro de 2006 (ponto II – Impacts, cost, targets),
"What are the costs of doing nothing? We have to try to model the dangerous risks we have been discussing. We have to look out over 100-200 years when the big effects of our actions over the next 50 years will come through. When we do this in a way that averages across risks, time, and countries, we calculate that the damages from business-as-usual would be equivalent to at least 5 and up to 20% of consumption a year, depending on the types of risks and effects included. The first effects of climate change are already evident, but it is still some time before impacts and risks on this scale will appear. But given the lags, action to head off these risks is urgent.
What are the costs and benefits of taking action? The costs of removing most of that risk, getting to 550 or below, are around 1% of GDP [PIB] per year. The cost could
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
estudo refere que as áreas protegidas ocupam cerca de 14% da
superfície do globo, sendo 5,9% zonas ribeirinhas e apenas 0,5% alto-
mar; perto de 1/6 da população global depende das áreas protegidas
para assegurar uma grande percentagem de actividades ligadas à
sobrevivência. Um investimento de 45 biliões de dólares em áreas
protegidas poderia salvaguardar a produção de utilidades naturais de 5
triliões de dólares por ano, incluindo sequestro de carbono, protecção e
purificação de recursos hídricos e defesa contra cheias. Há também
que considerar as vantagens ao nível do emprego ─ é apresentado o
exemplo da Bolívia, cujo segmento de mercado ligado ao turismo de
Natureza em áreas protegidas gera cerca de 20.000 postos de trabalho,
suportando indirectamente mais de 100.000 pessoas8.
Alguns Estados, mais do que terem já tomado consciência do filão da
biodiversidade, deram-se conta que prevenir a degradação de
recursos biológicos pode constituir uma opção eficiente e rentável dos
dinheiros públicos, além de garantir uma melhor qualidade de vida às
populações, tanto no curto como no longo prazo. Na Venezuela, por
exemplo, o investimento em áreas protegidas tem reduzido a
sedimentação dos solos, que redundaria numa perda de rendimento
agrícola estimado em 3,5 milhões de dólares por ano, enquanto que, no
be above or below 1% depending on policies, technological progress and ambitions but would be in this region. This is equivalent to paying on average 1% more for what we buy - the price rise for carbon-intensive goods would be higher and for low carbon-intensive goods would be lower – it is like a one-off increase by 1% in the price level. That is manageable; we can grow and be green.
We can go further than this. There will be new opportunities; new markets worth $100s bn p.a. Economically speaking, mitigation is a very good deal. Business-as-usual, on the other hand, will eventually derail growth".
8 Em Portugal, Cristina Marta-Pedroso, na sua investigação de doutoramento, demonstrou que o donativo pessoal de 30,4 euros, convertido numa anuidade constante a 40 anos, resultava em 446,00 euros/hectare por ano ─ ou seja, um valor muito inferir aos custos de 89 a 160 euros/ano provocados pela erosão do solo, perda de nutrientes, degradação de espécies e diluição da identidade da paisagem. Isto significa que a sociedade aufere um benefício líquido de 286 a 357,00 euros por hectare/ano com este projecto: ganha entre o dobro e o triplo do que gasta com ele ─ Andam à procura de um preço para a biodiversidade, acessível em http://ecosfera.publico.pt/noticia.aspx?id=1433434.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Vietname, o plantio de 12,000 hectares de mangue custou mais de 1
milhão de dólares mas evitou um gasto anual de mais de 7 milhões de
dólares em manutenção de diques9.
Estas análises incidem sobre o valor instrumental da biodiversidade,
que pode dividir-se em valor económico directo e indirecto. Enquanto o
valor económico directo se prende com as utilidades imediatas da
biodiversidade (como matérias-primas), o indirecto traduz a valia do
recurso enquanto fonte de "serviços": turismo, emprego, educação. Há
ainda que considerar o valor de opção, no qual reside o potencial de
benefício futuro do recurso10.
Vale a pena ouvir SUKHDEV, em declaração proferida na conferência
de imprensa de apresentação do Relatório (realçados nossos):
"Nature's multiple and complex values have direct economic
impacts on human well being and public and private spending.
Recognizing and rewarding the value delivered to society by the
natural environment must become a policy priority.
The economic invisibility of ecosystems and biodiversity is
increased by our dominant economic model, which is
consumption-led, production-driven, and GDP-measured. This
model is in need of significant reform. The multiple crises we are
experiencing – fuel, food, finance, and the economy – serve as
reminders of the need for change.
It is now up to governments to provide fiscal or other incentives to
move us from short-term opportunism to long term stewardship. The
right policies can help us move toward a resource efficient
economy".
9 Informação disponível em http://www.eurekalert.org/pub_releases/2009-11/haog-trr111309.php, consultado em 14 de Março de 2010.10 Humberto ROSA, Conservação da biodiversidade…, cit., pp. 26 segs.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Dos dados ecológicos aos números económicos, as conclusões tiram-
se rapidamente: 3.100 milhões de euros/ano (correspondentes a 6% do
PIB mundial) são o custo das perdas de biodiversidade até ao ano 2050,
se os modus operandi se mantiverem inalterados. É tempo de atentar
na natureza mista dos bens em análise11. Mais do que apenas um lirismo
de alguns amantes da Natureza, mais do que uma bandeira das
associações ecologistas, a protecção da biodiversidade pode ser
rentável e gerar votos para os governantes que adoptarem políticas
concretizadoras de tal desígnio, além de criar riqueza para grandes e
pequenos investidores. Money makes the world go around and
biodiversity makes it more beautiful…
Mas o que é, afinal, a biodiversidade? É, desde logo, um comodismo
linguístico, uma expressão de imediatismo mediático importada da
literatura anglo-saxónica, que une os termos diversidade biológica
numa única palavra12. Esta última é, com efeito, a fórmula que
encontramos no documento internacional de referência: a Convenção
para a Diversidade Biológica (=CDB), assinada em 1992, na sequência
da Conferência do Rio e em vigor desde Dezembro de 199313. O artigo
2º desta Convenção define Diversidade biológica: "variabilidade entre
os organismos vivos de todas as origens, incluindo, inter alia, os
ecossistemas terrestres, marinhos, e outros ecossistemas aquáticos e os
complexos ecológicos dos quais fazem parte; compreende a
diversidade dentro de cada espécie, entre as espécies e dos
ecossistemas"14.
11 Uma análise sintética deste relatório pode ver-se no artigo Reconnaître la valeur économique da le Nature, pp. 10/12, publicado na Natura 2000 - Lettre d'information nature et biodiversité Commission Européenne, nº 27 (2009), acessível em http://ec.europa.eu/environment/nature/info/pubs/docs/nat2000newsl/nat27_fr.pdf.12 Michel DUROUSSEAU, Le constat: la biodiversité en crise, in RJE, nº especial 2008, pp.
11 segs, 11.13 Portugal ratificou a CDB através do Decreto 21/93, de 21 de Junho.14 Uma síntese analítica dos instrumentos internacionais que actualmente regem a
protecção da biodiversidade pode ver-se em Rosemary RAYFUSE, Biological resources, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, coord. de Daniel Bodansky, Jutta Brunée e Ellen Hey, Chippenham, 2007, pp. 362 segs.
12
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
A diversidade biológica está para os ecossistemas naturais como a
diversidade cultural está para os sistemas sociais15: trata-se de preservar
a pluralidade e alternância de elementos e de promover a sua
complementaridade, com vista à manutenção de um nível de
regeneração adequado. A dificuldade de apreensão do objecto da
biodiversidade é comparável, todavia, à insusceptibilidade de definir a
noção de cultura, facto que contribuiu para a qualificação da CDB
como Convenção Onibus ou Convention for all life on Earth16. A
omnicompreensividade do termo compromete a sua operacionalidade
mas, em contrapartida, a vaguidade da fórmula terá sido a razão da
adesão massiva dos Estados17, aliada à fragilidade impositiva das
normas contidas na CDB18. Para o público em geral, porém, a noção
não é de longe tão apelativa ─ porque demasiado elusiva ─ como o
aquecimento global ou a redução da camada de ozono. E para os
jusambientalistas, o conceito revela-se falho de densidade ("it lacks issue
salience") e, consequentemente, de árdua dogmatização19.
Apesar da centralidade da CDB em tema de protecção da
biodiversidade, cumpre assinalar, por um lado, que a protecção da
fauna, flora e seus habitats já vinha sendo objecto de atenção do
Direito Internacional há algumas décadas. Por outro lado, a CDB,
sobretudo por se tratar de uma convenção-quadro de abrangência
15 Cfr. o artigo 1 da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, assinada em Paris, no âmbito da UNESCO, em 2 de Novembro de 2001(realçado nosso):
"Culture takes diverse forms across time and space. This diversity is embodied in the uniqueness and plurality of the identities of the groups and societies making up humankind. As a source of exchange, innovation and creativity, cultural diversity is as necessary for humankind as biodiversity is for nature. In this sense, it is the common heritage of humanity and should be recognized and affirmed for the benefit of present and future generations".16 Désirée McGRAW, The CDB – Key characteristics and implementation, in RECIEL,
2002/1, pp. 17 segs, 23.17 A CDB conta com 193 Estados-partes e 168 ratificações. Entre as ausências do
universo de Estados ratificantes, a mais impressiva é a dos EUA. Cfr. http://www.CDB.int/convention/parties/list/ ─ consultado em 15 de Março de 2010.18 Desenvolvidamente sobre os antecedentes da CDB e sobre o sentido e alcance
das suas normas, Patricia BIRNIE, Alan BOYLE e Catherine RIDGEWELL, International Law & the Environment, 3ª ed., Oxford, 2009, pp. 612 seg19 Désirée McGRAW, The CDB…, cit., p. 23.
13
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
universal, não é o único instrumento a ter em conta no plano da tutela
da biodiversidade (cfr., aliás, o seu artigo 22) ─ embora a opção da
concentração de regimes num modelo de convenção guarda-chuva
tenha sido debatida (mas rejeitada pelos problemas práticos, jurídicos e
políticos que levantava)20. Faremos alusão a algumas destas
convenções em 1..
A tutela da diversidade biológica é encarada pela CDB como
common concern of mankind (Preâmbulo, 3º Considerando), não tendo
logrado penetrar no seu texto a ideia de common heritage of mankind
que encontramos na Convenção das Nações Unidas para o Direito do
Mar, por exemplo, a propósito da figura da Área (artigo 137), ou no
Tratado sobre a Lua e outros corpos celestes (artigo 11). A dificuldade
de alcançar consenso neste ponto decorre desde logo do facto de a
diversidade biológica se encontrar, numa larga escala, em territórios sob
jurisdição estadual, vinculação situacional que entraria certamente em
choque (jurídico mas sobretudo político) com a noção de património
comum da Humanidade. Depois, deve sublinhar-se que a CDB
abandona a pura perspectiva conservacionista e adopta uma postura
de incentivo à utilização racional dos recursos biológicos ─ em primeira
linha, pelos Estados em cujo espaço de jurisdição eles se encontram e
com o único limite de alterum non laedere (artigo 3).
Acresce que, ainda que a CDB apele à partilha justa e equitativa dos
recursos genéticos e exorte os Estados desenvolvidos a fortalecer a
capacidade dos Estados menos desenvolvidos com vista à exploração
in situ daqueles recursos, certo é que não deixa de inscrever o direito de
acesso de Estados terceiros a estas riquezas, ainda que sujeito a
20 Cfr. Désirée McGRAW, The CDB…, cit., p. 19. A autora sublinha que, embora a CDB (ao contrário da Convenção-quadro sobre a luta contra as alterações climáticas) não incorpore, no seu nome, a referência a que se trata de uma convenção-quadro, na realidade é essa a sua natureza. Diferentemente da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que pode ser considerada uma umbrella convention na medida em que absorve regimes anteriores relacionados (numa perspectiva retroactiva), a CDB constitui-se como base de construção de futuros regimes de protecção da biodiversidade no plano global (numa perspectiva proactiva).
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
consentimento prévio fundamentado (e presumivelmente livre…) do
Estado detentor das mesmas (artigo 15). Finalmente, a CDB toma um
partido claramente antropocêntrico na questão da tutela da
diversidade biológica, como fica bem patente na referência ao seu
"valor ou utilidade actual ou potencial para a humanidade", bem como
ao seu "potencial para satisfazer as necessidades e as aspirações das
gerações actuais e futuras" (artigo 2)21 ─ confronte-se esta postura com
a da World Charter for Nature (aprovada pela Resolução da Assembleia
Geral das Nações Unidas A/RES/37/7, de 28 de Outubro de 1982, cujo
preâmbulo serve de mote a este texto e cujo conteúdo, desde logo por
se tratar de um documento sem natureza vinculativa, é cristalinamente
ecocêntrico).
Ou seja, e parafraseando SWANSON, "a CDB nasce de um interesse
comum na gestão coordenada de recursos próprios, não de um
interesse comum de gestão de recursos comunitarizados"22. A tutela da
biodiversidade pode justificar a regulamentação internacional de
aproveitamento de bens cuja relevância para a sobrevivência da
Humanidade no planeta é vital, mas não chega ao ponto de os
qualificar ─ nem directa, nem mediatamente ─ como sujeitos a um
esquema de gestão internacional, à semelhança da Área. O valor da
biodiversidade, conquanto possa legitimar a adopção pontual de
medidas de restritividade máxima a certas modalidades de
aproveitamento plenamente enraizadas, não chega a impor-se como
autenticamente metaestadual, na medida em que a adopção de tais
medidas depende, em primeira e última instância, da vontade dos
Estados.
Temos, portanto, um valor que consubstancia uma "preocupação
comum para toda a Humanidade" mas que é gerido, em primeira linha,
21 Sem embargo da nota de abertura ecocêntrica do 1º considerando do Preâmbulo, que sublinha o "valor intrínseco da diversidade biológica", logo matizado pelos dois considerandos seguintes, de feição mais antropocêntrica.22 Timothy SWANSON, Why is there a Biodiversity Convention? The international interest
in centralized development planning, in International Affairs, 1999/2, pp. 307 segs, 311.
15
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
domesticamente e, no que é internacionalizável, subordinado às
escolhas políticas dos Estados, com a única ressalva da
responsabilização por danos a terceiros em virtude de actividades que
envolvam a gestão da biodiversidade. Deste aparente (?) paradoxo
nos ocuparemos em 2., sempre no intuito de entrelaçamento de
reflexões no plano geral com soluções da lei portuguesa.
1. A preocupação com a conservação da natureza não constitui
invenção do século XX, antes se vislumbrando em momentos históricos
bem anteriores23. Ponto é saber qual o fundamento que lhe presidia: se
ecológico, se económico. Com efeito, já no século XVII o Ministro da
Economia de Luís XIV, Jean-Baptiste Colbert, foi mentor da Grande
Ordonnance des eaux et forêts (1669), segundo a qual se
estabeleceram limites ao abate de árvores em terrenos públicos e
privados, com vista a reservar madeira para a construção de barcos
aptos a singrar os oceanos e a promover o comércio ultramarino. No
plano internacional, logo nos alvores do século XX, tanto a Convenção
para a protecção de pássaros úteis à agricultura (assinada em Paris em
1902), como duas convenções sobre a captura de focas (ambas
datadas de 1911: uma celebrada entre os EUA e o Reino-Unido, e outra
entre Reino-Unido, Japão e Rússia) deixam bem patentes os seus
desígnios utilitaristas, fixando, através de contingentes, limites de
captura.
Ao longo do século XX, outros documentos podem ser referenciados,
acentuando, todavia, a mesma perspectiva utilitária de base. Exemplos
como o da Convenção de Londres relativa à protecção da fauna e da
flora em estado selvagem (1933), de aplicação circunscrita ao
continente africano e o da Convenção de Washington sobre a
protecção da flora, fauna e belezas panorâmicas naturais da América
(1940) devem ser mencionados, pelo seu pioneirismo na adopção de 23 Sobre o papel do Direito na conservação da Natureza, vejam-se Patricia BIRNIE,
Alan BOYLE e Catherine RIDGEWELL, International Law…, cit., pp. 593 segs.
16
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
institutos como as áreas protegidas e os parques naturais, bem assim
como pela criação de regras de limitação à exportação de troféus de
caça. O leitmotif destas convenções era a salvaguarda dos interesses
dos utilizadores destas zonas, maxime caçadores.
O ano de 1948 deve ser destacado, não propriamente em termos de
surgimento de instrumentos regulativos, mas antes porque nele se assiste
à criação da União Internacional para a Protecção da Natureza ─ em
1956 renomeada União Internacional para a Conservação da Natureza,
designação que conserva. Esta Organização, constituída ao abrigo do
Código Civil suíço como associação internacional de natureza privada,
congrega mais de 1.000 associados, entre organizações
governamentais (cerca de 200) e não governamentais (cerca de 800),
e conta com o apoio especializado e voluntário de quase 11.000
cientistas em mais de 160 Estados. Rege-se por princípios de
democraticidade interna, que se traduzem na eleição do Conselho
Executivo por todos os membros reunidos em Congresso, com mandato
de 4 anos. Estabelece parcerias com centenas de organismos públicos
e privados em todo o mundo, contando com 60 delegações
espalhadas pelo globo e tem sede em Gland, na Suiça. Promove
milhares de programas de apoio à conservação e gestão racional dos
recursos naturais e tem tido participação activa na elaboração de
centenas de convenções relativas à protecção da biodiversidade (de
entre as quais, a CDB). O seu financiamento é assegurado por
Governos, organizações internacionais e agentes privados. A
importância do seu papel é universalmente reconhecida, a ponto de
lhe ter sido concedido o estatuto de observadora na Assembleia Geral
da Organização das Nações Unidas24.
1968 foi um ano simbólico a vários títulos, o mais conhecido dos quais
envolve a convocação, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, da
conferência de Estocolmo, através da Resolução 2398 (XXIII), de 3 de 24 Estas e outras informações podem ser obtidas através da consulta do site da
Organização: http://www.iucn.org/.
17
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Dezembro. No plano da protecção da biodiversidade, contudo, o ano
de 1968 deve também ser destacado, pois acolheu a revisão da
Convenção de Londres de 1933, acima mencionada, pela Convenção
africana sobre a conservação da natureza e dos recursos naturais,
assinada em Algiers. Este documento é, na expressão de KISS e
BEURIER25, modelar: por um lado, porque abrange um grande número
de recursos, prenunciando a transição da protecção estanque de
componentes ambientais naturais para uma tutela integrada da
diversidade biológica (fauna, flora, água, solo); por outro lado, na
medida em que, apesar do conteúdo vago da maior parte das suas
normas, introduz dois importantes princípios para o tema que nos
ocupa: de uma banda, o da preferência pela protecção in situ e, de
outra banda, o da responsabilidade primacial do Estado de "residência"
de espécies raras face à sua preservação (princípios que viriam a ter
eco global na CDB, mais de vinte anos depois).
A Convenção sobre zonas húmidas de importância internacional
especialmente como «habitat» de aves aquáticas, assinada no âmbito
da UNESCO em Ramsar, em 1971, vem acrescer à lista de instrumentos
da geração pré-CDB, bem assim como a importante Convenção sobre
o comércio internacional das espécies de fauna e flora selvagens
ameaçadas de extinção, concluída em Washington em 1973 (mais
conhecida como Convenção CITES). Pelo meio ─ e na sequência
imediata da Cimeira de Estocolmo ─ detectamos a primeira
Convenção com vocação mundial de aplicação em sede de
património natural (e cultural)26, aprovada no âmbito da UNESCO em
Novembro de 1972 (Convenção para a protecção do património
mundial cultural e natural ─ cfr. o artigo 2, max. §§2º e 3º, reportando-se
a zonas que constituem habitats de espécies animais e vegetais
25 Alexandre KISS e Jean-Pierre BEURIER, Droit International de l'Environnement, 3ª ed., Paris, 2004, p. 31.26 Esta Convenção conta hoje com 186 Estados-parte: cfr.
http://portal.unesco.org/la/convention.asp?KO=13055&language=E&order=alpha, consultado em 18 de Março de 2010.
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ameaçadas e a zonas naturais estritamente delimitadas,
respectivamente, ambos com excepcional valor do ponto de vista da
ciência e conservação)27.
Foi sem dúvida em Estocolmo que ganhou amplificação universal o
grito de alarme sobre a degradação vertiginosa dos recursos naturais,
como se pode ler no Preâmbulo da Declaração resultante da primeira
Cimeira Ambiental mundial realizada em 1972 naquela cidade sueca:
"6. A point has been reached in history when we must shape
our actions throughout the world with a more prudent care for
their environmental consequences. Through ignorance or
indifference we can do massive and irreversible harm to the
earthly environment on which our life and well being depend.
Conversely, through fuller knowledge and wiser action, we can
achieve for ourselves and our posterity a better life in an
environment more in keeping with human needs and hopes.
There are broad vistas for the enhancement of environmental
quality and the creation of a good life. What is needed is an
enthusiastic but calm state of mind and intense but orderly work.
(…)
7. (…) A growing class of environmental problems, because
they are regional or global in extent or because they affect the
common international realm, will require extensive cooperation
among nations and action in international organizations on the
common interest. The Conference calls upon Governments and
peoples to exert common efforts for the preservation and
improvement of the human environment, for the benefit of all the
people and for their posterity".
27 As Convenções de Ramsar, CITES, UNESCO e a CDB são, segundo Arie TROUWBORST (International nature…, cit., pp. 423-424), os Big-four instrumentos de âmbito global em sede de protecção internacional da biodiversidade.
19
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
No que tange concretamente os recursos do que mais tarde viria a
ser designado sob a fórmula síntese de biodiversidade, a Declaração,
logo no princípio 2, apelava à gestão racional, em benefício da
geração presente e das futuras, encadeando-a imediatamente no
princípio 3 com a afirmação da necessidade de manutenção e mesmo
de elevação, quando possível, da capacidade regenerativa de
recursos renováveis. Termina este ponto específico com uma expressa
referência, no princípio 4, à importância da preservação e gestão do
património da vida selvagem e seus habitats (the heritage of wildlife
and its habitat) e ao imperativo de respeito por estes valores através das
operações de planeamento económico.
Este discurso, transbordante de ingénua esperança, não conseguiu
inverter a dura realidade de delapidação de recursos naturais e
manutenção de intoleráveis níveis de poluição, como se veio a
comprovar no Rio, 20 anos mais tarde. Terá sido necessária a
emergência de causas mais mediaticamente mobilizadoras como a
redução da camada de ozono e sobretudo o aquecimento global para
que o apelo de Estocolmo começasse a ser levado a sério pela
comunidade de Estados e povos a nível global ─ e, ainda assim, com
um índice de sucesso muito discutível.
Inquestionável parece ter sido o impulso de Estocolmo à produção
normativa internacional em múltiplos planos da realidade ambiental,
com uma clara tendência de abordagem sectorial (por agente
poluente) ou geográfica (por área de aplicação) ─ tendência que seria
invertida no pós-Rio, com uma aposta na abordagem global28. Estes
novos instrumentos, que denotam uma intenção de introduzir disciplina,
mais ou menos rígida, no plano da gestão ecológica dos recursos
naturais, adensam a já intrincada trama que se começara a tecer nos
anos 1960. O apelo a um trabalho intenso mas ordenado feito na
Declaração de Estocolmo não terá tido concretização plena, na
28 Alexandre KISS e Jean-Pierre BEURIER, Droit International…, cit., pp. 47-48.
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medida em que o aumento de regulação não corresponde
automaticamente ao incremento efectivo do nível de protecção.
Ao contrário, a multiplicação de instrumentos gera fragmentação e
sobreposição potenciadoras de conflitos positivos de aplicação das
normas, os quais fazem despontar dúvidas e por vezes litígios (e eventual
responsabilidade internacional por incumprimento de compromissos
validamente assumidos). O artigo 30 da Convenção de Viena sobre
Direito dos Tratados (1969) é curto para resolver (todos) os problemas
emergentes de sobreposição de convenções de Direito Internacional
do Ambiente tais como a ausência de reciprocidade, a revisibilidade
intrínseca da regulação, a preferência por um nível elevado de
protecção, a interdependência física dos fenómenos que acarreta uma
eficácia de facto das disposições convencionais em face de Estados
não partes… A questão não é apenas, portanto, de identidade ou
alteridade de partes ou de lex posterior lex anterior derrogat, antes
envolvendo um conjunto de problemas, jurídicos e técnicos, que
reclama normas de conflito específicas29.
Esta é uma magna quaestio do Direito Internacional do Ambiente,
quiçá inevitável. Se no plano interno a articulação entre instrumentos se
torna complexa, ficando pendente de um diálogo estreito e eficaz
entre as entidades responsáveis pela elaboração de instrumentos de
planeamento territorial, que dizer do plano internacional, no qual o
espaço, os problemas e os intervenientes se multiplicam
exponencialmente, não havendo uma entidade coordenadora ao nível 29 Lamentando identicamente a inexistência de critérios materiais de resolução de
conflitos de vigência entre tratados sucessivos no artigo 30 da Convenção de Viena (limitando-se este a apelar à compatibilização ou a resignar-se à solução da responsabilidade internacional), Fernando LOUREIRO BASTOS, A internacionalização dos recursos naturais marinhos, Lisboa, 2005, pp. 811-813.
Veja-se também, em geral, sobre o tema, Alan BOYLE, Relationship between international environmental law and other branches of International Law, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, coord. de Daniel Bodansky, Jutta Brunée e Ellen Hey, Chippenham, 2007, pp. 125 segs, 132-136. Em especial sobre o critério lex specialis derogat legi generali no confronto entre a Convenção-quadro sobre as alterações climáticas e a Convenção sobre o Património Mundial Cultural e Natural, William BURNS, Belt and suspenders? The World Heritage Convention's role in confronting climate change, in RECIEL, 2008/2, pp. 148 segs, 157 segs.
21
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
global? E mesmo que esta existisse, sempre a variedade de
componentes ambientais, com necessidades específicas,
desaconselharia a reductio ad unum no plano dos instrumentos
regulatórios. Já para não mencionar a linha diferenciadora que sempre
(enquanto o paradigma da soberania se não esfumar, pelo menos…)
será imprescindível traçar entre a gestão de recursos submetidos à
soberania estadual e aqueles que se encontram em terra de ninguém.
Enfim, de entre as convenções impulsionadas pela vaga de fundo de
Estocolmo cumpre assinalar, com maior relevância para o contexto
nacional: a Convenção de Ramsar sobre zonas húmidas, supra
referenciada30, a Convenção sobre a conservação das espécies
migratórias pertencentes à fauna selvagem, adoptada em Bona em
197931; a Convenção relativa à conservação da vida selvagem e dos
habitats naturais da Europa, assinada em Berna em 197932; a
Convenção para a protecção do meio marinho do Atlântico nordeste
(mais conhecida por Convenção OSPAR)33, celebrada em Paris em
1992, bem como ambas as Convenções adoptadas sob a égide da
ONU e com relevância para a biodiversidade ─, a Convenção de
Montego Bay, de 198234 (cuja parte XII é inteiramente dedicada à
protecção do ambiente marinho) e a CDB. É com elas que se entretece
a malha que vamos observar de seguida.
1.1. Conservar a natureza e promover a gestão racional dos recursos
naturais são dois objectivos cimeiros do Estado português, como pode
ler-se nas alíneas c) e d) do nº 2 do artigo 66º da Constituição. Estes
objectivos têm eco na Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de
Abril = LBA), cujas alíneas d) e e) do artigo 4º acentuam a necessidade
de protecção da biodiversidade através de instrumentos vários, com
30 Ratificada por Portugal através do Decreto 101/80, de 9 de Outubro.31 Ratificada por Portugal através do Decreto 103/80, de 11 de Outubro.32 Ratificada por Portugal através do Decreto 95/81, de 23 de Julho. 33 Ratificada por Portugal através do Decreto 59/97, de 31 de Outubro.34 Ratificada por Portugal através do Decreto 67-A/97, de 14 de Outubro.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
vista a estabelecer um continuum naturale35. O artigo 27º da LBA, que
enumera os instrumentos de operacionalização da política de
ambiente, dedica as cinco primeiras alíneas à conservação da
natureza. Logo de seguida, o artigo 28º alude à estratégia nacional de
conservação da Natureza, a submeter pelo Governo à Assembleia da
República36, e o artigo 29º/1 dá o tom para a introdução no palco da
protecção ambiental de uma rede nacional de áreas protegidas que
salvaguarde e promova a continuidade e coerência do ecossistema.
O actual quadro normativo da protecção da Natureza no sistema
português está contido no DL 142/2008, de 24 de Julho37 (Regime jurídico
de conservação da Natureza e da biodiversidade = RCNB). Trata-se de
um regime em que, sob o guarda-chuva da Rede Fundamental de
Conservação da Natureza (=RFCN), se acolhem realidades de natureza
diversa, quer do ponto de vista dos componentes ambientais, quer da
fonte de onde provêm. Com efeito, de acordo com o artigo 5º do
RCNB, na RFCN coexistem, de um lado, a Reserva Ecológica Nacional
(=REN), a Reserva Agrícola Nacional (=RAN) e zonas integrantes do
domínio público hídrico ─ consideradas áreas de continuidade38 ─ e, de
35 Nos termos do artigo 5º/2/d) da LBA, "Continuum naturale é o sistema contínuo de ocorrências naturais que constituem o suporte da vida silvestre e da manutenção do potencial genético e que contribui para o equilíbrio e estabilidade do território".36 Aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros 152/2001, de 11 de Outubro.
Esta Estratégia mereceu um primeiro Relatório de Execução elaborado pelo ICNB, apresentado em 27 de Julho de 2009 (susceptível de consulta em http://portal.icnb.pt/ICNPortal/vPT2007/O+ICNB/Documentos+de+refer%C3%AAncia/Estrat%C3%A9gia+Nacional+da+Conserva%C3%A7%C3%A3o+da+Natureza+e+da+Biodiversidade/?res=1440x900), o qual foi objecto de duras críticas por parte das associações ambientalistas, desde logo por o próprio ICNB constatar a falta de informação plena e fiável sobre os elementos da biodiversidade nacional, lacuna que, segundo o GEOTA, torna impossível a elaboração de qualquer Relatório fidedigno (cfr. http://www.geota.pt/scid/geotaWebPage/printArticleViewOne.asp?categoryID=720&articleID=2117).37 Sobre este regime, veja-se José Mário FERREIRA DE ALMEIDA, O velho, o novo e o
reciclado no direito da conservação da Natureza, publicado neste e-book.Sobre o anterior enquadramento legal, Maria Alexandra ARAGÃO, Instituição
concreta e protecção efectiva da rede Natura 2000 – alguns problemas, in Revista do CEDOUA, 2002/2, pp. 13 segs, esp. 15-17.38 Nos termos do nº 2 do preceito, áreas de continuidade "estabelecem ou
salvaguardam a ligação e o intercâmbio genético entre as diferentes áreas nucleares de conservação, contribuindo para uma adequada protecção dos recursos naturais e
23
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
outro lado e sob um outro guarda-chuva denominado Sistema Nacional
de Áreas de Conservação (=SNAC), áreas classificadas várias. O artigo
2º/2 do RCNB estabelece que subsistem os regimes especiais aplicáveis
à REN39, RAN40, domínio público hídrico, e aos recursos florestais,
fitogenéticos, agrícolas, cinegéticos, pesqueiros e aquícolas das águas
interiores.
No sistema nacional, estas zonas convivem com áreas classificadas
por decreto regulamentar (áreas protegidas de âmbito nacional: artigo
14º/3 do RCNB) ─ entre estas, os parques nacionais e os parques
naturais dispõem obrigatoriamente de um plano de ordenamento:
artigo 23º/1 do RCNB; enquanto as reservas naturais e paisagens
protegidas de âmbito nacional podem dispor de plano de
ordenamento: artigo 23º/2 do RCNB) ─, por deliberação autárquica
(áreas protegidas de âmbito regional ou local: artigo 15º/2 do RCNB),
por regulamento regional da autoria do responsável pela pasta do
Ambiente, nas Regiões Autónomas, nos termos de legislação de
adaptação (cfr. o artigo 54º do RCNB), por acto supranacional (artigo
27º do RCNB) ─ sendo certo que o regime aplicável nestes casos é o do
acto de classificação nacional, quando houver coincidência com
áreas protegidas de nível nacional (nº 3 do artigo 27º citado)41.
para a promoção da continuidade espacial, da coerência ecológica das áreas de classificadas e da conectividade das componentes da biodiversidade em todo o território, bem como para uma adequada integração e desenvolvimento das actividades humanas".39 Para o elenco de áreas abrangidas na REN, veja-se o artigo 4º do DL 166/2008, de
22 de Agosto. As condicionantes de uso e utilização destas áreas estão enunciadas no artigo 20º do mesmo diploma.40 A composição da RAN é determinada pelos artigos 8º do DL 73/2009, de 31 de
Março), por referência ao artigo 6º (integração genérica), e 9º (integração específica). As condicionantes de uso e utilização destas áreas estão enunciadas nos artigos 20º e segs do mesmo diploma41 Note-se que neste caso, diferentemente do que se passa em termos de relação
entre o RCNB e outros regimes como a REN, o legislador não frisou a especialidade. Entendemos que ela deve ser tida por implícita, dado que se trata de actos que traduzem a execução de obrigações a que Portugal se vinculou internacionalmente, constituindo-se em responsabilidade internacional se o não fizer. Cumpre, todavia, chamar a atenção para o princípio da protecção mais elevada e efectiva, bem estabelecido em Direito do Ambiente (cfr. o artigo 4º/f) do RCNB; os princípios 13 e 14 da Declaração de Estocolmo; o princípio 11 da Declaração do Rio; o artigo 191/2 do TFUE), que ditará a preferência do instrumento que conferir melhor protecção.
24
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Para acrescer à complexidade descrita42, deve ressaltar-se que a
conformação das áreas de âmbito regional e local ─ e, por identidade
de razão, a das áreas nacionais (cfr. o artigo 14º/1/b) e nº 2 do RCNB) ─,
pode sofrer alterações decorrentes da mutação dos pressupostos que
estão na base da classificação realizada pelo Instituto para a
Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P. (=ICNB)43 (que
constitui a autoridade nacional), levando à integração ou exclusão de
áreas na RNAP (artigo 15º/5)44. Esta instabilidade, resultante da
mutabilidade endémica das condições do espaço natural, é
característica do Direito do Ambiente e provoca uma contínua
reavaliação da base de facto sobre a qual recaem as vinculações
administrativas, no sentido de que estas não vão além nem se quedem
aquém das necessidades reais de tutela.
De diferente teor se afigura a neutralização do interesse de
conservação do ambiente em face de outros interesses, sociais e
económicos. Pense-se, por exemplo, nas possibilidades de alteração da
42 Que é caracterizada, na realidade francesa, por recurso a expressões como "panóplia", "arsenal", "confusão", "labirinto"… ─ Chantal CANS, La superposition des statuts protecteurs: un atout pour la diversité biologique!, in RJE, n º especial, 2008, pp. 149 segs, 151.43 O ICNB I.P. sucede ao Instituto de Conservação da Natureza (ICN), na sequência
da reforma da estrutura operativa do Ministério do Ambiente promovida pelo DL 207/2006, de 27 de Outubro (Orgânica do Ministério do Ambiente). O DL 136/2007, de 27 de Outubro, cria o ICNB, I.P., instituto público integrado na administração indirecta do Estado, sob superintendência e tutela do Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento regional. 44 Esta susceptibilidade de revisão aplica-se, inclusivamente, às zonas integrantes da
rede Natura 2000, nos termos dos artigos 9/2 e 6/4 da Directiva 92/43/CE (Habitats), e 4/1 da Directiva 79/409/CEE (Aves), apelando à teoria do contrarius actus ─ neste último caso, invocando também um princípio de coerência com o regime da Directiva Habitats, que claramente prevê dois tipos de desclassificação: por razões ecológicas, de uma banda, e por razões de sobrevalência de interesses económicos e sujeita a medidas compensatórias, de outra banda ─ cfr., desenvolvidamente, Henning THOMAS, Declassification of protected areas under the Habitats and the Wild Birds Directives, in EEELR, 2008/1, pp. 3 segs, 4 segs.
O Tribunal de Justiça já reconheceu, de resto, a possibilidade de desclassificação de uma ZPE em virtude da perda de potencial ornitológico ─ cfr. o Acórdão de 13 de Julho de 2006 (proc. C-191/05), §13, onde se pode ler que "… a Member State may not reduce the surface area of an SPA [ZPE] or alter its boundaries unless the areas excluded from the SPA are no longer the most suitable territories for the conservation of species of wild birds within the meaning of Article 4(1) of the Directive".
Sobre a hipótese de desclassificação no âmbito da Directiva Habitats, cfr. o Caso Leybucht (proc. C-57/89), descrito infra, nota 52.
25
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
delimitação da REN por motivo de interesse geral ou de
desenvolvimento, no seu âmbito, de acções de relevante interesse
público (cfr. os artigos 17º e 21º do DL 166/2008, de 22 de Agosto). Ou
ponderem-se os mecanismos de revisão e suspensão de planos previstos
nos artigos 98º, 99º e 100º do DL 380/99, de 22 de Setembro (alterado e
republicado pelo DL 46/09, de 20 de Fevereiro: Regime Jurídico dos
instrumentos de gestão territorial), que fazem ceder, em situações
teoricamente excepcionais que se têm vindo a banalizar nos últimos
anos, as razões de tutela ambiental perante a invocação de situações
"de reconhecido interesse nacional ou regional, ouvidas as câmaras
municipais das autarquias envolvidas". Enfim, e sem pretensões de
exaustividade, reflicta-se nas consequências de uma norma como o
artigo 51º/3/b) do RCNB, que impõe a adição aos novos planos de
ordenamento de áreas protegidas da referência de que, na falta de
autorização ou parecer da autoridade nacional sobre a viabilidade de
realização de um projecto ou actividade45 a elas sujeito no prazo de 45
dias, o silêncio é entendido como assentimento46.
Estes três singelos exemplos denotam a fragilidade do interesse de
protecção do ambiente em face da cláusula do "interesse geral", que
parece encará-lo como um interesse excêntrico, no duplo sentido que
a expressão comporta. Ora, a predominância acrítica da economia
sobre a ecologia é desaconselhável tanto do ponto de vista físico,
como do jurídico, como mesmo do económico ─ basta recordar as
45 Os condicionamentos ou interdições possíveis decorrentes do estatuto de área protegida estão descritos, de forma genérica, na alínea d) do nº 3 do artigo 14º do RCNB, que versa sobre o conteúdo do acto de classificação, o qual, uma vez sobrevinda a regulação em plano de ordenamento, as absorve (cfr. o artigo 23º/6 do RCNB). Uma imagem mais aproximada das restrições de utilização possíveis encontra-se no Capítulo VII, relativo ao regime sancionatório, cujos artigos 43º e 44º enunciam uma longa lista de contra-ordenações potencialmente aplicáveis, de acordo com as necessidades de protecção específica de cada área protegida.46 Assinale-se que da conjugação entre os artigos 23º/4 do RCNB, e 98º/2 e 99º/3 do
Código do Procedimento Administrativo, já resulta que o parecer da autoridade nacional, sendo obrigatório, não é vinculativo; e sendo obrigatório, a sua não emissão não obsta à prossecução do procedimento ─ o que redunda em solução materialmente idêntica, desde logo no plano da responsabilização da entidade consultiva.
26
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
conclusões do TEEB Report mencionadas nas palavras introdutórias a
este texto para nos compenetrarmos da verdade desta asserção. Bem
pode o legislador apelar à fórmula esfingicamente ambígua do
desenvolvimento sustentável (cfr. o artigo 66º/2 da Constituição e o
artigo 4º/b) do RCNB) para depois deixar à Administração mãos livres
para proceder a composições de interesses conjunturalmente
orientadas pela resolução de problemas de curto prazo sem ponderar
consequências de médio e longo prazos.
É verdade que as restrições, de maior ou menor intensidade, que
podem incidir sobre o uso de zonas classificadas como áreas de
protecção da biodiversidade, são susceptíveis de constituir obstáculos
ao desenvolvimento económico dos municípios, facto que pode gerar
pressões no sentido de alterar a delimitação daquelas, ou de forçar a
neutralização do interesse ecológico por razões sócio-económicas.
Ciente desta realidade, o legislador previu, no renovado quadro
normativo da REN, um mecanismo de perequação compensatória que
refreia tais impulsos, oferecendo uma contrapartida aos municípios cuja
circunscrição se veja especialmente povoada por terrenos integrados
naquela estrutura de protecção (cfr. o artigo 35º do DL 166/2008, de 22
de Agosto). Não seria uma ideia prever mecanismo idêntico para o
SNAP?
Sublinhe-se que nem mesmo as zonas que gozam de um índice de
eficácia protectiva superior por estarem integradas na rede Natura
200047 ─ em razão do duplo grau de fiscalização jurisdicional que sobre
elas teoricamente recai: tribunais nacionais, de um lado, e tribunais da
União Europeia, de outro, estes tanto no plano da colocação de
questões prejudiciais, como e sobretudo no âmbito do contencioso por
incumprimento ─ se encontram imunes à possibilidade de neutralização
dos valores naturais por "razões imperativas de reconhecido interesse
47 Em geral sobre o regime da rede Natura 2000, Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, I, 4ª ed., Coimbra, 2008, pp. 294 segs.
27
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
público", expressas em despacho conjunto do Ministro do Ambiente48 e
do Ministro competente em razão da matéria, no qual deve ficar
provada a inexistência de soluções alternativas49. Ainda que com um
grau de discricionaridade mínimo no que tange ao sacrifício de
espécies e habitats prioritários, tal subvalorização é admissível nos
termos do artigo 10º/10 e 11 do DL 140/99, de 24 de Abril, alterado e
republicado pelo DL 49/2005, de 24 de Fevereiro50 (relativamente às
espécies prioritárias, vide o nº 11). Nestas situações, a contrapartida
exigida ao operador traduz-se na imposição de "medidas
compensatórias", que visam salvaguardar a "coerência interna" da rede
Natura 2000, que serão comunicadas à Comissão Europeia.
Estas medidas, que deverão ser aprovadas (apesar do silêncio do
diploma) pelo ICNB, concretizam o princípio do poluidor-pagador ou,
na terminologia do RCNB, da compensação [cfr. o artigo 4º/d)]. É
duvidosa a sua relação com o despacho ministerial que opera o
reconhecimento da importância do projecto por razões de imperativo
interesse público em total afronta aos valores da biodiversidade
tutelados pelo diploma. Se compreendemos, por um lado, que a
48 Não esqueçamos que a Declaração de Impacto Ambiental (=DIA) pode, nos termos do DL 69/2000, de 3 de Maio (alterado e republicado pelo DL 197/2005, de 8 de Novembro) ser recusada por motivos não ecológicos (cfr. o artigo 18º, que entrega a competência de emissão da DIA ao Ministro do Ambiente de forma absolutamente livre em face do relatório da Comissão de Avaliação). Nesse quadro, a esquizofrenia do Ministro do Ambiente poderá ser fatal à congruência interna do despacho conjunto, pois no seio da Avaliação de Impacto Ambiental (=AIA) teve uma postura e no procedimento de neutralização dos efeitos da AIA assumirá outra…49 Sublinhe-se o advérbio teoricamente, pelo menos no plano nacional. A sindicância
de um despacho deste teor, forçosamente junto dos tribunais administrativos, por parte de autores populares ou do Ministério Público, agindo em defesa da biodiversidade, está seriamente comprometida pois, mesmo que passe o obstáculo da qualificação como "acto político" (cfr. o artigo 4º/2/a) do ETAF), a sua natureza intensamente discricionária sempre constituirá um constrangimento ao poder de revisão do juiz administrativo, por se tratar de ingerência num espaço de "valorações próprias da função administrativa".
O Conselho de Estado francês, segundo Chantal CANS (La superposition…, cit., pp. 164-165), revela-se olimpicamente indiferente às razões ecológicas que poderiam opor-se à construção de grandes infra-estruturas públicas em áreas classificadas perante a alegação do interesse económico da sua viabilização.50 Detalhadamente sobre este ponto, Tiago ANTUNES, Singularidades de um Regime
Ecológico. O regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências da análise de incidências ambientais, publicado neste e-book (ponto 4).
28
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
protecção do ambiente não pode constituir-se num desígnio totalitário,
não deixamos de observar, por outro lado, que tem que haver um
preço deste desvio para uma legalidade paralela e que ele se traduzirá,
de uma banda, na ponderação exaustiva de motivos de
subvalorização do interesse ecológico e, de outra banda, na pontual e
plena realização das acções em que se traduzem as medidas
compensatórias, sob pena de invalidade (total ou parcial) do acto
autorizativo final ─ onde tais medidas deverão ser inseridas a título de
cláusulas modais51.
De resto, e mesmo reiterando que, numa sociedade aberta e
pluralista, não há interesses absolutos, a importância transespacial e
transgeracional da salvaguarda da biodiversidade deveria justificar um
maior cuidado do legislador na permissão de entrada pela janela a um
projecto ao qual tinha fechado a porta ─ maxime se estiverem em
causa espécies classificadas na sequência de vinculação internacional,
cuja afectação arbitrária fará incorrer o Estado em responsabilidade
internacional (no caso de compromissos assumidos perante a União
Europeia, sujeita-o a ser perseguido pela Comissão no plano da acção
por incumprimento ─ como, de resto, já aconteceu ao Estado
português no caso Castro Verde52). A natureza do despacho conjunto 51 O artigo 121º do CPA admite a introdução de termos, condições e modos no acto
administrativo, desde que apresentem uma relação com o fim do acto e respeitem os parâmetros de proporcionalidade ─ embora não se pronuncie sobre as consequências para o acto autorizativo do não acatamento (total ou parcial) de cláusulas modais pelo destinatário (cfr., sobre este ponto, o nosso Risco e modificação…, cit., pp. 604 segs e referências citadas).52 Decidido pelo Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 26 de Outubro
de 2006, proc. C-239/04. Assinale-se que, neste caso, a condenação ocorreu por detecção, por parte da Comissão e sancionado pelo TJ, de um défice de ponderação de circunstâncias de risco no seio da AIA, que gerou uma DIA favorável quando, no entender da Comissão (e da Quercus, que fez a denúncia), não estavam esgotadas as alternativas e sobretudo, não havia certezas científicas de que a opção por aquele traçado não traria riscos às espécies (o que denota a utilização de uma metodologia de análise de riscos de patamar mais elevado do que o habitual, correspondendo à lógica da precaução ─ e mesmo tendo ficado provado que a construção do troço não implicara, de facto, qualquer risco para as espécies em jogo ─ cfr. o §24º).
Um exemplo de reanálise pelo Tribunal de Justiça da União Europeia da decisão política de desafectação de zonas integradas em área protegida ao abrigo da Directiva Aves vem descrito no caso Comissão contra a (República federal da)
29
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
deixa a dúvida jurídica de saber se a sua emissão deverá ser precedida
de audiência prévia, à semelhança do que aconteceria relativamente
a um acto administrativo. Todavia, certo é que o contraditório social já
ocorreu no procedimento de AIA ou na avaliação de incidências
ambientais e pode questionar-se a sua necessidade neste momento tão
próximo. Mas se a participação pública poderá até ser validamente
contornada, pensamos que seria de toda a pertinência fazer intervir no
procedimento de emissão do despacho conjunto, a título obrigatório
ainda que não vinculativo, o Conselho Nacional do Ambiente e do
Desenvolvimento Sustentável, cujo parecer poderia constituir um factor
de legitimação social daquele53.
Estas brevíssimas reflexões deixam entrever que, apesar da densa
malha legislativa e regulamentar que a conservação da natureza
convoca, a afirmação das vinculações ecológicas é presa fácil dos
imperativos de "interesse geral". O regime de conservação da Natureza
acaba por traduzir uma mão cheia de regimes excessivamente porosos
e, consequentemente, pouco eficazes nos desígnios que o Direito
Internacional e a Lei Fundamental fixam nesta sede.
2. A tutela jurídica da biodiversidade assenta no pressuposto de que a
sua existência e a sua gestão racional contribuem para o equilíbrio dos
Alemanha, decidido por acórdão de 28 de Fevereiro de 1991 (proc. C-57/89) ─ que Henning THOMAS identifica como um exemplo de desclassificação (Declassification…, cit., p. 4): v. supra, nota 44. A natureza da decisão não impediu a Comissão, primeiro, e o Tribunal de Justiça, depois, de avaliarem se, estando em causa espécies prioritárias, os interesses sociais a salvaguardar eram de facto superiores aos ecológicos e se as medidas compensatórias eram adequadas e suficientes para colmatar o passivo ecológico gerado pela construção de um novo dique na região de Leybucht.53 O CNADS foi criado pelo DL 221/97, de 20 de Agosto. É um órgão consultivo do
Ministro do Ambiente, independente, composto por cerca de 30 membros (5 a 9 dos quais indicados pelo Governo, sendo um deles o Presidente), com mandato de três anos ─ cfr. os artigos 3º e 4º. Tem por missão "proporcionar a participação das várias forças sociais, culturais e económicas na procura de consensos alargados relativamente à política ambiental" (artigo 1º/1). As suas competências estão descritas no artigo 2º do diploma citado.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
ecossistemas locais e regionais em que os seus elementos se inserem,
fomentando, por consequência, a harmonia do ecossistema global.
Promover a diversidade biológica é fundamental para a "evolução e
manutenção dos sistemas de suporte da vida na biosfera" e, como tal,
esse objectivo constitui uma "preocupação comum para toda a
humanidade" (Preâmbulo da CDB, 2º e 3º considerandos). Isto não
significa, contudo, que a gestão de toda a biodiversidade deva ficar
entregue a um único organismo, supranacional, que a administre a
favor da humanidade54.
Com efeito, a gestão da biodiversidade coloca, no plano
internacional, um problema que se prende com a possibilidade de
substituição da vontade dos Estados no uso e fruição dos seus recursos,
ou seja, na definição das suas políticas ambiental, energética,
económica. Ao contrário dos fundos marinhos em zona de alto mar, ou
da lua e demais corpos celestes, que se encontram subtraídos a
jurisdição estadual, a biodiversidade (ressalvados os recursos bióticos
marinhos "residentes" em zona de alto mar55) tem uma filiação ao Estado
54 Para Alexandre KISS (The common concern of mankind, in Environmental Policy & Law, 1997/2, pp. 244 segs, 247), "the proclamation that safeguarding the global environment or one of its components is a matter of common concern for the whole of mankind would mean that it can no longer be considered as solely within the domestic jurisdiction of States, due to its global importance and consequences for all".55 Uma das questões que se coloca é a de saber se a CDB se aplica aos recursos
bióticos em zona de alto mar (e, noutro plano, se rege a protecção do ambiente marinho em zona de jurisdição estadual, em razão da sobreposição com a Parte XII da Convenção de Montego Bay ─ apesar de posterior, parece prevalecer, por especial, esta última, como de resto o artigo 22, 1ª parte, da CDB, confirma), uma vez que estes componentes da flora e fauna marinhas estão claramente fora do âmbito dos poderes de gestão e exploração detidos pela Autoridade dos Fundos Marinhos. Note-se que o "património comum da Humanidade" gerido pela Autoridade é constituído pelos recursos que, segundo o artigo 133 da Convenção da ONU para o Direito do Mar, são "all solid, liquid or gaseous mineral resources in situ in the Area at or beneath the seabed, including polymetallic nodules".
Em contrapartida, o artigo 145 da mesma Convenção estabelece o dever de observância, por parte da Autoridade, de deveres de evitação da poluição e de prevenção e conservação dos recursos vivos no Alto Mar, tendo em consideração efeitos colaterais decorrentes das operações de exploração dos minérios encontrados nos fundos marinhos sob sua gestão (veja-se também o artigo 142º/3 da mesma Convenção, sobre deveres dos Estados de prevenção da poluição em zona de Alto Mar). Nesta sede, a CDB pareceria poder ter alguma valia, na conformação de tais deveres de conservação.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
onde se abriga e constitui, para este, uma fonte de riqueza. Ou seja,
vislumbram-se aqui dois eixos problemáticos: por um lado, os modelos
de gestão alteram-se de acordo com a natureza exclusiva, partilhada
ou comum (global) do recurso56; por outro lado, e independentemente
do local onde se encontre, ao valor económico do recurso
normalmente acresce um valor ecológico, que eventualmente poderá
justificar a requalificação de um recurso exclusivo como recurso
comum.
