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MOL, Annemarie. The Body Multiple: ontology in medical practice. Durham and London: Duke University Press. 2002.

Essa é uma tradução preliminar e incompleta do original em inglês. Seu objetivo é fomentar discussão do tema em cursos de graduação. Ela não tem fins lucrativos. Favor não reproduzir e/ou circular. Qualquer dúvida, entre em contato pelo e-mail [email protected].

- CAPÍTULO 1 - Fazendo doença

Um movimento entre campos

Este é um estudo em filosofia empírica. Comecemos com o empírica. As histórias que eu vou contar a vocês nesse livro são em grande parte situadas em um hospital universitário em uma cidade de meio-porte no centro da Holanda, Hospital Z. Durante quatro anos eu fui para lá uma ou duas vezes por semana. Eu tinha um cartão de identificação que me permitia deixar minha bicicleta atrás de uma cerca e beber café grátis das onipresentes máquinas de venda. Eu tinha um cartão da biblioteca e o uso de uma mesa, em uma sucessão de salas lotadas. Eu tinha um jaleco. E eu observava.

Eu havia ido ao professor que dirigia o departamento e explicado meu propósito: investigar formas de lidar com as tensões entre fontes de conhecimento e estilos de saber dentro da medicina alopática contemporânea – ou, ao menos, um de seus exemplares. Eu havia explicado o que fazia da “ateroesclerose nos membros inferiores” um caso apropriado para o meu propósito e o que eu esperava aprender em seu departamento. Eu me apresentei como ambos ‘de dentro’ e ‘de fora’ (insider and outsider), tendo recebido treinamento básico em uma escola médica assim como treinamento extensivo em filosofia. E eu dei o nome do professor de medicina interna que apoiava meu estudo. Cada um dos professores assim abordados reagiram de um modo amigável. Todos eles enfatizavam que os hospitais acadêmicos devem encorajar a pesquisa. Meus planos particulares de pesquisa deixaram alguns interessados e alguns céticos. Outros simplesmente ficaram indiferentes. Mas após algumas questões suplementares eu era invariavelmente encaminhada a alguém um ou mais níveis abaixo na hierarquia para conversar e arranjar praticamente minha observação.

Assim eu sentei por várias manhãs atrás de cirurgiões vasculares e internistas executando suas consultas ambulatoriais, observando cerca de

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trezentas consultas. (Todos os cirurgiões e clínicos que eu observei para este estudo eram homens, e eu não irei esconder esse fato, então eu uso o “ele” genérico sempre que escrevo sobre “médico”, mesmo que um dos patologistas que estudei fosse uma mulher. Sim, este é um momento histórico evanescente (a fading historical moment). A profissão está passando por uma rápida mudança de gênero. Mas esta é uma outra história. Mais uma complicação deixada de fora.) Em hospitais universitários, ambos médicos e pacientes estão acostumados com observadores: há sempre estudantes e médicos em formação por ali que precisam aprender alguma coisa. No entanto eu fiquei surpresa com a calma com que minha presença foi aceita – pois eu achava essas observações bastante íntimas. Os pacientes falam de muitas coisas e se despem frequentemente. Embora isso seja difícil para alguns e um alívio para outros, minha presença por trás do médico raramente parecia fazer diferença. Quando este era um risco, eu saltava uma consulta (uma vez, quando um paciente pediu por isso, muitas vezes quando o médico o fez e uma vez quando eu reconheci alguém que eu conhecia vagamente e deixei por minha própria iniciativa). A outra transgressão foi em relação à privacidade dos médicos. Eu estava em posição de observar todos os tipos de detalhes sobre a maneira como eles trabalham. Alguns deles ficaram visivelmente apreensivos com o fato de que eu poderia julgar o quanto eles eram humanos e gentis em suas interações com os pacientes. Mas (embora isso fosse algumas vezes difícil de resistir) eu não estava lá para fazer tais julgamentos. Tampouco queria eu julgar as chamadas tecnicalidades de seu diagnóstico e tratamento. Eu queria que minhas observações fossem um meio de conhecer seus padrões, em vez de uma ocasião para aplicar os meus próprios.

Isso me fez mudar de lugares e circular pelo hospital. Eu observei técnicos lidando com ferramentas diagnósticas no laboratório vascular. Eu segui as trilhas de radiologistas e patologistas nos seus manuseios (dealings) de artérias da perna. Eu fui por meses às reuniões semanais onde eram discutidas as opções de tratamento para pacientes com casos complicados de doença vascular. Eu testemunhei várias cirurgias. Passei alguns dias no laboratório de pesquisa dos hematologistas. Fiz entrevistas e tive conversas com epidemiologistas, fisiologistas, clínicos, cirurgiões e generalistas. Alguns deles leram meus artigos e falamos sobre suas reações. Eu também fui à biblioteca e estudei livros didáticos e artigos de periódicos escritos, ou mobilizados como recurso, pelos “meus médicos” e, quando as referências e minha curiosidade me levavam até lá, comparava-os com outras publicações. Durante dois anos eu segui o colóquio mensal de pesquisa sobre aterosclerose. Eu fui co-autora com um médico em formação de um artigo sobre a introdução de um protocolo diagnóstico. Eu orientei um estudante de medicina que entrevistou cirurgiões vasculares em vários hospitais menores e um outro que analisou discussões sobre o consumo de colesterol. E, finalmente, eu tive o luxo temporário de uma assistente de pesquisa – Jeannette Pols, uma filósofa como eu, além de treinada como psicóloga – que fez longas entrevistas com pacientes, as transcreveu,

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conversou comigo sobre elas e foi co-autora de publicações sobre esse material. Ela também foi uma boa parceira de sparring1/parceira de luvas (sparring partner) com quem discutir meu trabalho.

Discussão também era o que eu procurava em outros mundos, fora do hospital. Eu raramente conseguia ir até esses lugares de bicicleta, pois eles eram bastante distantes – e ao mesmo tempo eram muito menos estranhos a meu eu escritor e falante (writing and talking self). Eles eram departamentos de filosofia, antropologia, sociologia ou estudos de ciência e tecnologia. Eu assisti a conferências e ouvi entediada ou fascinada a palestrantes apresentando papers a cinco ou cinquenta ouvintes. Eu li artigos de periódicos, os escrevi, os revisei. Eu fiz passeios-conversa [talk-walks] na beira de lagos ou bati papo durante jantares. Eu fui contra-interrogada (cross-examined) sobre o meu campo, meu método, meu objetivo, meus ancestrais teóricos. Frequentemente, tais trocas aconteceram em uma versão estranha da língua inglesa, um dispositivo de transporte que coloca algumas dificuldades para aqueles que não cresceram com ele, mas que tem longo alcance. Então, apesar de minhas histórias virem do hospital da cidade onde eu vivo, elas foram comigo a muitos outros lugares. Aos meus amigos e inimigos intelectuais em lugares como Maastricht, Bielfeld, Lancaster, Paris, Montreal, San Francisco. Elas conseguiram viajar, minhas histórias sobre vasos da perna e dor. Imersas em argumentos teóricos sobre a multiplicação da realidade.

Pois mesmo se há muitos materiais empíricos nesse livro, este não é um relatório de campo: é um exercício de filosofia empírica. Vamos nos voltar para a filosofia. O enredo de minhas histórias sobre vasos e fluidos, dor e técnicos, pacientes e médicos, técnicas e tecnologias no hospital Z é parte de uma narrativa filosófica. Em conformidade com o hábito dominante desse gênero, eu desistirei do enredo aqui mesmo, no começo. É isso. É possível abster-se de entender objetos como os pontos de foco centrais das perspectivas de diferentes pessoas. É possível entendê-los em vez disso como coisas manipuladas nas práticas. Se fizermos isso – se, ao invés de colocar entre parênteses as práticas em que objetos são manipulados, nós as colocamos em primeiro plano – isso tem efeitos de longo alcance. A realidade multiplica.

Se as práticas são colocadas em primeiro plano não há mais um único objeto passivo no centro, esperando para ser visto do ponto de vista de uma série aparentemente interminável de perspectivas. Em vez disso, objetos passam a existir (come into being) – e a desaparecer – com as práticas em que são manipulados. E desde que o objeto de manipulação tende a

1 Sparring é uma prática de esportes de combate, muito utilizada no boxe, em que os parceiros praticam suas técnicas de ataque e defesa. Um parceiro de sparring é aquele com que um pugilista treina ou costuma treinar, pois apresenta estilo e nível de luta semelhantes. No português, usa-se também a expressão “fazer luvas” como alternativa, no entanto, optou-se pelo termo em inglês por ser também conhecido no português e por deixar mais clara a idéia da autora [Nota de tradução].

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diferir de uma prática à outra, a realidade multiplica. O corpo, o paciente, a doença, o doutor, o técnico, a tecnologia: todos esse são mais do que um. Mais do que singular. Isso suscita a questão de como eles são relacionados. Pois mesmo se objetos diferem de uma prática à outra, existem relações entre essas práticas. Assim, longe de necessariamente cair em fragmentos, objetos múltiplos tendem a manter-se unidos (hang together) de alguma forma. Voltar-se para a multiplicidade da realidade abre a possibilidade de estudar esse notável empreendimento.

A filosofia costumava abordar o conhecimento por uma via epistemológica. Ela estava interessada nas precondições para adquirir conhecimento verdadeiro. Contudo, no modo filosófico em que eu me engajo aqui, conhecimento não é entendido como uma questão de referência, mas como uma de manipulação. A questão condutora não é mais “como encontrar a verdade?” mas “como se lidam com objetos (objects are handled) na prática?”. Com essa mudança, a filosofia do conhecimento adquire um interesse etnográfico nas práticas de conhecimento. Uma nova série de questões emerge. Os objetos com que lidamos na prática não são os mesmos de um local para o outro: então como procede a coordenação entre tais objetos? E como objetos diferentes que tomam um mesmo nome evitam choques (clashes) e confrontações explosivas? E poderia ser que, mesmo se houver tensões entre eles, várias versões de um objeto por vezes dependem umas das outras? Tais são as questões que serão abordadas nesse livro. Eu cautelosamente tento esboçar um caminho por entre as complexas relações entre objetos que são feitos.

Esse livro conta que nenhum objeto, nenhum corpo, nenhuma doença é singular. Se ela não é removida das práticas que a sustentam, a realidade é múltipla. Isso pode ser lido como uma descrição que se encaixa perfeitamente nos fatos. Mas voltar-se para a multiplicidade da realidade é também um ato. É algo que pode ser feito – ou deixado sem fazer (left undone). É uma intervenção. Ela intervém nos vários estilos disponíveis de descrever práticas. A normatividade epistemológica é prescritiva: ela diz como conhecer apropriadamente. A normatividade da descrição etnográfica é de um tipo diferente. Ela sugere o que deve ser levado em conta quando se trata de considerar práticas. Se a realidade não precede as práticas, mas é parte delas, ela não pode por si mesma ser o padrão através do qual as práticas são examinadas. Mas “mero pragmatismo” não é tampouco uma legitimação boa o suficiente, porque cada evento, embora inspirado pragmaticamente, torna um “corpo” (uma doença, um paciente) em uma realidade vivida – e desse modo esvazia (evacuates) a realidade de outro.

