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Autor: Antônio Rogério da Silva
• Análise de Texto: DESCARTES, R. Meditações, I, II,
III e VI [Ampliado
Talvez a posição filosófica mais radicalmente oposta à tentativa do sensocomum em construir um conhecimento, seja aquela tomada pelo francês RenéDescartes !"#$%!$"&'( )lém de ter sido pioneiro da *eometria anal+tica, oautor do Discurso sobre o Método foi a epressão m-ima do racionalismo desua época( Descartes partiu da d.vida e não da certeza, como em *eral osfilósofos anteriores e a maioria das pessoas faziam( /ua d.vida era tida
por metódica, pois punha em questão todas as supostas certezas, tanto doconhecimento sens+vel, quanto do intelectual, sendo ponto de partida para ométodo cartesiano de investi*ação cient+fica(
0amoso em toda 1uropa, rece2ido na corte da rainha 3ristina !$4$%!$5#', da /uécia, Descartes acreditava que um racioc+nio 2em conduzido
2astava para che*ar ao conhecimento perfeito( )o duvidar de tudo, ele verificaque duvidando pensa e que pensando eiste( ) própria certeza so2re aeistência depende do pensamento( /ua filosofia torna%se, então, racionalista(
6 processo de racioc+nio empre*ado por Descartes era 2asicamentea dedução. 7sto é, consistia em partir de conceitos *erais até che*ar às noç8es
particulares, usando o princ+pio racionalista e o método ló*ico dedutivo doqual quatro princ+pios seriam suficientes9 jamais aceitar como verdadeiracoisa al*uma que não se conhecesse como evidente, acima de qualquer d.vida: dividir cada dificuldade a ser eaminada em tantas partes quanto
poss+vel e necess-rio, a fim de resolvê%las isoladamente: ordenar os pensamentos começando pelos assuntos mais simples até o conhecimento dosmais compleos, na hierarquia em que se se*uem: e por .ltimo, fazer
enumeraç8es tão eatas quanto poss+vel e revê%las para certificar a conclusãototal do pro2lema !'(
As Meditações Cartesianas
/ão seis as famosas Meditações !$;!' ela2oradas por Descartes( /uamotivação principal era tentar responder as duas quest8es fundamentais quenão permitiam ao senso comum e a filosofia do2rarem os céticos9 provar aeistência de Deus e a imortalidade da alma( eometria e li2erta%se dos
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preconceitos provocados pelos sentidos, dando provas da eistência de Deus eda diferença entre corpo e alma, de modo eato e indu2it-vel(
=a primeira meditação, a d.vida *eral li2erta o pensamento dos pré% jul*amentos do senso comum e prepara o caminho para o esp+rito desli*ar%sedos sentidos, impedindo que haja qualquer d.vida após o esta2elecimento daverdade( =a se*unda, o esp+rito desco2re que não pode duvidar de si mesmo,
por mais radical que seja a d.vida( )qui, são epostos os conceitos dos quaisse tirarão as conclus8es que serão verificadas até a quarta meditação(1nquanto isso, cumpre distin*uir parte da natureza corpórea: constatar que oesp+rito é diferente do corpo e que a alma é indivis+vel( Tais pressuposiç8es,entretanto, dependem de um eplicação f+sica que Descartes realizou em outrao2ra9 "Traité du Monde et de la Lumiére Tratado do Mundo e da Luz ', que sófoi pu2licado depois de sua morte, por medo de uma condenação, como a
sofrida por >alileu >alilei !"$;%!$#!'( ) natureza su2stancial, no entanto,depende de um Deus que *aranta sua eistência e permanência( 6 corpo écomposto por acidentes, mas a alma, ao contr-rio, é pura su2st?ncia, nãosendo afetada pelos desejos4'(
=a terceira meditação, Deus é apontado como o autor da ideia de causa perfeita eistente em nós, sendo a causa da própria ideia de Deus( ) quartameditação p8e claramente que as coisas conce2idas pelo método sãoverdadeiras e eplica de onde vem a razão do erro ou falsidade9 a fraqueza daconstituição finita do homem e o desconhecimento de uma verdade clara e
distinta( =a quinta, novas raz8es são fornecidas para eistência de Deus,enquanto se eplica a natureza corpórea, provando tam2ém que a *eometriadepende do conhecimento de Deus(
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do o2jeto, sua quantidade, o espaço e o tempo ocupados( /o2 esse aspecto, ossentidos não podem errar( =ão podemos duvidar dos sonhos e da ima*inaçãocomo duvidamos dos sentidos( )lém disso, a verdade de ciências, tais como a*eometria, só é posta em eque na suposição da eistência de um deusen*anador ou *ênio mali*no', que faria o sujeito acreditar em tais
proposiç8es como se fossem verdadeiras(
1ntão, é preciso suspender o ju+zo de tudo que tinha por certo e adotar oceticismo para com2ater o h-2ito de jul*ar as coisas antecipadamente, semraz8es 2em fundadas( ) possi2ilidade de um *ênio mali*no % no lu*ar de umDeus 2om % o2ri*a a tomar%se como duvidoso todo tipo de ju+zo( @as para nãoser en*anado novamente, se deve estar atento à d.vida radical que evita oretorno ao ju+zos equivocados(
Tais são as meditaç8es metaf+sicas iniciais feitas por Descartes, so2re ascoisas que se podem por em d.vida( =a se*unda meditação, lo*o de in+cio, procura%se al*o que seja certo e firme, como um ponto de apoio arquimediano,aonde se funde com firmeza a verdade(
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se*undo a temperatura %, revela que o que permanece do o2jeto é sua ideia enão sua ima*em(
