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Material para as disciplinas de Português I,
Leitura e Produção de Texto e Comunicação e
Expressão
FATEC IPIRANGA
Manoel Francisco Guaranha
São Paulo – 2016
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Sumário Unidade I – Comunicação: linguagem humana e linguagem animal .................................................. 3
Unidade II – Linguagem, língua, discurso e enunciação.................................................................... 11
Unidade III – Níveis de linguagem ..................................................................................................... 20
Unidade IV – Gêneros e tipos textuais .............................................................................................. 30
Estudo da narrativa ....................................................................................................................... 37
Estudo da descrição ...................................................................................................................... 44
Estudo da argumentação .............................................................................................................. 52
Coesão Textual: Conceitos e Mecanismos ....................................................................................... 58
Coerência........................................................................................................................................... 74
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Unidade I – Comunicação: linguagem humana e linguagem animal
Comunicar é tornar algo comum e pressupõe uma atividade gregária, a
solidariedade entre membros de um grupo, bem como o recurso de elementos
simbólicos. Sem entrar no mérito do complexo significado do símbolo, vamos
considerá-lo aqui, num primeiro momento, como tudo aquilo que, por um princípio
de analogia formal ou por convenção, representa, substitui ou sugere algo. Grosso
modo, é um sinal ou signo. Nesse sentido, uma placa de trânsito é um símbolo, a
cruz do Cristianismo também o é, bem como as palavras podem ser consideradas
símbolos.
Comunicação, pelo menos a humana, envolve vida social, convenções,
regras, memória, diálogo, reflexão, compartilhamento de valores, quer dizer, um
complexo sistema de fatores que conectam os indivíduos.
Para participar de modo significativo do processo de comunicação, pelo
menos a humana, é necessário desenvolver habilidades que vão além da
decodificação de sinais. Isso nos mostram os estudos linguísticos que serão
apresentados a seguir com os seguintes objetivos:
a) Compreender o complexo processo da comunicação humana em
confronto com a comunicação animal;
b) Refletir sobre a complexidade da comunicação humana e sobre as
bases em que se assentam esse fenômeno as quais são,
essencialmente, sociais;
c) Reconhecer diferentes modos de comunicação e suas especificidades.
Comunicação animal e linguagem humana
Comunicação animal e linguagem humana é o nome de um capítulo da
obra Problemas de linguística Geral(2005), de Émile Benveniste (1902-1976),
que na 5ª edição da obra, publicada pela Editora Pontes, ocupa as páginas 60 a
67.
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Benveniste parte do pressuposto que “Aplicada ao mundo animal, a noção
de linguagem só tem crédito por um abuso de termos” e de que até a publicação
de seu trabalho, e podemos acrescentar que até hoje, “foi impossível estabelecer
que os animais disponham, mesmo sob forma rudimentar, de uma modo de
expressão que tenha os caracteres e as funções da linguagem humana.”(p. 60)
Os animais que possuem um sistema mais ou menos parecido com o
humano são as abelhas e, nesse sentido, Benveniste apresenta como o problema
foi estudado por um professor de Zoologia na Universidade de Munique,
Alemanha: Kark von Frisch. A partir da observação de que as abelhas, quando
encontram uma fonte de alimento, pareciam comunicar às outras da colmeia o
lugar exato da fonte e de que outras abelhas da mesma colmeia conseguiam
chegar ao local, o pesquisador chegou à conclusão de que, de algum modo, essa
informação era transmitida entre as abelhas.
Observando uma colmeia transparente, Frisch pôde descrever uma série de
danças que a abelha que encontrou a fonte de alimento executa às companheiras
quando chega à colmeia. Após muitas pesquisas para compreender o significado
dessas danças, chegou à conclusão de que os movimentos se referem não ao
achado, o alimento, mas à distância em que esse achado encontra-se da
comunidade das abelhas.
Quando a abelha chega à colmeia, pelo seu odor ou pela absorção do
néctar que a operária engoliu, as companheiras sabem sobre a natureza do
achado. Já os movimentos das danças indicam: o local em que o alimento deve
ser procurado, se mais próximo ou mais distante da colmeia; e a direção em que
está o achado.