Esse é o enredo do meu conto (tale) filosófico: que ontologia não é dada na ordem das coisas, mas que, ao contrário, ontologias são trazidas à existência (brought into being), sustentadas, ou permitidas definhar (allowed to wither away) em práticas sociomateriais comuns, cotidianas. Práticas médicas entre elas. Investigar e questionar ontologias não consiste por isso em passatempos filosóficos antiquados, a serem relegados àqueles

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que escrevem história do século dezenove. Ontologias são, em vez disso, questões altamente atuais (topical). Elas informam e são informadas por nossos corpos, pela organização de nossos sistemas de atenção à saúde, pelos ritmos e dores de nossas doenças, e pela forma de nossas tecnologias. Todas essas, todas de uma vez, todas entrelaçadas, todas em tensão. Se a realidade é múltipla, ela é também política. A questão que este estudo provoca é como o corpo múltiplo e suas doenças podem ser feitos bem. Essa questão não será respondida aqui. Ao invés disso, irei mapear o espaço no qual ela pode ser colocada.

As perspectivas das pessoas (of people)

Esse é um livro filosófico de um tipo específico, isto é, empírico. Ele utiliza de métodos de investigação socio científicos e, especialmente, etnográficos. Mas ele não só os importa, ele também se mistura com eles. Pois se eu uso métodos etnográficos aqui, é para estudar doença. Que fisicalidades possam ser estudadas etnograficamente é uma invenção bastante recente. Por um longo tempo, “doença” era a categoria não-marcada da antropologia e sociologia da medicina. Como estado de um corpo físico, ela era um objeto da biomedicina. Médicos diziam a verdade sobre doença, ou ao menos eles eram os únicos capazes de corrigir uns aos outros, quando não o fizessem (in so far as they didn’t). Cientistas sociais tinham o cuidado de não se confundir nessa fala-de-corpo [body-talk]. Em vez disso, eles tinham algo a dizer em adição ao conhecimento médico existente. Eles salientaram que a realidade de viver com uma doença não é esgotada ao se listar fisicalidades. Há mais nisso. À parte ser uma realidade física, ter uma doença possui um significado para o paciente em questão. Um significado que é aberto a investigação. Escute a história sobre o Sr. Trevers (um nome inventado; todos os nomes usados nas histórias de campo são inventados):

Sr. Trevers senta em uma cadeira na ala cirúrgica. Certamente, eles está bastante disposto a responder algumas questões. Jeannette, a entrevistadora, senta-se perto dele. Ela casualmente pergunta se ligar o gravador é um problema. Não, não é. Eles falam sobre a ferida no pé do Sr. Trevers. Ela era a razão para a operação nas suas artérias da perna alguns dias antes. “Meu problema não era que ela doía”, diz Sr. Trevers, “mas que a ferida não curava. Era bem assustador. Esse buraco aberto. Eu não fui ao médico de início, quando aquela trave caiu no meu pé. Eu não ligava para a dor. Mas quando ela nunca ia embora, minha ferida, mas só ficava maior, aí eu fiquei assustado. E eu fui ver minha médica generalista. Ela me mandou para o hospital. E agora eu tenho duas doenças. Eu tenho aterosclerose, eles me dizem, e diabetes. Eu também tenho diabetes”.

Sr. Trevers ficou assustado quando sua ferida não curou. Para o cirurgião vascular que o operou, esse medo é quase nada relevante. É relevante o fato que Sr. Trevers finalmente decidiu ver uma médica. Mas uma vez que

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ele o fez, bem, medo, essa é “uma das coisas que as pessoas sentem”, enquanto é uma aversão a feridas que se mantêm “buracos abertos”. Se houver tempo, pode-se permitir ao Sr. Trevers de falar sobre seus sentimentos. Mas eles não precisam ser anotados nos arquivos cirúrgicos. Como “um bom médico”, o cirurgião pode explicar alguns fatos na tentativa de tranquilizar seu paciente. Mas “medo” não é parte da doença vascular do Sr. Trevers, nem do seu diabetes. (8)

Como complemento a isso, cientistas sociais fizeram o seu ofício o de escutar sobre sentimentos, quando eles entrevistam pacientes. E eles persistentemente e severamente criticaram médicos por negligenciar questões psicossociais, por estarem sempre tão preocupados em manter feridas limpas enquanto raramente perguntam aos pacientes o que estar ferido significa para eles. Além de prestar atenção em niveis de açucar no sangue, artérias ruins, feridas e outras fisicalidades, ou assim têm defendido os cientistas sociais de todas as maneiras possíveis, os médicos deveriam prestar atenção no que os pacientes experienciam. Assim é como eles frasearam: além da doença (disease), o objeto da biomedicina, outra coisa é importante também, a enfermidade (illness) do paciente. Doença aqui quer dizer a interpretação de um(a) paciente sobre sua doença, os sentimentos que a acompanham, os eventos de vida em que ela se transforma. (9)

Nas ciências sociais, “doença” e “enfermidade” foram separados como dois fenômenos interligados mas separados. Cientistas sociais colocam a “enfermidade” na agenda de pesquisa. Prateleiras de livros e volumes de revistas foram dedicados a isso. Entrevistas foram acumuladas, a atribuição de significado foi analisada e maneiras de terapeuticamente prestar atenção nela foram concebidas. O tempo todo, os cientistas sociais deixaram o estudo da doença “em si mesma” para seus colegas, os médicos, até que eles passaram a se preocupar com o poder que a forte aliança com a realidade física atribui aos médicos. Depois, cientistas sociais gradualmente começaram a enfatizar que a realidade não é responsável por si só pelo que os médicos dizem sobre ela. “Doença” pode estar dentro do corpo, mas o que é dito sobre ela não está. Corpos só falam se e quando são preenchidos com significados (are made made heavy with meaning). No caso do Sr. Trevers, uma ferida que não sara é dita ser um sinal que aponta em direção a diabetes e aterosclerose das artérias da perna. Mas isso não é necessariamente assim: esse é um significado que foi atribuído. Tais atribuições têm uma história, e elas são culturalmente específicas. Isso as abre para investigações históricas e das ciências sociais. (10)

Nessa abordagem semântica, os cientistas sociais não mais tomam os médicos principalmente por colegas, colegas que podem ser criticados por não escutar seus pacientes com suficiente cuidado, mas por aqueles em cujo domínio de estudos – a realidade física – o cientista social não ousaria se aventurar. Em vez de colegas, médicos se tornaram os objetos dos

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cientistas sociais. O que os médicos dizem quando eles falam de doenças é investigado com as ferramentas teóricas que foram confeccionadas para estudar as palavras de pacientes. Assim como os pacientes, ou assim é dito, os médicos têm uma perspectiva. Eles atribuem significado para o que acontece em corpos e vidas. Embora médicos interpretem os corpos e vidas de outros, enquanto os pacientes falam primariamente sobre os seus próprios. (10)

Perspectivalismo torna médicos e pacientes iguais, pois ambos interpretam o mundo em que vivem. Mas dizer isso é também reforçar a divisão entre eles, pois as interpretações que médicos e pacientes dão devem diferir, ligadas como estão à história específica, interesses, papéis e horizontes de cada grupo. No perspectivalismo, as palavras “doença” e “enfermidade” não são mais usadas para contrastar fatos físicos a significado pessoal. Em vez disso, eles diferenciam entre as perspectivas de médicos, por um lado, e aquelas dos pacientes, por outro. (11)

Cientista social comentando em uma palestra que eu dei: “Então você vai nos dizer sobre as diferentes perspectivas sobre a aterosclerose, não é? Quem você vai incluir: só cirurgiões e radiologistas? Ou também clínicos, cardiologistas e médicos generalistas? Você deveria pensar em epidemiologistas, também; eles costumam ter uma perspectiva completamente diferente. E os enfermeiros, você parece estar esquecendo os enfermeiros, não está? E se você me perguntasse, eu acho que você deveria prestar mais atenção na perspectiva do paciente, pois isso, no final das contas, sempre recebe muito pouca atenção. E os pacientes são aquilo sobre o que a medicina deveria ser.(11)

Como os pacientes, os profissionais são tidos por terem perspectivas próprias. No entanto, essas não são do que eu irei falar. Existem, ou assim eu quero argumentar, alguns problemas com essa linha de trabalho. Pode parecer que estudar “perspectivas” é um modo de finalmente se prestar atenção na “doença ela mesma” – mas não é. Pois, ao entrar no reino dos significados, a realidade física do corpo é mais uma vez deixada de fora; ela é ainda novamente uma categoria não-marcada. Mas o problema cresceu: dessa vez o corpo não é somente não-marcado nas ciências sociais, mas no mundo inteiro que elas evocam. O poder de marcar a realidade física, no final das contas, não é mais atribuído aos médicos, ele não é atribuído a ninguém. Em um mundo de significado, ninguém está em contato com a realidade das doenças, todo mundo “meramente” as interpreta. Existem diferentes interpretações por aí, e “a doença” – para sempre desconhecida – não pode ser encontrada em lugar algum. A doença retrocede atrás das interpretações. Em um mundo só de significado, palavras são relacionadas aos lugares de onde elas são ditas. O que quer que seja que elas falam desaparece. (12)

Ou talvez não. E esse é o segundo problema dos contos perspectivalistas. Em conversa sobre significado e interpretação, o corpo físico se mantém intocado. Todas as interpretações, qualquer que seja o seu número, são

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interpretações de. De quê? De alguma matéria que é projetada em algum lugar. De alguma natureza que permite à cultura atribuir todas essas formas a ela. Isso é construído na metáfora mesma das “perpectivas” elas próprias. Isso multiplica os observadores – mas deixa o objeto observado isolado. Completamente isolado. Intocado. Ele é somente contemplado. Como se ele estivesse no meio de um círculo. Uma multidão de faces silenciosas se reúnem em volta dele. Eles parecem chegar a conhecer o objeto por meio de seus olhos somente. Talvez eles tenham ouvidos que escutem. Mas ninguém jamais toca o objeto. De uma maneira estranha, isso não o faz recuar e desaparecer, mas o faz muito sólido. Intangivelmente forte. (12)

XXX

É possível enfrentar esses problemas? Essa é a tarefa que eu coloquei para mim mesma. É por isso que eu não irei falar sobre as perspectivas dos médicos, enfermeiros, técnicos, pacientes ou quem mais estiver concernido. Em vez disso, eu tentarei achar uma via de saída do perspectivalismo e de entrada para a doença “ela mesma”. Como isso pode ser feito? Ao tomar um terceiro passo. O primeiro passo dos cientistas sociais no campo da medicina foi o de delinear enfermidade como um objeto importante a ser acrescido às fisicalidades da doença. O segundo passo foi o de ressaltar que qualquer coisa que o médico diga sobre “doença” é fala, que ela é parte de um reino de significados, alguma coisa relativa à perspectiva específica da pessoa que fala. E aqui está o terceiro passo. Ele consiste em colocar em primeiro plano as praticalidades, materialidades, eventos. Se tomamos esse passo, “doença" torna-se uma parte do que é feito na prática.