Repare-se que não estamos aqui a cuidar da gestão partilhada de
recursos que se desdobram situacionalmente por zonas a que
correspondem várias jurisdições estaduais, havendo usos vários a
compatibilizar. Nesse modelo ─ de inevitabilidade física ─ de
aproveitamento partilhado, essencial é preservar as relações de boa
vizinhança e de respeito pelos direitos dos co-titulares, cooperando de
boa-fé para a não frustração de expectativas legítimas dos Estados
envolvidos ─ como ficou desde logo fixado na decisão arbitral Lac
Lanoux (1957), que opôs a França à Espanha numa disputa sobre um
lago comum a ambos os Estados57, e foi recentemente reiterado pelo
Todavia, não só a letra e teleologia da CDB indiciam a sua aplicação exclusiva a Estados, como o teor dual da sua ambição regulativa ─ incitando à conservação mas fomentando a utilização racional em prol das gerações presentes e futuras e numa lógica de repartição equitativa ─ descarta, aparentemente, a vinculação da Autoridade, que tem relativamente aos recursos bióticos do Alto Mar uma relação estritamente funcional. De todo o modo, a razão de especialidade sempre recomendaria a aplicação analógica à Área da Parte XII da Convenção de Montego Bay (cfr., uma vez mais, o artigo 22 da CDB, salvo porventura em caso de "serious damage or threat to biological diversity), e não a CDB (Alan BOYLE, Relationship…, cit., pp. 139-140, parece, não obstante, concluir por um regime misto, resultado da fusão entre CDB e Convenção de Montego Bay).
Uma síntese dos problemas colocados pelo aproveitamento conjunto de recursos marinhos, bióticos e abióticos, veja-se em Fernando LOUREIRO BASTOS, A internacionalização…, cit., pp. 43 segs (por referência ao conceito de internacionalização utilizado). Sobre a protecção do ambiente marinho sob a égide da Convenção da ONU para o Direito do Mar, veja-se Carla AMADO GOMES, A protecção internacional do ambiente na Convenção de Montego Bay, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, I, 2008, pp. 187 segs.56 Sobre as várias noções em jogo, Jutta BRUNNÉE, Common areas, common heritage
and common concern, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, coord. de Daniel Bodansky, Jutta Brunée e Ellen Hey, Chippenham, 2007, pp. 551 segs, 557 segs.
32
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Tribunal Internacional de Justiça no caso das fábricas de pasta de
papel nas margens do rio Uruguay, que opôs a Argentina ao Uruguay.
O conceito de recursos partilhados foi formalmente abordado
em duas Resoluções ─ 3129 (XXVIII), de 13 de Dezembro de 1973, e
3281 (XXIX), de 12 de Dezembro de 197458 ─ da Assembleia Geral
das Nações Unidas, embora não se tenha chegado a uma
definição precisa. O Tribunal Internacional de Justiça deu expresso
acolhimento à noção no Acórdão Gabcikovo-Nagymaros (1997),
em cujo §85 considerou o Danúbio um "recurso partilhado" entre
Hungria e República checa, comunhão que obriga à observância
de um conjunto de obrigações, de entre as quais avulta o dever
de utilização "equitativa e razoável" ("equitable and reasonable").
No fundo, tudo se reduz a um princípio de cooperação para
prevenção de danos que possam tolher a boa utilização do
recurso pelos Estados que o partilham (implicitamente afirmado na
decisão Lac Lanoux e expressamente consagrado, em sede geral,
nas Declarações de Estocolmo e do Rio ─ princípios 24 e 7,
respectivamente)59.
No caso Argentina vs Uruguay, o Tribunal de Haia apreciou vários
argumentos apresentados pela Argentina no sentido da remoção
de duas fábricas de pasta de papel da margem esquerda do rio
57 Cfr. o §24 da decisão: "When one examines the question of whether France, either in the course of the dealings or in her proposals, has taken Spanish interests into sufficient consideration, it must be stressed how closely linked together are the obligation to take into consideration, in the course of negotiations, adverse interests and the obligation to give a reasonable place to these interests in the solution finally adopted. A State which has conducted negotiations with understanding and good faith (…) is not relieved from giving a reasonable place to adverse interests in the solution it adopts simply because the conversations have been interrupted, even though owing to the intransigence of its partner".58 Cooperação no domínio do ambiente em matéria de recursos naturais partilhados
entre dois ou mais Estados, e Carta dos direitos e deveres económicos dos Estados (artigo 3), respectivamente.59 Sobre as aparições e concretizações do princípio da cooperação, Christophe
NOUZHA, Réflexions sur la contribution de la Cour Internationale de Justice a la protection des ressources naturelles, in RJE, 2000/3, pp. 391 segs, 413 segs.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Uruguay, sitas em território uruguaio. A pretensão baseava-se numa
linha de força principal: o uso não adequado de um recurso
partilhado, que alegadamente traz prejuízos avultados para o
turismo na zona. Acessoriamente, a Argentina avançava várias
referências a danos agrícolas e ecológicos provenientes da
presença das fábricas na zona, gerando poluição da água, solo e
ar.
A decisão, de 20 de Abril de 2010, sem propriamente concluir
que as instalações põem ou não em causa uma "optimum and
rational utilization of the river" ─ por referência ao artigo 27 do
Estatuto de 1975 anexo à Convenção de Montevideo (1961)60 ─,
admite a violação de obrigações de informação mas recusa
ordenar a demolição das fábricas, por entender redundar tal
responsabilização num resultado desproporcionado61. Exorta,
todavia, as partes a coordenarem esforços no sentido de prevenir
e minimizar a poluição produzida, nomeadamente impondo ao
Uruguay o exercício de deveres de fiscalização constante das
instalações.
Para além dos rios internacionais, a doutrina entende que a
noção de "uso equitativo e razoável" é identicamente aplicável a
recursos como as espécies piscícolas, o petróleo, o gás e a
60 Cfr. o §177: "Regarding Article 27, it is the view of the Court that its formulation reflects not only the need to reconcile the varied interests of riparian States in a transboundary context and in particular in the use of a shared natural resource, but also the need to strike a balance between the use of the waters and the protection of the river consistent with the objective of sustainable development. (…). The Court wishes to add that such utilization could not be considered to be equitable and reasonable if the interests of the other riparian State in the shared resource and the environmental protection of the latter were not taken into account. Consequently, it is the opinion of the Court that Article 27 embodies this interconnectedness between equitable and reasonable utilization of a shared resource and the balance between economic development and environmental protection that is the essence of sustainable development".61 Cfr. o §273: "(…) The Court further recalls that, where restitution is materially
impossible or involves a burden out of all proportion to the benefit deriving from it, reparation takes the form of compensation or satisfaction, or even both". Veja-se também as considerações do Tribunal no §275.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
atmosfera62, lagos e mares fechados e semi-fechados63.
Questionável é se componentes ambientais estáticos mas no
âmbito dos quais se gera um continuum naturale podem ser
considerados recursos partilhados. Pensamos nas florestas cujas
árvores se espraiam por territórios de vários Estados,
nomeadamente na Amazónia (que pertence, em proporções
diversas, a oito Estados da América do Sul). Não vemos razão para
as subtrair a esta noção, devendo os Estados co-titulares do recurso
"floresta" geri-la de acordo com princípios de equidade e
razoabilidade. O Tratado sobre Cooperação na Amazónia,
celebrado em 1978 (em vigor desde 1980) entre o "Clube da
Amazónia" ─ do qual fazem parte Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Perú, Suriname e Venezuela, ─ constitui um bom
exemplo deste fenómeno de "internacionalização positiva"64, no
âmbito da qual os Estados, no pleno uso das suas prerrogativas
soberanas, concertam práticas de utilização racional do recurso.
Como nota Guido SOARES, de resto, o Tratado (e Declarações
subsequentes) traduz um sinal dirigido à comunidade internacional
no sentido de esclarecer que quem detém o poder sobre os
recursos da floresta amazónica são os Estados por cujos territórios
ela se estende (cfr. o artigo IV). O recurso é partilhado mas não é
comum ─ banindo-se terminantemente a ideia de gestão
supranacional, antes se acentuando a lógica de solidariedade
regional.
62 Cfr. Malgosia FITZMAURICE, International protection of the Environment, in Recueil des Cours, 2001, p. 442.63 Cfr. Christophe NOUZHA, Réflexions…, cit., p. 394.64 Na expressão de Guido SOARES, The impact of International Law on the protection
of the Amazon region and the further development of environmental law in Brazil, in Amazonia and Siberia. Legal aspects of the preservation of the last environment and development in the last open spaces, Michael Bothe, Thomas Kurzidem e Christian Schmidt (org.), 1993, Londres, pp. 208 segs, 216.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Muito diferentes são as situações de gestão conjunta ─ internacional
─ de recursos fora de jurisdição, uma vez que, ao contrário de um
modelo de titularidade exclusiva, verifica-se liberdade de acesso e
aproveitamento que pode ser condicionada por acordo entre um
conjunto mais ou menos representativo de Estados do globo,
colocando-se desde logo a questão de saber se tal modelo é oponível
a Estados terceiros ─ o exemplo da Área e da Autoridade que sobre os
recursos abióticos que nela se encontram exerce poderes de gestão em
nome da Humanidade constitui o paradigma (cfr. os artigos 137 segs da
Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar). E radicalmente
diversas são ainda/também as hipóteses de comunitarização de bens
sujeitos a jurisdição estadual ─ leia-se: submetendo-os a gestão por
organismo supranacional ─ em razão do seu alegado valor
transnacional e transgeracional para a comunidade internacional no
seu todo65.
Talvez o melhor exemplo deste último modelo seja o da qualificação
de certos bens ambientais naturais como património mundial, ao abrigo
da Convenção da UNESCO sobre património mundial cultural e natural,
de 197266. Conforme tivemos oportunidade de analisar em momento
anterior67, mesmo aqui a soberania do Estado "curador" do recurso fica 65 Brendan REILLY («Clear and present danger»: a role for the United Nations Security
Council in protecting the global environment, in Melbourne University Law Review, Vol. 20, 1996, pp. 763 segs, passim) analisa a questão da eventual ingerência da comunidade internacional ─ mediada por um procedimento de decisão no âmbito do Conselho de Segurança da ONU ─ na gestão doméstica de recursos naturais de importância vital para a Humanidade como um problema de "ameaça à paz" produzida através de meios não militares. O Autor considera que "we are linked in mutual self-interest by the «indivisibility of global biospheric processes». As a result, environmental depletion is a non-military threat to the life and well-being of societies. On an extreme view, environmental degradation could itself be seen as a form of warfare" (pp. 783-784).66 Esta solução, no que tange o património cultural, já vinha de trás, concretamente
da Convenção de Atenas de 1937, sob a égide da qual, em 1959 a UNESCO lançou a campanha para travar os trabalhos de construção da barragem de Assuão, que ameaçava fazer submergir, na sua configuração inicial, o templo de Abu Simbel ─ cfr. Olivier MAZAUDOUX, Droit International public et droit international de l'environnement, Paris, 2008, p.100.67 Carla AMADO GOMES, Os bens ambientais como bens de interesse comum da
Humanidade: entre o universalismo e a razão de Estado, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, III, Lisboa, 2010, pp. 263 segs, 271-273.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
salvaguardada pois, embora os critérios de classificação sejam
definidos por um Comité independente e qualquer entidade lhe possa
veicular pedidos de classificação, esta só se concretiza após o
assentimento do Estado68. Não se chegou ainda ─ e não parece estar
para breve ─ a soluções de "colectivização" de recursos de
biodiversidade sitos em Estados a favor da comunidade internacional69.
Aliás, essa foi a razão porque, na CDB, se prescindiu de uma listagem de
zonas de biodiversidade especialmente importantes, como as florestas
tropicais do Bornéu ou da Amazónia70, e se optou pela inclusão de um
Anexo I com critérios amplíssimos de qualificação de recursos71, cuja
inscrição para efeitos de aplicação da CDB deve ser proposta pelo
Estado interessado.
A mesma prevenção de actuações ingerentes nas escolhas relativas
à biodiversidade de cada Estado-parte levou à substituição da
expressão "património comum" (adoptada, por exemplo, no 3º
68 Pelo menos se estivermos a pensar na lista ordinária. A integração (cautelar) de um bem/sítio na lista dos bens ameaçados (In danger list) parece dispensar o consentimento, nos termos de uma leitura generosa do artigo 11/4 da Convenção, que o Comité aparentemente seguiu na rejeição dos argumentos dos EUA quanto à não aceitação de integração na In danger list do Waterton-Glacier International Peace Park em face da ameaça provocada pela intensa emissão de gases com efeito de estufa. O Comité acabou por não classificar, mas por outros motivos ─ cfr. William BURNS, Belt and suspenders?..., cit., pp. 156-157.69 Cfr. Patricia BIRNIE, Alan BOYLE e Catherine RIDGEWELL, International Law…, cit., p.
619 ("… biological resources are neither shared resources nor common property available for appropriation and use by all…").70 Cfr. Désirée McGRAW, The CDB…, cit., p. 24.71 Leia-se o disposto no Anexo I, sobre identificação e monitorização da
biodiversidade:"1. Ecossistemas e habitats que: contenham grande diversidade, grande
número de espécies endémicas ou ameaçadas, ou espécies selvagens; sejam frequentadas por espécies migratórias, tenham importância social, económica, cultural ou científica; ou sejam representativos, únicos ou associados a processos evolutivos chave ou a outros processos biológicos;
2. Espécies e comunidades que: estejam ameaçadas ou sejam parentes selvagens de espécies domesticadas ou cultivadas; tenham valor medicinal, agrícola ou outro valor económico; tenham importância social, científica ou cultural; ou sejam importantes para investigação sobre a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, como as espécies indicadoras; e
3. Genomas e genes descritos e com importância social, científica ou económica".
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
considerando do Preâmbulo da Convenção de Berna de 197972) pela
fórmula, menos politicamente impressiva (e agressiva), de
"preocupação comum da humanidade". Com efeito, as obrigações dos
Estados no quadro da CDB (se é que de verdadeiras vinculações se
pode falar, considerando a vaguidade e condicionalidade dos termos
empregues) fixam-se em função de critérios territoriais e pessoais (nos
termos do artigo 4), mas não em razão do valor metaestadual do bem
em causa. Os Estados não ficam desapropriados da sua biodiversidade
(nem mesmo da mais relevante para efeitos de equilíbrio do
ecossistema do seu todo), antes se vêem investidos em especiais
deveres de conservação in e ex situ (artigos 8 e 9 da CDB).
WOLFRUM, todavia, avança uma reflexão que cumpre realçar. O
Autor começa por sublinhar que um dos mais originais propósitos da
CDB "não é apenas reconciliar conservação e uso económico, mas
antes configurar o aproveitamento económico como um instrumento
de promoção da conservação"73 (cfr. os artigos 8, 10 e 11 da CDB),
vincando que as opções políticas nesta sede, de acordo com o artigo 3
da CDB, cabem aos Estados. No entanto, a partir do momento em que
o Estado recorra com êxito ao mecanismo financeiro a criar nos termos
dos artigos 21 e 39 da CDB (até agora ainda por gerar, funcionando
provisoriamente o Fundo para o Ambiente do Globo, sob a égide do
PNUA), a sua liberdade de movimentos nesta sede ficará condicionada,
derrogando-se o princípio da autonomia decisória decorrente do artigo
374.
"Os Estados em desenvolvimento só são livres de decidir sobre as suas
políticas ambientais relativas à gestão e aproveitamento da diversidade
72 Mais precisamente, que "a flora e a fauna selvagens constituem um património natural que reveste valor estético, científico, cultural, recreativo, económico e intrínseco que importa preservar e transmitir às gerações futuras" (itálico nosso).73 Rüdiger WOLFRUM, The protection and management of biological diversity, in
International, regional and national environmental law, coord. de Fred Morrison e Rüdiger Wolfrum, The Hague, 2000, pp. 355 segs, 364.74 Neste sentido, também Patricia BIRNIE, Alan BOYLE e Catherine RIDGEWELL,
International Law…, cit., pp. 633-634.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
biológica enquanto não procurarem financiamento ─ escreve
WOLFRUM. A partir do momento em que o fizerem, a sua política fica
integrada numa política global de utilização e conservação de recursos
biológicos gizada num plano internacional. Se os Estados vão aderir a
tal sistema vai depender de os benefícios do financiamento
internacional excederem os benefícios da utilização de tais recursos ou
áreas, conforme resultem das políticas domésticas.
Deste modo, a CDB pode constituir-se numa fonte de financiamento
de actividades nacionais, desde que tais actividades promovam a
protecção, gestão ou conservação da diversidade biológica. Este
incentivo foi concebido para compensar ou sobrecompensar as perdas
dos Estados menos desenvolvidos caso aceitem rever as suas políticas
actuais de aproveitamento dos recursos biológicos, tais como as
florestas tropicais"75. O que, convenhamos, tem um índice de sucesso
muito relativo, não só em virtude de o universo de destinatários típicos se
reconduzir aos países menos desenvolvidos, como também porque,
para constituir um mecanismo realista, envolverá somas avultadas.
Não se tratando propriamente do estabelecimento de
"protectorados ambientais", nem da entrega de certas zonas sob
jurisdição estadual à gestão por organismos internacionais, o
condicionamento da liberdade do Estado ─ que continua a ser o gestor
directo da biodiversidade, mas sem autonomia no tocante às directrizes
a que esta gestão deve obedecer ─ é inquestionável. Tratar-se-á de
uma situação peculiar, em que o Estado mantém a titularidade e
mesmo o usufruto dos bens ambientais, mas as utilidades ecológicas
deste usufruto passam a reverter não apenas a favor do titular mas
também da comunidade mundial. Contudo, e no limite, o paradigma
da soberania mantém-se incólume, porque aderir ou não ao esquema
de financiamento envolve uma opção livre do Estado. E restaria ainda
averiguar, na hipótese de adesão, a que tipo de sanções se sujeitaria
75 Rüdiger WOLFRUM, The protection…, cit., p. 370.
39
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
em caso de incumprimento das orientações internacionais a que a
partir de então ficará vinculado…
Esquema diverso ─ embora pudesse porventura ser
operacionalizado, havendo vontade política, através da CDB ─ foi
sugerido pelo Equador nas reuniões preparatórias da Cimeira de
Copenhaga, no âmbito da COP 15, de Dezembro de 200976. Trata-
se da iniciativa ITT, que visa obter compensação, para o Equador,
pela renúncia à exploração de uma reserva petrolífera que se
estende por três blocos do Parque Nacional Yasuni (Ishpingo,
Tambococha e Tipuyini = ITT), classificado como património mundial
natural pela UNESCO, em 1989, ao abrigo da Convenção de 1972.
O cálculo indemnizatório baseia-se no lucro de exploração de 850
milhões de barris em 13 anos, que importa em cerca de 4 a 5
milhões de euros e que será responsável pela emissão de 410
milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera. O Equador pediu 2
milhões de euros como contrapartida da não exploração, que
seriam investidos em projectos ambientalmente sãos patrocinados
pelos Estados doadores. Caso viesse a decidir explorar a jazida,
teria que devolver as quantias recebidas77.
Este mecanismo, de especial compensação pelo sacrifício de
renúncia a um direito soberano a (duplamente) favor da
Humanidade, (por poupar a reserva de biodiversidade e a
atmosfera) está dependente da constituição de um Fundo com
funcionamento efectivo, em que participem todos ou pelo menos
76 Sobre as alternativas em aberto no quadro da luta contra as alterações climáticas (pré-COP 15), Lavanya RAJAMANI, Addressing the 'post-Kyoto' stress disorder: reflections on the emerging legal architecture of the climate regime, in International and Comparative Law Quarterly, 2009/4, pp. 803 segs.77 O site http://sociedadesustentavel.terra.com.br/mercadosnew_interna.php?id=1577 dá notícia de que o PNUA terá celebrado já com o Equador um acordo concretizador deste desígnio, através do qual o Estado receberá 3,6 biliões de dólares para abdicar da exploração da jazida por pelo menos 10 anos. O acordo vem na sequência da iniciativa ITT, embora não esteja formalmente ligado ao Protocolo de Quioto.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
os Estados com maior índice de desenvolvimento (G2078). Ressalte-
se que, da Cimeira de Copenhaga, resultou um compromisso no
sentido da criação de um Green Climate Fund que poderá acorrer,
entre outras iniciativas, a hipóteses como esta (cfr. o Ponto 10 do
Acordo de Copenhaga, de 18 de Dezembro de 2009).
A título de curiosidade, sublinhe-se que o Presidente do Equador
já em 24 de Setembro de 2007 apresentara, na Assembleia Geral
da ONU, uma proposta no sentido de abdicar de explorar a
referida jazida petrolífera devido à sua localização. Perante o
insucesso da pretensão do quadro da protecção da
biodiversidade, o Equador enveredou pela via da luta contra as
alterações climáticas, que parece concitar mais atenções no
momento.
Uma derradeira nota ─ e ainda que à margem do regime da CDB ─
sobre um exemplo interessante de equilíbrio salomónico entre a
salvaguarda de interesses económicos e o imperativo de prevenção de
danos à biodiversidade, traduzido na decisão arbitral Caminho de ferro
do Reno, de 24 de Maio de 2005, que opôs a Bélgica à Holanda79.
Tratava-se de avaliar a possibilidade de reactivação do caminho de
ferro do Reno pela Bélgica, nomeadamente num troço em território
holandês classificado como reserva natural (simultaneamente ao abrigo
do direito interno e da directiva 92/43/CE, do Conselho, de 21 de Maio:
directiva habitats) e, em caso de resposta afirmativa, de saber qual dos
Estados suportaria os custos. A instância arbitral, constituída sob a égide
do Tribunal Permanente de Arbitragem da Haia, baseando-se nos
princípios da prevenção e da integração, determinou que a linha
78 Que são os Estados que integram o G7 (EUA; Canadá; Japão; Alemanha; Reino-Unido; Itália; França); a União Europeia; e a África do Sul, a Arábia Saudita, a Argentina, a Austrália, o Brasil, a China, a Coreia do Sul, a Índia, a Indonésia, o México, a Rússia, e a Turquia.79 A decisão pode ser consultada no site do Permanent Court of Arbitration:
http://www.pca-cpa.org/upload/files/BE-NL%20Award%20corrected%20200905.pdf.
41
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
poderia ser reactivada mas impôs à Bélgica a suportação dos custos de
mitigação dos efeitos ambientais lesivos.
Neste caso, o risco de degradação de valores da biodiversidade,
não tendo sido evitado, foi rodeado de medidas minimizadoras e
compensadoras a suportar pela Bélgica. A reivindicação soberana
deste Estado ao direito de passagem (da linha férrea) por território
holandês, constituído a seu favor por um Tratado de 1839, não o exime
de prevenir danos "transfronteiriços" (que, neste contexto particular, o
não são, porque se produzem em território estrangeiro80) a valores
naturais, enquanto gestor de uma servidão internacional sobre a qual
pesam especiais deveres de conservação. A pretensão económica
prevalece sobre o valor ecológico, mas com contrapartidas…
Podemos assim concluir, desta breve análise, que o valor da
biodiversidade conta com vários gestores, no plano internacional, ou
seja, tantos quantos os Estados do planeta, mais todas as organizações
e estruturas concebidas para promover a gestão de recursos
partilhados e ainda a Autoridade (gestora da Área). Apesar de a
preservação da integridade da estrutura de suporte da vida na Terra
configurar uma preocupação comum da Humanidade, o dogma da
soberania continua a pontificar nesta sede, não se vislumbrando, por
ora, a sua cedência.
2.1. Em Portugal, como vimos, o valor da biodiversidade pode assumir
classificações de vária ordem, consoante critérios diversos. Certo é que,
80 Realçando esta "nova dimensão" do princípio da prevenção de danos ambientais transfronteiriços descoberta pela decisão arbitral de 24 de Maio de 2005, Virginie BARRAL, La sentence du Rhin de fer, une nouvelle étape dans la prise en compte du Droit de l'Environnement par la justice internationale, in RGDIP, 2006/3, pp. 647 segs, 657 segs. Sem embargo de reconhecermos a criatividade do tribunal, sempre sublinharemos que o princípio mantém o seu universo aplicativo intocado, na medida em que, tratando-se da utilização de um espaço territorial de um outro Estado (a título de servidão internacional), o Estado utilizador age investido dos mesmos deveres (de responsabilização e, implicitamente de prevenção de danos) que teria na utilização do seu território.
42
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
apesar da relevância que a LBA lhe reconhece, o legislador não operou
a publicização formal das áreas de biodiversidade, ou seja, não as
integrou numa categoria de domínio público natural que poderia ter
despontado na LBA (por referência à cláusula residual do artigo 84º/1/f)
da CRP)81. Assim, uma área protegida em atenção aos valores de
diversidade biológica aí presentes82 pode integrar o domínio público ─
desde logo hídrico (nacional; regional; local) ─, o domínio privado (do
Estado; das Regiões Autónomas; das autarquias locais), propriedade
privada de entidades singulares ou colectivas, ou propriedade
cooperativa (v.g., no âmbito da RAN83) ─ como o disposto no nº 3 do
artigo 10º do RCNB atesta84. A titularidade dos terrenos abrangidos pela
classificação não fica (formalmente) afectada, em princípio, incidindo
esta apenas sobre as faculdades de uso e fruição dos imóveis.
Uma área protegida, por definição, é uma zona onde os elementos
naturais se sobrepõem aos humanos (cfr. o artigo 10º/2 do RCNB). Mas
tal não significa que toda e qualquer actividade ou presença humana
esteja vedada nessas áreas, salvo nos casos excepcionais das zonas de
protecção integral (nas quais tanto a investigação científica como a
monitorização ambiental e a visitação ficam sujeitas a autorização
prévia da autoridade nacional) que, caso sejam de titularidade
privada, ficam sujeitas a expropriação (cfr. o artigo 22º/1/a) e nº 2 do
RPNB). O RPNB não ambiciona criar santuários naturais
81 Cfr. Ana Raquel GONÇALVES MONIZ, O domínio público. O critério e o regime jurídico da dominialidade, Coimbra, 2004, pp. 161, nota 152 (sobre a desnecessidade de publicização dos bens ambientais naturais, v. p. 264, nota 405).82 Atente-se no disposto no artigo 10º/2 do RCNB: "Devem ser classificadas como
áreas protegidas as águas terrestres e aquáticas interiores e as áreas marinhas em que a biodiversidade ou outras ocorrências naturais apresentem, pela sua raridade, valor científico, ecológico, social ou cénico [estes dois últimos fundamentos suscitam-nos as maiores dúvidas, se forem considerados isoladamente], uma relevância especial que exija medidas específicas de conservação e gestão, em ordem a promover a gestão racional dos recursos naturais e a valorização do património natural e cultural, regulamentando as intervenções artificiais susceptíveis de as degradar".83 Cfr., para além do DL 73/2009, de 31 de Março, que define o regime jurídico da
RAN, o DL 335/99, de 20 de Agosto (com alterações introduzidas pelo DL 23/2001, de 30 de Janeiro), sobre cooperativas agrícolas, maxime o artigo 4º/2 (actividades complementares ou conexas das actividades agrícolas).84 Cfr. também o artigo 50º do RCNB.
43
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
autoreferenciados. Antes pelo contrário, o que se pretende é gerar
interacções entre as pessoas e o meio natural, com respeito pela
integridade dos recursos de biodiversidade presentes e estimulando a
vivência humana dos mesmos.
A leitura das normas relativas à classificação de parques nacionais,
parques naturais, reservas naturais e monumentos naturais ─ artigos 16º,
17º, 18º e 20º do RPNB ─ é particularmente exemplificativa deste
desígnio misto, o qual se pode, porventura, afigurar-se arriscado do
ponto de vista estritamente ecológico, se justifica plenamente de uma
perspectiva prática: o custo de manutenção da biodiversidade deve
reverter não só a favor da sua integridade como da melhoria da
qualidade de vida dos seres humanos que dela retiram utilidades para a
saúde física e psíquica. A tónica ecocêntrica acentua-se na categoria
da reserva natural ─ ganhando contornos máximos nas zonas de
protecção integral mencionadas supra ─ onde, por razões de
alheamento da presença humana desde há longo tempo, se verifica
uma maior autenticidade da fauna e flora residentes. Assim se
compreende a maior rigidez de uma norma como o nº 2 do artigo 18º,
que restringe as actuações possíveis em reservas naturais:
- À "execução das acções necessárias para a manutenção e
recuperação das espécies, dos habitats e dos geossítios em estado de
conservação favorável";
- Ao "condicionamento da visitação a um regime que garanta níveis
mínimos de perturbação do ambiente natural";
- À "limitação da utilização dos recursos, assegurando a manutenção
dos atributos e das qualidades naturais essenciais da área objecto de
classificação".
Podendo conviver vários regimes de titularidade das áreas
protegidas, coexistem também vários gestores (e subgestores) das
mesmas. O artigo 13º do RCNB confirma esta ideia, entregando a
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
gestão das áreas de interesse nacional ao ICNB (nº 1), e a das áreas de
âmbito regional ou local a associações de municípios ou aos municípios
respectivos (nº 2) ─ sendo certo que estes últimos podem participar na
gestão das áreas nacionais, nos termos do artigo 8º/c) do RCNB. Nos
termos do artigo 54º/7 do RCNB, "A gestão das áreas integradas no
SNAC existentes nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira
compete aos respectivos Governos Regionais". Além disso, o artigo 13º
citado alude à possibilidade de gestão transfronteiriça, caso as
características da área protegida o recomendem (nº 6). Estas tarefas
podem ser desenvolvidas directamente pelas entidades centrais,
regionais e locais ou por outras entidades, públicas e privadas, com
quem a sua realização se contratualize (artigo 13º/3).
A este quadro deve ainda acrescentar-se a menção às áreas
protegidas de estatuto privado, a que alude o artigo 21º do RCNB, cuja
classificação depende de iniciativa do seu proprietário (privado) junto
do Ministério do Ambiente, através de candidatura a regular por
portaria (nº 2). Uma vez reconhecida como tal pelo ICNB, a área passa
a integrar a RNAP e ser gerida pelo ICNB, nos termos prescritos em
protocolo de gestão a firmar, que condicionará a utilização da zona em
atenção à protecção dos valores de biodiversidade aí presentes. O
proprietário não fica investido em quaisquer direitos ou prerrogativas
especiais de autoridade por força deste protocolo ─ podendo mesmo
indagar-se, perante o silêncio da norma, que vantagens terá em tentar
semelhante candidatura, para além da obtenção da designação de
"área protegida de estatuto privado", a qual poderá eventualmente
contribuir para fomentar o ecoturismo…
A indagação ganha mais sentido se ressaltarmos o carácter dinâmico
da noção de conservação da biodiversidade assumido pelo RCNB.
Com efeito, o legislador não remete o gestor para meras operações de
proibição e condicionamento, antes e sobretudo aponta para a
necessidade de adopção de dois tipos de medidas (artigo 6º):
45
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
"Acções de conservação activa, que correspondem ao conjunto de
medidas e acções de intervenção dirigidas ao maneio directo de
espécies, habitats, ecossistemas e geossítios, bem como o conjunto de
medidas e acções de intervenção associadas a actividades sócio-
económicas, tais como a silvicultura, a mineração, a agricultura, a
pecuária, a caça ou a pesca, com implicações significativas no maneio
de espécies, habitats, ecossistemas e geossítios, tendo em vista a sua
manutenção ou recuperação para um estado favorável de
conservação; e
Acções de suporte, que correspondem à regulamentação,
ordenamento, monitorização, acompanhamento, cadastro,
fiscalização, apoio às acções de conservação activa, visitação,
comunicação e vigilância dos valores naturais classificados".
Isto é, não basta não destruir, não perturbar, não introduzir espécies
invasivas. Urge, também, promover medidas de conservação activa,
que permitam preservar o existente e contribuir para um
entrelaçamento entre os aproveitamentos possíveis da biodiversidade e
a vivência da área pelos frequentadores que as suas características
permitirem. Esta conservação sustentável in situ, para ser efectiva,
redunda em custos que o RCNB tentou colmatar através de duas vias: a
cobrança de taxas de utilização, que simultaneamente suportam (de
forma parcial) o custo das medidas de conservação e limitam o acesso
(artigo 38º do RCNB)85, e o financiamento de projectos de recuperação
e promoção através do Fundo para a Conservação da Natureza e da
Biodiversidade, criado pelo DL 171/2009, de 3 de Agosto (artigo 37º/2)86.
85 Sublinhe-se a isenção de pagamento destas taxas pelos residentes no concelho abrangido pela(s) área(s) protegida(s) ─ artigo 38º/3/b) do RCNB.86 Que assim autonomiza, aparentemente, as acções no domínio da conservação da
Natureza do restante universo de protecção dos componentes ambientais, servido pelo Fundo de Intervenção Ambiental (=FIA, criado pelo DL 150/2008, de 30 de Julho). Todavia, o artigo 2º/2 do DL 171/2009 (veja-se também o artigo 3º/1/b) do Anexo à Portaria 487/2010, de 13 de Julho, que aprova o Regulamento de Gestão do Fundo para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade), não contempla, nos objectivos do Fundo, a reparação de danos à fauna e flora protegidas ─ solução que
46
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
A magnitude da tarefa de conservação não dispensa, contudo, o
recurso à colaboração de privados87. Os artigos 13º/3 e 35º do RCNB
abrem a porta à contratualização nesta área, "sempre que essa
participação se mostre possível, adequada e útil", através de
instrumentos vários que garantam ao privado uma contrapartida
suficientemente atractiva para se envolver na empresa, sob a
orientação e fiscalização do ICNB (mesmo não se tratando de áreas
protegidas de âmbito nacional…)88. Repare-se que estes contratos
podem ser celebrados com entidades públicas ou privadas89, mas
circunscrevem o seu âmbito de aplicação a áreas protegidas de
"âmbito nacional, regional ou local" ─ cfr. o artigo 13º/3 do RCNB. Tal
não significa que não sejam susceptíveis de utilização nas áreas de
estatuto privado ─ que, recorde-se, são geridas pelo ICNB ─, mas
apenas que, nessas zonas, a existência de um protocolo com o
proprietário que tem a iniciativa de pedir o reconhecimento dá a este a
primazia sobre as opções de contratualização da gestão (desde logo,
por assumir ele próprio as tarefas de conservação, de acordo com o
projecto que pretende desenvolver no espaço, sempre com respeito
pela finalidade primordialmente ecológica da gestão).
Mesmo nas áreas de estatuto público podem encontrar-se parcelas
de terreno pertencentes a privados ─ espécies de enclaves de
propriedade privada situados em parques ou reservas ─ onde a
contratualização pode ocorrer com o próprio proprietário, se a
dimensão da zona e a riqueza das incidências biológicas o justificarem.
Tal opção não pode, porém, de nenhuma forma mascarar a demissão
da autoridade nacional, regional ou local das suas tarefas básicas de
gestão, nos termos do artigo 13º/2 do RCNB. Ou seja, e apelando à
os deixa, algo anomalamente, entregues ao FIA.87 Sugestão que deixámos no nosso Risco e modificação do acto autorizativo
concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, p. 179.88 Veja-se também o nº 6 do artigo 13º citado, noutro plano, apelando à
cooperação internacional para a gestão em continuidade de áreas transfronteiriças.89 Nos amplos termos da alínea d) do nº 6 do artigo 1º do Código dos Contratos
Públicos, estes contratos terão a natureza de contratos administrativos.
47
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
jurisprudência Marais poitevin, do Tribunal de Justiça90, as entidades
públicas devem assegurar a protecção suficiente, só podendo recorrer
à colaboração de privados ─ quando "voluntária e puramente
incitativa" ─ para aumentar o nível de protecção acima do
estritamente necessário.
Na verdade, o imperativo de assegurar o continuum naturale dos
componentes biológicos das áreas protegidas leva algumas vozes a
questionar a possibilidade de recurso aos instrumentos contratuais91. O
contrato poderia constituir uma forma de frustrar os objectivos de
gestão destas zonas, por se estarem a pulverizar tarefas de protecção
por entidades várias, perdendo-se a homogeneidade necessária, além
de precarizar uma missão que tem no planeamento a médio e longo
curso um dos seus trunfos. Cumprirá ao ICNB obviar a estas
desvantagens, praticando uma gestão verdadeiramente integrada não
só das áreas protegidas como dos contratos que sobre elas incidem,
com vista a retirar desta técnica o máximo de vantagens e o menor
percentual de inconvenientes.
Menos positiva para a salvaguarda do continuum naturale é a
adopção de medidas compensatórias, a que já aludimos em 1.2. a
propósito da rede Natura 2000, mas que pode ocorrer também em sede
geral, como o artigo 36º do RCNB prova92. Sendo de algum modo
inevitáveis, uma vez que a natureza ocupa espaço e espaço é uma
grandeza de que o homem necessita para viver, trabalhar, divertir-se,
seria utópico conceber as áreas de biodiversidade como impenetráveis
à iniciativa humana. É esse espírito de cedência que sustenta o artigo
36º citado o qual deve, todavia, ser encarado como excepcional ─
90 Acórdão de 25 de Novembro de 1999, Caso C-96/98.91 Cfr. Éve TRUILHÉ-MARENGO, Contractualisation, réglementation: quelle articulation
entre les outils des sites Natura 2000?, in RJE, 2005/2, pp. 131 segs, 140 segs (em razão da voluntariedade, da precariedade e dos desvios aos imperativos de participação pública).92 Extensamente sobre medidas compensatórias no Direito brasileiro, Hortênsia
GOMES PINHO, Prevenção e reparação de danos ambientais, Rio de Janeiro, 2010, pp. 389 segs.
48
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
duplamente, porque não só significa o sacrifício de um valor natural a
objectivos sócio-económicos, como pode pôr em causa o princípio do
continuum naturale (caso a acção compensatória seja insusceptível de
realização no espectro geográfico do recurso afectado)93.
Esta possibilidade, sendo embora preferível à neutralização dos
custos da destruição dos recursos e à sua diluição em eventuais
medidas compensatórias a suportar pela comunidade94, torna-se ainda
mais preocupante se atentarmos em que a lei não prevê sanções para
a sua não adopção efectiva e que tão-pouco estabelece critérios
(directamente ou por remissão) que presidam à sua programação. A
tentação de importar o enunciado no Anexo V do DL 147/2008, de 29
de Junho (Regime da prevenção e reparação do dano ecológico), no
que tange a estas medidas é grande. Mas cumpre sublinhar o intuito
existencial radicalmente diverso da compensação ecológica
antecipatória do RCNB (ancorado num mecanismo de justa repartição
de encargos públicos em que se onera quem provavelmente
desgastará mais um recurso ou, em terminologia mais ambientalmente
reconhecível, no princípio do poluidor pagador) e da compensação
ecológica reparatória do DL 147/2008 (relativa a um dano que já
ocorreu, que é mensurável e cujos efeitos nefastos, pelo menos em
parte, já são aferíveis).
Deste fugaz relance pelos ordenamentos internacional e nacional no
tocante à gestão do valor da biodiversidade, constatamos que a
pluralidade ─ inevitável ─ de entidades que a promovem se prende
com os multifacetados títulos de propriedade a que os recursos estão
sujeitos, na sua dimensão corpórea e económica. A pulverização de
entidades gestoras traz consigo problemas de coordenação, aos quais
acresce a sobreposição de vínculos contratuais com estruturas públicas 93 Sobre este instituto, em França, leiam-se as reflexões de Marthe LUCAS, La
compensation environnementale, un mécanisme inefficace a améliorer, in RJE, 2009/1, pp. 59 segs, passim.94 Neste sentido, José Mário FERREIRA DE ALMEIDA, O velho, o novo…, cit.
49
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
e privadas tendo em vista a prossecução eficaz das tarefas de gestão
proactiva das áreas protegidas (cuja articulação cuidada se impõe).
Sendo certo que este desígnio pode ser perturbado pela introdução de
fenómenos de contra-corrente traduzidos em iniciativas que alteram o
continuum naturale as quais, mesmo tendo por contrapartida a
realização de acções compensatórias, podem comprometer
irremediavelmente o equilíbrio da área em causa.
3. David Jablonski, paleontólogo da Universidade de Chicago,
pronunciando-se sobre a assustadora perda de biodiversidade a que
assistimos nas últimas décadas, afirmou95:
"Somos uma verdadeira praga para a biodiversidade. Não nos
limitamos a caçar e pescar em excesso, a modificar a química da
atmosfera ou a tornar os oceanos mais ácidos. Nem nos limitamos
a exterminar os animais de grande porte. Fazemos tudo isso ao
mesmo tempo".
A diversidade biológica é claramente o parente pobre do Direito do
Ambiente. Com pouca utilidade económica, é a primeira a ser
sacrificada no altar do desenvolvimento sócio-económico. Ocupando
espaço e belos cenários, cede facilmente lugar a apetites utilitaristas ─
ou, mais prosaicamente, a necessidades ditadas pela expansão
demográfica. Funcionando em rede, mesmo uma pequena alteração
ganha impacto exponencial, comprometendo o equilíbrio do
ecossistema em termos espaciais e frustrando expectativas de
aproveitamento transgeracionais.
Gerir racionalmente é um imperativo categórico ─ e urgente. E
constitui seguramente um bom investimento, como o Relatório TEEB
95 A Terra continua… o Homem é que não, in Courrier Internacional nº 169, Março de 2010, pp. 50 segs, 52.
50
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
demonstra. Basta combater o estigmatismo estratégico que tem
pontuado a actuação dos Estados, preferindo a concretização do lucro
imediato ao investimento no longo prazo, cedendo a uma versão fácil
de bem-estar e fragilizando as defesas do planeta.
Nas palavras de Humberto ROSA, "A biodiversidade deve ser vista
como um capital de complexidade e de tempo evolutivo, acumulado
na terra durante cerca de 4 mil dezenas de milhões de séculos. (…) A
complexidade e o tempo evolutivo são um pilar essencial da
valorização dos seres vivos, a desbravar, enquadrar, entrosar e
hierarquizar devidamente nas demais vias de valorização que
sustentam a Ética. A conservação da biodiversidade pode e deve ser
encarada como um dos mais relevantes deveres éticos da
Humanidade"96.
A biodiversidade constitui um testamento vivo da história da
Humanidade no planeta ─ cada espécie que se perde é uma página
que se destrói e cuja destruição retira coerência à narrativa. Não
queiramos ficar órfãos da nossa própria memória biológica. Saibamos
preservar e vivificar a herança da biodiversidade que nos foi legada.
Lisboa, Junho de 2010
Carla Amado Gomes
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova
de Lisboa
96 Humberto ROSA, Conservação da biodiversidade…, cit., pp. 32-33.
51
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade 52
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
O dano à biodiversidade: conceptualização e reparação
Introdução
As Nações Unidas declararam 2010 o Ano Internacional da
Biodiversidade1. A vaguidade (e vacuidade…) dos vários pontos da
Resolução da Assembleia Geral2 só pode considerar-se consentânea
com a forma como tem sido desenhado e implementado o
enquadramento jurídico da protecção da diversidade biológica. Em
especial no que toca ao Direito Internacional, qualquer protecção
efectiva e concreta da biodiversidade parece resultar de um encontro
aleatório de circunstâncias e é manifestamente contrária aos objectivos
dos Estados, que, sucessivamente, têm vindo, há já várias décadas, a
dar passos meramente simbólicos. Com tudo isto, e a título preliminar, 1 Resolução 61/203, de 20 de Dezembro de 2006, a Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas. Para uma introdução genérica à crise da biodiversidade veja-se Michel Durousseau, “Le constat: la biodiversité en crise”, Revue Juridique de l’Environnement, numero especial, 2008, pp. 11 e seguintes.2 Para comodidade do leitor, passamos a transcrever (sublinhados nossos):
“The General Assembly:1. Declares 2010 the International Year of Biodiversity;2. Designates the secretariat of the Convention on Biological Diversity as the
focal point for the International Year of Biodiversity, and invites the secretariat to cooperate with other relevant United Nations bodies, multilateral environmental agreements, international organizations and other stakeholders, with a view to bringing greater international attention to bear on the issue of the continued loss of biodiversity;
3. Invites Member States to consider establishing national committees for the International Year of Biodiversity;
4. Encourages Member States and other stakeholders to take advantage of the International Year of Biodiversity to increase awareness of the importance of biodiversity by promoting actions at the local, regional and international levels;
5. Invites Member States and relevant international organizations to support the activities to be organized by developing countries, especially least developed countries, landlocked developing countries and small island developing States, and countries with economies in transition;
6. Invites relevant international organizations as well as relevant global and regional environmental conventions to communicate to the focal point for the International Year of Biodiversity efforts made towards the successful implementation of the objective of the Year;
7. Requests the Secretary-General to submit to the General Assembly at its sixty-sixth session a report on the implementation of the present resolution.”
53
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
pretendemos dizer apenas uma coisa: já era tempo de a protecção da
biodiversidade deixar de se resumir a operações de sensibilização (ou
marketing político…) ou, como mais impressivamente se disse, que a
protecção da biodiversidade deixasse de ser “uma mão cheia de
nada, outra de coisa nenhuma”…3
Ainda assim, e sem querer entrar na discussão filosófica em torno da
protecção da biodiversidade, é o reconhecimento do valor intrínseco
da mesma que tem levado à multiplicação dos vários instrumentos
normativos, a nível nacional e internacional. Por contraposição ao valor
meramente instrumental que durante séculos foi atribuído à natureza4, a
biodiversidade começa a ser reconhecida já como tendo valor
intrínseco, mais que valor inerente5, o que justificaria o seu
enquadramento jurídico através da imposição de deveres objectivos de
protecção.
O objecto do nosso estudo não é o estado geral do direito do
ambiente no que toca à biodiversidade, mas, mais especificamente, o
dano à biodiversidade e a reparação do mesmo. Contudo, esta divisão
estanque não é simples de seguir por uma razão: o conceito de dano à
biodiversidade tem de passar por uma rigorosa delimitação normativa
do mesmo, dada a imensidão e fluidez (inclusive científica) da
“diversidade biológica”.3 Cfr. título do estudo de CARLA AMADO GOMES, supra nesta publicação.4 De que é exemplo acabado a Convenção para a protecção de pássaros úteis à
agricultura, assinada em Paris, em 1902. 5 A distinção entre valor intrínseco e inerente não é evidente, pelo que merecerá
aqui uma breve explicitação. Assim, valor intrínseco representará o valor que uma coisa tem pela sua existência, e não pela sua utilidade económica (valor instrumental), como é o caso de uma obra de arte e, no caso do ambiente, da paisagem natural. Não sendo úteis, nem cumprindo funções economicamente relevantes, é-lhes atribuída relevância e, nessa medida, são protegidas. Terá valor intrínseco aquilo que tem valor em si mesmo, independentemente da existência de um terceiro que lhe reconheça essa circunstância. Apenas a vida humana parecia ter valor intrínseco, porque se desenvolve e reconhece a si própria. A imposição de deveres objectivos de protecção, caracterizada pelo ecocentrismo, resulta do reconhecimento de valor intrínseco a outras formas de vida. Mais desenvolvidamente sobre estes pontos, veja-se MICHAEL BOWMAN, “Biodiversity, intrinsic value and the definition and valuation of environmental harm”, Environmental damage in international and comparative law. Problems of definition and valuation (org. Michael Bowman, Alan Boyle), Oxford: Oxford University Press, 2002, pp. 42 e seguintes.
54
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
1. O dano à biodiversidade
1.1. Dano ecológico e dano ambiental
É sobejamente conhecida a problemática em torno da primeira
distinção de que iremos partir: dano ecológico e dano ambiental6. Na
prática, a distinção assume relevo quando ambos resultam do mesmo
facto lesivo; contudo, o primeiro representa a lesão causada ao
elemento natural em si (água, solo, fauna, flora) e o segundo refere-se a
danos causados a pessoas e bens. Assim, quando ocorram em
simultâneo e em resultado de um mesmo facto lesivo, o dano ecológico
será o dano primário e o dano ambiental será um dano subsequente,
na medida em que a lesão ao proprietário resulta da lesão ao
ambiente natural7.
Feita (ainda que superficialmente) esta primeira distinção, cabe
questionar se é sequer conceptualmente possível falar de um dano
ambiental (no sentido supra exposto) à biodiversidade. O que implica,
naturalmente, tentar determinar ou, pelo menos, delimitar o conceito
de biodiversidade.
1.2. Biodiversidade: conceito e sua (in)operatividade
O recurso ao conceito de biodiversidade resulta de um processo de
aperfeiçoamento do direito da conservação da natureza ou da vida
selvagem, focado principalmente em formas de protecção e
6 Sublinhe-se, contudo, que esta terminologia não está consolidada na doutrina, e muito menos na lei. 7 Um exemplo típico de dano ambiental é aquele que é causado ao proprietário de
um terreno contaminado ou de exemplares de espécies protegidas; o dano ecológico (contaminação de solo ou dano à biodiversidade através do abate de exemplares da espécie) é a lesão primária; por força da lesão ao elemento natural verifica-se a lesão do direito de propriedade (dano ambiental/subsequente). Referimo-nos ao proprietário para simplificar a exposição, na medida em que, como é consabido, muitos outros interessados podem invocar danos, nomeadamente titulares de direitos reais menores ou direitos pessoais de gozo.
55
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
conservação de espécies de fauna e flora selvagens ameaçadas8. A
compreensão de que não pode haver uma protecção eficaz de
espécies sem a protecção dos ecossistemas em que se inserem levou à
adopção de uma fórmula mais ampla, que incluísse todas estas
realidades naturais: a biodiversidade9.
Contudo, se é verdade que a amplitude do conceito é a sua virtude,
essa mesma característica é simultaneamente, para um jurista, o seu
maior defeito. Como operacionalizar um conceito tão amplo, vasto,
impreciso? Será possível construir um regime de protecção da
biodiversidade que não resuma àquilo que, afinal, tem sido até agora
(a conservação da natureza)?
Antes de tentarmos responder a estas dúvidas, tentemos uma
aproximação ao conceito de biodiversidade. Nesta matéria, como em
tantas outras no Direito do Ambiente, é evidente a dependência do
jurista das ciências naturais. Disso mesmo é exemplo a Convenção
sobre a Diversidade Biológica10 quando no artigo 2.º define diversidade
biológica como a “variabilidade entre os organismos vivos de todas as
origens, incluindo, inter alia, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros
ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte;
compreende a diversidade dentro de cada espécie, entre as espécies
e dos ecossistemas”11. Em termos muito simples, “biodiversidade é tudo
o que é vivo (…) toda a multiplicidade de seres de cuja existência
estamos mais ou menos conscientes, e a toda uma outra infinidade de
seres desconhecidos da maioria das pessoas”12.
8 De facto, apesar de frequentemente assimilados, a conservação da natureza e a protecção da biodiversidade não são conceitos indiferenciados, conforme se explicitará adiante.9 Neste mesmo sentido, veja-se ALEXANDRE KISS e JEAN-PIERRE BEURIER, Droit International de
l’Environnement, 13.ª ed., Paris: Pedone, 2004, p. 360.10 Aprovada para ratificação pelo Decreto 21/93, de 21 de Junho.11 Com uma redacção semelhante, o artigo 3.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º
142/2008, de 24 de Julho, que aprovou o regime jurídico da conservação da natureza e da biodiversidade, define biodiversidade como “a variedade das formas de vida e dos processos que as relacionam, incluindo todos os organismos vivos, as diferenças genéticas entre eles e as comunidades e ecossistemas em que ocorrem”.
56
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
É no mesmo tom que diversos autores têm definido biodiversidade:
como uma variabilidade das formas de vida a todos os níveis, o que
inclui a diversidade dentro de cada espécie, entre espécies e entre
ecossistemas13. Assim, é possível dividir a biodiversidade em três níveis
conceptuais: (i) diversidade de ecossistemas; (ii) diversidade de
espécies; e (iii) diversidade genética14. A biodiversidade é normalmente
associada apenas à diversidade de espécies, através das estimativas
do número de espécies existentes no planeta, das quais apenas uma
ínfima parte é conhecida pelo Homem. Mas estudar e proteger a
biodiversidade implica ainda o reconhecimento da riqueza das
relevantes diferenças entre os seres de uma mesma espécie; e das
diferentes formas de organização e interacção dos seres vivos nos seus
habitats.