Benveniste serve-se dessas experiências para traçar um paralelo entre as
linguagens animal e humana que será sintetizado no quadro a seguir:
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Quadro das especificidades das linguagens animal e humana
Linguagem das abelhas Linguagem humana
“Capacidade de formular e de interpretar um ‘signo’ que remete a uma ‘realidade’, a memória da experiência e a aptidão para decompô-la” (BENVENISTE, 2005, p. 64)
Revela a mesma capacidade de formular e interpretar um signo, mas que não remete a uma única realidade. Por exemplo, a cruz, instrumento de tortura, remete não apenas ao fato histórico em que era usada, mas passou a remeter ao sacrifício, aos valores do Cristianismo entre outros aspectos. Isso não deixa de estar ligado à “memória” da crucificação, relatada nos textos sagrados, mas foi ampliada para outros tipos de experiência, por exemplo, a dos sacrifícios a que cada um de nós submete-se ao longo da existência, cristalizado no dito popular: “cada um deve tomar sua Cruz”.
Os processos de comunicação apresentam um simbolismo rudimentar “pelo qual dados objetivos são transpostos em gestos formalizados, que comportam elementos variáveis e de ‘significação’ constante.” (BENVENISTE, 2005, p. 64)
A significação dos elementos relativos à comunicação humana não são constantes, variam, entre outros modos, cronologicamente. A palavra “prostituir”, por exemplo, que se liga à ideia de algo imoral ou devasso, tem a seguinte etimologia, segundo o Dicionário Houaiss: vem do latim que significava 'colocar diante, expor, apresentar à vista; pôr à venda; mercadejar com a sua eloquência; prostituir, divulgar, publicar'”. Nesse sentido, originariamente o termo não estava ligado ao comércio do sexo especificamente, mas ao comércio em geral.
Situação e função de uma linguagem: “o sistema é válido no interior de uma comunidade determinada” e “cada membro dessa comunidade tem aptidões para empregá-lo ou compreendê-lo nos mesmos termos” (BENVENISTE, 2005, p. 64)
Isso ocorre também na linguagem humana em parte, pois entre nós as pessoas podem compreender os termos e empregá-los segundo juízos de valores específicos. A cruz, para o crente, é um símbolo sagrado. Para o ateu, pode ser um símbolo da alienação.
Linguagem gestual e não vocal, Linguagem vocal que ultrapassa a
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portanto só permitem a percepção visual à luz do dia
barreira da percepção apenas visual.
A linguagem não provoca nenhuma resposta, apenas uma conduta das outras abelhas, não há diálogo nem transmissão de conhecimento, não se constrói uma mensagem a partir de outra mensagem, mas só da experiência concreta.
Há comunicação sobre o dado objetivo e sobre o dado linguístico. No diálogo humano, há referência sobre o dado objetivo e sobre a manifestação linguística de forma livre e ao infinito. Mensagens são construídas a partir de outras mensagens.
Caráter de reproduzir por meio da linguagem somente a realidade comprovada
Caráter de “propiciar um substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no espaço, o que é típico do nosso simbolismo e fundamento da tradição linguística.” (p. 65)
Não há variação no simbolismo da mensagem, refere-se a uma única situação, sem variação ou transposição possível.
“Na linguagem humana, o símbolo em geral não configura os dados das experiências, no sentido de que não há relação necessária entre a linguagem objetiva e a forma linguística.” (p. 66).
“A mensagem das abelhas não se deixa analisar” (p. 66). Só podemos ver o conteúdo global. A única diferença é a posição espacial do objeto relatado. A linguagem das abelhas não permite isolar constituintes: “não se reduz a elementos identificáveis ou distintos.
O conteúdo da mensagem humana pode ser decomposto em seus elementos formadores “morfemas”, que podem ser combinados e recombinados segundo regras definidas de modo que um número reduzido desses “morfemas” gera um grande número de combinações: “Uma análise mais aprofundada da linguagem mostra que esses morfemas, elementos de significação, se resolvem, por sua vez, em fonemas, elementos articulatórios destituídos de significação, ainda menos numerosos, cuja reunião seletiva e distintiva fornece as unidades significantes. Esses fonemas “vazios”, organizados em sistemas, formam a base de todas as línguas.