Realidade na prática

Vamos mudar para o Hospital Z de forma a aprender sobre prática. Na ala onde pacientes vasculares são cuidados, Jeannette senta-se em uma cadeira perto da mesa ao lado da janela. Ela conversa com Sr. Gerritsen. Eles têm um longo diálogo, pois a entrevistadora não se restringe aos tópicos rabiscados em seu caderno, tópicos que não devem ser esquecidos. Em vez disso, ela permite aos pacientes falar sobre qualquer coisa que eles quiserem – ou quase. A conversa pode ir para várias direções, aliás, até o ponto em que alguns pacientes ficam confusos sobre o papel que eles estão desempenhando e o jogo em que eles entraram e dizem coisas como “mas você não quer saber tudo isso, quer?” ou “mas para que você disse que era essa entrevista mesmo?”. Sr. Gerritsen, no entanto, não mostra tal hesitação. Ele parece satisfeito em falar. Ele tem muito a contar.

Sr. Gerritsen tem sessenta e dois anos. Agora que ele tem uma aposentadoria precoce do seu trabalho e suas filhas moram sozinhas, ele esperava ter um tempo tranquilo. Ele pensou merecer isso. Ele cuidou de

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sua mulher durante todo o tempo em que ela esteve doente, mais de sete anos, do início de seu câncer até o dia em que ela morreu. Suas filhas ainda eram pequenas na época; elas tinham 13 e 11 anos quando sua esposa morreu. Ele não se casou novamente, mas as criou sozinho. E então, alguns anos atrás, suas pernas começaram a incomodá-lo. Como elas fazem hoje. E não é que ele esteja assustado ou deprimido por isso, ao menos não é essa a história que ele nos conta. O que Sr. Gerritsen fala é sobre as praticalidades de viver com pernas que se recusam a carregá-lo. Isso dói. Isso cria todos os tipos de dificuldades. Com o trabalho de casa. As compras. Vida social. Ele as explica com algum detalhe. Eis um exemplo de uma longa lista de dificuldades.

“Minha filha, minha mais velha, ela se mudou para outro lugar. Ela foi morar no andar superior de algum lugar. Ela ainda é uma jovem mulher, então ela não vai pegar um apartamento no térreo. Eu não a visitei ainda. Eu não consigo subir todas aquelas escadas. ‘Pai, quando você vem?’, ela pergunta. A filha entende. Ela não vai me pressionar ou nada parecido. Mas você quer, você mesmo, ir lá, não quer? Eu quero. O problema é: são quatro lances de escadas. Quatro. Porém deve haver um meio de fazer isso. Então eu disse para elas, eu disse, ‘que tal colocar uma corda em volta do meu pescoço e aí, de cima das escadas, de cima, vocês me puxam e puxam… ou… bem, não’ [risadas]”. (14)

Essa história revela algo sobre o Sr. Gerritsen, com certeza. Sobre seus sentimentos, sua maneira de dar sentido (sense making) e sua auto-ironia. Mas ao contar sobre o modo como ele vive com suas pernas doloridas, Sr. Gerritsen também nos fornece uma luz (presents us with insights) sobre os eventos que acontecem a alguém com um corpo debilitado. Ele conta sobre adaptar seus hábitos à sua inabilidade de andar sem dor. E ele conta sobre os limites de tais adaptações. Pode ser possível comprar um pequeno carrinho e assim ainda ser capaz de fazer suas próprias compras. Mas existem coisas, como visitar sua filha, que se torna impossível se ela vive no quarto andar e não se deseja ser pendurado em uma corda. (15)

Viver com pernas que dóem ao andar não somente convida a pessoa a fazer sentido e dar significado a sua nova situação, mas é também uma questão prática. Uma cientista social que quisesse saber sobre as praticalidades de viver com artérias ruins da perna poderia seguir Sr. Gerritsen enquanto ele faz o que consegue e se depara com o que não consegue. Jeannette e eu não empreendemos tal etnografia. Mas é ainda possível para nós saber algumas das coisas que teríamos visto se o tivéssemos seguido em sua rotina diária. Podemos escutar Sr. Gerritsen como se ele fosse seu próprio etnógrafo. Não um etnógrafo de sentimentos, significados ou perspectivas. Mas alguém que conta como viver com um corpo comprometido (impaired) é feito na prática. (15)

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As histórias que as pessoas contam não somente apresentam quadros de significados. Elas também comunicam muito sobre pernas, trolleys de compras ou escadarias. O que as pessoas dizem em uma entrevista não somente revela sua perspectiva, mas também fala sobre os eventos pelos quais ela passou. Se você concorda em acompanhar tal possibilidade por um tempo, e escutar as entrevistas de pacientes de um modo realista, a questão se torna “quais são os eventos que as pessoas relatam?” Aqui estão três fragmentos, de três diferentes entrevistas de pacientes. (15)

“Eu tenho essa simpática vizinha, ela é uma jovem mulher. Então ela me leva. E nós fazemos as compras juntas. Aos sábados. Com seu carro”.

“Mas o andaime, e as escadas, se você tivesse que subir uns dez ou doze metros, eu não conseguiria fazer isso mais. E andar, eu ia de bicicleta, mas no final isso se tornou muito também, se tem vento e você tem de fazer esforço. Então meu chefe, bem, ele disse, vamos fazer isso da maneira sensível, e ele me deu coisas para fazer no escritório. Até que eu conseguisse uma aposentadoria precoce. Então agora eu estou em aposentadoria precoce. [Suspiro] Sim”.

“Então você está em casa. Sozinho. O dia inteiro. E então eu me arrasto pelo chão. Eu chego na pia, sim. Eu consigo”. (16)

Nas entrevistas que fizemos com eles, pacientes nos deram descrições detalhadas da maneira como eles reorganizaram seus domicílios, seus trabalhos, sua vida familiar. Eles contaram sobre como entrar no carro ou quando tomar um taxi. Sobre passos e degraus, bicicletas e cachorros em coleiras. Sobre as provações e tribulações de lidar com um corpo comprometido (impaired) na vida cotidiana. (16)

Mas a vida cotidiana não está localizada somente em casas, em ruas e em lojas. A maioria dos pacientes também têm muito o que dizer sobre o que acontece com eles no hospital. Começa com a ida. Pode o seu filho, que é tão ocupado, tirar um dia de folga para levá-lo? Onde achar esse quarto F021 para onde você tem que ir? E você pode beber qualquer coisa que seja no dia daquele exame com o nome difícil? Tudo isso importa. Tudo isso pode ser contado – ou omitido. (17)

A Sra. Gomans teve uma operação quatro dias atrás. Sua perna esquerda foi aberta. Uma de suas artérias da perna foi aberta: a placa arterioesclerótica removida. Jeannette lhe pede para dizer mais sobre isso. “[gemido] Oh, bem, a operação ela mesmo, você não se lembra muito sobre ela. Eu tive anestesia geral. Então você acorda de novo, e você tem uma sutura, uma cicatriz na sua perna, ou duas cicatrizes. E, se está tudo bem, o seu fluxo sanguíneo está bom de novo. E aí está tudo acabado, e depois de dez dias você pode ir para casa. E pronto, você é uma pessoa nova em folha. Esse é o procedimento normal”. (17)

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O ponto não é que os pacientes são necessariamente os melhores etnógrafos possíveis dos eventos que fazem suas próprias vidas. Eles podem ser maus etnógrafos. Sra. Gomans, por exemplo, somente conta de suas cicatrizes quando perguntada sobre sua operação. Ela não entra em detalhes, mas fala de um “procedimento normal” em termos bem coloridos por sua esperança de se tornar uma “nova pessoa”. Porém: Sra. Gomans tomou anestesia geral. E anestesia geral é um método bastante forte para fazer uma pessoa se tornar uma má etnógrafa. (17)

Outros pacientes viram mais. Eles se esforçaram bastante.

Sr. Jonas também passou por uma operação alguns dias atrás. Ele teve anestesia local, então ele estava consciente. E ele ficou fascinado. “Eu consegui ver uma boa parte da última operação. Eu achei interessante. Primeiro eles penduram um pano bem na frente do seu rosto. Eu disse [para o anestesista]: Cara, tira isso daí. Eu disse: eu não consigo ver nada assim. Ele disse, não, ele disse, eu não posso fazer isso, a maioria dos pacientes não aguenta, eles passam mal, ele disse, e isso não pode acontecer, durante uma operação. Então eu disse, bem, se por acidente eu puxar esse pano então você não vai ficar com raiva de mim, eu disse. Pois eu quero ver eu mesmo. E então me permitiram ver. Eu vi três quartos da operação. Sim, eu achei bem interessante. Afinal de contas, é seu próprio corpo [risadas]” (18).

Sr. Jonas estava ansioso por observar as intervenções às quais seu corpo foi submetido. Quando perguntado o que ele viu, ele diz que havia muitas pessoas em volta, todos de verde e com máscaras cobrindo suas bocas e narizes. Eles estavam entregando instrumentos uns aos outros. E em um certo ponto o cirurgião disse alguma coisa sobre amputação. Sr. Jonas percebeu quase imediatamente, ele diz, que era com o fim de ensinar aos estudantes presentes sobre os riscos das pessoas com artérias ruins que não são tratadas. Foi só por uma fração de segundo que ele temeu que fosse sua própria perna que seria amputada. (18)

Então Sr. Jonas viu muito. Mas quando Jeannette lhe perguntou o que aconteceu com suas pernas, ele somente apontou para os lugares onde sua pele foi cortada. Ali foi onde aconteceu. Ele acrescenta que ele se lembra de imagens, e vividamente também, mas ele não consegue contar muito sobre elas. Como poderia? Os termos com os quais alguém deve articular as especificidades de uma operação não pertencem a seu vocabulário.

Sra. Ramsey teve sua primeira operação. Jeannette pergunta a Sra. Ramsey se ela acha que poderia precisar de outra no futuro. Existem, afinal, muitos pacientes por aí que já estiveram aqui quatro, cinco vezes antes. A questão, todavia, provoca uma reação assustada: “Oh, por favor, de novo não. Não, eu espero que não. Eu espero nunca ter outra operação. Pois eles me deitaram nessa mesa inclinada. Eles tiveram que trabalhar no lado da perna. A mesa estava completamente em declive, inclinada. Então o modo como você fica se segurando lá, o tempo todo, naquela coisa. Você fica

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tenso (stiff) com aquilo também, é claro, no final. E seus músculos dóem quando você acorda. Eles dóem”.

Sra. Ramsey não yawn(?) e ela não está otimista, como Sr. Gomans. Tampouco ela expressa a marcante curiosidade do Sr. Jonas. Ao contrário, seu tom é ansioso. Ela não gostou de passar por uma operação e do desconforto físico envolvido. Mas sua aversão não a impede de fazer uma série de observações interessantes. Que a mesa de operação estava inclinada. Que isso estava relacionado à tarefa do cirurgião de alcançar o lado de sua perna. Que ela ficou tensa (stiff) depois. (19)

É possível escutar as histórias das pessoas como se elas contassem de eventos. Ao assim escutar (through such listening), uma enfermidade toma uma forma que é tanto material quanto ativa. É uma enfermidade que consiste em deitar em uma mesa inclinada. Em discutir com seu anestesista sobre o pano na frente de seus olhos. É uma enfermidade feita de cicatrizes em suas pernas que não a impedem de se tornar uma nova pessoa. Essa enfermidade é algo sendo feito em você, o paciente. E algo que, como um paciente, você faz.

