Denúncia pública e o uso da corrupção como instrumento político de acusação: Um olhar
sobre os escândalos de corrupção no governo Vargas: 1951-1954.1
Giuliana Monteiro da Silva.2
Este artigo propõe examinar como a questão da corrupção é mobilizada como
instrumento político de acusação no Brasil através da denúncia pública por meio da
imprensa3. Privilegia-se como eixo temporal o segundo governo de Getúlio Vargas devido ao
indicativo nos jornais da época de denúncias de irregularidades contra agentes da
administração pública e do governo. Foram analisados três grandes escândalos associados à
corrupção no período: Inquérito do Banco do Brasil, Caixa de Exportação e Importação do
Banco do Brasil (Cexim) e o Caso Última Hora, examinando o papel do conflito político e as
disputas de projetos políticos de poder em vigor. Para tal análise foram utilizados três jornais:
Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Última Hora. A escolha destes obedeceu
respectivamente aos critérios de jornal de grande tiragem, de oposição e governista.
As informações que são noticiadas nos meios de comunicação interferem de forma geral
na leitura que o público faz sobre determinado acontecimento. Por mais que um
acontecimento tenha distintos pontos de vista, ao adotar um posicionamento, a mídia contribui
para condicionar o olhar de quem consome sua cobertura, sendo, portanto, um importante
instrumento político capaz de interferir na “opinião pública” e consequentemente na política.
É importante observar que o termo “opinião pública” apenas tem sido empregado aqui para
caracterizar um consenso coletivo acerca de variados assuntos. Contudo há concordância com
a observação de Bourdieu de que a opinião subordina-se a interesses políticos, sua função
consiste talvez em impor a ilusão de que exista uma opinião pública. Para Bourdieu, a opinião
pública é a opinião daqueles que são dignos de ter uma opinião (Bourdieu, 1983).
A imprensa, assim como os meios de comunicação em geral, desempenha importante
papel não somente para a transmissão de informação a indivíduos, mas também interfere na
criação de novas formas de ação e de interação no mundo social, assim, a imprensa se
1 Este artigo é uma versão modificada de capítulos de minha dissertação de mestrado intitulada “Corrupção,
narrativas de imprensa e moralidade pública nos anos 50: A conversão da corrupção em problema público no
Brasil” (PPGS/UFF). 2 Doutoranda em História (PPHR/UFRRJ), mestre em Sociologia (PPGS/UFF), especialista em História do
Brasil (PPGH/UFF) e professora da rede estadual de educação do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ). 3 Ao propor tal análise, não se pretende conceber um conceito de corrupção, nem mesmo se apropriar de uma
definição sobre o termo.
converte num poderoso instrumento capaz de ditar normas, comportamentos e interferir na
construção de representações sociais (Thompson, 2000). Esse processo não é isento de
disputas e interesses políticos.
No tocante a análise dos jornais para a compreensão do fenômeno da corrupção no
período, as práticas consideradas ‘corruptas’, se apresentavam em diferentes contextos que
reuniam práticas variadas resultando numa pluralidade de ações. Tal questão contribui por
reforçar como o estudo da corrupção se torna complexo, pois não há uma uniformidade nas
práticas nem um contexto específico para sua produção e permanência. As práticas designadas
como corruptas e corruptoras não são idênticas, elas sofrem uma variação significativa no
tempo e espaço, isto é, o fenômeno da corrupção possui uma dimensão legal, histórica e
cultural que não pode ser negligenciada ao analisá-lo (Bezerra, 1995). Por essa razão, situar o
contexto político em que projetos de poder estão em disputa é de grande relevância para o
entendimento da realidade histórica do contexto estudado.
Projetos políticos de poder em disputa nos anos 1950.
Durante o processo democrático vivenciado pelo Brasil entre os anos de 1945 e 1964,
dois projetos políticos passaram a ser defendidos por distintos grupos. Segundo Ferreira, o
getulismo, de caráter nacional-estadista:“pautado no nacionalismo, proposta de
fortalecimento de um capital nacional, criação de empresas estatais em setores estratégicos e
a valorização do capital humano com redes de proteção humana” (Ferreira, 2008, p.303). E o
projeto de caráter liberal-conservador que “defendia a abertura irrestrita a investimentos,
empresas e capitais estrangeiros; ressaltando as leis do mercado e negando a intervenção
estatal na economia, reticente aos movimentos sociais e da participação popular”. (Ferreira,
2008, 304). Esses dois projetos mediram forças gerando momentos de grandes tensões
políticas, tendo com resultado graves crises na República brasileira. Estas são apontadas por
Ferreira como situações de grande conflito com possibilidade real de guerra civil no país, uma
delas seria a crise de agosto de 1954, que culmina com o suicídio de Getúlio Vargas.
A década de 1950 foi marcada por intensas agitações políticas, Vargas assume pela
segunda vez a presidência da República, contrariando as expectativas noticiadas pela
imprensa da época, e ‘nos braços do povo’, atribuindo caráter popular ao presidente que se
autointitulava “um líder das massas” (Wainer, 1988). ‘Nos braços do povo’ também
configurava a forma pela qual Vargas assume seu segundo mandato, através de eleições
diretas, diferentemente de seu primeiro governo entre 1930 e 1945. Sua chegada ao poder pela
segunda vez e de forma democrática, com a adoção de uma postura mais nacionalista,
contrariava os interesses conservadores da elite brasileira do período, inscrita numa lógica de
redução do papel do Estado e na exclusão da participação popular (Benevides, 1981).
A disputa entre o projeto representado por Vargas e o liberalismo conservador
localizado no antigetulismo atingiria seu auge causando uma divisão de posicionamentos na
sociedade. Nos meses que antecederam a crise de agosto que resultou no suicídio de Vargas,
os parlamentares udenistas (principais opositores do governo), bem como a grande imprensa,
atuaram como fatores desestabilizadores do governo (Ferreira, 2008). Com grande espaço na
imprensa do período, “a oposição difundia imagens que procuravam ao mesmo tempo
desqualificar o governo, indignar e mobilizar a população contra ele”, assim expressões
como: “caudilho, corrupto, desonesto, violento, imoral” entre outras imagens negativas eram
constantemente mobilizadas para referir-se ao presidente. (Ferreira, 2008 p. 307).
A tentativa de golpe de Estado sobre o governo Vargas em 1954 mobilizou, dentre
outros fatores, as denúncias de corrupção envolvendo como arma política para o
enfraquecimento do Estado getulista. Sob o discurso da necessidade de moralização da
administração pública, apropriado e difundido pela UDN, cunharam-se as expressões “mar de
escândalos”4 e “ mar de lama”5 para referirem-se as irregularidades envolvendo o governo
Vargas, ou seja, as denúncias de corrupção desempenharam importante papel no desfecho
político de Getúlio Vargas (Silva, 2017).
Os jornais.
No Brasil dos anos 40 e assim também nos anos 50, o clube da imprensa era restrito,
franqueado a umas poucas famílias eleitas6. O maior deles era o Correio da Manhã, o
4 Jornal Tribuna de Imprensa, 12/09/1952, p. 3. 5 Idem, 07/12/1953, manchete. 6 “No Rio Grande do Sul reinava o Correio do Povo, comandado pelo jovem Breno Caldas. No Paraná e em
Santa Catarina, como em quase todos os outros Estados, não havia jornais importantes. Em São Paulo, o
Estadão, da família mesquita, já era hegemônico, embora também tivesse influência A Gazeta, de Cásper Líbero,
e o tradicional Correio Paulistano, que fora porta-voz do Partido Democrático, controlado pelo grupo de
Francisco Morato. No Nordeste e no Norte, só tinham algum peso A Tarde, da Bahia, pertencente à família
poderoso ‘feudo’ de Paulo Bittencourt, seguido pelo Diário de Notícias da família Dantas. O
Globo ainda alcançava repercussão reduzida, e o Jornal do Brasil configurava ainda uma
espécie de catálogo de classificados. Havia vários outros jornais e alguns deles tinham boa
penetração, mas não se podia compará-los de modo algum com o que representava aos
grandes, sobretudo, o Correio da Manhã. Nos anos seguintes, o Brasil assistiria à escalada
dos Diários Associados, liderado por Assis Chateaubriand (Wainer, 1988).