Tabela 1: Quadro das especificidades das linguagens animal e humana
As conclusões a que chega Benveniste neste capítulo sugerem
aproximações e distinções entre as linguagens animal e humana e também a
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perspectiva por meio da qual se deve estudar a linguagem humana, que é nosso
objetivo.
a) A diferença fundamental entre a linguagem das abelhas e a humana é
que “a fixidez do conteúdo, a invariabilidade da mensagem, a referência
a uma única situação, a natureza indecomponível do enunciado, a sua
transmissão unilateral” (p. 67) caracteriza esse modo de comunicação
mais como um “código de sinais” e não propriamente como uma
linguagem.
b) A semelhança entre o modo de comunicação das abelhas é que esses
insetos, tal como o homem, vivem em sociedade e que, portanto, “é
também a sociedade [nos insetos assim como no homem] que é a
condição da linguagem”(p. 67)
Para compreender melhor:
Morfema: morfema, grosso modo, pode ser considerado para este estudo como a “menor
unidade linguística que possui significado, abarcando raízes e afixos, formas livres (p.ex.:
mar) e formas presas (p.ex.: sapat-, -o-, -s) e vocábulos gramaticais (preposições, conjunções)
[Para o estruturalismo norte-americano, pode ter ainda outras manifestações, como a ordem
das palavras na frase, indicando as funções sintáticas dos constituintes, ou a entonação
sozinha, que pode mudar o sentido de um enunciado: Você vai. Você vai?]”
[Veja o seguinte exemplo na palavra livreiro: temos o radical livr, mais os afixos -eir e -o que
indicam, respectivamente, neste caso: o que produz, ou que cuida de algo -eir; e o gênero
masculino -o.]
Etimologia: morf(o)- + -ema, por influência do francês: morphème (1923) 'na formação das
palavras, afixos que atribuem características gramaticais aos radicais', por influência do
inglês: 'forma mínima dotada de significação, que pode ocorrer livre ou ligada a outra'
Fonema: unidade mínima das línguas naturais no nível fonêmico, com valor distintivo
(distingue morfemas ou palavras com significados diferentes), porém ele próprio não possui
significado (por exemplo, em português as palavras faca e vaca distinguem-se apenas pelos
primeiros fonemas /f/ e /v/) . O conceito de fonema não se confunde inteiramente com as
letras dos alfabetos, porque estas frequentemente apresentam imperfeições e não são uma
representação exata do inventário de fonemas de uma língua.
(Dicionário Houaiss Eletrînico – Disponível em:
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=morfema).
http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=morfema
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Colocando em prática os conceitos:
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, Pero Vaz de
Caminha escreveu uma Carta ao rei de Portugal, dando notícias sobre o
“achamento” da terra e o contato com os nativos. Leia o trecho em que se
estabelece a comunicação entre os grupos:
“ Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.”
[...] “E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado
do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da
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solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.”
Fragmentos extraídos de http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf
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Ficha de atividade
Unidade – Curso:
Disciplina:
Atividade:
Nome(s) completo(s):
Data: Discuta com seus colegas o texto anterior e, a partir da leitura dos fragmentos da Carta de Pero
Vaz de Caminha dos estudos sobre comunicação e linguagem e de suas experiências pessoais e de
seus colegas, sintetize em um texto considerações do grupo sobre como se dá a comunicação
entre os dois grupos, o dos colonizadores e o dos portugueses. Procure e refletir e levar em conta
as especificidades dos processos de comunicação envolvidos no episódio e como se constroem as
relações de poder a partir da simplicidade e ou complexidade dos processos de comunicação.