Quem faz o fazer?2

As histórias dos pacientes citadas acima não expulsam a realidade física. Ao contrário, elas falam sobre ela, pois ela está em todo lugar. A fisicalidade dos corpos, vasos, sangue. Aquela das compras, trolleys e escadarias. E aquela de drogas anestésicas, roupas verdes, facas e mesas. O que é importante sobre essa realidade é que ela machuca, faz barulhos, tem cheiro. Que ela apita ou cai no chão. Que ela é tocada. Pacientes podem interpretar corpos, mas eles também os vivem. E assim também médicos. Médicos figuram proeminentemente nas histórias dos pacientes. Eles administram anestesia geral. Eles estão vestidos de verde, usam instrumentos, abrem pernas e as fecham de novo com linha e agulha. Eles ensinam, são ensinados. Eles inclinam mesas e trabalham nas partes internas das pernas. Eles fazem muitas coisas aos corpos dos pacientes. (20)

Perspectivalismo coloca médicos e pacientes em pé de igualdade, com uma grande partilha entre eles, pois eles lançam seus olhares de ângulos diferentes. O trânsito através da partilha médico-paciente atrai muito a atenção pública. Há livros fascinantes escritos por médicos que descrevem o modo como sua perspectiva mudou quando eles ficaram doentes e se tornaram um paciente. Cientistas sociais investigam se e como pacientes incorporam esquemas e terminologia médicas em seus próprio pensamento. A análise conversacional mostra como a fronteira é – ou não é

2 No original, “Who does the doing?”. A formulação em inglês, ao ser vertida para o modo verbal do infinitivo no português, perde seu sentido de ação e de continuidade. [Nota de tradução]

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– cruzada quando médicos e pacientes interagem. E depoimentos de pacientes que narram a inabilidade de seus médicos de entendê-los geram leituras desanimadoras. Mas ambas as dificuldades e as possibilidades de cruzar o fosso apontam para a existência desse fosso. Então ei-la. Uma clivagem. Uma perspectiva de um ponto de vista difere daquela de outro. (21)

Nas histórias que falam sobre eventos-na-prática isso é diferente. Embora perspectivas possam ser compartilhadas ou solitárias, a prática de diagnosticar e tratar doenças inevitavelmente requer cooperação. (21)

O cirurgião anda até a porta e chama o próximo paciente. Eles apertam mãos. O médico aponta para minha presença e diz que eu estou ali para aprender alguma coisa. Ele se senta em uma cadeira atrás de sua mesa. A paciente, uma mulher de seus oitenta anos, toma uma cadeira no outro lado da mesa, segurando sua bolsa no colo. O médico olha o prontuário na sua frente e tira uma carta dele. “Então, Sra. Tilstra, aqui o seu médico generalista escreve que você tem problemas com sua perna. É isso?” “Sim, sim, doutor. É por isso que eu venho aqui”. “Diga-me, então, quais são esses problemas? Quando você os tem?” “Bem, o que posso dizer? É quando eu tento fazer alguma coisa, doutor, me mover, andar, qualquer coisa. Tipo, eu costumava levar o cachorro para passear por longos trechos, mas agora eu não consigo. Eu quase não consigo mais. Dói muito”. “Onde dói?” “Aqui, doutor, sobretudo aqui, no meu calcanhar dói. Na minha perna esquerda”. “Então dói o seu calcanhar esquerdo quando você anda. Agora, quantos metros, se você anda no plano, digamos, quantos metros você acha que consegue andar antes de começar a doer?” “O que posso dizer? Acho que deve ser, bem, uns, não muito, uns cinquenta metros eu acho”. “Bom. Ou não. Mas, e depois, você consegue andar de novo, depois, após algum descanso?” “Sim, se eu esperar um pouco, depois disso, sim. Eu consigo, sim”. (22)

No consultório alguma coisa é feita. Ela pode ser descrita como “dor na perna inferior esquerda que começa ao andar uma pequena distância no plano e pára após descanso”. Esse fenômeno toma a denominação médica de claudicação intermitente. Qualquer que fosse a condição de seu corpo antes que ela entrasse no consultório, em termos etnográficos Sra. Tilstra não tinha tal doença antes de consultar o médico. Ela não a actuava/constituía/implementava/ocasionava/? [enacted]. Quando sozinha, Sra. Tilstra sentia dor ao caminhar, mas essa dor era difusa e não relacionada a uma distância específica de andar no plano. O incômodo que Sra. Tilstra encontrava quando ela tentava passear com seu cachorro não tinha a forma que emerge quando ela responde às questões do médico. (23)

Isso não implica em que o médico traga a doença da Sra. Tilstra à existência. Quando um cirurgião está sozinho no seu escritório ele pode explicar ao etnógrafo visitante o que um diagnóstico clínico implica, mas sem um paciente ele não é capaz de fazer um diagnóstico. Para que “claudicação intermitente” possa ser praticada, duas pessoas são

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necessárias. Um médico e um paciente. O paciente deve se preocupar ou se indagar sobre alguma coisa e o médico deve estar disposto e ser capaz de respondê-las. E além dessas duas pessoas, há outros elementos que têm um papel mais ou menos importante. A mesa, as cadeiras, o clínico, a carta: eles todos participam nos eventos que, juntos, “fazem” a claudicação intermitente. Assim como o cachorro de Sra. Tilstra, sem o qual talvez ela nem tentasse andar mais do que os cinquenta metros após os quais suas pernas começam a doer.

Outra cena.

Mesmo se ele fez todo o caminho até o consultório médico, Sr. Romer nunca chega a falar. Sua esposa veio com ele. Ela é quem fala. “Ele não está bem, doutor, não está. Ele não consegue fazer mais nada”. “Então, Sr. Romer”, o cirurgião diz, tentando olhar o velho no olho, “qual é o problema? Por que o senhor veio me ver?” “É sua perna, doutor”, a esposa do Sr. Romer responde. “Ele teve um ataque cardíaco, ele teve dois na verdade. Mas agora é sua perna. Ele não consegue mais andar. Ele sente muita dor”. Sr. Romer parece abatido. E apesar da obstinada tentativa do cirurgião de se dirigir a ele, Sr. Romer não fala. Talvez ele não possa. Talvez – o cirurgião parece suspeitar dessa possibilidade – ele desistiu de tentar. (24)

Um médico não pode diagnosticar claudicação intermitente sozinho. Ele precisa de outros para isso. Mas o cenário não é rígido. Muitos de seus elementos são flexíveis. Em vez de cinquenta metros, a distância da caminhada pode ser cem metros. No lugar do calcanhar, a coxa pode doer. E se o paciente não pode falar, outra pessoa deve falar por ele. Mas o que é preciso, de fato indispensável para o diangóstico clínico, é que haja um corpo-paciente. Isso deve estar presente. E deve cooperar. (24)

O cirurgião olha do arquivo para o casal Romer e de novo paro arquivo, onde ele toma algumas notas. Com a cabeça para cima de novo, ele diz, “Agora, por gentileza, Sr. Romer, eu gostaria de dar uma olhada. Eu quero suas pernas, eu quero ver por mim mesmo como elas aparentam. E sentir seus vasos sanguíneos. Pois você pode ter um problema com seus vasos sanguíneos”. Após ter dito isso em uma voz alta, o cirurgião volta sua cabeça para Sra. Romer –então aceita como uma porta-voz – e pergunta: “Você acha que é possível para ele tirar suas calças e deitar-se na mesa de exame?”. É possível, mas não para Sr. Romer sozinho. Não é fácil. Os membros são pesados. Sapatos e meias só podem ser tirados quando os pés estão levantados. O fecho recusa, o tecido da calça está teso. Depois, tem a altura da mesa. Mas após um tempo o cirurgião vascular segura os dois pés do Sr. Romer com suas mãos cheias para estimar e comparar sua temperatura. Ele observa a pele. E com dois dedos ele sente a pulsação das artérias na virilha, joelho e pé. “Você pode dobrar sua perna um pouco para mim, por favor, isso, sim, assim, isso mesmo. Muito bem”. (25)

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Em seus consultórios, cirurgiões vasculares acrescentam um exame físico a uma entrevista. As respostas do paciente às perguntas diagnósticas podem compor uma história típica ou vaga. Elas podem ser suficientes para falar de claudicação intermitente imediatamente, ou não tanto. Em ambos os casos, a actuação/constituição/implementação/ocasionamento/? (enactement) da claudicação intermitente é estendida e reforçada ao adicionar os elementos que um exame físico pode produzir. Pés gelados, ou um pé gelado. Pulsação fraca. Uma pele fina, fracamente oxigenada. Para adicionar tais elementos, as pernas do paciente e as mãos do médico cooperam. Como o faz a mesa de exame e a pessoa que auxilia um paciente fatigado pela idade a descalçar seus sapatos e tirar as meias e a calça. (25)

Quem faz o fazer? [Who does the doing?] Eventos são feitos acontecer por uma série de pessoas e muitas coisas. Palavras participam, também. A papelada. Quartos, prédios. O sistema de saúde. Uma interminável lista de elementos heterogêneos que podem ser tanto realçados quanto deixados em segundo plano, dependendo do caráter e do propósito da descrição. As descrições dadas aqui são minhas, não aquelas da Sra. Tilstra, Sr. Romer, ou qualquer outro paciente. E mesmo sendo as minhas descrições informadas pelo que pacientes dizem sobre os eventos, eu só raramente sigo os pacientes nesse livro. Esta etnografia (essa é sua força, mas também constitui seus limites) se concentra na medicina: ela é feita para desemaranhar o conhecimento médico, a tecnologia médica, o diagnóstico médico e as intervenções médicas. Ela é informada pelas minhas próprias observações e por prestar atenção primariamente nas palavras de outro grupo de etnógrafos leigos: profissionais médicos.