A primeira conclusão a retirar do que fica dito – e que, aliás, já foi
antecipada – é que aquilo que é comummente designado por direito
da conservação da natureza15 é apenas uma parte do que seria um 12 Cfr. HUMBERTO ROSA, “Conservação da biodiversidade: significado, valorização e
implicações éticas”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 14, Dez/2000, p. 10.13 Assim o define P.W. BIRNIE e A.E. BOYLE, International law and the environment, 2.ª ed.,
Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 549: “biological diversity, or biodiversity, is the variability of life in all its forms, levels, and combinations. It is not, as is often wrongly assumed, the sum of all ecosystems, species, and genetic materials. Rather, as IUNC’s guide to the 1992 Convention on Biological Diversity puts it, “it represents the variability within and among them and is, therefore, an attribute of life, in contrast with “biological resources” which are tangible biotic components of ecosystems”. 14 Embora nem sempre com terminologia coincidente, cfr. P.W. BIRNIE e A.E. BOYLE,
International Law…, p. 549; HUMBERTO ROSA, “Conservação da biodiversidade…, p. 11; e JORGE PAIVA, “A relevância do património biológico”, Textos ambiente e consumo, Vol. I, Caxias: Centro de Estudos Judiciários, 1996, pp. 29 e seguintes.15 Nesta matéria, no ordenamento jurídico português, cabe identificar o Decreto-Lei
n.º 142/2008, de 24 de Julho, que aprovou o regime jurídico de conservação da natureza e da biodiversidade. Sobre este regime, veja-se supra nesta publicação o resumo feito por CARLA AMADO GOMES, “Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma: duplo eixo reflexivo em torno da biodiversidade”, no ponto 2.1. Muito crítico deste regime, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA sublinha o falhanço na tentativa de criação de um regime uniforme de conservação da natureza e protecção da biodiversidade, uma vez que o diploma resume-se, afinal, a uma mera unificação meramente formal de vários regimes. Em suma, “a RFCN não é, como se esperava que fosse, o denominador comum dos regimes da Rede Nacional das Áreas Protegidas, da Rede Natura 2000 e outras áreas classificadas, da REN, da RAN ou do regime do domínio público hídrico no que todos eles têm que ver com a salvaguarda do património genético existente em território nacional. É, tão só, o nome que se dá à soma de todos
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
desejável regime de protecção da biodiversidade, que não se resume
à adopção de medidas para proteger determinadas espécies, ou os
seus habitats, ou mesmo à delimitação de zonas protegidas, com
estatutos mais ou menos exigentes em termos de admissibilidade de
interferência humana.
Contudo, assim vista em termos tão latos, a protecção da
biodiversidade parece ser afinal… todo o Direito do Ambiente! É que se
a biodiversidade é tudo o que é vivo (e até mais que isso, uma vez que,
ao incluir a diversidade de ecossistemas, a biodiversidade tem também
de atender, ainda que funcionalmente, a factores abióticos, aspectos
físicos e químicos, como o clima) então todo o Direito do Ambiente
pode ser considerando funcionalmente direccionado à protecção da
biodiversidade, que seria, em última análise, o objecto deste ramo do
direito.
Parece que as nossas conclusões em termos de reparação de dano
à biodiversidade teriam de roçar os limites do irrazoável uma vez que
afinal dano à biodiversidade seria qualquer lesão de qualquer coisa
viva ou afectação de qualquer ecossistema. Neste ponto, regressamos
ao que dissemos anteriormente: o conceito jurídico operativo de dano
à biodiversidade tem de ser rigorosamente concretizado e delimitado
normativamente, dada a imensidão e fluidez do conceito naturalístico
da diversidade biológica. O instituto da responsabilidade civil e a
obrigação de reparação não se compaginam com este nível de
incerteza conceptual, sob pena de inaplicabilidade do regime ou de
intolerável insegurança jurídica. Resta-nos, portanto, admitir este
conceito (rectius, ideia…16) amplíssimo de biodiversidade, que limita o
eles”. Cfr. “O velho, o novo e o reciclado no direito da conservação da Natureza”, O que há de novo no Direito do Ambiente?, Actas das Jornadas de Direito do Ambiente, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 15 de Outubro de 2008 (org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes), Lisboa: AAFDL, 2009, p. 51.16 Não cabendo esta discussão na economia do presente trabalho, urge fazer uma
reflexão aprofundada sobre se, nestes termos, biodiversidade poderá ser, em qualquer contexto, um conceito juridicamente operativo. Apesar de mais restrito, também o conceito de ecossistema padece de males semelhantes. No que toca à protecção internacional de ecossistemas, há várias razões que explica o seu fraco (inexistente?)
58
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
legislador na delimitação que faz; e admitir que é indispensável uma
concretização normativa do conceito de dano.
Note-se, contudo, que este problema, ainda que mais evidente no
caso da biodiversidade, não é exclusivo deste bem ambiental. Pelo
contrário, o próprio conceito de dano ecológico coloca, em geral, o
mesmo problema de graduação valorativa. Ou seja, não podemos
considerar como dano ecológico qualquer afectação de recursos
naturais, uma vez que a é intrínseca à natureza do Homem a
interacção com o mundo que o rodeia e que, necessariamente, vai
afectar.
De facto, a conceptualização de qualquer tipo de dano ecológico
implica sempre uma prévia reflexão no que toca ao bem jurídico
protegido, que não é, certamente, um terreno em particular, um peixe
específico, um pequeno curso de água. Contudo, e apesar de esta ser
uma problemática transversal, parece-nos surgem ainda maiores
dificuldades neste campo quando falamos de dano à biodiversidade
(no sentido mais restrito com que comummente é utilizado). Esta
circunstância resulta das diferentes formas de produção de danos
ecológicos. As duas formas mais comuns de produção de danos
ecológicos são a contaminação17 (águas, solo, subsolo, atmosfera) e a
redução ou eliminação de espécies (fauna e flora). Ora qualquer ideia
de contaminação já parte de um pré-conceito graduado e valorativo –
estatuto legal. Em primeiro lugar, os ecossistemas são vistos como componentes indiferenciados de outras áreas com estatutos legais especiais (e.g. parques naturais). Por outro lado, o direito internacional do ambiente centra-se essencialmente no problema dos impactos transfronteiriços que causam danos imediatos e substanciais, contrariamente aos danos a ecossistemas, que se pautam pela protecção funcional prolongada no tempo. Desenvolvimentos neste tópico podem ser encontrados em DAN TARLOCK, “Ecosystems”, The Oxford Handbook of International Environmental Law (org. Daniel Bodansky, Jutta Brunnée, Ellen Hey), Nova Iorque: Oxford University Press, 2007, pp. 576 e seguintes. 17 Sobre o conceito de contaminação em geral, e sua relação com a poluição e
elementos naturais, vide JESUS CONDE ANTEQUERA, El deber jurídico de restauración ambiental, Granada: Editorial Comares, 2004, p. 20; JEAN-FRANÇOIS KREIT, “Les notions de sols pollués et la décontamination dês sols sur la plan technique”, Sols contamines, sols à décontaminer, Bruxelas: Facultés universitaires Saint-Luis, 1996, em especial pp. 17 e seguintes; e JOSÉ IGNACIO HEBRERO ÁLVAREZ, El asseguramiento de la responsabilidad civil por daños al medio ambiente, Madrid: Dykinson, 2002, pp. 19 e seguintes.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
não é qualquer afectação de águas ou de solos que é considerada
contaminação –, o que permite deslocar analiticamente a discussão
para vários conceitos, com a ajuda das ciências naturais. Pelo contrário
redução de espécies não traz ínsita qualquer ponderação, não permite
excluir certas realidades, trazendo assim para a conceptualização de
dano ecológico toda a problemática que lhe subjaz.
1.3.Dano ambiental à biodiversidade? A biodiversidade enquanto res
communis
Feita esta problematização, cabe agora reflectir sumariamente acerca
de uma problemática também já referida: poderá conceptualmente
existir um dano ambiental à biodiversidade? Conforme se deduz do que
ficou dito, o dano ambiental (patrimonial ou não-patrimonial/moral)
pressupõe algum tipo de radicação subjectiva (um direito subjectivo ou
interesse legalmente protegido) e o reconhecimento a alguém da
posição de lesado, o que implica a susceptibilidade de alguma forma
de apropriação da funcionalidade do bem em causa18. Pelo contrário,
o dano ecológico está indissociavelmente ligado a um nível colectivo
supra-comunitário, num patamar acima dos chamados interesses
colectivos.
Considerando que estamos a falar de biodiversidade, e tendo nós já
afastado a ideia de que protecção da biodiversidade significa apenas
protecção de fauna e flora selvagens, parece ser evidente a conclusão
de que o dano ambiental (a pessoas e bens) à biodiversidade não é
conceptualmente admissível, uma vez que não conseguimos admitir
qualquer tipo de apropriação (radicação subjectiva) quando falamos
de biodiversidade.
18 Tanto nos podemos estar a referir a apropriação a título de direito de propriedade como, em sentido mais lato, à titularidade de direitos de personalidade. Apesar de estruturalmente diferentes, em qualquer um dos casos existe radicação subjectiva.
60
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Indo um pouco mais longe nesta ideia, esta questão não pode
sequer começar a ser abordada sem ter uma noção prévia daquilo que
julgamos ser a natureza da biodiversidade enquanto res communis, por
contraposição à res nullius19.
Dizer que uma coisa não pertence a ninguém pode ter um duplo
significado: ou que qualquer um se pode dela livremente apropriar; ou
que a coisa é insusceptível de apropriação individual. É em torno desta
duas figuras, opostas mas que partem do mesmo pressuposto, que
podemos começar a reflectir acerca da natureza da biodiversidade,
enquanto coisa que não é de ninguém.
A res nullius é estudada principalmente a propósito da disciplina
civilista das coisas, uma vez que as coisas que não pertencem a
ninguém são susceptíveis de apropriação por ocupação20. Já no direito
romano eram consideradas res nullius, entre outros bens móveis, os
animais selvagens, a caça e a pesca21. É fácil antever de que forma o
conceito de res nullius e o regime da ocupação como forma de
aquisição do direito de propriedade de animais selvagens (que incluirá,
a mais das vezes, o poder de alienação e destruição da coisa22) podem
colidir frontal e fatalmente com o objectivo de protecção da
biodiversidade. E é também fácil antever que qualquer regime de
protecção da biodiversidade passa pela limitação das prerrogativas do
proprietário.
19 Neste ponto, veja-se, a título exemplificativo dos estudos que têm sido feitos a propósito do estatuto das espécies animais, o artigo de MARIE-PIERRE CAMPROUX-DUFFRENE, “Plaidoyer civiliste pour une meilleure protection de la biodiversité. La reconnaissance d’un statut juridique protecteur de l’espèce animale”, Revue interdisciplinaire d’études juridiques, Bruxelles, nº 60, 2008, pp. 1-27; da mesma autora, “Un statut juridique protecteur de la diversité biologique: regard de civiliste”, Revue Juridique de l’Environnement, numéro spécial, 2008, pp. 34 e seguintes; e ainda JEAN UNTERMAIER, “Biodiversité et droit de la biodiversité”, Revue Juridique de l’Environnement, numéro spécial, 2008, pp. 28 e seguintes.20 A occupatio é, ainda hoje, uma forma de aquisição do direito de propriedade de
coisas móveis que nunca tiveram dono ou que foram abandonadas. Cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil. Reais, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 449 e seguintes.21 Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direitos reais, Reimpressão, Lisboa: Lex, 1993, pp. 479 e
seguintes.22 Sobre o conteúdo normal do direito de propriedade enquanto direito real máximo,
cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil…, pp. 443 e seguintes.
61
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Esta discussão toca o problema do estatuto do animal, enquanto
objecto ou sujeito de direitos. Não abordaremos essa questão – senão
para a enunciar - porquanto a mesma centra-se em problemas
diferentes dos da protecção da biodiversidade23. Contudo, a
contraposição da res nullius à res communis permite introduzir uma
questão central e ainda por resolver no Direito do Ambiente em geral: a
(relevantíssima) área cinzenta que existe na distinção entre protecção
dos elementos naturais, apropriáveis, e protecção do meio ambiente,
inapropriável.
Por res communis – conceito que é utilizado sob diversas terminologias
na literatura jurídica24 – entendemos coisas que não são susceptíveis de
apropriação; em certo sentido, falamos de coisas fora do comércio.
Assim, se os exemplares de uma espécie são susceptíveis de
apropriação, o mesmo não acontece com a espécie em si25 – ou seja, o
23 A questão dos direitos dos animais é perspectivada como uma nova abordagem no problema da protecção da biodiversidade. Neste sentido, P.W. BIRNIE e A.E. BOYLE, International law…, p. 556. Apesar dos pontos em comum, parece-nos que esta assimilação é incorrecta. É que essa discussão visa a protecção dos animais enquanto seres com sistemas nervosos, mais ou menos próximos do ser humano; pelo contrário, conforme já referido, a biodiversidade é algo muito mais amplo (nomeadamente por incluir espécies vegetais) e que não se resulta da mera soma dos seres vivos, antes resultando da sua interacção. Por outro lado, o caminho da protecção dos animais tem sido feito no sentido diametralmente oposto ao da biodiversidade: o primeiro pretende a atribuição de direitos aos animais; o segundo pretende a instituição de deveres objectivos de protecção.24 Por exemplo, património comum ou património da Humanidade. Veja-se, com
recurso a uma outra expressão, o texto de CARLA AMADO GOMES, “Os bens ambientais como bens de interesse comum da Humanidade: entre o universalismo e a razão de Estado”, Textos dispersos de Direito do ambiente, Vol. III, Lisboa: AAFDL, 2010, pp. 263 e seguintes. Reconhecem-se, contudo, os problemas que na prática surgem da atribuição deste estatuto e que explicam a reticência na adopção de instrumentos mais exigentes que a mera soft law. Assim, nomeadamente para os países em desenvolvimento, a contrapor a esta visão há aquela que entende que a ideia de património comum da humanidade é desadequada para o tratamento jurídico da biodiversidade, uma vez que esta é um relevante recurso económico, que deveria, consequentemente, ser tratado com respeito pela soberania de cada Estado no seu território. Esta perspectiva utilitarista é designada por projecto terceiro-mundista por ALEXANDRE KISS e JEAN-PIERRE BEURIER, Droit international …, p. 365.25 A este propósito, caberá referir outras formas de enquadramento jurídico do
aproveitamento da biodiversidade que têm surgido. Referimo-nos ao direito intelectual, enquanto forma de aproveitamento privativo da biodiversidade, que tem colocado os mais variados problemas em termos de compatibilização com as práticas das comunidades locais. Sobre este ponto ver ANA CLÁUDIA BENTO GRAF, “Direito, Estado e economia globalizada: as patentes de biotecnologia e o risco de privatização da
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
mesmo não acontece com a biodiversidade. E a biodiversidade,
porque resulta de uma abstracção feita a partir de coisas concretas, da
soma de todas dessas coisas em conjunto, mas que não existe
fraccionada em cada uma delas, será por natureza algo de
inapropriável26.
Contudo, não podemos ignorar que o dano ecológico (incluindo,
portanto, o dano à biodiversidade) é precisamente uma lesão causada
a elementos naturais (por exemplo, a exemplares de fauna ou flora)
susceptível de causar uma afectação significativa dessas res communis
ambientais. Ou seja, a res communis biodiversidade não poderá ser
objecto de uma protecção directa; e a sua protecção indirecta passa
sempre e necessariamente pela adopção de medidas quanto aos
concretos exemplares de espécies.
E tem sido precisamente essa a orientação do direito da
conservação da natureza e da protecção da biodiversidade.
1.4.Breve panorama dos mecanismos de protecção da biodiversidade
A adopção de diversas convenções internacionais tem tido nesta área
efeitos relativamente inócuos. Contudo, uma breve análise dos
instrumentos de direito internacional público centrados na protecção
da biodiversidade permite-nos compreender que é já amplamente
reconhecida a natureza necessariamente global (ou, pelo menos,
regional) do problema e suas formas de resolução27. Tendo central
biodiversidade”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná , Volume 34 – 2000, ano 32, pp. 133-142. Note-se que o direito da propriedade intelectual não tem como objectivo a protecção da natureza, mas sim a protecção do titular da patente e o incentivo da investigação científica. Poderá, indirectamente, ter esse efeito mas não é essa a sua ratio (sendo a protecção da natureza, portanto, um efeito colateral meramente potencial).26 Não ignoramos que esta reflexão merecia uma outra, prévia – a de saber se a
biodiversidade, ou, mais amplamente, o meio ambiente, podem ser sequer enquadrados enquanto res.27 Para um elenco destes instrumentos e com um breve resumo do conteúdo dos
mesmos, vide P.W. BIRNIE e A.E. BOYLE, International law…, pp. 561 e seguintes e pp. 616 e seguintes; CARLA AMADO GOMES, “Uma mão cheia de nada…”, nesta publicação, no
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
relevância a Convenção sobre a Diversidade Biológica, a que já
fizemos alusão, não podemos deixar de notar que, para além da sua
natureza de soft law, a sobreposição dos vários instrumentos de direito
internacional público, resultantes dos compromissos alcançados entre
os Estados em cada momento, impedem qualquer tratamento
coerente ou unitário da matéria à escala internacional e,
consequentemente, a efectividade do Direito Internacional do
Ambiente. Ou seja, o Estado que seguirá o que se dispõe nestes
instrumentos normativos será aquele que já os seguiria na sua ausência,
o que só nos faz questionar a sua utilidade.
A protecção da biodiversidade, seja no direito internacional seja,
principalmente, no direito interno, tem passado por um conjunto de
mecanismos de que poderemos, sem grandes dificuldades, fazer uma
enumeração exemplificativa28:
i) Criação de reservas naturais e marinhas e de áreas protegidas:
contrariamente à species approach, antecedendo uma intervenção
mais específica e orientada, a criação de reservas naturais e afins (no
caso português, parques nacionais, parques naturais, reservas
naturais e monumentos naturais, nos termos dos artigos 16.º e
seguintes do Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de Julho) era o
enquadramento tradicional da conservação da natureza. Hoje em
dia assumirá especial relevância para a conservação de grandes
áreas de grande sensibilidade e frágil equilíbrio (como é o caso da
Antártida), e não para protecção de biodiversidade em geral;
ponto1; ALEXANDRE KISS e JEAN-PIERRE BEURIER, Droit international …, pp. 274 e seguintes e 309 e seguintes. Só sobre a Convenção sobre a Diversidade Biológica, vide RÜDIGER WOLFRUM, “The Protection and management of biological diversity”, International, regional and national environmental law (org. Fred L. Morrison e Rüdiger Wolfrum), Haia: Kluwer Law International, 2000, pp. 355 e seguintes.28 Seguimos, neste ponto, principalmente P.W. BIRNIE e A.E. BOYLE, International law…,
p.608 e seguintes e ALEXANDRE KISS e JEAN-PIERRE BEURIER, Droit international …, pp. 346 e seguintes. De forma mais simples para o direito internacional público, CARROL MUFFETT subdivide as técnicas de protecção em regulação de colheita, regulação de comércio e protecção de habitat. Cfr. “International Protection of Wildlife”, International, regional and national environmental law (org. Fred L. Morrison e Rüdiger Wolfrum), Haia: Kluwer Law International, 2000, pp. 347 e seguintes.
64
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
ii) Listagem de espécies: traduz a chamada species approach, ou
abordagem centrada na espécie; sejam espécies em extinção ou
espécies em perigo moderado, a listagem de espécies protegidas é o
primeiro passo para a aplicação de outros regimes;
iii) Protecção de habitats: posto em prática, nomeadamente, no
território da União Europeia através da rede Natura 2000, este
mecanismo resulta da compreensão de que, excepto em casos
limite, a capacidade auto-regenerativa da natureza será suficiente
para a manutenção da biodiversidade, desde que protegidos os
habitats naturais das espécies;
iv) Proibições ou limitações de captura ou técnicas de captura e
comércio de determinadas espécies: nomeadamente através da
atribuição de licenças; um dos exemplos mais conhecidos será o da
imposição de limites máximos às pescas, feita ao nível supra-estadual
na União Europeia; em meio terrestre comunitário, o regime da rede
Natura 2000 limita a captura e comércio de determinadas espécies;
mais modestamente, mas igualmente relevante, a proibição de caça
ou pesca em determinados períodos tem um menor risco de
incumprimento;
v) Ajuda financeira: não sendo uma forma de protecção da
biodiversidade, será um mecanismo essencial, sempre em
conjugação com outros, em direito internacional público, por força
da disparidade entre os níveis de desenvolvimento económico dos
vários Estados.
Para além destes mecanismos, outros têm sido avançados,
nomeadamente mecanismos de mercado. O ecolabelling (etiqueta
ecológica) não é mais do que uma tentativa de educação ambiental,
introduzindo critérios ambientais na escolha do consumidor29.
29 Em geral sobre a etiqueta ecológica, veja-se VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde cor de direito. Lições de direito do ambiente, Coimbra: Almedina, 2002, pp. 173 e seguintes. Uma forma específica de ecolabelling é a certificação florestal, especialmente
65
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
1.5.Os pontos de partida para conceptualização do dano à
biodiversidade
Deste excurso inicial podemos retirar várias conclusões, com especial
relevância para as seguintes (considerando o objecto do nosso estudo):
i) Pela sua própria natureza, a operatividade (pelo menos) jurídica do
conceito de biodiversidade na protecção do ambiente é muito
reduzida, senão inexistente;
ii) Em especial quanto à conceptualização de dano à
biodiversidade, a sua fluidez e imensidão não se compagina com a
necessidade de segurança jurídica na imputação na
responsabilidade civil e efectividade da consequente obrigação
de reparação;
iii) A protecção da biodiversidade terá assim de ser indirecta, através
da protecção dos elementos que a constituem;
iv)Alguns desses mecanismos serão a criação de reservas naturais e
marinhas e de áreas protegidas, a listagem de espécies e
protecção dos seus habitats, proibições ou limitações de captura
ou técnicas de captura e comércio de determinadas espécies.
É com este cenário disperso e pouco linear que o legislador e o
intérprete e aplicador do Direito se deparam quando reflectem acerca
do dano à biodiversidade. Conforme já ficou implícito, a delimitação do
dano à biodiversidade tem dois principais desafios:
i) Não podemos adoptar um conceito amplo de dano à
biodiversidade, ou qualquer lesão à vida seria potencialmente
fonte de responsabilidade civil. A solução parece passar por
relevante considerando a indústria madeireira e exploração agrícola intensiva da Amazónia. A este propósito, veja-se ROBERTO GRASSI NETO, “Educação do consumidor e responsabilização do produtor”, Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Março de 2008, n.º 53, pp. 89 a 113.
66
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
considerar como dano à biodiversidade apenas aqueles danos
que afectam os elementos naturais que em concreto são objecto
de especial protecção legal. Referimo-nos, em especial, à
protecção da fauna e da flora.
ii) Mas mesmo partindo dessa base, não podemos considerar que
qualquer lesão à fauna e à flora é um dano à biodiversidade.
Apenas as lesões significativas são susceptíveis de prejudicar a
biodiversidade; e, normalmente, a lesão é significativa pela sua
gravidade ou pela sua reiteração. Mas como definir o que é uma
lesão significativa?
1.6.O dano à biodiversidade como dano a espécies e habitats
protegidos: a Directiva 2004/35/CE e o direito nacional
Vejamos de que forma o legislador comunitário tratou do primeiro
problema. A Directiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 21 de Abril de 2004, relativa à responsabilidade ambiental
em termos de prevenção e reparação de danos ambientais veio
finalmente dar (pelo menos parcialmente) resposta às especificidades
da responsabilidade civil por danos ao ambiente. O seu âmbito
objectivo de aplicação está definido no artigo 2.º, n.º 1, que determina
que, para efeitos da directiva, devemos entender enquanto dano
ambiental30 os danos causados à espécies e habitats naturais
protegidos, os danos causados à água e os danos causados ao solo.
Considerando a amplitude do conceito de biodiversidade, poderíamos
aqui considerar que todos eles reflectem, de alguma forma, danos à
biodiversidade. Mas aquele em que nos iremos centrar, porquanto mais
se aproxima do direito da conservação da natureza, é o dano a
espécies e habitats protegidos.
30 Repare-se que a Directiva, assim como o direito interno de transposição, optaram pela terminologia dano ambiental. Contudo, o conteúdo corresponde, nas partes a que nos vamos referir, ao dano ecológico, tal como referido supra em 1.1.
67
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Assim, a solução encontrada pelo legislador comunitário para
delimitar o conceito de dano à biodiversidade foi o recurso às espécies
e habitats naturais protegidos. Mas porque esta definição é ainda
imprecisa, o artigo 2.º, n.º 3, especifica, por remissão, que se entendem
como espécies e habitats naturais protegidos:
i) As espécies que estão abrangidas pelo artigo 4.º, n.º 2, ou pelo
Anexo I da Directiva 79/409/CEE31 ou enumeradas no Anexo II e IV da
Directiva 92/43/CEE;
ii) Os habitats mencionados no artigo 4.º, n.º 2, ou no Anexo I da
Directiva 79/409/CEE ou enumerados no Anexo I e II da Directiva
92/43/CEE;
iii) Os locais de reprodução ou áreas de repouso enumerados no
Anexo IV da Directiva 92/43/CEE;
iv) Quaisquer outros determinados pelos Estados-Membros.
Assim, mais resumidamente, são espécies e habitats protegidos os
abrangidos pela Directivas Aves e pela Directiva Habitats e outros
determinados pelos Estados-Membros32. Falar de responsabilidade por
dano à biodiversidade no território da União Europeia é, em geral, falar
de reparação de danos à chamada rede Natura 2000.
Isso mesmo é reconhecido no Livro Branco sobre Responsabilidade
Ambiental33 que definiu como ponto de partida que danos ambientais
seriam os danos causados à biodiversidade e os danos causados sob a
31 Recentemente foi aprovada uma versão consolidada, através da Directiva 2009/147/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 Novembro de 2009.32 Diga-se que, dada a natureza das directas, a última ressalva nem sequer seria
necessária. Ou seja, os Estados-Membros poderão sempre considerar outros habitats e espécies para além das que estão nas directivas, aumentando o nível de protecção ambiental. A Região de Bruxelas-Capital, pela Ordonnance bruxelloise de 13 de Novembro de 2008, parece ter feito uso desta faculdade, segundo BENOÎT JADOT, “L’ordonnance bruxelloise du 13 novembre 2008 transposant la directive 2004/35/CE: quelques points particuliers”, La responsabilité environnementale. Transposition de la directive 2004/35 et implications en droit interne, Louvain-la-Neuve : Anthemins, 2009, pp. 283 e 284.33 COM (2000) 66 final, de 9 de Fevereiro de 2000.
68
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
forma de contaminação34, fazendo coincidir a biodiversidade com
aquela que está protegida nas áreas da rede Natura 2000, ou seja
“danos aos habitats, à fauna selvagem ou a espécies de plantas, como
se define nos anexos às directivas em questão”35.
Como não poderia deixar de ser, foi também este o caminho seguido
pelo legislador nacional ao transpor a Directiva 2004/35/CE, pelo
Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de Julho (doravante “RJRDA”), que no
seu artigo 11.º, n.º 1, alínea e), subalínea i), determina que são danos
ambientais36 os danos causados às espécies e habitats naturais
protegidos, considerando enquanto tal, na alínea g) do mesmo artigo,
“os habitats e as espécies de flora e fauna protegidos nos termos da lei”.
Uma conclusão ressalta desde logo: o legislador nacional optou por
não fechar a porta no Decreto-Lei n.º 147/2008 uma vez que não limitou
a noção de dano ecológico (no que toca à biodiversidade) às espécies
e habitats protegidos no âmbito da rede Natura 2000. É certo que o
regime nacional de protecção de fauna e flora assenta no Decreto-Lei
n.º 140/99, de 24 de Abril37, que reviu a transposição das duas Directivas,
pelo que, na prática, a diferença poderá ser nenhuma.
Em conclusão, em resposta à primeira questão colocada, o dano à
biodiversidade ficou assim delimitado através da remissão para o dano
a espécies e habitats, objecto de protecção legal imediata que
permite, mediatamente, a protecção mais ampla da diversidade
biológica.
Podemos criticar esta delimitação legal por ser demasiado restritiva.
Conforme já referimos, a rede Natura 2000 centra-se na protecção de
determinados habitats, fauna selvagem e espécies vegetais, e muitas
vezes apenas em determinadas áreas classificadas. Até o regime
34 Livro Branco sobre Responsabilidade Ambiental, p. 17.35 Livro Branco sobre Responsabilidade Ambiental, p. 21.36 Vide supra a nota 30.37 Para uma análise da Rede Natura 2000 em Portugal, incluindo do Decreto-Lei n.º
140/99, vide MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede Natura 2000 - alguns problemas”, Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, ano V, 2, 2002, pp. 13-44.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
nacional de conservação da natureza é bem mais amplo, não se
limitando à species approach. Assim, recorrendo ao sistema português
para ilustrar a evidente limitação na protecção, o Sistema Nacional de
Áreas Classificadas é composto fundamentalmente pela Rede Nacional
de Áreas Protegidas (parques nacionais, parques naturais, reservas
naturais e monumentos naturais) e pelas áreas integradas na rede
Natura 2000 (artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 142/2008). Contudo, o RJRDA
acaba por se referir apenas a uma destas dimensões: os habitats e
espécies de flora e fauna protegidos nos termos da lei. Podemos
indagar da possibilidade de incluir na letra da lei as demais áreas
protegidas, na medida em que as espécies e habitats que aí ocorram
serão “protegidos nos termos da lei”. Parece-nos que não era esse o
intuito do legislador, uma vez que o RJRDA parece remeter apenas para
a parte do regime da conservação da natureza dedicado à species
approach, ou seja, Rede Natura 2000, excluindo os danos em reservas
naturais lato sensu. Esta interpretação é apoiada pela origem
comunitária da regulamentação, que se referia explicitamente às
Directivas Aves e Habitats, e pela terminologia adoptada pela lei
portuguesa, que a liga indissociavelmente às mesmas.
Finalmente, é evidente que há ainda outras realidades relevantes,
como por exemplo a monocultura intensiva de grandes extensões de
terreno, podem ser igualmente nefastas em termos de diversidade
biológica mas dificilmente poderiam ser consideradas para efeitos de
responsabilidade civil.
1.7. O dano à biodiversidade como facto com efeito significativo
adverso para as espécies ou habitats protegidos
Passemos então à segunda questão: qualquer afectação negativa de
espécies ou habitats protegidos é um dano ecológico? Dissemos
anteriormente que apenas as lesões significativas a espécies e habitats
70
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
são susceptíveis de ser um dano à biodiversidade que gere
responsabilidade civil.
Antes de entrarmos na análise do regime legal, há algumas
afectações que podem sempre ser excluídas do conceito de dano
ecológico. Para nos auxiliar nesta tarefa, façamos uma distinção entre
produto e fruto, que nos permitirá delinear alguns limites ao
aproveitamento/utilização de animais com finalidades económicas. Em
princípio, o proprietário de determinado exemplar de uma espécie
animal considerada protegida poderá dela retirar frutos mas já não
produtos. A distinção assenta na alteração ou não da substância do
animal: o fruto tem natureza periódica, sem alteração substancial do
animal que o produz; pelo contrário, o produto surge sem
periodicidade, uma vez que a sua produção implicará a deterioração
ou destruição (ainda que parcial) do animal. A recolha do fruto
permitirá o aproveitamento económico do bem pelo Homem, sem que
seja afectada a reprodução da espécie nem, consequentemente, a
diversidade biológica38. Mas a exclusão da frutificação do conceito de
dano é manifestamente insuficiente. Sabemos que a recolha de frutos
não é, em princípio, um dano, uma vez esta forma de afectação não
será considerada significativa. Mas, a partir daqui, estamos ainda no
campo da indefinição.
Também neste ponto, a Directiva 2004/35/CE delimita o conceito de
dano à biodiversidade: apenas será considerado como dano causado
às espécies e habitats protegidos os “danos com efeitos significativos
adversos para a consecução ou a manutenção do estado de
conservação favorável desses habitats ou espécies” (artigo 2.º, n.º 1,
alínea a). A avaliação da relevância passa pela comparação entre o
estado de conservação actual (depois da prática do facto lesivo) e o
estado inicial (antes da lesão).
38 Uma densificação destes conceitos pode ser encontrada em MARIE-PIERRE CAMPROUX-DUFFRENE, “Plaidoyer civiliste… “, pp. 7 e seguintes.
71
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
A directiva indica também os critérios pelos quais deve ser feita esta
análise comparativa, no seu Anexo I. Em primeiro lugar, sublinhe-se que
a avaliação do carácter significativo dos danos implica a ponderação
de três factores principais: o estado de conservação, os serviços
proporcionados pelo quadro natural que oferecem39 e a sua
capacidade de regeneração natural.
Os dados mensuráveis para determinação do estado de
conservação serão, por exemplo, o número de indivíduos da espécies,
a sua densidade ou área ocupada, o papel dos indivíduos em causa ou
da zona danificada em relação à espécie ou à conservação do
habitat, a raridade da espécie ou do habitat, a capacidade de
propagação da espécie, a sua viabilidade ou capacidade de auto-
regeneração do habitat ou a capacidade de recuperação da espécie
ou habitat sem adopção de medidas de protecção40.
No nosso entendimento, alguns dos critérios identificados melhor se
enquadrariam na lista de critérios para determinação das medidas de
reparação a adoptar, como é o caso da possibilidade de auto-
regeneração natural. Uma aplicação rigorosa destes critérios na fase de
determinação da existência de um dano relevante leva à exclusão da
responsabilidade por não preenchimento deste pressuposto, impedindo
assim a condenação do lesante no pagamento, por exemplo, do
reforço de medidas de protecção.
Ainda assim, não podemos deixar de sublinhar que a modalidade de
dano ambiental que mais claramente ficou definido na Directiva
2004/35/CE foi o dano à biodiversidade. Até porque a Directiva não se
ficou por aqui e, para além de definir os critérios para determinar a
39 Sobre o significado de “serviços prestados”, veja-se o que escrevemos em “A restauração natural no novo regime jurídico de responsabilidade civil por danos ambientais”, Actas do colóquio A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 18, 19 e 20 de Novembro de 2009 (org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes), disponível em http://www.icjp.pt/publicacoes, pp. 253, 254 e 258.40 Todos os critérios mencionados, e ainda outros, constam do Anexo I da Directiva
2004/35/CE, transposto pelo anexo IV do RJRDA.
72
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
relevância dos efeitos de uma lesão aos elementos naturais protegidos
pela rede Natura 2000, indica expressamente que por estado de
conservação de um habitat deve entender-se “o somatório das
influências que se exercem sobre ele e sobre as suas espécies típicas e
que podem afectar a respectiva distribuição natural, estrutura e
funções a longo prazo, bem como a sobrevivência a longo prazo das
suas espécies típicas” em determinada área41. Relativamente a uma
espécie protegida, importará “o somatório das influências que se
exercem sobre ela e que podem afectar a distribuição e abundância a
longo prazo das suas populações” em determinada área42.
O regime nacional é idêntico, na medida em que o RJRDA reproduz
quase ipsis verbis a Directiva 2004/35/CE no seu artigo 11.º, n.º1, alíneas
h) e i).
Assim, o percurso feito pelo intérprete para determinação do que seja
um dano à biodiversidade relevante para efeitos do RJRDA passará por:
i) Analisar a existência de um dano causado a uma espécie ou
habitat natural protegido: o que implica identificar a presença de
uma espécie ou habitat protegido ao abrigo e segundo os
requisitos do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril, e respectivas
classificações (artigo 11.º, n.º 1, alínea e), subalínea i), do RJRDA);
ii) Determinação do estado de conservação inicial favorável ou em
evolução para estado favorável da espécie ou habitat protegido:
só pode sofrer um dano relevante a espécie ou habitat que esteja
em estado de conservação favorável ou em evolução positiva
nesse sentido. Assim sendo, não haverá dano ecológico se a
espécie ou habitat estiver em mau estado de conservação e sem
perspectivas de melhoria. Isto porque nos termos do artigo 11.º, n.º
1, alínea e), subalínea i), do RJRDA, apenas haverá dano se o
efeito perturbar a manutenção ou consecução do estado de
conservação favorável.41 Redacção do artigo 2.º, n.º 4, alínea a), da Directiva 2004/35/CE.42 Redacção do artigo 2.º, n.º 4, alínea b), da Directiva 2004/35/CE.
73
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Esta nossa interpretação pode ser acusada de ser restritiva. De
facto, o legislador refere-se a efeitos significativos adversos para
consecução do estado de conservação favorável; parece não
resultar da letra da lei que é necessário que o habitat ou espécie
que não esteja em estado favorável nem em evolução positiva
nesse sentido, uma vez que mesmo num habitat ou espécie em
mau estado de conservação pode haver efeitos adversos à sua
potencial evolução positiva, num futuro mais ou menos distante.
Não nos parece que tenha sido esse o objectivo do legislador. Só
assim se compreende a distinção entre a consecução e a
manutenção e o rigor da definição de estado de conservação
favorável, a que nos iremos referir de seguida. Para uma solução
contrária, bastaria definir enquanto dano ambiental qualquer
efeito significativo adverso no estado de conservação da espécie
ou habitat, fosse ele favorável ou não. Parece que foi feita aqui
uma restrição ao conceito, uma vez que não faria sentido exigir a
reparação de um habitat ou espécie que já estava, por si só, em
mau estado e sem perspectivas de melhorias.
Note-se que o estado inicial corresponde à situação da espécie
ou habitat no momento da ocorrência do dano caso este não se
tivesse verificado, com base na informação disponível (artigo 11.º,
n.º 1, alínea j), do RJRDA); a avaliação será feita recorrendo,
nomeadamente, aos critérios previstos no anexo IV ao RJRDA.
A conclusão por um estado de conservação favorável, ou em
evolução positiva, depende da verificação de requisitos quanto à
estabilidade ou crescimento da área natural do habitat, a
existência e previsibilidade de uma estrutura e funções específicas
necessárias para a sua manutenção no longo prazo, a dinâmica
populacional da espécie, entre outros (artigo 11.º, n.º 2 e 3, do
RJRDA).
74
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
iii) Avaliação do estado actual de conservação do habitat ou
espécie protegido: ou seja, o estado de conservação depois da
prática do facto lesivo. Aplicam-se as considerações tecidas em
ii) a propósito dos critérios para essa avaliação.
iv) Finalmente, a análise comparativa entre o estado actual e o
estado inicial: apenas haverá dano ambiental se desta
comparação resultar que houve um efeito significativo adverso
para a consecução ou manutenção do estado de conservação
favorável desses habitats ou espécies (artigo 11.º, n.º 1, alínea e),
subalínea i), do RJRDA).
Parece ser assim longo e árduo o caminho do intérprete e aplicador
do direito logo nesta primeira fase e só para saber se existe um dano
ecológico à biodiversidade; contudo, a densificação normativa destes
conceitos permite uma maior certeza jurídica na sua aplicação, o que é
especialmente relevante se considerarmos que estas normas serão
aplicadas, em primeira mão, por entidades administrativas que
determinarão, entre outras, as medidas de reparação, ao contrário do
normalmente ocorre quando falamos de responsabilidade civil.
1.8. A ressalva dos efeitos adversos causados por operador autorizado
Contudo, depois de tudo isto, ainda é possível que não estejamos
perante um dano à biodiversidade se o dano em causa resultar de um
acto expressamente autorizado pelas autoridades competentes (artigo
11.º, n.º 1, alínea e), subalínea i), do RJRDA).
Só após análise do preenchimento dos já referidos pressupostos do
dano à biodiversidade, poderá ser verificada a existência desta causa
de exclusão. Isto porque é necessário saber com exactidão qual o
efeito adverso para saber, com rigor, qual o facto lesivo. Só depois se
75
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
poderá determinar se este facto lesivo foi um acto expressamente
autorizado.
Ou seja, nunca bastaria saber se, por exemplo, o operador tem
licença para exercício de determinada actividade. Há que analisar o
processo administrativo instrutor do licenciamento e o processo
produtivo para determinar se a prática do facto causador do efeito
adverso se encontrava expressamente autorizado ou se, pela sua
qualidade ou quantidade, não estava abrangido pela autorização
concedida.
Por outro lado, cabe fazer aqui uma interpretação conforme à
Directiva que é, neste ponto, mais restritiva (ou, talvez mais justamente,
mais clara) que a legislação nacional. O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), § 2,
da Directiva 2004/35 determina que “os danos causados às espécies e
habitats naturais protegidos não incluem os efeitos adversos
previamente identificados que resultem de um acto de um operador
expressamente autorizado pelas autoridades competentes nos termos
das disposições de execução dos n.os 3 e 4 do artigo 6.º ou do artigo
16.º da Directiva 92/43/CEE ou do artigo 9.º da Directiva 79/409/CEE
(…)”. O artigo 6.º, n.os 3 e 4, da Directiva 92/43/CEE refere-se a
autorizações dadas depois da realização da avaliação de incidências
ambientais; o artigo 16.º da mesma directiva prevê um regime especial
de derrogação do disposto nos artigos 12.º, 13.º e 14.º, assim como
artigo 9.º da Directiva 79/409/CEE prevê um regime especial de
derrogação dos seus artigos 5.º, 6.º e 7.º (proibições e regulação da
captura e outras formas de aproveitamento de espécies vegetais, aves
e seus ninhos, etc). Assim deverá ser entendida a ressalva do RJRDA, sob
pena de violação do direito comunitário por deficiente transposição da
Directiva.
76
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
2. A reparação do dano à biodiversidade (danos às espécies e habitats
protegidos)
2.1. Modalidades de medidas de reparação
Comecemos por explicitar algumas das ideias de que partimos.
Na sua tradicional formulação, a reparação de um dano (ou
indemnização, em sentido amplo) pode assumir uma de duas
modalidades: a reparação in natura e a compensação pecuniária43. A
reparação in natura concretiza-se através da reconstituição fáctica da
situação actual hipotética44.
No caso do dano à biodiversidade, a reparação in natura identifica-
se com a restauração ou reabilitação das espécies e habitats
afectados e/ou das suas funções ecológicas (a funcionalidade ou
serviço do recurso natural). Esta distinção (elemento natural em
concreto afectado/ função ecológica desempenhada pelo mesmo)
permite-nos distinguir duas formas de reparação in natura: a
restauração ecológica e a compensação ecológica.
Na restauração ecológica existe recuperação directa do elemento
natural que em concreto foi afectado. Já as medidas de compensação
ecológica visam criar, expandir ou de alguma forma aumentar a
43 Veja-se, a título meramente exemplificativo, LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, I, 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2007, pp. 399 e seguintes.44 Repare-se que referimo-nos a situação actual hipotética para afastar o conceito
de situação anterior à prática do facto lesivo. Dogmaticamente, o lesante terá obrigação de reposição da situação como se não tivesse ocorrido a lesão; não terá obrigação de reposição da situação anterior à prática do facto lesivo. Repare-se que tal poderá ser significativamente diferente, especialmente considerando o lapso temporal que poderá ocorrer entre a prática do facto lesivo e a determinação da medida aplicável. Não podemos à partida afirmar qual será a solução mais favorável em termos ambientais, tendo em conta a complexidade e imprevisibilidade dos percursos causais e da evolução do estado dos recursos naturais. Contudo, conforme veremos, não foi esta a solução adoptada pelo legislador comunitário, afastando-se assim da teoria geral da responsabilidade civil.
77
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
capacidade funcional de outros elementos naturais, aproximando-se
assim de uma substituição por equivalente funcional.45
Finalmente, a compensação pecuniária é ainda um modo de
reparação do dano ecológico. Por razões evidentes e que se prendem
com os princípios do Direito do Ambiente46, esta será a última medida
de reparação a ponderar, estritamente subsidiária, aplicável apenas
naqueles casos em que a reparação in natura não é (jurídica ou
facticamente) possível no caso concreto. Ainda nesta fase introdutória,
gostaríamos de sublinhar desde já, a título preliminar, a centralidade do
princípio da proporcionalidade nesta matéria nas suas três vertentes
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
Para além de nos referirmos a um princípio geral da actividade
administrativa, o princípio da proporcional pode, no limite, impedir a
aplicação de medidas de reparação in natura e impor a compensação
pecuniária47.
2.2.A determinação da medida de reparação in natura aplicável –
regime comunitário e nacional
Resulta do artigo 11.º, n.º 1, alínea n), do RJRDA que é medida de
reparação “qualquer acção, ou conjunto de acções, incluindo
45 Partimos de determinados pressupostos que neste contexto não poderemos explicitar; contudo, saliente-se que estamos perante um alargamento conceptual da reparação in natura.46 Assim, a finalidade da responsabilidade civil ecológico é a reconstituição dos ciclos
naturais da Terra, na expressão de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Tutela do ambiente e direito civil”, Direito do Ambiente, Lisboa: INA, 1994, p. 380. Com grande clareza, ECKHART REHBINDER resume a problemática nos seguintes termos: “[l]a réparation en nature du dommage écologique est l’opinion principale d’un droit de la responsabilité civile qui ne vise pas la juste compensation de la victime mais tout d’abord la prévention du dommage écologique et la restauration des biens-environnement degradés”. Cfr. “Évaluation et réparation”, Évaluation et réparation du dommage écologique. Rapport Géneral, [s/l]: [s/n], [s/d], p. 113.47 Contudo, parece-nos que a proporcionalidade em sentido estrito não é um critério
para determinação da medida de reparação a aplicar, mas funciona como mero limite à aplicação de uma medida Neste sentido, vide LUCÍA GOMIS CATALÁ, Responsabilidad por daños al medio ambiente, Pamplona: Aranzadi Editorial, 1998, pp. 260 e seguintes; e ainda JESUS CONDE ANTEQUERA, El deber jurídico …, pp. 97 e seguintes.
78
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
medidas de carácter provisório, com o objectivo de reparar, reabilitar
ou substituir os recursos naturais e os serviços danificados ou fornecer
uma alternativa equivalente a esses recursos ou serviços, tal como
previsto no anexo V”48. Assim sendo, compreender o regime legal da
reparação do dano à biodiversidade passa por estudar o anexo V do
RJRDA49. O ponto 2 do anexo, relativo à reparação de danos causados
ao solo, fica excluído da nossa análise. Analisaremos, portanto, o ponto
1, que se aplica indiferenciadamente aos danos causados às águas, às
espécies e habitats naturais protegidos50. Começaremos por identificar
a modalidade de reparação, seguindo-se uma explicitação do
objectivo da medida e, finalmente, de que forma é feita a
concretização da mesma.
Em termos doutrinários, haveria duas modalidades de reparação in
natura do dano ecológico: restauração ecológica e compensação
ecológica. Diga-se desde já que o legislador comunitário, e,
consequentemente, o nacional, não seguiu esta distinção.
Nos termos do RJRDA há três tipos de reparação: a reparação
primária, a reparação complementar e a reparação compensatória,
cuja distinção é, por vezes difícil de fazer. Há que notar que a própria
terminologia traz ínsita uma carga valorativa que nem sempre
corresponde ao seu conteúdo legal.
Nos termos dos pontos 1a) e 1.1.1 do anexo V, será uma medida de
reparação primária aquela que restitui os recursos naturais e/ou serviços
danificados ao estado inicial, ou os aproxima desse estado. Em primeiro
lugar, cumpre sublinhar que a lei adoptou neste ponto a noção de
dano ecológico enquanto lesão do recurso e da sua função, ao
expressamente incluir, enquanto objecto de reparação, os serviços
prestados pelo recurso natural.
48 Essencialmente com o mesmo conteúdo, vide a norma transposta que consta do artigo 2.º, n.º 1, da Directiva 2004/35/CE.49 Nos termos do artigo 14.º, n.º 3, do RJRDA, os critérios constantes das alíneas a) a f)
do ponto 1.3.1 do anexo V são aplicáveis à determinação das medidas de reparação.50 O anexo V reproduz ipsis verbis o anexo II da Directiva 2004/35/CE.
79
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Tal como já tínhamos adiantado antes, o RJRDA não se refere à
tradicional fórmula da situação actual hipotética; pelo contrário
determina que a reparação primária se destina à restituição do recurso
e/ou função ao estado inicial. Já ficou analisado o conceito de estado
inicial, cuja determinação, no caso do dano à biodiversidade, é
essencial para determinar sequer se temos um dano.
No nosso entendimento, e porque nem é possível em abstracto
afirmar que a situação inicial é sempre mais favorável ambientalmente
que a situação actual hipotética, parece-nos que a melhor opção seria
ter deixado ambas as hipóteses em aberto, para apreciação casuística.
O ponto 1.2.1 do Anexo V esclarece quais as opções podem ser
consideradas a título de reparação primária: “aquelas que consistem
em acções destinadas a restituir directamente ao estado inicial os
recursos e/ou serviços, num prazo acelerado, ou através de
regeneração natural”. Vemos aqui clarificado que as medidas de
restauração natural são medidas de restituição directa, começando
assim a ser possível distinguir materialmente as medidas de reparação
primária das de reparação complementar. Por outro lado, parece que
encontramos aqui um ponto de coincidência entre as categorias
doutrinárias e as modalidades legais de reparação: o legislador
pretendeu limitar a reparação primária à restauração ecológica, ou
seja, à reparação directa do recurso natural que em concreto foi
afectado e, por essa via, da sua função ecológica ou serviço.
A lei remete aqui para dois conceitos que não são estranhos à
doutrina da reparação do dano ecológico: a auto-regeneração natural
e a restauração com recurso a manipulação dos elementos naturais. A
própria terminologia é auto-explicativa: trata-se de optar por não
adoptar nenhuma medida (à excepção de medidas de monitorização
e controlo) naqueles casos em que é provável que os próprios ciclos
naturais consigam a recuperação do recurso e da sua função; por
contraposição, quando se entender necessário, haverá uma
80
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
intervenção directa do Homem nos ciclos naturais. Em abstracto, existe
uma clara preferência pela auto-regeneração ecológica:
tendencialmente, a auto-regeneração ecológica prevalece sobre as
medidas que exigem manipulação dos elementos naturais pelo
Homem, uma vez que esta última é, por natureza, mais invasiva e com
potenciais efeitos colaterais imprevisíveis51; contudo, na prática, os
diversos critérios a ponderar poderão apontar em sentido diverso.
Passando então à análise das normas relativas à reparação
complementar, determina o ponto 1 b) do anexo V que são medidas
de reparação complementar aquelas que são tomadas em relação
aos recursos naturais e/ou serviços para compensar o facto de a
reparação primária não resultar no pleno restabelecimento dos recursos
naturais ou serviços danificados.
Sublinhe-se desde já uma clara lógica de subsidiariedade (mais do
que uma vez repetida no anexo52) da reparação primária face à
reparação complementar (o que até já resultava da própria
designação). Isto resulta do facto de que, pela sua natureza directa, a
reparação primária será em princípio mais próxima da reparação
integral que a reparação complementar. Confessamos a nossa
desconfiança essencial em relação a esta afirmação inflexível de
subsidiariedade, que explicitaremos mais à frente. Até porque ela é
desmentida no ponto 1.3.2, que determina que a decisão de aplicação
de uma medida de reparação primária parcial pode ser tomada “se os
recursos naturais e/ou serviços de que se prescindiu no sítio primário
foram compensadas intensificando as acções complementares ou
51 JOSÉ CUNHAL SENDIM pronuncia-se no mesmo sentido em Responsabilidade civil por danos ecológicos em Da reparação do dano através de restauração natural, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 241 e seguintes. Para fundamentar esta posição, CUNHAL SENDIM invoca ainda um “princípio da homeostasia – i.e., [a] capacidade de os sistemas ecológicos se auto-regenerarem independentemente da intervenção humana”. 52 Ainda no ponto1: “[p]rocede-se à reparação complementar, sempre que a
reparação primária não resulte na restituição do ambiente ao seu estado inicial. E já no ponto 1.1.2. sempre que os recursos naturais e/ou serviços danificados não tiverem sido restituídos ao estado inicial, são tomadas acções de reparação complementar”.
81
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
compensatórias para proporcionar um nível de recursos naturais e/ou
de serviços similar ao daqueles de que se prescindiu”.
Contudo, primeiro há que concretizar em que consistem as medidas
de reparação complementar, para o que recorremos ao ponto 1.1.2 do
anexo V, do qual resulta que “o objectivo da reparação complementar
é proporcionar um nível de recursos naturais e/ou serviços, incluindo,
quando apropriado, num sítio alternativo, similar ao que teria sido
proporcionado se o sítio danificado tivesse regressado ao seu estado
inicial”53.