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Unidade II – Linguagem, língua, discurso e enunciação
Segundo Benveniste, a linguagem, na medida em que é falada, emprega-se
para comboiar ‘o que queremos dizer’” (2005, p. 69), mas o chamado conteúdo do
pensamento “Recebe forma na língua e da língua, que é o molde de toda
expressão possível; não pode dissociar-se dela e não pode transcendê-la” (2005,
p. 69). A língua, por sua vez, é uma:
combinação de ‘signos’ distintos e distintivos, susceptíveis eles próprios, de
decompor-se em unidades inferiores e de agrupar-se em unidades
complexas. Essa grande estrutura, que encerra estruturas menores e de
muitos níveis, dá a sua forma ao conteúdo do pensamento. Para tornar-se
transmissível, esse conteúdo deve ser distribuído entre morfemas de certas
classes, organizadas numa certa ordem, etc. Enfim, esse conteúdo deve
passar pela língua e tomar-lhe os quadros. [...] A forma linguística é, pois,
não apenas a condição de transmissibilidade mas primeiro a condição de
realização do pensamento.”(BENVENISTE, 2005, p. 69)´
Desse modo, a “língua fornece a configuração fundamental das
propriedades reconhecidas nas coisas pelo espírito” (BENVENISTE, 2005, P. 76)
e a “possibilidade do pensamento liga-se à faculdade de linguagem, pois a língua
é uma estrutura enformada de significação e pensar é manejar os símbolos da
língua” (p. 80).
Para o fundador da linguística moderna, Ferdinand de Saussure (1857-
1913), a língua é parte determinada da linguagem é, “ao mesmo tempo, um
produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções
necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade
dos indivíduos [a faculdade da linguagem]” (SAUSSURE, 2012, p. 41).
Saussure estabeleceu a distinção, em seus estudos, entre língua e fala, a
primeira compreendida como o sistema abstrato de signos inter-relacionados, de
natureza social e psíquica, obrigatório para todos os membros de uma
comunidade linguística; e a segunda, a fala, seria uma parte da linguagem que se
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manifesta como ato individual. Os estudos linguísticos contemporâneos
substituem fala por discurso e referem-se à dicotomia língua/discurso.
Quando estudamos certos fenômenos, principalmente no campo da
linguagem, não trabalhamos apenas com definições, mas com conceitos.
Definição tende a ser mais fixa e dar conta de fenômenos mais concretos,
palpáveis, imutáveis. Conceitos são ideias que delimitam os fenômenos mais
abstratos, notadamente aqueles que mudam com a mudança da sociedade e o
progresso das ciências. Por exemplo, podemos definir o que é o ar, a água, o
fogo, a chuva, mas não podemos definir o que é a liberdade, o amor, a amizade já
que esses fenômenos variam de acordo com o grupo social que deles se serve.
Nesse sentido, ao falarmos sobre comunicação, língua, linguagem, fala,
discurso, enunciado, enunciação entre outros temas, encontramos várias
abordagens desses conceitos por diferentes correntes teóricas. Não para
simplificar o problema, mas porque nossos objetivos neste estudo devem ter um
caráter prático, delimitaremos alguns desses conceitos:
Enunciação será entendido neste estudo como uma atividade social e
interacional em que a língua é colocada em funcionamento por um sujeito
enunciador, por meio da fala ou da escrita, e que se dirige a um sujeito
enunciatário, que ouve ou lê e, deste modo, produz o enunciado, elemento
concreto. Ainda que possa haver variações neste conceito, a compreensão do
enunciado oral e escrito construído a partir da seleção e organização de
elementos de diversas linguagens pressupõe uma situação de comunicação que
fornece dados para a compreensão do enunciado que dizem respeito:
o Ao papel do enunciador e dos conhecimentos que ele compartilha
com o enunciatário;
o A quem o enunciador se dirige, quem ele elege como enunciatário;
o Ao espaço físico ou institucional em que ocorre a enunciação;
o Ao momento em que a enunciação ocorre.
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Disso conclui-se que o enunciado revela-se por meio da materialidade
linguística, já que dela depende para ser percebido como tal, mas não é um
fenômeno da língua e sim do discurso, da linguagem posta em ação.
Considere o seguinte texto: “João não dirige mais”. Uma vez materializada
em um enunciado, essa oração pode ser compreendida de muitos modos. Entre
eles, o enunciador pode estar querendo dizer que:
João deixou de dirigir, simplesmente;
João dirigia no passado;
João não dirigirá no futuro, a partir daquele momento.