O ambulatório. O paciente que vem em seguida na lista não apareceu. Aquele após este ainda não chegou. Então caminhamos até a máquina de café e o cirurgião vascular insere seu cartão de identificação e pega dois cafés para nós. Nós passeamos de volta até seu consultório. Falamos como que batendo papo. “Sabe, você tem que entender isso”, ele diz, querendo ser um bom informante, “fazer um diagnóstico é muito diferente, dependendo se eles têm ou não um bom clínico geral. Algumas vezes as pessoas vêm aqui e têm uma carta e está tudo nela: distância de caminhada, pulsações, qualquer coisa. Uma história detalhada. Agora, é claro que você checa isso, faz você mesmo cada um dos passos de novo, mas nesses casos você pode ficar bem seguro de onde você estará indo. Mas também acontece de ter só uma frase ilegível rabiscada tipo ‘favor ver esse paciente para mim’. Aí seu trabalho é diferente. Frequentemente, nesses casos, nem há mesmo um problema vascular. Pode ser algo neurológico. Ou seja lá o que for. Nada”. (26)

Eu poderia nunca ter notado que o trabalho diagnóstico de um cirurgião vascular diferisse consideravelmente de acordo com as cartas dos médicos generalistas, não fosse pela conversa que eu acabei de citar. Assim, na etnografia empreendida aqui, médicos se tornam os colegas dos cientistas sociais novamente. Eles deixam de ser “meros” objetos de pesquisa cujas

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interpretações podem ser listadas e relacionadas a seu contexto histórico e cultural. Mas tampouco eles são os colegas que eles costumavam ser, profissionais que têm conhecimento da “doença”, para os quais os cientistas sociais podem acrescentar conhecimento sobre a “enfermidade”. Em vez disso, as fronteiras territoriais do profissionalismo estão começando a se diluir. Médicos falando de seu trabalho podem ser ouvidos como se (assim como pacientes) eles fossem seus próprios etnógrafos; etnógrafos, por sua vez, não precisam parar tão cedo, quando eles se deparam com máquinas ou sangue, mas podem continuar suas observações. Eles podem escrever sobre o corpo e suas doenças.

Nesse território sem limites, a distinção doença/enfermidade não é mais útil. Quando médicos e pacientes agem juntos no consultório, eles em conjunto dão forma à realidade das pernas doloridas dos pacientes. Como chamar o que eles assim dão forma? Se eu uso a palavra doença aqui, isso não é para localizar meu texto no lado doença da distinção doença/enfermidade, mas para quebrá-la. Para deixar claro que eu vou me voltar para as fisicalidades mesmo que eu não seja uma médica. Para ressaltar que isso pode ser feito. Que existem meios de etnograficamente falar corpos [talking bodies]. Há boas razões para tentar, mesmo se só essa: que o humano não reside exclusivamente em questões psicossociais. Por mais importantes que sentimentos e interpretações possam ser, eles não estão sozinhos ao criar aquilo que a vida concerne [in making up what life is all about]. A realidade do dia-a-dia, a vida que vivemos, também é um assunto carnudo. Uma questão de cadeiras e mesas, comida e ar, máquinas e sangue. De corpos. Essa é uma boa razão para não deixar essas questões nas mãos dos profissionais médicos sozinhos, mas para buscar maneiras, maneiras leigas, por assim dizer, para livremente falar sobre elas. (27)

- CAPÍTULO 2 - Diferentes arterioescleroses

No seu ambulatório, cirurgiões vasculares interagem com pacientes. Eis o que os médicos fazem: eles fazem perguntas (onde dói, por quanto tempo você consegue andar, pára quando você descansa?). Eles olham a cor e a textura da pele de pernas que dóem. Eles colocam suas mãos em locais onde as artérias das pernas dos pacientes deveriam ser palpáveis e tentam sentir se as artérias pulsam ou não com cada batimento cardíaco. Eles tomam notas em seus prontuários enquanto seus pacientes rapidamente ou desajeitadamente vestem suas roupas novamente. E então eles propõem o novo passo no itinerário dos pacientes. Eu os observei fazendo isso repetidamente, sentados em um banquinho vestindo jaleco, sorrindo, ou parecendo sérios. Isso é o que os cirurgiões vasculares do hospital Z me mostraram quando eu lhes perguntei sobre “arterioesclerose dos vasos da perna”: eles me levaram a seu ambulatório. (29)

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Depois eu quis saber sobre patologia. As portas do departamento de patologia dizem “Probida a entrada”. Sendo uma pesquisadora, eu fui gentilmente permitida usá-las como entrada mesmo assim. Não era possível, porém, ver uma perna arterioesclerótica ali ao acaso em qualquer semana. O residente de patologia que viria a ser meu informante me telefonava quando ele tinha algo a oferecer. “Eu tenho uma perna”, ele dizia. Alguns dias e passos preparatórios depois, nós finalmente víamos o que eu tinha vindo procurar: Arterioesclerose. (29)

Em uma pequena sala que ele compartilhava com outros dois, livros e papéis por todo o lugar, o residente de patologia havia instalado o microscópio duplo para a ocasião de minha visita. “Se estou sozinho, eu uso um com um único par ocular”, ele disse, “este é usado quando um supervisor quer checar o que estamos fazendo”. Nós nos sentamos com o microscópio na mesa entre nós. Cada um de nós olhou em um dos oculares. Ele focou a imagem, perguntando-me quando o que eu podia ver estava nítido. Com um indicador embutido, ele me ensinou o que ver. Como se ele fosse, hoje, o supervisor. (30)

“Você está vendo, aqui está um vaso, isso aqui, não é bem um círculo, mas quase. É rosa, isso é por causa do colorante. E aquele roxo, aqui, essa é a calcificação, na média. Está quebrada. Eles fizeram um mau trabalho com a decalcificação. Não foi feita por tempo suficiente, então a faca teve um problema pra cortar. Olha, tudo isso, essa bagunça aqui, isso é um artefato disso”. Ele mudou o indicador para o meio do círculo. “Isso é o lúmen. Aqui estão as células sanguíneas dentro dele, você está vendo. Isso só acontece quando um lúmen está pequeno. Em caso contrário ele é lavado durante a preparação. E aqui, em volta do lúmen, essa primeira camada de células, essa é a íntima. É densa. Oh, nossa, olha como é densa! Ela vai daqui até aqui. Olha. Agora aqui está a sua arterioesclerose. É isso aí. Um espessamento da íntima. Eis o que ela é de verdade”. (30)

E depois ele acrescenta, após uma pequena pausa: “Sob um microscópio”.

Minha empreitada depende desse último acréscimo. O residente de patologia o profere como se ele não estivesse dizendo nada especial. “Sob um microscópio”. Mas ele implica em muita coisa. Sem esse acréscimo, a arterioesclerose está sozinha. Ela é visível através do microscópio. Uma íntima espessa. Há algo sedutor sobre isso. Curvar sua cabeça sobre um microscópio e deixar seus olhos serem dirigidos pelo indicador. Se não pelo fato de que um corte transversal de vaso produz uma bela imagem. Com todo o seu rosa e roxo e suas estranhas formas que vagarosamente passam a ser discerníveis se sua natureza é explicada. Há algo sedutor sobre isso: usar instrumentos como “meros” instrumentos que desvelam a realidade escondida da arterioesclerose. (31)

Mas quando “sob um microscópio” é acrescentado, a íntima espessa não existe mais por si só – mas por meio do microscópio. O que é trazido para o primeiro plano por meio desse acréscimo é que a visibilidade de íntimas

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depende de microscópios. E, aliás, de muito mais. Do indicador. E das duas camadas de vidro que fazem a lâmina. Não se esqueça da decalcificação que, mesmo quando não é feita por tempo suficiente, permite o técnico a cortar finas seções transversais de um vaso. Há o trabalho do técnico. As pinças e as facas. As tintas que tornam as várias estruturas celulares rosas e roxas. Eles são todos necessários se patologistas querem ver a íntima espessa de uma parede vascular. (31)

Isso pode ser trazido para o primeiro plano ou esquecido. Quando eles falam de corpos [talk bodies], os médicos alternam. Algumas vezes eles acrescentam “sob um microscópio” ou algum equivalente disso. Algumas vezes eles não o fazem. Minha estratégia etnográfica gira em torno (hinges on) da arte de nunca esquecer dos microscópios. Ou de persistentemente prestar atenção em sua relevância e sempre incluí-los em histórias sobre fisicalidades. É com essa estratégia que a doença é transformada em algo sobre o que etnógrafos podem falar. Porque desde que as praticalidades de fazer a doença são parte da história, é uma história sobre práticas. Uma praxiografia. A “doença” de que etnógrafos falam nunca está sozinha. Ela nunca mantém-se por si mesma. Ela depende de tudo e de todos que estão ativos enquanto ela está sendo praticada. Essa doença está sendo feita.

Não, patologistas não fabricam3 as paredes dos vasos arterioescleróticos que eles olham, nem eles as constróem. Essas são palavras desajeitadas para o que acontece no departamento de patologia do hospital Z. Elas sugerem que o material é reunido (assembled), montado (put together) e transformado (turned into) em um objeto que subsequentemente sai para o mundo por si próprio. Em vez da metáfora de “construção” da oficina, nós poderíamos tentar mobilizar uma metáfora teatral para o que acontece no hospital. Quando uma doença está sendo feita, nós podemos dizer que ela é performada de uma maneira específica. A palavra “performance” tem várias conotações apropriadas. Pode existir (mas não é necessário que tenha) um roteiro disponível para fazer uma doença. Se o roteiro não é colocado para encenar, ele não tem valor para aquilo que se passa no teatro. Em diferentes momentos e lugares, roteiros são encenados de várias maneiras. Se não há roteiro, atores improvisam. Os suportes (props) de palco são tão importantes quanto as pessoas, pois, afinal, eles preparam o palco4 (set the stage). (32)

3 No original, “make”. Há uma diferença aqui entre os verbos to do e to make. Este último denotaria uma fabricação ex-nihilo, enquanto o primeiro marcaria a ação de fazer, a continuidade do processo de produção, em que há muitos agentes envolvidos [Nota de tradução].4 A formulação da autora – “they set the stage” – é uma expressão inglesa que utiliza do vocabulário teatral (“stage”, isto é, palco) para formular a idéia de “preparar o terreno”, “lançar os alicerces”. Com essa frase, Mol aproveita tanto do léxico teatral quanto do significado ordinário não-teatral da frase, que evoca uma noção engenharial. A tradução para o português não agrega a ‘materialidade’ do segundo sentido. [Nota de tradução]

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Mas por outro lado, a metáfora da performance também tem algumas conotações. Pode-se pensar que ela sugere (It may be taken to suggest) que há bastidores, onde a realidade real está escondida. Ou que alguma coisa difícil está acontecendo, que a realização bem sucedida de uma tarefa está envolvida. Pode-se pensar que ela sugere que o que é feito aqui e agora tem efeitos além do mero momento – efeitos performativos. Eu não quero que essas associações interfiram no que eu quero fazer aqui: mudar de uma investigação epistemológica para uma praxiográfica da realidade. Então eu preciso de uma palavra que não sugira muito. Uma palavra com não tanta história acadêmica. A língua inglesa tem uma boa no estoque: enact [actuação/constituição/implementação/ ocasionamento/?]. É possível dizer que na prática objetos são enacted. Isso sugere que atividades tomam lugar – mais deixam vagos os atores. Também sugere que no ato [act], e só ali e então, alguma coisa é – sendo enacted5. Ambas as sugestões se enquadram bem na praxiografia que eu tento empreender aqui. (33)

Assim, uma etnógrafa/praxiógrafa empenhada em investigar doenças nunca as isola das práticas com as quais são, o que se poderia chamar, enacted. Ela obstinadamente toma nota das técnicas que fazem as coisas visíveis, audíveis, tangíveis, conhecíveis. Ela pode falar de corpos [talk bodies] – mas ela nunca se esquece de microscópios. Isso torna a distância do ambulatório (que, no hospital Z, é localizado no primeiro andar da ala F) até o departamento de patologia (no quarto andar da ala D) uma que é de fato muito longa. Uma distância intransponível, ou assim parece. Pois as técnicas que fazem a arterioesclerose visível, audível, tangível e conhecível nesses dois lugares excluem umas as outras. (33)

Nós andamos até o refrigerador. O residente de patologia tira um saco plástico com um rótulo afixado nele. Dentro dele há um pé com vinte e oito centímetros de perna. Ela foi amputada no dia anterior e rotineiramente enviada para o departamento de patologia para inspeção. Poderiam, por favor, o plano de ressecção, a pele e os vasos ser preparados e examinados sob um microscópio? Enquanto carrega a perna inferior amputada até a mesa, o residente põe a mão onde se esperaria estar a artéria dorsal do pé. “Hah, boas pulsações”, ele diz provocativamente. E depois ele olha para mim e acrescenta: “Eu não sou horrível?” (33)

No ambulatório, cirurgiões sentem as pulsações das artérias dorsais do pé em pacientes cujas pernas dóem quando andam. Cada vez que o coração bate, o sangue de uma pessoa é impulsionado para frente por entre as artérias, e isso pode ser sentido na superfície da pele (em contraste com o fluxo pelas veias, que carregam o mesmo sangue bem mais calmamente para o coração novamente). No departamento de patologia, o gesto de

5 A formulação original é “(...) only then and there, something is – being enacted”. Essa é uma possibilidade do verbo to be do inglês, que denota, no português, tanto “ser” quanto “estar”. O trecho pode ser lido como “somethnig is” (alguma coisa é) e “something is being enacted” (“está sendo enacted”). [Nota de tradução].

