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FUNDAO EDSON QUEIROZUNIVERSIDADE DE FORTALEZA UNIFORCENTRO DE CINCIAS JURDICAS CCJPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO CONSTITUCIONALDissertao de Mestrado em Direito Constitucional
MEDIAO E DEMOCRACIA: UMA ABORDAGEMCONTEMPORNEA DA RESOLUO DE CONFLITOS
Sandra Mara Vale MoreiraMatr. 0424437-X
Fortaleza-CEDezembro 2007
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SANDRA MARA VALE MOREIRA
MEDIAO E DEMOCRACIA: UMA ABORDAGEMCONTEMPORNEA DA RESOLUO DE CONFLITOS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito Constitucional como
requisito parcial para a obteno do Grau deMestre em Direito Constitucional, sob aorientao da Professora Doutora Llia Maia deMorais Sales.
Fortaleza-CE
2007
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UNIVERSIDADE DE FORTALEZA UNIFORPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO/ MESTRADO EM DIREITO
CONSTITUCIONAL
DISSERTAO
MEDIAO E DEMOCRACIA: UMA ABORDAGEM
CONTEMPORNEA DA RESOLUO DE CONFLITOS
de
SANDRA MARA VALE MOREIRA
Dissertao aprovada em 20/12/2007
Nota___________________________
BANCA EXAMINADORA:
Prof Llia Maia de Morais Sales (orientadora) DrUniversidade de Fortaleza UNIFOR
_____________________________________________________Prof. Fernando Basto Ferraz (examinador) Dr.
Universidade de Fortaleza UFC
_____________________________________________________Prof Carlos Roberto Martins Rodrigues (examinador) Dr.
Universidade Federal do Cear UFC
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pequena Maria, por iluminar nossas vidas com sua doce
lembrana.
Aos meus avs Deoclcio e Rita, pelo exemplo de vida digna e
generosidade em servir ao prximo.
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La paz a la que podemos aspirar no es entonces la paz
armoniosa de los cementerios, no es la paz sumisa dos
escravos, sino la paz construda por los valientes.
William Ury
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AGRADECIMENTOS
A Mairlon, companheiro de todos os momentos, pela contribuio inestimvel
oriunda dos debates sobre o tema, e s nossas filhas Maisa e Isabella, sempre
dispostas a colaborar, pelo auxlio na pesquisa e compreenso nos momentos deausncia.
Aos meus pais, Manoel e Francy, e irmos, Alex, Andra e Daniel, famlia
dedicada ao magistrio, pela f na educao e nos homens e por mostrarem que
vale a pena sonhar.
A Joo Lucas, pela contagiante alegria de viver.
professora Lilia Maia de Morais Sales, pelo carinho, parceria e confiana ao
longo dos cursos de especializao e mestrado, bem como pela orientao do
trabalho.
Aos integrantes da banca examinadora, Professor Doutor Fernando Basto
Ferraz e Professor Doutor Carlos Roberto Martins Rodrigues, pela ateno.
Profa. Nbia Maria Garcia Bastos, pela cuidadosa reviso metodolgica e
pela simpatia e bom humor constantes.
Aos amigos Alan, Mrcia, Marlyse e Christiane, cujo apoio no ambiente de
trabalho foi indispensvel para a dedicao ao curso de mestrado, bem como a
Valber e Fbio, pelo auxlio na pesquisa e formatao do trabalho.
Aos colegas da Secretaria Judiciria, pelo incentivo e apoio e ao TRE do
Cear, pela concesso da bolsa de estudo.
Lanuce, Michaele, Patrcia, Carlos Eduardo e Lus Carlos, pela gentileza
infinita.
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RESUMO
O presente trabalho procura estabelecer em que sentido a mediao de conflitos
pode ser considerada como instrumento democrtico para resoluo decontrovrsias. Objetiva indicar os pontos de contato, a inter-relao entre mediaoe democracia, a partir do estudo acerca dos aspectos que hoje caracterizam algocomo democrtico. Para tanto, considerando a democracia como processo histricoem constante realizao, procedeu-se anlise dos modelos de democracia diretada Grcia antiga, da democracia representativa at o modelo contemporneo dedemocracia participativa, sendo no contexto desta ltima que se buscou fixar osaspectos que hoje esto a indicar a natureza democrtica. Tambm foi realizadaanlise acerca do instituto da mediao, como mtodo no adversarial de resoluode conflitos, indicando as bases para identific-la como instrumento democrtico,atravs de seu conceito, principais caractersticas, estrutura, princpios, objetivos,
processo e atuao do mediador, ressaltando-se, da mesma forma, a mediao deconflitos no Brasil, com destaque para o projeto de lei regulamentando a matria,que se encontra em tramitao no Congresso Nacional. A partir das anlisesrealizadas, conclui-se que a mediao pode ser considerada como meio democrticopara soluo de conflitos, tendo em vista se constituir em procedimento que exige aparticipao ativa dos mediados, bem como possibilita o acesso justia, a inclusoe a paz social, incentivando o exerccio da cidadania e contribuindo para aefetivao da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Apresenta-se amediao comunitria como exemplo concreto de atuao democrtica na resoluode conflitos.
Palavras-chave: Mediao de conflitos. Democracia. Dignidade humana. Acesso justia. Incluso social.
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ABSTRACT
This study attempts to establish in what sense the mediation of conflicts can beconsidered as a democratic means to the resolution of controversies. The objective isto indicate the contact points, the interrelation between mediation and democracy,taking as a starting point the study of the aspects which today define something asdemocratic. To that end, considering democracy as a historical ongoing process, theanalyses of the models of direct democracy in Ancient Greece was carried out, fromthe representative democracy until the contemporary model of participatorydemocracy, and in the context of the latter we sought to ascertain the aspects whichindicate the democratic nature today. We also carried out an analyses of the notion ofmediation as a non-adversarial method of resolution of conflicts, indicating the basesto identify it as a democratic instrument through its concept, main characteristics,structure, principles, objectives, process and mediator's performance, alwayshighlighting the mediation of conflicts in Brazil, especially the bill regulating thematter, which is proceduring in the Congress. From the analyses carried out, the
conclusion is that mediation can be considered as a democratic means to theresolution of conflicts, considering it consists of a procedure which demands activeparticipation from the mediated, in addition to allowing access to justice, inclusionand social peace, encouraging a sense of citizenship and contributing to the effectingof human dignity and fundamental rights. Community mediation can be pointed outas a concrete example of democratic action in the resolution of conflicts.
Keywords: Mediation of conflicts. Democracy. Human dignity. Access to justice.Social inclusion.
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SUMRIO
INTRODUO...........................................................................................................11
1 A EVOLUO DA DEMOCRACIA E A NATUREZA DEMOCRTICA ................15
1.1 Consideraes sobre a democracia direta grega .........................................16
1.2 A democracia representativa a partir do Estado liberal ................................23
1.2.1 Contexto precursor da democracia representativa: O liberalismo ......24
1.2.2 A separao de poderes e o Estado liberal ........................................26
1.2.3 O Estado Liberal-Democrtico ............................................................30
1.2.4 A democracia representativa ...............................................................321.3 A democracia participativa ..........................................................................36
1.3.1 A realidade latino-americana ...............................................................39
1.3.2 A democracia participativa ..................................................................40
1.4 A natureza democrtica .................................................................................47
2 A MEDIAO DE CONFLITOS .............................................................................50
2.1 Os demais mtodos ADRs: negociao, arbitragem e conciliao ...............54
2.2 Mediao e Poder Judicirio ..........................................................................57
2.3 A estrutura da mediao ................................................................................59
2.3.1 Princpios da mediao .........................................................................62
2.3.2 Objetivos da mediao ..........................................................................66
2.3.3 O processo de mediao ......................................................................69
2.3.3.1 O ambiente da mediao ..........................................................69
2.3.3.2 Tcnicas e recursos utilizados pela mediao ..........................70
2.3.3.3 Etapas do processo ...................................................................73
2.3.4 Abrangncia da mediao .....................................................................75
2.4 O mediador ....................................................................................................76
2.5 A mediao no Brasil .....................................................................................81
2.5.1 Incio da mediao no Brasil .................................................................81
2.5.2 O projeto de lei ......................................................................................83
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3 MEDIAO DE CONFLITOS E DEMOCRACIA ...................................................88
3.1 Participao e cidadania ................................................................................89
3.1.1 A cidadania ............................................................................................89
3.1.1.1 Premissas ...................................................................................90
3.1.1.2 A cidadania na Constituio Federal de 1988: a experinciabrasileira contempornea ..................................................................93
3.1.2 A participao cidad ............................................................................97
3.2 O acesso justia ........................................................................................102
3.3 A pacificao social ......................................................................................108
3.4 Dignidade humana e incluso social ............................................................112
3.4.1 A dignidade humana e os direitos fundamentais ................................113
3.4.2 A incluso social ..................................................................................121
3.5 A mediao comunitria: experincia de processo democrtico na soluo de
conflitos ........................................................................................................124
CONCLUSO .........................................................................................................131
REFERNCIAS .......................................................................................................137
NDICE ONOMSTICO ...........................................................................................145
ANEXOS .................................................................................................................147
ANEXO A ................................................................................................................148ANEXO B ................................................................................................................150
ANEXO C ................................................................................................................165
ANEXO D ................................................................................................................174
ANEXO E ................................................................................................................179
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INTRODUO
A mediao se configura em processo amigvel, em que um terceiro imparcial,
o mediador, auxilia as partes a solucionarem seus conflitos de maneira pacfica e
mutuamente satisfatria, atravs do dilogo, baseando-se na cooperao, tolerncia
e parceria, sendo as partes responsveis pela construo do que acordado.
Os autores e estudiosos da mediao de conflitos no hesitam em apontar sua
natureza democrtica, baseando-se na sistemtica utilizada, estrutura e
caractersticas do procedimento, atuao do mediador e mesmo na capacidade de
transformao pessoal e comunitria que ela possibilita.