Essas possibilidades, contudo, ainda não levam em conta a maioria das
condições de produção do enunciado, apenas as questões linguísticas: há um
sujeito cujo predicado, aquilo que se diz desse sujeito, enuncia que ele não mais
pratica uma ação, que é dirigir. Não há complemento para o verbo dirigir, que tem
várias acepções: tomar a liderança de uma empresa, instituição; executar algum
plano; manejar um veículo entre outros. Sendo assim, fica mais difícil para se
calcular o sentido estritamente no plano linguístico. Há uma negação
acompanhada do advérbio “mais”. Um falante da língua portuguesa reconhece
que essa construção “não mais” exprime cessação ou limite de algo, no caso da
ação de dirigir.
Perceba que do ponto de vista estritamente linguístico caminhamos pouco
até agora. Isso nos obriga a considerarmos outros fatores, agora discursivos, para
a compreensão do enunciado. Esses fatores dizem respeito à enunciação e, entre
eles, estão:
O papel do enunciador e dos conhecimentos que ele compartilha com o
enunciatário: tratam-se de três amigos que estão fazendo uma longa viagem de
carro. João está no volante, Pedro e Paulo estão como passageiros. João fez
questão de dirigir, pois se acha melhor condutor do que os dois. Só que cometeu
um deslize durante uma ultrapassagem e pôs em risco a vida de todos. O
enunciador, Paulo, se dirige diretamente a Pedro, mas é claro que também a
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João, apesar de tratá-lo como objeto do discurso, pois estão todos no mesmo
carro. Faz isso porque quer a adesão de Pedro à proposta e quer, em certo
sentido, enfraquecer a eventual resistência de João a largar o volante. Há então
uma intencionalidade de Paulo ao eleger Pedro e não João como enunciatário
privilegiado.
Os conhecimentos partilhados dos três amigos sobre o que já ocorreu ao
longo da viagem, o espaço físico em que ocorre a enunciação, na estrada e dentro
de um carro, permitem construir o sentido do verbo “dirigir” ainda que não tenha
complemento.
O momento em que ocorre a enunciação, depois de uma ultrapassagem
mal feita também permite que interpretemos o “não mais” como estabelecimento
de um limite para o ato de João dirigir o carro.
Das três primeiras possibilidades que apresentamos no início da análise do
enunciado, podemos eliminar a primeira à luz dos elementos contextuais que
foram apresentados: “João deixou de dirigir”. Sabemos que é correto dizer que
João dirigia no passado e que continua dirigindo e não sabemos se João deixará o
volante nas mãos de Pedro ou Paulo. Sabemos que o enunciado “João não dirige
mais” não é uma constatação, mas uma proposta ao grupo feita por Paulo que
poderá ou não ser aceita pelos outros dois amigos. Por isso, apesar de estar no
presente do indicativo, o verbo dirigir na verdade representa a apresentação de
uma possibilidade, de um desejo de Paulo: “eu quero que João não dirija mais”.
Neste caso, ainda que o enunciado, sob a perspectiva linguística esteja no
indicativo, sob a perspectiva discursiva sugere subjunção, ou seja, dependência,
subordinação a algo para acontecer.
Fica claro que por mais brilhante que o sujeito seja quando estuda a língua,
por mais capaz que ele seja de decorar todos os nomes dos termos e as regras
gramaticais que regem a utilização desses termos na língua, ele não será um bom
leitor enquanto não tiver capacidade de levar em conta aspectos discursivos para
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compreender plenamente os enunciados que pouco dizem caso sejam vistos de
forma isolada. Ler é muito mais do que decodificar símbolos.
Colocando em prática os conceitos:
MALVADOS ANDRÉ DAHMER. FOLHA DE SÃO PAULO, 27/7/2016
O enunciado anterior é um cartum. Trata-se de um texto composto de
palavras e imagens, verbo-visual, que trata de forma bem-humorada um tema
relativo ao comportamento humano.