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sentir pulsações é vazio. As artérias de membros mortos não pulsam. É uma piada de mau gosto senti-las mesmo assim. (34)

Ele é um bom informante, esse residente, mesmo se ele faz piadas de mau gosto. Ou, ele é um bom informante porque ele faz piadas de mau gosto. Piadas que podem ter uma função psicológica: elas podem facilitar a entrada desse jovem no esotérico mundo da patologia, onde, diferentemente da maioria dos lugares, pernas humanas geladas são coisas que se podem tirar do refrigerador e andar às voltas com elas. Mas a piada citada aqui também contém informação etnográfica. Ela amplia o fato de que as exigências para enacting a doença de um modo clínico não são mais encontradas quando um paciente está morto. Por mais capacitado que um médico novato possa ser para sentir pulsações, isso não vai ajudá-lo quando se trata de diagnosticar os vasos de uma perna inferior amputada. (34)

No departamento de patologia, nenhuma pulsação pode ser sentida e questões de entrevista não podem ser perguntadas. A perna dói? Mesmo se houvesse um paciente presente que talvez quisesse responder a tal pergunta, não faria sentido. Ou a perna é parte do corpo vivo de um paciente que está apto a falar sobre ela, ou uma perna está amputada. E por muito que sua ausência possa doer, a perna ausente não machuca a si própria. Em um departamento de patologia, muitas exigências cruciais para enact a arterioesclerose de um modo clínico estão ausentes. No ambulatório, é o inverso. Ali as técnicas de patologia não têm lugar. Elas não podem ser aplicadas. Tudo bem fazer um corte transversal de uma artéria – se se tem uma artéria. Mas ninguém vai cortar uma artéria de um corpo vivo de modo a descobrir quão ruim ela está. Fazer isso iria causar um problema maior do que aquele necessitando de uma solução. É espessa a íntima da artéria femoral daquele paciente, que está sentado em sua cadeira tão tristemente? Pode ser que sim. Quem sabe? Ninguém sabe. Enquanto a pele do paciente é deixada intacta, nenhuma cabeça irá se curvar sob um microscópio e observar o corte transversal dos vasos do paciente. (35)

As práticas de enacting arterioesclerose clínica e arterioesclerose patológica excluem umas as outras. A primeira requer um paciente que reclame de dor nas suas pernas. E a segunda requer um corte transversal de uma artéria visível sob o micriscópio. Essas exigências são incompatíveis, no mínimo; elas não podem ser realizadas simultaneamente. Isso não é uma questão de palavras que se provam difíceis de traduzir de um departamento para outro. Cirurgiões e patologistas que falam uns com os outros tendem a entender uns aos outros muito bem. Não é uma questão de olhar de diferentes perspectivas tampouco. Cirugiões sabem como olhar através de microscópios e patologistas aprenderam como falar com pacientes vivos. A incompatibilidade é uma questão prática. É uma questão de pacientes que falam frente a partes do corpo que são secionadas. De falar de dor frente a estimar o tamanho das células. De fazer questões

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frente a preparar lâminas. No ambulatório e no departamento de patologia, arterioesclerose é feita diferentemente.

Achando e seguindo

Há uma certa economia em isolar os objetos das práticas nas quais eles são enacted. Quando as complicações de sua enactement são postas entre parênteses, o corpo se torna estabelecido como uma entidade independente. Uma realidade por si só. Sozinha e auto-suficiente. Isso faz ser possível relacionar a dor articulada no consultório com a íntima espessa visível sob um microscópio. É possível. Esqueça sobre “articulada no consultório” e “visível sob um microscópio” e finja que ambas as práticas compartilham um objeto único, comum. Elas têm como seu referente uma única doença, residindo dentro do corpo. Em suas artérias da perna, para ser precisa. Ela vem à tona em sintomas, as queixas do paciente dentre eles. E ela é desvelada quando os vasos são finalmente colocados sob um microscópio. (36)

Frequentemente acontece. As praticalidades de enact a doença são colocadas entre parênteses. A arterioesclerose é tida por ser uma única doença. A dor do paciente está entre os sintomas que vêm à tona, e as paredes espessas do vaso são chamadas de realidade subjacente da doença. Essa imagem em camadas faz da patologia uma disciplina crucial, pois ela desvela a realidade subjacente da doença. Patologia é, de fato, chamada por muitos pesquisadores de fundação da medicina moderna por essa razão. Alguns simplesmente afirmam isso. Outros vêem nisso uma razão para crítica: que tipo de medicina é essa que quer curar pacientes vivos mas é baseada no conhecimento de corpos mortos? (37)

No entanto, se não se colocam entre parênteses as especificidades de enact a realidade, a figura muda drasticamente. Se não se mantêm dentro dos confinamentos do corpo, mas seguem-se as várias práticas com as quais a arterioesclerose é enacted por todo o hospital, a topografia da relação entre patologia e clínica parece ser completamente diferente. Na prática do hospital, paredes espessas do vaso não subjazem pernas que doem. Elas vêm, em vez disso, depois delas. E, ademais, elas só o fazem para uma proporção pequena de pacientes. Na prática, paredes espessas do vaso só são reveladas naqueles pacientes cujas pernas foram amputadas ou naqueles que foram operados e de cujos corpos pequenas partes foram enviadas para o 4º andar asa d, para serem colocadas sob o microscópio. Na prática, se a patologia tem qualquer coisa a ver com arterioesclerose, não é como uma fundação, mas como reflexão tardia/adendo [afterthought]. (37)

O residente de patologia carrega para uma mesa o pé-com-perna amputado que ele acabou de tirar do refrigerador. Ele mede o comprimento da perna: vinte e oito centímetros. Ele toma nota disso. Depois ele tira uma faca de

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dissecação de uma gaveta. Ele corta dois pequenos pedaços do tecido do plano de ressecção, os coloca em recipientes plásticos e os numera. Ele rabisca os números em seu caderno perto de um desenho grosseiro, indicando com flechas de onde cada espécime foi tirada. Ele faz o mesmo com alguns pedaços de pele. Depois ele começa a procurar as artérias. Não é fácil achá-las, agora que elas não pulsam. Mas finalmente ele consegue. Ele corta vários pedaços de cada e os coloca também em recipientes. Os recipientes têm buracos. Eles são todos deixados em um pequeno balde que está cheio de um fluido que irá prevenir sua desintegração. No dia seguinte técnicos irão fazer cortes dos pedaços preservados de tecido. E no período de alguns dias o residente e eu iremos nos curvar sob o microscópio e ver as artérias com íntimas impressionantemente espessas: arterioesclerose. Nós iremos também inspecionar as células do plano de ressecção. Elas parecem bem: não gangrenosas. E as células da pele de fato mostram os sinais de uma longa e severa privação de oxigênio. O residente anota isso e leva suas notas ao supervisor.(38)

Patologia tem a palavra final em casos de amputação. Enquanto o paciente está recuperando em um leito do hospital e aprendendo a viver com uma perna incompleta, patologistas decidem se a operação foi justificada e executada apropriadamente. Patologistas podem também fazer julgamentos sobre as paredes de pequenos pedaços de artérias que são cortados de sistemas circulatórios com mau funcionamento no curso de operações menos drásticas. Eles podem julgar todos os tipos de artérias uma vez que elas não mais funcionem, uma vez que o sangue tenha parado de fluir através delas. Mas eles nunca respondem à pergunta “o que fazer?” que conduz a enactement da arterioesclerose na clínica. Nos procedimentos hospitalares rotineiros (daily hospital dealings) com pacientes, patologia não é fundacional, pois ela não pode fundar a ação. Por mais básica a sua verdade, a patologia não consegue saber o que os cirurgiões vasculares querem saber quando eles fazem decisões sobre o tratamento. Deveria esse paciente, Sr. ou Sra. Fulano ou Sicrana, ser operado e, se sim, quando, e como? Patologia se mantém em silêncio sobre essas questões. (39)

Para o residente de patologia isso é frustrante. Ele esperava que essa especialidade fosse básica e assim tivesse todo o conhecimento, um panorama. Mas frequentemente ela não pode nem mesmo responder a uma simples questão. Como ele o coloca: “Eu nunca serei capaz de diagnosticar apropriadamente o estado de uma artéria. Nunca. Nem mesmo se eu tiver uma artéria inteira. Em um paciente vivo isso é ridículo, é claro. Mas eu não poderia fazê-lo mesmo em um cadáver. Pois o que você quer saber? Você quer saber o local e extensão da estenose. Isso implica que você teria que fazer uma lâmina a cada, digamos, a cada três centímetros. Ou talvez cinco. Imagine só: em todo o comprimento de uma perna inferior, uma perna superior, uma aorta. Quantas lâminas são? Imagine-me cortando todos os pedaços. Os técnicos os fatiando, os colorindo, fazendo lâminas. E depois eu teria que examiná-los cuidadosamente, um por um. Não seria

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suficiente dizer que a parede está espessa. Quão espessa está a parede? Quanto do lúmen original restou? Eu teria que levar em conta que eu olho para um lúmen que não está mais funcionando.Tomaria séculos. É demorado, então é por demais dispendioso. E porque existem todos esses artefatos da morte, não é nem mesmo exato também. Não pode ser feito”. (39)