Outro fator era que no Brasil ao contrário do que acorre em países como os Estados
Unidos, o jornal era porta voz do seu dono. “Sempre foi assim, é assim ainda. O Estadão, por
exemplo, reflete os humores, idiossincrasias, valores e preconceitos dos Mesquitas. A Folha
de São Paulo é a família Frias, O Globo é Roberto Marinho, o Jornal do Brasil, é a família
Nascimento Brito” (Wainer, 1988, p.137). Por trás da aparente independência que
ostentavam, os jornais são o que seus donos desejam que seja (Wainer, 1988).
O levantamento do material jornalístico publicado pela imprensa escrita sobre os casos
de corrupção foi realizado através de três veículos que atuavam no Rio de Janeiro, então
Capital Federal. Os jornais Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e o jornal Última hora. O
Correio da Manhã (1901- 1974) fundado pelo advogado Edmundo Bittencourt foi um dos
mais respeitáveis periódicos da imprensa diária e considerado um dos veículos de informação
mais importantes do século XX com tiragem de até 200 mil exemplares em seus melhores
momentos7. Destacava-se como um jornal de ‘opinião’, e num primeiro momento
identificava-se com as classes populares, mas gradativamente atraiu a atenção da classe média
do Rio de Janeiro (Sodré, 1966) . Sua linha editorial “se posicionava a favor de medidas
modernizadoras e contra forças políticas vistas como bloqueadoras do desenvolvimento e do
acesso popular a alguns direitos fundamentais”8.
O Jornal Tribuna da Imprensa (1949- 2008) foi fundado pelo jornalista por Carlos
Frederico Werneck de Lacerda (UDN)9. Antes da fundação do jornal, Carlos Lacerda era
Simões, o Jornal do Commercio, de Pernambuco controlado pelos Pessoa de Queiroz, e O Liberal, do Pará. Mas
os grandes jornais brasileiros, os que realmente contavam, eram editados no Rio de janeiro” (Wainer, 1988, p.
135) 7 Hemeroteca digital – Biblioteca Nacional / Correio da manhã. 8 Hemeroteca digital – Biblioteca Nacional / Correio da manhã. 9 Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal em 1914. Oriundo de família militante comunista
Lacerda participou do grupo articulador da Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização fundada em 1935.
articulista do Correio da Manhã, onde assinava a coluna “Tribuna da imprensa”. Por tê-la
usado para atacar a família Soares Sampaio, ligada por laços de amizade a família Bittencourt,
proprietária do Correio, foi afastado desse matutino conservando, entretanto, o direito de usar
o título de sua coluna. Assim, em fins de 1949, no final do governo do marechal Eurico
Gaspar Dutra, Lacerda usou o antigo título para batizar um novo jornal que, representando as
principais proposições da União Democrática Nacional (UDN), viria fazer oposição às forças
remanescentes do getulismo10.
O jornal Última Hora (1951-1984) foi um dos grandes jornais brasileiros do século XX.
Fundado pelo jornalista Samuel Wainer11, a UH transformou o jornalismo: “instalou
máquinas modernas, pagou ótimos salários, adotou paginação inovadora e a atualização das
notícias em várias edições ao longo do dia. Seis meses depois do lançamento, era o vespertino
mais vendido no país” (Diniz, 2011). Na campanha presidencial de 1950, Wainer entrevistou
Getúlio Vargas, na ocasião o jornalista trabalhava para o ‘Diários Associados’ de Assis
Chateaubriand e nesta entrevista Vargas afirmara que voltaria nos braços do povo (Diniz,
2001). A partir daí Wainer se aproxima de Getúlio e cobre sua campanha, nascia aí uma
relação de amizade. Vargas foi eleito com larga vantagem sobre os adversários, mas
enfrentava dura oposição no meio político e na imprensa. Era preciso um veículo que desse
voz ao presidente. Vargas quis um jornal para divulgar as ações do seu segundo governo para
atingir as massas. Wainer aceitou a proposta de ter um diário e dar apoio político à Vargas
(Diniz, 2001 e Losnack, 2012).
Escândalos de corrupção no governo Vargas.
Na década de 1950, que compreende o primeiro período de redemocratização vivido
pelo Brasil entre 1945 e 1964, surge uma peculiaridade: o termo corrupção sofre um
deslocamento, ele passa a entrar no discurso, adquire visibilidade e é amplamente explorado
A partir de 1938, dedicou-se às atividades jornalísticas. A ruptura de Lacerda com os comunistas e o ingresso na
direita conservadora teve suas raízes no episódio de sua expulsão do partido comunista em 1939. Lacerda foi um
do principais expoente de oposição do governo Vargas. 10 http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/tribuna-da-imprensa 11 Famosa eram as divergências entre os jornalistas Carlos Lacerda e Samuel Wainer. Seus jornais eram palco de
suas polarizações políticas expressas respectivamente no antigetulismo e getulismo.
pela imprensa. As denúncias na imprensa atribuem à corrupção dimensão de problema
público.
A segunda gestão de Vargas foi palco de três casos de corrupção envolvendo órgãos
e agentes do governo: Inquérito do Banco do Brasil, Cexim e Última Hora. Tais casos
expressam e ao mesmo tempo contribuem por fixar certa concepção social do que seja
corrupção na sociedade brasileira nos anos 50. Examiná-los implica em considerar que estes
são apenas amostras de uma realidade bem mais ampla de práticas que recortam a sociedade,
mas que podem nos fornecer ingredientes para observar outras questões que tangenciam o
estudo da corrupção no período, como a presença de um conflito político e o uso corrupção
como um instrumento de acusação política.
1. O inquérito do Banco do Brasil.
No início de seu mandato no ano de 1951 o presidente Getúlio Vargas determinou a
constituição de comissões de inquérito em ministérios, autarquias e órgãos subordinados para
averiguar a atuação de seus antecessores. No caso do Banco do Brasil, a comissão de
inquérito presidida por Miguel Teixeira tinha por objetivo examinar de forma minuciosa
irregularidades no banco a partir do governo Dutra.12
Em junho do mesmo ano a comissão de inquérito denunciava o ex-presidente do
Banco do Brasil, Guilherme da Silveira, por distribuir milhões de cruzeiros para fins
particulares e políticos inteiramente estranhos aos objetivos do principal estabelecimento de
crédito. Em matéria do jornal Última Hora sobre o relatório da comissão encaminhado ao
presidente, é afirmado que constava impressionante documentação sobre uma verdadeira
‘orgia de verbas’ de publicidade distribuídas pelo Banco do Brasil a partir de 1946, custeando
campanhas políticas e publicidades de indústrias particulares. Também foi apurado que
grande parte dos valores custeados pelo Banco do Brasil era para publicidade da fábrica de
tecidos do ex-presidente do Banco do Brasil, a fábrica Bangu. Por outro lado, grandes
fortunas foram usadas para custear a propaganda de desmoralização política e pessoal do
presidente Getúlio Vargas. A matéria ainda afirmava que não só a transcrição de discursos
12 Correio da Manhã, 14/02/1951, p. 8.
parlamentares, mas a encomenda de artigos e entrevistas, e até caricaturas e charges, foram
distribuídas a preço de ouro a diversos jornais e revistas do país.13
Tive acesso ao ofício de Miguel Teixeira encaminhado a Getúlio Vargas acerca do
relatório parcial da comissão de inquérito do Banco do Brasil. Foram selecionados alguns
trechos que reforçam a reportagem do ‘Última Hora’, os quais evidenciam que interesses
particulares se sobrepunham aos interesses do Banco. “Publicações estranhas aos interesses do
estabelecimento, despesas de finalidade desconhecida, interesses privados, publicidade
irregular”14 são expressões que apontam para utilização de recursos públicos para fins
particulares, isto é, há indicação no relatório de irregularidades que comprometem o bom
funcionamento da administração pública. O relatório da Comissão ainda observava que as
irregularidades surgem a partir de 1946, na ocasião da sucessão do primeiro mandato de
Getúlio, pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. A suspeição da irregularidade é comprovada na
indicação da utilização da verba do banco, tanto para interesses particulares, para a
publicidade da fábrica Bangu, como para ataques políticos a Getúlio Vargas, que na ocasião
era senador.
Outra observação indicada no relatório, mas não explorada pela matéria do ‘Última
Hora’, foi a questão da imprensa: a quase totalidade da imprensa carioca usufruiu da
publicidade irregular, excetuando-se o jornal Tribuna da Imprensa. Reside uma preocupação
no relatório em indicar o não envolvimento do jornal Tribuna da Imprensa, de oposição ao
governo. Esse silêncio na matéria do jornal evidencia que a imprensa possuía relações com o
governo Dutra e os interesses envolvidos nos possíveis ataques a Getúlio Vargas envolvia
disputas políticas. Disputas custeadas pelo dinheiro público.