/ó o esp+rito é capaz de conhecer o imut-vel nos corpos mut-veis(
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)l*umas ideias são derivadas do próprio eu ou da composição de fi*urasque aparecem ao sujeito e que poderiam ser materialmente falsas, isto é, não
procederiam de nada eistente(
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) ima*inação conse*ue manifestar a presença de o2jetos simples aoesp+rito, enquanto a pura intelecção possi2ilita conce2er coisas maiscompleas( m pent-*ono, por eemplo, pode ser conce2ido e ter seus lados e-rea ima*inados claramente( I- um quilió*ono só é pensado conceitualmente()ssim, al*o, além do esp+rito, pode ser presumido previamente, quando se uneima*inação e intelecção, como faculdades mentais G"H(
ma se*unda presunção decorre disso( ) ima*inação, para eistir,depende de uma coisa fora do esp+rito( ) pura intelecção, ao contr-rio, nãodepende de mais nada, pois é a essência do ser pensante( =o campo dasconjecturas, a ima*inação permite sustentar a pro2a2ilidade de al*um corpoeistir G$H(
6s sentidos, por sua vez, fornecem à ima*inação os elementos eternos à
concepção para formação das coisas corpóreas( ma investi*ação mais atentaca2e aqui para esclarecer como essa associação dos sentidos corporais com amente é efetivada(
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6utras cate*orias ou modos su2stanciais dependem de al*uma etensão,mas não da inteli*ência( ) eistência de sentimentos revela uma faculdade
pass+vel que seria in.til se não houvesse uma outra ativa para formação e produção de ideias( )o lado da alma, o corpo é a su2st?ncia portadora dessafaculdade ativa e pass+vel da sensi2ilidade( Deus não é en*anador, mas nãoenvia diretamente as ideias dos corpos materiais, que são apresentadas por meio das coisas corpóreas( Da+ seu aspecto en*anoso que, não o2stante, é
prova de sua eistência G!!H(
)ssim, do mesmo modo que eiste essa faculdade capaz de equ+voco,tam2ém eiste outra apta a corri*i%la( =os ensinamentos de uma naturezadivina criada por Deus', sempre h- al*o de verdadeiro, posto que a naturezaem seu conjunto deve ser entendida como o próprio deus um pante+smocartesiano'( Dentre as verdades aprendidas, est- a união de um corpo ao ser
pensante( 6 ser pensante de fato encontra%se misturado a seu corpo, formandoum .nico todo( 6s sentimentos confusos de dor e prazer decorrem dessamistura entre corpo e esp+rito(
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otimizadas pela *l?ndula pineal são *eradas, conforme as melhores escolhasdeterminadas por deus para a so2revivência do or*anismo( )s dores maisnocivas e prejudiciais, por eemplo, são tratadas primeiro( De acordo com asinstruç8es divinas, as or*anizaç8es propostas para o indiv+duo são as melhores
poss+veis para sua conservação( =ão o2stante, os mecanismos, como o dasede, que provocam o movimento do esp+rito, podem se en*anar a respeito desuas necessidades, tendo sede quando est- 2em hidratado( )pesar da 2ondadedivina, tais movimentos podem ser falsos G!;H(
ma intervenção neste processo do sistema nervoso pode provocar equ+vocos, como no caso da sede desnecess-ria, j- antecipado( ) memória,aliada ao entendimento, ajuda a evitar tais erros( Destarte, a d.vidahiper2ólica j- pode ser afastada, por conta da razão reta( ) clareza e distinção
permitem li*ar os eventos passados aos do presente vivido, se nada houver de
impedimento, pois deus não é en*anador( /em um eame apurado, a vidahumana est- sujeita a falhas por conta de sua acrasia G!"H(
1m suas Meditações, Descartes procurou desenrolar na se*uinte ordem,as doze raz8es fundamentais que levariam à prova da eistência de deus e daseparação da alma e do corpo9
!( eu eisto:
4( ser pensante:
B( a mente é mais f-cil de se conhecer que o corpo:
;( deus eiste:
"( deus é perfeito:
$( constatação do fali2ilismo:
J( h- uma vontade livre:
5( o2jetividade das ideias claras e distintas:
#( prova ontoló*ica de deus por ei*ência de suas propriedades essenciais:
!&(alma distinta do corpo:
!!(coisas corporais eistem:
!4(união factual do corpo com a alma(
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/em em2ar*o, o esforço racional e seu relativo sucesso em constituir uma filosofia moderna não impediram a cr+tica su2sequente contra o dualismoentre mente e corpo e a sua insatisfatória prova ontoló*ica de deus(
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Referindo-se a esta segunda postura, seriam referências incontestáveis entre a
comunidade cartesiana os nomes de F. Alquié, E. Gilson, M. Gueròult entre outros
(LANDIN FILHO, 1992). À luz destes, não pretendemos uma interpretação exaustiva desta
obra; não temos o objetivo de assumir qualquer das duas posições acima. O texto
pretende-se um roteiro de leitura, capaz de apresentar, de modo geral, o trajeto deDescartes nas duas primeiras Meditações, além do modo com que a temática do corpo se
apresenta nesta parte do texto. Esta opção justifica-se por ser um tema de pesquisa
recorrente, ocupando também a pauta de alguns dos especialistas no autor, presentes
amiúde neste trabalho.