Mas por que a mediao pode ser considerada como meio democrtico para a
resoluo de conflitos ou, em outras palavras, o que faz a mediao ser
democrtica? Uma reflexo preliminar acerca do tema, mesmo que superficial, j
permite antever que a resposta exige, por sua vez, o esclarecimento de outra
indagao: o que, hoje, possibilita qualificar algo como democrtico? Responder
satisfatoriamente a ambas as indagaes passa, necessariamente, pelo estudo da
teoria contempornea da democracia.
A anlise das questes poderia, de logo, iniciar do que se entende por
democracia na atualidade para, a partir da, estabelecer a natureza democrtica,
mas tal caminho, apesar de menos trabalhoso, restaria incompleto, porquanto a
democracia no possui conceito esttico, e, nesse sentido, no se revela algo que
possa ser encerrado em contornos estritamente delimitados de espao e de tempo.
Ao contrrio, ela conceito histrico e, portanto, dinmico, j que processo sempre
em construo, fruto da vivncia entre os homens.
O que a democracia hoje significa resultado de um longo processo que foi
diretamente afetado pelas transformaes sociais, econmicas e polticas que a
humanidade tem enfrentado e, assim, uma anlise sobre o tema requer algumas
consideraes sobre sua evoluo ao longo do tempo.
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Para os fins do presente trabalho, foi utilizada a pesquisa bibliogrfica, atravs
das diversas publicaes sobre o tema, como livros, artigos cientficos constantes de
revistas especializadas e publicaes avulsas. Tambm foram colhidos dados
estatsticos relativos utilizao da conciliao pelo Poder Judicirio (Conselho
Nacional de Justia CNJ) e do nmero de atendimentos das entidades quetrabalham com a mediao comunitria mencionadas no ltimo captulo. Cabe,
ainda, ressaltar que a consulta a sites da internet foi utilizada de forma restrita,
apenas para a coleta de informaes imprescindveis ao estudo, como o Cdigo de
tica dos mediadores, formulado pelo Conselho Centro Nacional das Instituies de
Mediao e Arbitragem CONIMA, e os dados estatsticos do CNJ.
Procurou-se seguir uma seqncia lgica na estruturao do trabalho e, assim,
partiu-se da anlise da democracia para estabelecer a natureza democrtica
contempornea. Em seguida, as principais caractersticas e a estrutura da mediao
de conflitos foram indicadas, para, finalmente, se fixar os pontos de encontro entre
mediao e democracia.
Assim, o primeiro captulo consta da anlise da democracia direta grega, da
democracia representativa e da democracia participativa, opo que recaiu nos trs
modelos referidos em virtude de expressarem as caractersticas mais marcantes dademocracia. O modelo clssico da democracia grega direta possui valor histrico
inegvel, por ter-se constitudo na primeira experincia democrtica da humanidade,
alm do que seu sentido etimolgico encerra, ainda hoje, a essncia da democracia,
qual seja, governo do povo1.
A expanso da democracia representativa pode ser verificada a partir do
advento do Estado Liberal. Esta, aqui tomada no sentido liberal-democrata, mantm,no geral, seu modelo bsico na atualidade, atravs dos sistemas representativo e
eleitoral, verificando-se progressos no que se refere ao sufrgio universal, como, no
caso do Brasil, a existncia do modelo de votao direta e secreta, estendida,
facultativamente, aos analfabetos; votao eletrnica; existncia de justia
1 Muito embora esse significado no responda mais de forma satisfatria pergunta sobre o que democracia, conforme SARTORI, Giovanni. A Teoria da democracia revisitada. Traduo de Dinahde Abreu Azevedo. Srie Fundamentos n. 104. So Paulo: tica, [s.d.]. v. I.
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especializada (Justia Eleitoral); sigilo e proteo liberdade de voto. Contudo, a
democracia representativa contempornea se encontra em crise, devido, dentre
outros fatores: tentativa de identificao da essncia democrtica ao ato de votar;
ao distanciamento e falta de compromisso dos representantes eleitos; abuso do
poder; corrupo; apatia do cidado-eleitor.
Hoje, o cidado reclama no mais apenas por instrumentos formais de atuao
poltica, como o voto, mas tambm mecanismos para o efetivo exerccio de
participao democrtica. Quer ele atuar na vida poltica e ter a oportunidade de
influir e colaborar para a tomada de decises sobre assuntos que digam respeito
sua vida e de sua comunidade, exigncias que apontam na direo de uma
democracia participativa.
A opo pela anlise da democracia participativa deu-se em virtude de se
aproximar de um modelo institucional de possvel implementao, que, inclusive, no
Brasil, se encontra previsto constitucionalmente atravs de canais formais, como o
plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14, incisos I a III, da CF/88) e ocorre,
igualmente, por outras vias, como o oramento participativo, a participao popular
na elaborao do plano diretor das cidades e a atuao nos conselhos gestores.
Entretanto, o modelo base para este trabalho no pressupe uma forma dedemocracia direta, mas sim indireta, com a coexistncia dos instrumentos da
democracia representativa com novos canais de participao. Trata-se de abrir
espao no modelo representativo tradicional para arej-lo com a participao mais
efetiva do povo. E no contexto da democracia participativa que se tentar
estabelecer o que caracteriza a natureza democrtica, a fim de tentar responder s
indagaes que norteiam a presente anlise.
No entanto, sem que tambm se procedesse ao estudo da mediao enquanto
procedimento para a resoluo de conflitos, no haveria como realizar a anlise do
tema de maneira adequada. Assim, no segundo captulo abordou-se a mediao
como mtodo consensual de soluo de conflitos, onde se procurou estabelecer as
bases para identific-la como instrumento democrtico, atravs da formulao de
conceito, bem como destacando suas principais caractersticas, estrutura, processo,
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relao com o Poder Judicirio, e anlise do projeto de lei brasileiro que disciplina a
matria.
Apesar de mtodo antigo, o qual remonta at mesmo aos tempos bblicos,
somente a partir da dcada de 1960, atravs de estudos realizados pelaUniversidade de Harvard, a mediao passa a ser sistematizada, despertando maior
interesse do meio acadmico, sociedade, rgos pblicos e instituies privadas.
Hoje se constitui em procedimento utilizado em diversos pases, possuindo como
objetivos a soluo e preveno de conflitos, pacificao e incluso social.
Por fim, no terceiro captulo, aps haver estabelecido as notas caracterizadoras
da natureza democrtica e da mediao, passou-se anlise dos pontos de contato
e inter-relao entre ambas, mediao e democracia, atravs do enfoque de seus
diversos aspectos, como o acesso justia, fomento incluso social, passando
pelo resgate da dignidade humana, como formas de estmulo para o exerccio da
cidadania ativa.
Buscou-se, igualmente, atravs da mediao comunitria, oferecer exemplo
concreto da natureza democrtica da mediao e de como ela pode contribuir para a
construo do processo democrtico.
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1 A EVOLUO DA DEMOCRACIA E A NATUREZA
DEMOCRTICA
A utilizao do vocbulo democracia tornou-se corrente nos dias de hoje,servindo como parmetro avaliativo no s das aes e polticas adotadas pelo
poder pblico, mas tambm da conduta das pessoas, das relaes que se
estabelecem em uma determinada sociedade e dos instrumentos os quais utiliza
para se organizar. De um lado, a profuso ou exagero como podem dizer alguns
do seu emprego trouxe a democracia para a vida e a realidade do cidado comum, o
que no deixa de ser benfico. Por outro lado, disseminao do uso no se seguiu
o devido aprofundamento sobre o alcance.
Como conseqncia, esse fenmeno de expanso, ou incremento, da
democracia como baliza relacional apresenta uma questo indispensvel ao
contexto em que utilizada e remete seguinte indagao: qual a nota
caracterizadora que distingue algo como democrtico? Ou, em outras palavras, o
que faz com que polticas pblicas, condutas, processos (a includa a mediao) e
decises possam ser considerados democrticos?
A elaborao de uma possvel resposta exige, preliminarmente, a anlise de
outra questo presente no debate atual, no sentido do que vem a ser democracia,
pois se esta ir qualificar a natureza de alguma coisa, faz-se necessrio fixar seus
pontos conceituais. De fato, para saber se algo ou deixa de ser, tem-se que
determinar, antes, os contornos daquilo que ir caracterizar a sua essncia.
A democracia, como conceito no apenas poltico, mas tambm histrico,
empreendeu, desde o seu nascimento, uma extensa e rdua caminhada,
acompanhando as transformaes da sociedade humana, at designar, nos dias
atuais, um modelo de vida ou um tipo de mentalidade2. Sob essa perspectiva, o
debate acerca do significado do termo ainda permanece intenso, pois muito embora
se possa afirmar que o ncleo central permanece como o governo do povo (e para
2 GOYARD-FABRE, Simone. O que democracia. So Paulo: Martins Fontes, 2003.
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o povo), tal afirmao, por si, no responde hoje de maneira conclusiva e adequada
pergunta, indicando apenas o norte a ser seguido.
A (melhor) forma de seu exerccio, como o povo ir governar ou participar,
que se configura hoje o desafio. Assim, enfocar a questo sob o ponto de vista doprocesso em que ocorreu e ocorre a forma de participao ou interveno do povo,
sob o vis democrtico, revela-se como caminho para a abordagem do tema, cuja
anlise ser desenvolvida mediante consideraes acerca da democracia direta,
praticada na antiga Grcia, da democracia representativa e da participativa, pois
no possvel compreender o que a democracia hoje [...] se no retraarmos a
genealogia atormentada de seus conceitos e das categorias que sustentam seu
edifcio e balizam sua histria 3.
1.1 Consideraes sobre a democracia direta grega
Ao se evocar a palavra democracia surge, como primeira imagem, a
experincia da antiga Grcia4, onde os cidados, reunidos em praa pblica,
deliberavam sobre os destinos da Cidade-Estado. Tal idia corresponde, com
freqncia, ao que, no imaginrio popular, se considera o ideal democrtico, atporque pressupe o envolvimento direto e, portanto, uma maior responsabilidade
dos partcipes do processo nas conseqncias do que fosse decidido por eles
mesmos.