Assim, começamos por poder afirmar desde já que a reparação
complementar visa proporcionar um nível de recursos e de serviços
similar àquele que resultaria da reparação primária. A utilização da
expressão similar permite voltar a sublinhar a ideia ínsita na distinção de
que só a reparação primária permitirá a reparação integral (e directa)
do recurso natural afectado.
Em termos de procedimento para determinação de medidas de
reparação, foram as de reparação complementar que mereceram
mais atenção no Anexo V, certamente porque, ao não serem formas de
reparação directa, há um maior risco de desvios do objectivo de
reparação integral (ou o mais próximo possível da mesma). Foi eleita a
abordagem recurso-a-recurso ou serviço-a-serviço54 para obrigar à 53 Há que relevar aqui uma falha de sintaxe. Esta redacção é idêntica à da Directiva,
na sua versão portuguesa; uma consulta da Directiva noutras línguas da União Europeia permite concluir que se tratou de um erro de tradução, uma vez que na versão inglesa se determina que “[t]he purpose of complementary remediation is to provide a similar level of natural resources and/or services services, including, as appropriate, at an alternative site, as would have been provided if the damaged site had been returned to its baseline condition”. (sublinhado nosso); e a versão francesa, ainda mais explícita, determina que “[l]'objectif de la réparation complémentaire est de fournir un niveau de ressources naturelles ou de services comparable à celui qui aurait été fourni si l'état initial du site endommagé avait été rétabli”.54 Conforme já foi por nós explicitado noutro texto, “[a] reparação complementar
com recursos e serviços alternativos pode ainda colocar problemas acrescidos, conforme resulta do ponto 1.2.3 do anexo V, em termos de valoração. É que quando não se recorre à reparação primária, nem à reparação complementar seguindo a abordagem recurso-a-recurso ou serviço-a-serviço (que permite uma aproximação muito significativa da reparação primária), há que fazer uma valoração dos recursos e/ou serviços lesados para comparar com o valor dos recursos e serviços de substituição. Tendencialmente, essa valoração será monetária, conforme prevê o
82
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
definição em concreto de equivalências entre o(s) recurso(s) e/ou
serviço(s) danificado(s) e o(s) recurso(s) e/ou serviço(s) criado(s) ou
potenciado(s). Este procedimento impede a adopção de medidas
compensatórias de reparação com base numa visão geral do dano, à
qual equivaleria uma medida de reparação também genérica. Pelo
contrário, exigindo-se uma operação analítica, obsta-se também a uma
utilização injustificada de medidas de reparação complementar. Em
princípio, as medidas compensatórias devem consistir em acções que
proporcionem recursos naturais e/ou serviços do mesmo tipo, qualidade
e quantidade que os danificados. Só quando tal não for possível serão
admitidos recursos naturais e serviços alternativos ou de substituição.
Passemos então à terceira modalidade de reparação in natura
que consta do regime legal: a reparação compensatória. Deverão ser
impostas medidas de reparação compensatória quando “os recursos
naturais e serviços danificados não [possam] realizar as suas funções
ecológicas ou prestar serviços (…), enquanto as medidas primárias ou
complementares não tiverem produzido efeitos” (cfr. ponto 1 d) do
anexo V). As medidas de reparação compensatória destinam-se a
compensar perdas transitórias de recursos naturais e/ou serviços, desde
a data da lesão até à reparação integral55 (cfr. ponto 1 c) do anexo
V).). Sublinhe-se assim que o que está em causa na reparação
complementar é materialmente diverso e nem está em concorrência
anexo V. Esta valoração é necessária para legitimar a exigência de reparação da parte do operador que, caso contrário, ficaria sujeito a suportar a implementação de uma medida de reparação complementar que pouco tem a ver com o recurso afectado e cujos custos podem ser significativamente diversos. Esta operação de valoração não é muito diferente do teste de razoabilidade a que já nos referimos; e o seu fundamento parece ser o princípio da proporcionalidade. Temos assim que o ponto 1.2.3 consubstancia uma manifestação do sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito, colocando os mesmos problemas que referimos sucintamente supra a propósito da análise custo-benefício. Também eles igualmente não respondidos – nem sequer aflorados – no RJRCDA.” Cfr. o nosso “A restauração natural…” , pp. 262 e 263.55 Também neste ponto, o anexo V refere “até a reparação primeira ter atingido
plenamente os seus efeitos”, uma vez mais partindo do pressuposto de que haverá sempre reparação primária.
83
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
com a reparação primária ou complementar (que têm, afinal, a mesma
função ou muito semelhante).
Quanto ao conteúdo da reparação compensatória, há que ter em
conta o disposto no ponto 1.1.3 do anexo V, que especifica que a
compensação consiste em melhorias suplementares dos habitats
naturais e espécies protegidas ou da água, quer no sítio danificado
quer num sítio alternativo. Ou seja, numa aplicação rigorosa da lei,
haverá quase sempre lugar a medidas de reparação compensatória
para as perdas transitórias, aplicadas conjuntamente com as medidas
de reparação primária e/ou complementar para a efectiva reparação
do recurso e/ou serviços afectados. Sublinhe-se que parte do que já se
disse a propósito da reparação complementar é aplicável às medidas
de reparação compensatória (no que se refere aos pontos 1.2.2 e 1.2.3
do anexo V), nomeadamente no que tange à abordagem recurso-a-
recurso e serviço-a-serviço.
Após uma breve distinção entre cada uma das várias modalidades
de reparação de danos às espécies e habitats naturais protegidos
(ponto 1 a 1.2.3 do anexo V), há que explicitar agora regime legal no
que toca à escolha das opções de reparação, de entre as várias
potencialmente aplicáveis ao caso concreto.
Do ponto 1.3.1. consta um elenco, aparentemente taxativo, de
critérios de escolha da medida de reparação a aplicar. Encontramos
aqui vários tipos de factores, desde (i) factores estritamente ambientais
(medida em que cada opção previne danos futuros e evita danos
colaterais resultantes da sua execução, medida em que cada opção
beneficia cada componente do recurso natural e/ou serviço); a (ii)
critérios de eficácia e eficiência (que tanto se referem a eficácia e
eficiência ambiental, como de diversa natureza, como a probabilidade
de êxito de cada opção ou o período necessário para que o dano
ambiental seja efectivamente reparado); a (iii) factores sócio-
económicos (efeitos de cada opção na saúde pública e na segurança,
84
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
medida em que cada opção tem em consideração preocupações de
ordem social, económica e cultural e outros factores relevantes
específicos da localidade e relação geográfica com o sítio danificado –
considerando a parte final do ponto 1.1.2); e ainda (iv) factores
economicistas (custos de execução).
Em primeiro lugar, diga-se que o elenco dos critérios parece resultar
de uma mera junção indistinta e mais ou menos aleatória de vários
factores. É natural que se demonstrem aqui preocupações de natureza
social e económica, ainda que tal se afigure doutrinariamente
censurável56. Mas o que temos no ponto 1.3.1. é um enunciado de
critérios aparentemente sem qualquer preocupação de ordenação por
ratio ou valoração.
Sublinhe-se, finalmente, que poderá ser insuficiente a aplicação de
uma destas medidas de reparação, sendo necessária a conjugação de
várias primárias e complementares (por impossibilidade de reparação
primária total, por aplicação dos critérios constantes do ponto 1.3.1,
mas também por força do ponto 1.3.3).
Finalmente, analisemos então o ponto 1.3.3, manifestação do
princípio da proporcionalidade, que determina que, não obstante as
demais normas já referidas, a autoridade competente pode determinar
não tomar “outras medidas de reparação”. Refere-se aos casos em que
o lesante adoptou previamente medidas de prevenção ou de
reparação (primária, complementar e/ou compensatória) urgentes
antes do procedimento de determinação das medidas de reparação,
nos termos do artigo 15.º do RJRDA. Pode acontecer que o lesante 56 Aliás, isso mesmo se reflecte também no parágrafo que antecede o ponto 1.1 do
anexo V, do qual resulta que “[a] reparação dos danos ambientais (...) implica também a eliminação de qualquer risco significativo para a saúde humana”. Ignoramos a relevância autónoma desta norma. A reparação de um dano ecológico, restituindo os elementos naturais a uma condição ambientalmente harmoniosa, ou perto disso, implicará efeitos positivos para a saúde humana. A única função desta norma seria assim chamar a atenção para uma realidade que há muito está assente e é, até, apontado como fundamento filosófico do Direito do Ambiente: a saúde, equilíbrio e bem-estar do Homem. Ou então, para servir enquanto critério – mas nesse caso, é, uma vez mais, uma repetição, porquanto tal já ficou expresso no ponto 1.3.1 do anexo V.
85
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
tenha já praticado relevantes actos de reparação. Nesse caso, será
admissível a não adopção de qualquer medida se (i) as medidas
adoptadas assegurarem a inexistência de riscos significativos de efeitos
adversos para a saúde humana, a água ou as espécies e habitats
protegidos; e se (ii) o custo das medidas de reparação a adoptar para
atingir o estado inicial ou similar for desproporcionado em relação aos
benefícios ambientais a obter.
2.3. Breves notas quanto à compensação pecuniária
De tudo o que ficou dito, parece não haver na lei qualquer
determinação que se refira à possibilidade da compensação
pecuniária. O único ponto em que o legislador a ele se refere é para
negar, pelo menos parcialmente, a sua admissibilidade: esclarece que
a reparação do dano ecológico não consiste numa compensação
financeira para membros do público nos pontos 1d) e 1.1.3 do anexo,
na parte dedicada à reparação compensatória. Esta norma é
susceptível de diversas interpretações: é só na reparação
compensatória não pode haver compensação financeira para
membros do público, sendo isso de admitir na reparação primária ou
complementar? Não pode haver qualquer compensação financeira na
reparação do dano ecológico? Só na reparação compensatória pode
haver (até de um ponto de vista conceptual) compensação financeira,
mas que não poderá ser para membros do público? Parece-nos que
considerando a teoria geral da responsabilidade civil, e perante uma
omissão do legislador em claramente proibir a compensação
pecuniária, não devemos retirar mais conclusões do que aquelas que
resultam claramente da lei: isto é, as medidas compensatórias não
consistem em compensações pecuniárias a favor do público.
No RJRDA fica, portanto, tudo em aberto quanto à problemática
questão da compensação pecuniária. Podemos começar por
86
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
recuperar a ideia já avançada anteriormente de que a compensação
pecuniária é estritamente subsidiária. É fácil afirmar que existe um sólido
princípio de primazia da restauração natural do dano ecológico, o que
resulta da evidência de que o dano ecológico só pode ser efectiva e
totalmente reparado através da reparação in natura, aproximando-se
a compensação em dinheiro do regime próprio da compensação por
danos morais57.
Quando, então, seria admissível a compensação pecuniária?
Parece-nos que em apenas um caso: impossibilidade de adopção de
qualquer medida de restauração natural ou compensação ecológica,
de reparação primária ou complementar, seja por força do princípio da
proporcionalidade (que impeça a imposição das medidas adequadas),
seja por facticamente a reparação não ser possível Em todos os demais
casos, mesmo quando não possa ser determinada a aplicação de uma
medida por força do princípio da proporcionalidade, será de recorrer a
medidas de reparação in natura, mesmo se só parcialmente. É que na
compensação pecuniária não há reparação (por isso mesmo falamos
em compensação e não em indemnização, à semelhança dos danos
não patrimoniais) e o risco de desvio dos fundos para outras finalidades
torna a doutrina e o legislador reticentes a aceitá-la amplamente.
Claro que surgem agora dois outros problemas: como calcular essa
compensação e quem é o beneficiário da mesma?
Os modelos das teorias económicas58 propostos pela doutrina para
avaliação do ano ecológico são, no nosso entendimento, de afastar,
57 Vide supra nota 46.58 Estas metodologias podem ser classificadas em directas e indirectas. As
metodologias directas, também chamada avaliação contingente – resultam da avaliação feita directamente pelo consumidor, disponibilizada através de questionários. Pelo contrário, nas metodologias indirectas o valor económico é determinado através da análise de mercados de bens relacionados com o bem ambiental e existem várias técnicas: factor income methodology, travel cost analysis, hedonic pricing. Uma breve descrição destes mecanismos pode ser encontrada em JOSÉ CUNHAL SENDIM, Responsabilidade civil…, pp. 170 e seguintes, nota 351; diferente na qualificação mas com uma descrição dos mesmos mecanismos, vide BRANCA MARTINS DA CRUZ, La réparation du dommage écologique pur: étude à la lumiére du droit portugais, Nice: [s/n], 2005, pp. 121 e seguintes.
87
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
porque assentam numa avaliação da utilidade económica do bem, no
valor do uso. Ora por tudo o que já ficou dito supra acerca do conceito
e natureza da biodiversidade, é fácil concluir que a res communis
biodiversidade não é susceptível de avaliação pecuniária. Por ser o
resultado da uma teia infindável de elementos naturais, ela está
definitivamente fora de qualquer lógica de mercado. A única forma de
atribuir um preço à biodiversidade é fazê-lo coincidir com o custo da
reparação. Quando a reparação não é possível, ficamos sem
parâmetro equivalente.
A propósito do princípio da proporcionalidade, a Comissão Europeia
tentou, no Livro branco sobre responsabilidade ambiental encontrar
critérios de avaliação quantitativa do dano. Diz-se aí que “[t]erá de ser
realizada uma análise de custo-benefício ou uma análise de
razoabilidade, caso a caso”59. Mas o Livro branco sobre
responsabilidade ambiental da Comissão não respondeu a esta
questão, nem a Directiva a concretizou.
No nosso entendimento, a discussão em torno da reparação por
compensação pecuniária do dano à biodiversidade não é em nada
diferente, em termos de avaliação do dano, do problema geral da
compensação pecuniária por danos morais, o que implica o cálculo da
compensação tendo por base a equidade. Assim, seriam tidas em
consideração a situação económica e grau de culpa do lesante, as
vantagens económicas auferidas por força da lesão e outras
circunstâncias do caso concreto que mereçam ponderação. Estes
critérios nada revelam acerca do dano ecológico causado, mas já
sabemos, à partida, que a compensação pecuniária não irá reparar o
dano causado e que estamos perante uma mera compensação e não
de uma indemnização em sentido estrito. A insegurança e potencial
injustiça associadas a este tipo de avaliação poderiam ser mitigadas
59 Cfr. COM (2000) 66 final, de 9 de Fevereiro de 2000, p. 21.
88
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
através da adopção de um modelo forfetário ou de precedente,
susceptíveis de dar valores de referência60.
Cabe concluir, quanto a este ponto, que a eficácia deste sistema
passará pela concretização normativa do mesmo, o que se aplica não
só à questão da admissibilidade da compensação pecuniária e sua
forma de cálculo, a que acabámos de nos referir, mas também à
definição do seu destinatário.
Esta última questão também não tem resposta no nosso
ordenamento. A resposta parece ser óbvia e imediata: a compensação
pecuniária por um dano à biodiversidade tem de ir para um fundo
dedicado exclusivamente à prevenção e reparação de danos
ecológicos, uma vez que só assim se asseguraria a consignação dessas
verbas a finalidades intra-ambientais. O RJRDA criou, no seu artigo 23.º,
o Fundo de Intervenção Ambiental (“FIA”), que tem como missão
suportar os custos da intervenção pública de prevenção e reparação
de danos ambientais. Contudo, compulsado o Regulamento do FIA,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 150/2008, de 30 de Julho, as
compensações pecuniárias não estão previstas enquanto receitas.
Prevê o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento que são receitas do
FIA “[o] montante das indemnizações e compensações que lhe sejam
devidas em virtude do financiamento de medidas ou acções de
prevenção ou reparação de danos ou de perigos de danos ambientais,
bem como as multas que lhe sejam afectas”. No nosso entendimento,
não estão aqui incluídas as compensações pecuniárias por dano
ecológico, uma vez que essas não lhe são “devidas em virtude do
financiamento de medidas ou acções de prevenção ou reparação”. É
que, em primeiro lugar, as compensações pecuniárias não lhe são
devidas – para o serem, teria de haver uma norma que lhas atribuísse; e,
por outro lado, o FIA não as receberia por ter previamente suportado os
60 Sobre estes modelos, veja-se a análise feita por BRANCA MARTINS DA CRUZ, La réparation du dommage…, pp. 144 e seguintes.
89
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
custos inerentes à adopção de medidas ou acções, formulação
adoptada pela lei e que aproxima esta receita ao direito de regresso.
Contudo, o FIA deveria receber esta compensação por ser a melhor
alternativa disponível, considerando a irreparabilidade do dano e a
função que a lei lhe atribuiu de financiar medidas de prevenção e
reparação de danos ambientais. Nestes termos, urge também neste
ponto um desenvolvimento do quadro normativo, para uma mais eficaz
protecção do ambiente, sem preterição da salvaguarda da segurança
jurídica dos lesantes.
Lisboa, Junho de 2010
Heloísa OliveiraMonitora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Mestranda em Ciências Jurídico-Ambientais
90
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
O VELHO, O NOVO E O RECICLADO NO DIREITO DA CONSERVAÇÃO DA
NATUREZA1
Oportuna esta iniciativa do Instituto de Ciências Jurídico-políticas da
Faculdade de Direito de Lisboa. E acertado o tema genérico que
propõe perante os diplomas recentemente publicados no domínio do
direito do ambiente.
A entrada em vigor de novos instrumentos legais não é – sabemo-lo
bem – garantia de renovação do ordenamento jurídico. Por isso tem
toda a pertinência a interrogação que dá mote comum às
intervenções do conjunto de ilustres conferencistas, dos quais
naturalmente me excluo: o que há de novo no direito do ambiente?
Propõem-me que contribua para o debate com a minha visão sobre a
situação do direito da conservação da natureza no quadro do conjunto
de medidas adoptadas nesta legislatura sobre protecção dos recursos
naturais em Portugal.
Um olhar geral sobre este movimento legislativo permite concluir que
não se alterou na sua essência o paradigma das políticas e do direito
da conservação da natureza. Se quisermos resumir numa frase,
observamos que da anunciada renovação resultou afinal muito do
velho, pouco de novo e algo de reciclado.
1 O presente texto reproduz o sentido geral da intervenção do autor nas Jornadas de
Direito do Ambiente, subordinadas ao tema O que há de novo no Direito do
Ambiente?, promovidas pelo Instituto de Ciências Jurídico-políticas da Faculdade de
Direito de Lisboa em 2008, sob a coordenação de Carla AMADO GOMES e Tiago
ANTUNES.
91
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
A revisão da orgânica da conservação da natureza
O ano de 2007 é marcado pela reorganização do sector da
conservação da natureza, no âmbito mais vasto do Programa de
Reestruturação da Administração Central do Estado, conhecido pelo
acrónimo PRACE.
O instrumento legal de referência é o DL n.º 136/2007, de 27 de Abril,
completado pela Portaria n.º 530/2007, de 30 de Abril que aprovou os
estatutos do instituto público agora rebaptizado Instituto da
Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P., que pretende
ajustar a agência responsável pela execução das políticas de
conservação aos princípios pré-anunciados no DL n.º 207/2006, de 27 de
Outubro, que aprovou a nova lei orgânica do Ministério do Ambiente,
do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional.
A intenção legisferante plasmada no preâmbulo do DL n.º 136/2007, de
27 de Abril, é a de, por um lado, adoptar a estrutura da autoridade
nacional de conservação da natureza à lei-quadro dos institutos
públicos. Depois, um propósito de enfrentar novas competências,
algumas de fonte externa, que implicam um agravamento dos deveres
do Estado neste domínio.
Estes desideratos, que se compreendem, não afastam a sensação de
que a nova solução estrutural foi sobretudo ditada pela necessidade de
controlo da despesa pública “razão pela qual se assegura na nova
orgânica um mais eficaz controlo financeiro da actividade do ICNB”
(Vd. preâmbulo). É este propósito que permite compreender quer as
alterações verificadas nos órgãos, quer a macroestrutura dos serviços,
em especial as unidades orgânicas responsáveis pelo exercício das
políticas de conservação nas áreas protegidas.
92
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Até 2007 o Parque Nacional Peneda-Gerês e os parques e reservas
naturais eram geridos por verdadeiros e próprios órgãos: a Comissão
Directiva (órgão executivo constituído por um presidente e dois vogais)
e um Conselho Consultivo (de acompanhamento e avaliação das
medidas de gestão implementadas ou a implementar na respectiva
área protegida).
Esta estrutura, herdada do Serviço Nacional de Parques, Reservas e
Conservação da Natureza, obedecia a dois princípios, o da
desconcentração de competências e o do envolvimento dos agentes
locais (municípios e freguesias), ONG’s e outros grupos de interesses
sócio-económicos.
O pressuposto desta co-responsabilização alargada a outros actores
assentava na ideia de que as crónicas dificuldades de levar à prática
medidas de conservação de espécies e habitats, muitas vezes
combatendo políticas e restringindo direitos ou costumes, só seria
efectiva com uma participação alargada e interessada na
prossecução dos objectivos conservacionistas das populações, através
dos seus representantes locais ou de organizações especificamente
criadas para defesa dos valores naturais ou outros co-relacionados.
Em 2002, através do DL n.º 221/2002, de 22 de Outubro, chegou a
alterar-se o DL n.º 19/93, de 23 de Janeiro (onde repousava, então, o
essencial da orgânica da conservação da natureza) para permitir o
aprofundamento deste envolvimento, em especial das autarquias na
gestão das áreas protegidas.
Esta alteração visou dar cumprimento ao disposto no artigo 26.º n.º 2 al.
f) da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (a lei da transferência de
atribuições e competências para as autarquias locais) que dispõe que
compete ao poder local “gerir as áreas protegidas de interesse local e
93
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
participar na gestão das áreas protegidas de interesse regional e
nacional”.
O recuo consumado com a lei orgânica do ICNB verificou-se logo em
2005 quando, através do DL n.º 117/2005, de 18 de Julho, se retirou aos
órgãos autárquicos o poder de co-nomeação dos presidentes das
Comissões Directivas.
Eis um bom exemplo de que o que é novo nem sempre é bom. E neste
caso, estamos convencidos que a uma menor co-responsabilização das
autarquias corresponderá uma menor eficácia das políticas de defesa
da diversidade biológica, em especial das medidas de conservação in
situ.
O legislador cedeu à ideia feita de que co-responsabilizar os autarcas
na gestão das áreas protegidas é “meter a raposa na capoeira”
temendo os efeitos da consabida apetência dos eleitos locais pela
ocupação urbanística.
Esta cedência é, no nosso entendimento, um erro. Um erro jurídico antes
de mais, porquanto quer a Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, quer
sobretudo a Constituição no artigo 235.º n.º 2, último segmento,
impedem o afastamento das autarquias locais da gestão das áreas
protegidas.
Sabemos bem que na gestão das áreas protegidas (como aliás na
defesa dos bens que integram a Rede Natura 2000 ou na aplicação do
regime da Reserva Ecológica Nacional - REN) está em causa a
salvaguarda de recursos fundamentais para a sustentabilidade, de
índole nacional e não meramente local.
Mas não pode subscrever-se, atento o estatuto constitucional do poder
local, que a gestão de parques e reservas naturais é indiferente ao que
94
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
a lei fundamental designa por “interesses próprios das autarquias
locais”.
Julgamos que a opção constitui também um erro político.
As políticas públicas ambientais devem respeitar o princípio da procura
do nível mais adequado de acção o qual, nos termos do artigo 3.º al. f)
da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, implica que as medidas de execução
tenham em consideração a escala territorial que garante mais eficácia,
seja ela o âmbito internacional, nacional, regional, local ou sectorial.
Nas políticas de conservação da natureza, estando em causa a defesa
do capital genético, diz-se que esse interesse público exorbita em muito
da esfera local. Nasce aqui a justificação para a tendência não só para
a direcção centralizada dessas políticas, como para alergia ao
envolvimento dos poderes locais.
Um dos problemas notórios das nossas políticas conservacionistas é a
sua concepção não se basear numa adequada avaliação. Se fossem
correctamente avaliadas e ponderados os insucessos de algumas das
mais emblemáticas medidas de preservação dos recursos bióticos em
risco, chegar-se-ia facilmente à conclusão de que não há politicas de
conservação da natureza contra as populações, e muito menos sem as
populações. As medidas mais ligadas à investigação e estudo de
habitats e espécies justificam obviamente a intervenção quase
exclusiva de serviços da Administração Central, mas justificariam
também um maior envolvimento das universidades e outros centros de
conhecimento, públicos ou privados.
Já a aplicação dos planos de ordenamento, e sobretudo o controlo e
vigilância das normas e das boas práticas, depende da cooperação
activa e interessada das autarquias e não deve dispensar a
colaboração de organizações sociais. O legislador não pensou que
95
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
assim é que iríamos pelo bom caminho. O tempo encarregar-se-á de o
desmentir.
Olhemos agora para dentro do ICNB com o propósito de perceber qual
o modelo de distribuição de competências que resultou da opção do
legislador.
Já adiantámos que essa opção passou por retirar às direcções das
áreas protegidas a sua natureza de centros de imputação, com alguma
autonomia, de poderes funcionais nos domínios da gestão das áreas
protegidas. Esses poderes pertencem agora aos órgãos e serviços
centrais do ICNB.
Com efeito, o DL n.º 136/2007, de 27 de Abril, comete ao presidente do
INCB as competências que até à sua entrada em vigor se encontravam
alocadas nas Comissões Directivas.
Isto é, na prática o ICNB deixou de ter órgãos locais.
A macro-estrutura do ICNB definida nos estatutos (aprovados pela
Portaria n.º 530/2007, de 30 de Abril) confirma a opção pelo um modelo
concentracionário. Observa-se, com efeito, que os anteriores órgãos
locais de gestão foram transformados em serviços centrais (os
Departamentos de Gestão das Áreas Classificadas) que agrupam por
quatro regiões as áreas protegidas de interesse nacional actualmente
existentes.
Cabe aos departamentos, segundo os estatutos do ICNB, “assegurar
localmente o relacionamento com as entidades públicas,
designadamente as competentes nos domínios da agricultura, caça,
pesca, floresta, aquicultura, água e domínio hídrico, em cumprimento
das orientações superiormente definidas” (artigo 5.º n.º 1 al. d)),
competindo-lhes ainda “desenvolver e simplificar (sic!) o
96
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
relacionamento comas populações residentes nas áreas classificadas
que integram o departamento (art.º 5.º n.º 1 al. e)).
O que mudou quanto à Rede Natura 2000
Nesta legislatura verificaram-se algumas alterações quer na
conformação física quer jurídica da Rede Natura 2000 em Portugal.
Foram identificadas e classificadas novas ZPE (Monchique e Caldeirão,
Monforte, Veiros, Vila Fernando e S. Vicente) e alargados os limites de
outras (Moura-Mourão-Barrancos e Castro Verde).
Concluiu-se o processo de transposição para o direito interno das
Directivas Aves e Habitats através da alteração do DL n.º 140/99, de 24
de Abril pelo DL n.º 49/2005, de 24 de Fevereiro.
Este diploma veio concretizar uma reclamada densificação da
obrigação que para o Estado decorre do artigo 6.º da Directiva
Habitats, disposição que verdadeiramente dá o mote à disciplina de
defesa do património natural que é a da Rede Natura 2000.
Determina-se aí que os projectos susceptíveis de afectar um sítio da
Rede Natura 2000 de modo significativo, individual ou conjuntamente
com outros projectos, devem ser objecto de avaliação tendo por
quadro de referência os factores que determinaram a integração do
sítio na rede.
Fica agora clarificado que a lei sujeita a processo de avaliação
ambiental (ou á analise de incidências ambientais, fora dos casos
previstos no artigo 10.º nº2) todas as acções não directamente
relacionadas com a gestão dos sítios (da lista nacional ou sítios de
interesse comunitário) de uma Zona Especial de Conservação (ZEC) ou
de uma Zona de Protecção Especial (ZPE).
97
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Adivinham-se as críticas, já habituais, dirigidas à opção do legislador em
fazer assentar a decisão de autorização de uma determinada em área
classificada com Rede Natura 2000 neste conceito indeterminado. Sem
pretender aqui discorrer sobre matéria que os juristas conhecem bem,
que é a dos limites à liberdade de integrar os conceitos vagos e
indeterminados levados à letra da lei, limites estes que afastam essa
actividade do livre arbítrio, sempre se dirá que a lei fornece elementos
seguros que servirão de guia ao decisor.
Que elementos são esses?
Em primeiro lugar o que se extrai dos artigos 10.º nº9 do DL n.º 140/99,
que expressa o que poderemos chamar princípio da integridade das
áreas integrantes da Rede Natura, aliás bastante tratado na
jurisprudência comunitária.
Para os efeitos do artigo 10º do diploma a que nos referimos, afecta de
modo significativo a Rede Natura toda a acção susceptível de
desintegração (a forma mais comum é a descontinuidade ou a
fragmentação provocadas por elementos artificiais ou alteração das
condições naturais) dessas áreas.
Em segundo lugar, o conceito deve ser integrado por apelo aos
objectivos da Rede Natura 2000, definidos nas Directivas e sintetizados
no n.º 2 do artigo 1.º do DL n.º 140/99, de 24 de Abril.
E o próprio n.º 1 do artigo 10.º que aponta para aí ao centrar a
avaliação de incidências ambientais nos “objectivos de conservação
da referida zona”.
Significa isso que – ressalvados os casos que resultem da aplicação dos
n.ºs 10 e 11 do artigo 10.º – afectam de modo significativo uma área
integrada da Rede Natura o projecto ou a acção: (i) que revelam
98
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
produzir efeitos negativos sobre a biodiversidade biológica, impedindo
a conversão ou o restabelecimento de habitats naturais de fauna e de
flora, considerados em estado de conservação favorável; ou (ii) que
ponham em causa a protecção, gestão e controlo das espécies ou a
regulamentação da sua exploração.
De notar que a obrigação de aferir as incidências ambientais não
incide somente sobre os projectos ou acções, abrange também os
planos.
Di-lo o n.º 1 do artigo 15.º do DL n.º 140/99, mas impõe-no, agora, o DL
n.º 322/2007, de 15 de Junho (artigo 3.º n.º 1 al. b)) e o regime jurídico
dos instrumentos de gestão territorial (DL n.º 380/99, de 22 de Setembro,
na versão resultante da alteração e republicação pelo DL n.º 316/2007,
de 19 de Setembro, atento o disposto no artigo 1.º n.º 2 deste último
diploma).
A despeito destes ajustamentos normativos, a grande questão coloca-
se no plano da gestão. O que fazer dos mais de um milhão de hectares
de Rede Natura 2000?
Como é sabido, o artigo 8.º n.º 4 do DL n.º 140/99, de 24 de Abril,
determina que “a execução da Rede Natura 2000 é objecto de um
plano sectorial, elaborado nos termos do DL n.º 380/99, de 22 de
Setembro e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 66/2001, de 6 de
Junho, tendo em conta o desenvolvimento económico e social das
áreas abrangidas e estabelecendo orientações para: a) A gestão
territorial nos sítios, nos sítios de importância comunitária, nas ZEC e nas
ZPE; b) As medidas referentes à conservação das espécies da fauna,
flora e habitats”.
No quadro da lógica relacional entre os instrumentos de gestão
territorial, expressa na Lei n.º 49/98, de 11 de Agosto (Lei de Bases da
99
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo) e no DL n.º
380/99, de 22 de Setembro, a ideia é a de que estas medidas e
recomendações sejam tornadas efectivas por via dos Planos Especiais
de Ordenamento do Território (PEOT) e dos Planos Municipais de
Ordenamento do Território (PMOT) que incidam sobre áreas integradas
na Rede Natura 2000.
Pretende-se que o carácter meramente programático e indicativo do
Plano Sectorial adquira normatividade através do processo de
alteração por adaptação dos PEOT e PMOT, para o que se estabelece
um prazo máximo de seis anos.
Em nosso entender é legítimo que se conclua que o Plano Sectorial da
Rede Natura 2000 não é, não vai ser, o instrumento fundamental de
salvaguarda da Rede Natura 2000. E não o será porque carece de
efectividade directa. As ZPE, ZEC e sítios só verão garantida a sua
utilidade pública conservacionista quando enquadrados por
instrumento de natureza normativa que defina usos preferenciais,
condicionados e interditos do solo, determinados por critérios de
conservação da natureza e da biodiversidade, isto é, por planos
especiais no conceito do artigo 12.º/3/c) do DL n.º 380/99, de 22 de
Setembro.
Ao regime de salvaguarda tem de se somar um plano de gestão
plurienal realista e exequível, que é o mesmo que dizer, dotado dos
meios técnicos e financeiros necessários para levar a cabo as medidas
definidas para se prosseguirem os objectivos de conservação e
valorização do património natural que justificam a integração de cada
área na Rede Natura.
Por isso, efectivos para a protecção dos sítios da Rede Natura 2000 são
os PEOT que os incluem.
100
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
E são-no também, nas vastas áreas não cobertas por planos especiais,
os planos à escala local com particular relevo para os PDM, o que
acentua a necessidade de articulação com as autarquias locais.
É manifesto que a figura do plano sectorial é inadequada para
enquadrar uma gestão efectiva de sítios da Rede Natura 2000. Não só
porque não tem natureza regulamentar e nessa medida não vincula
directamente os particulares, mas sobretudo porque o plano sectorial é
o instrumento pensado para a concretização de políticas sectoriais.
Ora, as políticas de conservação da natureza não devem ser tidas
como politicas sectoriais. Distintamente devem ser encaradas como
transversais a todas as demais políticas públicas.
Melhor seria – temo-lo defendido – que a lei previsse para cada sítio da
Rede Natura um plano de gestão associado a PEOT com a força e o
valor jurídico que resulta do artigo 3.º n.º 2 do Regime Jurídico dos
Instrumentos de Gestão Territorial.
Aliás, compulsando o Plano Sectorial da Rede Natura 2000 aprovado
pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 115-A/2008, de 21 de Julho,
salta à vista a sua inoperabilidade como meio de garantia da
inviolabilidade dos valores que subjazem à criação dos sítios, das ZEC e
das ZPE.
Pode objectar-se que, não sendo a Rede Natura um regime jurídico
impositivo de restrições de utilidade pública (o que está longe de ser
pacífico, pelo menos na forma como tem sido encarada a aplicação
do DL nº 140/99), mas antes um sistema que visa a salvaguarda de
patrimónios naturais, a sua gestão deve ser moldada pelos resultados
do levantamento e caracterização dos bens e recursos existentes em
cada área classificada, processo dinâmico que a taxonomia há-de
ajudar a consolidar.
101
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
A verdade, porém, é que a falta de efectividade jurídica per se do
plano sectorial, aliada a uma crónica debilidade na fiscalização do
cumprimento de simples orientações - desde logo por parte das
entidades públicas -, é agravada pelo conteúdo desse plano.
Vejamos, ainda que sinteticamente, alguns dos aspectos do Plano
Sectorial da Rede Natura 2000 que traduzem esta inaptidão imanente:
a) O carácter essencialmente técnico do documento.
Percebe-se mal que, sendo a solução legal encontrada para
assegurar efectividade do plano, a alteração por adaptação de
instrumentos de gestão territorial de natureza regulamentar, não
tenha havido a preocupação por torná-lo menos hermético e
mais acessível aos responsáveis pela elaboração ou revisão dos
PEOT e dos PMOT.
b) A imprecisão da delimitação cartográfica realizada à escala
1:100.000.
Advinham-se as dúvidas, as incertezas e sobretudo os conflitos
que surgirão aquando da transposição para as plantas instrutórias
dos planos de concretização, em especial para os PMOT.
c) A extrema vaguidade de muitas das orientações.
d) A (insistência na) inclusão de áreas urbanas (habitacionais,
industriais, de equipamentos) nos sítios, nas ZCE e nas ZPE,
revelando que os responsáveis pela elaboração do plano, mas
sobretudo os decisores políticos, pouco ou nada aprenderam de
experiências do passado nada favorável aos objectivos da Rede
Natura 2000 sempre que se forçou esta solução de inserção de
áreas urbanas, que só temos por racional quando se torna
necessária para evitar a fragmentação de habitats. Sempre,
102
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
contudo, observando o princípio da proporcionalidade, que o
mesmo é dizer como diz a lei “tendo em conta as exigências
ecológicas, económicas, sociais, culturais e científicas, bem
como as particularidades regionais e locais” (cfr. artigo 1.º n.º 3 do
DL n.º 140/99, de 24 de Abril).
e) Na falta de um programa de execução de acções de
conservação ou reabilitação de habitats e de defesa da
biodiversidade relativas a cada sítio, confirmando a já tradicional
ausência de enquadramento económico-financeiro das medidas
preconizadas no Plano Sectorial. Isso ajuda a explicar a
vaguidade das orientações que atrás salientamos...
A tentativa falhada de uniformização dos regimes jurídicos da
conservação da natureza e de defesa da biodiversidade
Há que reconhecer à Europa o papel pioneiro da criação de condições
políticas mas também normativas para dar cumprimento à Convenção
sobre a Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro em 5 de
Janeiro de 1992 e entre nós aprovada para ratificação pelo DL n.º
21/93, de 29 de Junho (tendo entrado em vigor a 21 de Março de 1994).
Os Estados membros da UE vincularam-se a cooperar na execução da
estratégia comunitária de conservação da natureza, em especial após
o acordo dos chefes de Estado e de governo obtido em 2001 que
viabilizou compromisso político constante da Comunicação da
Comissão de 22 de Maio de 2006 ‘Travar a Perda da Biodiversidade até
2010 – E mais além’.
Este discurso estratégico ao nível transeuropeu solidarizou as políticas
nacionais na prossecução, no prazo de uma década, de objectivos
que, em síntese, visam estancar a tendência para a diminuição dos
103
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
stocks genéticos na Europa, e encontra resposta em algumas das
medidas de alteração dos regimes jurídicos que interessam à defesa da
diversidade biológica em Portugal, dando aliás execução à Opção
Estratégica 2 da Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da
Biodiversidade (aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
152/2001, de 11 de Outubro).
Essa opção estratégica apontava para a constituição da Rede
Fundamental da Conservação da Natureza e do Sistema Nacional de
Áreas Classificadas, integrando neste a Rede Nacional de Áreas
Protegidas.
Sempre entendi que esta orientação estratégica era um sinal para a
sistematização do Direito que atende aos interesses públicos ligados à
conservação da natureza, incluindo neste conceito a defesa da
biodiversidade.
Com este propósito foi publicado o DL n.º 142/2008, de 24 de Julho,
anunciando o legislador que com ele se institui o regime jurídico da
conservação da natureza.
Este é um dos casos em que a prometida inovação se ficou pelo
universo das intenções.
Mesmo que a opção fosse a de não mudar o paradigma das politicas
públicas conservacionistas, já seria uma inovação relevante que o
essencial do regime jurídico da conservação da natureza constasse de
um diploma, no qual se precipitassem os princípios e regras de
enquadramento dessas políticas públicas e as condicionantes aos
direitos e interesses legítimos dos particulares.
Esse exercício permitiria ganhar a coerência e o carácter sistémico que
faltam ao conjunto disperso de diplomas que instituem vários regimes
104
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
de protecção dos bens ambientais relacionados com a conservação
da natureza.
Não foi, porém, isto que se obteve com o DL n.º 142/2008, de 24 de
Julho.
Vejamos então que impressões nos causa o diploma que no Diário da
República se apresenta como estabelecendo o regime jurídico da
conservação da natureza e da biodiversidade.
É, antes de mais, indisfarçável o gosto do legislador pelas formas mais
ou menos esquemáticas, sem que essas formas traduzam qualquer
mutação substantiva, ou, o que seria porventura mais importante,
contribuam para a uniformização dos regimes dispersos.
Acima, recordou-se que uma das opções da Estratégia Nacional é a
criação de uma Rede Fundamental de Conservação da Natureza
(RFCN), um Sistema Nacional de Áreas Classificadas (SNAC) que integra
a Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP).
O diploma concretiza este esquema, integrando no SNAC a Rede
Natura 2000 e outras áreas classificadas ao abrigo do direito
internacional.
Só que neste esquema, onde se arrumaram bem “redes” e “sistemas”,
mantém-se afinal tudo como dantes, não se surpreendendo aquilo que
decorre, como objectivo, da Estratégia Nacional: a uniformização dos
regimes atinentes à conservação da Natureza.
A RFCN, que se esperava que fosse o conjunto de princípios comuns a
todos os regimes especiais, não passa afinal de um nomem. Não é mais
do que uma designação sem qualquer substrato normativo.
105
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
A RFCN, não é, como se esperava que fosse, o denominador comum
dos regimes da Rede Nacional das Áreas Protegidas, da Rede Natura
2000 e outras áreas classificadas, da REN, da RAN ou do regime do
domínio público hídrico no que todos eles têm que ver com a
salvaguarda do património genético existente em território nacional. É,
tão só, o nome que se dá à soma de todos eles.
Ainda assim, a elaboração de um regime jurídico geral poderia ser a
oportunidade para alterar substantivamente os regimes especiais, ou
pelo menos para estabelecer os momentos essenciais, as orientações
políticas fundamentais a concretizar nesses regimes.
Mas nem esse efeito resulta do diploma em apreço, que se basta com
uma remissão para os diplomas que encerram, no todo ou em parte
(como é o caso da RAN) mecanismos de salvaguarda da
biodiversidade. Com excepção do regime jurídico aplicável às áreas
protegidas, esse revogado, sendo as suas normas ligeiramente
alteradas. O que se observa mesmo em relação à disciplina jurídica da
conservação da natureza in situ não é, contudo, uma mudança de
paradigma. São ajustamentos e algumas proposições positivas, como a
possibilidade de criação de áreas protegidas de âmbito regional ou
local nascidas da vontade municipal; ou a tentativa de conformar um
feixe de princípios sobre o regime económico de conservação da
natureza e da biodiversidade (cfr. Cap. V).
No demais, o legislador limitou-se a reciclar o velho DL n.º 19/93, de 23
de Janeiro.
O regime económico e financeiro da conservação da natureza
Julgamos que está socialmente adquirida a noção, mais ou menos
difusa, da importância da biodiversidade existente no território nacional,
106
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
aliás bem expressa na Estratégia Nacional da Conservação da
Natureza e da Biodiversidade.
Porém, com a excepção de alguns – poucos – anos, em que não
faltaram recursos para execução de programas, é crónico o problema
do financiamento das políticas públicas conservacionistas.
A questão do sub-financiamento destas políticas tem contornos
complexos e não pode ser analisada com o mínimo de profundidade
aqui, embora reconheçamos que esta é umas das questões
fundamentais. As limitações de tempo mas também do tema proposto,
impõe-nos que nos concentremos no que de novo traz o DL n.º
142/2008, de 24 de Julho, quanto a este importantíssimo plano.
Antes, porém, permitimo-nos adiantar como explicação para a
insuficiência dos recursos colocados à disposição das actividades de
protecção da biodiversidade (que, diga-se, vão muito para além da
gestão das áreas protegidas que tem absorvido a grande fatia das
disponibilidades orçamentais) a circunstância de em Portugal a
conservação da natureza ter sido encarada como uma causa cujos
objectivos eram intangíveis e os pressupostos uma espécie de dogma.
Um domínio onde a dialéctica sempre foi muito pobre, e onde os
defensores da natureza (pertencentes a um clube muito restrito...)
sempre diabolizaram alguns comportamentos que, por serem racionais,
deveriam ter influenciado positivamente a decisão política.
Mas não. A reverência para com a intocável mainstream da elite
conservacionista, fez com que se retardasse o passo que poderia
resolver, pelo menos em parte, os problemas do financiamento das
políticas públicas conservacionistas.
As actuações nestes domínios foram sendo afectadas, por exemplo,
pelo complexo de que a comparticipação de entidades privadas no
107
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
financiamento dos programas públicos tornaria a conservação da
natureza e a defesa da natureza prisioneira de tenebrosos interesses!
Noutras paragens, a solução para o problema da escassez de recursos,
designadamente para o desenvolvimento de acções de recuperação
de habitats e para a protecção da espécies, foi conseguido
exactamente à custa da comparticipação das empresas interessadas
no sucesso dessas medidas.
A Costa Rica, por exemplo, tirou partido do interesse de empresas pelas
bio-riquezas (essencialmente da flora) para financiar a investigação do
seu património natural, aceitando celebrar um contrato com o gigante
da indústria farmacêutica norte-americana MERCK, no valor de muitos
milhões de dólares.
Muitos outros exemplos de sucesso assentes na cooperação entre
entidades e o sector público da conservação da natureza podiam ser
dados.
Em Portugal, a excepção ao preconceito que durante anos a fio fez lei,
encontra-se nas medidas agro-florestais previstas nos Planos Zonais
contratualizadas com agricultores, e nas acções levadas a cabo por
ONG no âmbito das candidaturas ao Programa LIFE.
O assim chamado regime jurídico da conservação da natureza e da
biodiversidade veio abrir caminho para uma nova fase, ao eleger o
contrato como instrumento de sustentabilidade económica e financeira
do SNAC.
Com efeito, o DL n.º 142/2008, de 24 de Julho, veio consagrar as vias
convencionais de gestão do património biológico, designadamente sob
a forma de parcerias público-privadas, contratos de gestão e de
concessão ou outras modalidades de associação estável não
108
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
nomeadas na lei mas que, de acordo com o princípio da autonomia
pública da vontade e no quadro dos seus limites, se revelarem
adequadas.
Particularmente interessantes pelo equilíbrio que podem estabelecer e
a garantia de prossecução dos interesses públicos da conservação,
parecem-nos ser as parcerias, quer sob a forma de concessão (na qual,
o concessionário prossegue actividades que são próprias da autoridade
nacional, com assumpção do risco); quer sob a forma de delegação,
em que o parceiro da Administração é investido no poder e no dever
de prosseguir objectivos de interesse público, mediante, naturalmente,
contrapartidas.
Segundo os bons princípios da transparência e da publicidade, a
escolha dos parceiros está sujeita ao disposto no Código da
Contratação Pública.
Não menos relevante é a consagração legal dos chamados
instrumentos de compensação ambiental.
O artigo 36.º do DL n.º 142/2008, de 24 de Julho dispõe o seguinte:
“1. A conservação da natureza e da biodiversidade pode ser promovida através de instrumentos de compensação ambiental que visam garantir a satisfação das condições ou requisitos legais ou regulamentares de que esteja dependente a execução de projectos ou acções, nomeadamente decorrentes do regime jurídico da avaliação ambiental ou do regime jurídico da Rede Natura 2000.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior a compensação ambiental concretiza-se pela realização de projectos ou de acções pelo próprio interessado previamente aprovados e posteriormente certificados pela autoridade nacional, que produzam um benefício equivalente ao custo ambiental causado.
109
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
3. Mediante iniciativa e financiamento pelo interesse dependente de acordo com a autoridade nacional, a compensação ambiental pode também ser concretizada através de projectos ou acções pela autoridade nacional.
4. Sempre que nos termos do número anterior haja lugar a financiamento de projectos ou a acções a realizar pela autoridade nacional, os pagamentos em causa ficam obrigatoriamente adstritos às finalidades de compensação ambiental que lhe subjazem”.
A fórmula é aparentemente complexa mas traduz uma ideia simples:
sempre que uma acção que deva ser autorizada, tenha ou possa vir a
ter impactos negativos que não possam ser evitados, sobre a
conservação da natureza, maxime, sobre a diversidade biológica, o
beneficiário é obrigado a compensar, mediante a realização de
acções de efeito positivo equivalente ou a viabilizar essas acções
através da disponibilização de adequados meios financeiros.
Cedo se ouviram as vozes que vêem neste modelo a porta
escancarada para a remuneração do favor ambiental.
Sem razão, a nosso ver. A lógica que a lei expressa é a mesma que, no
quadro do regime jurídico da avaliação dos impactos ambientais
impõe a compensação quando da adequada ponderação dos
interesses se conclui pela necessidade de equilibrar as vantagens de um
investimento impactante sobre a natureza, através de compensações
das perdas ambientais resultantes do projecto ou acção avaliada.
Irracional e injusto é o sistema que, permitindo essas acções, deixe para
a comunidade os custos das reparações ambientais e para as
entidades privadas as vantagens…
Note-se, porém, que o que vem disposto no artigo 36.º do DL n.º
142/2008, de 24 de Julho, não pode ser interpretado como a fórmula
para superar a vinculação situacional de determinados terrenos à
110
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
protecção de activos biológicos, ou, em geral, à defesa do património
natural em risco.
O que aí se dispõe deve, aliás, ser encarado como uma expressão do
princípio da responsabilização, consagrado no artigo 3.º al. h) da Lei de
Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de Abril).
Andou, de resto, bem o legislador quando teve o cuidado de afastar a
possibilidade de as compensações financeiras serem utilizadas para
outros propósitos que não a sua aplicação no financiamento de
medidas de reequilíbrio do saldo ambiental, proibindo-se
designadamente a sua afectação ao funcionamento corrente do ICNB.
Para além do que se deixou anotado, o diploma anuncia a criação de
um Fundo para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade. Fixa-
lhe o propósito mas remete para outro decreto-lei – uma técnica tão
habitual como incompreensível – a definição do que virá a ser este
instrumento de apoio às políticas de conservação da natureza e da
biodiversidade. Uma intenção mais.
Feita esta excursão, necessariamente breve e incompleta sobre o que
nos últimos tempos tem sido publicado nas páginas do Diário da
República em matéria da defesa da biodiversidade, incluindo o novo
regime da Reserva Ecológica Nacional (tema que nestas conferências
será tratado autonomamente), permito-me concluir que ao invés do
que se poderia esperar de tantos diplomas levados à estampa, se
mantém afinal o paradigma das políticas e do direito da conservação
da natureza.
A melhor prova de que a inovação esperada se ficou em boa parte
pelas intenções, revela-se no chamado regime jurídico da conservação
da natureza e da biodiversidade, novo repositório de princípios e regras
conhecidas, com excepção dos sinais positivos no sentido da
111
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
construção de um modelo de sustentação financeira das propostas e
acções em defesa da diversidade biológica.
José Mário Ferreira de AlmeidaMestre em Direito. Advogado. Sócio da FALM – Ferreira de Almeida, Luciano
Marcos & Associados, Sociedade de Advogados, RL.
112
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Os desafios da tutela da biodiversidade na região autónoma dos
Açores: um trilho a seguir?1
“Foi isto outrora na ilha das fadas
Embrumada em hortênsias. Não sonhei.
Sobre as lagoas de águas encantadas
Dormiam os fetos e não havia lei.
As vacas nas colinas esfumadas
Ruminavam o eterno. Ali folguei
Na festa das crianças coroadas.
Reinava o Amor e não havia Rei. (…)”2
Sumário:
0. Prefácio; 1. Considerações iniciais; 2. A evolução do Direito do
Ambiente na Região Autónoma dos Açores: O caso específico das
áreas protegidas açorianas; 3. O Regime jurídico da Rede Regional de
1 O presente trabalho corresponde à versão final do relatório entregue para avaliação no âmbito do Curso Pós-Graduado de Aperfeiçoamento em Direito do Ambiente, Ordenamento do Território, do Urbanismo e do Turismo, no ano lectivo de 2009/2010, organizado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, da Faculdade de Direito de Lisboa, sob a coordenação do Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa e da Professora Doutora Carla Amado Gomes. 2 Mãe Ilha, poema de Natália Correia, in Antologia Poética, Edições D. Quixote, pág. 246.
113
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Áreas Protegidas dos Açores (RRAPA): Linhas de (des)continuidade com
a Rede Fundamental de Conservação da Natureza (RFCN); 4.
Ultraperiferia, economia regional do ambiente e a gestão das áreas
protegidas na RAA: os Açores e os desafios do desenvolvimento
autonómico sustentável; 5. Reflexões finais.
0. Prefácio
Há muito que a harmoniosa convivência entre o Homem e a Natureza é
um passado distante. Catástrofes naturais recentes (por exemplo, as
cheias no Paquistão e os fogos na Rússia e em Portugal), são o reflexo
do que a acção do Homem provoca no frágil equilíbrio do Planeta
Terra. Os Estados, cada vez mais conscientes da gravidade destes
fenómenos, procuram reconciliar-se (dentro da medida possível) com o
seu Planeta, quer limitando a intervenção humana sobre o Ambiente,
quer adoptando políticas de desenvolvimento sustentável.
Uma das preocupações ambientais que está na ordem do dia é a da
tutela e conservação da biodiversidade. Ora, tal preocupação, num
meio ambiente como é o do Arquipélago dos Açores – região insular e
ultraperiférica – assume especial acutilância, pois demanda a adopção
de regimes jurídicos ambientais que tenham em conta as
especificidades da biodiversidade açoriana.