No inquérito promovido por Vargas para investigar irregularidades no governo
Dutra, o nome de seu Ministro da Fazenda, Horácio Lafer, foi citado como beneficiado por
dinheiro público. Essa questão também não foi abordada pela matéria do jornal Última Hora
ao tratar sobre o relatório parcial do inquérito. Com a criação da comissão nos meses iniciais
do governo e indicado seu posicionamento em apurar as irregularidades cometidas no Banco
do Brasil, ao longo de 1951 pouco se obteve informações sobre o andamento do inquérito,
apenas indicação de que este estaria sendo apurado com rigor. Tal postura rendeu logo no
13 Última Hora, 14/06/1951, p. 5.
14 CPDOC/FGV. Arquivo: Getúlio Vargas. Classificação: GV c 1951. 05.10/5, 10/05/1951.
início do ano de 1952 a publicação pelo jornal Tribuna da Imprensa de uma charge na
primeira página sobre a forma como o governo estava encaminhando o inquérito.
Figura 1 – “Rigoroso Inquérito”. Fonte: Tribuna da Imprensa, 22/01/1952, p. 1.
A caricatura fazia alusão ao então presidente Getúlio Vargas que, sentado sobre o
inquérito, não oferecia as informações sobre o que havia apurado de fato. No dia seguinte a
esta matéria o Correio da Manhã trouxe um artigo intitulado “Inquéritos Administrativos”,
cobrando ao presidente os resultados do inquérito sobre o Banco do Brasil. O artigo também
fazia uma breve abordagem dos inquéritos que o presidente mandou apurar desde que
assumiu e que somente se referem ao governo anterior, e insinua que há uma farsa dos
escândalos. De acordo com o texto, o Deputado José Bonifácio (UDN), por intermédio da
mesa da câmara, formulou um requerimento ao governo para que este informasse qual o
resultado do inquérito mandado proceder tão ruidosamente nos negócios do Banco do
Brasil15.
Em maio de 1952, um novo pronunciamento do deputado José Bonifácio na Câmara
afirmava que o inquérito havia sido sonegado a qualquer publicidade, a fim de que se
possibilitasse a substituição do nome dos principais implicados. Salientou que o inquérito já
havia sido concluído pela Comissão, mas o atual presidente do Banco, Ricardo Jafet, não
adotou suas conclusões, nem revelou o nome dos apontados, “preferiu realizar novas
15 Correio da manhã, 23/01/1952. p. 4.
investigações, isto é, um segundo inquérito sobre o primeiro já encerrado”.16 Em defesa do
Banco em relação a tais questionamentos, foi justificado que Ricardo Jafet optou por
providenciar a realização de novas sindicâncias a fim de apreciar alguns detalhes do inquérito
realizado, mas os nomes seriam conhecidos em momento oportuno17.
A UDN, na figura de José Bonifácio, além de cobrar os resultados do inquérito
trouxe novos questionamentos sobre as relações que o envolvia. Acerca de empréstimos, em
discurso publicado no ‘Tribuna da Imprensa’, o deputado afirmava que o protecionismo
político vigora na concessão de empréstimos, visto que os mesmos são concedidos não em
vista das garantias reais que os solicitantes podem oferecer, mas em relação ao eleitorado que
eles podem apresentar18. Em julho o deputado mineiro falou aos jornalistas que teve acesso ao
inquérito e pretendia tomar providências sobre a publicidade dos resultados no qual apareciam
nomes de pessoas que exerciam função de relevo na política e na administração. E que várias
das pessoas envolvidas naquele processo continuam a gozar dos favores do Banco do Brasil19.
A partir desta informação veiculada na imprensa, alguns agentes da cena política
manifestaram-se por tomarem conhecimento de seus respectivos nomes estarem arrolados ao
inquérito, todos ligados ao PSD. Surgem matérias de defesa prévia dessas pessoas embora
ainda não tenha sido tornado público o resultado do inquérito que se apresentava como um
mistério oculto a sociedade. Foi o caso de Marino Machado - Ex-diretor da Carteira Agrícola
e Industrial do Banco do Brasil e que na ocasião do inquérito era Deputado Federal por São
Paulo pelo PSD.
Segundo Marino Machado o fato de seu nome estar arrolado nas investigações de
irregularidades do Banco do Brasil era uma questão de ponto de vista e que poderia ser
esclarecido em momento oportuno. Essa questão nos permite observar que dependendo da
posição do agente ele não considera que determinada ação se configure como irregularidade,
mesmo estando arrolado em uma CPI. A justificativa acerca de suas ações parecia se sobrepor
ao que é considerado uma prática irregular. Ao final do mesmo mês, isto é, agosto de 1952, o
16 Tribuna da Imprensa, 08/05/1952, p. 8.
17 Tribuna da Imprensa, 08/05/1952, p. 8.
18 Tribuna da Imprensa, 10-11/05/1952, p. 2.
19 Correio da Manhã, 12/07/1952, p. 8.
Correio da manhã transcreve o discurso de defesa de Marino Machado na tribuna da câmara,
o mesmo foi transcrito desta matéria pelo jornal Tribuna da Imprensa. A maior parte do
discurso é destinada a sua trajetória como cidadão e na vida pública.
No primeiro momento do discurso, a mobilização da honra caracteriza a preocupação
em atribuir credibilidade às palavras de defesa que realizaria em um segundo momento. Parte
considerável do discurso destinou-se a defesa da reputação e ao enaltecimento de suas
virtudes, trajetória e atuação na vida pública. No tocante às acusações do inquérito, Marino
fez a análise de todo processo de sindicância e apuração que leva a Carteira Agrícola na
concessão de crédito industrial ou pecuário. Salientou que ao assumir a carteira não fez
substituição nenhuma de funcionário por considerá-los todos de confiança. Elenca casos em
que seu nome apareceu na sindicância na concessão de empréstimos sem garantia e somente
em um caso concedeu empréstimo ao Sr. Ernesto Moreira, de Nova Iguaçu, sem consultar os
órgãos técnicos não por se apoiar em sua ficha cadastral como entendeu a comissão, mas
porque a cidade passava por crise de abastecimento de carne e este possuía considerável
rebanho no entorno da cidade.20
As denúncias não se restringiam a agentes públicos, mas também ao partido político,
no caso o PSD. O governador Amaral Peixoto sobre as acusações formuladas contra o partido,
afirmara que mesmo não sendo presidente do partido na época do inquérito colocava os livros
do PSD à disposição21: “Aguardo a publicação total do documento para defender meu partido,
afirma o presidente do Partido – Estou certo que as figuras pessedistas mencionadas por José
Bonifácio possuem elementos próprios de defesa”22. A defesa do partido veio através da
figura do Deputado Cirilo Júnior, que também foi citado no inquérito. No ‘Tribuna da
Imprensa’ trechos de seu discurso foram indicados em pequena nota. Já no jornal Última Hora
seu discurso foi apresentado em página inteira.23
Em agosto de 1952 em artigo intitulado “Inquérito” publicado no Correio da Manhã,
outra questão surge em torno do inquérito e passa habitar as páginas dos jornais, o porquê de
somente investigar as relações do Banco do Brasil no governo Dutra e não ter estendido
20 Correio da Manhã, 22/08/1952, p. 6.
21 Última Hora, 02/08/1952, p. 1.
22 Última Hora, 02/08/1952, p. 1.
23 Última Hora, 23/08/1952, p. 9.
também ao governo atual24. Também é denunciado o interesse pessoal e político em
detrimento do interesse coletivo, Getúlio não atuou como deveria atuar um representante da
administração pública. A preocupação de investigar alguns e não a outros, ou mesmo da
utilização da situação para benefício próprio, como sugere a matéria, compromete a
imparcialidade que um agente público deveria prezar no exercício de sua função,
principalmente por ser eleito pela nação para ocupar o mais alto posto do poder executivo. A
matéria questiona se as mesmas irregularidades investigadas não estariam acontecendo no
governo em vigor, uma vez que o inquérito passou a ser mobilizado para fins políticos,
perdendo seu caráter inicial. Gradativamente a pressão para a divulgação do inquérito e a
postura do governo em não divulgá-los voltou de certa forma para o próprio Governo Vargas,
questionava-se o que existia no inquérito que não possibilitava sua divulgação. Cogita-se
então nos jornais o envolvimento de agentes ligados ao governo. O inquérito que teve como
foco o governo anterior volta-se contra Getúlio Vargas.25
Lacerda, em matéria de capa, faz um balanço dos interesses envolvendo o inquérito,
ao qual teve acesso. Reforça o porquê do inquérito não avançar no governo Vargas e levanta a
acusação de que a condução do inquérito resulta na evidência de uma série de negociatas para
favorecer o partido que então constituía a base parlamentar do governo, o PSD. Afirmava ser
indispensável que “alguém furasse a cortina de silêncio de meias verdades e de difamações
sussurradas, que assustava os meios políticos, econômicos e administrativos do país,
mantendo-os sob coação moral intolerável”26.