Na prática, as diferentes maneiras com as quais a arterioesclerose é enacted não se alinham. Abrir uma perna de modo a descobrir se suas artérias estão ruins não é feito, porque tirar uma parte da artéria para razões de diagnóstico seria uma intervenção tão grande como uma intervenção terapêutica. Uma biópsia de somente uma pequena parte da artéria, de resto, não mostraria onde está ruim: na virilha, no joelho, no tornozelo? O experimento de pensamento do residente, no qual ele se dá um vaso inteiro para diagnosticar, mostra que mesmo se essa condição impossível para seu trabalho fosse satisfeita, ele não seria de grande ajuda para o cirurgião vascular. Mesmo aí ele não juntaria o tipo de informação que cirurgiões querem como acréscimo a seu diagnóstico clínico: a localização e a quantificação da arterioesclerose de um paciente. (40)

No processo de diagnosticar arterioesclerose, o conhecimento no qual a ação pode ser baseada não vem do departamento de patologia. Isso não é uma divisão de tarefas acidental. O conhecimento exigido poderia simplesmente nunca ser reunido (assembled) usando as técnicas de patologia. E quanto à clínica? Na prática do hospital, a maneira clínica de enact a arterioesclerose é mais importante. Isso não é para dizer que a clínica seja, por sua vez, fundacional. O termo apropriado aqui é outro. A realidade enacted na clínica vem antes de todas as outras. É o começo e a condição para tudo mais. Isso se torna particularmente aparente quando pacientes falham em acatar às regras não-escritas da entrevista médico-paciente, quando pacientes parecem considerar que suas reclamações e suas experiências, suas histórias, não sejam de importância para o médico. (40)

Eu me sento com o angiologista, um médico especializado em doenças vasculares. Ao longo da manhã, ele atende pacientes com claudicação, mas também pacientes que têm outros problemas vasculares que não arterioesclerose. Existem, além disso, pacientes cujos clínicos gerais não conseguiram diagnosticar. Eles provavelmente têm problemas internos, mas de que tipo? Isso torna as questões da entrevista mais abertas do que elas tendem a ser na clínica do cirurgião clínico. Não: suas pernas doem? Mas: o que posso fazer por você? Ou: qual é o seu problema? Sra. Vengar vem pela primeira vez, visivelmente sofrendo. O angiologista levanta os olhos de seus papéis até ela. “Bem, o que a está perturbando?” Sra. Vengar balança sua cabeça, lentamente. E depois ela diz: “Eu não sei, doutor, eu não sei o que me perturba. É por isso que eu vim te ver. Porque eu não sei.” (41)

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Uma resposta como essa deixa o médico no ambulatório de mãos vazias. Ele já esteve nessa situação antes. É uma situação estranha de se estar. Ele tem de fazê-la falar. Um médico não pode esperar adivinhar por onde começar com seu ulterior trabalho diagnóstico sem alguma resposta significativa a suas questões da entrevista. (41)

Existem províncias da medicina nas quais a clínica não toma a frente. Em cânceres, as imagens microscópicas do patologista tendem a anular as histórias clínicas, uma vez que estiverem disponíveis. São feitas biópsias de pulmões, fígados, mamas e muitos outros órgãos de forma a inspecionar pequenos cortes de tecido sob o microscópio. O patologista dá o diagnóstico. Para algumas doenças isso é feito antes mesmo que o paciente tenha queixas sobre as quais possa falar. Na Holanda e em muitos outros países, testes de Papanicolau são oferecidos para mulheres de certas idades de maneira a detectar estágios precoces de câncer do cervix. Então, a patologia é de importância primária nas formas médicas de lidar com câncer. (41)

Contudo, em grande parte da medicina, e certamente na lida (dealing) do hospital com a arterioesclerose das artérias da perna, patologia não tem uma posição tão forte. Ao contrário, a realidade do ambulatório vem primeiro. Isso não significa que o histórico do paciente seja sempre considerado de cara. Mas certamente implica que o histórico do paciente ou abre ou impede (forecloses) passos ulteriores ao longo da trajetória diagnóstica e terapêutica da arterioesclerose. (42)

O cirurgião vascular diz para Sr. Zender, um homem no início dos seus quarenta: “Então, diga-me, qual é o seu trabalho?”. Sr. Zender responde com o nome de um trabalho que eu nunca havia escutado antes. Tampouco o cirurgião, pois ele pergunta: “Bem, eu não sei o que é isso, mas por favor, não explique, só me diga: você tem que andar muito?” “Não”, diz o paciente, “é a maior parte sentado. Mas recentemente, com essa dor nas minhas pernas, eu me vejo procurando por uma desculpa para andar. Ir ao segundo andar. Esse tipo de coisa”. “Ah, é mesmo? E se você se senta em casa?” “Olha, doutor, desde que eu faça coisas, está tudo bem. Mas tipo, se já terminamos de lavar a louça, as crianças na cama, sentamos no sofá em frente à televisão, aí começa a doer”. O cirurgião leva Sr. Zender para a mesa de exame. E diz enquanto isso: “Eu darei uma olhada para tranqüilizá-lo. Aí você não vai dizer que eu nem mesmo o examinei. Mas deixa eu lhe dizer uma coisa. Você pode ter dores na perna sim. Mas não tem nada de errado com suas artérias da perna”. (42)

No ambulatório de cirurgia vascular, é bastante claro. Essa história não é sobre arterioesclerose. Em casos severos, pacientes com arterioesclerose podem ter dor quando estão em repouso, mas nesse caso suas pernas irão doer muito mais quando eles andam. E se alguém procura por uma ocasião de mover suas pernas doloridas quando descansando, ele pode estar com problemas, mas esse problema não pode ser aliviado pelo cirurgião vascular. O cirurgião dá de ombros quando perguntado de onde a dor pode

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vir, diz que ele não sabe, e referencia o paciente de volta para o médico generalista. É somente na medida em que um paciente articula suas queixas especificamente com a arterioesclerose que cirurgiões vasculares começam a fazer o exame físico, na expectativa encontrar a doença que eles estão sentindo. (43)

Os objetos

Quando as praticalidades de enact doença são ressaltadas, não colocadas entre parênteses, torna-se claro que aquela patologia não tem um papel fundacional em diagnosticar pacientes com arterioesclerose nas artérias da perna. Se ela tem qualquer papel, é como um adendo (afterthought) Uma entrevista clínica bem guiada é bem mais importante: ela toma a frente. Mas o que se segue disso? Alguém poderia atribuir uma significância “meramente pragmática” a isso. Alguém poderia tirar as praticalidades de parênteses, admitir que elas existem, mesmo prestar atenção nelas, e ainda vê-las como uma questão subordinada. Algo que tem a ver com o estado da arte, limites à possibilidade de conhecer, mas não a realidade do corpo. Alguém discutindo dessa forma iria dizer que mesmo que a patologia não seja a fundação da prática médica, paredes espessas dos vasos estão ainda causando as queixas. (43)

A questão é: estão? Cuidado. Eu não responderei a essa pergunta com um direto “sim” ou “não”. Pois quando eles vão além da distinção doença/enfermidade, etnógrafos podem falar de corpos [talk bodies] – mas não de corpos isolados. Então eu não falarei aqui sobre a relação entre paredes do vaso e queixas dentro do corpo. Eu obstinadamente me manterei fiel a estudar a “realidade enacted” e irei novamente me aproximar à questão etnograficamente. (43)

O residente de patologia leva suas notas ao supervisor. “Eu chequei tudo”, ele diz, “as células no plano de resecção estavam bem, então eles fizeram a amputação suficientemente alta. As células da pele mostraram sinais de longa e severa falta de oxigênio. Elas estavam um desastre completo. E todos os meus cortes transversais foram de vasos muito doentes. Íntimas grossas, quase nenhum lúmen restante”. O supervisor pega as notas. Quer saber alguns detalhes a mais. Comenta o uso ligeiramente desajeitado de um termo técnico. E depois diz: “Ok. É melhor eu dar uma última olhada nas suas lâminas e assinar o relatório. Eles podem ficar felizes. Eles foram aprovados”. (44)

Patologia pode não ser fundacional de toda a ação médica, mas em casos como esse ela julga o que foi feito. Os cirurgiões fizeram uma amputação porque, mesmo quando em repouso, o paciente estava em agonia, sua pele estava em condição muito pobre e não havia possibilidade de melhorar sua circulação. Sua perna inferior foi amputada. Essa especificidade possibilita a patologia de ser praticada. Ela vem depois da clínica, mas só um pouco

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depois. Só alguns dias. Assim, seus objetos podem ser comparados. A dor da clínica e as íntimas espessas do departamento de patologia são mapeadas umas nas outras. Elas são ambas impressionantemente severas. Acontece então que há arterioesclerose em uma tanto quanto há na outra. Os objetos da clínica e patologia coincidem. (45)

Com fins de descobrir se os objetos da clínica e patologia de fato coincidem, eles devem estar relacionados. Quando isso acontece? Quando estão as arterioescleroses clínica e patológica relacionadas? No processo de decidir sobre o tratamento de um paciente que tem dor ao andar, elas não estão. Mas tão logo um pedaço de vaso esteja disponível, uma conexão pode ser feita. Aí é possível fazer um corte transversal e perguntar se a espessura da parede vascular é tão impressionante quanto as queixas que eram emitidas um pouco antes na clínica. Esse pode ser o caso. Os objetos da clínica e patologia podem coincidir. Algumas vezes, porém, eles não o fazem. (44)

O patologista: “Você, já que você está tão interessada em arterioesclerose, você devia ter estado aqui na semana passada. Tivemos essa paciente, uma mulher nos seus setenta. Ela tinha problemas renais. Severos, também. Então ela foi admitida. No dia seguinte ela morreu. Paf, de uma hora para a outra. Os nefrologistas ficaram chocados, e também, é claro, sua família. Daí nos pediram para fazer uma abdução. Foi inacreditável! Todo o seu sistema vascular estava arterioesclerótico. Uma das suas artérias renais estava obstruída, a outra quase. Era espantoso que seus rins ainda fizessem qualquer coisa que fosse. Era difícil entender de onde eles tiravam seu sangue. E era mais ou menos a mesma coisa para cada outra artéria que tiramos: elas estavam todas calcificadas. Carótidas, artérias coronárias, artérias ilíacas, tudo. Íntimas espessas, lúmens pequenos. E ela nunca se queixou. Nada. Nenhuma dor no peito, sem claudicação, nada. Nós telefonamos para o seu clínico só para checar. Ele disse que ela veio consultando-o por tosses e coisas do tipo. Pressão arterial alta. Mas sem qualquer queixa que o fizesse pensar em arterioesclerose”. (46)

O patologista se lembra bem dessa paciente pois sua condição o surpreendeu. Patologistas esperam que paredes vasculares ruins causem queixas. Mas por uma razão qualquer essa expectativa não é sempre satisfeita. O patologista citado aqui devidamente toma isso como um fenômeno de interesse para o observador.