Sobre o autor, que publica regularmente no jornal Folha de São Paulo,
uma pesquisa rápida informa que:
André Dahmer Pereira (Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1974) é um desenhista brasileiro. Autor das tirinhas dos Malvados, que normalmente não seguem uma linha cronológica, e têm como personagens dois seres indefinidos, que são costumeiramente comparados a girassóis, tirando daí o apelido que têm, "As flores do mal".
As tirinhas são uma crítica politicamente incorreta aos costumes e prisões [acontecimentos] do dia a dia. Devido ao comportamento dos dois personagens, ficaram conhecidos como Malvadinho (o que mais sofre) e Malvadão (o dono de críticas muito ácidas).
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/André_Dahmer, consulta em 28/7/2016
Produza um texto a partir da leitura do cartum de André Dahmer
considerando os seguintes pontos.
o Ao papel do enunciador e dos conhecimentos que ele compartilha
com o enunciatário (considere como enunciadores, num primeiro
momento, Malvadinho e Malvadão);
https://pt.wikipedia.org/wiki/André_Dahmer
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o A quem o enunciador se dirige, quem ele elege como enunciatário;
o Ao espaço físico ou institucional em que ocorre a enunciação;
o Ao momento em que a enunciação ocorre.
O texto deve ser dividido em dois parágrafos em que você considere,
primeiramente, os enunciadores/enunciatários Malvadinho e Malvadão e, num
segundo momento, o sujeito que produziu o cartum e os leitores. Considere,
também, esse enunciado em seu espaço original, a Folha de São Paulo, e o
espaço em que foi apresentado a você, ou seja, este material de estudo. Verifique
se essas condições de recepção alteram a enunciação de algum modo.
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Ficha de atividade
Unidade – Curso:
Disciplina:
Atividade:
Nome(s) completo(s):
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Colocando em prática os conceitos
Leia o texto a seguir, de Olavo Bilac (1865-1918):
Língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, em que da voz materna ouvi: "meu filho!", E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Considerando que se trata de um texto do século XIX e também que se
trata de um texto literário, muitos termos podem ser desconhecidos por pouco
serem usais ou porque o poeta quis usar palavras que considerava mais
adequadas do ponto de vista estético. Pesquise o sentido dessas palavras que
você desconhece, tais como: ganga, clangor, trom, silvo, procela e arrolo.
Escreva um texto que sintetize: a) aspectos específicos objetivos e
subjetivos da língua portuguesa destacados pelo sujeito; b) aspectos gerais do
conceito de língua destacados pelo texto. Para tanto, considere o conceito de
língua como “sistema de representação constituído por palavras e por regras que
as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade linguística usam
como principal meio de comunicação e de expressão, falado ou
escrito.”(Dicionário Houaiss).
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Ficha de atividade
Unidade – Curso:
Disciplina:
Atividade:
Nome(s) completo(s):
Data:
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Unidade III – Níveis de linguagem
Podemos considerar a língua como um “Sistema de comunicação verbal
que se desenvolve espontaneamente no interior de uma comunidade”, como a
língua portuguesa, por exemplo, ou como “o sistema de signos partilhado por uma
comunidade de falantes” (Dicionário de termos linguísticos – Portal da Língua
Portuguesa, http://www.portaldalinguaportuguesa.org).
Esse “sistema de representação constituído por palavras e por regras que
as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade linguística usam
como principal meio de comunicação e de expressão, falado ou
escrito.”(Dicionário Houaiss), não é um sistema estanque ou homogêneo,
apresenta variações decorrentes da relação entre a língua e a sociedade.
Diferentes grupos sociais têm diferentes atitudes em relação à língua que, desse
modo, pode apresentar variações que podem ser percebidas do ponto de vista
diacrônico, a transformação da língua ao longo do tempo; e sincrônicas, sob as
perspectivas espacial e social.
Assim como todas as línguas, o português brasileiro varia em determinados grupos e
comunidades e essa variação pode interferir na escrita e no significado: não há apenas
uma língua, há variações ou ramificações. Algumas dessas diferenciações tendem a não
serem aceitas na sociedade, principalmente aquelas que fogem dos padrões gramaticais
instituídos pela variante padrão.