Lacerda reforça os questionamentos de Bonifácio e avança acusando diretamente
Vargas de proteger agentes de seu governo, o partido do PSD de ter sido financiado por
dinheiro público, e ainda a utilização de informações que comprometiam o governo Dutra
para obtenção de empresas no governo atual. Neste contexto surgem os nomes do jornalista
Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, e de Lutero Vargas, filho do presidente, como
beneficiários do dinheiro do banco. O governo Vargas passa de denunciador de práticas
irregulares a denunciado por essas mesmas práticas.
24 Correio da Manhã, 02/08/1952, p. 4. 25 Idem 26 Tribuna da Imprensa, 01/08/1952, p. 1.
O desfecho do inquérito residiu no impasse de sua não publicação, tanto os jornais
Última Hora, Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa noticiavam que foi decido pela mesa
da Câmara a não publicação do inquérito no Diário do Congresso. O Correio da Manhã
informa a existência de divergência em torno da divulgação do inquérito do Banco do Brasil.
Os parlamentares, bem como um grande número de jornais, consideravam a iniciativa danosa
aos interesses públicos27. Em edição de outubro de 1952, Lacerda emite um parecer sobre os
motivos que levaram a Tribuna da Imprensa a não publicar o relatório. Segundo esta nota, o
inquérito não era o que foi anunciado por Bonifácio, afetaria diretamente aos bancos gerando
um “crack” e também traria agonia para a população e ruína da nação28.
Uma questão que se coloca principalmente em relação à Tribuna na Imprensa é a
mudança de seu posicionamento. De forma ostensiva cobrava os desdobramentos do inquérito
e apresentava matérias irônicas sobre seu andamento, como a publicação da charge
demonstrada. Quando a Câmara decide por sua não publicação é evidenciado o silêncio deste
veículo e somente posteriormente Lacerda emite o parecer de concordar com a não
publicação. Depois deste feito não identificamos mais questionamentos oriundos da Tribuna.
Somente no ano de 1953, através de matéria no jornal Correio da Manhã é que se
obtêm informações do seu resultado. O presidente do Banco no período investigado,
Guilherme da Silveira, “é considerado responsável pelos atos e operações irregulares,
abusivos, de mera liberalidade, culposos ou dolosos, descritos no relatório”29. Concluiu ainda
a Comissão que alguns dos casos relatados e apurados demandam inquérito policial e que o
volume das sonegações e desvios apurados sobe ao total de CR$362.265.163,4230.
De acordo com matérias na Tribuna da Imprensa, ao longo deste processo muitas
pessoas que compuseram a CPI tiveram que ser afastadas no desenrolar do inquérito, pois
acabaram por ser citadas nele. Figuras do PSD foram também citadas no inquérito e
utilizaram páginas inteiras dos jornais para sua defesa. O próprio partido também recorreu a
essa prática para apresentar a defesa dos pessedistas.
27 Tribuna da Imprensa, 28/10/1952, p. 4. 28 Tribuna da Imprensa, 28/10/1952, p. 4.
29 Correio da Manhã, 05/02/1953, p. 12.
30 Correio da Manhã, 05/02/1953, p. 12.
Fato é que o inquérito, embora conduzido de forma reservada, habitava as páginas
dos jornais entre os anos de 1951 e 1952 e gradativamente foi sendo preterido em detrimento
de outras notícias até cair em esquecimento. Contudo, ele foi considerado nesta pesquisa por
algumas razões: A primeira por mobilizar certo clamor acerca de seu teor por ser entendido
como práticas que comprometiam o bem público. A forma recorrente como foi noticiado lhe
atribuiu dimensão de escândalo político envolvendo práticas consideradas irregulares em
relação à administração pública.
2. O escândalo da Cexim
A Cexim (Carteira de exportação e importação do Banco do Brasil) foi um órgão
criado pelo Decreto-Lei nº 3.293, de 21 de maio de 1941, durante o Estado Novo, com a
finalidade de “estimular e amparar a exportação de produtos nacionais e assegurar condições
favoráveis à importação de produtos estrangeiros”31 . Com a reimposição dos controles de
importação as atividades da Cexim adquiriram importância vital32. A Cexim encarregava-se
da administração do sistema de controle das importações através de licenciamento.
As primeiras notícias sobre irregularidades na CEXIM datam de novembro de 1951
e de forma pontual são denunciadas pelo jornal Última Hora em pequena matéria sob o título
“Lesaram em milhões de cruzeiros - Descoberta pela polícia, vultosa fraude contra a
Cexim”33. De acordo com o jornal houve falsificação e adulteração de guias de importação e
exportação e diversos funcionários do Banco do Brasil e várias firmas estavam implicadas.
Essa mesma matéria apontando “fraudes” na Cexim, solicitava que paralelamente à
ação criminal seja aberta um inquérito administrativo a fim de que seja comprovada a
responsabilidade dos envolvidos. Em março de 1952, o ‘Tribuna da Imprensa’ denunciava um
31 CPDOC/FGV/Verbete – Cexim.
32 Com a Instrução nº 25 da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) de 3 de junho de 1947,
e da Lei nº 262, de 23 de fevereiro de 1948, que resultou num rápido esgotamento das reservas
conversíveis brasileiras e do desequilíbrio estrutural do balanço de pagamentos, principalmente em
relação aos Estados Unidos, o papel a CEXIM resignificou, ampliando sua importância no cenário
econômico.
33 Última Hora, 06/11/1951, p. 5.
flagrante de suborno na Cexim cujo fiscal do órgão pertencente a uma agência do Rio foi
preso em flagrante quando recebia cheque de 200.000 cruzeiros de um representante de uma
firma paulista para dar informação favorável em processo de importação34.
Neste caso reside uma peculiaridade que não havia sido identificada nas matérias
trabalhadas até então. Esse flagrante foi provocado pelo próprio Banco do Brasil, e pela firma
que denunciara a insinuação dos fiscais para a emissão de informações ao pedido de
importação de mercadorias sob o controle da Cexim. A diligência foi efetuada a pedido do
próprio presidente do Banco do Brasil, na ocasião Ricardo Jafet. As autoridades haviam
obtido gravações entre o representante da firma e o fiscal. Além de existir um consenso de
que aquele tipo de prática era ilegal, todo um cenário foi montado para que os envolvidos
fossem flagrados e posteriormente punidos. Entretanto, de acordo com o comissário
responsável pela ação, aquela prática em si não configurava crime, mas apenas uma grave
falta administrativa35. É interessante salientar que a solicitação ou recebimento de vantagem
indevida por funcionário público era um crime de corrupção passiva contra a administração
pública, previsto no código penal desde 1940.
Em junho de 1952 foi instituída a Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar
as atividades da Carteira de Redesconto e na Caixa de Imobilização Bancária do Banco do
Brasil desde 194536. Ficou estabelecido que fosse convocado de imediato para depor o então
presidente do Banco do Brasil, para prestar informações detalhadas sobre as operações
realizadas na Carteira de Redesconto e na Caixa de imobilização bancária não só durante sua
gestão como nas gestões anteriores desde 194537.
No mês seguinte à composição da Comissão, o ‘Correio da Manhã’, além de
denunciar a existência de nepotismo no órgão, apresentava a cópia de um documento que
comprovava a existência de favoritismo na Cexim.
Rio de Janeiro, 09 de julho de 1952, Ordem de serviço S/n
34 Tribuna da Imprensa, 20/03/1952, p. 7.
35 Tribuna da Imprensa, 20/03/1952, p. 7.
93 Tribuna da Imprensa, 10/06/1952, p. 3.
37Tribuna da Imprensa, 10/06/1952, p. 3.