Iniciada por Slon e Clstenes, a democracia ateniense teve seu apogeu sob o
governo de Pricles, que lutou no sentido da ampliao da cidadania em direo ao
maior nmero possvel de homens, independente de sua fortuna ou ascendncia, e
cujas reformas incluam o sorteio para a designao de magistrados, o acesso aos
mais pobres s funes pblicas, dentre outras5.
3 Ibid., 2003. p. 1.4 Mais precisamente da Cidade-Estado de Atenas.5 MELLO, Leonel Itaussu A.; COSTA, Lus Csar Amad. Histria antiga e medieval: da comunidadeprimitiva ao estado moderno. 4. ed. So Paulo: Scipione, 2001. Obra indicada para consulta aosaspectos histricos da Grcia antiga. Ver tambm HELD, David. Modelos de democracia. Traduode Alexandre Sobreira Martins. Belo Horizonte: Paidia, [s.d].
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Moses Finley observa que, para a adequada compreenso da democracia
ateniense, ho de ser destacados quatro pontos fundamentais6. O primeiro refere-se
ao fato de que a democracia ateniense pressupunha a participao direta dos seus
cidados7, os quais debatiam as questes que lhes eram apresentadas mediante
discusses livres, o que era garantido pelo direito igualitrio de falar em assemblia(isegoria).
O segundo ponto recai no aspecto do espao restrito da Cidade-Estado
grega. Um grande nmero de pessoas inviabilizaria a administrao do Estado, at
pelas dificuldades inerentes organizao necessria para a discusso dos
assuntos. De fato, a votao em Assemblia ver-se-ia comprometida. Alm disso, o
conhecimento pessoal que muitos dos cidados reunidos tinham uns com os outros
e o fato de a votao se realizar em um comcio, reforava os laos de cidadania e
enriquecia a experincia poltica, o que se tornava possvel graas limitao
espacial da Cidade-Estado.
O terceiro ponto a ser ressaltado a existncia de uma Assemblia, a qual
possua o poder quase absoluto no que se refere s decises polticas. Na prtica,
havia poucas limitaes, cabendo ser ressaltado que, formalmente, era permitido
recorrer das decises da Assemblia para os tribunais. Para Finley, a Assemblia,enfim, no era nada alm de um comcio ao ar livre, na colina chamada Pnyx8,
podendo comparecer todos os cidados que desejassem (ou pudessem) e onde as
questes postas em discusso eram debatidas, votadas e decididas (por maioria
simples dos presentes) em um nico dia. David Held destaca que
o conjunto de cidados, como um todo, formavam o corpo soberano deAtenas: a Assemblia. A Assemblia se reunia mais de 40 vezes por ano e
tinha um quorum de 6.000 cidados (o nmero mnimo de pessoas cujapresena era requerida para a execuo adequada ou vlida dastransaes). Todas as questes mais importantes, tais como a estruturalegal para a manuteno da ordem pblica, as finanas e a taxao direta, oostracismo, os assuntos estrangeiros (inclusive a avaliao do desempenhodo exrcito e da marinha, a formao de alianas, a declarao de guerra, aconcluso da paz), eram levadas ante os cidados reunidos em assemblia
6 FINLEY, Moses. Democracia antiga e moderna. Traduo de Walda Barcellos e Sandra Bedran.Reviso de Neyde Theml. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 65-70.7 A questo acerca da cidadania ser analisada mais adiante.8 FINLEY, Moses, op. cit., 1988. p. 66.
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para debate e deciso. A Assemblia decidia os compromissos polticos doestado ateniense.9
Dessa forma, a Assemblia era composta por cidados, homens atenienses
com mais de 18 anos, que, por seu turno, eram divididos em cerca de 100 demes,
uma espcie de governo local, e ocorriam, conforme exposto acima, no mnimo 40
sesses por ano, com quorum de 6.000 cidados. Em virtude do tamanho da
Assemblia, havia o Conselho de 500, composto por homens de mais de 30 anos,
que era responsvel pela organizao e proposta das decises pblicas, o qual, por
seu turno, era auxiliado pelo Comit de 50, constitudo por membros do Conselho,
no sistema de rotatividade, e cujo Presidente somente podia responder pelo cargo
por um dia. Ao Comit cabia orientar e fazer propostas ao Conselho10.
O quarto ponto recai nos aspectos comportamentais da democracia ateniense
(comportamento de massa). Vale lembrar que a Assemblia era formada por
cidados do sexo masculino que, ao completar 18 anos, estavam qualificados, de
maneira automtica, a participar da Assemblia, sendo, ao tempo de Pricles, cerca
de 40 mil os cidados qualificados11. No entanto, pode-se supor que a Assemblia,
salvo ocasies especiais, era formada principalmente pelos habitantes da cidade, j
que para a populao rural comparecer s reunies havia a necessidade de
empreender viagens constantes. Outro aspecto a ser destacado a de que cada
reunio da Assemblia possua uma composio diferente, o que implicava em uma
certa imprevisibilidade das decises a serem tomadas. Cada reunio tambm era
completa, ou seja, a proposta era apresentada, debatida, aprovada ou rejeitada em
uma s sesso, portanto, com restrio de tempo. Todos esses aspectos geravam
certa presso com reflexos nas decises adotadas pela Assemblia.
9 HELD, David, op. cit., [s.d.]. p. 20.10 Baseado no modelo apresentado por HELD, David, op. cit., [s.d.]. Ressalte-se, ainda, a existnciados Magistrados, a quem cabia as funes executivas da cidade, ocupado por uma mesa de 10; dasCortes, grandes jris populares compostos por mais de 201 cidados, bem como 10 generaismilitares, vinculados Assemblia e ao Conselho de 500. Sobre a estrutura e organizao dademocracia atenienese ver tambm FINLEY, Moses, op. cit., 1988.11 Estavam excludos: 1) aqueles que, apesar de nascidos em solo ateniense, e descendentes devrias geraes que l se estabeleceram, possuam ascendncia estrangeira; 2) as mulheres; e 3) osescravos (grupo mais numeroso).
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Ainda sobre o assunto, observa Finley que, apesar de os membros da
Assemblia no se encontrarem sob as formas de controle da atualidade, tais como
a eleio de seus membros e a conseqente avaliao popular no sentido da
aprovao ou desaprovao de suas atuaes, tambm eles sofriam pressespsicolgicas (tradies da poca, influncias familiares e sociais, seus prprios
valores, preconceitos e sentimentos), com base nas quais debatiam e decidiam.
Alm disso, votavam diretamente em um grande comcio, onde vrios membros se
conheciam pessoalmente, em curtos intervalos e sobre questes da maior relevncia
para sua vida.
David Held apresenta quadro resumo da democracia clssica no qual destaca
suas principais caractersticas, apontando como princpio justificadora faculdade
de os cidados gozar de igualdade poltica para que fossem livres para governar e
serem governados12; como condies gerais a existncia da pequena Cidade-
Estado, a economia que se baseava na escravido, a qual criava tempo livre para os
cidados se dedicarem a questes polticas, a dedicao feminina ao servio
domstico, que tambm liberava os homens para os deveres polticos, bem como a
restrio da cidadania a um nmero limitado de indivduos; e, finalmente, como
aspectos-chave:
A participao direta dos cidados em funes legislativasA assemblia dos cidados tinha poder soberanoA esfera de ao do poder soberano inclua todos os assuntos comuns dacidadeMltiplos mtodos de seleo de candidatos para cargos pblicos (eleiodireta, sorteio, rotatividade)No haviam distines de privilgios para diferenciar cidados ordinrios defuncionrios pblicos [sic]Com a exceo de posies conectadas com a guerra, o mesmo cargo no
podia ser ocupado duas vezes pelo mesmo indivduoMandatos curtos para todos os cargos pblicosPagamentos por servios pblicos13
12 HELD, David, op. cit., [s.d.]. p. 32.13 HELD, David, op. cit., [s.d.]. p. 32. O pagamento por servios pblicos, apesar de no abordado nocorpo do trabalho, corresponde remunerao aos mais pobres como forma de compensao pelaperda que teriam em seus rendimentos ao exercerem alguma funo pblica. Institudo por Pricles,era uma maneira de ampliar a cidadania, bem como estimular e garantir a participao do maiornmero de cidados possvel nos assuntos polticos do Estado, conforme GOYARD-FABRE, Simone,op. cit., 2003. p. 47.
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Simone Goyard-Fabre observa que a idia-fora da democracia ateniense
encontrava-se ancorada no trinmio constituio (politia), de tamanha importncia
que chegava a designar, como indica Aristteles, a prpria poltica da Cidade-
Estado14; lei (nomos), vinculada idia de legalidade, era no s o instrumento
para a garantia da ordem na Cidade-Estado, como tambm o smbolo de umapoltica na qual o engajamento do povo o caminho para a liberdade que, mais
tarde e com razo, ser chamada de autonomia15; e a cidadania, indispensvel
para a democracia, enquanto poder do povo.
Fixadas as principais caractersticas, importa estabelecer o significado da
democracia, para a realidade da poca, o qual pode ser encontrado precisamente
em seu ncleo fundamental: governo do povo, ou poder do povo. Nesse sentido,
cabe distinguir a multido (plethos), ou massa de pessoas que, nem belas nem
boas [...] formam uma multido cega e insensata geralmente alvo de desprezo,do
povo (demos), que, como reconhecia Pricles, era capaz de escolhas racionais,
mesmo que em muitas ocasies caia na irresponsabilidade cedendo quer clera e
aos arroubos, quer apatia e indiferena16.