A abordagem sociolinguística procura explicar as variações como resultado
da necessidade que as pessoas têm de se comunicar e das estratégias que elas
desenvolvem para isso que, muitas vezes, fogem da variante padrão. Esse
fenômeno evidencia a relação direta entre língua e sociedade, a língua é um
organismo vivo que se adapta às diferentes situações de comunicação.
A língua e sua estreita ligação com a sociedade em que se origina é produto
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da interação social, criando-se e transformando-se em função do contexto sócio-
histórico e possui funções sócio-interacionais desse instrumento de comunicação.
No Brasil, a variação evidencia uma pluralidade de formas de utilização da
língua decorrente da dinâmica e da natureza da população, que tomou contato com
diversos grupos étnicos e sociais ao longo da história.
A língua tem regras de utilização, mas além delas os usos desse sistema, as
diferentes execuções devem ser levadas em conta sem se restringir
excessivamente ao estudo das estruturas da variedade padrão, já que as línguas se
fundam em usos e não o contrário, justamente por conta da flexibilidade e da
multiplicidade do código linguístico como instrumento de comunicação:
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Quadro de variações linguísticas:
As línguas estão sujeitas à variação diacrônica, aquela que se dá ao longo
do tempo. Por exemplo, há gírias que, embora compreensíveis, soam “antigas” ou
são compreendidas somente pelos mais velhos. As mudanças diacrônicas (do
grego dia = através de; cronos = tempo) podem ocorrer ainda na pronúncia, na
flexão e na derivação, nos padrões de estruturação da frase, no plano dos
significados e também pela introdução de novas palavras (neologismos e
estrangeirismos).
A variação geográfica ou diatópica (do grego dia = através de; topos = lugar)
está relacionada às diferenças linguísticas distribuídas nos espaços físicos
observáveis entre falantes de origens geográficas distintas.
A perspectiva geográfica implica o estudo dos falares de comunidades
linguísticas distintas em espaços diferentes em um mesmo tempo histórico, de
VARIAÇÃO
DIACRÔNICA
(história/tempo) NÍVEIS DA LÍNGUA
FONÉTICO/FONO-LÓGICO (pronúncias)
LEXICAL
(várias palavras mesmo significado)
SEMÂNTICA
(significado depende lugar)
SINTÁTICO
(organizados diferente)
Paráfrase
ESTILÍSTICO-PRAGMÁTICA
Situações diferentes de interação
MORFOLÓGICA
(sufixo diferente, mesma ideia)
pegajoso/guento
DIATÓPICA
(lugares)
DIAMÉSICA
(fala/escrita)
DIAFÁSICA
(estilo/monitora-mento)
DIASTRÁTICA
(classes sociais) ESCOLARIDADE PROFISSÃO IDADE
NÍVEL SOCIOECONÔMICO ETC.
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modo sincrônico. Os dialetos ou falares dessas comunidades produzem os
regionalismos. A linguagem urbana, mais comum, distingue-se da rural, mais
conservadora, isolada, em gradual extinção devido, em grande parte, ao avanço
dos meios de comunicação, que privilegiam a fala urbana.
Não se pode pensar como o senso comum, que o modo urbano de falar é
mais correto do que o modo rural. A perspectiva variacionista acredita que os
falantes se expressam de modo a transmitir suas mensagens de maneira adequada
ao seu interlocutor, ainda que haja desvios em relação à norma culta.
Às variações linguísticas relacionadas ao contexto chamamos de Variações
diafásicas (do grego dia = através de; phásis com o sentido de 'expressão')
estilísticas ou registros. Os falantes diversificam sua fala em função das
circunstâncias em que ocorrem suas interações verbais. O uso diferenciado que
cada indivíduo faz da língua está de acordo como o grau de monitoramento que ele
confere ao seu comportamento verbal.
Ao responder a uma questão proposta na prova ou a uma pergunta em uma
entrevista de emprego, o sujeito se esforça para fazer isso de acordo com a
variante padrão, ainda que não a conheça totalmente. O sujeito varia o uso da
língua de modo mais ou menos consciente, conforme a situação de interação em
que se encontra. Quando se trata de exibir respeito e consideração pelo
interlocutor, serve-se de normas sociais que prevalecem em cada cultura,
apreendidas por observação e imitação ou ensinadas pelos pais e professores.