E será esta a temática que nos propomos analisar. No entanto, por
considerarmos que a abordagem, análise e reflexão sobre a tutela da
biodiversidade na Região Autónoma dos Açores (“RAA”) é per se um
objecto de estudo muito vasto, antes de iniciarmos o nosso excurso,
cumpre dizer o seguinte:
114
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Em primeiro lugar, o presente estudo será circunscrito à análise da Rede
Regional de Áreas Protegidas dos Açores (“RRAPA”). Nesta sede
procuraremos, por um lado, analisar o seu regime jurídico, detectando
(se tal for o caso) possíveis nódulos na articulação com os diplomas
nacionais, e por outra banda, compreender, pela análise histórica, os
fundamentos da sua tutela específica, cotejando, no fim da viagem, a
articulação entre a gestão das áreas protegidas dos Açores e a
economia ultraperiférica regional da biodiversidade.
Em segundo lugar, entendemos que o presente trabalho, reveste
especial pertinência quer do ponto de vista académico, por a doutrina
não ter ainda «despertado» para o estudo das questões autonómicas
ambientais, quer do ponto de vista prático, na medida em que ensaia
clarificar a articulação das leis gerais da República com os diplomas
regionais na matéria e levanta um pouco o «véu» aos desafios do
desenvolvimento autonómico sustentável na RAA. Refira-se, no entanto,
que não se trata, de uma investigação aprofundada, nem tão pouco
cuidaremos de proceder a um grande desenvolvimento dogmático dos
temas abordados. Trata-se, bem mais modestamente, de recolher as
primeiras impressões suscitadas pela temática em conspecto, bem
como manifestar a opinião que prima facie nos cumpre avançar.
115
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Em terceiro lugar, será, pois, dentro do cenário delineado, ao qual
acrescentamos dois eventos importantes, o de 2010, como ano
Internacional da Biodiversidade3 e o dos Açores como Região Europeia
do ano 20104, que procuraremos dar o mote e desbravar um pouco de
terreno no estudo da biodiversidade na RAA5.
E se, no fim desta breve incursão, restar um pequeno contributo para
um melhor entendimento da protecção da biodiversidade açoriana –
em particular da rede de áreas protegidas açorianas – despertando o
interesse da nossa comunidade científica para as questões ambientais
regionais, tanto melhor!
Uma última palavra para agradecer à Professora Doutora Carla Amado
Gomes, o estímulo e incentivo na elaboração do presente trabalho, e
ao Instituto de Ciências Jurídico Políticas da Faculdade de Direito de
Lisboa, por continuar, através da sua atitude proactiva, a fazer da nossa
academia, espaço de excelência para reflexão sobre direito público,
com especial enfoque nas questões jus ambientais.
1. Considerações iniciais
A temática da biodiversidade passou, nos últimos anos, de assunto de
segunda linha, para prioridade das agendas política e económica
3 Resolução 61/203, de 20 de Dezembro de 2006 da Assembleia-geral das Nações Unidas. Para uma visualização do programa e acções de sensibilização promovidas veja-se o site oficial do evento disponível in http://www.cbd.int/2010/welcome/. 4 Na sequência do protocolo assinado no dia 19 de Outubro de 2009, entre o Governo Regional dos Açores e a Organização do “The European Region of the Year”, disponível in http://www.azores2010.eu/.5 Apenas um último apontamento, elucidativo da singularidade da biodiversidade da RAA, para referir que entre as 7 Maravilhas de Portugal, duas estão localizadas no Arquipélago dos Açores a saber: Lagoa das Sete Cidades (Zonas aquáticas não marinhas), Portinho da Arrábida (Praias e falésias), Floresta Laurissilva da Madeira (Florestas e matas), Paisagem Vulcânica da Ilha do Pico (Grandes relevos), grutas de Mira de Aire (Grutas e cavernas), Parque Natural da Ria Formosa (Zonas marinhas) e o Parque Nacional da Peneda-Gerês (Zonas protegidas), informação consultada no site: http://www.7maravilhas.sapo.pt/#/pt/21-maravilhas.
116
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
mundiais, por estar em causa o modelo de desenvolvimento
económico e social que, correlacionado com o sinistro da expansão
urbana e demográfica6, tem conduzido a uma catastrófica destruição
da fauna e da flora terrestres7.
Embora o desaparecimento da vida selvagem esteja a ser
parcialmente contrariado mediante uma política conservacionista de
tutela da natureza (v.g. acções de conservação activa e acções de
suporte), cumpre advertir em abono da verdade, tal como comprovam
as principais conclusões da Cimeira de Copenhaga que é preciso ir
mais além da receita de meras orientações programáticas. Todavia, em
termos gerais, há que reconhecer aos países europeus um papel de
vanguarda na criação de condições políticas e de produção
legiferante no cumprimento da Convenção sobre a Diversidade
Biológica, assinada no Rio de Janeiro em 5 de Janeiro de 1992, entre nós
aprovada para ratificação pelo Decreto-lei 211/93, de 29 de Junho
(com entrada em vigor a 21 de Março de 1994)8.
Concretamente, em Portugal, a tutela da biodiversidade foi introduzida
pela Lei n.º 11/87, de 7 de Abril – Lei de Bases do Ambiente (“LBA”),
diploma que versa sobre as bases da política do ambiente em Portugal.
Trata-se de um diploma que integrou, nos últimos anos, toda a
legislação ambiental produzida em Portugal, tendo em vista optimizar e
garantir a continuidade da utilização dos recursos naturais como bitola
fundamental para um desenvolvimento sustentável. Foi precisamente 6 Por exemplo só na China, de acordo com os últimos dados estatísticos das Nações Unidas, a população era 1354146.4 [com a ressalva de que para efeitos da presente estatística não se inclui Hong Kong, Macau e Regiões Administrativas Especiais da China (SAR)], informação disponível in http://unstats.un.org/unsd/default.htm.7 Como último episódio desta tragédia contínua, temos o derrame de petróleo no Golfo do México, já considerada a pior catástrofe natural da história dos EUA.8 Para um melhor aprofundamento e compreensão da evolução legislativa ao nível internacional e comunitário em matéria de conservação da natureza e da biodiversidade, veja-se Carla AMADO GOMES, “Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma: duplo eixo reflexivo em torno da biodiversidade”, publicado nesta Revista, 2010/II, pp. 317 ss.
117
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
da LBA que emanou a Estratégia Nacional de Conservação da
Natureza e da Biodiversidade (“ENCNB”), adoptada pela Resolução do
Conselho de Ministros n.º 152/2001, de 11 de Outubro. A ENCNB assume,
como objectivos gerais: “conservar a Natureza e a diversidade
biológica, incluindo os elementos notáveis da geologia, geomorfologia
e paleontologia; promover a utilização sustentável dos recursos
biológicos; contribuir para a prossecução dos objectivos visados pelos
processos de cooperação internacional na área da conservação da
Natureza em que Portugal está envolvido, em especial os objectivos
definidos na Convenção sobre a Diversidade Biológica, aprovada para
ratificação pelo Decreto n.º 21/93, de 29 de Junho, designadamente a
conservação da biodiversidade, a utilização sustentável dos seus
componentes e a partilha justa e equitativa dos benefícios provenientes
da utilização dos recursos genéticos” – cfr. o preâmbulo da Resolução.
Visando a concretização destes objectivos, a ENCNB formulou 10
opções estratégicas para a política de conservação da natureza e da
biodiversidade, entre as quais, assume particular relevância para o
nosso estudo a opção n.º 2: “Constituir a Rede Fundamental de
Conservação da Natureza e o Sistema Nacional de Áreas Classificadas,
integrando neste a Rede Nacional de Áreas Protegidas”. Foi
precisamente no desenvolvimento desta opção estratégica que o
Decreto-lei 142/2008 de 24 de Julho inscreveu no ordenamento jurídico
português o Regime jurídico da Conservação da Natureza e da
Biodiversidade (“RCNB”). Uma das principais novidades desta união
resulta da criação da Rede Fundamental de Conservação da Natureza
(“RFCN”), composta pelas áreas nucleares de conservação da natureza
e da biodiversidade integradas no Sistema Nacional de Áreas
Classificadas (“SNAC”) e pelas áreas de Reserva Ecológica Nacional
(“REN”), de Reserva Agrícola Nacional (“RAN”) e do Domínio Público
118
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Hídrico (“DPH”)” – cfr. corpo do artigo 5.º do DL 142/2008, de 24 de
Julho.
No que concerne à RAA, o legislador açoriano respondendo às
particularidades geográficas, ambientais, culturais e político –
administrativas do território do Arquipélago dos Açores, criou a RRAPA
com o objectivo de harmonizar as áreas protegidas açorianas com os
trilhos da infra-estrutura complexa, composta por “redes” e “sistemas”
que é hoje a RFCN.
2. A Evolução do Direito do Ambiente na Região Autónoma dos Açores:
O caso específico das áreas protegidas açorianas
Diga-se, em primeira água, que a evolução autonómica açoriana no
aprofundamento da tutela da biodiversidade, rectius, através da
implementação de um instrumento regional de áreas protegidas, está
intimamente ligada a um fenómeno autonomista mais vasto: o da
evolução e afirmação das competências legislativas da RAA em
matéria ambiental. Ora, feito um sobrevoo histórico desta evolução,
podemos delimitar o desenvolvimento destas competências legislativas
em três fases.
Uma primeira fase, de reivindicação autonomista – que por sua vez se
subdivide em dois momentos: um inicial, de 1892 a 1940 e, um
consecutivo, de 1940 a 1976; uma segunda fase, de consagração
constitucional – que vai de 1976 até 2004; e, finalmente, uma terceira
fase, de expansão constitucional – que vai desde 2004 até aos dias de
hoje.
Em relação à primeira fase, as preocupações ambientais, mais
concretamente com a conservação da natureza e da biodiversidade,
119
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
foram assuntos secundários9 na agenda dos primeiros movimentos
autonómicos regionais. Os primeiros autonomistas açorianos10 inspirados
na conceptualidade racionalista de Grócio, Locke e Puffendorf,
focaram o cerne da sua luta reivindicativa numa autonomia política e
administrativa11 para o Arquipélago, exigindo “com legitimidade jurídica
de direito natural e consuetudinário, um poder que o governo central
do estado abusivamente detém, legislando e impondo um direito
positivo contrário”12. Mas tal não foi suficiente para afastar das
cogitações do povo açoriano, a vontade de «chamar a si»
competências legislativas em matéria ambiental. Aliás, se no projecto
de lei de Aristides da Mota apresentado à Câmara dos Deputados na
sessão de 31 de Março de 189213 e no Relatório e Propostas da
Subcomissão Autonómica do Distrito de Ponta Delgada de 1893, estas
referências são omissas, encontramos já no Decreto de Autonomia,
promulgado em 2 de Março de 1895, em governo de ditadura do
açoriano Conselheiro Hintze Ribeiro,14 os primeiros vestígios, embora 9 Veja-se neste sentido, José Bruno Carreiro, “A Autonomia Administrativa dos Distritos e das Ilhas Adjacentes”, Colecção Autonomia, Edição Jornal de Cultura, Ponta Delgada, 1994, pp. 54 e ss, citando um trecho do primeiro discurso proferido pelo deputado autonomista, o Dr. Montal`Alverne de Sequeira, na Câmara dos Deputados após as eleições gerais de Abril de 1894: “Na situação em que nos encontramos é que não podemos continuar, porque o Arquipélago dos Açores, especialmente o distrito de Ponta Delgada, está em completo abandono. (…). Toda a viação do distrito, e em geral a do Arquipélago dos Açores é uma miséria e um escárnio”.10 Como se pode ver pelo Relatório e Projecto de Lei de Autonomia elaborado pela Comissão Autonómica Distrital de Angra do Heroísmo, onde ressaltavam as preocupações com as obras públicas, vias de comunicação, instrução primária, e apoio às actividades económicas como a agro-pecuária e os lacticínios. 11 Veja-se o Relatório e Propostas da Subcomissão Autonómica do Distrito de Ponta Delgada de 1893, que no artigo 1.º, parte final dos Princípios a concignar na Reforma Administrativa sobre a Autonomia Administrativa dos districtos açorianos estipulava ser “imprescindível aos nossos serviços públicos sobre o projectado regímen – da Livre Administração dos Açores pelos açorianos” – negrito e itálico nosso.12 José Enes, “O primeiro discurso autonómico dos Açores”, in “Livro Comemorativo do 1º Centenário da Autonomia dos Açores 1895-1995”, Colecção Autonomia, Ed. Jornal de Cultura, Ponta Delgada, 1995, pág. 89 e ss.13 E que se traduz de forma pacífica como a primeira e arrojada tentativa de concretização de um regime autonómico para os Açores. Veja-se neste sentido, José Guilherme Reis Leite, “A Autonomia dos Açores na Legislação Portuguesa 1892-1947”, Ed. da Assembleia Legislativa dos Açores, Horta, 1987, pág. 15. 14 Os Decretos 18 de Novembro de 1895 e de 6 de Outubro de 1898 estenderam aos Distritos de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo, respectivamente, o Regime Autonómico do Decreto de 2 de Março de 1895. De salientar que a aplicação do
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ténues, das primeiras reivindicações autonómicas em matéria
ambiental15 (mais concretamente no domínio público hídrico, veja-se o
artigo 23.º, n.º 25 do Decreto de Autonomia que determinava ser da
competência da Junta Geral do Distrito deliberar sobre “aguas minero-
medicinaes, publicas e communs (…)”)16. De relevar, ainda, nesta fase,
o Decreto do Governo da Ditadura n.º 15035 de 16 de Fevereiro de
192817 que no art. 10.º, n.º 25 determinava ser da competência das
Juntas Gerais dos distritos de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo,
deliberar sobre “os serviços agronómicos, pecuários e silvícolas, e
criação e custeio de escolas práticas e populares de agricultura,
campos experimentais e viveiros para arborização”.
No entanto, a primeira consagração expressa viria apenas com a
segunda vaga da fase reivindicativa açoriana, ergo, com a aprovação
do Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes de 31 de
Dezembro de 194018. Este diploma contém já vários preceitos com
Decreto aos Distritos era facultativa e devia ser solicitada pelos eleitores, “Quando em alguns districtos dos Açores assim o requeiram dois terços, ou pelo menos, dos cidadãos elegiveis para os cargos administrativos, poderá o governo, por decreto publicado na folha official, auctorizar que a esse districto se applique a organização, que com o presente decreto baixa assignada pelo ministro secretario d`estado dos negocios do reino” –cfr., artigo 1.º do decreto de 1895. Com o argumento da falta de receita o Distrito da Horta nunca pediu a aplicação do Regime Autonómico. 15 A justificação desta preocupação ambiental ancora-se na distância dos centros de decisão nacionais face ao Arquipélago dos Açores que no dizer de Aristides Moreira da Mota citando Émile de Lavayele, se faria “ reanimando os diferentes focos de vida política na província que se há de dar actividade às extremidades, que estão frias, e se há de aliviar a capital, que está sujeita a ataques de apoplexia politica”, concluindo depois que também nestas matérias “a autonomia dos Açores há-de ter a sua realização mais cedo ou mais tarde, bom ou mau grado do governo”, “Autonomia Administrativa dos Açores, Campanha de Propaganda em 1893, Reprodução de Artigos Publicados na Autonomia dos Açores”, Colecção Autonomia, Jornal de Cultura, Ponta Delgada, Março de 1994, pág. 70 e ss. 16 Sendo importante ainda referir que de acordo com o artigo 24.º do Decreto de Autonomia, as deliberações da Junta Geral, eram nestas matérias logo executórias. 17 “Este efémero decreto é a concretização, mais uma vez pela bitola mínima, das aspirações e esperanças dos autonomistas congregados à volta do Delegado Especial do Governo da República que o consegue fazer aprovar em Lisboa. Vinha consagrar algumas das velhas aspirações principalmente no campo financeiro e era considerada uma grande vitória pelos líderes deste 2º movimento autonomista” – cfr., José Guilherme Reis Leite, “A Autonomia dos Açores…, ob. cit., pag. 207. 18 Este Estatuto é o desenvolvimento das bases aprovadas em 1938, pela Lei n.º 1:196 de 30 de Abril. Segundo Reis Leite “foi uma lei que pretendeu ser e foi considerada
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
referência à protecção do ambiente e conservação da natureza nos
Açores. Senão vejamos: o artigo 18.º preceituava que: “No uso das
atribuições de fomento florestal, pertence às juntas19 deliberar: 1. Sôbre
a submissão de terrenos arborizados ou plantados para arborização,
pertencentes a entidades públicas ou particulares, ao regime florestal
parcial e ao simples de polícia; 2. Sôbre a regulamentação de cortes,
desbastes e derramas das essências florestais e do fabrico de carvão
vegetal; 3. Sôbre o povoamento florestal de terrenos baldios ou distritais;
4. Sobre polícia das matas e arvoredos e perseguição das transgressões;
5. Sobre criação e manutenção de viveiros florestais e introdução de
novas essências, dependendo esta do parecer favorável da Direcção
Geral dos Serviços Florestais e Aquìcolas”. Por sua vez, o artigo 24.º
previa que “cabia também à junta no uso das atribuições de
educação e cultura, (…) deliberar: 5. Sôbre a criação e manutenção
de jardins e de hortos botânicos; 8. sobre o inventário e protecção das
relíquias históricas, dos monumentos artísticos e das belezas naturais do
distrito; Por outra parte, o artigo 47.º preceituava que “Os Serviços
Agrícolas compreendem a Estação Agrária e a Regência Florestal e,
quando completos, constituem a Direcção de Agricultura do distrito”.
Já o artigo 50.º estipulava que competia à Estação Agrária: 5.
combater as moléstias das plantas e montar postos de sanidade
vegetal”. O artigo 52.º, determinava que: “Compete à Regência
Florestal: 1. Cuidar dos viveiros florestais; 2. Fazer a sementeira ou a
plantação dos terrenos escolhidos pela junta, de acordo com os
estudos silvicultores competentes; 5. Dirigir os serviços de conservação e
exemplar como exercício de direito administrativo. O seu autor, Marcelo Caetano, percorreu demoradamente os arquipélagos atlânticos portugueses para se inteirar das aspirações e razões dos seus habitantes e creio que conseguiu muitas e surpreendentes adesões às suas teorias e à causa do Estado Novo, tendo-se acreditado que se iniciava uma fase nova e promissora na vida administrativa autónoma” –, José Guilherme Reis Leite, “A Autonomia dos Açores…, ob. cit., pag. 311. 19 Órgão da administração distrital autónoma que exerce as suas “atribuições e competência directamente ou por intermédio de uma comissão executiva” – cfr., artigo 4.º, do Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes de 31 de Dezembro de 1940.
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de exploração das matas, de acôrdo com as normas legais e instruções
técnicas da Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas. 6.
Proceder aos trabalhos de conservação e tratamento dos jardins da
junta geral e de arborização das estradas distritais, conforme fôr acordo
com a Direcção de Obras Públicas, e à poda das árvores”.
Não obstante, necessário foi esperar pelo Decreto n.º 78/72, de 7 de
Março (Criação da Reserva Integral da Caldeira do Faial)20 e pelo
Decreto n.º 79/72, de 8 de Março (Criação da Reserva Integral da
Montanha do Pico)21 para encontrarmos os primeiros instrumentos de
conservação da biodiversidade açoriana através da criação de áreas
protegidas. Estes dois diplomas regionais surgem na sequência da Lei n.º
9/70, de 19 de Junho22 (Lei dos Parques Nacionais e Outros tipos de
Reservas) que estabeleceu as bases para a criação em Portugal de
áreas protegidas, mormente: Parques Nacionais (com reservas integrais,
naturais, de paisagem e turísticas); Reservas Botânicas; Reservas
Zoológicas e Reservas Geológicas.
A segunda fase da evolução do Direito do Ambiente nos Açores – a da
consagração constitucional – iniciou-se com o Decreto de aprovação
da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), de 10 de Abril de
1976 e com o Decreto-Lei n.º 318-B/76 de 30 de Abril – Estatuto Provisório
da Região Autónoma dos Açores. O Estatuto provisório da RAA, previa
no art. 2.º, n.º 2, que: “a Autonomia da Região dos Açores visa a
20 Designação reclassificada pelo Decreto Regional n.º 14/82/A, de 8 de Julho, passando de acordo com o artigo 1.º a denominar-se, Reserva Natural da Caldeira do Faial. Actualmente de acordo com o artigo 4.º, n.º 1, al. a) e artigo 7.º, n.º 1, al. a) do DLR n.º 46/2008/A de 7 de Novembro de 2008, integra o PNI do Faial. 21 Designação reclassificada pelo Decreto Regional n° 15/82/A, de 12 de Maio, passando de acordo com o artigo 1.º a denominar-se Reserva Natural da Montanha da Ilha do Pico. Actualmente de acordo com o artigo 4.º, n.º 1, al. a) e artigo 7.º, n.º 1, al. a), do Decreto Legislativo Regional n.º 20/2008/A de 9 de Julho, integra o PNI do Pico. 22 Revogada pelo Decreto-Lei n.º 613/76 de 27 de Julho, este por sua vez revogado, pelo artigo 37.º do DL n.º 19/93 de 23 de Janeiro que entretanto foi revogado pelo novo RCNB (vide artigo 53.º, n.º1, alínea h).
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento
económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem
como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade
entre todos os portugueses”. Por sua vez, o art. 22.º, al. b) atribuía
competência à Assembleia Legislativa Regional dos Açores (“ALRA”)
para legislar “com respeito da Constituição e das leis gerais da
República, em matérias de interesse específico para a Região que não
estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania”.
Este preceito deve ser lido em conjugação com os artigos 115.º, 227.º,
n.sº 1 e 2, 229.º, n.º 1, al. a), do Decreto de 10 de Abril de 1976 – 1.ª
versão da CRP.
Já com a aprovação do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma dos Açores pela Lei 39/80, de 5 de Agosto (“EPARAA”),
preceituava o artigo 1.º, n.º 1 que: “O arquipélago dos Açores (…)
constitui uma região autónoma da República Portuguesa, dotada de
personalidade jurídica de direito público”. De acordo com o artigo 26,
n.º 1, al. c), a ALRA tinha competências para “legislar, dentro dos limites
constitucionais sobre as matérias de interesse específico para a Região
que não estejam reservadas à competência própria dos Órgãos de
Soberania”. Nesta primeira versão do Estatuto, as matérias de interesse
específico ambiental regional vinham no cardápio do artigo 27.º,
encastoadas com a política de solos e ordenamento do território (cfr.,
al. “i) política de solos, ordenamento do território e equilíbrio
ecológico”)23. Em matéria de direito internacional do ambiente, o
legislador açoriano teve já ali o cuidado de preceituar no artigo 61.º,
que dizem directamente respeito à Região: “alínea g) poluição do
mar”; alínea h) conservação e exploração de espécies vivas”.
23 Para uma melhor compreensão do conceito de interesse específico, vide Jorge Miranda, “O interesse específico das Regiões Autónomas”, in A autonomia como fenómeno cultural e político, Angra do Heroísmo, 1987, pp. 105 ss, e Paulo Otero, “A competência legislativa das Regiões Autónomas”, in Revista Jurídica, nº 8, 1986, pp. 149 ss..
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
A primeira revisão ao Estatuto pela Lei 9/87, de 26 de Março, não trouxe
novidades em matéria de tutela da biodiversidade e de conservação
da natureza açoriana.
Com a segunda revisão operada ao EPARAA, pela Lei 61/98, de 27 de
Agosto, consagrou-se pela primeira vez como matéria de interesse
específico regional, no artigo 8.º, alínea c), “a defesa do ambiente e do
equilíbrio ecológico”; bem como na alínea d) “a protecção da
natureza e dos recursos naturais bem como a sanidade pública, animal
e vegetal”. Trata-se, pois, da primeira manifestação estatutária sobre a
defesa do ambiente, ficando finalmente autonomizada do equilíbrio
ecológico, bem como da protecção da natureza e dos recursos
naturais – leia-se a tutela e conservação da biodiversidade. Nesta
verdadeira fase de consagração das competências constitucionais e
estatutárias da RAA, em matéria ambiental, verificamos uma intensa
labuta do legislador insular, manifestada pelos inúmeros diplomas
regionais sobre a conservação da natureza e da biodiversidade
açoriana24.
24 V.g, só em decretos legislativos regionais da ALRA, temos: Decreto Legislativo Regional nº 2/80/A, de 7 de Fevereiro [Medidas de Protecção para a Paisagem das Sete Cidades]; Decreto Legislativo Regional nº 10/82/A, de 18 de Junho [Criação da Reserva Natural da Lagoa do Fogo]; Decreto Legislativo Regional nº 14/82/A, de 8 de Julho [Reserva Natural da Caldeira do Faial]; Decreto Legislativo Regional nº 15/82/A, de 9 de Julho [Reserva Natural da Montanha da Ilha do Pico]; Decreto Legislativo Regional nº 13/84/A, de 20 de Fevereiro [Criação da Reserva Natural Parcial do Ilhéu do Topo]; Decreto Legislativo Regional nº 13/84/A, de 31 de Março [Paisagem protegida do Monte da Guia]; Decreto Legislativo Regional nº 14/84/A, de 21 de Abril [Criação da Reserva Natural Parcial da Lagoa da Caldeira de Santo Cristo]; Decreto Legislativo Regional nº 7/87/A, de 29 de Maio [Reserva Natural da Baía dos Anjos, Reserva Natural da Baía da Maia, Reserva Natural da Baía da Paria e Reserva Natural da Baía de São Lourenço] Decreto Legislativo Regional nº 13/87/A, de 21 de Julho [Criação da Reserva Natural Geológica do Algar do Carvão]; Decreto Legislativo Regional nº 11/88/A, de 4 de Abril [Criação da Reserva Natural dos Ilhéus das Formigas]; Decreto Legislativo Regional nº 6/89/A, de 18 de Julho [Criação da Área Ecológica Especial da Lagoa de Santo Cristo]; Decreto Legislativo Regional nº 21/93/A, de 23 de Dezembro [Adaptação à Região Autónoma dos Açores do regime jurídico estabelecido pelo DL nº 19/93, de 23 de Janeiro]; Decreto Legislativo Regional nº 12/96/A, de 27 de Junho [Classificação da Paisagem Protegida de Interesse Regional da Cultura da Vinha da Ilha do Pico]; Decreto Legislativo Regional n.º 9/99/A, de 22 de
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Com a revisão constitucional de 2004, inicia-se então a terceira fase da
evolução do direito do ambiente na RAA – a da expansão
constitucional – com importantes manifestações na protecção da
biodiversidade, com relevo para as áreas protegidas açorianas.
Afirmação fundada em duas ordens de razões.
A primeira delas, porque com a revisão constitucional de 2004, o
legislador constitucional terminou com a referência ao « interesse
específico» regional. Com “a actual delimitação do poder legislativo
regional, proveniente da revisão de 2004, traduz, como se assinalou,
uma profunda redefinição da autonomia legislativa da Regiões
Autónomas, com a queda de praticamente todos paradigmas à luz dos
quais esta se tinha vindo a desenvolver. Concretamente, se por um
lado, se procedeu à supressão do conceito de interesse específico
como fundamento e limite para o exercício do poder legislativo
regional, bem como da categoria de lei geral da república, passando
ainda a admitir-se que as Assembleias Legislativas das Regiões
Autónomas legislem em determinadas matérias de reserva relativa da
Assembleia da República mediante autorização desta [artigo 227.º, n.º
1, alínea b)], a verdade é que, por outro lado, a sexta revisão
constitucional introduziu uma referência expressa à limitação dos
poderes legislativos regionais pelo respectivo âmbito regional e, em
termos de matérias, passou a exigir que as mesmas sejam “enunciadas
no Estatuto Político-Administrativo da respectiva Região Autónoma”
[artigos 112.º, n.º 4; 227.º, n.º 1, alínea a; e 228.º, n.º 1], devendo as
Março [Observação de cetáceos]; Decreto Legislativo Regional n.º 32/2000/A, de 2 de Novembro [Medidas Cautelares de preservação e salvaguarda do património natural e cultural das fajãs da ilha de Sã Jorge]; Decreto Legislativo Regional n.º 18/2002/A, de 23 de Maio [Adapta à Região o Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril, que procede à revisão da transposição para o direito interno das directivas comunitárias relativas à conservação das aves selvagens (Directiva Aves) e à conservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens (Directiva Habitats)]; Decreto Legislativo Regional n.º 10/2003/A, de 22 de Março [Altera o Decreto Legislativo Regional n.º 9/99/A, de 22 de Março – Observação de cetáceos]; Decreto Legislativo Regional n.º 26/2003/A, de 27 de Maio – [Reclassificação da Reserva Natural dos Ilhéus das Formigas em Reserva Natural Regional dos Ilhéus das Formigas];
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
respectivas disposições estatutárias ser aprovadas por maioria de dois
terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta
dos Deputados em efectividade de funções [artigo 168.º, n.º 6, alínea
f)]”25.
Assim, a Constituição passou de forma completamente inovatória, a
reconhecer ao legislador açoriano, a possibilidade de emanar, sem
exigência de observância do disposto em Leis da República, legislação
cujo âmbito de aplicação se circunscreva ao território das Regiões
Autónomas (onde se inclui, as matérias ambientais)26. Sendo pacífico
que ”a competência legislativa primária pelas Regiões Autónomas está
hoje apenas sujeita aos três requisitos seguintes: i) em termos positivos, a
Constituição impõe que as matérias estejam “enunciadas no Estatuto
Político-Administrativo da respectiva Região Autónoma”; ii) ainda
positivamente é necessário que se trate de matéria de “âmbito
regional”; iii) por fim, exige-se ainda que se trate de matérias “que não
estejam reservadas aos órgãos de soberania” [artigos 112.º, n.º4, 227.º,
n.º1, alínea a); e artigo 228.º, n.º 1]” (negrito nosso)27.
Mas, mais do que isso, ao lado da competência legislativa regional
primária em matéria ambiental, com a Revisão Constitucional de 2004,
o parlamento regional açoriano passou a poder legislar, “quando e na
medida em que para tanto estivessem autorizados, em algumas das
matérias da reserva relativa da competência da Assembleia da
República [artigo 227.º, n.º1, alínea b)]28, id est, a competência 25 Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, III, 2005, p. 344.26 Veja-se neste sentido, Rui Medeiros, Tiago Fidalgo de Freitas e Rui Lanceiro, “Enquadramento da Reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores”, Lisboa, 2006, pág. 62.27 Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., pág. 345.28 E essa destrinça é de grande importância pois a versão anterior da Lei Fundamental, apenas atribuía às Assembleias Legislativas Regionais a possibilidade de afastar os princípios fundamentais das leis gerais da república em matérias não reservadas – vide neste sentido, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed, Coimbra, pág. 813.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
legislativa regional delegada pode versar sobre as bases de protecção
da natureza e do equilíbrio ecológico.
A 3ª revisão operada ao EPARAA, pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro,
aproveitando o «balanço» iniciado com a Revisão de 2004, terminou
com o elenco de matérias de interesse específico previstas no artigo 8.º
da versão anterior, onde constava a referência ao “equilíbrio
ecológico” ou à “protecção da natureza”. Em seu lugar, com a 3ª
Revisão do EPARAA, as matérias ambientais passaram a ser tratadas
formalmente como um dos objectivos fundamentais da autonomia
açoriana – [cfr., artigo 3.º, al. m)“A Região prossegue, através da acção
dos órgãos de governo próprio, os seguintes objectivos: a defesa e
protecção do ambiente, da natureza, do território, da paisagem e dos
recursos naturais”. Preceito que deve ser lido em conjugação com outro
objectivo primordial previsto no artigo 3.º, alínea e), a garantia do
desenvolvimento equilibrado de todas e cada uma das ilhas”] de
competência legislativa própria da ALRA [cfr., artigo 37.º, n.sº 1 e 2, e
artigo 57.º, n.º2, al. a) a protecção do ambiente, promoção e equilíbrio
ecológico e defesa da natureza e dos recursos naturais, incluindo a
fiscalização e monitorização dos recursos naturais; b) As áreas
protegidas e classificadas e as zonas de conservação e de protecção,
terrestres e marinhas; c) a reserva ecológica regional; d) os recursos
naturais, incluindo habitats, biodiversidade, fauna, flora, recursos
geotérmicos, florestais e geológicos”].
A segunda razão prende-se com o devolver à RAA da competência
para a transposição de directivas comunitárias em matéria ambiental –
vide artigo 112.º, n.º 8 da CRP, conjugado com o artigo 3.º, alínea m),
artigo 40.º e corpo do artigo 57.º, todos do EPARAA29.
29 Recorde-se que, até à quarta revisão constitucional, a questão não era objecto de decisão explícita na Lei Fundamental, embora diversos Autores esgrimissem que as Regiões Autónomas tinham competência para emanarem um tal acto de
128
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
3. O Regime jurídico da Rede Regional de Áreas Protegidas dos Açores
(RRAPA): Linhas de (des)continuidade com a Rede Fundamental de
Conservação da Natureza (RFCN)
Instrumento de eleição do legislador açoriano na conservação da
natureza e da biodiversidade insular, a protecção das áreas protegidas
açorianas deu os seus «primeiros passos» com o Decreto n.º 78/72, de 7
de Março (Criação da Reserva Integral da Caldeira do Faial) e com o
Decreto n.º 79/72, de 8 de Março (Criação da Reserva Integral da
Montanha do Pico). Nesta altura, o legislador açoriano afinava pelo
mesmo diapasão do legislador nacional. Por outras palavras, ao longo
dos anos, foram-se aprovando diversos diplomas regionais sobre as
áreas protegidas dos Açores sem que, entretanto, existisse um pilar de
sustento, ergo, uma rede regional açoriana devidamente classificada e
estruturada.
Prosseguindo, em plena fase de consagração constitucional e
estatutária, o legislador açoriano com o DLR 21/93/A, de 23 de
Dezembro adaptou o regime estabelecido pelo DL 19/93, de 23 de
Janeiro30, que no seu art. 36.º preceituava que “o regime estabelecido
no presente diploma aplica-se às Regiões Autónomas dos Açores e da
Madeira, sem prejuízo de uma adequação à especificidade regional a
introduzir por decreto legislativo regional”. E o legislador açoriano não
foi por «meias-medidas». Com o DLR 21/93/A, de 23 de Dezembro,
procurou, por um lado, a superação da limitação excessivamente
restritiva que a RNAP – impunha ao sistema classificativo das áreas
transposição, se e na medida que tratasse de matéria de interesse específico, cfr., por todos, Marcelo Rebelo de Sousa, “A transposição de directivas comunitárias para a ordem jurídica nacional”, in Legislação, n.º s 4-5, 1992, pág. 82. 30 Revogado pelo novo RCNB, cfr., artigo 53.º, n.º1, alínea h). Sobre este enquadramento legal vide Maria Alexandra Aragão, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede Natura 2000 – alguns problemas”, in Revista do CEDOUA, 2002/2, pp. 13 segs, esp. 15-17.
129
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
protegidas de interesse regional – circunscrito à categoria de
«paisagem protegida»31 prevista artigo 2.º, n.º 4 do DL 19/93, de 23 de
Janeiro32 –, e por outro lado, definiu o departamento regional que teria
a competência para gerir as áreas protegidas de interesse regional,
(cfr., artigo 5.º, n.º 3 - competência da então Secretaria Regional do
Turismo e Ambiente). Por fim, adaptou o regime contra-ordenacional à
realidade açoriana (cfr. art. 9.º, n.sº 1 e 2).
Trata-se, a nosso ver, de um diploma ambicioso que ao abrigo das
competências estatutárias e constitucionais, (tendo em contas as reais
especificidades regionais açorianas), consagrou expressamente que as
“matérias relacionadas com a protecção, preservação e valorização
do património natural e cultural são, indubitavelmente de interesse
específico para a Região” – cfr., preâmbulo do DLR 21/93/A de 23 de
Dezembro. Deste modo, o artigo 5.º, n.º 1, do então em vigor DLR
21/93/A de 23 de Dezembro, definia que na RAA, as áreas protegidas
de interesse regional, (obedecendo aos critérios estabelecidos no artigo
5.º a 9.º do DL 19/93, de 23 de Janeiro), seriam: a) Parque regional; b)
Reserva Natural Regional; c) Parque Natural Regional; d) Monumento
Natural Regional; e) Paisagem Protegida de Interesse Regional.
Podemos, assim, vislumbrar neste diploma, o crescer dos «primeiros
ramos» das áreas protegidas na RAA.
31 Que na definição do, então em vigor, art. 9.º, n.º1, era o de “área com paisagens naturais, seminaturais e humanizadas, de interesse regional ou local, resultantes da interacção harmoniosa do homem e da Natureza que evidencia grande valor estético ou natural”. 32 E a nosso ver muito bem. A limitação imposta pelo DL 19/93, de 23 de Janeiro, demonstrava a, então, visão minimalista e por vezes de algum alheamento do legislador nacional face às especificidades regionais na conservação das áreas protegidas na RAA. De notar, que esta incompletude foi suprimida pelo DL 142/2008, de 24 de Julho que no seu artigo 11.º, n.º 4, prevê que: “com excepção da tipologia «parque nacional», as áreas protegidas de âmbito regional ou local podem adoptar qualquer das tipologias referidas no n.º 2, devendo as mesmas ser acompanhadas da designação «regional» ou «local», consoante o caso”. Por sua vez as tipologias referidas no art.11.º, n.º 2, do DL 142/2008, de 24 de Julho, são as de parque natural (al. b), reserva natural (al. c), paisagem protegida (al. d) e monumento natural (al. e).
130
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Todavia, o legislador açoriano não se ficou por aqui. Lançadas que
estavam as bases – leia-se a criação e delimitação de um conjunto de
áreas protegidas de interesse regional – o próximo passo deu-se com
DLR 15/2007/A, de 25 de Junho33-34. Falamos, pois, da revisão da RRAPA.
Os objectivos gerais que balizaram esta alteração legislativa foram os
de: artigo 2.º, n.º 1, al. “a)alcançar a afirmação da identidade e valor
de cada área protegida terrestre ou marinha; b) estabelecer
mecanismos de conservação, preservação, e de gestão dos
ecossistemas, da biodiversidade e dos valores e recursos naturais,
paisagísticos, científicos e espirituais dos Açores; c) contribuir com a
constituição de uma rede fundamental de conservação da natureza
que articule os diversos regimes de protecção e salvaguarda de
recursos e valores naturais; d) criar unidades de gestão das áreas
protegidas ao nível de cada ilha”.
Uma das principais novidades introduzidas pela RRAPA prende-se com a
reclassificação das áreas protegidas já existentes na RAA. Segundo as
33 Que revogou o DLR 21/93/A de 23 de Dezembro, cfr., art. 39.º n.º1, al. b).34 De relevar que, ao contrário do DLR 21/93/A de 23 de Dezembro, o legislador açoriano procurou respaldo no artigo n.º 31.º, n.º 1, alínea e) do EPARAA e no artigo 227.º, n.º 1, alínea c) da CRP – com a segunda alteração dada pela Lei 61/98 de 27 de Agosto – que definia ser da competência da ALRA, desenvolver em função do interesse específico da Região, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as previstas nas alíneas f), g) h) e n), t) e u) do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição. Verificamos pois, que o ALRA, cuidou de desenvolver a LBA, mormente da alínea e), artigo 4.º previa a adopção de medidas que visem, designadamente “A conservação da Natureza, o equilíbrio biológico e a estabilidade dos diferentes habitats, nomeadamente através da compartimentação e diversificação das paisagens, da constituição de parques e reservas naturais e outras áreas protegidas, corredores ecológicos e espaços verdes urbanos e suburbanos, de modo a estabelecer um continuum naturale”. Sendo que de acordo com o artigo 29.º, n.º 2, da LBA, “As áreas protegidas poderão ter âmbito nacional, regional ou local, consoante os interesses que procuram salvaguardar”. Por sua vez o art. 29.º, n.º 3 determina que a “ iniciativa da classificação e conservação de áreas protegidas, de lugares, sítios, conjuntos e objectos classificados será da competência da administração central, regional ou local ou ainda particular”, cabendo nos termos do n.º 4 “A regulamentação da gestão de áreas protegidas, lugares, sítios, conjuntos e objectos classificados consoante o seu âmbito compete à administração central, regional ou local”.
131
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
alterações introduzidas, constatamos uma salutar uniformização e
compatibilização das classificações das áreas protegidas no
arquipélago açoriano com os critérios da União Internacional para a
Conservação da Natureza [“IUCN”]. O que se traduzirá – como se pode
ler no seu preâmbulo – no “reconhecimento internacional dos valores
conservacionistas, paisagísticos e científicos dos Açores”. Ora, esta
novidade é muito importante na medida em que permite desenvolver o
conceito de rede ecológica de forma coerente, em detrimento de
unidades de gestão isoladas, e estabelecendo um elevado nível de
identificação entre os valores existentes a proteger, sejam estes naturais,
paisagísticos ou culturais, e o nível estatutário de tutela atribuído às
áreas protegidas – cfr., artigo 2.º, n.º1, alínea c), do DLR 15/2007/A, de 25
de Junho.
Nas intervenções sobre componentes ambientais, naturais ou humanas,
haverá que ter sempre em conta as consequências que qualquer
dessas intervenções (efectivadas ao nível de cada um dos
componentes) possam ter sobre as restantes ou sobre as respectivas
interacções, maximizando assim a disposição do artigo 32.º da LBA.
Como tipos de áreas protegidas, o novo diploma consagra na al. a) do
artigo 8.º, a figura do Parque Natural de Ilha (“PNI”), “constituído pelas
áreas terrestres classificadas no território de cada ilha, podendo
abranger áreas marítimas até ao limite exterior do mar territorial”, cfr.,
art. 9.º e a figura do Parque Marinho do Arquipélago dos Açores
(“PMA”) – cfr., artigo 8.º, alínea b), formado pelas áreas marinhas
classificadas, “que integram uma única unidade de gestão e se situam
para além do limite exterior do mar territorial” – cfr., art. 10.º, n.º 1.
132
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Actualmente seis das nove ilhas do Arquipélago dispõem de um PNI35
que funciona como “a unidade de gestão base da Rede Regional de
Áreas Protegidas da Região Autónoma dos Açores” – cfr., artigo 17.º, n.º
1. Por sua vez, a criação do PMA visa permitir a adopção de “medidas
dirigidas para a protecção das fontes hidrotermais, montes e outras
estruturas submarinas, bem como dos recursos, das comunidades e dos
habitats marinhos sensíveis” – cfr., artigo 10.º, n.º 2, al. a) e “gerir as
fontes hidrotermais, os montes e outras estruturas submarinas
classificadas ou outras que venham a ser objecto de classificação no
arquipélago dos Açores”, cfr., artigo 10.º, n.º 2, al. b). Segundo a
classificação promovida pela IUCN, a RRAPA é, de acordo com o seu
artigo 11.º, composta pelas seguintes categorias: Reserva natural;
Parque natural; Monumento natural; Área protegida para a gestão de
habitats ou espécies; Área de paisagem protegida; Área protegida de
gestão de recursos.
Deste modo, almejando a reforma do modelo de Classificação, Gestão
e Administração, através da RRAPA, criou-se um modelo de gestão, o
PNI, “assente em critérios de gestão que uniformizem a diversidade de
designações das áreas classificadas na Região e concentrem
competências numa unidade territorial de ilha enquanto unidade
básica de gestão condensada num único órgão de gestão” –, vide
preâmbulo do DLR 15/2007/ A, de 25 de Junho.
Repousam assim na própria LBA alguns dos fundamentos que balizaram
a opção realizada pelo DLR 15/2007/A, de 25 de Junho, como sejam, a 35 São eles: O Parque Natural da Ilha de Santa Maria criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 47/2008/A, de 7 de Novembro ; O Parque Natural da Ilha de São Miguel criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 19/2008/A, de 8 de Julho; O Parque Natural da Ilha Graciosa criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 45/2008/A, de 5 de Novembro; O Parque Natural da Ilha do Pico criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 20/2008/A, de 9 de Julho; O Parque Natural da Ilha do Faial criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 46/2008/A, de 7 de Novembro; O Parque Natural da Ilha do Corvo criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 44/2008/A, de 5 de Novembro.
133
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
conservação da natureza, o equilíbrio biológico e a estabilidade
geológica dos diferentes habitats, mormente pela constituição de áreas
protegidas, corredores ecológicos e espaços verdes urbanos e
suburbanos, num verdadeiro continuum naturale36.
Feita esta «visita guiada» pela RRAPA, podemos, com alguma
esperança, dizer que estão lançadas as sementes para que a tutela da
biodiversidade nos Açores cresça e floresça nos trilhos de um
desenvolvimento autonómico sustentável. Saiba o legislador açoriano
continuar neste trilho escorreito e sistematizado, sem ceder, quer às
pressões urbanísticas, demográficas e económicas que cada vez mais
tomam de assalto a RAA, quer à tentação de se perder em burocracias
legislativas de redes e sistemas (para isso já basta a labiríntica RFCN)37.
36 À laia de exemplo, vejamos a Ilha de São Miguel, que hoje possui um PNI criado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 19/2008/A, de 8 de Julho, e que instituiu 23 áreas protegidas divididas por 5 categorias, a saber: 1) Categoria de Reserva Natural [composta pela Reserva Natural da Lagoa do Fogo e pela Reserva Natural do Pico da Vara]; 2) Categoria de Monumento Natural [composta pelo Monumento Natural da Caldeira Velha; Monumento Natural da Gruta do Carvão e pelo Monumento Natural do Pico das Camarinhas - Ponta da Ferraria]; 3) Categoria de Área Protegia para a Gestão de Habitats ou Espécies [composta pela Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies do Ilhéu de Vila Franca do Campo; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Serra de Água de Pau; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Ronqueara e Planalto dos Graminhais; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Ponta do Cintrão; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Ponta do Argel; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies das Feteiras; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Ponta do Escalvado; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Ponta da Bretanha; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies do Faial da Terra; Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Ferraria e pela Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies da Lagoa do Congo]; 4) Categoria de Área de Paisagem Protegida [composta pela Área de Paisagem Protegida das Sete Cidades e pela Área de Paisagem Protegida das Furnas]; 5) Área Protegida de Gestão de Recursos [composta pela Área Protegida de Gestão de Recursos da Caloura - Ilhéu de Vila Franca do Campo; Área Protegida de Gestão de Recursos da Costa Este; Área Protegida de Gestão de Recursos da Ponta do Cintrão - Ponta da Maia; Área Protegida de Gestão de Recursos do Porto das Capelas - Ponta das Calhetas e pela Área Protegida de Gestão de Recursos da Ponta da Ferraria - Ponta da Bretanha]. 37 Que “neste esquema, onde se arrumaram bem “redes” e “sistemas”, mantém afinal tudo como dantes, não se surpreendendo aquilo que decorre, como objectivo, da Estratégia Nacional: a uniformização dos regimes atinentes à conservação da Natureza”, José Mário Ferreira de Almeida, “O velho, o novo, e o reciclado no direito da conservação da natureza”, neste e-book.
134
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
4. Ultraperiferia, economia regional do ambiente e a gestão das áreas
protegidas na RAA: os Açores e os desafios do desenvolvimento
autonómico sustentável
Continuando a nossa «caminhada» pelos trilhos da RRAPA, chegada é a
hora de nos debruçarmos sobre um ponto essencial, o da sua gestão.
Verificamos da análise do ponto anterior que o PNI funciona como
unidade de gestão base da RRAPA. (cfr. art. 17.º. n.º 1) extensível a
todas as ilhas do Arquipélago açoriano (cfr. art. 17.º, n.º 2).
Anatomizando agora a distribuição das competências, cada PNI dispõe
de uma estrutura orgânica composta por um conselho de gestão (cfr.
art. 29.º, n.º 1, al. a), com competências para, em geral, administrar os
interesses específicos da área protegida (cfr. art. 30.º, n.º 2), e por um
conselho consultivo [cfr. art. 29.º, n.º 1, al. b)], com competência, para
em geral, apreciar as actividades desenvolvidas na área protegida (cfr.
art. 31.º). Tanto o órgão de gestão, como o órgão consultivo do PNI,
terão as suas competências específicas, composição, número, modo
de designação dos seus membros, estrutura e funcionamento, definidas
no DLR que proceder à criação do mesmo (cfr. art. 29.º, n.º 2).
Vejamos então o PNI da Ilha de São Miguel (criado pelo DLR 19/2008/A,
de 8 de Julho), para percebermos um pouco mais da sua dinâmica de
funcionamento enquanto unidade de gestão base da RRAPA. Entre os
principais objectivos da criação do PNI de São Miguel, avultam os de
prosseguir “ […] com a estratégia definida para a conservação da
natureza e preservação da biodiversidade, desenvolvimento
sustentável e qualidade de vida” – cfr., art. 35.º, n.º 1. A gestão do
Parque Natural compete à Secretaria Regional do Ambiente e do Mar
(cfr. art. 36.º, n.º 1), e é balizada pelos princípios da gestão por
objectivos; investigação e promoção do conhecimento científico;
135
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
qualidade e eficiência na prestação de serviços; simplificação
administrativa e, avaliação sistemática de resultados (cfr. corpo do art.
36.º, n.º 2).
De realçar, a possibilidade que o DLR abriu à prossecução da gestão do
Parque Natural, [para além do conselho de gestão - nos termos do arts.
37.º, n.º 1, al. a), 38.º e 39.º -, e da estrutura de gestão que represente os
serviços em matéria do ambiente, ordenamento do território e recursos
hídricos, de ordenamento florestal e agrícola e as autarquias locais -,
nos termos dos arts. 36.º, n.º 3 e 43.º, n.º 6], “por uma entidade ou
entidades colectivas terceiras, em regime de parceria entre entidades
públicas ou entre estas e parceiros privados, nos termos definidos no
presente diploma” – cfr., art. 36.º, n.º 3, parte final. Sendo que, a opção
de gestão do Parque Natural pela parceria público-privada (carecendo
em todo o caso de aprovação do Conselho do Governo Regional) –
pode abranger a “totalidade ou apenas algumas das áreas protegidas
que o integram (…)” – cfr., art. 36.º, nºs 4 e 5, e será realizada nos termos
“da lei geral da contratação pública e do regime específico das
mesmas” – cfr., artigo 36.º, n.º 4. Por fim, também “com observação da
lei geral da contratação pública, podem ser realizadas concessões a
entidades públicas ou privadas ou ainda a associações científicas e
associações sem fins lucrativos e de utilidade pública destinadas à
gestão e ou exploração do Parque Natural ou de determinadas áreas
ou recursos das áreas protegidas que o integram e, ainda, prosseguir
formas de iniciativa business & biodiversity (B&B) da União Europeia” –
cfr., artigo 36.º, n.º 6.
Toda esta multiplicidade de modelos de gestão de que o PNI de São
Miguel é paradigma, tem como objectivo, promover a articulação da
biodiversidade açoriana com os agentes económicos que actuam na
RAA. É hoje inegável: o Arquipélago dos Açores, pela diversidade da
136
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
sua oferta ambiental, assume-se, como um pólo turístico e cultural de
excelência.
No entanto, estes modelos de gestão, terão de prever medidas no
sentido de minimizar os impactos negativos sobre o património natural
açoriano, deixando ao mesmo tempo que os ecossistemas açorianos
cumpram o seu papel: o proporcionar a todos os cidadãos (que vivem
ou visitem o Arquipélago), a qualidade de vida procurada, compatíveis
com a preservação do capital natural açoriano.
Este é o desafio ímpar que a tutela da biodiversidade na RAA enfrenta:
o de conjugar a emergência de uma economia regional e
ultraperiférica da biodiversidade com um desenvolvimento autonómico
sustentável38.