Mas o povo a que se refere o ncleo da democracia encontrava-se vinculado
noo de cidadania, que, passaporte para o exerccio do poder, somente erareconhecida aos homens maiores de 18 anos (idade legal), sendo, portanto,
excludos os escravos, as mulheres e os estrangeiros (metecos)17. Sobre a questo,
Anderson SantAna Pedra destaca que
no se tratava, aquela experincia grega, de uma democracia universal,como deveria ser a democracia participativa que se julga ideal [...] ademocracia direta da polis compreendia uma forma de representao, poisessa minoria de eleitos legislava, governava e decidia em nome de todos
os habitantes, das mulheres, das crianas, dos imigrantes e dos escravos.18
14 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 42.15 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 52.16 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 46.17 Para Aristteles, at mesmo os pobres deveriam estar excludos do rol de cidados, por nopossurem a virtude cvica, pois ela supe um homem no apenas livre, mas cuja existncia no ofaa precisar dedicar-se aos trabalhos servis. ARISTTELES. A poltica. Traduo de Roberto LealFerreira. So Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 39.18 PEDRA, Anderson SantAna. Na defesa de uma democracia participativa. Frum Administrativo:Direito Pblico, Belo Horizonte, v. 3, n. 34, p. 3210-3215, dez. 2003, p. 3212.
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Contudo, a restrio acerca do exerccio da cidadania no afasta o carter
democrtico daquela experincia, j que a cidadania era exercida no em razo de
posses ou de ascendncia nobre; o voto de um general, de um rico comerciante ou
de um arteso possua o mesmo valor19, pois
os camponeses, comerciantes e artesos [...] eram cidados lado a ladocom os instrudos das classes mais altas. A integrao de tais pessoas nacomunidade poltica, como membros participantes, novidade estarrecedorapara a poca e raramente repetida da por diante, resgata parte daimportncia da democracia antiga, por assim dizer.20
Em decorrncia do empenho de Pricles foi, alis, que a idia da cidadania
transcendeu as prerrogativas aristocrticas at alcanar um maior nmero de
homens, pois sua
idia de democracia implicava um senso rigoroso do ofcio de cidado, noimportando a fortuna de que cada qual desfrutasse [...] Sob a influncia dePricles, o povo, reconhecido como psicologicamente apto a exercerdiretamente a soberania, constituiu o pilar da vida pblica. A promoojurdica dos cidados desenvolveu neles sentimentos de honra e orgulho. 21
Para Aristteles, no a residncia que distingue o cidado dos demais
habitantes da cidade escravos, estrangeiros, mulheres, crianas e idosos, pois
todos residem na Cidade-Estado , nem mesmo o direito de demandar causas na
justia, mas sim o direito de votar nas Assemblias e de participao no exerccio
do poder pblico em sua ptria22, e como o cidado no o mesmo em todas as
formas de governo23, faz-se necessrio, principalmente na democracia,
19 GONDIM, Linda Maria de Pontes; LIMA, Martnio MontAlverne Barreto; MOREIRA, Sandra MaraVale. Democracia, tecnocracia e poltica: Encontros e desencontros na elaborao do plano diretorparticipativo. Interesse Pblico, Porto Alegre: Nota Dez, ano 7, n. 35, p. 269-289, jan./fev. 2006.20 FINLEY, Moses, op. cit., 1988. p. 29.21 FINLEY, Moses, op. cit., 1988. p. 46-47.22 ARISTTELES, op. cit., 1991. p. 36.23 Aristteles distingue trs formas de governo, pelo critrio numrico, que considera justas:monarquia, aristocracia e repblica, as quais podem, respectivamente, degenerar para tirania,oligarquia e democracia (injustas). Para o filsofo, a democracia no a melhor forma de governo, jque h o risco do governo do povo se transformar no governo dos pobres, ou nos interesses dospobres, que so sempre maioria, em detrimento da obedincia lei, pois [...] o povo, tendo sacudidoo jugo da lei, quer governar s e se torna dspota. Seu governo no difere em nada da tirania [...]tudo governado pelos decretos do dia, no sendo ento nem universal nem perptua nenhumamedida.ARISTTELES, op. cit., 1991. p. 110-111. No s Aristteles, mas tambm Plato, em ARepblica, enderea crticas democracia (reconhecendo, da mesma forma, a aristocracia,timocracia ou timarquia e a oligarquia), por entender que aos filsofos, e no ao povo, caberia oexerccio do governo, pois que, conhecendo a Verdade, se encontrariam em melhores condies degovernar o Estado (Livro VI): Como estabelecemos que so filsofos aqueles que podem chegar ao
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procurar aquele de que falamos [o povo], no que ele no possa serencontrado tambm nos outros Estados, mas neles no se achanecessariamente. Em alguns deles, o povo no nada. No h Assembliageral, pelo menos ordinria, mas simples convocaes extraordinrias.Tudo se decide pelos diversos magistrados, segundo suas atribuies...........................................................................................................................
cidado aquele que, no pas em que reside, admitido na jurisdio e nadeliberao.24
Alm disso, a cidadania se encontrava vinculada idia do esprito cvico,
considerado ento como fonte da dignidade e da fora de um povo 25, com bases
que se assentavam na educao, ou paidia, cujo sentido se aproximava da
formao ou criao, e significava o desenvolvimento das virtudes morais, do
sentido de responsabilidade cvica, de identificao madura com a comunidade,suas tradies e valores26, sendo
as instituies fundamentais da comunidade a famlia, o clube em que sereuniam para comer, o ginsio, a Assemblia agentes naturais deeducao. Um jovem se educava comparecendo Assemblia; ele aprendiano necessariamente o tamanho da ilha da Siclia (uma questo puramentetcnica, como tanto Protgoras quanto Scrates considerariam), mas asquestes polticas que Atenas enfrentava, as escolhas, os debates eaprendia a avaliar os homens que se apresentavam como polticosatuantes, como lderes.27
A virtude cvica significava a
dedicao cidade-estado republicana e subordinao da vida privada aosassuntos pblicos e ao bem comum [...] os seres humanos s poderiam serealizar adequadamente e viver honradamente como cidados na e pormeio da polis, pois a tica e a poltica estavam fundidas na vida emcomunidade.28
conhecimento do imutvel, ao passo que os que no podem, mas erram na multiplicidade de objetos
variveis, no so filsofos, cumpre-nos ver a quem escolheramos para governar o Estado. [...] Masa deciso est tomada e afirmo que os melhores magistrados do Estado devem ser os filsofos [...] esero reconhecidos como soberanos os que se revelarem os melhores como filsofos e comoguerreiros. PLATO. A repblica. Traduo de Enrico Corvisieri. So Paulo: Nova Cultural, 2000. p.191-213-257. Alm disso, a diversidade de homens que podem ser encontrados na democraciaimpossibilita uma unidade de liderana, o que acaba por comprometer a sua eficcia. PLATO, op.cit., 2000, Livro VIII.24 ARISTTELES, op. cit., 1991. p. 37.25 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 21.26 FINLEY, Moses, op. cit. 1988. p. 42.27 FINLEY, Moses, op. cit. 1988. p. 42.28HELD, David, op. cit., [s.d.]. p. 17.
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A Cidade-Estado encontrava-se em posio de primazia, tendo em vista a
noo de que de sua fora e unidade decorria tambm a fora e unidade da
sociedade, da a vida do cidado ateniense gravitar em torno dela. Votar na
assemblia do povo (eclsia) representava um dever29 para os cidados, que o
cumpriam mediante uma elaborada rede organizativa, criada para gerir a vidapblica.30
Portanto, referir-se democracia, na poca da Grcia clssica, implicava
abordar questes polticas do Estado, pois que dizia respeito forma de governo, na
qual aos cidados, homens com mais de 18 anos, era permitido o exerccio do
governo, atravs da participao em Assemblia. O adjetivo democrtico, assim,
remetia esfera poltica da vida pblica.
Aps o declnio da antiga democracia31, verificou-se um longo silncio sobre o
tema, em virtude das caractersticas das civilizaes que se seguiram, pois tanto a
Repblica Romana, de feio oligrquica, como a organizao social e poltica da
poca medieval no favoreciam a discusso da temtica. Somente a partir do sculo
XVIII, a idia e os debates foram retomados, na esteira das alteraes sociopolticas
da poca, notadamente com o advento do liberalismo e da democracia
representativa, assuntos do prximo item.
1.2 A democracia representativa a partir do Estado Liberal
O sistema representativo poltico surgiu com o advento do Estado Moderno32,
sendo na Inglaterra do sculo XVII que o termo representao pela primeira vez
29 No um dever no sentido sancionatrio, mas no sentido tico, de dever moral enquanto cidado.30 A estrutura e organizao da democracia atenienese j foi referida no corpo do trabalho. Para ummaior aprofundamento ver FINLEY, Moses, op. cit., 1988; e HELD, David, op. cit., [s.d.].31 Para os fins do presente trabalho, no cabe aprofundar os motivos do declnio da antigademocracia ateniense, bastando, para registro, fixar a ambigidade entre os princpios democrticosadotados para o exerccio poltico interno e a ndole imperialista da poltica externa, bem como,causa direta de seu esfacelamento, a participao na Guerra do Peloponeso, onde enfrentou aCidade-Estado de Esparta, saindo derrotada, o que tambm representou o incio decadncia daantiga Grcia, dando lugar a uma nova era, a da supremacia Macednia. Para maior aprofundamentover MELLO, Leonel Itaussu A; COSTA, Lus Csar Amad, op. cit., 2001.32 Cabe ressaltar que a representao poltica encontra suas origens na Idade Mdia, com o sistemarepresentativo adotado pela ordens religiosas da Igreja Catlica. OLIVEIRA, Charles Soares de. Arepresentao poltica ao longo da histria. Braslia: Positiva/Conselho de Reitores dasUniversidades Brasileiras, 2000. p. 16.
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empregado com conotao parlamentar de ter o direito ou a autoridade para agir
politicamente em lugar do outro33. Atravs de vrios documentos e legislaes34, o
poder absoluto na Inglaterra foi gradativamente sofrendo limitaes at o
surgimento da pedra basilar da representao poltica moderna a monarquia
constitucional inglesa verdadeira fonte de inspirao ideolgica para asdemocracias liberais da Europa e Amrica35.