I
A filosofia, para Descartes, é o estudo da sabedoria, uma ciência que abrange tudo quanto
o homem pode saber. Contudo, para que esse conhecimento seja assim, deve ser
deduzido de causas primeiras.Para Descartes, a investigação sobre os princípios do
conhecimento é a primeira parte da verdadeira metafísica, esta que tem por desígniopesquisar em que limites podem funcionar o intelecto humano e descobrir no interior desse
limite se é possível a obtenção de certezas. Assim, o filósofo tem como objetivo construir
um pensamento que seja capaz de conhecer as coisas em sua verdade, pretendendo
através de seus escritos de metafísica uma filosofia universal, capaz de fornecer
conhecimentos seguros de todas as coisas. Para tanto, esse pensamento deve estar
alicerçado em um solo inabalável, beneficiado por “homens de bem”, que não se deixaram
deformar pelos prejuízos da Escola; pelos homens que não conduzem seu pensamento
exclusivamente através da lógica,mas que são capazes de raciocinar sobre coisas fáceis e
simples e, deste modo, bem conduzir sua razão para descobrir verdades até entãoignoradas (PASCAL, 1990). Esse modo de pensar oferece a possibilidade de o homem
libertar-se das opiniões dosenso comume apossar-se dos seus próprios juízos, através de
um processo rigorosamente regrado.
O parágrafo acima esboça o programa metódico do pensamento cartesiano posto em obra
com suasMeditationes de prima philosophia, cujos motivos e intenções já se mostram
declarados desde de sua edição em 1641, como no seguinte documento:Faz alguns anos já, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas porverdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso,portanto, que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões
em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasseestabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Mas, como tal seme afigurasse uma vasta tarefa, esperava alcançar uma idade que fosse bastante madura,
que nenhuma outra se lhe seguisse mais apta a executá-la. Por isso, adiei por tanto tempoque, de agora em diante, seria culpado, se consumisse em deliberar o tempo que me resta
para agir. É, portanto, em boa hora que, hoje, a mente desligada de todas aspreocupações, na serenidade segura deste retiro solitário, dedicar-me-ei por fim a derrubar
séria e genericamente minhas antigas opiniões (DESCARTES, 2004, p. 23).
A passagem mostra aquilo que é o propósito primeiro do exercício cartesiano, a busca de
um solo seguro sobre o qual seria possível edificar todo e qualquer conhecimentocientífico. Para isto, efetua-se o que o autor chama de inspeção do espírito (mentis
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inspectio) sobre os conhecimentos pré-concebidos, tendo por intuito sondar sua
confiabilidade. Tal exame dispõe-se a suspender a validade de todo saber que se constrói
como mera opinião e sua pretensa legitimidade, dando crédito apenas àquilo que pudesse
se estabelecer como um saber sólido. Diante da amplitude desta tarefa, que requisitaria
uma longa verificação de todos os conhecimentos em questão; e da indisponibilidade detempo hábil para sua execução plena, urge a necessidade de um método que conduziria o
espírito na busca da verdade das ciências.
O caminho constituído pelo método perfaz-se a partir do exame daquilo que nos vem
mediado pelos pré-conceitos e opiniões, i. e, crenças herdadas de maneira irrefletida,
podendo conter erros que, uma vez tomados equivocamente por certas, fariam fracassar o
empreendimento da ciência, como um edifício que rui por ter suas bases minadas. Para
evitar isto, Descartes cria um recurso que será utilizado em boa parte das meditações:a
dúvida.
Durante a Primeira Meditação, em seus §§ 1-3, Descartes apresenta aquele que é um dos
mecanismos mais importantes do seu método, o princípio da dúvida. Segundo M. Gueròult(1968), com esta, Descartes duvida do valor de verdade dos conhecimentos, em uma
medida preventiva aos erros a que estamos sujeitos por meio de nossa apreensão
sensível. Para o autor, enganos são imediatamente oriundos da imperfeição dos sentidos,
fonte de onde provêm a maioria desses conhecimentos. Deste modo, Descartes, por
medida de segurança, não se permite assumir nenhuma pretensa certeza, nem mesmo
quanto às ciências exatas como a matemática. Utilizando esse princípio, Descartes descrê
de tudo que pode ser posto em dúvida. Tal figura apresenta-se e justifica sua utilidade já
na sinopse das Meditações, na qual encontramos as seguintes assertivas:
Expõe-se na Primeira Meditação as causas por que podemos duvidar de todas as coisas,principalmente das materiais, ao menos enquanto os fundamentos das ciências não forem
diversos dos que temos até agora. E, mesmo que a utilidade de uma dúvida tamanha não
apareça de imediato, é ela, no entanto, muito grande por deixar-nos livres de todos os
preconceitos, por aplainar um caminho em que a mente facilmente se desprenda dos
sentidos e por fazer, enfim, que já não possamos duvidar das coisas que, em seguida se
descubram verdadeiras (DESCARTES, 2004, p. 19).