É que, para além da crescente pressão demográfica e urbanística39,
acrescem ao Arquipélago Açoriano, dois factores históricos
importantíssimos, os de ser do ponto de vista geográfico40, ambiental41,
38 Para uma análise do conceito de desenvolvimento sustentável à luz do direito comunitário vide por todos, Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, “O ambiente no tratado de Lisboa: uma relação sustentada”, in Textos Dispersos de Direito do Ambiente, III, Lisboa, 2010, pág. 374 e ss. 39 Segundo, as últimas estatísticas, a estimativa de população residente nos Açores em 2008 era de 244 780 indivíduos. Consulta disponível in http://estatistica.azores.gov.pt/conteudos/Relatorios/lista_relatorios.aspxidc=29&idsc=1140&lang_id=1 40 As nove ilhas que formam hoje o Arquipélago dos Açores situam-se no Atlântico Norte entre as latitudes norte 36, 55, 39 e 43, e as longitudes de 25 31 Oeste de Greenwich, ficando a 760 milhas a Oeste de Lisboa e a 2.110 a Leste de Nova Iorque. Da leitura destas coordenadas, podemos constatar que os Açores estão numa localização privilegiada entre o continente Europeu e Americano.41 Esta particularidade ambiental decorre, em parte, da localização da RAA na Região Biogeográfica da Macaronésia. Esta Região inclui as ilhas Selvagens e os arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. A Macaronésia inclui também o chamado “enclave macaronésio africano” que corresponde à zona Ocidental da costa Africana situada entre as Canárias e Cabo Verde. Toda esta região reparte muitas particularidades biológicas e encerra comunidades de plantas e animais únicas. De acordo com o último Relatório do estado do ambiente nos Açores elaborado em 2005 pela Secretaria Regional do Ambiente e do Mar do Governo Regional dos Açores: “Apesar da sua riqueza natural os Açores são o arquipélago da Região Biogeográfica da Macaronésia que apresenta menor biodiversidade,
137
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
cultural e político-administrativo, uma região, quer insular42, quer
ultraperiférica43-44. Embora, sabendo que os conceitos de “ilha” e
“região ultraperiférica” não se confundem, o certo é que é em torno
deste duplo eixo dinâmico que a autonomia açoriana se aprofunda e
desenvolve45.
Ancorado numa riqueza singular em termos de biodiversidade46, a
exploração das potencialidades açorianas, surge perante a economia
regional açoriana como uma verdadeira oportunidade de negócio.
Recentemente, a prestigiosa revista “National Geografic Traveller”, na
sequência de uma avaliação feita por dezenas de peritos internacionais
independentes, qualificou os Açores como o segundo melhor destino,
no mundo, de turismo sustentável em ilhas.
resultado de factores como o isolamento, a dispersão geográfica, a idade geológica, o vulcanismo activo e a sua posição durante a glaciação do Pleistocénico. Outros factores tais como a ocupação humana ou o uso do solo também afectam a biodiversidade, ao mesmo nível do que a pressão exercida sobre a costa ou os recursos disponíveis”, vide pág. 52 do Relatório, disponível in: http://www.azores.gov.pt/Portal/pt/entidades/sram- dra/textoImagem/Relatorio+do+estado+do+ambiente.htm42 “ (…) insularidade, importante factor histórico de isolamento das populações insulares, está na base das especificidades económicas, sociais e culturais de ambos os arquipélagos e justifica, no plano político, a relevância da autonomização de uma vontade colectiva, diferente da vontade geral, para prossecução dos interesses regionais, diferentes do interesse nacional», Vieira de Andrade, «Autonomia regulamentar e reserva de lei», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Coimbra, 1989, p. 22, em nota.43 Ao que poderemos acrescentar também, outro factor, o clima. Aliás, o “facto de o clima das ilhas atlânticas dos Açores, alguma coisa de variado, imprevisível e altamente condicionante da vida” – José Guilherme Reis Leite, Política e Administração nos Açores de 1890 a 1910, O 1º Movimento Autonomista, in Jornal de Cultura, Colecção Autonomia, pág. 21. 44 A UE reconheceu desde 1999 as realidades geográficas e económicas diferentes das RUP em relação às outras regiões europeias: afastamento, insularidade, pequena superfície, relevo e clima difíceis e dependência económica em relação a um pequeno número de produtos, cfr., n.º 2 do artigo 349 do TFUE.45 O actual EPARAA preceitua no artigo 3.º, al. m), que é objectivo fundamental da autonomia açoriana atenuar os “efeitos desfavoráveis de localização ultraperiférica da Região, da insularidade e do isolamento” – itálico nosso. 46 Para uma análise detalhada da biodiversidade terrestre e marinha no Arquipélago dos Açores, vide Borges, P.A.V., Costa, A., Cunha, R., Gabriel, R., Gonçalves, V., Martins, A.F., Melo, I., Parente, M., Raposeiro, P., Rodrigues, P., Santos, R.S., Silva, L., Vieira, P. & Vieira, V. (Eds.) (2010). A list of the terrestrial and marine biota from the Azores.
138
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Um verdadeiro exemplo e mais-valia para a Europa. Neste âmbito, a
iniciativa Business & Biodiversity (B&B) da União Europeia constitui um
excelente ponto de partida para garantir um maior envolvimento das
empresas regionais açorianas e das actividades económicas nas
estratégias de conservação da natureza açoriana, pois permite, por um
lado, a adesão voluntária por parte das empresas, e por outro lado,
identifica as acções e projectos a desenvolver que permitam integrar
progressivamente a biodiversidade nas estratégias empresariais.
Tal contribui igualmente para a sua valorização económica, social e
ambiental. Deste ponto de vista, a consagração no PNI da Ilha de São
Miguel da iniciativa B&B visa a adesão a um conjunto de princípios
orientadores da acção e, por outro, a adopção de uma metodologia
de integração da biodiversidade na decisão empresarial. Convém não
esquecer que num mercado concorrencial global, a maximização da
procura e das especificidades regionais do Arquipélago Açoriano
poderão trazer repercussões ambientais muito positivas para a RAA.
No fim desta breve excursão pela gestão das áreas protegidas da
RRAPA, reservamos os últimos apontamentos para, nesta sede, falarmos
da Sociedade de Gestão Ambiental e Conservação da Natureza, S.A.
— AZORINA, S.A. (“AZORINA”), criada pelo DLR 16/2010/A, de 12 de
Abril.
Conforme se pode ler no preâmbulo do diploma, a AZORINA, surgiu
numa óptica de “intervenção empresarial na área da participação,
informação, divulgação, sensibilização, educação e formação dos
cidadãos em matéria de ambiente” e “ impõe-se, desde logo, pela
necessidade de reforçar a participação pública e aumentar o valor
natural dos Açores, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável”.
O seu objecto principal visa a “a promoção de acções de gestão
139
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
ambiental e de conservação da natureza e dos recursos naturais,
incluindo actividades no domínio da promoção da participação
pública em matéria ambiental e da informação, divulgação e
educação ambiental” – cfr., art. 2.º, n.º 1, do DRL 16/2010/A, de 12 de
Abril.
Por sua vez, com especial impacto na gestão da RRAPA, a AZORINA
concretizará o seu objecto através: “da gestão integrada das áreas
protegidas terrestres e marinhas, valorizando os recursos naturais e
paisagísticos e a biodiversidade e geodiversidade do arquipélago dos
Açores” –, cfr., artigo 2.º, n.º 2, al. a); “da realização de projectos e
acções destinados a proteger a biodiversidade, a geodiversidade e os
recursos ambientais, nomeadamente os hídricos e geológicos, bem
como a adopção das consequentes medidas de gestão do território” –,
cfr., art. 2.º, n.º 2, al. b); “da promoção e apoio ao desenvolvimento de
valências para a participação, informação, sensibilização, educação e
formação dos cidadãos em matéria de ambiente, nomeadamente as
integradas na rede regional de ecotecas, centros de interpretação
ambiental e estruturas similares” –, cfr., art. 2.º, n.º 2, al. d); “da
construção, exploração e manutenção de infra-estruturas necessárias à
conservação, protecção e valorização do ambiente, à melhoria da
segurança de pessoas e bens e à promoção dos valores ambientais
para a sua fruição sustentada”- , –, cfr., art. 2.º, n.º 2, al. e).
De referir por pertinente, que a AZORINA acessoriamente poderá
“desenvolver outras actividades relacionadas com o seu objecto
principal, designadamente promover estudos, implementar e
desenvolver acções e projectos que se destinem à protecção e
valorização ambiental da área de intervenção e que se revelem
importantes para a protecção das zonas abrangidas” –, cfr., art.2.º, n.º
3. Importante também a possibilidade de a AZORINA “atribuir
140
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
indemnizações por perda de rendimentos resultantes de medidas de
conservação da biodiversidade, da geodiversidade ou de protecção
dos recursos hídricos ou geológicos e adoptar as consequentes
medidas de gestão sustentada do território” –, cfr., art. 2.º, n.º 4. al. c).
Ora, da análise dos preceitos supra referidos algumas questões se
colocam. Por exemplo: que acções de gestão ambiental serão estas
que a AZORINA pretende promover? Que recursos naturais vai gerir?
Que acções de conservação da natureza irá a AZORINA desenvolver?
Convém não esquecer que muitos dos objectivos que encontramos no
diploma que procede à criação da AZORINA, já estão previstos no
RRAPA. Que irá acontecer? Uma duplicação de competências? Como
funcionará a articulação entre o conselho de gestão do PNI e a
AZORINA? Mais, no art. 3º, n.º 2, lê-se que, “...podem ser transferidos
para a AZORINA, S.A. os bens móveis e imóveis integrados no património
da Região Autónoma dos Açores que estejam afectos aos centros de
interpretação ambiental e ecotecas e a estruturas de processamento e
valorização de resíduos e águas residuais bem como a direitos a eles
relativos.”. E no n.º 3, do mesmo número resulta que “podem
igualmente ser transferidos para a AZORINA, S.A. imóveis de qualquer
natureza que estejam afectos, ou devem estar afectos a actividades de
gestão e conservação da natureza e de protecção da qualidade
ambiental”. E pergunta-se: que terrenos serão transferidos?
Muitas questões se levantam quanto à real utilidade da criação da
AZORINA. No entanto, pensamos que a resposta à maioria delas
passará pela necessária articulação entre a Secretaria Regional do
Ambiente e do Mar do Governo Regional dos Açores, a AZORINA e os
conselhos de gestão dos PNI. Podemos encontrar uma pista na leitura
dos preceitos dos arts.3.º, 17.º, 29.º e 30.º do RRAPA e dos arts.2.º e 3.º da
AZORINA. Preceitos estes que deverão ser lidos em conjugação com a
141
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
normas que concretizarem as competências de gestão de cada PNI.
Por exemplo com corpo do art. 36.º, do DLR 19/2008/A, de 8 de Julho,
onde se estabelece os modelos de gestão previstos para o PNI de São
Miguel.
Em suma, parece-nos que o legislador açoriano delineou uma
estratégia consistente quanto à gestão das áreas protegidas da RRAPA.
Aliás, parece-nos crível que este modelo de desenvolvimento
autonómico permitirá a interiorização de uma estratégia empresarial na
RAA que tenha em conta no seu processo decisório, as repercussões
que as diferentes actividades económicas podem ter na biodiversidade
açoriana.
5. Reflexões finais.
Em ano Internacional da Biodiversidade, os Estados, instituições
comunitárias e instituições internacionais, estão cada vez mais
conscientes da necessidade de «arregaçar as mangas» e lançar «mãos
à obra» na tutela e conservação da biodiversidade. É que “a
degradação ambiental tem um «culpado», um culpado identificado: o
homem. Ao tornar-se um predador voraz, insaciável, numa sociedade
técnica e consumista, o homem tornou-se predador de si próprio”47.
A implementação de uma rede de áreas protegidas tem sido um dos
instrumentos legislativos utilizados pelos Estados na sua tentativa de
travar a degradação ambiental e perda da biodiversidade. Em
Portugal, esta opção legislativa faz parte da ENCNB (emanada da LBA),
e foi concretizada pela RFCN. Mas, ao que parece, o legislador
nacional perdeu-se na bruma das suas boas intenções, emaranhando-
se nas redes e sistemas que ele próprio criou. 47 Cfr., Maria da Glória Dias Garcia, “O lugar do Direito na protecção do ambiente” in O que há de novo no Direito do Ambiente?..., cit., pág. 27.
142
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Bem diferente parece-nos a RRAPA. Fruto das reivindicações
autonómicas e da evolução e afirmação das competências legislativas
da RAA, em matéria ambiental, o legislador açoriano criou uma rede
regional de áreas protegidas que constitui o paradigma de um
verdadeiro continuum naturale.
Mas a implementação de uma rede de áreas protegidas seja ela de
âmbito comunitário, nacional ou regional é, por si só, insuficiente para
garantir a efectiva tutela e conservação da biodiversidade. Não basta
limitar e restringir o acesso do Homem ao Ambiente. É preciso envolver,
educar e incentivar uma maior participação de todos os cidadãos na
gestão das áreas protegidas.
Recorrendo, mais uma vez às palavras de Maria da Glória Garcia, “o
reconhecimento da complexidade extrema da realidade, das múltiplas
conexões a que estão sujeitos tais problemas, mas, sobretudo, o
reconhecimento de que, sendo incerta a definição da melhor forma de
agir, essa definição tem de se ir construindo na realidade, de modo
coerente e concertado. Incentivar os cidadãos a usar a sua liberdade,
prover o acesso fácil de todos a informação, estimular a investigação
científica, premiar a inovação, contribuir para a conformação de
standards ou indicadores da acção traduz uma mudança qualitativa
essencial do Estado que quer corresponder aos desafios do século. Mas,
se assim é, este novo paradigma de Estado envolve, então, uma
renovação da democracia, através do aprofundamento da
democracia participativa para que, desde logo, o artigo 2.º da
Constituição da República Portuguesa aponta48.
48 Cfr., Maria da Glória Dias Garcia, “Pressupostos Éticos da Responsabilidade Ambiental”, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental. Faculdade de Direito de Lisboa, dias 18, 19 e 20 de Novembro de 2009, org. de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, ed. digital do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Lisboa, 2010, pág. 17 – disponível em www.icjp.pt.
143
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Esta renovação da democracia participativa terá de assentar na
adopção de uma política de ambiente e desenvolvimento sustentável
por parte dos Estados. No entanto, e como adverte Carla Amado
Gomes, “o problema está, porém, no nível de indeterminação e
ambiguidade que o conceito de desenvolvimento sustentável encerra.
E, consequentemente, no risco de manipulação a que um conceito
assim tão aberto está sujeito, podendo dar azo a leituras interessadas,
tendenciosas ou mesmo enviesadas, as quais – porquanto referidas aos
sacrossanto “desenvolvimento sustentável” – acabarão por branquear
certas condutas ou actividades menos amigas do ambiente”49.
Ora, “mais relevante do que a representação acrítica de tal enigmática
expressão será atender à lógica de gestão racional e preventiva dos
recursos”50. Para isso é necessário adoptar modelos de gestão que
sopesem a preservação do património natural das áreas protegidas
com as potencialidades/utilidades económicas que o Ambiente pode
proporcionar ao Homem.
Neste âmbito, a iniciativa Business & Biodiversity (B&B) da União Europeia
constitui um excelente ponto de partida para garantir um maior
envolvimento das empresas e das actividades económicas nas
estratégias de conservação da natureza. A consagração nos PNI`s da
RRAPA da iniciativa B&B é assaz elucidativo da intenção da RAA, em
adoptar uma metodologia de integração da biodiversidade na decisão
empresarial.
Aguardamos, no entanto, num misto de expectativa e apreensão, para
ver os próximos episódios da articulação entre os órgãos de gestão dos
PNI com a AZORINA e entre estes e os agentes que actuam no tabuleiro
49 Cfr., Carla Amado Gomes, “O ambiente no tratado de Lisboa…, cit., pág. 374.50 Cfr., Carla Amado Gomes, “O ambiente no tratado de Lisboa…, cit., pág. 375.
144
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
da economia ultraperiférica regional da biodiversidade. Pensamos que
só aí, através de medidas práticas, se verá a eficiência e consistência
da estratégia delineada pelo legislador açoriano, na sua demanda
pela “garantia do desenvolvimento equilibrado de todas e cada uma
das ilhas” – cfr., artigo 3.º, alínea e) do EPARAA.
Rui Melo CordeiroAdvogado – Estagiário do Departamento de Direito Público da Sociedade Mouteira
Guerreiro, Rosa Amaral & Associados, RL.
Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Membro do Grupo de Reflexão dos Assuntos Europeus da Associação Regional
Parlamento Europeu dos Jovens – Núcleo Açores (PEJ – AÇORES).
145
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade 146
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Singularidades de um Regime Ecológico
O regime jurídico da Rede Natura 2000 e, em particular, as deficiências
da análise de incidências ambientais1
0. A importância da biodiversidade. 1. A protecção jurídica da
biodiversidade; 1.1. Ao nível internacional; 1.2. Ao nível europeu;
1.3. Ao nível interno. 2. O regime jurídico da Rede Natura 2000; 2.1.
Processo de classificação; 2.2. Medidas de conservação dos
habitats; 2.2.1. Ordenamento do território; 2.2.2. Gestão; 2.2.3.
Análise de incidências ambientais (remissão); 2.2.4. Vigilância e
fiscalização; 2.2.5. Medidas complementares de conservação. 3.
Em especial, as deficiências da análise de incidências ambientais.
0. A importância da biodiversidade
A perda de biodiversidade constitui, a par das alterações climáticas2,
um dos maiores problemas ambientais com que a Humanidade
actualmente se confronta. Um pouco por todo o planeta há espécies
1 O texto que agora se publica corresponde, com desenvolvimentos, a uma aula leccionada, em Maio de 2009, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no âmbito da Pós-Graduação em Direito do Ordenamento do Território, do Urbanismo e do Turismo, coordenado pelos Profs. Doutores Marcelo rebelo de Sousa e Carla Amado Gomes.
Com este modesto estudo pretendo associar-me à justíssima homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. A sua exemplar carreira universitária, a excelência da sua obra, bem como a dedicação, o empenho e a seriedade invariavelmente por si empregues no estudo e aprofundamento do Direito Administrativo – e não só… – ficarão para sempre como uma referência incontornável da escola de direito público da Faculdade de Direito de Lisboa e um marco decisivo na construção e aperfeiçoamento da dogmática jus-administrativa pátria.2 Sendo que as alterações climáticas são também, em parte, responsáveis pela perda de biodiversidade ou, ao menos, por mutações na distribuição geográfica, nos hábitos alimentares e até no comportamento de muitas espécies.
147
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
em vias de extinção, ecossistemas em perigo e habitats naturais sob
ameaça.
Algumas das principais causas deste problema resultam da actividade
humana, designadamente a expansão dos centros urbanos e das vias
de comunicação, o desenvolvimento industrial e tecnológico, a espiral
de consumo desenfreado, a perpetuação de hábitos de vida pouco
sustentáveis, as crescentes necessidades energéticas e a consequente
sobre-exploração dos recursos naturais. Ora, se nada for feito para
inverter esta tendência ou, pelo menos, travar o declínio da
biodiversidade, poderemos estar perante uma catástrofe ambiental de
grandes proporções.
Utilizamos aqui a expressão “catástrofe” sem qualquer ligeireza. É que,
não se tratando propriamente de uma explosão de Chernobyl ou de
um derrame de petróleo no oceano, isto é, não estando em causa um
desastre repentino, tremendo e de impacto imediato, mas antes uma
sucessão de pequenos eventos e uma acumulação de danos
espalhados no tempo e no espaço, a verdade é que a perda de
biodiversidade tem implicações dramáticas, empobrecendo o espólio
natural da Terra, erodindo a capacidade de auto-regeneração
ambiental e, em última análise, desequilibrando ecossistemas
complexos e fortemente interdependentes, com consequências
imprevisíveis a longo prazo3. Com a agravante de que a extinção das
espécies tem, por definição, um carácter irreversível e irrecuperável.
Pelo que não é exagero afirmar que o desaparecimento de muitas
espécies selvagens e/ou a deterioração dos seus habitats representam
uma autêntica catástrofe. Uma catástrofe discreta, silenciosa e
paulatina mas, de todo o modo, uma catástrofe.
Esta conclusão poderá não ser imediatamente evidente para quem
perfilhe uma concepção antropocêntrica do ambiente. Isto é, quem
3 De resto, a importância da biodiversidade para a manutenção do equilíbrio ecológico e para a sobrevivência da vida terrestre encontra respaldo até em termos bíblicos, através do célebre episódio da Arca de Noé.
148
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
tenda a encarar o ambiente exclusivamente sob o ponto de vista dos
efeitos que tem sobre a condição humana compreenderá facilmente a
importância do ar puro e da água potável, a justificação para o
investimento em aterros ou a necessidade de conter os níveis de ruído,
mas poderá ter maiores dificuldades em perceber a importância de
uma qualquer planta bravia, a justificação para o investimento em
corredores ecológicos para os lobos ou a necessidade de protecção
da águia de Bonelli.
Tal perspectiva é, no entanto, redutora e errada. Não só os bens
ambientais proporcionam utilidades directas ao ser humano, como
podem ter inúmeras aplicações ou ser aproveitados de múltiplas formas
e para distintos fins. Entre as actividades humanas que são utilizadoras
directas da biodiversidade encontram-se, por exemplo, actividades
económicas tão relevantes como a exploração florestal, as pescas, o
turismo ou a agricultura4. Para além disso, da variedade de espécies da
flora e da fauna «depende a manutenção da quantidade [e] da
diversidade de produtos alimentares, depende a existência de
condições para a produção de produtos farmacêuticos, de combate a
doenças, depende uma multitude de usos industriais.
«Cada vez que se diminuem os stocks biológicos, empobrece a
capacidade de sobrevivência da espécie humana. Por isso é que não
faz sentido, mesmo no plano ético, o discurso de quem entende que a
conservação da natureza tende a ser antropoexcêntrica, no sentido de
excluir o Homem das suas preocupações…»5.
Assim, para além de constituir, por si só, um importante valor ecológico,
a biodiversidade presta serviços e confere vantagens inestimáveis à
nossa civilização, revelando-se – inclusivamente – algo de essencial à
vida e à saúde humanas. Daí a necessidade de proteger e
4 Neste sentido, cfr. FRANCISCO MENDES PALMA (org.), JOÃO PEREIRA MIGUEL, LUÍS RIBEIRO ROSA, SUSANA BARROS, Ganhar com a Biodiversidade – Oportunidades de Negócio em Portugal, Lisboa, 2008, p. 78.5 JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “Energia e conservação da natureza”, in Temas de Direito da Energia, Cadernos O Direito, n.º 3, 2008, p. 166.
149
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
salvaguardar os recursos naturais do planeta, com especial atenção
para as espécies em risco de extinção e respectivos habitats.
1. A protecção jurídica da biodiversidade
Considerando, por um lado, a importância decisiva da biodiversidade
e, por outro lado, as graves ameaças a que está sujeita, não é de
admirar que a temática da conservação da natureza e da protecção
das espécies se encontre hoje na primeira linha da agenda ecológica.
De facto, os apelos da comunidade ambientalista, os relatórios dos
cientistas e, cada vez mais, as declarações dos principais responsáveis
políticos convergem no sentido de eleger a preservação da riqueza e
diversidade da biosfera como uma prioridade absoluta.
O Direito do Ambiente não podia ficar indiferente a todas estas vozes.
Se há um determinado bem comunitário que é considerado valioso e se
a sociedade sente a necessidade de o proteger, então o Direito deve
intervir para regular a sua gestão, limitar a sua utilização e impedir a sua
destruição. Foi o que, efectivamente, sucedeu.
Ao longo das últimas décadas, tem vindo a germinar e a desenvolver-se
um Direito da Conservação da Natureza. A diferentes níveis, em distintos
fora e com alcance variado (internacional, comunitário, nacional,
regional, local, etc.), têm despontado instrumentos normativos e
convencionais que versam sobre a protecção da fauna e da flora nas
suas mais diversas variedades.
É certo que o resultado deste movimento tem-se caracterizado, até ao
presente, mais por um conjunto de afirmações proclamatórias, regimes
de adesão voluntária e técnicas de soft law do que, propriamente, por
um corpo jurídico robusto, exaustivo e adstringente de protecção
efectiva da biodiversidade. Acresce que muitos dos documentos
jurídicos aprovados assentam em normas de meios e não em normas de
resultado. Enfim, digamos que a ordem jurídica tem-se revelado mais
150
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
apta a fixar objectivos e a enunciar princípios do que propriamente a
assegurar o seu rigoroso cumprimento.
Seja como for, dispomos já – sobretudo no espaço jurídico europeu – de
alguns institutos jurídicos relativamente precisos e eficazes na
conservação de certas espécies em risco e respectivos habitats. Antes,
porém, de nos debruçarmos sobre um deles em particular – a Rede
Natura 2000 – convém perceber um pouco melhor o contexto em que
se insere. Vejamos então, em traços necessariamente largos, como
surgiu, em que instrumentos se alicerça e quais os aspectos
fundamentais que caracterizam a protecção jurídica da biodiversidade.
1.1. Ao nível internacional
À semelhança do que tem acontecido noutros domínios jus-ambientais,
o Direito Internacional Público foi precursor no tratamento jurídico da
biodiversidade e tem funcionado como propulsor de novos e
diversificados instrumentos de conservação da natureza.
Ainda que de forma extraordinariamente abreviada e lacunar,
gostaríamos de deixar aqui assinalados alguns dos marcos mais
relevantes na protecção jus-internacional da diversidade biológica6: a
convenção de Ramsar, de 1971, sobre zonas húmidas de importância
internacional7; a convenção sobre o comércio internacional de
espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção (mais conhecida
pelo acrónimo CITES), assinada em 1973, em Washington8; a Convenção
de Berna, de 1979, sobre a protecção da vida selvagem e do ambiente
natural na Europa9; e a convenção sobre a diversidade biológica, 6 Cfr., de forma mais completa, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “Energia e conservação da natureza”, cit., pp. 168 a 170.7 Em Portugal, esta convenção foi aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 101/80, de 9 de Outubro. Cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, in CEDOUA, n.º 6_Ano III_2.00, p. 58.8 Em Portugal, esta convenção foi aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 50/80, de 23 de Julho. Cfr. ainda o Decreto-Lei n.º 211/2009, de 3 de Setembro.9 Em Portugal, esta convenção foi aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 95/81, de 23 de Julho. Cfr. ainda o Decreto-Lei n.º 316/89, de 22 de Setembro, alterado pelo
151
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
assinada na Cimeira da Terra, em 1992, no Rio de Janeiro10. De então
para cá muitos outros documentos, negociações e encontros
internacionais se têm vindo a realizar na busca de novos consensos e de
mecanismos reforçados de tutela da biodiversidade11.
Registe-se como a comunidade internacional foi capaz de identificar os
principais factores de risco e de se concentrar neles, evitando uma
dispersão de esforços que seria manifestamente contraproducente.
Referimo-nos, por exemplo, à necessidade de salvaguardar as zonas
húmidas e de pôr um travão ao comércio de espécies protegidas.
As zonas húmidas são de uma importância crítica para a
biodiversidade, funcionando como autênticos viveiros naturais, em
particular para a avifauna. Pelo que se há áreas que indiscutivelmente
merecem atenção sob o ponto de vista ambiental são as zonas
húmidas. Ao eleger estes santuários da vida selvagem como uma
prioridade, a comunidade internacional demonstrou argúcia,
discernimento e realismo, actuando de forma cirúrgica e direccionada.
O comércio de espécies em vias de extinção, por seu turno, constitui
uma das principais ameaças à biodiversidade. Ditam as leis do
mercado que enquanto houver procura, haverá oferta. Logo, uma das
formas mais inteligentes de fazer cessar a captura, domesticação e/ou
matança de espécies selvagens consiste em ilegalizar e impedir a sua
transacção. Ao proibir este mercado, o Direito Internacional contribuiu
seguramente para evitar o desaparecimento de muitas formas de vida.
São conhecidas, porém, as dificuldades do Direito Internacional em
termos de “enforcement”, bem como a sua dependência da vontade
dos Estados12. Assim, embora tenha aberto o caminho para a protecção
Decreto-Lei n.º 196/90, de 18 de Junho. Cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, loc. cit., p. 58.10 Em Portugal, esta convenção foi aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 21/93, de 21 de Junho.11 Para uma descrição pormenorizada do que de mais relevante tem sucedido na esfera internacional (e comunitária) desde a convenção sobre a diversidade biológica de 1992, cfr. FRANCISCO MENDES PALMA (org.), Ganhar com a Biodiversidade, cit., pp. 38 e ss..12 As fragilidades da ordem jurídica internacional quanto à imposição heterónoma ou à aplicação coerciva das suas disposições estão há muito recenseadas. Cfr., por todos, NGUYEN QUOC DINH et alli, Direito Internacional Público (tradução portuguesa),
152
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
jurídica da biodiversidade, não foi o Direito Internacional que mais longe
levou ou que melhor concretizou esse desígnio.
1.2. Ao nível europeu
A Europa comunitária cedo compreendeu a importância da
biodiversidade e a necessidade de se dotar de um regime jurídico
uniforme de salvaguarda dos stocks biológicos. Este regime encontra-se
corporizado, essencialmente, em duas directivas da maior relevância: a
Directiva n.º 79/409/CEE, do Conselho, de 2 de Abril de 1979, mais
conhecida por Directiva Aves13; e a Directiva n.º 92/43/CEE, do
Conselho, de 21 de Maio de 1992, mais conhecida por Directiva
Habitats14.
A Directiva Aves tem por objecto, em geral, a conservação de todas as
espécies de aves que vivem naturalmente em estado selvagem no
território europeu, aplicando-se às aves e seus ovos, ninhos e habitats15.
As espécies mencionadas no respectivo Anexo I e as espécies
migratórias cuja ocorrência seja regular são objecto de medidas de
conservação especial com vista a garantir a sua sobrevivência e
reprodução, medidas essas que passam, designadamente, pela
classificação de certas áreas como “zonas de protecção especial”
(ZPE)16. Já a Directiva Habitats tem por objecto a conservação dos
habitats naturais e da fauna e flora selvagens no território europeu 17.
edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999, pp. 81 e ss..13 Publicada no Jornal Oficial L 103, de 25 de Abril de 1979. Esta Directiva já foi, porém, objecto de diversas alterações, nomeadamente para actualização dos respectivos anexos em função do progresso técnico e científico. Cfr. uma versão consolidada em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CONSLEG:1979L0409:20081223:PT:PDF.14 Publicada no Jornal Oficial L 206, de 22 de Julho de 1992. Esta Directiva já foi, porém, objecto de diversas alterações, nomeadamente para actualização dos respectivos anexos em função do progresso técnico e científico. Cfr. uma versão consolidada em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CONSLEG:1992L0043:20070101:PT:PDF.15 Cfr. artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 da Directiva Aves.16 Cfr. artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 da Directiva Aves.17 Cfr. artigo 2.º, n.º 1 da Directiva Habitats.
153
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Note-se, antes de mais, como os petit-noms utilizados na gíria jurídica
podem ser um pouco redutores. A “Directiva Aves” não se aplica
apenas às aves, mas também aos respectivos habitats; e, por seu turno,
a “Directiva Habitats” não se aplica apenas aos habitats (naturais e das
espécies), mas também à fauna e à flora selvagens. Há, pois, que ter
algum cuidado, já que as designações abreviadas destes instrumentos
normativos podem induzir em erro quanto ao seu real âmbito de
aplicação.
Acresce que a existência de duas directivas autónomas, com um
mesmo fim – a tutela da biodiversidade – e objectos muito próximos,
mas soluções jurídicas não inteiramente coincidentes, prejudica a
coerência do instituto18 e dificulta um pouco a tarefa dos respectivos
intérpretes e aplicadores. Mas sobre isso teremos ocasião de nos
pronunciarmos mais adiante.
Por ora, importa apenas salientar que ambas as Directivas visam a
constituição de uma rede ecológica europeia integrada de sítios com
interesse para a conservação da natureza e a preservação da
biodiversidade, designada por “Rede Natura 2000”. A criação desta
rede, à escala comunitária, bem como o regime de protecção
aplicável aos valores naturais que nela se encontram localizados
constituem o cerne do Direito europeu da Conservação da Natureza.
Não nos iremos alongar aqui sobre o regime jurídico da Rede Natura
2000, na medida em que é precisamente sobre este instituto,
designadamente sobre a forma como foi transposto e é aplicado no
ordenamento jurídico português, que versará a presente exposição.
Ainda ao nível comunitário, importa referir o Conselho Europeu de
Gotemburgo, que teve lugar em Junho de 2001, onde pela primeira vez
se fixou o ano de 2010 como o ano de referência em termos de
combate ao declínio da biodiversidade na Europa. Em execução desta
18 Neste sentido, considerando que «a articulação entre as duas directivas não foi necessariamente bem pensada», NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, in CEDOUA, n.º 11_Ano VI_1.03, p. 10.
154
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
deliberação e com vista a preparar o “objectivo 2010”, a Comissão
Europeia emitiu em 2006 a importante comunicação “Travar a perda de
biodiversidade até 2010 – e mais além. Preservar os serviços
ecossistémicos para o bem-estar humano”19. Não se tratando de um
instrumento normativo, é, contudo, um documento estruturante, na
medida em que elege prioridades, selecciona os indicadores relevantes
e traça um plano de acção detalhado com vista a alcançar a meta
definida pelo Conselho Europeu.
Lamentavelmente, porém, a Europa não se encontra no bom caminho
para atingir essa meta. Aquilo que os relatórios de progresso registam é
que os Estados-Membros estão a ter bastantes dificuldades em conter a
destruição da fauna e da flora selvagens. Ainda recentemente foi
divulgado um estudo da Agência Europeia do Ambiente cujas
conclusões são deveras preocupantes20: estima-se aí que «o objectivo
de travar a perda de biodiversidade na Europa até 2010 não será
atingido», sendo referido que, embora se tenham verificado alguns
progressos localizados (designadamente nos sítios da Rede Natura
2000), o «risco global de extinção da vida selvagem provavelmente
aumentou» e «a diversidade genética das espécies permanece em
perigo».
1.3. Ao nível interno
O território português, pela sua localização geográfica, pelas condições
climáticas de que dispõe e pelo tipo de ecossistemas que alberga,
revela-se de extraordinária importância para a causa global de
preservação da biodiversidade.
19 Com a referência COM(2006) 216 final, de 22 de Maio de 2006.20 Cfr. Progress towards the European 2010 biodiversity target, EEA Report no 4/2009, maxime pp. 7 e 8 (disponível em http://www.eea.europa.eu/publications/progress-towards-the-european-2010-biodiversity-target).
155
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
De facto, sob o ponto de vista da diversidade biológica, nem todas as
zonas do planeta apresentam o mesmo interesse. Há territórios
extraordinariamente ricos e plurais em formas de vida – conhecidos
como “hotspots de biodiversidade” – e outros que, pelas suas condições
naturais adversas ou por influência antropogénica, poucas espécies
atraem.
Portugal, não tendo propriamente a opulência genética das florestas
tropicais, contém, ainda assim, um interessante repositório de vida
selvagem. Não é por acaso que21: i) 90% do nosso território continental,
bem como os arquipélagos dos Açores e da Madeira integram um dos
34 hotspots mundiais de biodiversidade, a “Bacia Mediterrânea”; ii) em
Portugal existem 90 áreas consideradas prioritárias para a conservação
das aves e dos seus habitats (Important Bird Areas ou IBA) e 2 áreas
endémicas para as aves (Endemic Bird Areas ou EBA), segundo a
classificação da Bird Life International; iii) o World Wildlife Fund incluiu
Portugal numa das denominadas Global 200 Ecoregions, a
“Mediterranean Forests, Woodlands and Scrub”. E ainda recentemente
a UNESCO integrou o Parque Internacional Luso-Galaico Gerês/Xurês e
a ilha das Flores na rede mundial das Reservas da Biosfera22.
O nosso país tem, portanto, uma responsabilidade acrescida no que diz
respeito à protecção da biodiversidade. Não admira, então, que o
legislador constituinte tenha designado como tarefas fundamentais do
Estado «defender a natureza e o ambiente» e «preservar os recursos
naturais»23. Incumbe ainda ao Estado, nos termos da Constituição, «criar
e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como
classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a
conservação da natureza e a preservação de valores culturais de
21 Os exemplos foram retirados de FRANCISCO MENDES PALMA (org.), Ganhar com a Biodiversidade, cit., p. 69.22 De que já faziam parte, em Portugal, o Paul do Boquilobo e as ilhas do Corvo e da Graciosa.23 Artigo 9.º, alínea e) da Constituição da República Portuguesa (CRP).
156
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
interesse histórico ou artístico»24. Resta saber como é que estes
comandos jus-fundamentais têm sido transpostos para a legislação
ordinária e qual tem sido a sua efectividade prática.
A Lei de Bases do Ambiente25 (LBA) prevê, nos seus artigos 28.º e 29.º, a
elaboração de uma estratégia nacional de conservação da natureza e
a implementação de uma «rede nacional contínua de áreas
protegidas, abrangendo áreas terrestres, águas interiores e marítimas e
outras ocorrências naturais distintas que devam ser submetidas a
medidas de classificação, preservação e conservação, em virtude dos
seus valores estéticos, raridade, importância científica, cultural e social
ou da sua contribuição para o equilíbrio biológico e estabilidade
ecológica das paisagens».
Quanto ao primeiro ponto, a Resolução do Conselho de Ministros n.º
152/2001, de 11 de Outubro, veio finalmente dar concretização à Lei de
Bases ao aprovar, com décadas de atraso, a Estratégia Nacional de
Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ENCNB). Desde 2001
que Portugal dispõe, portanto, de um documento de enquadramento
da política de conservação da natureza. Aí se formulam dez opções
estratégicas, uma das quais prende-se com a constituição de uma
Rede Fundamental de Conservação da Natureza, de que falaremos em
breve.
Quanto ao segundo ponto, Portugal dispõe efectivamente de uma
Rede Nacional de Áreas Protegidas, as quais podem ser de interesse
nacional, regional ou local e enquadrar-se em distintas categorias
(parque nacional, parque natural, reserva natural, paisagem protegida,
monumento natural). Esta rede foi durante muitos anos regulada pelo
Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, diploma que foi sofrendo
diversas modificações ao longo do tempo até, recentemente, ter sido
revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de Julho.
Vale a pena tecer algumas considerações sobre esta última peça 24 Artigo 66.º, n.º 2, alínea c) da CRP.25 Lei n.º 11/87, de 7 de Abril.
157
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
legislativa, na medida que ela se apresenta como contendo “o” regime
jurídico da conservação da natureza e da biodiversidade.
Com efeito, o legislador entendeu aprovar um diploma que
sistematizasse toda a matéria relativa à salvaguarda da biodiversidade.
Um dos principais objectivos deste diploma consistiu na criação da
Rede Fundamental de Conservação da Natureza (RFCN)26, a qual
engloba diversos espaços naturais caracterizados pela sua sensibilidade
ecológica ou pela sua utilidade para a preservação da vida selvagem
e, consequentemente, sujeitos a um regime especial de protecção.
Entre esses espaços contam-se as áreas protegidas, mas também outras
áreas classificadas ao abrigo da Rede Natura 2000 (RN2000) ou de
compromissos internacionais e ainda certas áreas de continuidade,
como as pertencentes à reserva ecológica nacional (REN), à reserva
agrícola nacional (RAN) ou ao domínio público hídrico (DPH).
Ficamos assim a saber que, para além das já mencionadas áreas
protegidas (que encontram agora a sua regulamentação no Decreto-
Lei n.º 142/2008, embora em termos não significativamente distintos do
seu regime anterior), existem no nosso ordenamento outros institutos
jurídicos vocacionados para a conservação da natureza. E que todos
esses institutos se encontram agora conceptualmente enquadrados
num esquema global integrado, de acordo com uma lógica sistémica
ou de articulação em rede27. «Só que neste esquema, onde se
arrumaram bem “redes” e “sistemas”, mantém-se afinal tudo como
dantes, não se surpreendendo aquilo que decorre, como objectivo, da
Estratégia Nacional: a uniformização dos regimes atinentes à
conservação da Natureza»28.
26 Tal como preconizado na supra referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 152/2001, de 11 de Outubro.27 Veja-se que foi criada a Rede Fundamental de Conservação da Natureza (RFCN), a qual integra o Sistema Nacional de Áreas Classificadas (SNAC), que, por sua vez, integra a Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP) e a Rede Natura 2000 (RN2000). Cfr. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de Julho.28 JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “O velho, o novo e o reciclado no direito da conservação da natureza”, neste e-book.
158
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
De facto, o Decreto-Lei n.º 142/2008 agrega diversos instrumentos
jurídicos de tutela da biodiversidade, mas não lhes confere uma
disciplina jurídica uniforme ou harmonizada. Por outras palavras, a RFCN
«não é, como se esperava que fosse, o denominador comum dos
regimes da Rede Nacional das Áreas Protegidas, da Rede Natura 2000 e
outras áreas classificadas, da REN, da RAN ou do regime do domínio
público hídrico no que todos eles têm que ver com a salvaguarda do
património genético existente em território nacional. É, tão só, o nome
que se dá à soma de todos eles»29.
Daí que se possa concluir que o assim-denominado “regime jurídico da
conservação da natureza e da biodiversidade” (RJCNB) não contém,
afinal de contas, um regime jurídico da conservação da natureza e da
biodiversidade. Numa demonstração de que “as aparências iludem”, o
Decreto-Lei n.º 142/2008 limita-se – apesar do seu nomen iuris – a
funcionar como uma espécie de “guarda-chuva” dos vários regimes
atinentes à biodiversidade ou como um “cabide” onde se encontram
“pendurados” diversos mecanismos jurídicos de protecção dos valores
ambientais naturais30.
Temos, pois, que o Direito nacional da Conservação da Natureza é
composto por múltiplos institutos, com finalidades aproximadas mas
com lógicas próprias e regimes jurídicos diferenciados, os quais se
encontram dispersos por vários diplomas. Com a agravante de que
esses institutos são, muitas vezes, de aplicação cumulativa, verificando-
se uma sobreposição territorial de regras que, embora sob distintos
prismas, visam no fundo tutelar os mesmos valores ecológicos – o que se
revela contraproducente, acabando por resultar num emaranhado
complexo de obrigações e proibições legais que nem sempre se
encontram bem concatenadas, dificultando assim a compreensão do
29 Idem, ibidem.30 O que leva uma voz particularmente autorizada a concluir que, mais do que criar algo de novo, este diploma procedeu a uma operação de reciclagem. Cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, ult. loc. cit.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
direito aplicável a cada caso concreto e originando uma teia de
procedimentos administrativos cruzados, redundantes ou até
eventualmente, nalguns aspectos, contraditórios.
Sem desmerecer a relevância dos demais instrumentos jurídicos de
protecção da biodiversidade e não ignorando a utilidade da sua
análise conjugada, no presente texto iremos, todavia, concentrar a
nossa atenção em apenas um desses instrumentos: o regime da Rede
Natura 2000, que decorre das supra referidas Directivas Aves e Habitats.
Vejamos, então, onde e de que se forma se encontra regulado no
nosso ordenamento este importante instituto jus-ambiental.
A Directiva Aves foi originalmente transposta para a ordem jurídica
interna, com um atraso de vários anos, pelo Decreto-Lei n.º 75/91, de 14
de Fevereiro (posteriormente modificado pelo Decreto-Lei n.º 224/93, de
18 de Junho). Já a Directiva Habitats foi transposta, também com
atraso, pelo Decreto-Lei n.º 226/97, de 27 de Agosto. Em 1999, numa
tentativa de sistematização do tratamento jurídico nacional da Rede
Natura 2000, ambos os diplomas referidos foram revogados e
substituídos pelo Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril. Sucede, porém,
que este novo regime enfermava de várias deficiências. O que motivou
um processo por incumprimento no Tribunal de Justiça da União
Europeia (TJUE), processo no qual o Estado português veio a ser
condenado por falta de transposição e incorrecta transposição de
diversas normas das Directivas Aves e Habitats31. Em face deste
veredicto, o legislador nacional aprovou então o Decreto-Lei n.º
49/2005, de 24 de Fevereiro, que introduziu diversas modificações no
Decreto-Lei n.º 140/99 (e o republicou), corrigindo os problemas
apontados pelo Tribunal do Luxemburgo.
Em suma, actualmente é do Decreto-Lei n.º 140/99, na versão resultante
do Decreto-Lei n.º 49/2005, que resulta o regime jurídico nacional da
31 Cfr. o acórdão do TJUE, de 24 de Junho de 2003, exarado no processo n.º C-72/02 (disponível em http://curia.europa.eu).
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Rede Natura 2000 (RJRN2000). É este, pois, o diploma que irá doravante
ser objecto da nossa análise.
2. O regime jurídico da Rede Natura 2000
Antes de iniciarmos a análise do RJRN2000, cumpre fazer uma
advertência. Não se trata aqui de apreciar em detalhe ou de “dissecar”
todo o regime da Rede Natura 2000 – cujo tratamento doutrinal e
pretoriano32 tem já longos anos, com um vasto lastro hermenêutico –
nem, tão pouco, de proceder uma análise exaustiva do seu articulado,
mas apenas de efectuar um breve excurso pelos principais blocos
constitutivos ou elementos estruturantes desse regime. Assim,
organizaremos a nossa exposição em dois pontos, apreciando: em
primeiro lugar, o processo de classificação dos sítios que compõem a
Rede Natura 2000; e, em segundo lugar, as medidas de conservação a
que ficam sujeitos33.
2.1. Processo de classificação
Uma parte importante do regime da Rede Natura 2000 prende-se com
o zonamento, isto é, com a selecção e classificação dos territórios que
32 Com particular destaque para as decisões do TJUE, que tem desempenhado um papel crucial na interpretação e densificação do Direito europeu da Conservação da Natureza, o que nos permite dispor hoje de jurisprudência consolidada numa série de matérias relativas à constituição e gestão da Rede Natura 2000. Os acórdãos do Tribunal do Luxemburgo revelam-se, pois, uma fonte absolutamente indispensável para a compreensão e aplicação das Directivas Aves e Habitats. Para um apanhado dos principais casos apreciados pelo TJUE neste domínio, cfr. Nature and Biodiversity Cases – Ruling of the European Court of Justice (disponível em http://ec.europa.eu/environment/nature/info/pubs/docs/others/ecj_rulings_en.pdf).33 Idêntica opção metodológica é feita, de resto, pela generalidade da doutrina que trata desta matéria. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, por exemplo, fala em “dever de designação” e “dever de protecção” (cfr. “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, in CEDOUA, n.º 10_Ano V_2.02, pp. 17 e 18); NICOLAS DE SADELEER, no mesmo registo, separa as “obrigações dos Estados-Membros no que diz respeito à designação e delimitação” dos sítios da Rede Natura 2000 daquelas outras obrigações que “concernem à respectiva protecção” (cfr. “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., pp. 10 e ss.).
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
vão integrar essa mesma rede. No fundo, trata-se de escolher as zonas
mais apropriadas à conservação de determinadas espécies em perigo
e respectivos habitats, submetendo-as a um estatuto jurídico especial
com vista à preservação dos valores ecológicos aí representados34.
Depois de classificados, estes territórios – quer terrestres, quer marítimos35
– irão formar uma rede europeia integrada de espaços naturais
particularmente aptos ou vocacionados para a salvaguarda da
biodiversidade.
Parece simples mas, na verdade, tem-se revelado um processo
complexo, espinhoso e demorado. Não admira, pois, que a grande
maioria das decisões que o TJUE proferiu até ao momento a propósito
da Rede Natura 2000 verse, precisamente, sobre a classificação (ou
falta dela) dos territórios mais relevantes para efeitos da protecção da
vida selvagem36. E isto, essencialmente, por duas razões.
34 O facto de determinada parcela do território já se encontrar sujeita a um outro regime de conservação da natureza – por exemplo, o facto de essa área estar classificada como parque natural ou qualquer outro tipo de área protegida – não substitui nem faz cessar a obrigação de a classificar para efeitos da Rede Natura 2000. Assim decidiu o TJUE no processo n.º C-3/96, que opôs na Comissão aos Países Baixos (acórdão de 19 de Maio de 1998).35 Incluindo, segundo NICOLAS DE SADELEER, áreas da zona económica exclusiva e da plataforma continental. Cfr. “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 11. Sobre a aplicação da Rede Natura 2000 aos espaços marítimos, cfr. MARTA CHANTAL RIBEIRO, “Rede Natura 2000: os desafios da protecção da biodiversidade marinha no dealbar do século XXI”, separata da Revista Temas de Integração, 1.º semestre de 2008, n.º 25, pp. 165 e ss..36 Alguns dos casos que consideramos mais emblemáticos e de maior utilidade para a compreensão do regime de selecção, classificação e delimitação das zonas integrantes da Rede Natura 2000 são:
i) O caso Leybucht: acórdão do TJUE, de 28 de Fevereiro de 1991, no processo n.º C-57/89 (Comissão/Alemanha). Para um brevíssimo resumo deste processo, cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, in RJUA, n.º 4, Dezembro de 1995, pp. 115 e 116; e, da mesma Autora, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., p. 69.
ii) O caso Marismas de Santoña: acórdão do TJUE, de 2 de Agosto de 1993, no processo n.º C-355/90 (Comissão/Espanha). Cfr. uma síntese das conclusões do Tribunal neste processo em MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., pp. 114 e 115; e, da mesma Autora, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., pp. 68 e 69.
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Por um lado, em termos cronológicos, houve primeiro que constituir a
rede – processo que, de resto, ainda não se encontra completamente
terminado – para depois, então, aí se levarem a cabo as medidas de
conservação necessárias. É, portanto, natural que os primeiros litígios
tenham surgido quanto à designação das zonas que compõem a
referida rede.
Por outro lado, a sujeição de um território ao regime da Rede Natura
2000, pelas limitações, condicionantes e deveres acrescidos que
acarreta, encontra sempre bastante resistência, nomeadamente por
parte do poder económico e das populações locais. Daí que os
Estados-Membros tenham, muitas vezes, atrasado o processo de
classificação, classificado um número reduzido ou uma extensão
insuficiente de sítios, tentado desclassificar sítios previamente
classificados, etc.. O que motivou diversos processos por incumprimento
desencadeados pela Comissão Europeia.
Importa, pois, apreciar de que forma se constitui esta rede comunitária
de espaços afectos à conservação da natureza. E, numa análise muito
superficial, aquilo que imediatamente salta à vista é a falta de
uniformidade entre os dois pilares da Rede Natura 2000. De facto, o
processo de classificação ao abrigo da Directiva Aves é muito diferente
daquele que se encontra estabelecido na Directiva Habitats. Enquanto
que, no primeiro caso, se confiou quase exclusivamente aos Estados-
Membros a tarefa de zonamento, no segundo caso, e para evitar as já
referidas resistências ou tentativas de bloqueio, foi gizado um processo
iii) O caso das ZPEs holandesas: acórdão do TJUE, de 19 de Maio de 1998, no processo n.º C-3/96 (Comissão/Países Baixos).
iv) O caso do Estuário do Sena: acórdão do TJUE, de 18 de Março de 1999, no processo n.º C-166/97 (Comissão/França).
v) O caso Marais poitevin: acórdão do TJUE, de 25 de Novembro de 1999, no processo n.º C-96/98 (Comissão/França). Cfr. a anotação de MARIA ALEXANDRA ARAGÃO em “As ZPEs e a (ausência de) Discricionariedade dos Estados”, in CEDOUA, n.º 5_Ano III_1.00, pp. 95 a 110.
Para um elenco um pouco mais completo de acórdãos, cfr. NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., nota 7, na p. 35.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
plurifásico, mais orientado e com maior intervenção das instâncias
comunitárias. Senão, vejamos.
No âmbito da Directiva Aves, para além do dever geral de
conservação previsto no respectivo artigo 3.º37, vigora – quanto às
espécies mencionadas no Anexo I [da Directiva38] e às espécies
migratórias cuja ocorrência seja regular – um dever especial de
conservação que passa, entre outras coisas, pela criação de “zonas de
protecção especial” (abreviadamente conhecidas pela sigla “ZPE”)39.