Mas foi a partir do surgimento do Estado Liberal que a democracia
representativa expandiu-se, sendo precedida de mudanas que possibilitaram a
transformao no apenas da organizao poltica do Estado, mas tambm da
organizao social e da mentalidade da poca. No sculo XVIII, em reao ao
Estado governado sob o manto da monarquia absolutista, comearam algumas
vozes a se insurgir contra o poder ilimitado de ento, tendo se organizado sob a
bandeira da liberdade, a qual foi entendida como a autoderteminao do indivduo
para gerir o prprio destino, sem a interferncia ou com o mnimo de interferncia
estatal. Era o surgimento do Estado mnimo em contraposio ao Estado mximo
absolutista.
1.2.1 Contexto precursor da democracia representativa: O liberalismo
A existncia do poder, para o povo de um modo geral, encontrava-se
associada a um Estado marcado pelos privilgios exagerados da nobreza que
gravitava em torno do rei, pelo descaso no que se refere s necessidades do povo,
pela profunda desigualdade social, bem como pela fora, abuso e opresso dos
mais pobres. Para a incipiente classe burguesa, a idia do poder no antigo regime
representava o controle de seus interesses que se encontravam limitados pelas
barreiras estatais que lhe eram impostas, mediante a cobrana de pesados impostos
33 JOBIM, Leopoldo Collor. Absolutismo e governo representativo: Silvestre Pinheiro Ferreira e osistema constitucional no Brasil e em Portugal. Braslia: Cmara dos Deputados/Coordenao dePublicaes, 1991. (Programa de Apoio Pesquisa na rea de Cincias Polticas e Sociais).34 Podem ser citadas, alm da Magna Carta Inglesa de 1215, a Petio de Direitos de 1628 e aDeclarao de Direitos de 1688. OLIVEIRA, Charles Soares de, op. cit., 2000. Para os dadoshistricos sobre a origem da representao poltica, consultar tambm JOBIM, Leopoldo Collor, op.cit., 1991.35 OLIVEIRA, Charles Soares de, op. cit.., 2000. p. 18.
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e pela (boa ou m) vontade do rei para a expanso de seus negcios. No se deve
estranhar que, nessas condies, o discurso da liberdade plena (a entendida como
liberdade individual) fosse extremamente sedutor e convincente e, assim, a estrutura
apresentada para suceder antiga ordem visava principalmente liberdade,
enquanto garantia dos direitos dos indivduos contra o Estado.
Por trs da agitao contra o Estado vigente, encontrava-se a burguesia,
classe que, a despeito da riqueza acumulada, encontrava-se alijada do poder e
prestgio que cabiam apenas nobreza. O povo, descontente por ter que sustentar o
sistema de privilgios, e oprimido, por no lhe ser permitido nem mesmo protestar,
apresentava-se como aliado natural do processo revolucionrio. Esse embate de
foras entre burguesia/povo e nobreza absolutista terminou por culminar naRevoluo Francesa de 1789, com a vitria da classe burguesa e o surgimento do
Estado liberal.
A Revoluo Francesa representou o marco da nova postura do homem frente
aos outros homens, sociedade e ao Estado, permanecendo o lema liberdade,
igualdade e fraternidade, ao longo do tempo, como inspirao para os ideais de
construo de uma sociedade mais justa e da convivncia pacfica entre os homens.
Com ela veio a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, o que, por si,
j indica a importncia deste fato na histria, pois, ao prever que os homens nascem
e permanecem livres e iguais em direitos (artigo 1), estabeleceu princpios
fundamentais que ainda hoje servem de parmetro para as modernas constituies.
Muito embora se possa argumentar que a liberdade e a igualdade preconizadas pela
Revoluo possuam carter meramente formal, tambm no se pode negar a
importncia de tais valores na construo do processo de elevao humanstica, o
qual, uma vez iniciado, no podia mais ser contido e no admitia retrocesso. Este o
aspecto permanente da Revoluo de 1789.
Mas a Revoluo Francesa no se limitou apenas a gerar a Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado, com todo o simbolismo que ela representa. O
Estado liberal, outro de seus frutos, foi decorrente do processo de franco
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antagonismo com a ordem anterior, e a nova ordem por ele estabelecida previa a
interveno mnima na vida privada dos indivduos e a conteno do Estado atravs
da lei, pois todos, igualmente, sem privilgios, lhes deviam observncia, a fim de que
restassem preservadas a liberdade e a propriedade privada.
Mas, se por um lado a burguesia formulou os princpios filosficos e os ideais
revolucionrios, nos quais se pregavam a liberdade e proteo contra os abusos do
Estado, por outro no possua interesse de realmente efetiv-los, mantendo-os
apenas no patamar formal, pois a
burguesia, classe dominada, a princpio e, em seguida, classe dominante,formulou os princpios filosficos de sua revolta social.E, tanto antes como depois, nada mais fez do que generaliz-los
doutrinariamente como ideais comuns a todos os componentes do corposocial. Mas, no momento em que se apodera do controle poltico dasociedade, a burguesia j no se interessa em manter na prtica auniversalidade daqueles princpios, como apangio de todos os homens. Sde maneira formal os sustenta, uma vez que no plano de aplicao polticaeles se conservam, de fato, princpios de uma ideologia de classe. [...] Fez,pretensiosamente, da doutrina de uma classe a doutrina de todas asclasses.36
1.2.2 A separao de poderes e o Estado liberal
Bobbio entende o liberalismo como uma determinada concepo de Estado,
na qual o Estado tem poderes e funes limitadas37, devendo se imiscuir o menos
possvel na esfera individual. Relativamente limitao do Estado na teoria liberal, o
mesmo autor destaca dois aspectos importantes, quais sejam, um referente aos
limites dos poderese outro aos limites das funes do Estado, observando que
ambos se encontram presentes no Estado liberal, sem a obrigatoriedade de
concomitncia. No que se refere aos limites de poderes, o Estado de direito a
noo utilizada para sua representao, e quanto limitao de funes, arepresentao utilizada a do Estado mnimo38.
36 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6. ed. rev. e ampl. So Paulo:Malheiros, 1996. p 42.37 BOBBIO, Norberto.Liberalismo e democracia. Traduo de Marco Aurlio Nogueira. 3. ed. SoPaulo: Brasiliense, 1990. p. 7.38 Por Estado de direito, entende o autor, um Estado em que os poderes pblicos so regulados pornormas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no mbito das leis queos regulam. Ibid., 1990. p. 18. Quanto ao Estado mnimo (com poderes e funes limitados), Bobbioo contrape ao Estado mximo (absolutismo).
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Paulo Bonavides alerta que O Esprito das Leis, de Montesquieu, e O
Contrado Social, de Rousseau, foram as obras mais influentes e clssicas na
elaborao da doutrina do velho liberalismo e sua ideologia de mutao das bases
sociais em proveito da nova classe dominante39
(grifos originais).
A teoria da separao de poderes foi fundamental para o estabelecimento do
Estado liberal. Na doutrina de Montesquieu, os liberais encontraram o amparo
terico de que precisavam para fundamentar a nova maneira de organizar o poder e
para a proteo dos direitos de liberdade ento preconizados, tendo funcionado
como garantia de controle do poder estatal e tcnica acauteladora dos direitos do
indivduo perante o organismo estatal40. No momento em que se procedia diviso
dos poderes estatais, estar-se-ia a evitar a concentrao do poder nas mos de um
s.
Baseando-se na constituio da Inglaterra, Montesquieu identificou, no Estado,
trs espcies de poderes41: o legislativo, mediante o qual o prncipe ou magistrado
elabora leis, as corrige ou ab-roga aquelas que j existem; o executivo das coisas
que dependem do direito das gentes (poder executivo do Estado), atravs do qual
declarada a paz ou a guerra, bem como so tratadas as questes externas e ocuidado com a segurana; e, por fim, o executivo das coisas que dependem do
direito civil (poder de julgar), pelo qual o Estado pune os criminosos e julga as
questes privadas.
39 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direitoconstitucional de luta e resistncia, por uma nova hermenutica, por uma repolitizao dalegitimidade. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 29.40 Ibid., 1996. p. 4541 MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de. Do esprito das leis. Traduo publicada soblicena de Difuso Europia do Livro. So Paulo: Abril, 1973. p 156. (Coleo os Pensadores). Antesde Montesquieu, Locke j havia trabalhado a questo da separao de poderes, distinguindo trspoderes: o legislativo, o executivo e o federativo. O primeiro, poder legislativo, aquele que tem odireito de fixar as diretrizes de como a fora da sociedade poltica ser empregada para preserv-la ea seus membros. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Traduo de Jlio Fischer. SoPaulo: Martins Fontes, 1998. p. 514. Ao poder executivo cabia zelar pela execuo das leis vigentesde maneira constante e duradoura, sendo este o motivo pelo qual devem ser separados os podereslegislativo e executivo. O federativo detm o poder de guerra e paz, da formao de alianas etransaes relativas poltica externa. Contudo, em Montesquieu o princpio encontrou suaformulao mais acabada e que ia ao encontro dos interesses do liberalismo.
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Para ele, revelava-se temerria a concentrao dos trs poderes nas mos de
uma s pessoa, pois quando o poder legislativo se encontra ligado ao executivo,
corre-se o risco de o monarca ou mesmo o senado estabelecer leis tirnicas que
seriam executadas tiranicamente; da mesma forma, se o juiz fosse legislador, o
poder sobre a vida e a liberdade dos cidados seria arbitrrio, e, se exercesse opoder executivo, teria a fora de um opressor.