Confidencial
Simão Guiger – Rua Machado Coelho, n. 48 Nesta
Recomendamos aos diversos órgãos da carteira que, até instruções contrárias,
passem a dispensar a firma em epígrafe tratamento rigoroso, estritamente dentro das
disposições legais ou regulamentares em vigor, nenhuma concessão se lhe fazendo
quando dependa apenas de arbítrio ou de boa vontade da carteira.
Leopoldo Saldanha Murguel Gerente
Luiz Simões Lopes era o então presidente do órgão e tinha como auxiliar imediato e
de absoluta confiança o gerente Leopoldo Saldanha Murgel. Através do teor da ordem de
serviço a matéria denunciava que os critérios em vigor na Cexim para concessão de licenças
eram dois: “um rigorosamente dentro das disposições legais e outro dentro do arbítrio de boa
vontade da carteira”38. A própria expressão ‘Feudo’ no título na reportagem caracteriza um
domínio pessoal dentro do órgão. Nele, como indicava a matéria, trabalhavam familiares de
Simões Lopes. No teor da matéria encontramos a condenação de duas práticas: nepotismo e
favoritismo, além de prejuízos econômicos à instituição. Estas não foram associadas à
corrupção de forma direta, mas como elementos que corrompem a administração pública e
trazem a desordem .39
É exigida uma intervenção moralizadora do governo diante das práticas de Simões
Lopes. Na ordem de serviço, ao enfatizar a necessidade de ‘tratamento duro’ na letra da lei a
uma firma específica e indicar também a existência de ‘boa vontade da carteira’, observamos
que o favoritismo não é apresentado de forma velada, mas de forma regulamentada, o que
provocou o estranhamento imediato na denúncia feita no jornal.
No ano de 1953 as matérias dos jornais se ocupavam de temáticas mais específicas.
No caso da Cexim, o Correio da Manhã encabeça uma campanha contra o órgão com
volumosas e recorrentes matérias e o jornal Última Hora apresenta-se como porta-voz da
defesa das acusações contra a Cexim. Em janeiro de 1953 o presidente do Banco do Brasil
pede exoneração do cargo, Vargas prontamente aceita e nomeia para seu lugar o General
38 Correio da Manhã, 27/07/1952, p. 2.
39 Correio da Manhã, 27/07/1952, p. 2.
Anápio Gomes40. No mês seguinte, o jornal Última Hora noticia um parecer de Coriolano de
Góis, que no ano de 1953 já se encontrava como diretor da Cexim, em que este afirmava que
não havia interferência política naquele órgão e que a Comissão de Inquérito poderia
vasculhar tudo o que se referisse às atividades do órgão sob sua direção41.
O órgão passa a ser acusado de conceder licenças num período de austera política de
importação estabelecida pela própria Cexim. E num período em que se negava licença até
mesmo para importação de medicamentos, concedeu licenças para importação de automóveis
e seus acessórios42. As práticas identificadas na Cexim, segundo a matéria, obedeciam a
critérios dentro do aspecto da ‘moralidade administrativa’ ou de outra ‘moralidade’ que não
administrativa. Observamos que lei e moral estão situados em campos distintos, contudo,
independente dos critérios legais ou morais adotados, as práticas identificadas dentro do
órgão, de acordo com a reportagem, foram consideradas como desculpa para justificar o
benefício de alguns em detrimento de outros na obtenção de licenças. A matéria também
estabelece uma comparação entre Cexim e governo Vargas, em ambos vigorava o critério de
amizade e privilégios43.
Em abril de 1953, o presidente Vargas solicita esclarecimentos sobre a concessão de
licenças na Cexim. O diretor Coriolano de Góes defende-se através de matéria apresentada
pelo jornal Última Hora, na coluna ‘O dia do presidente’, na qual afirmava não haver na
Cexim favoritismo para concessão de licença e que diante das escassas disponibilidades
cambiais a administração tinha tentado prover o mercado nacional de artigos de primeira
necessidade.44
Como mencionado, o Correio da Manhã encabeça a campanha contra a Cexim. Em
suas constantes matérias gradativamente o órgão passa a ser associado à corrupção. Em
matéria intitulada “A Cexim trouxe a corrupção nos negócios de importação e exportação”45,
40 Correio da Manhã, 13/01/1953, p. 12.
41 Última Hora, 07/02/1953, p. 1.
Correio da Manhã, 29/03/1953, p. 142 43 Correio da Manhã, 29/03/1953, p. 1.
44 Última Hora, 06/04/1953, p. 2.
45 Correio da Manhã, 09/05/1953, p. 1.
embora a palavra ‘corrupção’ somente tenha aparecido no título da matéria, referências a
irregularidades, favoritismo e prejuízos à economia do país ao longo da matéria englobam o
universo considerado como prática corrupta. O órgão constantemente associado ao
favoritismo e à facilidade em obtenção de licenças para alguns e a dificuldade de obtenção
para outros, dividia-se entre “os lucros dos apadrinhados e a aflição dos sem padrinhos”46, isto
é, representava para o jornal um instrumento de favores.
Na matéria intitulada “Cexim é a responsável direta pela imoralidade e corrupção”, o
Correio da Manhã chama atenção de que é preciso deixar claro que o órgão é responsável pelo
clima de corrupção que envolve o controle de importação e exportação do país: “É ela quem
provoca e estimula as práticas condenáveis nos licenciamentos e as classes econômicas
precisam curvar-se a ela se quiserem sobreviver”.47 “A cexim não é vítima de uma crise
moral, mas um agente da corrupção”48. Num espaço de poucos meses a corrupção passa a
estar associado diretamente a Cexim, órgão que representa o governo. O termo sofre um
deslocamento gradativo de um contexto mais amplo para fixar-se na figura do órgão que
representa o governo. No caso do ‘Inquérito do Banco do Brasil’, o termo ‘irregularidade’ era
predominante para identificar práticas que lesavam a administração pública. No caso da
Cexim, claramente o termo corrupção passa a tomar corpo e é associado às práticas de
favoritismo dentro do órgão do governo.
O Correio da manhã passa, então, a cobrar um posicionamento do governo em
relação ao órgão, visto não ser mais possível o país assistir impassível ao que era tido como
escândalo na Cexim. O clamor para a extinção da Cexim passa a ser gradativamente
mobilizado. “Aceitar a Cexim é aceitar a manutenção de um órgão de corrupção e de
esbanjamento de divisas”; “A lei de licença prévia é um incentivo a corrupção”49; “A Cexim
prejudica material e moralmente o país”50; “Cexim, o maior escândalo deste país”51. Esse
46 Correio da Manhã, 03/06/1953, p. 10.
47 Correio da Manhã, 03/07/1953, p. 10.
48 Correio da Manhã, 27/03/1953, p. 11.
49 Correio da Manhã, 16/09/1953, p. 10.
50 Correio da Manhã, 02/10/1053, p. 10.
51 Correio da Manhã, 02/12/1953, p. 10.
conjunto de termos permite-nos considerar não somente uma pressão política para o
fechamento do órgão, que conta, inclusive, com apoio do senador do PTB, mas como o termo
corrupção passa a ser apropriado na referência à Cexim.
Em dezembro de 1953 surgem denúncias de pagamento de Comissões para
empréstimos na Carteira Geral de Crédito do Banco do Brasil, na administração de Coriolano
de Góis e outras provas de suborno e favoritismo emergem. Com os sucessivos escândalos e
os interesses políticos envolvidos, a Cexim é substituída pela Carteira de Comércio Exterior
(Cacex) do Banco do Brasil através da Lei nº 2.145, de 29 de dezembro de 1953.
É importante salientar o contexto político-econômico que contribuiu para a extinção
da Cexim, para a qual a imprensa desempenhou importante papel para adesão da opinião
pública neste processo. Entre 1949 e 1953, o Ministério da Fazenda foi ocupado por dois
industriais, o que de certa forma garantia ao setor industrial que seus interesses fossem
protegidos. Os dois órgãos que trabalhavam com política cambial eram a Cexim, que
representava a autoridade na emissão das licenças de importação e exportação e a Sumoc
(Superintendência de Moeda e Crédito). Vargas também indicou um industrial para a
presidência do Banco do Brasil, Ricardo Jafet. Desta forma, a política protecionista garantiu o
enriquecimento dos industriais devido à acumulação de matérias-primas e equipamentos e
aumentado às importações (Leopoldi, 1994).