Estas ZPEs devem abranger os «territórios mais apropriados, em número e
em extensão, para a conservação» das referidas espécies, ficando a
sua selecção a cargo dos Estados-Membros, de acordo com critérios
científicos de cariz ornitológico. Compreensivelmente, a Directiva não
exige qualquer forma específica para o acto de classificação40; no
nosso ordenamento jurídico, porém, o artigo 6.º, n.º 1 do RJRN2000 prevê
que a classificação de ZPEs reveste a forma de decreto regulamentar41.37 Que se aplica a todas as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem e se estende a todo o território europeu. Isto é, trata-se de uma obrigação genérica ou de princípio, que não tem uma expressão territorial delimitada.38 Ou Anexo A-I do RJRN2000.39 Cfr. artigo 4.º/1 e 2 da Directiva Aves e artigo 6.º do RJRN2000.40 Uma vez que a escolha das formas jurídicas deve caber a cada Estado-Membro, em função das características e regras próprias do respectivo ordenamento. No entanto, esta indiferença do Direito Comunitário relativamente à forma do acto de classificação já deu azo a algumas polémicas. Foi o que sucedeu, por exemplo, quanto à ZPE do Estuário do Tejo, cuja classificação solene só ocorreu em 1994, sob a forma de decreto-lei (segundo era, à altura, internamente exigido; vd. nota seguinte), embora já em 1988 o então Secretário de Estado do Ambiente e dos Recursos Naturais tivesse comunicado à Comissão Europeia, por despacho, essa mesma classificação. Gerou-se, inevitavelmente, uma enorme confusão: para as instâncias comunitárias, este despacho foi considerado suficiente e, portanto, entendia-se que a ZPE estava devidamente instituída, devendo ser-lhe aplicável o respectivo regime jurídico de conservação; de acordo com o ordenamento jurídico nacional, todavia, a ZPE ainda não havia sido formalmente classificada.41 Apesar disso, há várias ZPEs em Portugal que foram classificadas sob a forma de decreto-lei. Por duas razões: no caso da ZPE do Estuário do Tejo – a primeira ZPE criada no nosso país, por força do Decreto-Lei n.º 280/94, de 5 de Novembro (já por diversas vezes modificado) – a forma legislativa era exigida pelo diploma que, à altura, regulava a matéria em apreço (cfr. artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 75/91, de 14 de Fevereiro); no caso das ZPEs que foram classificadas pelo Decreto-Lei n.º 384-B/99, de 23 de Setembro (já por diversas vezes modificado), a forma legislativa já não era, ao tempo, exigida (o Decreto-Lei n.º 75/91 havia sido, entretanto, revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril, o qual passou a prever, no seu artigo 6.º, a forma de decreto regulamentar para a classificação de ZPEs, solução que se mantém até hoje), mas acabou por ser utilizada uma vez que, no mesmo diploma, não só se
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No âmbito da Directiva Habitats, por seu turno, está prevista a criação
de “zonas especiais de conservação” (abreviadamente conhecidas
pela sigla “ZEC”), o que envolve um processo complexo em três fases42.
Na primeira fase, é elaborada uma lista nacional de sítios (LNS) «que
alojam tipos de habitats naturais constantes do Anexo I [da Directiva43]
e habitats das espécies constantes do Anexo II [da Directiva44]». Esta lista
é preparada por cada Estado-Membro, de acordo com os critérios
estabelecidos no Anexo III [da Directiva45] e nas informações científicas
pertinentes. Embora nem a Directiva, nem o RJRN2000 o exijam
expressamente, em Portugal a inclusão de sítios na lista nacional foi
sempre precedida de consulta pública.
Na segunda fase, a Comissão Europeia, com base na LNS apresentada
por cada Estado-Membro e atendendo aos critérios do Anexo III [da
Directiva46], selecciona os sítios que «integrem um ou mais tipos de
habitats naturais prioritários ou uma ou mais espécies prioritárias». A
partir desta análise é elaborada, para cada uma das nove regiões
biogeográficas da Europa47, uma lista dos sítios de importância
comunitária (SICs).
Caso um Estado-Membro não tenha incluído na sua LNS um sítio que
integre um ou mais tipos de habitats naturais prioritários ou uma ou mais
espécies prioritárias, esse sítio poderá, ainda assim, vir a ser reconhecido
procedeu à classificação de 28 ZPEs como, simultaneamente, se introduziram algumas inovações normativas (a maior parte das quais entretanto já revogadas) quanto ao regime aplicável a essas mesmas ZPEs.
Para além destes dois Decretos-Lei (de 1994 e de 1999), em Portugal houve uma nova vaga de classificação de ZPEs em 2008, desta feita já sob a forma de decreto regulamentar: cfr. os Decretos Regulamentares n.º 6/2008, de 26 de Fevereiro, e n.º 10/2008, de 26 de Março, que, no seu conjunto, instituíram 10 novas ZPEs.42 Cfr. artigo 4.º da Directiva Habitats e artigo 5.º do RJRN2000.43 Ou Anexo B-I do RJRN2000.44 Ou Anexo B-II do RJRN2000.45 Ou Anexo B-III do RJRN2000.46 Ou Anexo B-III do RJRN2000.47 As nove regiões biogeográficas em que se decompõe o território europeu são, nos termos do artigo 1.º, alínea c), subalínea iii) da Directiva Habitats, as seguintes: alpina, atlântica, do Mar Negro, boreal, continental, macaronésica, mediterrânica, panónica e estépica. O território português está dividido por três destas regiões biogeográficas: a atlântica, a mediterrânica e, nos arquipélagos, a macaronésica.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
como SIC, por iniciativa da Comissão Europeia e mediante decisão do
Conselho48. Visa-se, desta forma, contornar a inércia ou o bloqueio dos
Estados-Membros à integração de um determinado sítio na Rede
Natura 2000. No entanto, este desiderato não foi levado até às últimas
consequências, uma vez que a deliberação do Conselho tem de ser
tomada por unanimidade. Logo, o reconhecimento de um sítio como
SIC acaba por depender sempre – de uma forma ou de outra – da
vontade do respectivo Estado-Membro.
Por fim, na terceira fase, compete aos Estados-Membros classificar
como zonas de conservação especial (ZECs) os territórios que hajam
sido reconhecidos como SICs, o que deverá ocorrer no prazo máximo
de seis anos.
Quanto à forma jurídica que cada uma destas decisões deve adoptar,
o artigo 5.º do RJRN2000 prevê o seguinte: a LNS é aprovada por
resolução do Conselho de Ministros49, mediante proposta do Instituto de
Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB); os sítios
reconhecidos pela Comissão Europeia como SICs são publicitados
através de portaria do ministro responsável pela área do ambiente50; e a
classificação das ZECs é efectuada por decreto regulamentar51.
Como se pode verificar, então, o processo de classificação das ZECs é
bastante mais parametrizado, muito mais participado e, sobretudo,
48 Cfr. artigo 5.º da Directiva Habitats.49 Sendo que, originalmente, os sítios localizados nas regiões autónomas foram aprovados por resolução do respectivo Conselho do Governo Regional. Doravante, porém, segundo o que parece resultar do artigo 5.º, n.ºs 3 e 4 do RJRN2000, a inclusão de novos sítios, a alteração de limites aos já existentes ou a sua eventual exclusão da LNS terão necessariamente de ser aprovadas por resolução do Conselho de Ministros (ainda que, tratando-se de um sítio localizado numa região autónoma, mediante proposta dos competentes serviços regionais).50 Isto é, a lista dos SICs consta de um acto comunitário, ao qual deve – posteriormente – ser dada a devida publicidade no ordenamento jurídico interno, mediante portaria.51 Fiel ao princípio da neutralidade quanto às formas jurídicas, a Directiva Habitats admite, no seu artigo 1.º, alínea l), que as ZECs possam ser classificadas por acto regulamentar, administrativo e/ou contratual (num tom crítico quanto à possibilidade de classificação por acto administrativo e, sobretudo, por via contratual, cfr. NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., pp. 20 e 21). No nosso ordenamento, porém, o artigo 5.º, n.º 6 do RJRN2000 exige expressamente a forma de decreto regulamentar.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
muitíssimo mais demorado52 que o processo de classificação das ZPEs.
Não obstante as diferenças assinaladas, estes dois tipos de espaços
naturais formam, no seu conjunto53, uma rede ecológica única de
dimensão europeia54: a Rede Natura 200055.
Explicado, em traços largos, o processo de classificação dos sítios que
compõem a Rede Natura 2000, importa agora discutir muito
brevemente alguns dos seus pontos mais controvertidos. De facto, o
regime de zonamento definido nas Directivas Aves e Habitats – e
transposto, em Portugal, para o RJRN2000 – não é inteiramente pacífico,
suscitando algumas dúvidas e levantando diversas questões
problemáticas, das quais se têm ocupado quer a doutrina, quer a
jurisprudência.
Uma dessas matérias – e talvez aquela que mais tinta já fez correr –
prende-se com a discricionariedade (ou não) dos Estados-Membros na
classificação das zonas integrantes da Rede Natura 200056. Segundo
alguns Autores, tal discricionariedade não existe57. Não é exactamente
52 Tanto assim é que em Portugal, por exemplo, ainda não existem actualmente quaisquer ZECs. A LNS foi aprovada, em distintos momentos, pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.º 142/97, de 28 de Agosto (modificada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 135/2004, de 30 de Setembro) e n.º 76/2000, de 5 de Julho, bem como pela Resolução do Governo Regional dos Açores n.º 30/98, de 5 de Fevereiro (rectificada pela Declaração n.º 12/98, de 7 de Maio) e pela Resolução do Governo Regional da Madeira n.º 1408/2000, de 28 de Setembro. As listas de SICs para as regiões biogeográficas atlântica, mediterrânica e macaronésica foram aprovadas pela Comissão Europeia em 2004, 2006 e 2002, respectivamente, e publicitadas através da Portaria n.º 829/2007, de 1 de Agosto, aguardando-se agora a classificação formal dos sítios em causa como ZECs.53 Note-se que as ZPEs e as ZECs podem eventualmente co-existir em termos territoriais, isto é, podem sobrepor-se sempre que uma mesma área o justifique (neste sentido, NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 21). Em Portugal, há diversos sítios nestas condições (cfr., por exemplo, o preâmbulo do Decreto Regulamentar n.º 10/2008, de 26 de Março).54 Cfr. artigo 3.º, n.º 1 da Directiva Habitats.55 Rede essa que, no que diz respeito a Portugal, abrange perto de 20% do território nacional. Cfr. FRANCISCO MENDES PALMA (org.), Ganhar com a Biodiversidade, cit., pp. 68.56 Cfr. a síntese de NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., pp. 11 e 12.57 MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, por exemplo, pronuncia-se pela ausência de discricionariedade dos Estados-Membros na classificação de ZPEs (cfr. “Considerações
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
isso, contudo, que o TJUE tem afirmado. De acordo com a
jurisprudência constante deste Tribunal58, os Estados-Membros dispõem
de alguma dose de discricionariedade, embora limitada, na selecção
das áreas a classificar. Tal discricionariedade encontra-se limitada,
desde logo, por critérios científicos59, designadamente de cariz
ornitológico.
Assim sendo, e com base nos referidos critérios, o TJUE arroga-se o poder
de controlar se determinada zona devia ou não ter sido classificada e –
mais do que isso até – se a área que foi objecto de classificação é ou
não suficiente para satisfazer os objectivos conservacionistas da Rede
Natura 200060. O Tribunal leva mesmo este exame ao ponto de,
reconhecendo a relevância ecológica de um certo sítio, exigir que aí se
cumpram as necessárias medidas de conservação, ainda que tal sítio
não tenha sido expressa e formalmente classificado pelo respectivo
Estado-Membro61.sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., pp. 100 e ss.; vd. também, da Autora, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., pp. 60 e ss.).
Noutros locais, porém, MARIA ALEXANDRA ARAGÃO acaba por admitir que «o Tribunal reconhece uma certa margem de apreciação ao escolher os territórios mais apropriados para uma classificação como zonas de protecção especial» (cfr. “As ZPEs e a (ausência de) Discricionariedade dos Estados”, cit., p. 104), referindo-se expressamente à «margem de apreciação» e ao «poder discricionário» dos Estados-Membros quanto à selecção dos habitats de interesse comunitário (cfr. “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., pp. 21 in fine e 22).58 Firmada, essencialmente, a propósito da Directiva Aves e do processo de classificação de ZPEs.59 Deve ter-se presente, porém, que o recurso a critérios científicos não equivale necessariamente a uma erradicação ou neutralização da margem de livre decisão administrativa. Sobre o assunto, cfr. o nosso O Ambiente entre o Direito e a Técnica, Lisboa, 2003, maxime pp. 23 e ss..60 Cfr., quanto ao «controlo quantitativo» da classificação de ZPEs, MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “As ZPEs e a (ausência de) Discricionariedade dos Estados”, cit., pp. 107 e 108. Parece-nos, contudo, excessiva a afirmação, na p. 109, de que «é possível, recorrendo a critérios ornitológicos, densificar a norma do artigo 4.º, n.º 1 [da Directiva Aves], a ponto de definir, com suficiente rigor, os limites geográficos de uma ZPE». É que a delimitação das zonas classificadas, mesmo com base em critérios científicos, está longe de ser uma tarefa de resultado unívoco e consensual ou que possa ser desempenhada com rigor matemático, antes envolve sempre uma certa margem de incerteza.61 Trata-se, nas expressivas palavras de MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, da doutrina «não é, mas é como se fosse» (cfr. “As ZPEs e a (ausência de) Discricionariedade dos Estados”, cit.,
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Esta exigência revela-se extraordinariamente importante, visando
impedir que um Estado-Membro, por via da não classificação ou da
classificação insuficiente de sítios da Rede Natura 2000, se exima aos
seus deveres de protecção das espécies selvagens e respectivos
habitats. Há, inclusivamente, quem vislumbre neste grau de
sindicabilidade jurisdicional uma demonstração de que as normas
comunitárias relativas ao zonamento da Rede Natura 2000 se revestem
de efeito directo62.
Outro dos temas que tem merecido a atenção da doutrina e da
jurisprudência diz respeito à (ir)reversibilidade da classificação dos sítios
da Rede Natura 2000. Neste âmbito, tem-se vindo a defender a
vigência de um princípio da intangibilidade63, de acordo com o qual os
Estados-Membros, se classificaram um determinado sítio, não podem
depois voltar atrás, desclassificando-o ou, sequer, reduzindo a área
classificada. Assim, a integração de um dado espaço na Rede Natura
2000 é feita, em princípio, a título definitivo e sem admitir retrocesso.
De facto, embora a Directiva Aves nada disponha a este propósito, o
TJUE já teve oportunidade de esclarecer, em vários acórdãos, que «se é
verdade que os Estados-Membros gozam de uma certa margem de
apreciação ao escolher os territórios mais apropriados para uma
classificação como zonas de protecção especial, conforme ao artigo
4.º, parágrafo 1.º da Directiva, eles não têm, pelo contrário, a mesma
margem de apreciação no quadro do artigo 4.º, parágrafo 4.º da
Directiva ao reduzir ou modificar a superfície de tais zonas, já que eles
mesmo reconheceram, nas suas declarações, que nessas zonas se
encontravam reunidas as condições de vida mais apropriadas para as
p. 104).62 Cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., pp. 90 e ss..63 Referindo-se a este princípio, cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “Energia e conservação da natureza”, in Temas de Direito da Energia, Cadernos O Direito, n.º 3, 2008, p. 177.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
espécies enumeradas no Anexo I da Directiva»64. Isto é, uma vez
classificada uma ZPE, os Estados-Membros ficam vinculados a essa
decisão.
No entanto, o referido princípio da intangibilidade não é nada pacífico.
Em diversas ocasiões e por distintos motivos65, os Estados-Membros
tentaram proceder a desclassificações parciais de sítios da Rede Natura
2000. E se, muitas vezes, esbarraram na oposição do TJUE66, a verdade é
que também obtiveram algumas conquistas.
Por um lado, foi o próprio TJUE que, no caso Leybucht, decidido em
199167, reconheceu uma excepção ao princípio da intangibilidade. Em
que termos? Muito sucintamente, «a Alemanha pretendia alterar e
reforçar a estrutura de um dique localizado numa ZPE […]. A [sua]
defesa consistia em: a) negar o efeito significativo das perturbações
temporárias, por ocasião da construção do dique […] b) invocar
interesses gerais vitais para a realização do dique, mais concretamente
imperativos de segurança do dique, de protecção da saúde e da vida
das populações, de segurança pública, da drenagem e da
manutenção e abertura de um porto. O Tribunal acolheu a
argumentação da Alemanha por considerar que a intervenção no
dique era justificada pela relevante alegação de razões excepcionais
de interesse geral superior ao protegido pelo objectivo ecológico visado
pela Directiva, por considerar que a intervenção no ecossistema, bem
como as perturbações temporárias causadas pelos trabalhos de
construção, se limitariam ao mínimo indispensável e ainda porque o
64 Cfr. os acórdãos proferidos nos casos Leybucht e Marismas de Santoña.65 Para efeitos da construção de uma nova via rodoviária, para efeitos da regularização de um curso de água, para efeitos da instalação de infra-estruturas energéticas, etc..66 Apenas a título de exemplo, podemos mencionar a condenação do Estado português por ter alterado os limites da ZPE de Moura/Mourão/Barrancos, reduzindo a sua extensão. Cfr. o acórdão do TJUE, de 13 de Julho de 2006, no processo n.º C-191/05 (Comissão/Portugal), disponível em http://curia.europa.eu.67 Cfr. o acórdão do TJUE, de 28 de Fevereiro de 1991, no processo n.º C-57/89 (Comissão/Alemanha), disponível em http://curia.europa.eu.
170
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Governo alemão planeava desenvolver formas de compensação
ecológica»68.
Ao decidir desta forma, o Tribunal do Luxemburgo admitiu que há
interesses que se sobrepõem à protecção da biodiversidade, os quais
podem justificar a revisão em baixa dos limites de uma ZPE69. Ressalve-
se, porém, que não é todo e qualquer interesse de natureza económica
ou social que autoriza um retrocesso na configuração e extensão da
Rede Natura 2000, mas apenas certos valores de indiscutível
superioridade axiológica – como a vida humana, a saúde pública ou a
segurança colectiva – e desde que sejam adoptadas medidas
compensatórias (que atenuem os danos provocados às espécies e
habitats)70. Ou seja, o TJUE não “escancarou a porta” para o “encolher”
das áreas classificadas, mantendo a sua jurisprudência restritiva quanto
à alteração de limites dos sítios da Rede Natura 2000, que cede apenas
em face de razões imperativas de interesse geral superior.
Por outro lado, no articulado da Directiva Habitats – que data de 1992 –
foi inserida uma norma prevendo a possibilidade de desclassificação de
ZECs71. Tal desclassificação, todavia, apenas pode fundamentar-se em
razões evolutivas naturais72 (e não na evolução demográfica ou
económica), carecendo de uma demonstração científica do
desinteresse superveniente da área para os objectivos de conservação 68 MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., pp. 115-116.69 NICOLAS DE SADELEER considera que esta jurisprudência já não tem, hoje-em-dia, qualquer aplicação, uma vez que ela se formou ao abrigo do artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves, preceito que foi entretanto revogado e substituído pelo artigo 6.º, n.ºs 2, 3 e 4 da Directiva Habitats (cfr. “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 17). Salvo o devido respeito, porém, não cremos que a referida alteração normativa tenha, neste âmbito, alterado os dados fundamentais da questão.70 A exigência de medidas compensatórias, neste contexto, é extraordinariamente importante. Embora se admita que o interesse ecológico tenha de ceder perante outros interesses de valia superior, ele não pode ser totalmente postergado ou ignorado. Daí que o potencial sacrifício de determinadas espécies ou habitats, não obstante lícito, deva ser compensado ou equilibrado com medidas de efeito simétrico.71 Esta norma aplica-se apenas às ZECs e já não às ZPEs.72 Como, por exemplo, a salinização de um estuário, o assoreamento natural de um paul ou o incêndio de uma floresta.
171
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
da natureza73. Será, certamente, neste prisma que o artigo 5.º, n.º 4 do
RJRN2000 prevê «a alteração de limites ou a exclusão de qualquer sítio
da lista nacional de sítios».
Por fim, uma terceira questão controvertida tem a ver com o âmbito
espacial da protecção assegurada aos sítios da Rede Natura 2000.
Estará essa protecção confinada aos exactos limites geográficos das
zonas classificadas ou, pelo contrário, poderá estender-se para lá
desses limites?
A resposta mais óbvia ou imediata seria a de considerar que o estatuto
jurídico das ZPEs e ZECs se circunscreve à sua própria extensão territorial.
Contudo, a verdade é que, por um lado, as espécies movimentam-se
livremente, podendo nalguns casos deslocar-se para lá das fronteiras do
respectivo sítio; e, por outro lado, certas actividades humanas levadas a
cabo fora do perímetro da Rede Natura 2000 podem produzir efeitos
nefastos sobre as espécies e os habitats existentes no seu interior. Daí
que seja pertinente colocar a questão de saber se o regime jurídico em
apreço se aplica apenas dentro das zonas classificadas ou também nas
suas imediações74.
Há quem, a este propósito, defenda a existência de zonas-tampão
(“buffer zones”), isto é, de áreas circundantes às zonas classificadas nas
quais a ocupação humana seria relativamente condicionada. «Servindo
de interface entre zonas do território onde, em princípio, está excluída a
generalidade das actividades humanas, e zonas onde, em regra,
quaisquer actividades são permitidas, as zonas buffer assumem uma
73 Cfr. NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 22, onde o Autor nota que o procedimento de desclassificação de ZECs (previsto no artigo 9.º da Directiva Habitats) se encontra regulado em termos particularmente sibilinos.74 Sobre a questão vd., em pormenor, MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., pp. 69 a 73.
172
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
importância crescente na gestão dos sítios ligados à conservação da
natureza»75.
No entanto, não foi este o caminho seguido pelas Directivas Aves e
Habitats, que em momento algum prevêem a constituição de zonas-
tampão76. Aquelas Directivas encontraram, antes, outras formas de
acautelar a necessidade de protecção da Rede Natura 2000 mesmo
para lá das respectivas fronteiras.
Assim, em primeiro lugar, o artigo 3.º, n.º 2, alínea b) da Directiva Aves
prevê a «manutenção e adaptação ajustadas aos imperativos
ecológicos dos habitats situados no interior e no exterior das zonas de
protecção»77.
Em segundo lugar, ainda na Directiva Aves, a última frase do artigo 4.º,
n.º 478 menciona que «para além destas zonas de protecção, os
Estados-Membros esforçam-se igualmente por evitar a poluição ou a
deterioração dos habitats»79.
Em terceiro lugar, cumpre assinalar que o procedimento de análise de
incidências ambientais gizado pelo artigo 6.º, n.ºs 3 e 4 da Directiva
Habitats – e transposto para o artigo 10.º do RJRN2000 – refere-se às
«incidências sobre o sítio»80 e não necessariamente às incidências de
actividades localizadas no sítio. Isto é, o que importa aferir é a
gravidade dos impactos causados sobre as espécies ou os habitats
75 MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., p. 26.76 Como, aliás, a própria MARIA ALEXANDRA ARAGÃO reconhece em “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., p. 72. A Autora cita documentos da Comissão Europeia onde se afirma que a delimitação, em abstracto, de zonas-tampão seria extraordinariamente difícil, em função da grande diversidade, quer das instalações ou actividades humanas, quer das espécies e habitats naturais. Com efeito, é quase impossível calcular, a priori, a distância óptima entre uma actividade poluente e uma zona classificada, uma vez que o tipo de impactos e o seu alcance dependem de múltiplos factores conjugados.77 Sublinhado nosso.78 A qual foi mantida, sem alterações, pelo artigo 7.º da Directiva Habitats.79 Sublinhado nosso.80 Sublinhado nosso.
173
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
protegidos, independentemente do lugar onde a actividade
potencialmente lesiva é levada a cabo81.
Para além disso, e por último, os artigos 3.º, n.º 3 e 10.º da Directiva
Habitats – bem como, em Portugal, o artigo 7.º-C do RJRN2000 –
salientam a importância, a par das zonas classificadas, da preservação
de corredores ecológicos82. Mais concretamente, por forma a melhorar
a coerência ecológica da Rede Natura 2000, os Estados-Membros
devem manter e, se possível, desenvolver os elementos paisagísticos de
importância fundamental para a fauna e a flora selvagens. Estes são
todos os elementos naturais «que, pela sua estrutura linear e contínua
(tais como rios e ribeiras e respectivas margens ou os sistemas
tradicionais de delimitação dos campos) ou pelo seu papel de espaço
de ligação (tais como lagos e lagoas ou matas), são essenciais à
migração, à distribuição geográfica e ao intercâmbio genético de
espécies selvagens».
Em suma, há vários indícios na legislação em apreço de que o regime
de protecção dos sítios da Rede Natura 2000 poderá ter implicações
fora dos seus limites geográficos. E, como vimos, existem boas razões
para que assim seja. Não estamos perante locais estanques ou reservas
fechadas ao exterior. Pelo que, embora não esteja formalmente
prevista a existência de zonas-tampão ou a delimitação – a régua e
esquadro – de áreas de transição, o que é certo é que as medidas de
conservação das espécies selvagens e respectivos habitats não podem
estar confinadas, em termos estritos, a uma determinada jurisdição
territorial, nem devem cessar abruptamente logo que ultrapassada a
respectiva linha divisória, verificando-se antes um efeito irradiante que
se projecta sobre as áreas circundantes.
81 Neste sentido, vd. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., p. 71; e NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 26.82 Sobre o tema, cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., p. 24.
174
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
2.2. Medidas de conservação dos habitats
As Directivas Aves e Habitats – e, consequentemente, o RJRN2000 –
contêm regras relativas à conservação de habitats83 e regras relativas à
protecção de espécies. As primeiras versam sobre matérias como o
ordenamento e a gestão dos sítios que integram a Rede Natura 2000,
sobre as obrigações dos Estados na preservação desses sítios e ainda
sobre o tipo de actividades humanas que aí podem ou não ser levadas
a cabo. As segundas versam sobre matérias como a colheita, captura
ou abate de espécies, a introdução de espécies não indígenas, a
recolha e tratamento de animais selvagens para promover a sua
recuperação, criação em cativeiro ou devolução ao meio natural, a
anilhagem, a taxidermia, etc. (incluindo, portanto, tanto medidas in situ
como medidas ex situ).
No presente estudo ocupar-nos-emos, tão-só, das regras relativas à
conservação de habitats. No fundo, o que pretendemos conhecer é o
regime jurídico a que ficam sujeitas as zonas classificadas84 ou, noutros
termos, quais as medidas de protecção que, por força da lei,
impendem sobre as ZPEs e as ZECs.
Ora, neste âmbito, o primeiro problema a resolver é o seguinte: a partir
de quando entra em vigor o regime de protecção dos habitats? Como
vimos supra, o processo de classificação dos sítios da Rede Natura 2000
– sobretudo no que diz respeito às ZECs – é um processo evolutivo e
faseado. Daí que se coloque a questão de saber qual o momento
exacto a partir do qual o referido regime é aplicável e,
83 Dos habitats naturais, que são tutelados em função da sua valia ecológica intrínseca, e dos habitats das espécies, cuja conservação é instrumental à salvaguarda das espécies selvagens em perigo.84 Sem prejuízo, naturalmente, do efeito irradiante a que aludimos supra.
175
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
consequentemente, as respectivas medidas de conservação passam a
ser exigíveis85.
Sobre o tema dispõem, por um lado, o artigo 4.º, n.º 5 da Directiva
Habitats86 e, por outro lado, os artigos 7.º-A e 7.º-B do RJRN2000, embora
com soluções não inteiramente coincidentes. De acordo com o
primeiro preceito, o regime de protecção é aplicável logo que um sítio
seja qualificado como SIC87. O legislador nacional, porém, levou esta
regra ainda mais longe, prevendo que, mal um sítio integre a LNS, fica
transitoriamente subordinado ao regime próprio das ZECs88. Quanto às
ZPEs, o seu estatuto aplica-se às «designadas ou a designar», o que
significa que a respectiva protecção jurídica não necessita de aguardar
o momento formal de classificação.
Não obstante a assinalada divergência normativa, o que é certo é que,
mesmo no Direito Comunitário, deverá considerar-se – por força do
princípio da lealdade89 – que assim que um Estado-Membro demonstra
a intenção de vir a classificar um determinado sítio, fica obrigado a
protegê-lo ou, pelo menos, a abster-se de comportamentos que
ponham em causa os valores ecológicos nele inscritos. É aquilo que se
tem designado por “obrigação de standstill”90, no sentido em que o
Estado fica impedido de, previamente à classificação formal e definitiva
do sítio, adoptar qualquer atitude que possa colocar em perigo ou
85 Cfr. NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., pp. 25 e 26.86 Vd. também o artigo 5.º, n.º 4 da mesma Directiva.87 NICOLAS DE SADELEER considera que só assim é quanto ao regime geral de conservação definido no artigo 6.º, n.º 2 da Directiva Habitats, mas já não quanto às medidas específicas de conservação a que faz referência o artigo 6.º, n.º 1 da mesma Directiva. Cfr. “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 23.88 De acordo com JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, é o próprio TJUE que exige esta solução. Cfr. “Energia e conservação da natureza”, cit., p. 178.89 Actualmente constante do artigo 4.º, n.º 3 do Tratado da União Europeia.90 Referindo-se a esta obrigação, cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., pp. 89 e ss..
176
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
inutilizar essa mesma classificação, prejudicando assim o cumprimento
dos objectivos conservacionistas em causa.
Analisada a vigência temporal do regime jurídico da Rede Natura 2000,
debrucemo-nos agora sobre o respectivo conteúdo. E aquilo que
imediatamente salta à vista é que, diferentemente do que se passa
quanto ao processo de classificação dos sítios – que, como vimos, é
distinto para as ZPEs e para as ZECs –, o regime de conservação a que
ficam sujeitos é homogéneo. Isto porque, não obstante a existência de
duas directivas autónomas, a cláusula geral de protecção é a mesma –
não igual, mas exactamente a mesma. Senão, vejamos.
O artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves sintetizava as obrigações de tutela
das zonas classificadas nos seguintes termos: «Os Estados-Membros
tomarão as medidas adequadas para evitar, [nas ZPEs], a poluição ou a
deterioração dos habitats, bem como as perturbações que afectam as
aves, desde que tenham um efeito significativo a propósito dos
objectivos do presente artigo. Para além destas zonas de protecção, os
Estados-Membros esforçam-se igualmente por evitar a poluição ou a
deterioração dos habitats».
Sucede que, em 1992, o artigo 7.º da Directiva Habitats revogou esta
norma – rectius, a primeira frase desta norma – substituindo-a pelas
obrigações decorrentes dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 6.º da própria
Directiva Habitats. A cláusula geral de protecção de toda a Rede
Natura 2000 passou, então, a constar do artigo 6.º, n.º 2 da Directiva
Habitats, que sintetiza as obrigações de tutela das zonas classificadas
nos seguintes termos: «Os Estados-Membros tomarão as medidas
adequadas para evitar […] a deterioração dos habitats naturais e dos
habitats de espécies, bem como as perturbações que atinjam as
espécies para as quais as zonas foram designadas, na medida em que
essas perturbações possam vir a ter um efeito significativo, atendendo
aos objectivos da presente directiva».
177
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Duas conclusões podem retirar-se acerca desta evolução normativa. A
primeira – e a que nos interessava aqui salientar – é que quer ZPEs, quer
ZECs são reguladas pelo mesmo preceito (o artigo 6.º, n.ºs 2, 3 e 4 da
Directiva Habitats)91, pelo que o respectivo regime de protecção é,
naturalmente, comum. A segunda diz respeito às inovações introduzidas
pelo artigo 6.º da Directiva Habitats, que esclareceram várias dúvidas e
ambiguidades resultantes da letra do artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves92,
mas, ao mesmo tempo, abriram a porta para, verificado um
determinado circunstancialismo, ser admitida, em plena Rede Natura
2000, a concretização de planos ou projectos nefastos para a
biodiversidade.
Atentemos, pois, de forma muito breve, nas principais diferenças entre o
preceito antigo e o novo93: deixou de se mencionar a poluição94; ficou
claro que toda e qualquer deterioração de habitats é proibida, ao
contrário da perturbação de espécies, que apenas é censurável
quando produza um efeito significativo95; deixou de se atender apenas
aos objectivos do artigo em causa, mas antes, de forma mais lata, aos
91 NICOLAS DE SADELEER sustenta, porém, que só as ZPEs formalmente classificadas é que ficam sujeitas ao regime do artigo 6.º, n.ºs 2, 3 e 4 da Directiva Habitats; já os locais que deveriam ter sido classificados como ZPEs mas não o foram (e aos quais, segundo a jurisprudência do TJUE, se aplica, à mesma, o regime de protecção da Rede Natura 2000, como vimos supra), continuam abrangidos pelo regime traçado no artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves. Cfr. “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 24.92 Com particular destaque para a questão de saber se a exigência de “efeito significativo” se aplicava apenas às perturbações que afectam as espécies protegidas ou também à deterioração dos respectivos habitats.93 Cfr. também, para uma comparação entre estes preceitos, MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., p. 67; e, da mesma Autora, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., pp. 33 e 34.94 Manifestando a sua concordância com a supressão do vocábulo “poluição”, «pois a poluição tanto pode ser uma forma de deterioração como de perturbação, e neste último caso, com ou sem efeito significativo, conforme o grau e o tipo de poluição considerada», cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., p. 107.95 Sobre a diferença semântica – e respectivas consequências jurídicas – entre a “deterioração” e as “perturbações” vd. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Considerações sobre a interpretação e o efeito nacional do Direito Comunitário para a protecção das aves e seus habitats a propósito da localização da nova ponte sobre o Tejo em Lisboa”, cit., pp. 107 a 109.
178
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
objectivos da Directiva; e, por fim, passou a exigir-se uma análise das
incidências ambientais dos planos ou projectos a levar a cabo nos sítios
da Rede Natura 2000, permitindo-se que mesmo aqueles que sejam
objecto de conclusões negativas possam concretizar-se, desde que
reconhecido o seu interesse público e adoptadas as necessárias
medidas compensatórias (artigo 6.º, n.ºs 3 e 4 da Directiva Habitats)96.
Uma questão que a doutrina tem discutido longamente a propósito da
cláusula geral de protecção das zonas classificadas consiste em saber
se essa norma tem ou não efeito directo. Vários Autores entendem que
sim, sustentando que, em caso de não transposição, os Estados-
Membros se encontram, ainda assim, vinculados à protecção das zonas
classificadas nos termos definidos pela Directiva97.
Em Portugal, contudo, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) já teve
oportunidade de decidir em sentido contrário. No célebre caso da
ponte sobre o Tejo, aquele Tribunal concluiu, ainda relativamente ao
artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves, que embora a norma efectivamente
não tivesse sido transposta, ela não possuía efeito directo vertical
«porque dela não resulta para o Estado uma obrigação perfeitamente
clara, precisa e incondicional»98. Esta conclusão deveu-se
essencialmente ao facto de as lesões à biodiversidade que o Estado
está obrigado a evitar serem definidas através de uma expressão que é
tudo menos unívoca («desde que tenham um efeito significativo»).
Na verdade, o preceito em exame usa, não um, mas dois conceitos
indeterminados tipo99 («efeito significativo», na previsão; e «medidas 96 Relativamente a este último aspecto, veja-se a análise mais pormenorizada que faremos infra, no ponto 3..97 Neste sentido, cfr., entre outros, MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., pp. 63 e ss.; e NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 28.98 Cfr. acórdão da 2.ª subsecção de contencioso administrativo do STA, de 14 de Março de 1995, exarado no proc. n.º 31.535.99 Cfr. a distinção entre conceitos classificatórios – que «se referem a situações individualizáveis como constitutivas de uma classe ou soma de acontecimentos substancialmente idênticos» e cujo preenchimento permite apenas «uma única solução correcta, justificando-se o pleno exame do juiz para verificar se foi essa a
179
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
adequadas», na estatuição). O que, de facto, permite questionar o
carácter claro e preciso da norma. Acresce que, na versão resultante
da Directiva Habitats, se admitiu que certas lesões, ainda que
significativas, possam ser excepcionalmente autorizadas pelos Estados-
Membros. Isto é, mesmo que, numa primeira fase, se consiga ultrapassar
a incerteza normativa apurando, sem margem para dúvidas, que certa
actividade produz um efeito significativo sobre uma zona classificada,
ainda assim essa actividade poderá acabar por ser viabilizada se se
entender que é de interesse público. O que significa que o Estado retém
sempre alguma dose de discricionariedade na determinação dos
planos e/ou projectos que, por força do regime da Rede Natura 2000,
podem ou não ser concretizados100.
O raciocínio do STA, todavia, não convenceu a doutrina101. Entre outros
argumentos, salientou-se que a exigência de carácter significativo diz
respeito apenas às perturbações sobre as espécies e não à
deterioração dos habitats102. E houve quem, para sustentar a tese do
efeito directo, chamasse à colação a jurisprudência do TJUE, supra
referida, de acordo com a qual mesmo nos sítios não formalmente
adoptada» – e conceitos indeterminados tipo – cuja aplicação ao caso concreto «envolve a emissão de juízos de valor que inevitavelmente contêm elementos subjectivos, muitos deles integrados numa prognose» – em JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra, 1987, pp. 117 e ss..100 Nem por isso, todavia, o TJUE se coibiu de reconhecer efeito directo à análise de incidências ambientais prevista no artigo 6.º, n.º 3 da Directiva Habitats. A propósito de uma providência cautelar sobre a utilização de um determinado método tradicional de pesca nos Países Baixos, aquele Tribunal decidiu que, mesmo na falta de transposição (e uma vez decorrido o respectivo prazo), os tribunais nacionais podem e devem controlar o respeito, por parte das autoridades competentes, dos limites à discricionariedade de avaliação decorrentes do citado preceito. Cfr. o acórdão do TJUE, de 7 de Setembro de 2004, no processo n.º C-127/02, disponível em http://curia.europa.eu.101 Cfr. as fortes críticas que MARIA ALEXANDRA ARAGÃO desfere à decisão do STA, procurando desmontar a respectiva argumentação, em “O Paul de Arzila e a Protecção do Património Natural”, cit., p. 63 e ss..102 Algo que, no entanto, à luz do artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves – sobre o qual o STA se pronunciou – não era nada claro. Por outro lado, este argumento prova demenos pois se, relativamente à deterioração de habitats, os Estados efectivamente não dispõem de qualquer margem de apreciação valorativa, a verdade é que a têm quanto à gravidade das perturbações que atinjam as espécies.
180
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
classificados (mas que o devessem ter sido) é aplicável o regime de
protecção da Rede Natura 2000103.
Esta é, todavia, uma discussão que hoje se encontra em grande
medida ultrapassada, uma vez que o referido regime de protecção da
Rede Natura 2000 já foi transposto para o ordenamento jurídico interno.
Assim sendo, e presumindo que a transposição foi correctamente
efectuada, a invocação do efeito directo perde relevância, havendo
antes que atender à forma como o Direito português define o estatuto
das zonas classificadas e aos mecanismos jurídicos através dos quais
pretende assegurar a respectiva protecção ambiental.
Vale a pena, portanto, centrarmos a nossa atenção no RJRN2000104. É aí
que se encontra plasmado o regime de protecção dos sítios que, no
território nacional, integram a Rede Natura 2000. E é esse,
consequentemente, o diploma que será objecto do nosso estudo e
sobre o qual faremos uma apreciação crítica. Naturalmente que,
estando em causa um instituto que tem a sua génese e o seu
fundamento no Direito Comunitário derivado, não poderemos deixar de
fazer referência – sempre que se justifique – às regras constantes das
Directivas Aves e Habitats. Mas não é esse, contudo, o cerne do
presente trabalho. O nosso objectivo consiste, isso sim, em avaliar as
soluções que o legislador nacional encontrou para concretizar o
parâmetro jus-europeu. Pelo que, doravante, focar-nos-emos
essencialmente no modo como a Rede Natura 2000 está regulada em
Portugal.
103 Jurisprudência essa, porém, que tem mais a ver com as consequências do incumprimento do dever de classificação dos sítios apropriados à conservação da natureza do que, propriamente, com a falta de transposição da cláusula geral de salvaguarda dos valores naturais pertencentes à Rede Natura 2000.104 Isto é, no Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril, tal como alterado (e republicado) pelo Decreto-Lei n.º 49/2005, de 24 de Fevereiro.
181
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
O regime das ZECs encontra-se regulado no artigo 7.º do RJRN2000105,
que prevê, por um lado, uma obrigação genérica de conservação106
(proémio do n.º 2) e, por outro lado, diversas medidas específicas de
conservação (alíneas do n.º 2) e ainda outras medidas complementares
(n.º 3). Estas medidas encontram-se depois densificadas noutros
preceitos, formando, no seu conjunto, o núcleo duro ou o corpo
essencial e estruturante da tutela jurídica que é assegurada, no nosso
país, aos sítios da Rede Natura 2000.
Relativamente às ZPEs, o seu regime consta do artigo 7.º-B do RJRN2000
que, por um lado, traça uma obrigação genérica de conservação (n.º
1) e, por outro lado, remete para o regime próprio das ZECs (n.º 2).
Convém registar que a referida obrigação genérica de conservação se
encontra redigida em moldes anacrónicos107. De todo o modo, o que
importa agora relevar é que as medidas de conservação previstas para
as ZECs acabam por se aplicar também às ZPEs. O que, mais uma vez,
vem comprovar o carácter homogéneo e uniforme do regime de
protecção dos sítios da Rede Natura 2000.
Vejamos, então, uma por uma, as medidas de conservação referidas no
artigo 7.º do RJRN2000.
2.2.1. Ordenamento do território
Uma das mais importantes medidas de conservação da Rede Natura
2000 prende-se com o ordenamento do respectivo território. Esta
105 Sendo que, por força do artigo 7.º-A, este regime é aplicável aos sítios logo a partir do momento em que integram a LNS, como vimos supra. O que, aliás, permite questionar se a classificação desses sítios como ZECs não acabará por ser um mero pró-forma.106 Em quase tudo semelhante à cláusula geral constante do artigo 6.º, n.º 2 da Directiva Habitats.107 Isto é, o artigo 7.º-B, n.º 1 do RJRN2000 transcreve a fórmula, já revogada, do artigo 4.º, n.º 4 da Directiva Aves. Fica a ideia, portanto, de que o legislador nacional pura e simplesmente não se apercebeu que essa norma já havia sido, entretanto, substituída pelo artigo 6.º, n.ºs 2, 3 e 4 da Directiva Habitats. O que revela uma incompetência e uma falta de rigor absolutamente lamentáveis, sobretudo se considerarmos que a referida evolução normativa teve lugar em 1992, vários anos antes da aprovação, em 1999, e do posterior aperfeiçoamento, em 2005, do RJRN2000.
182
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
medida encontra-se enunciada no artigo 7.º, n.º 2, alínea a) do
RJRN2000, sendo depois desenvolvida no artigo 8.º do mesmo diploma.
Aí se prevêem dois níveis distintos de planificação com um enfoque
conservacionista: o nível sectorial e o nível local.
(i) Plano Sectorial da Rede Natura 2000
De acordo com o n.º 4 do referido artigo 8.º, «a execução da Rede
Natura 2000 é objecto de um plano sectorial», o qual deve, «tendo em
conta o desenvolvimento económico e social das áreas abrangidas»,
estabelecer «orientações para a gestão territorial» dos sítios e «medidas
referentes à conservação das espécies de fauna, flora e habitats».
Os planos sectoriais são, nos termos do artigo 35.º do Regime Jurídico
dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT)108, «instrumentos de
programação ou de concretização das diversas políticas com
incidência na organização do território», nomeadamente nos domínios
dos transportes, das comunicações, da energia e dos recursos
geológicos, da educação e da formação, da cultura, da saúde, da
habitação, do turismo, da agricultura, do comércio, da indústria, das
florestas e do ambiente.
Pois bem, o legislador entendeu que se justificava a existência de um
plano sectorial quanto à política de salvaguarda da biodiversidade que
se materializa, geograficamente, nos sítios da Rede Natura 2000. Tal
opção já foi criticada na doutrina, com base no argumento de que a
conservação da natureza não deve assumir uma índole sectorial, mas
antes transversal a todas as políticas públicas109.
Seja como for, a lei é clara ao exigir a aprovação de um instrumento
planificatório que incida de modo específico sobre as ZPEs e ZECs,
108 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro (já por diversas vezes modificado, nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º 46/2009, de 20 de Fevereiro, que republica o diploma, e pelo Decreto-Lei n.º 181/2009, de 7 de Agosto).109 Cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “O velho, o novo e o reciclado no direito da conservação da natureza”, cit., p. 48.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
definindo um conjunto de recomendações ou directrizes quanto ao seu
ordenamento territorial. Este desígnio foi posto em marcha pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 66/2001, de 6 de Junho, que
determinou a elaboração do Plano Sectorial da Rede Natura 2000
(PSRN2000), o qual veio, sete anos depois, a ser aprovado pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 115-A/2008, de 21 de Julho.
Numa breve apreciação, pode concluir-se que se trata de um
documento: i) antes de mais, extremamente longo e exaustivo (com
cerca de 450 páginas); ii) de teor marcadamente técnico, logo,
dificilmente apreensível110; iii) cujas peças gráficas apresentam uma
escala (1:100.000) bastante imprecisa111; iv) e que, quanto ao seu
conteúdo, consiste essencialmente num repositório de fichas (fichas de
habitats e de espécies) que procedem à inventariação e
caracterização da biodiversidade existente, identificam os riscos ou
ameaças mais significativos e deixam orientações de gestão.
Do ponto de vista jurídico, porém, o aspecto que mais importa salientar
é que estamos perante um plano sem eficácia plurisubjectiva, isto é, um
plano que não vincula entidades privadas, mas apenas entidades
públicas. Ao contrário dos planos especiais de ordenamento do
território (PEOTs) e dos planos municipais de ordenamento do território
(PMOTs) – que definem o regime de uso e ocupação do solo, em termos
directamente e imediatamente vinculantes para os particulares –, os
planos sectoriais apenas obrigam os órgãos administrativos112.
Obrigam, desde logo, os órgãos administrativos responsáveis pela
aprovação dos PEOTs e dos PMOTs, para onde devem, naturalmente,
ser vertidas as regras e orientações constantes dos planos sectoriais. Ou
seja, embora as determinações dos planos sectoriais sejam obrigatórias,
elas só se tornam efectivamente operacionais quando são
concretizadas noutros planos mais detalhados.
110 Salientando este aspecto, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, ult. loc. cit., pp. 48-49.111 Cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, ult. loc. cit., p. 49.112 Cfr. artigo 3.º do RJIGT.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
No caso do PSRN2000, este obriga ainda, segundo o artigo 10.º, n.º 4 do
RJRN2000, os órgãos administrativos a quem incumbe sujeitar ou não
determinados projectos a uma avaliação de impacte ambiental.
Sucede que, ao contrário do previsto, o PSRN2000 não identifica
claramente os critérios a que deve obedecer tal decisão. De resto, o
referido preceito legal encontra-se já desactualizado, pelas razões que
veremos infra.
Em resultado do que precede, podemos afirmar que o PSRN2000 é um
instrumento jurídico pouco operativo113. Não é, nem um plano de
ordenamento plurisubjectivo, nem um concreto plano de gestão das
zonas classificadas, nem sequer um plano que regule directamente o
uso do solo, mas tão-só um documento enquadrador e programático.
Um documento que regista, numa macro-escala, os valores naturais
protegidos e os contextualiza, formulando um conjunto de orientações
para a sua salvaguarda – orientações essas que, para se tornarem
efectivas, terão de ser depois transpostas para um PEOT ou um PMOT.
(ii) Planos Especiais e Municipais de Ordenamento do Território
O artigo 8.º do RJRN2000 não se limita, porém, a prever a existência de
um plano sectorial. Prevê ainda que a conservação das espécies e dos
habitats protegidos seja assegurada através de instrumentos de gestão
territorial de âmbito local – que serão, em regra, PMOTs; ou PEOTs,
quando se trate de ZPEs ou ZECs por eles abrangidas (vd., quanto a este
último caso, o n.º 2 do artigo 8.º).
Ou seja, o legislador nacional entendeu que, a par da planificação
sectorial, o bom ordenamento da Rede Natura 2000 carecia de uma
planificação mais precisa e de proximidade. Para esse efeito, recorreu
aos planos plurisubjectivos já hoje previstos na lei: se a área em causa
estiver abrangida por um PEOT, será aí que se introduzirão – em
obediência às orientações constantes do PSRN2000 – as «previsões, 113 Neste sentido, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, ult. loc. cit., p. 47.
185
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
restrições e determinações» mais apropriadas à conservação das
espécies e dos habitats protegidos; se não, será o PMOT territorialmente
aplicável – em princípio um Plano Director Municipal (PDM) – a
contemplar essas mesmas regras.
Outra opção possível teria sido a previsão de um novo tipo de PEOT,
especificamente direccionado para a gestão territorial das ZPEs e ZECs.
Sendo os PEOTs instrumentos particularmente vocacionados para a
tutela de valores ecológicos, faria sentido a sua consagração também
para efeitos da Rede Natura 2000. Mas, por outro lado, isso levaria a
uma multiplicação do tipo e do número de planos especiais, com os
inerentes problemas de sobreposição (agravados pelo facto de muitos
dos sítios da Rede Natura 2000 constituírem, simultaneamente, áreas
protegidas, albufeiras de águas públicas, zonas de orla costeira ou
estuários naturais, isto é, territórios relativamente aos quais já se prevê a
existência de um PEOT próprio). Pelo que se revelou mais sensato o
recurso aos instrumentos de gestão territorial já existentes.
Por forma a assegurar a compatibilidade entre o PSRN2000 e os
PEOTs/PMOTs que incidem sobre zonas classificadas, garantindo que as
opções do primeiro são efectivamente incorporadas pelos segundos, o
já citado artigo 8.º prevê a adaptação destes últimos. Assim, aquando
da primeira revisão ou alteração dos PEOTs e PMOTs em causa – e, em
qualquer caso, no prazo máximo de seis anos após a aprovação do
PSRN2000, isto é, até 2014114 –, devem aqueles planos ser adaptados às
medidas de conservação previstas no plano sectorial (n.ºs 3 e 7). Essa
adaptação decorrerá nos termos do artigo 25.º, n.º 1 do RJIGT115 e
segundo as regras previstas no próprio PSRN2000 (n.º 6).
114 Sendo que o PSRN2000 prevê a sua própria revisão no prazo de cinco anos, isto é, até 2013.115 Vd. ainda, com potencial interesse para a questão em apreço, os artigos 23.º, n.º 2; 24.º, n.º 3; e 25.º, n.º 2 do RJIGT.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
No que diz respeito aos PMOTs que abrangem sítios da Rede Natura
2000, não podemos deixar de notar que se têm verificado algumas
dificuldades de harmonização ou, mais correctamente, alguns focos de
tensão entre, por um lado, o imperativo de conservação da natureza e,
por outro lado, o interesse de desenvolvimento urbanístico.
Exemplo disso mesmo é a problemática da definição dos núcleos ou
perímetros urbanos116. É que, de acordo com o artigo 9.º, n.º 2, alínea a)
do RJRN2000, a construção no interior dos perímetros urbanos das zonas
classificadas não carece de parecer prévio do ICNB ou da CCDR
territorialmente competente. E, de resto, aquando da criação de
algumas ZPEs houve mesmo a preocupação de excluir os perímetros
urbanos da área classificada117. Surgindo depois a questão de saber em
que sede devem esses perímetros ser delimitados (se no próprio diploma
de classificação; ou nos PMOTs118), bem como divergências quanto à
sua delimitação in concreto119.
Um outro exemplo, ainda neste domínio, depreende-se do teor do
artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 384-B/99, de 23 de Setembro, segundo o
qual «sempre que uma câmara municipal considere que o parecer do
ICN […] não tomou em devida consideração as disposições dos seus
planos municipais de ordenamento do território, pode solicitar a
reapreciação da situação a efectuar por despacho conjunto dos
Ministros do Equipamento, do Planeamento e da Administração do
Território e do Ambiente». Esta norma, que chegou a ser lida como uma
capitulação do desígnio de protecção da biodiversidade perante os
116 Cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “O velho, o novo e o reciclado no direito da conservação da natureza”, cit., p. 49.117 Cfr., quanto à ZPE do Estuário do Tejo, o artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 280/94, de 5 de Novembro.118 Como, em tempos, chegou a constar expressamente do artigo 2.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 384-B/99, de 23 de Setembro, entretanto revogado pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 49/2005, de 24 de Fevereiro.119 Como sucedeu «no caso do aglomerado de Alcochete, [em que] não foi possível, em sede de elaboração do Plano Director Municipal, chegar a um consenso sobre o limite do seu perímetro urbano, entenda-se, da área excluída da ZPE, tendo o diferendo resultado na exclusão de ratificação de uma determinada área daquele perímetro». Cfr. o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 140/2002, de 20 de Maio.