O poder legislativo seria composto tanto pela nobreza quanto pelo corpo
escolhido para representar o povo, cada qual com suas assemblias e deliberaes
parte e objetivos e interesses separados42. O poder executivo deveria permanecer
nas mos de um monarca, tendo em vista que esta parte do governo seria melhor
administrada por um s do que por vrios, principalmente pela agilidade que suas
aes reclamam para o exerccio das atribuies que lhe cabem. O poder de julgar,
por sua vez, deveria ser exercido por pessoas do povo, durante certo perodo do
ano, conforme disposio da lei, cujo tribunal assim formado tenha apenas a
durao necessria. Desta forma, tal poder, sem se encontrar ligado a uma profisso
ou interesses, tornar-se-ia invisvel e nulo. Apesar de os tribunais no poderem ser
fixos, os julgamentos o devem ser, na medida que exprimem exatamente o texto da
lei43.
Ainda sobre o assunto, o autor resume da seguinte forma a relao entre os
trs poderes:
Eis, assim, a constituio fundamental do governo de que falamos. O corpolegislativo sendo composto de duas partes, uma paralisar a outra por suamtua faculdade de impedir. Todas as duas sero paralisadas pelo poderexecutivo, que o ser, por sua vez, pelo poder legislativo.Esses trs poderes deveriam formar uma pausa ou na inao. Mas como,pelo movimento necessrio das coisas, eles so obrigados a caminhar,
sero forados a caminhar de acordo.44
Paulo Bonavides observa que, assim, a teoria da separao de poderes,
conforme formulada por Montesquieu, foi a soluo mais adequada para o novo
programa poltico da classe burguesa, que iria passar condio hegemnica do
42 MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de, op. cit., 1973. p.159.43 MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de, op. cit., 1973. p. 157-158.44 MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de, op. cit., 1973. p. 161.
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poder na Europa do sculo XIX, pois se por um lado empreendia combate ao antigo
regime absolutista por meio da diviso e controle do poder, por outro no possua
interesse em transferi-lo ao povo45.
Mas, como bem adverte o referido autor, havia um aspecto contraditrio dafundamentao da teoria constitucional da Revoluo, que buscou suporte tanto nas
idias de Rousseau quanto na de Montesquieu46. De fato, Rousseau, ao formular a
doutrina do contrato social47, no procurou conter a soberania por meio da
separao do poder, at por entend-la inalienvel e indivisvel, pois que exerccio
da vontade geral, no podendo esta ser parcelada sob o risco da perda de seu
carter geral. A formulao de Rousseau, ao contrrio, procede transferncia do
poder, intacto, do rei ao povo48. Cabe, na oportunidade, ressaltar que a vontade
geral no se reduz soma das vontades individuais, pois para Rousseau significava
aquela que traduzisse o que h de comum em todas as vontades individuais, ou
seja, o substrato coletivo das conscincias49 (grifo original), sendo exclusivamente
nessa condio coletiva que pode a vontade geral exprimir-se.
No entanto, a ideologia revolucionria da burguesia soube, porm, encobrir o
aspecto contraditrio dos dois princpios e, mediante sua vinculao, construiu a
engenhosa teoria do Estado liberal-democrtico50.
45 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 1996. p. 70.46 BONAVIDES, Paulo, op. cit., 1996. p. 42-43.47 J no incio do Contrato Social, Rousseau deixa claro a que se prope: estabelecer o que explica,ou legitima, o fato de os homens abrirem mo da liberdade que desfrutavam no estado natural paraconstiturem a sociedade poltica. Parte, ento, da suposio de que os homens, no conseguindomais manter as condies sua sobrevivncia no estado natural e no possuindo outra alternativa,passam a unir foras para conservarem-se, o que somente pode ocorrer mediante um acordo entretodos. O fato de entregarem-se completamente comunidade, torna a condio igual para todos,motivo pelo qual no interessaria a ningum torn-la mais onerosa aos demais. Segundo Rousseaucoloca a questo: Encontrar uma forma de associao que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associado com toda a fora comum e pela qual cada um, unindo-se a todos, s obedececontudo a si mesmo, permanecendo assim to livre quanto antes. Esse o problema fundamental cujasoluo o contrato social oferece. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Traduo deLourdes Santos Machado. 3. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p.32. (Coleo Os Pensadores).48 Ibid., 1983, p. 51. O poder soberano, entretanto, deve respeitar os limites impostos pelasconvenes gerais, podendo todo homem dispor plenamente do que lhe foi deixado, por essasconvenes, de seus bens e de sua liberdade, de sorte que o soberano jamais tem o direito de onerarmais a um cidado que a outro, porque, ento, tornando-se particular a questo, seu poder no mais competente. Ibid., 1983. p. 50-51.49 Consoante nota 88 da tradutora, Lourdes Santos Machado, ao Cap. I, Livro Segundo, em Ibid.,1983. p. 44.50BONAVIDES, Paulo, op. cit., 1996. p. 52.
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1.2.3 O Estado Liberal-Democrtico
Inicialmente, como coloca Paulo Bonavides, no Estado liberal, ao econmico
cabia indicar o rumo para o poltico, mas tal equilbrio posteriormente se v rompido,pois a prepoderncia da liberdade j no servia mais aos anseios do povo; a
igualdade, agora, se fazia to premente quanto aquela. E assim, do
princpio liberal chega-se ao princpio democrtico.Do governo de uma classe, ao governo de todas as classes.E essa idia se agita, sobretudo, com invencvel mpeto, rumo ao sufrgiouniversal.A burguesia enunciava e defendia o princpio da representao. Masrepresentao, a meio caminho, embaraada por estorvos, privilgios,
discriminaes.51
A construo da democracia moderna estava apenas dando os seus primeiros
(e hesitantes) passos, mas mesmo diante das limitaes impostas, no se pode
negar o avano alcanado em direo sua ampliao atravs da luta pelo sufrgio
universal.
Se de incio a burguesia apenas tencionava o estabelecimento de um novo
Estado que viesse ao encontro de seus interesses, no teve como, depois, conter os
rumos que foram tomando os acontecimentos. Com o advento da Revoluo
Francesa e os ideais que ela disseminou, no havia mais como manter o povo
totalmente margem do poder. Concesses precisavam ser feitas e o sistema
representativo, por suas caractersticas, se apresentava como a melhor alternativa,
j que o processo de eleio admitia algumas cautelas que pudessem garantir o
controle do Estado pela burguesia, ao mesmo tempo em que apresentava uma
feio democrtica, muito embora aparente. O processo de maturao do sufrgiolimitado ao sufrgio universal foi lento e precedido da luta dos indivduos para se
tornarem cidados.
Vale lembrar que, nesse contexto, entremeando a noo de democracia
representativa, se encontravam presentes os princpios bsicos do liberalismo:
51BONAVIDES, Paulo, op. cit., 1996. p. 43.
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igualdade (formal), liberdade individual (em relao ao Estado), propriedade privada,
liberdade de mercado, no interveno do Estado e predomnio da lei (todos,
inclusive o Estado, deveriam se submeter s leis). Mas, ressalte-se, a democracia
no se constitua em um objetivo fundamental do liberalismo, pois, consoante
observa Bobbio, um
Estado liberal no necessariamente democrtico: ao contrrio, realiza-sehistoricamente em sociedades nas quais a participao no governo bastante restrita, limitada s classes possuidoras. Um governo democrticono d vida necessariamente a um Estado liberal: ao contrrio, o Estadoliberal clssico foi posto em crise pelo progressivo processo dedemocratizao produzido pela gradual ampliao do sufrgio at osufrgio universal.52
Para Kelsen, a democracia moderna ou liberal apenas um tipo especial de
democracia, j que os princpios democrtico e liberal no significam a mesma coisa.
No princpio da democracia, o poder do povo no sofre restries, recaindo a idia
de soberania naquela formulada na Declarao Francesa do Homem e do Cidado,
para a qual o princpio de toda soberania reside essencialmente na nao. J
segundo o liberalismo, o ponto fundamental recai na restrio do poder
governamental, qualquer que seja a forma de governo53.
Observa, ainda, o autor, tomando como base o significado original da palavrademocracia demos = povo e kratein = governo ou, em outras palavras, governo do
povo que, tanto na Antigidade como nos dias atuais, esse tipo de governo
almejado por se partir do pressuposto que tambm um governo para o povo, ou
seja, que atuar no interesse do povo, assim, em relao ao
[...]governo do povo[...] O termo designa um governo no qual o povoparticipa direta ou indiretamente, ou seja, um governo exercido pelasdecises majoritrias de uma assemblia popular, ou por um corpo ou
corpos de indivduos, ou at mesmo por um nico indivduo eleito pelopovo[...] Eleies democrticas so aquelas que se fundamentam nosufrgio universal, igualitrio, livre e secreto.54
Ressalte-se que, apesar da defesa de valores, como a liberdade e a igualdade,
que se constituram em fundamento para a nova forma de vida social e poltica, tais
52 BOBBIO, Norberto, op. cit., 1990. p. 7-8.53 KELSEN, Hans. A democracia. Traduo de Ivone Castilho Benedetti et al. So Paulo: MartinsFontes, 1993.54 Ibid., 1993. p. 141-142.
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valores, para os liberais, representavam liberdade individual e igualdade apenas
perante a constituio e a lei. Dessa forma, passou a se verificar, cada vez mais, a
existncia de vazio entre a previso formal e a real desigualdade econmica, poltica
e social existente. Na democracia liberal, a participao dos cidados55 na esfera
poltica diz respeito eleio de representantes, encontrando-se ausente aspectosmateriais como a participao do povo nas discusses acerca de questes
essenciais sua realidade.
1.2.4 A democracia representativa
No debate atual acerca da democracia representativa, algumas consideraes
se fazem necessrias. Inicialmente, importa estabelecer que um aspecto
fundamental a todas as democracias, legado da antiga Grcia, permanece at os
dias de hoje: ela h de ser o governo do povo (e para o povo), sendo, portanto,
todos os cidados considerados capazes de intervir na vida poltica do Estado,
porque possuidores de discernimento poltico, muito embora ocupantes de posies
sociais diferentes e graus de instruo variados56.