Com a dúvida, o autor pode mobilizar os argumentos que constituem sua investigação.
Assim, a Primeira Meditação é inteiramente dedicada à apresentação desta dúvida, que
pode ter suas características elencadas assim:
a) metafísica: não é uma adjetivação gratuita. Aponta para a ordem das razões e ao
encadeamento com suas proposições. A dúvida em sua funcionalidade tem papel
metódico, sendo peça indispensável ao que Descartes chamou de método de análise.
Para o autor, “o método se resume em ordenar os objetivos quais devemos concentrar o
olho de nosso espírito para descobrir o verdadeiro” (DESCARTESapud COTTINGHAM,
1995). Sendo, assim, o procedimento analítico partindo dos efeitos, regredindo das idéias
complexas às simples, tornando clara e distinta a percepção das noções primeiras em
contraste com as opiniões;
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b)deliberada:a dúvida cartesiana não é espontânea. Difere, assim, da dúvida vulgar por
não a sofremos como quem vacila entre uma ou outra opção. Ela é convencionada,
produto de umato de vontade. Assim, o autor, decididamente, se reserva o direito de negar
todo conhecimento que ofereça a menor possibilidade de incerteza, duvidando. Afirmar
que a dúvida é deliberada não significa dizer que ela é arbitrária, tampouco uma afecçãocética, pois, na dúvida, opta-se por não acatar as proposições que se nos apresentam
imediatamente, evitando qualquer juízo prévio. Destarte, a dúvida é o que permite a
liberdade do meditador não assumir o duvidoso por certo;
c) hiperbólica: a dúvida é propositadamente exagerada. É uma hipérbole; isto quer dizer
que, ao examinar o conteúdo dos conhecimentos, ela amplia seu raio de ação, tomando o
incerto já como duvidoso e o duvidoso por falso, suspendendo, antecipadamente, sua
validade, assumindo, a partir de uma generalização, sempre por enganador aquilo que
pode enganar uma vez.
O exagero da dúvida tem seu porquê, visa a reverter a inclinação às opiniões ordinárias,
tomando o partido contrário,[2] fazendo que as inclinações que tendem para o lado dodogma, possam receber uma força para seu oposto, assumindo, após esta operação,
amédia áurea entre estes dois pontos. É isto que Descartes ilustra na seguinte passagem:
Eis porque creio não esteja agindo mal, se, entrando voluntariamente numa direção detodo contrária, passe a me enganar a mim mesmo e finja por algum tempo que essasopiniões são de todo falsas ou imaginárias, até que, finalmente, os pesos das duas ordensde preconceitos tendam, por assim dizer, a igualar-se e já nenhum mau hábito desvie meu juízo da reta percepção das coisas (DESCARTES, 2004, p. 31).
Acrescente-se, ainda o fato de a dúvida ser:
d)sistemática: ao seguir-se intrinsecamente aos argumentos das meditações; e
e) retrospectiva: atuando sempre em um conhecimento efetivo, isto é, já dado.
Usando dessas premissas é que Descartes aplica sua dúvida sobre aqueles que
supostamente seriam os conhecimentos e os meios pelos quais estes chegam a nós, a
saber: pelos sentidos. O autor se vale de uma imagem que se pretende imediata à
intelecção do seu leitor: “Por exemplo, que agora estou aqui, sentado junto ao fogo,
vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes”
(DESCARTES, 2004). Abstração que poderia ser trazida para um exemplo ainda mais
próximo de nós quando afirmamosque eu esteja aqui, em pé junto à lousa, vestindo umacamisa listrada com um lenço no bolso enquanto dou aula, ouque nós estejamos sentados
em classe diante do livro-texto empunhando a caneta. Descartes argumenta que duvidar
disso sem um motivo seria equiparar-se a loucos; contudo, o fato de sermos humanos,
possuindo a necessidade de dormir e ao dormir sonharmos, seria motivo suficiente para
duvidarmos se o que acontece _ agora _ seria realidade ou sonho, que poderíamos estar
enganados pensando-nos dispostos quando, na realidade, apenas representamos estas
experiências em sonhos, pois, “com que freqüência, o sono noturno não me persuadiu
dessas coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta roupa, sentado junto ao fogo,
quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas!” (DESCARTES, 2004).
http://www.consciencia.org/meditacoes_metafisicas-descartes#_ftn2http://www.consciencia.org/meditacoes_metafisicas-descartes#_ftn2http://www.consciencia.org/meditacoes_metafisicas-descartes#_ftn2http://www.consciencia.org/meditacoes_metafisicas-descartes#_ftn2
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O “argumento do sonho”, como ficou conhecido, busca atuar sobre a veracidade dos juízos
feitos a partir dos sentidos, seus conteúdos e mesmo a fonte destes conhecimentos. Este
argumento assevera que não há nada na realidade que nos garanta que esta não seja
ilusória como num sonho ou que “vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode
ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quaseme confirma na opinião de que estou dormindo” (DESCARTES, 2004).