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
interesses desenvolvimentalistas das autarquias locais120, revelou-se
bastante controversa. Tanto que veio a ser revogada pelo artigo 5.º do
Decreto-Lei n.º 49/2005, de 24 de Fevereiro.
2.2.2. Gestão
Prosseguindo na análise das medidas de conservação da Rede Natura
2000 que se encontram plasmadas no artigo 7.º do RJRN2000,
deparamos, na alínea b) do n.º 2, com uma referência à «gestão» dos
sítios. Tal «gestão» deve ser levada a cabo nos termos do artigo 9.º do
mesmo diploma, que tem por epígrafe «actos e actividades
condicionados». O que significa que, na perspectiva do legislador, a
gestão dos sítios assenta na limitação de certo tipo de condutas
potencialmente lesivas da biodiversidade121. Trata-se – não podemos
deixar de o assinalar – de uma visão um pouco redutora. Seja como for,
importa apreciar, com um pouco mais de detalhe, quais os actos e
actividades em questão e em que termos, de que modo ou com que
intensidade eles se encontram condicionados.
Antes disso, porém, cumpre fazer uma breve alusão ao n.º 1 do artigo
9.º do RJRN2000, onde se estabelece uma obrigação genérica de
conservação dos valores naturais presentes na Rede Natura 2000. Na
senda do artigo 6.º, n.º 2 da Directiva Habitats, estipula-se aí que «as
entidades da Administração Pública com intervenção nas ZEC [sendo
que este regime é extensível às ZPEs, por força do artigo 7.º-B, n.º 2 do
RJRN2000] devem, no exercício das suas competências, evitar a
deterioração dos habitats naturais e dos habitats das espécies, bem
como as perturbações que atinjam espécies para as quais as zonas
120 Cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., p. 36.121 O artigo 7.º, n.º 3, alínea a) do RJRN2000 prevê ainda, como medida complementar de conservação da Rede Natura 2000, a eventual aprovação de planos de gestão. Vd. infra.
188
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
foram designadas, na medida em que possam vir a ter um efeito
significativo, atendendo aos objectivos do presente diploma».
Ora, tirando o facto de se dirigir especificamente à Administração
Pública, esta obrigação de conservação limita-se a copiar os exactos
termos em que se encontra redigida a cláusula geral do artigo 7.º, n.º 2
do RJRN2000, revelando-se, portanto, redundante. Para além de nada
acrescentar ao que já resulta da referida cláusula geral, a obrigação
em apreço está formulada em termos consideravelmente vagos,
descrevendo o objectivo a atingir mas sem descriminar os meios que
devem adoptados para o alcançar. Bastante mais preciso e concreto é
o resto do artigo 9.º do RJRN2000.
Logo no seu n.º 2, contém uma listagem de actos e actividades cuja
realização em zonas classificadas está condicionada. Trata-se de um
elenco deveras abrangente e diversificado, que inclui desde obras de
construção civil (alínea a)) até à prática de alpinismo, escalada ou
montanhismo (alínea i)). Qualquer uma das acções que aí se
encontram descritas, desde que incida sobre um sítio da Rede Natura
2000, fica dependente da prévia obtenção de um parecer favorável122.
Saliente-se, no entanto, que este regime só se aplica enquanto os PEOTs
ou PMOTs territorialmente relevantes não forem revistos ou alterados de
modo a incluírem previsões, restrições e determinações visando a
conservação das espécies e habitats protegidos (proémio do n.º 2). Isto
é, até os instrumentos de planeamento do território ao nível local
passarem a incorporar o objectivo de conservação da natureza123, as
actividades elencadas no n.º 2 do artigo 9.º carecem de um controlo
prévio, sob a forma de parecer; a partir daí, o exercício dessas
122 Chama-se a atenção para o facto de este parecer não ser exigível quanto a projectos classificados como PIN+, nos termos do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 285/2007, de 17 de Agosto.123 O que acontecerá, em princípio, quando os mesmos forem adaptados às medidas de conservação previstas no PSRN2000, nos termos do artigo 8.º, n.ºs 3 e 7 do RJRN2000.
189
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
actividades passa a ser regulado pelas normas de ordenamento
territorial, dispensando-se o referido parecer.
Não obstante o carácter provisório do regime em análise, importa
perceber melhor como ele funciona, designadamente quais os
requisitos em que assenta, as características de que se reveste e os
efeitos que tem o parecer em causa.
Primo, há que apurar quem é competente para a sua emissão. Nos
termos do n.º 2 do artigo 9.º, o parecer é dado pelo ICN (actualmente
ICNB: Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade) ou
pela comissão de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR)
competente. O que suscita, desde logo, a questão de saber quando
intervém uma ou outra destas entidades. Com base no n.º 7 do mesmo
artigo, conclui-se que a competência pertence, em princípio, ao ICNB,
cabendo ao Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território
designar, por despacho, os casos em que essa competência deve
exercida pela CCDR territorialmente competente124.
Secundo, há que determinar qual o prazo para a emissão do parecer.
De acordo com o n.º 3 do artigo 9.º, esse prazo é de 45 dias úteis125 a
contar da data da sua solicitação.
Tertio, há que aferir o que acontece caso esse prazo não seja cumprido.
Segundo o n.º 5 do artigo 9.º, o silêncio tem, neste caso, um efeito
124 Neste sentido, cfr. AAVV, Ordenamento do Território, Urbanismo e Rede Natura 2000, Volume I, CEDOUA, Coimbra, 2009, p. 289. Contudo, a pp. 287 da mesma obra sugere-se uma outra leitura (segundo a qual «nos projectos de carácter regional […] o parecer é da competência das CCDR; nos projectos mais locais é o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade que deve emitir o parecer»), que acaba por relegar o ICNB a um papel menor – o que, salvo o devido respeito, não nos parece correcto.
Seja como for, a alternatividade da competência (ainda para mais, em função de um despacho ministerial) constitui uma solução, no mínimo, questionável, à luz do disposto no artigo 112.º, n.º 5 da CRP e do princípio da legalidade da competência, plasmado no artigo 29.º, n.º 1 do CPA.125 Especificação desnecessária, dada a regra de contagem de prazos constante do artigo 72.º do CPA.
190
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
positivo, isto é, a ausência de parecer no devido prazo equivale à
emissão de parecer favorável126.
Quarto, há que descortinar qual a força jurídica do parecer em exame.
Depreende-se do n.º 2 do artigo 9.º – ao exigir um «parecer favorável»
para que certas actividades possam ter lugar – que estamos perante
um parecer vinculativo, no sentido em que a sua recusa inviabiliza
necessária e automaticamente o exercício da actividade pretendida.
Quinto, há que apreciar quais as garantias de que os particulares
dispõem contra este tipo de pareceres, no caso de eles serem
negativos. Ao abrigo do n.º 6 do artigo 9.º, «cabe recurso dos pareceres
desfavoráveis para o Ministro do Ambiente e do Ordenamento do
Território, no prazo de 30 dias a contar da sua notificação». Esta norma
convida a uma reflexão adicional. O facto de o parecer ser notificado
directamente ao particular, o facto de o mesmo ser passível de recurso
(hierárquico, caso o parecer tenha sido emitido por uma CCDR; ou
tutelar, caso o parecer tenha sido emitido pelo ICNB), bem como o
facto de, nalgumas das situações previstas nas alíneas do artigo 9.º, n.º
2, o parecer não se destinar a preparar ou informar uma decisão
posterior, levam-nos a questionar a verdadeira natureza jurídica do quid
em apreço: será mesmo um parecer? ou um acto administrativo de tipo
autorizativo (ainda que, por vezes, inserido num procedimento
complexo e faseado, de que fazem parte outros actos administrativos)?
126 Em tom crítico, cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., p. 36. Em geral, contestando a utilização da figura do deferimento tácito em regimes jurídico-ambientais, cfr. LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, O procedimento administrativo de avaliação de impacto ambiental, Coimbra, 1998, pp. 208 a 210; VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, 2002, pp. 166-167; JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DIAS, “O deferimento tácito da DIA – mais um repto à alteração do regime vigente (anotação ao Acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2001)”, in CEDOUA, 2.2001, pp. 72 e ss.; CARLA AMADO GOMES, Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, pp. 613 e ss. (onde, a pp. 615-617, são recenseados alguns casos – nenhum dos quais relativamente a Portugal – em que o TJUE já se opôs à consagração do deferimento tácito em diplomas nacionais de transposição de directivas comunitárias em matéria ambiental).
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Por fim, resta apenas mencionar o n.º 4 do artigo 9.º, o qual – ainda que
de forma algo sibilina – permite lançar alguma luz sobre a articulação
entre o parecer sub judice e a avaliação ambiental das actividades a
ele sujeitos. O que aí se prevê é que o prazo para a emissão do parecer
fica suspenso enquanto se estiver a decidir sobre a sujeição ou não da
actividade em causa a uma avaliação de impacte ambiental (AIA).
Este compasso de espera justifica-se plenamente porque: se não houver
lugar a AIA, o parecer deve, nos termos do artigo 10.º, n.º 5 do
RJRN2000, incluir uma análise das incidências ambientais da referida
actividade; mas, se houver lugar a AIA, o parecer já não necessita de
proceder a essa análise – podendo, no entanto, neste último caso,
colocar-se a hipótese, ainda que não expressamente contemplada no
RJRN2000, de o parecer em questão ser proferido no seio do
procedimento de AIA127. Voltaremos ao assunto mais adiante.
2.2.3. Análise de incidências ambientais (remissão)
O artigo 10.º, n.º 1 do RJRN2000 dispõe que «as acções, planos ou
projectos não directamente relacionados com a gestão de um sítio […]
e não necessários para essa gestão, mas susceptíveis de afectar essa
zona de forma significativa, individualmente ou em conjugação com
outras acções, planos ou projectos, devem ser objecto de avaliação de
incidências ambientais no que se refere aos objectivos de conservação
da referida zona».
Atendendo à importância de que a análise de incidências ambientais
se reveste na economia global do RJRN2000, ao grau de detalhe com
que pretendemos escalpelizar o seu regime jurídico e, por fim, ao relevo
127 Algo de semelhante encontra-se previsto para os projectos classificados como PIN+ (não exactamente a emissão do parecer no seio do procedimento de AIA, mas a substituição desse parecer pela intervenção do ICNB ou da CCDR no âmbito da comissão de avaliação nomeada para efeitos de AIA; o que, em termos práticos, vai dar ao mesmo), embora aí por determinação expressa da lei. Cfr. artigo 19.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 285/2007, de 17 de Agosto.
192
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
que merecem as desconcertantes conclusões a que a nossa pesquisa
nos conduziu, esta matéria será devidamente analisada em capítulo
autónomo, para o qual remetemos.
2.2.4. Vigilância e Fiscalização
O artigo 7.º, n.º 1 do RJRN2000 refere-se ainda, nas suas alíneas d) e e),
às medidas de vigilância e de fiscalização.
A vigilância, regulada no artigo 20.º, consiste na monitorização
sistemática do estado de conservação das espécies e habitats
protegidos. Esta tarefa compete ao Instituto da Conservação da
Natureza e da Biodiversidade (ICNB). Relativamente às espécies
cinegéticas, a vigilância está também a cargo dos competentes
serviços do Ministério da Agricultura.
A fiscalização, regulada no artigo 21.º, compete a diversas entidades
administrativas e visa assegurar o respeito pelas regras constantes do
RJRN2000 e respectiva legislação complementar, cujo incumprimento é
passível de constituir um ilícito contra-ordenacional e de ser sancionado
como tal.
2.2.5. Medidas complementares de conservação
O artigo 7.º, n.º 3 do RJRN2000 prevê a possibilidade de serem definidas
medidas complementares de conservação. Estas medidas serão
concretizadas através da aprovação de planos de gestão (alínea a))
ou de outros instrumentos regulamentares, administrativos ou contratuais
(alínea b)).
Quanto aos planos de gestão, estes são aprovados por portaria
conjunta do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território e dos
193
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
ministros com tutela sobre os sectores com interesses relevantes no sítio
da Rede Natura 2000 em questão. Os planos de gestão são
obrigatoriamente precedidos de uma consulta pública, que segue os
trâmites previstos para os PEOTs. No entanto, «como a lei determina
apenas a aplicação do regime procedimental dos planos especiais aos
planos de gestão e não a sua absoluta coincidência, estes planos não
podem ser considerados como planos especiais. Por consequência, eles
não podem ser directamente oponíveis aos particulares»128.
Quanto aos demais instrumentos regulamentares, administrativos ou
contratuais, o preceito em apreço não acrescenta muito, limitando-se a
exigir que cumpram os objectivos de conservação visados pela Rede
Natura 2000. Cumpre, no entanto, salientar – dado o preconceito ainda
existente nesta matéria129 – a possibilidade de a biodiversidade ser
tutelada por via contratual. Na celebração deste tipo de contratos
deve ter-se presente o disposto no regime económico-financeiro da
conservação natureza e da biodiversidade, instituído pelo RJCNB,
maxime o seu artigo 35.º, que se refere precisamente aos instrumentos
contratuais passíveis de serem mobilizados em prol da conservação da
natureza.
3. Em especial, as deficiências da análise de incidências ambientais
Deixámos intencionalmente para o fim a apreciação do regime
traçado no artigo 10.º do RJRN2000. Não porque se trate de um aspecto
menor, mas – bem pelo contrário – porque aí se encontra prevista uma
das mais importantes medidas de conservação dos sítios da Rede
Natura 2000: a análise de incidências ambientais (AIncA). E porque,
128 AAVV, Ordenamento do Território, Urbanismo e Rede Natura 2000, Volume I, cit., p. 296. De acordo com esta mesma obra, os planos de gestão em causa devem, em virtude do princípio da tipicidade dos planos urbanísticos, ser considerados planos sectoriais.129 Neste sentido, JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “O velho, o novo e o reciclado no direito da conservação da natureza”, cit.,
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
como iremos constatar, este instituto padece de sérias deficiências na
forma como está regulado, deficiências essas que importa examinar,
comentar e denunciar.
De acordo com a definição constante do artigo 3.º, n.º 1, alínea p) do
RJRN2000, a AIncA consiste na «avaliação prévia das incidências
ambientais das acções, planos ou projectos, que incumbe à entidade
competente para a decisão final ou à entidade competente para
emitir parecer ao abrigo do presente diploma». Contudo, não se pode
dizer que esta definição seja particularmente esclarecedora quanto ao
conteúdo, à função ou aos efeitos da análise de incidências
ambientais. Convém, então, aprofundar um pouco mais, começando
por determinar quais as realidades que ficam abrangidas pelo regime
em apreço, isto é, qual o seu âmbito de aplicação.
Para o efeito, devemos recorrer ao n.º 1 do artigo 10.º, que manda
submeter a uma análise de incidências ambientais todas «as acções,
planos ou projectos, não directamente relacionados com a gestão de
um sítio […] e não necessários para essa gestão, mas susceptíveis de
afectar essa zona de forma significativa, individualmente ou em
conjugação com outras acções, planos ou projectos». Tal como se
encontra redigida, esta cláusula suscita algumas reflexões.
Antes de mais, cumpre referir que o RJRN2000 se revela aqui mais
abrangente do que a Directiva Habitats, na medida em que esta
apenas se refere a “planos” e “projectos”, já não a “acções”130. Ainda
que não se vislumbre com inteira nitidez qual o real alcance desta
diferença, o que é certo é que o legislador nacional pretendeu ir mais
longe e consagrar um dever de ponderação ambiental mais vasto –
que abarca meras condutas, não passíveis de serem qualificadas como
“planos” ou “projectos”.
Seja como for, o aspecto mais preocupante na forma como está
traçado o âmbito de aplicação da AIncA – quer na versão comunitária,
130 Cfr. artigo 6.º, n.º 3 da Directiva Habitats.
195
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
quer na versão nacional – prende-se com o recurso a conceitos abertos
e de preenchimento não unívoco. Não é toda e qualquer actividade
que afecte um sítio da Rede Natura 2000 que deve ser sujeita a AIncA,
mas apenas aquelas que – numa apreciação necessariamente
casuística e discricionária – o afectem «de forma significativa». Ora, ao
fazer uso desta expressão, o preceito supra citado introduz uma
elevada dose de incerteza e subjectividade na determinação das
actividades cujos efeitos sobre a biodiversidade devem ser objecto de
uma avaliação prévia131.
Acresce que o carácter significativo dos impactes sobre a
biodiversidade deve ser aferido, não apenas em função do plano,
projecto ou acção individualmente considerados, mas também das
consequências que estes possam vir a ter em conjugação com outros
planos, projectos ou acções. Por causa dos efeitos cumulativos que
muitas destas iniciativas provocam, entendeu-se – e bem – que não
basta olhar para cada uma delas por si só, havendo que atender ao
seu conjunto. O que, todavia, vem aumentar ainda mais o grau de
indeterminação no apuramento das actividades que – em atenção ao
imperativo de conservação da natureza – devem ser submetidas a uma
análise das respectivas incidências ambientais.
Refira-se ainda que, segundo a melhor doutrina132, a AIncA não se
circunscreve às actividades localizadas no interior das zonas
classificadas, aplicando-se a todas as actividades – mesmo que
fisicamente longínquas – cujos efeitos se projectem sobre a Rede Natura
2000. Mais um factor que não ajuda na delimitação, in concreto, dos
planos, projectos e acções abrangidos pelo instituto em apreço.
Não obstante as dificuldades aludidas, não é impossível caracterizar –
sumária e perfunctoriamente – as situações a que o artigo 10.º do
131 Cfr, alguns exemplos em NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., pp. 28-29.132 Cfr. NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 29.
196
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
RJRN2000 se dirige. O que está em causa é a obrigatoriedade de
avaliação, sob o ponto de vista ambiental, de todas as actuações
humanas que, não se destinando expressa e directamente a assegurar
a gestão dos sítios da Rede Natura 2000, contribuam para gerar um
efeito considerável ou relevante sobre as respectivas espécies e
habitats protegidos133. Agora que já conhecemos o âmbito de
aplicação da análise de incidências ambientais, importa apreciar o seu
regime. E é aí que nos deparamos com diversos problemas.
O primeiro desses problemas consiste na articulação imperfeita e, até,
parcial sobreposição entre a análise de incidências ambientais e outros
regimes conexos, o que afecta a própria utilidade do instituto sub
judice. Senão, vejamos.
Em matéria de avaliação ambiental, o nosso ordenamento dispõe
actualmente, não de um, mas de três distintos (embora próximos)
regimes jurídicos. Recorrendo a uma metáfora, dir-se-ia que existe uma
“constelação da avaliação ambiental”, de que a estrela polar é, sem
dúvida, o regime da avaliação de impacte ambiental (RAIA) de
projectos públicos e privados, constante do Decreto-Lei n.º 69/2000, de
3 de Maio134, mas que integra ainda dois outros regimes jurídicos: o
regime da avaliação ambiental estratégica (RAAE) de planos e
programas, constante do Decreto-Lei n.º 232/2007, de 15 de Junho; e o
– presentemente em estudo – regime da análise de incidências
ambientais (RAIncA), constante do artigo 10.º do RJRN2000.
É certo que a amplitude e a densidade destes diferentes tipos de
avaliação ambiental não são necessariamente as mesmas. Por
exemplo, a avaliação ambiental estratégica (AAE) tem, naturalmente,
um foco mais programático. Ao passo que o espectro da AIncA é bem
133 Com uma formulação ligeiramente diferente, recorrendo a um princípio da integridade das áreas integrantes da Rede Natura 2000, cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “O velho, o novo e o reciclado no direito da conservação da natureza”, cit., pp. 45-46.134 Já por diversas vezes modificado, a última das quais através do Decreto-Lei n.º 197/2005, de 8 de Novembro, que republica o diploma na sua versão actual.
197
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
mais circunscrito, uma vez que, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, esta
afere apenas do respeito pelos objectivos de conservação da Rede
Natura 2000.
De todo o modo, pese a diferença de escopo ou de ângulo de análise,
a verdade é que o âmbito de aplicação destas figuras não é
totalmente estanque, nem mutuamente excludente. Pelo contrário, há
actividades que estão abrangidas por mais do que um regime de
avaliação ambiental.
Há quem, a este propósito, sustente que «o funcionamento coerente
desse edifício de avaliação ambiental é dado a partir de um princípio
da não duplicação de avaliação, segundo o qual um impacto
ambiental deve ser avaliado unicamente no nível em que possa ser
objecto da melhor análise»135. No entanto, os mesmos Autores acabam
por reconhecer que «quando, por exigências de Direito Comunitário,
haja sobreposição da aplicação das Directiva 2001/42/CE, aplicável
aos planos e programas, e a Directiva AIA, aplicável aos projectos, a
aplicação será cumulativa e nunca requisito de dispensa do
procedimento de AIA, dadas as diferenças entre os dois instrumentos de
avaliação ambiental em presença»136.
Cumpre-nos, então, esclarecer de que forma se articulam a AIA, a AAE
e a AIncA. Quando dois destes regimes se aplicam a uma mesma
realidade, o que sucede: anulam-se, fundem-se ou, ao invés, cumulam-
se? Será que existe uma hierarquia entre distintos tipos de avaliação
ambiental, que permita dar preferência a uns sobre outros? Ou estarão
em causa distintos níveis de avaliação, que não se prejudicam
mutuamente? Enfim, há que perceber como está construído este “tripé
da avaliação ambiental”. E, em especial, há que apurar de que modo
se relaciona a AIncA com os seus institutos congéneres.
135 TIAGO SOUZA D’ALTE e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, “O regime de avaliação ambiental de planos e programas e a sua integração no edifício da avaliação ambiental”, in RJUA, n.ºs 29/30, Jan./Dez. 2008, p. 144 (sublinhado nosso).136 Idem, ibidem, p. 150 (sublinhado nosso).
198
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
A este propósito, começamos por assinalar que a AIncA diz respeito,
quer a planos, por um lado, quer a acções e projectos, por outro. Ora,
no primeiro caso, poderá eventualmente bulir com a AAE de planos e
programas137; e, no segundo caso, com a AIA de projectos públicos e
privados. É, pois, nestes dois prismas que devemos estruturar a nossa
análise.
Relativamente aos planos, o artigo 3.º, n.º 1, alínea b) do RAAE dispõe
que estão sujeitos a avaliação ambiental estratégica «os planos e
programas que, atendendo aos seus eventuais efeitos num sítio da LNS,
num SIC, numa ZEC ou numa ZPE, devam ser sujeitos a uma avaliação
de incidências ambientais nos termos do artigo 10.º do [RJRN2000]». Ou
seja, são precisamente os planos que carecem de uma AIncA – devido
aos efeitos significativos que têm sobre a Rede Natura 2000 – que, por
essa mesma razão, ficam sujeitos a AAE. Donde podemos concluir que
os dois regimes não se intersectam, eles sobrepõem-se totalmente.
Como se resolve, então, esta sobreposição?
A resposta encontra-se, a nosso ver, nos n.ºs 8 e 9 do artigo 3.º do RAAE.
De acordo com estes preceitos, estando um plano sujeito
simultaneamente a AAE e a outro regime de avaliação ambiental
(como a AIncA), deve realizar-se apenas o procedimento de avaliação
estratégica, sendo nele incorporadas todas as exigências decorrentes
desse outro regime, designadamente a recolha das informações
necessárias à ponderação dos efeitos que o plano tem sobre os
objectivos de conservação da natureza nas zonas classificadas138.
Com efeito, tendo o legislador definido o âmbito de aplicação da
avaliação ambiental estratégica, em parte, por recurso aos planos que
já eram objecto de uma análise de incidências ambientais, teve depois
137 Sobre a relação entre a análise de incidências ambientais e a avaliação ambiental estratégia, cfr., com um entendimento não inteiramente coincidente com os dados do ordenamento jurídico português, NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 30.138 Cfr. TIAGO SOUZA D’ALTE e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, “O regime de avaliação ambiental de planos e programas e a sua integração no edifício da avaliação ambiental”, cit., p. 145.
199
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
que regular em que termos se conjugam estes dois regimes. E, para
evitar uma duplicação de procedimentos, o legislador optou por dar
prevalência à avaliação estratégica (devendo esta, porém, integrar
uma apreciação dos efeitos do plano ou programa sobre as espécies e
habitats protegidos). Ora, atendendo a que todos os planos abrangidos
pelo artigo 10.º do RJRN2000 estão também sujeitos a uma avaliação
estratégica139 e que esta prevalece, aquele regime acaba por perder
parte da sua utilidade. Isto é, a AAE absorveu a AIncA – a qual,
portanto, deixou de existir a se quanto a planos, mantendo-se apenas
para acções e projectos.
Relativamente às acções e projectos, no entanto, temos que verificar se
a aplicação da AIncA não ficará também comprometida pela vigência
de um outro regime de avaliação ambiental – neste caso, o regime da
AIA140. A este respeito, o artigo 10.º, n.º 2 do RJRN2000 é muito claro ao
estabelecer que, quando um projecto esteja sujeito a AIA, a AIncA
segue a forma do procedimento de AIA. Ou seja, nestes casos realiza-se
somente uma avaliação de impacte ambiental, por via da qual se
preenchem as exigências e satisfazem as finalidades do artigo 10.º do
RJRN2000. Temos, pois, como que uma recepção de um regime por
outro.
Resta apenas saber, em concreto, quais os casos em que tal sucede,
isto é, quais as acções ou projectos cuja AIncA assume a forma de AIA.
Para esse efeito, há três questões que importa ter presente.
Primo, de acordo com a alínea a) do artigo 10.º, n.º 2 do RJRN2000, a
AIncA segue os termos do procedimento de AIA sempre que o mesmo
seja exigido por aplicação directa e automática da lei. Esta alínea
remete, portanto, para o artigo 1.º, n.º 3 do RAIA, que manda proceder
139 Já o inverso não é verdade. Isto é, a avaliação ambiental estratégica aplica-se a outros planos para além daqueles que estão abrangidos pelo artigo 10.º do RJRN2000. Vd. artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RAAE.140 Cfr. NICOLAS DE SADELEER, “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., pp. 30 e 30; e MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., pp. 37 e ss..
200
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
à avaliação de impacte ambiental de todos os projectos tipificados no
respectivo Anexo I e de todos os projectos enunciados no respectivo
Anexo II. Sucede que, relativamente aos projectos do Anexo II, estes só
são obrigatoriamente sujeitos a AIA caso excedam os limiares aí
previstos. E os limiares são distintos consoante o grau de sensibilidade
ecológica do local de implantação do projecto. Ou, de forma mais
rigorosa, existem dois tipos de limiares: um para a generalidade das
situações; e outro, mais baixo, para os casos em que os projectos se
situam em “áreas sensíveis”. A aplicação deste último limiar conduz a
que o número de projectos submetidos a AIA cresça
exponencialmente.
Ora, se analisarmos o conceito de “áreas sensíveis”, definido no artigo
2.º, alínea b) do RAIA141, constatamos que ele abarca todos os sítios da
Rede Natura 2000. O que significa que o mero facto de um projecto se
situar numa ZPE ou numa ZEC aumenta significativamente a
probabilidade de ele carecer de uma avaliação de impacte
ambiental. Ou, dito doutro modo, o procedimento de AIA é exigível de
forma mais intensa quanto a projectos localizados em zonas
classificadas. Pelo que os projectos abrangidos pelo artigo 10.º do
RJRN2000 são também projectos que mais facilmente estão sujeitos a
AIA. O que, logicamente, faz aumentar os casos de confluência entre a
AIncA e a AIA.
Secundo, de acordo com a alínea b) do artigo 10.º, n.º 2 do RJRN2000,
a AIncA segue ainda os termos do procedimento de AIA sempre que o
mesmo, embora não resultando de uma exigência legal expressa, seja
aplicável. Esta alínea menciona expressamente o n.º 3 do artigo 1.º do
RAIA, mas a remissão encontra-se desactualizada142, devendo ser
corrigida. A situação em causa está hoje regulada no n.º 5 do mesmo
141 Há quem critique esta definição de “áreas sensíveis” por ficar aquém do desejado. Cfr. MARIA ALEXANDRA ARAGÃO, “Instituição concreta e protecção efectiva da rede natura 2000 – alguns problemas”, cit., pp. 38 e 39.142 Por força da superveniente alteração do artigo 1.º do RAIA, operada pelo Decreto-Lei n.º 197/2005, de 8 de Novembro.
201
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
preceito, que submete a AIA «os projectos que em função da sua
localização, dimensão ou natureza sejam considerados, por decisão
conjunta do membro do Governo competente na área do projecto em
razão da matéria e do membro do Governo responsável pela área do
ambiente, como susceptíveis de provocar um impacte significativo no
ambiente, tendo em conta os critérios estabelecidos no Anexo V». Ou
seja, por decisão ministerial conjunta qualquer projecto que afecte
significativamente o ambiente poderá ser sujeito a AIA, mesmo que não
conste de nenhum dos Anexos do RAIA. Nestes casos,
consequentemente, se houver lugar a AIncA ela segue os termos do
procedimento de AIA.
Levanta-se, no entanto, uma dúvida: a regra da alínea b) do artigo 10.º,
n.º 2 do RJRN2000 aplica-se apenas à situação descrita no artigo 1.º, n.º
5 do RAIA ou a todas as modalidades de aplicação eventual do
procedimento de AIA? É que, para além da hipótese de decisão
ministerial conjunta, o RAIA prevê actualmente uma outra forma143 de,
sem que a lei o exija, submeter um projecto a AIA. Referimo-nos ao
regime dos artigos 1.º, n.º 4 e 2.º-A do RAIA, segundo o qual «são sujeitos
a AIA os projectos elencados no Anexo II, ainda que não abrangidos
pelos limiares nele fixados, que sejam considerados, por decisão da
entidade licenciadora ou competente para a autorização do projecto,
susceptíveis de provocar impacte significativo no ambiente em função
da sua localização, dimensão ou natureza, de acordo com os critérios
estabelecidos no Anexo V». O que está aqui em causa é a possibilidade
de certos projectos mencionados no Anexo II mas que fiquem aquém
dos limiares aí estabelecidos poderem, ainda assim, ser submetidos a
AIA, neste caso não por despacho ministerial, mas por decisão das
entidades administrativas competentes para licenciar ou autorizar esses
mesmos projectos.
143 Que não existia à altura em que o RJRN2000 foi aprovado e, depois, revisto. Logo, nunca poderia ter sido expressamente contemplada pelo respectivo artigo 10.º, n.º 2, alínea b).
202
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Ora, imaginando que um particular pretende implantar um
determinado projecto num sítio da Rede Natura 2000 e que a respectiva
entidade licenciadora decide, ao abrigo do artigo 1.º, n.º 4 do RAIA,
submetê-lo a AIA, deve a análise de incidências ambientais seguir ou
não os termos do procedimento de AIA? A nosso ver, a resposta deve
ser positiva. Está no espírito da lei que sempre que um projecto
abrangido pelo artigo 10.º do RJRN2000 seja também objecto de uma
avaliação de impacte ambiental – por força da lei ou da vontade das
entidades administrativas competentes para o efeito – deve realizar-se
unicamente o procedimento de AIA, no qual se ponderarão também os
efeitos do projecto sobre os sítios da Rede Natura 2000.
Tertio, de acordo com o n.º 4 do artigo 10.º do RJRN2000, as decisões de
sujeição a AIA devem cumprir os critérios definidos no PSRN2000. A
verdade, porém, é que tais critérios não resultam muito claramente do
articulado do PSRN2000. O que, de certa forma, até se compreende. É
que, em 2005, foram aditados dois novos anexos ao RAIA (os Anexos IV
e V), que definem precisamente quais os critérios que devem ser tidos
em conta na decisão de sujeitar ou não um projecto a AIA. Pelo que a
previsão do artigo 10.º, n.º 4 do RJRN2000 perdeu, entretanto, alguma
da sua razão de ser. Seja como for, esta norma permite reforçar o
entendimento de que, sempre que é tomada a decisão de sujeitar um
projecto a AIA, é essa a forma que a análise de incidências ambientais
deve adoptar.
Em síntese, nas situações descritas não há propriamente lugar a AIncA,
mas sim a AIA. Ou, mais correctamente, a AIncA assume, nestes casos,
os termos do procedimento de AIA. Deste modo, não ocorre qualquer
cumulação ou repetição de procedimentos, mas antes uma integração
de procedimentos – no sentido de que a AIA internaliza a apreciação
das incidências sobre a biodiversidade e, portanto, as conclusões a que
chegar servem também para efeitos do RJRN2000, o que torna a
realização autónoma de uma AIncA absolutamente desnecessária.
203
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
Podemos, então, concluir que, quer relativamente aos planos, quer
relativamente a um grande número de acções e projectos, a análise de
incidências ambientais não tem existência autónoma, a se. Nestes
casos, o artigo 10.º do RJRN2000 limita-se a remeter para outros regimes
de avaliação ambiental. O que, naturalmente, nos leva a questionar o
interesse ou utilidade do instituto em apreço.
Outro dos problemas de que padece o regime do artigo 10.º do
RJRN2000 prende-se com a sua vaguidade. Como vimos supra, esta
característica reflecte-se, desde logo, ao nível do âmbito de aplicação
da AIncA (que abrange apenas as actividades susceptíveis de afectar
a Rede Natura 2000 «de forma significativa»). Mas não só.
Também o próprio conteúdo da análise de incidências ambientais se
encontra formulado em termos consideravelmente vagos e, mais do
que isso até, lacunares. Se consultarmos a Directiva Habitats, esta limita-
se a falar numa «avaliação adequada»144. E no artigo 10.º do RJRN2000,
que supostamente deveria densificar os termos em que essa avaliação
se processa, só o n.º 6 fornece algumas pistas – e ainda assim sem
grande pormenor – ao estipular que AIncA abrange: a descrição da
acção, plano ou projecto em apreciação; a caracterização da
situação de referência; a identificação e avaliação conclusiva dos
previsíveis impactes ambientais; o exame de soluções alternativas; e,
quando adequado, a proposta de medidas que evitem, minimizem ou
compensem os efeitos negativos identificados.
Não se pode dizer, todavia, que haja aqui um grande nível de detalhe
quanto ao conteúdo da análise de incidências ambientais. Pelo
contrário, há inúmeros aspectos que necessitam de clarificação e são
muitas as dúvidas que permanecem.
144 Cfr. artigo 6.º, n.º 3 da Directiva Habitats.
204
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Um terceiro problema que afecta o regime da análise de incidências
ambientais decorre da sua fragmentação ou falta de homogeneidade.
No essencial, o artigo 10.º do RJRN2000 limita-se a “distribuir o jogo” ou a
re-direccionar o intérprete para outros regimes de avaliação
ambiental145. O resultado é uma miscelânea ou um emaranhado de
regimes nada harmonioso e, por vezes, até um pouco caótico. Com a
agravante de que, nos casos residuais em que não se aplica nenhum
desses regimes146, vigora um quase total vazio normativo. Isto é, o
legislador confiou tanto no sistema de remissões que criou, que acabou
por descurar a própria regulamentação do instituto em causa. Estamos,
pois, perante um puzzle de regimes ao qual, por vezes, ficam a faltar
algumas peças. É o que iremos comprovar em cinco distintas
dimensões.
Primo, quanto ao procedimento a adoptar147. Quando está em causa
um plano, deve seguir-se o procedimento regulado no RAAE, como
vimos supra148. Quando está em causa um projecto sujeito a AIA, deve
seguir-se o procedimento regulado no RAIA, como também já tivemos
oportunidade de constatar149. Quando está em causa um projecto ou
acção não sujeito a AIA mas que dependa de parecer favorável nos
termos do artigo 9.º do RJRN2000, deve seguir-se o procedimento
previsto para a emissão desse mesmo parecer150. Nos demais casos, o
artigo 10.º do RJRN2000 não estipula qual o iter procedimental a
adoptar151, limitando-se a referir, no n.º 7, que a análise de incidências
145 Recorrendo a uma metáfora, diríamos que a AIncA é como um manequim que pode assumir diferentes roupagens.146 Casos que serão raros, é certo, mas não inexistentes.147 Se o proponente desejar a classificação do seu projecto como PIN+ deve apresentar, à cabeça, uma análise de incidências ambientais ou, estando o projecto sujeito a AIA, uma proposta de definição de âmbito do estudo de impacte ambiental. Cfr. artigo 3.º, n.º 2, alíneas c) e d) do Decreto-Lei n.º 285/2007, de 17 de Agosto.148 Cfr. artigo 3.º, n.ºs 8 e 9 do RAAE.149 Cfr. artigo 10.º, n.º 2 do RJRN2000.150 Cfr. artigo 10.º, n.º 5 do RJRN2000.151 Não está definido, sequer, se o promotor deve apresentar um estudo de incidências ambientais (à semelhança do que acontece no procedimento de AIA).
205
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
ambientais será precedida, sempre que necessário, de consulta
pública.
Secundo, quanto às entidades intervenientes. Quando está em causa
um plano, quem intervém é a entidade responsável pela sua
elaboração152. Quando está em causa um projecto sujeito a AIA, quem
intervém são as entidades competentes no âmbito do procedimento de
avaliação de impacte ambiental153, designadamente a autoridade de
AIA (que pode ser, consoante os casos, a APA ou a CCDR
territorialmente competente)154 e a comissão de avaliação155, cabendo
a decisão final – a DIA – ao ministro responsável pela área do
ambiente156. Quando está em causa um projecto ou acção não sujeito
a AIA mas que dependa de parecer favorável nos termos do artigo 9.º
do RJRN2000, quem intervém é o ICNB ou a CCDR territorialmente
competente, nos termos que vimos supra157. Nos demais casos, o artigo
10.º, n.º 3 do RJRN2000 refere que quem deve promover a realização da
análise de incidências ambientais é a entidade competente para
decidir das acções, planos ou projectos em questão.
Tertio, quanto ao prazo de decisão. Quando está em causa um plano,
a sua avaliação ambiental deve decorrer até à aprovação da
respectiva versão final158. Quando está em causa um projecto sujeito a
AIA, esta deve ter lugar, consoante os casos, no prazo de 140, 120 ou 80
dias159. Quando está em causa um projecto ou acção não sujeito a AIA
mas que dependa de parecer favorável nos termos do artigo 9.º do
RJRN2000, este parecer deve ser emitido no prazo de 45 dias úteis a
contar da data da sua solicitação, como vimos supra160. Nos demais 152 Cfr. artigos 5.º, n.º 1, 6.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1 do RAAE.153 Cfr. artigos 10.º, n.º 2 do RJRN2000 e 5.º do RAIA.154 Cfr. artigo 7.º do RAIA.155 Cfr. artigo 9.º do RAIA.156 Cfr. artigo 18.º, n.º 1 do RAIA.157 Cfr. artigos 10.º, n.º 5 e 9.º, n.ºs 2 e 7 do RJRN2000.158 Cfr. artigo 9.º do RAAE.159 Cfr. artigos 10.º, n.º 2 do RJRN2000 e 19.º, n.ºs 1 a 4 do RAIA. Tratando-se de um projecto classificado como PIN+, este prazo é encurtado para 60 dias (cfr. artigo 26.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 285/2007, de 17 de Agosto).160 Cfr. artigos 10.º, n.º 5 e 9.º, n.º 3 do RJRN2000.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
casos, o artigo 10.º do RJRN2000 não prevê qualquer prazo para a
conclusão da análise de incidências ambientais.
Quarto, quanto aos efeitos do silêncio. Quando está em causa um
plano, a questão não se coloca nestes termos161. Quando está em
causa um projecto sujeito a AIA, o incumprimento dos respectivos
prazos de decisão conduz ao deferimento tácito da DIA162. Quando
está em causa um projecto ou acção não sujeito a AIA mas que
dependa de parecer favorável nos termos do artigo 9.º do RJRN2000, a
ausência de parecer no prazo previsto equivale à emissão de parecer
favorável, como vimos supra163. Nos demais casos, tudo indica que não
haja deferimento tácito, desde logo porque, não estando previsto
qualquer prazo para a conclusão da análise de incidências ambientais,
não seria possível consagrar o respectivo deferimento tácito.
Quinto, quanto à força jurídica da ponderação ambiental. Quando
está em causa um plano, existe somente uma obrigação de considerar
os resultados da avaliação ambiental na elaboração da respectiva
versão final164. Quando está em causa um projecto sujeito a AIA, o acto
de licenciamento ou de autorização desse projecto só pode ser
praticado quando exista uma DIA favorável ou condicionalmente
favorável, sob pena de nulidade165. Quando está em causa um projecto
ou acção não sujeito a AIA mas que dependa de parecer favorável nos
termos do artigo 9.º do RJRN2000, este parecer é vinculativo, como
vimos supra166. Nos demais casos, parece também resultar do artigo 10.º,
n.º 9 do RJRN2000 que a análise de incidências ambientais tem uma
força vinculativa, uma vez que as actividades em questão só podem ser
licenciadas ou autorizadas «quando tiver sido assegurado que não 161 Uma vez que não há propriamente uma decisão (cuja omissão pudesse, eventualmente, dar azo a um deferimento tácito), mas apenas uma obrigação de ponderar os resultados da avaliação ambiental na elaboração da versão final do plano.162 Cfr. artigos 10.º, n.º 2 do RJRN2000 e 19.º do RAIA.163 Cfr. artigos 10.º, n.º 5 e 9.º, n.º 5 do RJRN2000.164 Cfr. artigo 9.º do RAAE.165 Cfr. artigos 10.º, n.º 2 do RJRN2000 e 20.º, n.ºs 1 e 3 do RAIA.166 Cfr. artigos 10.º, n.º 5 e 9.º, n.º 2 do RJRN2000.
207
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
afectam a integridade do sítio da LNS, do SIC, da ZEC ou da ZPE em
causa».
Não restam, assim, quaisquer dúvidas quanto ao carácter disperso e
fragmentário do regime da análise de incidências ambientais, que em
nada contribui para a boa aplicação do instituto.
O regime da análise de incidências ambientais apresenta ainda um
quarto problema – que é, porventura, o mais grave de todos, uma vez
que afecta a própria racionalidade e coerência do instituto. Trata-se do
esquema gizado pelos n.ºs 10 e 11 do artigo 10.º do RJRN2000, de
acordo com o qual uma avaliação ambiental negativa pode ser
ultrapassada através de um despacho ministerial167 e da adopção de
medidas compensatórias.
Com efeito, determina o n.º 10 que «a realização de acção, plano ou
projecto objecto de conclusões negativas na avaliação de impacte
ambiental ou na análise de incidências ambientais depende do
reconhecimento, por despacho conjunto do Ministro do Ambiente e do
Ordenamento do Território e do ministro competente em razão da
matéria, da ausência de soluções alternativas e da sua necessidade por
razões imperativas de reconhecido interesse público, incluindo de
natureza social ou económica»168. Sendo que, nos termos do n.º 11, se a
actividade em questão afectar habitats ou espécies prioritários, o leque
167 Que, no caso dos projectos PIN+, pode ser o próprio despacho conjunto que procede à respectiva classificação como PIN+. Cfr. artigo 6.º, n.º 5, alínea c) do Decreto-Lei n.º 285/2007, de 17 de Agosto.168 Cumpre salientar que as duas condições aqui referidas são cumulativas, isto é, o despacho ministerial conjunto deve reconhecer, quer o interesse público da actividade em causa, quer a ausência de soluções alternativas. Fazemos esta chamada de atenção visto que é muito comum falar-se, a este propósito, de um “despacho de reconhecimento do interesse público”. Mas esse reconhecimento, por si só, não basta. É necessário, ainda, reconhecer a inexistência de alternativas à localização da actividade numa zona classificada.
Aliás, Portugal já foi condenado pelo TJUE (no processo C-239/04) precisamente por, quanto à auto-estrada para o Algarve, que atravessa a ZPE de Castro Verde, não ter sido demonstrada a inexistência de alternativas – ainda que, a posteriori, se tenha provado que os impactos sobre a biodiversidade não foram negativos. Cfr. JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, “Energia e conservação da natureza”, cit., pp. 176-177.
208
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
de fundamentos que podem ser invocados para justificar a sua
realização é mais apertado, abrangendo apenas: razões de saúde ou
segurança públicas; consequências benéficas primordiais para o
ambiente; e, mediante parecer prévio da Comissão Europeia, outras
razões imperativas de reconhecido interesse público. Em qualquer dos
casos, segundo o n.º 12, têm de ser previstas as «medidas
compensatórias necessárias à protecção da coerência global da Rede
Natura 2000»169.
Ora, o que podemos dizer deste regime é que ele é, no mínimo,
estranho. E, se comparado com o disposto no artigo 20.º do RAIA, torna-
se absolutamente incompreensível.
É estranho na medida em que permite que uma actividade, embora
comprovadamente nefasta para a biodiversidade, possa vir a ser
desenvolvida em sítios da Rede Natura 2000. E isto por força de uma
decisão administrativa discricionária que, mediante a invocação do
interesse público, “neutraliza” os efeitos de uma avaliação ambiental
negativa. Mas, apesar de tudo, este mecanismo poderá ainda justificar-
se como forma de mitigar alguma da rigidez e inflexibilidade do regime
da Rede Natura 2000, sobretudo quando estão em causa projectos de
manifesta utilidade pública e para os quais não existem outras
alternativas de localização.
No entanto, a estranheza inicial convola-se em incongruência quando
constatamos que, no regime da avaliação de impacte ambiental, não
existe qualquer forma de superar ou contornar os efeitos de uma DIA
negativa. De acordo com o artigo 20.º, n.º 1 do RAIA, «o acto de
licenciamento ou de autorização de projectos sujeitos a procedimento
de AIA só pode ser praticado após a notificação da respectiva DIA
favorável ou condicionalmente favorável ou após o decurso do prazo
necessário para a produção de deferimento tácito». Caso a DIA seja
169 NICOLAS DE SADELEER refere-se ainda, para além das medidas compensatórias, a medidas de atenuação de impactes. Cfr. “La Conservation des Habitats Naturels en Droit Communautaire”, cit., p. 33.
209
Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
desfavorável, portanto, o projecto – por maior que seja o interesse
público na sua concretização – nunca pode ser licenciado ou
autorizado, sob pena de nulidade170.
Isto significa que, localizando-se um projecto fora da Rede Natura 2000,
o respectivo “chumbo” ambiental é definitivo e não pode, em
circunstância alguma, ser superado. Mas, se o mesmo projecto se situar
numa ZEC ou numa ZPE – que são, por definição, áreas de maior
sensibilidade ecológica –, a avaliação ambiental negativa já pode ser
ultrapassada por via de uma decisão ministerial. Portanto, o interesse
público de um projecto de nada vale quando este se localiza numa
zona banal; mas já permite legitimar ou mesmo “branquear” um
atentado aos habitats e às espécies existentes numa zona classificada.
Ora, isto é absolutamente incoerente.
No Direito Comunitário esta incoerência não se verifica, já que a
Directiva sobre o procedimento de avaliação de impacte ambiental171
não exige uma DIA favorável para que os projectos se possam realizar,
limitando-se a prever que os resultados da AIA «serão tomados em
consideração no âmbito do processo de aprovação»172. Assim sendo,
não choca que a Directiva Habitats, no seu artigo 6.º, n.º 4, permita que
determinados projectos de interesse público, não obstante a sua
avaliação ambiental negativa, possam ser viabilizados. Mas no
ordenamento jurídico nacional, tendo o legislador decidido atribuir à
DIA carácter vinculativo, não faz sentido que depois, quanto a projectos
localizados em sítios da Rede Natura 2000 e apenas quanto a esses,
permita passar por cima de uma DIA desfavorável.
Isto é, a partir do momento em que o legislador consagrou, para a
generalidade dos casos, um regime de AIA “hard”, não poderia depois,
ao traçar o regime jurídico da Rede Natura 2000, ter ficado aquém
170 Cfr. artigo 20.º, n.º 3 do RAIA.171 Trata-se da Directiva n.º 85/337/CEE, do Conselho, de 27 de Junho de 1985, já por diversas vezes alterada. Cfr. uma versão consolidada em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CONSLEG:1985L0337:20090625:PT:PDF.172 Cfr. artigo 8.º da Directiva referida na nota anterior.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
desse patamar. Ao fazê-lo, criou uma situação absolutamente irracional
e contraditória em que, no exterior da Rede Natura 2000, o veredicto da
DIA é intransponível; mas, no interior da Rede Natura 2000, a DIA pode
eventualmente ser postergada e subalternizada em prol de imperativos
sócio-económicos.
Mas pior ainda, em termos lógicos, consegue ser a aplicação prática
que, nalguns casos recentes, o Ministério do Ambiente tem vindo a fazer
das normas em apreço. Já por diversas vezes foram emitidas DIAs
condicionalmente favoráveis à emissão do despacho conjunto referido
no artigo 10.º, n.º 10 do RJRN2000. O raciocínio subjacente a esta
exigência é o de que, estando o projecto localizado numa zona
classificada, ele só deve merecer uma avaliação ambiental positiva se
e quando for reconhecido o seu interesse público e a inexistência de
soluções alternativas.
Ora, embora este entendimento se revele simpático sob o ponto de
vista ambiental, a verdade é que, não só mistura distintos planos de
análise (ao fazer depender a avaliação ambiental do projecto do seu
interesse público), como não tem qualquer base legal, constituindo uma
subversão completa do sentido, da razão de ser e dos efeitos da
intervenção ministerial (de reconhecimento do interesse público e da
inexistência de soluções alternativas), tal como esta se encontra
prevista, quer na Directiva Habitats, quer no RJRN2000.
A referida intervenção ministerial foi prevista na lei – bem ou mal – como
uma forma de viabilização de projectos que tenham sido objecto de
uma avaliação ambiental negativa e não, como parece resultar da
prática que recentemente tem vindo a ser adoptada, como um
gravame adicional em casos de avaliação ambiental positiva. De
facto, segundo a referida prática, mesmo que uma actividade se revele
inofensiva para o ambiente, ela só pode ser levada a cabo em sítios da
Rede Natura 2000 se se revestir de interesse público e se não existirem
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Contributos para o Estudo do Direito da protecção da Biodiversidade
outras alternativas173. O que vai completamente ao arrepio, não só da
letra, como do espírito da lei.
O que se prevê no artigo 10.º do RJRN2000 é que, se a avaliação
ambiental do projecto for favorável, este pode avançar sem se exigir
qualquer outra condição ou formalidade; e só se a avaliação
ambiental do projecto for desfavorável é que se poderá revelar
necessário um despacho ministerial para ultrapassar esse obstáculo.
Contudo, o Ministério do Ambiente entende poder exigir o referido
despacho em qualquer dos casos, revelando uma concepção
fundamentalista da Rede Natura 2000, segundo a qual nada ou quase
nada aí se pode fazer a menos que seja de relevante interesse público
e não existam outras alternativas possíveis174. Ora, esta concepção, para
além de ser contrária à lei (que não permite sustentar tal radicalismo),
incorre ainda num vício lógico. É que uma coisa é o interesse público ser
invocado para superar uma avaliação ambiental negativa – pode
concordar-se ou não com esta regra, mas ela faz sentido. Outra coisa é
o interesse público do projecto constituir um pressuposto da sua
avaliação ambiental positiva – asserção desprovida de qualquer
racionalidade.
É preciso, pois, afastar todas as interpretações espúrias e subversivas do
mecanismo em apreço, repondo a questão nos seus verdadeiros
termos: de acordo com a lei, a emissão do despacho previsto no artigo
10.º, n.º 10 do RJRN2000 não é condição necessária para a obtenção
de uma DIA favorável; a existência de uma DIA desfavorável é que é
condição – necessária, mas obviamente não suficiente – para a
emissão do referido despacho (de reconhecimento do interesse público
do projecto e da inexistência de alternativas).
173 Pelo que, enquanto não houver um despacho ministerial conjunto a reconhecer o interesse público e a inexistência de alternativas, apenas é emitida uma DIA condicionalmente favorável – ainda que a actividade, em si mesma, não ofenda os valores naturais em presença.174 Exigências que, a nosso ver, têm toda a razão de ser quanto a projectos que se revelem prejudiciais para o ambiente e, em especial, para a biodiversidade; mas já não quanto a projectos que passem o teste da avaliação ambiental.
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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Com esta clarificação terminamos o estudo do instituto da análise de
incidências ambientais, plasmado no artigo 10.º do RJRN2000, fazendo
votos para que as diversas imperfeições e deficiências apontadas –
quer as (muitas e graves) que resultam da lei, quer as que resultam de
postulados eco-fundamentalistas sem substrato legal – sejam pronta e
satisfatoriamente debeladas.
Tiago AntunesAssistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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Organização de Carla Amado Gomes e Tiago AntunesCom o patrocínio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
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