No entanto, a efetivao de uma democracia direta, moda da antiga Atenas,
com a adoo da sistemtica de discusso e votao dos assuntos pblicos em
Assemblia, se revela impossvel na atualidade, em virtude no s das dimenses
territoriais como tambm do incremento populacional, constituindo-se o sistema
representativo como alternativa para viabilizar a participao poltica dos cidados.
Norberto Bobbio observa que por democracia representativa deve-se entender
a sistemtica na qual as deliberaes de interesse de toda a coletividade so
tomadas por pessoas eleitas para representar o povo e para essa finalidade. Noh, portanto, que se confundir com democracia parlamentar, pois nesta um rgo
central representativo, o parlamento, centraliza as reivindicaes e responsvel
55 Vale lembrar que a participao em eleies, na democracia liberal, inicialmente, no previa osufrgio universal, assim, os analfabetos, os mais pobres (voto censitrio), mulheres e mesmo osescravos, nos pases onde eram utilizados como mo-de-obra, no tinham direito participaopoltica, mesmo esta ocorrendo apenas no aspecto eleitoral (direito ao voto).56 GONDIM, Linda Maria de Pontes; LIMA, Martnio MontAlverne Barreto; MOREIRA, Sandra MaraVale, op. cit., 2006.
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pelas decises coletivas fundamentais, sendo, portanto, o estado representativo,
um estado no qual as principais deliberaes polticas so tomadas por
representantes eleitos, importando pouco se os rgos de deciso so o
parlamento, o presidente da repblica, o parlamento mais os conselhos regionais,
etc57
.
Importa, ento, diferenciar que tipo de representao se estabelece entre o
povo e os eleitos para represent-los. Ressalta Bobbio que a questo pode ser
abordada sob dois enfoques; no primeiro, a representao pode se dar mediante a
instituio de mandato imperativo, limitado e revogvel ad nutum, sendo o papel do
representante o de um delegado ou porta-voz dos representados. No segundo, a
representao pode se dar sem vnculo de mandato, sendo permitido ao
representante agir com certa liberdade em nome dos representados, e, tendo em
vista possuir a confiana dos eleitores, interpretar autonomamente os interesses que
deve defender; nesse caso, a relao que se estabelece de natureza fiduciria.
Alm disso, a representao ainda pode se referir defesa dos interesses gerais do
eleitor enquanto cidado ou relativamente aos seus interesses particulares,
enquanto categoria (estudantil, profissional). Assim,
as democracias representativas que conhecemos so democracias nasquais por representante entende-se uma pessoa que tem duascaractersticas bem estabelecidas: a) na medida em que goza da confianado corpo eleitoral, uma vez eleito no mais responsvel perante osprprios eleitores e seu mandato, portanto, no revogvel; b) no responsvel diretamente perante os seus eleitores exatamente porqueconvocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e no osinteresses particulares desta ou daquela categoria.58
Sobre a temtica, Goffredo Telles Jnior esclarece que Deputados, Senadores
e Vereadores no so titulares de mandato jurdico, na acepo tcnica do termo,
pois que no se acham restringidos pelos interesses individuais de seus eleitores,
no so obrigados a prestar contas de suas decises (em termos de satisfao a
cada representado) e nem mesmo podem ser destitudos. Na verdade, so
cidados eleitos pelo processo do sufrgio universal, para que elaborem as leis
57 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Traduo de MarcoAurlio Nogueira. 4. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989. p.44.58 Ibid., 1989. p. 47.
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mas, note-se, as leis que eles prprios entenderem boas ou teis. So enviados do
eleitorado, sem dvida, mas sem mandato jurdico59(grifos originais).
Nesse sentido, prossegue o autor, seria pertinente falar em representao no
que se refere ao mandato dos parlamentares? Em resposta, a prpria classe polticaargumenta no sentido de que a representao que se estabelece no jurdica
realmente, mas sim poltica, ou seja, o vnculo do parlamentar com seus eleitores
ocorre por meio do programa partidrio60 que se props defender, o que se
assemelharia a um mandato. Alm disso, no que se refere revogao do mandato
parlamentar, embora esta faculdade no seja possvel ao eleitor, a no reeleio
desempenharia tal funo. Para Goffredo Telles Jnior, o que ocorre, na verdade,
uma relao de representao entre parlamentares e eleitorado, porque devem
eles comportar-se como
se a sua misso tivesse a natureza do mandato, cumprindo-lhes cuidar, emconseqncia, no de seus prprios interesses, mas dos interesses dacoletividade. [...] a representao nesse regime a chamadarepresentao poltica uma esperana de representao, um anseio,um ideal.61(grifos originais).
No caso do Brasil, o ato de votar envolve tambm outros aspectos importantes,
cujos reflexos se fazem sentir na qualidade do processo poltico. A fragilidade dos
partidos, muitos servindo apenas de legendas de aluguel para abrigar interesses
pessoais; a prtica da infidelidade partidria, em que se observa o troca-troca de
legendas pelos parlamentares; a personalizao do voto, que recai no nos ideais
programticos, mas em pessoas; a apatia dos eleitores; e a indiferena dos
parlamentares para com os compromissos de campanha, formam um quadro
desanimador do sistema representativo no pas.
59 TELLES JNIOR, Goffredo. A democracia participativa. Revista Latino-americana de EstudosConstitucionais, Belo Horizonte, n. 6, p. 1-20, jul./dez. 2005, p. 2.60 A vinculao dos parlamentares aos programas partidrios como fundamentao da naturezarepresentativa de seu mandato revela-se frgil e contm aspectos problemticos que se encontramno somente no distanciamento das diretrizes partidrias, desconhecimento ou afrouxamento docontedo dos programas em nome de interesses particulares ou da governabilidade, como tambm, eparticularmente no que se refere realidade brasileira, na fragilidade dos partidos polticos e nodescaso pela regra da fidelidade partidria.61 TELLES JNIOR, Goffredo, 2005. p. 4.
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Se a princpio o sistema democrtico representativo tomado no sentido j
exposto, de eleio de representantes para, nesta condio, decidirem acerca de
questes de interesse do povo sofreu com restries de toda ordem (proibio do
voto feminino, voto censitrio em que somente os mais ricos podiam exercer o
direito, excluso dos analfabetos, etc.), aos poucos foi evoluindo at chegar aosufrgio universal. Hoje, a estrutura montada para amparar esse direito poltico
cercada de cuidados e avanos tecnolgicos vide a votao eletrnica adotada
pelo Brasil sendo amplo e garantido o direito ao voto, aspecto mais visvel da
prtica da democracia na atualidade.
Mas, se inegvel que o direito de eleger representantes mediante o sufrgio
universal foi conquista das sociedades precedentes obtida custa de luta e sangue,
e que hoje se constitui em alternativa vivel para o exerccio democrtico, dada as
condies de amplitude territorial e populacional, tambm no se pode negar que a
democracia no se resume ao simples ato de votar. Rousseau j advertia: O povo
ingls pensa ser livre e muito se engana, pois s o durante a eleio dos membros
do parlamento, uma vez estes eleitos, ele escravo, no nada62.
Restringir a essncia da democracia ao ato de votar gerou dilemas que,
paulatinamente, tm revelado sua face: distanciamento dos representantes daquelesque o elegeram; restrio ou inexistncia de canais de comunicao entre o povo e
as instncias de poder; abuso e corrupo pela ausncia de controle efetivo sobre a
classe poltica; enfraquecimento da cidadania, que acredita haver cumprido
integralmente seu dever cvico no momento do voto; apatia do eleitorado.
Tais problemas vm gerando, nos cidados, um sentimento de desencanto
com as questes pblicas, cujas conseqncias so graves para a vivnciademocrtica. Associar poltica falta de compromisso, estender a corrupo dos
polticos s instituies s quais pertencem, generalizar os defeitos do sistema so
atitudes que somente reforam o descrdito das pessoas frente esfera poltica.
62 ROUSSEAU, Jean-Jacques, op. cit., 1983. p. 108.
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Dessa crise vivenciada pela democracia representativa, foram se intensificando
as crticas e exigncias por formas mais efetivas de participao popular nas
decises governamentais. A exigncia por uma democracia participativa, na qual o
povo possa lanar mo de mecanismos ensejadores de uma maior influncia nas
decises do Estado, se faz sentir, atualmente, de maneira bastante incisiva, atporque se a democracia tem que ser, alm de governo do povo, tambm para o
povo, a sua participao imprescindvel.
O ato de votar, apesar de sua importncia, j h algum tempo, deixou de ser
sinnimo de democracia. Os horizontes alargaram-se e a cidadania, hoje, est a
exigir no somente instrumentos formais de atuao poltica, mas tambm
mecanismos diferenciados para o efetivo exerccio de participao democrtica.
1.3 A democracia participativa
A evoluo da democracia atravs do tempo possibilitou outras perspectivas
em sua anlise. Nesse sentido Simone Goyard-Fabre destaca que, desde sua
origem ateniense, a democracia deixou de designar apenas um regime poltico para
se transformar em um modo de vida societrio63, ou seja, tambm o fato social que
caracteriza a potncia ativa do povo no espao pblico64.
Esse o principal aspecto a caracterizar a anlise atual da democracia: o avano
do fato democrtico, j que a noo de democracia, paulatinamente, vai se
ampliando at atingir os diferentes mbitos de atuao do ser humano (trabalho,
economia, educao, etc.).
pelo menos evidente que, nas primeiras dcadas do sculo XIX, a palavrademocracia no serve mais para definir um modo de governo ou o tipoideal de um regime poltico; conota a dinmica que, recusando a idia
63 Da mesma forma, Marilena Chau, ao analisar a democracia como questo sociolgica, enfatizaque o conjunto de critrios polticos e sociais (cidadania e eleies; a existncia de partidos; dedivises sociais e de parlamentos; de opinio pblica como fator de criao da vontade geral, e dalegalidade) configura a democracia como forma de vida social. CHAUI, Marilena . Cultura edemocracia: o discurso competente e outras falas. 11 ed. rev. e ampl. So Paulo: Cortez, 2006. p.148.64 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 197.