Contudo, o autor argumenta que, embora não seja real o que há no sonho, o conteúdo do
sonhado possui elementos reais. Isto se confirmaria observando que, ao sonharmos,
representamos coisas tais quais estas se manifestam no real, e, por mais que fossemos
inventivos, o bastante para representarmos criaturas como sereias, centauros etc., ou se
criássemos através da imaginação algo tão extraordinário de modo a nunca termos visto
algo parecido, pelo menos as formas e as cores desta figura seriam reais, bem como sua
extensão, quantidade, duração e lugar que ocupa no espaço. Estas seriam, para o autor,
evidências de que ciências, como a física, a medicina e outras que se ocupariam dessas,poderiam incorrer em incertezas por depender dessas noções complexas. Diferentemente,
a aritmética e a geometria, que tratariam de coisas muito simples e gerais e que, por sua
essência matemática, não estariam sujeitas à dúvida, pois, quer eu esteja acordado, quer
esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o numero cinco e o quadrado nunca terá
mais do que quatro lados (…). Descartes (2004) assevera que isto não pode estar
submetido a alguma falsidade ou incerteza, não se submetendo a dúvida hiperbólica pelo
recurso do argumento do sonho.
Entretanto, na carta a Mesland, datada de 2 de maio de 1644, Descartes (1970) ressaltaque, nosso espírito, por mais atento que seja, sempre se distrai das razões que não fazem
conhecer as coisas de maneira apropriada. Isto seria motivo para duvidar, suspendendo
nossos juízos. Com isto, o autor pode apontar uma razão para duvidar até mesmo das
idéias matemáticas, por exemplo, dado a estas em sua exatidão ainda não serem
plenamente evidentes.
Assim, o próximo passo das Meditações é submeter mesmo às idéias matemáticas,
inicialmente resguardadas em seu poder de persuasão, também a dúvida. Destarte,
cogita-se a hipótese de Deus, sendo aquele que, entre suas perfeições, contaria com a
onipotência, me enganar a todo instante. O autor formula este argumento da seguintemaneira:
(…) tenho uma certa velha opinião que há um Deus, que pode todas as coisas e pelo qualfui criado tal qual existo. Mas, de onde sei que ele não tenha feito que não haja de todoterra alguma, céu algum, coisa externa alguma, figura alguma, grandeza alguma, lugar
algum e que não obstante eu sinta todas estas coisas e que, no entanto, todas elas nãome pareçam existir diferentemente de como me aparecem agora? Mais: do mesmo modo
que julgo que os outros às vezes erram acerca de coisas que presumem saber áperfeição, não estaria eu mesmo de igual maneira errando, cada vez que adiciono dois a
três ou conto os lados do quadrado ou faço outra coisa que se possa imaginar ainda maisfácil? (DESCARTES, 2004, p. 29).
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O argumento busca sustentar que Deus, do mesmo modo com que criou os homens,poderia enganá-los sempre, fazendo que absolutamente tudo que afirmarmos, até mesmoas idéias simples da matemática estivessem sujeitas à dúvida. Afinal, quem asseguraria ao
meditador que um triângulo teria, verdadeiramente, três lados? Também estarepresentação poderia ser enganosa se Deus, onipotente, engana.
No argumento do Deus enganador, Descartes convoca a figura divina para endossar seusistema de idéias. Entretanto, para o próprio filósofo, este argumento, tal como formulado,
ainda não é de todo efetivo. Pois poderia receber a objeção de que a Deus, perfeito emsua essência, não se poderia atribuir o predicado de enganador, ou de embusteiro.
Considerando que perfeição é atributo das coisas acabadas (isto é, das que nada falta oufalha) e que a idéia de Deus, para Descartes, não só e plena, mas a “soma de todas as
perfeições, isto já seria suficientemente persuasivo para refutar, por contradição, a idéia deum Deus, que, ao enganar, falha; ou seja, que incorre na imperfeição de faltar com averdade” (DESCARTESapud COTTINGHAM, 1995). Esse argumento pode ser expresso,em outras palavras, assim: ora, se Deus é considerado perfeito, não poderia sofrer dessaimperfeição; logo, Deus não pode ser enganador. A dúvida introduzida por Descartes nacrença da existência de Deus não é cabida e sucumbe ao seu próprio caráter duvidoso.Esse argumento nos deixa transparecer que, ainda em Descartes, vige a verdadeenquanto adequação(adequatio), consagrada durante toda a filosofia medieval. Provadisso é que o autor se preocupa com que aquilo que seja a realidade venha até ele tal qualrealmente é, e não como uma representação ou sob o efeito de qualquer outra
interferência.Este problema argumentativo se remedeia quando o autor, desconsiderando a hipótese de
Deus falhar, reformula o argumento, introduzindo outra figura:o gênio maligno.A justificativa de Descartes se constrói da seguinte maneira: Deus é onipotente, o que
confirma que pode, inclusive, enganar-nos. Contudo, este também é perfeito e, como tal,não incorreria na falta de enganar-nos. Isto permite afirmar que, embora Deus possa nosenganar, ele não o quer, por ser perfeito e bom. No entanto, nos enganamos e, se Deusnão nos engana talvez outra coisa o faça. Dizendo com o autor: “Suporei, portanto, que hánão um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas algum gênio maligno e, ao mesmotempo, sumamente poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que meengane” (DESCARTES, 2004).