Se a relação entre a arterioesclerose da patologia e a arterioesclerose da clínica é feita, na prática, seus objetos podem acontecer de coincidir. Mas isso não é uma lei da natureza. Pode também acontecer que uma paciente que nunca se queixou acabe sendo severamente arteriosclerótica postmortem. Nesse caso, os objetos enacted na clínica e no departamento de patologia não se mapeiam (map). Eles se chocam [clash]. Uma arterioesclerose é severa enquanto a outra não é. Uma arterioesclerose poderia ter sido razão para tratamento, enquanto ninguém jamais se preocupou com a outra. Nesses casos os objetos da patologia e clínica

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podem não ser aspectos da mesma entidade: suas naturezas simplesmente não são as mesmas. Eles são objetos diferentes. (46)

Explicações serão procuradas. O paciente sofria de dor mas nunca comunicou? Ela sempre se sentava e evitava andar? Suas condições teriam se desenvolvido tão lentamente que seu metabolismo teria se adaptado por si só? Algumas vezes é possível encontrar uma explicação para a diferença entre os objetos da patologia e da clínica. Mas mesmo se choques entre diferentes “arterioescleroses” podem ser explicadas, elas não podem ser feitas desaparecer (be explained away). Elas têm uma consequência. Inevitavelmente. Uma consequência prática. Se dois objetos que vão sob um mesmo nome se chocam, na prática um deles será privilegiado em relação ao outro. (47)

O cirurgião vascular: “Oh, não. Nós não temos esse sonho. Nós nunca iremos até a população para descobrir as más artérias por aí. Pois, se nós fizéssemos, e se depois nós oferecêssemos uma operação para todos aqueles pacientes, custaria simplesmente uma fortuna. E, mais importante, nós criaríamos muitas vítimas. Se as pessoas têm queixas severas, você pode melhorar sua condição. Mas se eles não têm queixas, ou poucas, eles não têm muito a ganhar. Pois eles ainda correm riscos. Algumas vezes uma operação torna as coisas piores. Ou pessoas morrem. Então você não irá operar se suas vidas não serão melhoradas por isso”. (47).

Quando (in so far as) o objeto da patologia se choca com aquele da clínica, isso é muito ruim para as paredes espessas do vaso que acabam indetectadas. Na prática corrente de se lidar com artérias arterioesclerótica da perna, ganha a maneira clínica de trabalhar. Ninguém no hospital Z vai passar pela peneira toda a população da região que poderia ter íntimas espessas e lúmens pequenos e que não é tratada cirurgicamente. A detecção da arterioesclerose das artérias da perna é organizada ao longo de linhas clínicas. Você só se torna um paciente vascular se você visita um médico e diz que tem dor ao andar. (47).

Desse modo, o fato de a patologia não ser a fundação de toda prática médica, mas da clínca tomar as rédeas quando se trata do diagnóstico e da detecção dessa doença, não é meramente uma questão pragmática. Isso toca a realidade com certeza (all right). Isso não torna as queixas mais reais que o tamanho das paredes vasculares. Mas isso as transforma em o que irá contar como a realidade em um determinado local (site). Não sob um microscópio, dessa vez, mas na organização do sistema de saúde. Sob o microscópio, arterioescleroses das artérias da perna podem ser a íntima espessa da parede do vaso. Na organização do sistema de saúde, no entanto, é a dor. Dor que sucede a caminhada e que aborrece pacientes sofrendo dela o suficiente para fazê-los decidir consultar um médico e perguntar o que pode ser feito em relação a isso. (48)

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Qual local?

Se as praticalidade de enacting doença são postas entre parênteses, a doença é localizada dentro do corpo. Nas pernas ou no coração. Na aorta ou nas artérias da perna. Na virilha ou perto dos joelhos. A anatomia ajuda a dizer onde as coisas estão erradas: ela é uma importante linguagem topográfica para falar sobre corpos. Ela não é só usada por patologistas quando eles fazem uma dissecação, mas no consultório também. “Onde dói?”, médicos tendem a perguntar a seus pacientes. A maior parte dos pacientes que vão ao hospital Z aprenderam a responder a essa pergunta de alguma forma. Eles designam os locais de seus corpos que dóem apontando um dedo. O médico pode traduzir tais respostas em termos anatômicos e escrever “abdómen baixo esquerdo” ou “região crural posterior direita” na ficha do paciente. (48)

No entanto, a etnógrafa que persistentemente se dirige às praticalidades necessita de uma outra linguagem topográfica. Ou talvez de várias. Se a realidade é enacted diferentemente de um local para outro, a questão sobre onde estão esses locais não pode ser respondida por dedos apontando para regiões de um corpo. As praticalidades da medicina devem ser encontradas em outros lugares. Mas quais? Até agora eu dei algumas poucas indicações. Eu disse que minhas observações foram conduzidas em um hospital universitário em uma cidade de médio-porte na Holanda, hospital Z. Esse é um lugar específico. Mas eu também diferenciei entre dois locais nesse hospital: o departamento de patologia e o ambulatório. Arterioesclerose, no entanto, é enacted em outros locais e outros tipos de lugares também. (49).

Nós vimos que a detecção da arterioesclerose não procede por meio do rastreamento da população, mas por esperar por pacientes. Onde essa declaração é válida? No hospital Z, com certeza, mas também na Holanda como um todo. E a área é ainda mais vasta. Essa política de espera caracteriza a detecção da arterioesclerose em todos os países do Ocidente. Ou em todos os países onde a medicina cosmopolita, alopática, é praticada. Mas em uma área tão vasta, será certamente possível encontrar exceções. Como de fato o é. Há mesmo exceções ao que eu disse até agora dentro dos confins fechados do hospital Z. (49)

O clínico tem trabalhado no hospital Z já faz três anos agora. É a segunda manhã que me sento no meu banquinho atrás dele. “Oh, deus”, ele suspira quando um paciente acabou de sair e ele vê o arquivo do próximo. Ele explica o suspiro para mim. “O próximo homem é alguém que eu herdei do meu predecessor. É um profissional em seus cinquenta anos, perfeitamente saudável mas ligeiramente neurótico, que quer que eu o vire ao avesso. Eles está particularmente aflito em acabar tendo arterioesclerose. Eu não

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acredito que eu possa encontrar qualquer coisa sobre a qual sejamos capazes de fazer algo. Se ele estivesse desenvolvendo arterioesclerose, tudo que eu poderia fazer seria aconselhá-lo a se movimentar muito, fazer esporte, comer de forma prudente e parar de fumar. Mas eu posso dizer-lhe isso antes que eu faça uma bateria de exames. Eu faço o que ele quer mesmo assim. Eu tentei falar disso com ele na última vez e na vez antes dessa e eu desisti. Ele pode fazer alguns exames, se é disso que ele precisa para se sentir seguro”. (50).

Aqui, uma pessoa que não tem qualquer queixa vai ser submetida a exames diagnósticos. Uma inspeção patológica de suas paredes vasculares não estará entre elas, e todavia a clínica não toma as rédeas aqui tampouco. O paciente que está prestes a entrar no consultório não tem queixas. Suas pernas não dóem ao andar. Então, a área onde a clínica toma as rédeas na detecção e diagnose da arterioesclerose não é fixa. É um local muito vasto. A área de distribuição da “medicina alopática” é imensa. Mas mesmo no hospital Z é bastante fácil encontrar exceções. (50)

Se eu não falo de “medicina ocidental” nesse livro, nem faço alegações sobre outras regiões em larga-escala, é porque fazer isso iria saltar por cima de muitas exceções. E ainda assim as histórias que eu conto aqui não são só sobre o que acontece no hospital Z. Com algumas mudanças, substituições e alterações específicas, elas poderiam ser contadas, em certa medida, por outra pessoa, em outro momento, sobre muitos outros hospitais – hopitais na Holanda (há muita neerlandidade nas histórias que eu relato aqui), mas também hospitais de quaisquer outros lugares onde há hospitais. Então a área onde minhas histórias se apóiam é maior do que aquela em que elas estão situadas. Mas é menor, também. Se eu alterasse ligeiramente as lentes do meu microscópio etnográfico ou mudasse minha vista um pouco para os lados, eu contaria histórias diferentes. As especificidades iriam diferir. No entanto, o que não iria diferir é a coexistência de maneiras diferentes de enact qualquer outra doença – a coexistência de diferentes doenças enacted. O fato de que há multiplicidade se mantém o mesmo, em todo local, em toda escala. (50)

A arterioesclerose enacted no ambulatório contrasta com aquela parede espessa do vaso que pode ser observada por meio de um microscópio. Mas o ambulatório não é uma unidade natural. Ele forma uma unidade em contraste com a patologia. Quando nos aproximamos um pouquinho mais dele, a clínica aparece como cheia de contrastes que, por sua vez, podem ser destacadas (singled out) para investigações ulteriores. A clínica não é um local único (single).

Um cirurugião vascular: “Algumas dessas histórias que os pacientes contam são tão típicas, eu acho que agora você já as reconheceria por você mesma. Mas é sempre importante fazer um exame físico também. A dor de um paciente pode ter muitas causas. Ele podem até mesmo ter pegado a história que eles contam em uma festa, ou da televisão. Então eu cuidadosamente sinto suas pulsações. Inspeciono sua pele. E normalmente

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eu sei desde a entrevista o que vou encontrar. Mas acontece de uma história soar expressiva, enquanto as pernas estão perfeitamente quentes e as artérias da perna pulsam felizmente. Eu não gosto disso. Eu prefiro ter um belo, coerente quadro clínico” (51).

Médicos não gostam se a arterioesclerose da entrevista não coincide com aquela do exame físico. Mas algumas vezes isso acontece. Isso revela que a própria clínica que eu usei como um ponto de contraste com a patologia não é homogênea. Ela não enact um único objeto. Há dois deles. Dois objetos. Um é enacted por meio da fala, outro por uma investigação com as mãos [hands-on]. A diferença entre elas pode não chamar atenção desde que os objetos que eles enact coincidam, mas tão logo eles se contradigam um ao outro, torna-se aparente que a clínica é dois lugares. A entrevista. E o exame físico. (51)

Dois? Mas não, cada um desses locais pode, por sua vez, ser subdividido em outros menores. E de novo e de novo. Que as conversas entre médicos e pacientes vêm em variedades infinitas já foi frequentemente descrito. Sociólogos escreveram volumes sobre isso. Então vamos tomar o outro lugar, o exame físico.

Depois que vi vários cirurgiões trabalhando, eu olho em minha notas de forma a resumir “o exame físico”. Mas isso não pode ser feito. Ter certeza de que estes médicos têm alguns gestos em comum. Eles todos sentem pulsação e a temperatura de ambos os pés. Mas enquanto um sempre levanta cada perna por um tempo, para ver quão bem as artérias se adaptam a isso, outro nunca o faz, e ainda um terceiro o faz de vez em quando, em alguns pacientes somente. (51)

Explodam-se alguns detalhes de cada local e imadiatamente ele se torna muitos. A etnógrafa que conta maneiras de enacting a arterioesclerose, que conta arterioescleroses enacted, não encontrará um número infinito de variantes pela simples razão de que há um fim para o número de eventos que ocorrem em um único hospital – embora muito antes haja um limite para o seu tempo de observação. Mas antes que esse limite seja alcançado, a diferenciação pode continuar. Então o que eu estou tentando relatar não é que há duas, ou cinco, ou setenta variantes da arterioesclerose, mas que há multiplicidade. Isso, desde que as praticalidades de enacting uma doença sejam mantidas fora dos parênteses, deixadas no aberto, as variadades da “arterioesclerose” se multiplicam. (51).


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