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tradicional de hierarquia, introduz na condio social competncias eregulaes novas.65
Josef Thesing possui idntica opinio, j que, para ele, a democracia tambm
uma forma de vida. Um sistema democrtico somente poder funcionar se apoiado
por muitos democratas (ou seus cidados) e, por mais bem elaborada que seja aconstituio de um pas, seus princpios dignificantes somente podero surtir algum
efeito se ela for vivida, exercida por seus cidados, aspecto fundamental para a
eficincia do sistema democrtico. As pessoas no nascem democratas, esta uma
condio que se aprende com o exerccio cotidiano da prtica cidad e, nesse
sentido,
[...] la educacin poltica se constituye un recurso especialmente idneo para transmitir un saber sobre la democracia. Ella deve capacitar a losciudadanos para la accin poltica a fin de que ellos puedan actuar como
protagonistas de la democracia. As surge la democracia como forma devida.66
Destacar o aspecto da estreita vinculao entre democracia e cidadania implica
o reconhecimento da dimenso humana do processo democrtico. Nessa
perspectiva, Simone Goyard-Fabre destaca, ao enfocar a natureza humana da
democracia, que as
ameaas endmicas que pesam sobre ela [democracia] refletem afragilidade essencial da natureza humana na qual coexistemdesconfortavelmente razo e paixo [...] Obra humana a ser semprerepensada e recomeada, ela remete a condio humana, diante de todahistria, a seu sentido mais profundo e mais perturbador: sempre imperfeita,essa grande aventura humana um fardo pesado de se carregar. 67
A luta pela democracia realmente no fcil, pois enquanto empreendimento
tocado por homens, no pode deixar de refletir as notas contraditrias da prpria
natureza humana, onde coexistem solidariedade e indiferena, generosidade eindividualismo, razo e paixo, conflitos de posies e interesses. Uma grande
aventura sim, mas que deve ser encarada enquanto processo em permanente
construo, sempre repensando-se e ensinando aos homens que possvel uma
65 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 201-202.66 THESING, Josef. La democracia: tambin una forma de vida, Dilogo Poltico, Buenos Aires, v.22, n. 1, p. 141-155, 2005, p. 145.67 GOYARD-FABRE, Simone, op. cit., 2003. p. 349.
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convivncia fraterna, em que as diferenas (culturais, ideolgicas, religiosas, sociais)
sejam respeitadas, pois a democracia
conceito histrico. No por si um valor-fim, mas meio e instrumento derealizao de valores essenciais de convivncia humana, que se traduzem
basicamente nos direitos fundamentais do homem. Sob esse aspecto ademocracia no um mero conceito poltico abstrato e esttico, mas umprocesso de afirmao do povo e de garantia dos direitos fundamentais queo povo vai conquistando no correr da histria[...]68 (grifo original).
Entretanto, no se pretende, ao destacar a ampliao do mbito da
democracia, subestimar ou mesmo constatar o enfraquecimento do aspecto poltico,
que continua nota distintiva de sua anlise, mas sim reconhecer que outros fatores
(social, econmico) passaram a atuar com fora renovada no debate democrtico.
Giovanni Sartori adverte que, hoje, vivemos uma poca de democracia confusa69
. Apartir da dcada de 1940 do sculo passado, progressivamente, a corrente terica
dominante da democracia foi-se perdendo, tendo em vista a abrangncia que o
conceito de democracia, a partir da, passou a apresentar. O enfraquecimento do
discurso sobre a democracia pode ser debitado conta da degradao do
vocabulrio da democracia. A questo no se refere apenas ao significado da
palavra, mas, tambm, a que coisa a democracia representa e, nesse sentido,
adverte que convivem hoje, lado a lado, no somente a democracia poltica, mas
tambm as democracias social, industrial e econmica (apoltico ou subpoltico).
Contudo,
permanece o fato de que a democracia poltica a condio indispensvel,o instrumento indispensvel de qualquer democracia ou meta democrticaque acalentamos. Se o sistema principal, o sistema poltico global, no umsistema democrtico, ento a democracia social tem pouco valor, ademocracia industrial tem pouca autenticidade, e a igualdade econmicapode no diferir da igualdade entre os escravos...........................................................................................................................
A crtica dirigida contra a corrente terica dominante da democracia, detratar apenas de democracia poltica, , portanto, difcil de entender edemonstra, segundo penso, uma eroso de identidade. Sobre todos osgrandes temas, como a democracia, sempre fica muito por dizer. Mas o fatode no dizer tudo no um erro. O erro est, ao invs, nos autores querebaixam ou mesmo excluem as premissas e requisitos polticos da
68 PEDRA, Anderson SantAna, op. cit., 2003. p. 3211.69 SARTORI, Giovanni. A Teoria da democracia revisitada. Traduo de Dinah de Abreu Azevedo.So Paulo: tica, [s.d.]. n. 104. v. I. (Srie Fundamentos).
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democracia, qualquer que seja a democracia que desejam.70 (grifosoriginais).
1.3.1 A realidade latino-americana
Sob a tica da realidade latino-americana, uma discusso atual acerca dos
seus aspectos democrticos revela que a ineficcia, ou mesmo violaes freqentes
de muitos direitos bsicos, colocam em dvida a condio democrtica dos pases
que a integram. Nessa linha, Guilermo ODonnell destaca a condio de democracia
poltica ou poliarquia que parece caracteriz-los, ou seja, neles se encontram
presentes determinadas caractersticas da democracia, como a realizao de
eleies regulares; a liberdade de participao dos indivduos em organizaes;
liberdade de imprensa e expresso, etc. (aspectos formais), convivendo, taiscaractersticas, lado a lado, com uma pobreza que atinge grande parte da populao
e, como no poderia deixar de ser, uma desigualdade social profunda71.
Apesar de reconhecer que os aspectos socioeconmicos so realmente
capazes de afetar profundamente o funcionamento real das poliarquias, o autor
busca justificar o Estado de direito democrtico naqueles pases tomando como
base a formalidade dos direitos de cidadania poltica e civil, no duplo sentido de que
so universalistas e so aprovados por meio de procedimentos estabelecidos por
regras de autoridade e representao resultantes de um regime polirquico72.
Nesse sentido ressalta:
Todavia, estou convencido de que, independentemente de suasconseqncias benficas, uma justificao adequada do Estado de Direitodeve estar baseada na igualdade formal, mas de forma algumainsignificante, acarretada pela existncia de pessoas legais s quais seatribui uma ao autnoma e responsvel (e na dignidade bsica daobrigao do respeito humano que deriva dessa atribuio, embora eu notenha elaborado esse ponto).73
70 Ibid., [s.d.]. p 28-29.71 ODONNELL, Guillermo. Poliarquias e a (in)efetividade da lei na Amrica Latina: uma conclusoparcial. Traduo de Otaclio Nunes. In: MENDEZ, Juan E.; ODONNELL, Guilhermo; PINHEIRO,Paulo Srgio (Org.). Democracia, violncia e injustia: o no Estado de Direito na Amrica Latina.Traduo de Ana Luiza Pinheiro. So Paulo: Paz e Terra, 2000.72 Ibid., 2000. p. 353.73 Ibid., 2000. p. 353-354.
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Mesmo direcionando sua anlise nesse sentido, ODonnell, em vrias
passagens, reconhece o outro lado da questo, ou seja, mesmo ante a existncia de
instrumentos para a igualdade formal (de sede constitucional inclusive), a efetividade
dessa condio e a qualidade da prtica cidad resultam, haja vista a pobreza e a
desigualdade social, em uma cidadania que ele mesmo qualifica de truncada ou debaixa intensidade, vendo-se comprometidos at mesmo os direitos civis, inobstante
o respeito aos direitos polticos.
A predominncia e respeito aos direitos polticos, com a tentativa de identificar
esse aspecto com o pleno exerccio da democracia, pode ser igualmente verificada
no Brasil. Aqui, apesar de um moderno sistema de suporte ao exerccio do direito ao
voto, com a utilizao, inclusive, da urna eletrnica, que no somente agilizou
sobremaneira o resultado das eleies, como tambm gerou uma maior
confiabilidade no sistema eleitoral74, observa-se a negligncia com a qual so
tratadas questes relativas aos direitos sociais (moradia, educao, sade,
emprego) e mesmo aos direitos civis (constitucionalmente garantidos). O exerccio
da cidadania, em tal contexto, encontra-se, assim, vinculado s prticas identificadas
com o mero comparecimento s urnas.
O funcionamento da democracia, entretanto, est a depender da prtica deseus cidados, pois solamente el ciudadano puede constituir la parte activa de la
democracia. De l, de sus actitudes, su conducta y su quehacer depende si una
sociedad de ciudadanos apoya e sostiene la democracia75.
1.3.2 A democracia participativa
Reconhecer a crise porque passa a democracia representativa significa indagaracerca das alternativas que se apresentam para, se no solucion-la, pelo menos
minimizar-lhe os efeitos, a fim de evitar o comprometimento da prpria essncia
democrtica. De fato, se votar no mais sinnimo de democracia e se a
74 As fraudes que envolviam as antigas cdulas eleitorais foram afastadas, tais como o votoformiguinha, onde o primeiro a votar utilizava-se de uma cdula falsa e a depositava na urnaeleitoral, passando a verdadeira para o eleitor seguinte, que a recebia devidamente preenchida porum cabo eleitoral. Apenas a primeira cdula, falsa, era tida por nula, as demais, validadas.75 THESING, Josef, op. cit., 2005. p. 146.
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representao, por si, j no corresponde s expectativas dos cidados e da
sociedade, faz-se necessria a adoo de outras estratgias visando sua
efetivao. No panorama do debate atual, a democracia participativa desponta como
alternativa crise democrtica contempornea, pois, como destaca Paulo
Bonavides, a democracia processo de participao dos governados na formaoda v