Assim, o gênio maligno é um artifício psicológico que aparece no texto no intuito de eximirDeus da hipótese de ser um embusteiro. Ao gênio maligno, sim, podemos atribuir aalcunha de enganador e, com este argumento, presenciamos a dúvida estendida a todo equalquer juízo possível, quadro que inspira cuidados quanto ao fato de não tomarmosnada por certo e indubitável, posto que estaríamos tentados a recolher nossas opiniões
pregressas, uma vez que estas se tornaram familiares devido à longa convivência queantecedeu a dúvida sistemática. Do mesmo modo, impedido de ignorar o exercício
elaborado até então que teriam revelado o quão incerto é o conhecimento possível aohomem, como águas que, uma vez agitadas, trazem à tona suas impurezas agora
suspensas em turbidez, apontando a necessidade do tratamento exaustivo do tema e
problemas.
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II
Tendo sido a dúvida universalizada com o argumento do gênio maligno, Descartes aponta
a impossibilidade do exercício, iniciado com a Primeira Meditação, ser interrompido.
Interromper neste ponto, no qual a dúvida atua de fato sobre tudo, seria incorrer na
impossibilidade de qualquer outra enunciação que se pretenda científica, ou seja,todo
conhecimento reto permaneceria embargado pela iminência desta dúvida implacável. Isto
seria motivo suficiente para dar prosseguimento às meditações que, em seu estado atual
supõe-se “(…) falsas todas as coisas que vejo: creio que nunca existiu nada do que a
memória mendaz representa; não tenho nenhum dos sentidos todos; corpo, figura,
extensão, movimento e lugar são quimeras. Que será, então, verdadeiro?” (DESCARTES,
2004).
Esta proposição resumida traz o saldo parcial do balanço da investigação cartesiana,
descrevendo que o meditador não pode asseverar nada por enquanto, sob pena de que
qualquer afirmativa seja reconduzida ao engano, dada a ação do “grande embusteiro”.Contudo, é deste exato ponto que parte o próximo argumento.
Descartes está irresistivelmente inclinado a aceitar que é enganado, persuadido de que é
burlado a cada instante em que é. Do mesmo modo que, em cada vez que se engana,
duvida; e que, ao duvidar, é alguma coisa. Afinal, se o enganador engana, o faz com algo
ou alguém. Descartes vê nisso a evidência necessária para afirmar que, enquanto duvida
(o que já seria uma forma de pensar), esteja enganado ou não; ele próprio, efetivamente,
é. Ou seja, enquanto penso, duvido, ou, mesmo, sou enganado; “eu sou, eu existo”
(Descartes, 2004) e isto é indubitável. Esta última proposição encontra sua clássicaformulação como“penso, logo sou” anos antes noDiscurso do método (1637) em
francês:“je pense donc je suis”, mais tarde nosPrincípios de filosofia (1644), em
latim,“cogito ergo sum”, é apontada como a primeira e mais certa verdade até agora.
Afirmar que se é (ou existe) na medida em que se pensa (ou duvida) é para o autor uma
proposição necessariamente verdadeira, pois essa resiste às objeções céticas e à dúvida.
Uma vez que, posso duvidar de tudo, menos de que sou, e mesmo enganado pelo gênio
maligno, eu, ainda assim, sou (ou existo) como aquele que é enganado.
O autor, tendo chegado à proposição de que é, ainda não sabe asseverar precisamente o
que é (respeitando o curso de suas meditações), pois:
Com efeito, ocorria-me, em primeiro lugar, que eu tinha um rosto, mãos, braços e toda
essa máquina de membros, que se percebe também em um cadáver e que eu designava
pelo nome de corpo. Além disso, ocorria que me alimentava, andava, sentia e pensava,
ações que eu referia por certo a uma alma. Mas o que essa alma era, ou não o notara ou,
se me detinha em considerá-lo, imaginava um não sei que de diminuto, a exemplo do
vento ou do fogo ou de um éter, infuso em minhas partes mais grosseiras. Sobre o corpo
não tinha, na verdade, dúvida alguma e julgava conhecer-lhe a natureza distintamente.
Tentava-se talvez descrevê-la tal qual minha mente a concebia, explicava-o desta maneira:entendo por corpo tudo o que pode terminar por alguma figura, estar circunscrito em algum
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lugar e preencher um espaço do qual exclui todo outro corpo. É percebido pelo tato, pela
vista, pelo ouvido, pelo gosto, pelo olfato e é, também, movido de muitos modos, não em
verdade por si mesmo, mas por um outro, que o toca e do qual recebe a impressão. Pois,
ter a força de mover-se a si mesmo, de sentir e de pensar, de modo algum julgava
pertencer á natureza do corpo. Ao contrário, ficava antes admirado de encontrar taisfaculdades em certos corpos (DESCARTES, 2004, p. 47).