Contudo, nos anos de 1951 e 1952, justamente quando surgem as denúncias de
corrupção na Cexim, as importações sobrepujaram as exportações, gerando urna crise cambial
e uma escassez de divisas que praticamente paralisou o sistema de licença prévia. A
alternativa apresentada pelos industriais para superação da crise cambial era o controle mais
rigoroso das importações de produtos supérfluos, incentivos à exportação, maior controle dos
pagamentos feitos ao exterior e participação dos industriais na formulação de tratados
comerciais, iniciando o período de austeridade na prática do órgão (Leopoldi, 1994).
A escassez de divisas e a lentidão do processo pela Cexim geraram muitas críticas a
essa carteira do Banco do Brasil, principalmente pela UDN e por neoliberais, então grandes
críticos do intervencionismo estatal. Dentre esses críticos estavam de um lado os industriais
da Firj (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) que queriam o fim da Cexim e a liberação
total do câmbio, e do outro a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), que
defendia a manutenção da Cexim e o controle das importações (Leopoldi, 1994). A Cexim foi
extinta e em seu lugar foi criada a Cacex. Terminava assim o controle quantitativo das
importações e a agência controladora, a Cacex se abre aos industriais na determinação das
taxas de câmbio conforme a essencialidade dos produtos (Leopoldi, 1994).
3. O Caso Última Hora.
Em 1951 surge um concorrente do jornal “Tribuna da Imprensa”: o jornal Última
Hora. O primeiro desafio apresentado ao seu fundador, Samuel Wainer, era encontrar
instalações para abrigar o vespertino. Esse processo foi facilitado pela crise financeira pela
qual passava o jornal Diário Carioca, cujos diretores tinham interesse em vender a Editora de
Revistas e Publicações (Érica). Esta havia construído um prédio de quatro andares na Avenida
Presidente Vargas para publicação do Diário Carioca e se encontrava seriamente endividada
com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal (Wainer, 1987; Dulles, 1992).
A venda do prédio ‘primorosamente’ mobiliado a um grupo ligado a Wainer tornou-
se possível graças aos membros deste grupo: Valter Moreira Sales (superintendente da Moeda
e do Crédito do Banco do Brasil), o deputado Euvaldo Lodi e Ricardo Jafet (presidente do
Banco do Brasil), todos eles alvo da Tribuna no passado (Dulles, 1992).
Após a transferência da Érica foi preciso financiar o lançamento do novo jornal.
Parte deste dinheiro veio de um empréstimo inicial de 63 milhões de cruzeiros do Banco do
Brasil. Em abril e maio de 1951, Jafet e o deputado Lutero Vargas (filho de Getúlio Vargas)
ajudaram o grupo Wainer a assumir o controle de uma companhia de radiodifusão em
dificuldades financeiras (Rádio Clube Brasil), cujas dívidas incluíam 54 milhões de cruzeiros
ao Banco do Brasil. Entre o final de 1951 e início de 1952, Wainer levantava fundos para
lançar a edição paulista de Última Hora, recebendo considerável ajuda financeira de Francisco
Matarazzo e do Banco do Brasil (Dulles, 1992).
Em 12 de junho de 1951 a primeira edição do ‘Última Hora’ chegava às bancas,
tendo como destaque uma carta elogiosa escrita por Vargas (Wainer, 1992).
Prezado amigo Samuel Wainer, venho agradecer-lhe a carta que me enviou e na qual
me comunica o próximo lançamento de seu jornal Última Hora. Fazendo votos pelo
completo êxito desse empreendimento, que há de construir, por certo, um novo
marco de progresso na imprensa brasileira, apraz-me dizer-lhe que muito espero de
um jornalista de seu valor, serene, inteligente, objetivo, sempre capaz de bem
escolher os assuntos, expô-los com clareza, simplicidade e elegância, sentido o que
diz e sabendo dizer o que sente. Na realidade gosto de ser interpretado, combatido,
discutido ou louvado por espíritos isentos e desinteressados, que sabem enaltecer,
nos homens públicos, os atos merecedores de elogio, criticar quando precisam ser
esclarecidos ou corrigidos ou reprovar quando são reprováveis ou errôneos.
Quem quer que exerça uma parcela da atividade pública aprecia sempre a crítica da
imprensa, quando essa se faz com lealdade e com propósito sincero de esclarecer e
corrigir. O que nos fere é a desleal e mal-intencionada deturpação dos fatos, é o
premeditado silêncio quando algo existe que merece o louvor [...] [...] É por isso que recebo com satisfação a notícia do aparecimento de um novo
jornal para cuja orientação elevada e patriótica o espírito desse fundador constitui
garantia eficiente e motivo de bastante confiança e de contentamento. Que ele saiba
exprimir com fidelidade e elevação as tendências da opinião pública e colaborar,
através de uma acrítica muito bem intencionada e construtiva, na solução dos nossos
problemas – São os meus votos mais sinceros. 52
A carta do presidente da República no lançamento do jornal demonstra uma
proximidade entre o jornalista e Vargas. O teor elogioso da carta também reforça essa relação.
A carta não foi transcrita na íntegra, mas trata-se de uma carta extensa que ocupou grande
parte da primeira página do jornal. Em seu teor também é observado uma insatisfação com o
posicionamento ético da imprensa do período e Vargas pontua essa questão em vários trechos
da carta. O surgimento do ‘Última Hora’ apresentava-se como uma alternativa positiva àquele
cenário oferecendo um jornal de qualidade.
As primeiras denúncias envolvendo a relação entre o jornal e o governo data do
início de 1952. Em matéria de capa no jornal Tribuna da Imprensa, Lacerda questiona o
processo de obtenção do papel para produção do jornal e faz referência ao controle deste
processo ainda no primeiro mandato de Vargas. No período analisado a imprensa dependia da
importação de papel para confecção dos jornais. Lacerda também observava a lei sobre a
importação de papel, na qual o processo deveria ser conduzido pelos veículos de imprensa e
não por um Banco do governo. Aí reside o estranhamento da obtenção do papel para o jornal
Última Hora. A matéria indicava que o fornecimento de papel para Última Hora foi
assegurado pela empresa canadense Atlanta Corporation que ofereceu contratos de cinco anos
para fornecimento de papel de jornal ao Brasil sob a condição que os pagamentos fossem
efetuados ou garantidos pelo Banco do Brasil. A única empresa que participou de tal
negociação foi a Érica, a favor da qual o Banco do Brasil garantiu um pagamento num prazo
de cinco anos (Dulles, 1992).
52 Última Hora, 12/06/1951, p. 1.
Lacerda questionava o porquê de o governo ordenar ao Banco do Brasil que
fornecesse dinheiro para que o grupo comprasse o prédio, as máquinas e instalações e em
seguida fornecer mais dinheiro pelas instalações e máquinas e prédio que já eram do banco
porque provinham de títulos já vencidos. Para Lacerda, com essa prática o governo não
financiou um negócio ou ajudou uma indústria, ele deu dinheiro para que um grupo se
apossasse de uma indústria que por direito já pertencia ao banco.
As constantes denúncias fomentaram a criação de uma CPI para investigar transações
entre o Banco do Brasil e as empresas jornalísticas, tendo como o alvo principal o vespertino
de Wainer. A comissão ficou conhecida como CPI da Última Hora. Assim, em maio de 1953
se reuniu pela primeira vez a Comissão Parlamentar incumbida de promover o inquérito sobre
as transações efetuadas entre o Banco do Brasil e as empresas filiadas ao grupo que editava o
vespertino Última Hora53. Lacerda é inquerido nesta CPI como um dos autores da denúncia
que deu origem às investigações. Este fez um minucioso relato das dívidas do ‘Última Hora’
desde que foi criada a Érica S/A até ser adquirida pelo grupo Wainer54
Inquerido Samuel Wainer, suas declarações tiveram como principal ponto de
referência as denúncias de Carlos Lacerda. Wainer afirmou que as organizações gráficas e
jornalísticas de que fazia parte foram constituídas exclusivamente com capital particular,
montando em pouco mais de setenta e cinco milhões de cruzeiros o débito das mesmas com o
Banco do Brasil. Contestou que o valor dessa dívida fosse mais de duzentos e cinquenta
milhões de cruzeiros, declarando que a renda da empresa, de que é um dos diretores, lhe
assegura completa solvabilidade financeira55.