Do mesmo modo que atributo e faculdade eram tomados como pertencentes ao corpo e,
logo em seguida, a dúvida revelou que estas convicções se sustentariam apenas pela
certeza sensível. Descartes se priva de assumir qualquer resposta imediata para explicar o
ser que é e seu modo de existir. Entre elas aquela que pareceria mais óbvia, a de que é
um homem. Contudo, esta resposta não decorre dos desdobramentos necessários do
argumento das meditações (construído de maneira análoga a uma expressão matemática
que exige obediência à ordem das operações a serem efetuadas).[3] Tal resposta é
“importada” e diz mais do que a pergunta quer saber, responde mais do que a respostarestrita possibilita, além de acrescentar uma infinidade dificuldades quanto à noção
complexa de homem, que Descartes (2004) considerou uma digressão ao curso da
Meditação.
A pergunta pelo que sou enquanto duvido só pode ter coerentemente a resposta: sou algo
que duvida, ou sou algo que é enquanto duvida (ou pensa). Daí a afirmativa de que:
Não sou essa compaginação destes membros, chamada de corpo humano; não sou
também um ar sutil, infuso nestes membros; não sou um vento, nem um fogo, nem um
vapor, nem um sopro, nem algo que eu possa formar em ficção, pois supus que tais coisasnada eram. Permanece, porém, a afirmação: eu mesmo sou, no entanto, algo
(DESCARTES, 2004, p. 49).
Ser algo pensante é o que sustentará, doravante, o argumento de Descartes. Convencido
de que os sentidos podem criar falsas impressões na medida em que corre o risco de estar
dormindo (ainda sob a dúvida do argumento do sonho), o autor pode avaliar como certo
que o que apreende pelos sentidos, isto é, o que vê, ouve e sente nada mais seria que
algo que pensa ver, ouvir e sentir, ou, obedecendo à mesma “mecânica” do argumento que
conclui que existo, vê-se, ouve-se e sente-se na medida em que se pensa. O filósofo avalia
este ponto: “(…) começo a conhecer o que sou com um pouco mais de luz e de distinçãodo que anteriormente” (DESCARTES, 2004).
É, precisamente, a partir deste “ponto de luz” que Descartes partirá para a inspeção das
coisas comuns que acreditamos compreender distintamente. Esse exame partirá dos
corpos tal como apreendemos.
III
O conceito de corpo (corpus), tal como tratado por Descartes nas Meditações, possui trêssentidos, referindo-se, inicialmente, aoscorpos em geral, como matéria ou substância
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extensa manifesta em três dimensões e inscrita no universo físico; aos corpos em sua
incidência individual, determinandoum corpo, podendo este ser um elemento da física, um
ente concreto como uma rocha, um monte ou um planeta (corpo celeste) e, ainda, como
ocorpo humano, em questão aqui: geralmente presente nas Meditações na forma
distintiva frente à mente, ligado aos sentidos e submetido ao pensamento (COTTINGHAM,1995). No intuito de tratar esse problema, Descartes não aborda os corpos de maneira
geral; antes, toca um corpo em particular; usa, assim, o exemplo do pedaço de cera. Esta
inspeção deverá revelar que os corpos em sua natureza são mais difíceis de serem
conhecidos que o próprio ser pensante; este último doravante tratado como “cogito”.
Através da experiência feita com um corpo de cera que, em um primeiro momento
apresenta uma série de características naturais e, num segundo, após ter sido aproximado
do fogo, sofre alterações físicas mudando sua extensão (DESCARTES, 2004). Descartes
investiga, para além dos acidentes, o que de substancial haveria nesse, isto é, o que
haveria de constante no corpo a ponto de podermos estabelecer uma relação de
identidade no seu primeiro estado com o segundo, reconhecendo-o como a mesma cera.
O mesmo corpo é visto em ambos os casos, sendo a mesma cera de antes do
experimento. Entretanto, sua percepção não é mais compreendida como algo dado
puramente pelos sentidos “(…), não é um ato de ver, de tocar, de imaginar, e nunca o foi,
embora antes o parecesse, mas é uma inspeção só da mente, que pode ser imperfeita e
confusa, como antes era, ou clara e distinta, como agora, sendo presto menos ou mais
atenção às coisas de que se compõe” (DESCARTES, 2004).
Com esta afirmativa, o autor se encaminha a afirmar que o conhecimento dos corpos emsuas propriedades, visando, principalmente, à extensão, não ocorre por meio dos sentidos
ou da imaginação (que poderia representar diversas formas para a coisa), mas por outros
meios, cujas causas mostrar-se-iam mais evidentes e distintas. Descartes sustentará que
os elementos que possui para comprovar a existência de objetos externos ao espírito
(como o pedaço de cera e o próprio corpo humano) com muito mais facilidade dão razão
ao conhecimento da natureza do ser pensante, do espírito, da mente.[4] Deste modo, o
autor valida a tese que nomeia a Segunda Meditação ao afirmar categoricamente que não
há evidência maior e mais fácil de se conhecer do que o próprio espírito, assegurando,
ainda, que a descoberta da natureza do cogito pode contribuir também para o
esclarecimento da natureza das coisas que dependem do corpo.[5]Gueròult considera isso de maneira pontual, ressaltando as verdades sobre as quais o
conhecimento seguro poderia futuramente edificar-se. Enfocando também o papel do
espírito em face do corpo e dos sentidos:
Existo como coisa pensante, tal é a primeira verdade indubitável na ordem das razões.
Mas a natureza não é outra coisa do que o puro pensamento e a pura inteligência,
excluindo todo elemento corporal, tal é a segunda verdade que decorre imediatamente,
segundo a ordem precedente. Eu me conheço, logo, em minha existência e em minha
essência e agora que, nela mesma, o corpo é rejeitado do saber e anulado pelo gêniomaligno, este permanece a mim desconhecido em sua existência e em sua essência.
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Donde concluo que, o corpo é menos fácil de conhecer que a alma, porque a alma já é
conhecida antes dele na ordem das razões tal é a terceira verdade. Esta verdade, que
resulta imediatamente da via de ordem, não tem nenhuma necessidade de uma
demonstração suplementar. Todavia, há uma grande diferença entre estar convencido e
estar persuadido. Ora, esta é uma verdade do entendimento puro, aquela que se opõerigorosamente a uma persuasão nascida de minhanatureza, quer dizer, de minha alma
unida substancialmente ao corpo, provando ao sentimento que esta não faziaum com ele;
sendo desde a imaginação uma tendência a crer que todos meus conhecimentos provêm
dos sentidos, que os corpos que posso ver, tocar, sentir são diretamente apreendidos sem
o menor concurso da inteligência; que eles são, primeiramente, desconhecidos e, por
conseguinte, melhor conhecido que a alma, aquele estado incorpóreo não seria o estar
não sentido, o não tocado, nem visto, mas somente pensado (GUERÒULT, 1968, pp. 119-
120).
A descoberta do cogito como essência pensante da existência divorcia definitivamente a
mente do corpo, passando a ser, o segundo, um traço acidental deste que pensa. O eupensante, agora capaz de autodeterminar-se como aquele que é enquanto pensa, não
depende (como poderíamos presumir) do conhecimento dado a nós unicamente por meio
dos sentidos (como atributos do corpo), pois mesmo este já seria determinado
mediatamente pelo espírito (BEYSSADE, 2001). Isto nos permite inferir que o
acontecimento do espírito é mais fácil de ser efetuado e comprovado por ser
imediatamente dado pelo próprio pensamento enquanto pensa, o que não ocorre em se
tratando da idéia derivada e complexa de corpo, motivo pelo qual o corpo permanece em
suspenso, pela dúvida, até que possa ser afirmado, com certeza, na sexta Meditação.
Pensar o espírito como coisa distinta e, ainda, independente do corpo é realmente
inovador. Contudo, não deixa de estar relacionado com o modo com que estas duas
estruturas aparecem na tradição filosófica, principalmente na escolástica. O próprio
Descartes (1953) viabiliza esta avaliação quando, na carta de 30 de julho de 1640, a
Mersenne se aproxima da doutrina tomista ao defender a posição de que o homem é
composto de espírito e corpo, e não de um corpo usando o espírito.
Inúmeros são os momentos da obra de Descartes em que este aborda a diferença entre
corpo e espírito; autores como J. Marques exploram, de maneira minuciosa, a
problemática de o autor pensar a união entre alma e corpo, considerando este problemafundamental à própria compreensão de homem em Descartes (MARQUES, 1993). Em
verdade, esta mesma questão oferece para alguns comentadores problemas derivados
logicamente insolúveis no pensamento de Descartes. Como exemplo, podemos tomar a
possibilidade de pensarmos em mentes sem corpo, hipótese comentada por Cottingham
(1999). Este sustenta que, embora não existam mentes sem corpo, a filosofia de Descartes
concede esta possibilidade, afirmativa que causa desconforto entre os filósofos atuais,
uma vez que hoje se sustentar que toda consciência é produto de um sistema físico-
orgânico e incorporado a ela. Tal situação pode ser traduzida em termos mais pragmáticos
com a seguinte analogia: conceber a hipótese da possibilidade da mente sem um cérebro(ou qualquer estrutura física de natureza similar) seria defender idéia análoga a de que
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poderia haver a digestão (compreendida, também como a mente por um produto
fisiológico) sem o estômago ou coisa que a valha. Guardando as devidas proporções que
diferenciam os dois fenômenos, para a abordagem atual, orientada por uma perspectiva
neurologista, tal idéia se apresenta insustentável, embora perfeitamente viável pela
argumentação metafísica, feita por nosso autor. Os desdobramentos deste problemapoderiam delongar-se por mais tempo, o que optamos por não fazer neste trabalho.
Ao final da apresentação das duas primeiras Meditações (que partiram das trevas
absolutas da incerteza para a dúvida capaz de questionar todas as opiniões pré-
concebidas, através do argumento do sonho que, como exposto, pôs em dúvida os
conhecimentos dados a partir do sentido e do conhecimento; a partir do sentido e da
hipótese do gênio maligno, decorrente do Deus enganador) encontrou-se um ponto de luz
que nos permitiria o conhecimento indubitável de si mesmo como algo que pensa.
[6] Assim, tratou-se da natureza da coisa de natureza corpórea, afirmando que a primeira é
mais fácil de conhecer que a segunda.
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