O diretor de Última Hora falou bastante tempo de sua carreira jornalística e que a
fundação desse vespertino resultou de uma velha aspiração sua concretizada com a
colaboração de um grupo de amigos e pessoas de boa vontade sem ingerência do governo56.
Neste mesmo dia Lacerda foi à televisão refutar as declarações de Wainer reiterando a criação
53 Correio da Manhã, 27/05/1953, p. 5.
54 Correio da Manhã, 10/06/1953, p. 10.
55 Correio da Manhã, ed.18480, 24/06/1953, p. 12.
56 Correio da Manhã, ed. 18480, 24/06/1953, p. 12.
do jornal para atender a Vargas, o favorecimento recebido para sua implementação e a
proteção que obteve na aquisição de papel da empresa canadense.
Em 1953, a Tribuna da Imprensa promoveu uma campanha contra a Última Hora.
Sob o discurso moralizador e da crítica à violação do bem comum, Lacerda potencializara de
forma ostensiva as denúncias contra os interesses que envolviam a criação do vespertino. Esta
campanha não foi travada apenas no jornal, mas também na rádio e na TV.
Ao longo da campanha contra o ‘Última Hora’, o apoio recebido por diversos
segmentos da população, a forma ovacionada que Lacerda era recebido em diversos comícios
e palestras principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, contribuíram para potencializar
sua influência política. Gradativamente, neste contexto de denúncias construiu-se a imagem
de Lacerda como um ‘herói’ no combate à corrupção fomentada pelo governo.
Muitas foram às audiências referentes ao inquérito e acompanhado diariamente seu
desfecho pela imprensa. Lacerda, além da Tribuna, também reforçava as denúncias na Tv
Tupi e na Rádio Globo. Embora não fosse comprovada legalmente a atuação do presidente,
constatou-se que houve favorecimento pessoal para o vespertino não somente através da
facilitação de empréstimos, mas por pagá-los através de compensação de juros com
publicidade, o que Lacerda denominava como uma modalidade do favoritismo: “receber do
banco para pagar ao banco”57
A Última Hora passa a ser associada à corrupção e a falta de moralidade do governo
e acentua-se via Tribuna da Imprensa um clamor para seu fechamento. Segundo Lacerda, o
‘Última Hora’ representava o próprio centro da corrupção, “o concluio com os negocistas do
Estado, para sufocar a imprensa e impedir o funcionamento da democracia no Brasil”. Além
disso, a UH tomou o significado de uma bastilha da corrupção. É como tal que ela deve ser
encarada, é assim que ela deve desaparecer. Para reparar o erro, Getúlio deveria fechá-lo.
Assim como no caso da Cexim, no caso Última Hora, o termo corrupção é
mobilizado. O jornal passa a ser associado a corrupção não pelas práticas que ocorriam em
seu interior como na Cexim, mas nas práticas utilizadas pelo governo para sua criação.
Claramente os agentes do governo Vargas são associados à corrupção por favorecerem a
criação do jornal Última Hora como recursos públicos.
57 Tribuna da Imprensa, edição 1080, 14/07/1953, p. 1.
Observar a influência do conflito político neste caso é de extrema relevância, as
denúncias não possuíam apenas um caráter de informar a população, mas de também de obter
apoio para legitimar seus interesses políticos. Lacerda não somente lutava por uma livre
concorrência entre os jornais do período, mas representava os interesses da oposição centrada
na UDN que representava um projeto político oposto ao getulismo. A denúncia de corrupção
se tornou um poderoso instrumento político que era potencializado pelos jornais.
A denúncia pública: a corrupção como instrumento de acusação política.
Ao pensar a denúncia pública e o impacto que esta possui na reputação dos envolvidos,
as noções de campo e capital político de Bourdieu (1989) nos fornece ingredientes para
compreensão desta relação. O reflexo desta disputa é sentido no jogo político, os projetos de
poder que disputavam o Estado representam os distintos interesses de agentes em distintos
posicionamentos dentro do campo. O capital simbólico é próprio ao campo político, pois ele
interfere na representação que se constrói acerca dos agentes nele inseridos. A reputação do
agente público, sua conduta na busca pelo interesse público, determinam sua ascensão ou
manutenção na vida política. Por essa razão o capital reputacional é tão caro a este campo, por
ser definidor da representação construída. Sendo a imprensa um influente instrumento político
de poder, seu posicionamento não é imparcial.
A questão do escândalo político emerge como um fenômeno social importante que
pode ter sérias consequências para as pessoas a ele associadas, visto poder desconstruir o
capital simbólico através da difamação moral dos envolvidos (Thompson, 2002). O escândalo
ou sua ameaça no campo político pode provocar o esvaziamento do poder simbólico do qual o
poder político depende (Thompson, 2002). Tanto Bourdieu quanto Thompson apontam para a
questão do abalo da honra de pessoas, partidos ou mesmo instituições dentro do campo desse
cujo capital reputacional é central para a sua manutenção. Desta forma, a denúncia pública da
corrupção por envolver representação, impactar o acúmulo ou esvaziamento do capital
simbólico, interfere substancialmente nas disputas de projetos políticos em voga neste campo.
Podemos ao longo da pesquisa identificar em alguns momentos o impacto das
denúncias no comprometimento do capital reputacional no período. Na ocasião do inquérito
do Banco do Brasil, o fato de partir de Vargas a iniciativa em averiguar possíveis problemas
na gestão anterior atribuiu-lhe caráter de honradez ao prezar pela transparência na
administração pública. Contudo, quando o inquérito passa a ser mantido em sigilo questiona-
se o porquê Getúlio estaria o conduzindo desta forma. Carlos Lacerda através de seu jornal
cobrava esclarecimentos, assim como o Deputado José Bonifácio (UDN) através da Tribuna
da Câmara. Quando o deputado da UDN, após ter acesso ao documento e afirmar nele conter
nome de pessoas que exercem função de relevo na política e na administração, o inquérito
ganha novos contornos. Ao ter seu ministro da fazenda associado às investigações, e tendo
conduzindo em sigilo as investigações, a imagem pública de Getúlio Vargas sofre desgaste. A
UDN explora bastante essa questão. O capital reputacional de Vargas se deslocava da
honradez para o seu comprometimento e a oposição sai fortalecida neste processo.
Quando o deputado Marino Machado (PSD) também é citado no inquérito por na
ocasião de ocupar o cargo de Diretor da Carteira Agrícola e Industrial do Banco do Brasil
autorizar empréstimos sem garantias, este profere extenso discurso de defesa. Neste,
valorizava sua trajetória política e afirmava que uma vez que um homem de bem ao ser
atacado em seu bem mais precioso que é a honra, não poderia deixar de se manifestar.
Expressões como “reputação de um homem público” e “dedicação à coisa pública” foram
mobilizados em seu discurso. Observa-se o cuidado na valorização da reputação, que de certa
forma contribui para legitimar sua defesa e amenizar o teor da denúncia.
No Caso Cexim, quando surgem denúncias no jornal Correio da Manhã sobre a prática
de nepotismo e favoritismo no órgão, este passa também a perder sua credibilidade. O diretor
do órgão, Coriolano de Góis, em defesa da Cexim, através do jornal Última Hora, afirmava
que não havia interferência política naquele órgão e que a comissão de inquérito poderia
averiguar as atividades sob sua direção. As constantes denúncias no jornal apontavam para
existência de critério de “amizade e privilégios”. Quando emergem provas de favorecimento
na concessão de licenças, o órgão passa a ser associado à “corrupção”.
Outro caso envolve Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil, que é associado ao
caso Última Hora tanto por permitir a utilização de dinheiro público para criação do jornal,
como no caso de oferecer garantias através do banco para a importação do papel do jornal,
impactaram sua honra enquanto agente público. As constantes matérias explorando práticas
reprovadas socialmente cometidas por Jafet comprometeram seu capital reputacional e do
governo também. As denúncias levam ao seu pedido de renúncia do cargo.
Todos os casos acima mencionados estão relacionados à administração pública, a
práticas inadequadas cometidas por seus agentes resultando nas investigações. Ao
comprometer a administração pública, o interesse público é violado e, portanto, é legítima a
condenação dos envolvidos. Quem denuncia a corrupção, aquele que é denunciado como
agente corrupto ou corruptor, e de que forma a denúncia é realizada só terá eficácia se de
alguma forma atingir um interesse maior, que atenda ao coletivo. Assim, a denúncia é dotada
de sentido moral, que confronta aos valores instituídos a cerca do interesse coletivo, que de
certa forma choca e incomoda, mas que também traz o sentimento de justiça. Aqueles
denunciados passam a ser ‘desmascarados’ e, portanto, devem sofrer punição pelas práticas
condenáveis que executaram. Aquele que denuncia está em posição de vantagem por deter
informações privilegiadas e comprometedoras sobre aquele a quem ou o que ele denuncia.
Essa posição lhe fornece a visibilidade pública e também lhe confere o status de bem feitor
por não colaborar com práticas socialmente irregulares, cuja sua inquietação é refletida no ato
de denunciar determinada pessoa ou esquema.
O denunciado por sua vez é inserido na esfera da descredibilidade. Sua reputação é
questionada e, portanto, comprometida. Sendo uma figura pública, a forma como é percebido
sofre alteração. Mesmo que a denúncia seja posteriormente comprovada ou mesmo sua
inocência provada, para o senso comum o denunciado passa a carregar uma espécie de marca
que de forma recorrente mesmo com o espaçamento do tempo, o associa àquela prática que
foi denunciada. E mais uma vez a imprensa se apresenta como elemento que reforça esse
processo. Por essa razão o capital social na cena pública possui grande valia, a reputação de
um político interfere diretamente em sua projeção na vida pública ou sua condenação ao
ostracismo. Neste sentido as denúncias de irregularidades nos anos 50 configuraram poderoso
instrumento político que quando mobilizado impactava de forma estrondosa a reputação do
denunciado.
Nos casos de corrupção no governo Vargas essa questão pode ser observada. A
quantidade de denúncias construía uma imagem do governo inserido em uma lógica de
imoralidade. Lacerda foi um agente importante neste processo ao possuir um jornal e ter
entrada na Tv e na rádio, suas acusações contra órgãos e agentes do governo eram
potencializados. O ato de acusar de forma constante atribuía-lhe credibilidade política e
social. Lacerda era recebido em comícios de forma alvoroçada e muitas vezes era ovacionado
como um herói no combate à corrupção. O governo por sua vez tinha pouca entrada em
veículos para voz de defesa, sendo o ‘Última Hora’ seu expoente neste processo.
Ao conseguir dar visibilidade a um fato até então ocultado e que quando exposto
questiona a reputação do denunciado, a denuncia carrega em si um poder de afirmar e mesmo
atribuir um caráter de verdade previamente a algo que ainda não foi comprovado. Ela passa a
dar visibilidade ao oculto, chama atenção ao irregular e mobiliza moralmente o que se
compreende como errado ou não. Neste sentido corrupção, denúncia pública, conflito e moral
são faces da moeda que compõe o jogo político. No campo político sua cunhagem é face dos
interesses de projeto políticos de poder.
Considerações.
Um importante fator a ser considerado é que as denúncias de corrupção estavam
associadas aos interesses dos grupos políticos opositores ao getulismo. Neste aspecto, o
posicionamento político dos jornais seja de oposição ou governista era refletido nessas
denúncias. Sob a bandeira da moralização do país e sob o discurso de violação da moral
pública, a corrupção foi ganhando contorno como um problema público que precisava ser
combatido e ganhava espaço na cena pública como um poderoso instrumento político de
acusação refletindo, os conflitos políticos.
Quando a UDN vociferava contra o governo na tribuna parlamentar e caçava escândalos
envolvendo irregularidades, muito prontamente denunciados no ‘Tribuna da Imprensa’, ela
não somente cumpria seu papel de opositora, mas representava os interesses de grupos
específicos inscritos numa agenda liberal que conflitavam com o projeto político de poder que
o governo Vargas representava. As denúncias massivas de corrupção evidenciadas
principalmente no escândalo da Cexim e Última Hora que foram associados a símbolos de
“corrupção” eram reflexos das disputas desses projetos em voga no período.
Ao denunciar práticas consideradas irregulares por agentes do governo, o uso do termo
passa com frequência a ser utilizado como instrumento de acusação política. Segundo
Johnston, o estudo da corrupção não deve desconsiderar a existência dessas tensões, visto que
as denúncias de práticas corruptas surgem e adquirem dimensão na cena pública quando
grupos estão disputando o poder entre si, logo a acusação emerge como uma arma valiosa
nessas tensões (Johnston, 1996). No caso da Cexim, por exemplo, o controle mais rígido para
obtenção de licenças de importação gerava críticas dos defensores da política liberal que
esbarrava na política do intervencionismo estatal presente no getulismo. Neste contexto
eclode o escândalo da Cexim, cujas constantes denúncias pressionavam para o fechamento do
órgão que de fato foi extinto, colocando fim ao controle das importações.
Os escândalos de “corrupção” que durante o governo foram amplamente explorados
pela UDN e ganhavam um contorno maior através das matérias principalmente na Tribuna da
Imprensa. Mobilizando o interesse público, o comprometimento da administração pública,
gradativamente as denúncias contribuíram para desgastar a imagem do governo e teceram
terreno para a solicitação do pedido de impeachment e posterior pressão para o pedido de
renúncia do presidente.
Examinar o processo que converte a corrupção em problema público no Brasil nos anos
50 envolveu diversos fatores no processo de construção que desloca o fenômeno da corrupção
de uma esfera ampla de irregularidades e gradativamente a situa na agenda do dia nos anos
1950. Nesse processo de deslocamento, a imprensa desempenhou um papel central não
somente pelo amplo poder de divulgação das notícias, mas por ser um poderoso instrumento
na formação de um consenso acerca de diversos assuntos.
Compreender as relações políticas cujos jornais estavam inseridos nos forneceu
ingredientes na compreensão das disputas de projetos políticos de poder em voga e também
de como a corrupção não pode ser pensada sem considerar os conflitos políticos existentes
como foi sugerido por Johnston. Apesar de contextos e práticas variadas em que as
irregularidades apareciam, na análise das matérias observamos que as denúncias expressavam
em muitos momentos uma disputa de interesses políticos apropriando-se da bandeira de zelo
pelo bem comum. Em quase sua totalidade os agentes do governo ou o próprio presidente
eram acusados por políticos vinculados ao partido da UDN e a forma ostensiva que algumas
irregularidades eram noticiadas apontavam para um conflito político claro polarizado por
oposição e governo. Situar esse jogo político nos forneceu ingredientes para examinar como
as irregularidades envolvendo a administração pública foram gradativamente construídas
como um problema nacional.
Ao comprometer a administração pública, as denúncias passaram a ser percebidas como
nocivas ao interesse coletivo, legitimando a necessidade de seu combate efetivo e
gradativamente ganhando contornos de questão pública. Contudo, é importante salientar que
casos envolvendo irregularidades já existiam. Na gestão do governo Dutra, por exemplo, que
resultou em inquérito parlamentar durante o governo Vargas, foram encontradas diversas
irregularidades, mas elas não eram associadas à corrupção.
O termo ganha contorno nos anos finais do governo Vargas muito impulsionado pela
pressão do jogo político. É no governo Vargas que o termo se desloca do universo de
irregularidade e passa a ser associado ao governo. Neste aspecto, o moralismo udenista
desempenhou importante papel por acentuar qualidades morais inspiradas na ética, dignidade
e decência tornando-se um símbolo de combate à corrupção. Esse discurso contribuía por
definir uma noção de moral pública, ao defender a ética na administração pública. Ao caçar e
denunciar escândalos de corrupção a UDN encarnava o símbolo de combate à corrupção.
A presente pesquisa nos possibilitou compreender como a corrupção pode ser utilizada
como moeda na pressão do jogo político e como a sua utilização através da denúncia pública
pode interferir nas decisões políticas do país. Isso só pode ser possível porque gradativamente
foi sendo construído um consenso coletivo de que a corrupção era nociva para o
funcionamento da administração pública. Por mobilizar o interesse comum, sua condenação
ganhava força e combatê-la mobilizava o apoio popular. Neste contexto a oposição tornava-se
cada vez mais fortalecida em detrimento da descrença no governo Vargas. A representação
social do fenômeno da corrupção emerge como um problema público ao violar, através de
práticas condenadas socialmente, a moral pública centrada na lógica de ética e decência no
funcionamento da administração pública. A corrupção nos anos 50 não está associada a
somente práticas individuais de agentes públicos, mas ao conjunto de ações consideradas
irregulares que comprometem a administração pública que visa o bem comum. Neste aspecto
e também pela mobilização das denúncias no jogo político através da imprensa a corrupção
ganha contornos de problema público no Brasil.
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