Os falantes adequam suas formas de expressão às finalidades específicas
de seu ato enunciativo selecionando dentre o conjunto de formas disponíveis e que
acredita serem adequadas à situação. Essa operação envolve um grau maior ou
menor de reflexão por parte do falante: o uso do estilo formal requer uma atuação
mais consciente do que o informal.
O falante realiza escolhas linguísticas influenciado pela época em que vive,
pelo ambiente, pelo tema, por seu estado emocional e pelo grau de intimidade entre
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interlocutores. Tais fatores determinam a escolha do registro (ou nível de fala) a ser
utilizado pelo falante quanto ao grau de formalismo (uso mais ou menos formal da
língua); ao modo (língua falada ou escrita); e à sintonia (maior ou menor grau de
tecnicidade, cortesia ou respeito à norma, tendo-se em vista o perfil do interlocutor).
A capacidade de apropriar-se das variações pode revelar habilidades
linguísticas de indivíduos que não tiveram acesso à norma culta assim como a
incapacidade de aceitar variações pode revelar inabilidades daqueles que só
conhecem a norma culta e insistem em aplicá-la indistintamente a qualquer situação
de comunicação como forma de mostrar erudição, já que não será compreendido
por um interlocutor que não domine a variante padrão.
A variação social ou diastrática (do grego dia = através de; do lat. strātum,i
'cama, coberta de cama', por extensão 'camada') é aquela que se encontra quando
se comparam diferentes estratos de uma população. Tem a ver com a identidade
dos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade de fala que
usam gírias ou jargões para identificar e caracterizar os grupos constituídos.
Os falantes são agrupados principalmente por nível socioeconômico,
escolaridade, idade, sexo, profissão, situação ou contexto social. Há um dialeto
social/culto (considerado a língua padrão) –preso à gramática normativa, a língua
ensinada nas escolas em estreita conexão com o uso literário do idioma e com
situações de fala mais formais – e um dialeto social/popular – mais ligado à
linguagem oral do povo e às situações menos formais de comunicação. Em
decorrência de a língua ser um produto de evolução no tempo e no espaço, mesmo
essa língua padrão varia, embora menos rapidamente.
A variação diamésica é aquela que se verifica na comparação entre a língua
falada e a escrita. Falar ou escrever bem é usar adequadamente a língua para
produzir um efeito de sentido pretendido numa dada situação, o que nem sempre
significa estar de acordo com a norma culta.
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A escrita tornou-se um bem social, símbolo de educação, desenvolvimento e
poder, alcançando um valor superior à oralidade e servindo, muitas vezes, como
forma de discriminação. A fala é considerada pelo senso comum como prática em
que se ocorrem o erro e caos, mas devemos considerar que a fala é adquirida
naturalmente em contextos informais, no dia a dia, enquanto a escrita é adquirida
formalmente, por meio da escola, e, talvez esse seja, unicamente, o caráter gerador
de seu prestígio, não fato de ela ser melhor do que a fala.
Levando-se em conta a necessidade de interação imediata, na fala ocorrem
pressões de ordem pragmática que se sobrepõem, muitas vezes, às exigências da
norma. Em muitos casos, elas obrigam o locutor a realizar truncamentos, correções,
hesitações, mas também de inserções, repetições e paráfrases, que têm,
frequentemente, funções cognitivo-interacionais.
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Colocando em prática os conceitos
Leia o texto a seguir, escrito em galego-português por Pero da Ponte,
trovador galego do século XIII que mostra como a língua portuguesa variou
historicamente:
1 Marinha Crespa, sabedes filhar eno paaço sempr'um tal logar, em que ham todos mui bem a pensar
de vós; e por en diz o verv'antigo: 5 "a boi velho nom lhi busques abrigo." E no inverno sabedes prender logar cabo do fogo, ao comer, ca nom sabedes que x'há de seer
de vós; e por en diz o verv'antigo: 10 "a boi velho nom lhi busques abrigo."
E no abril, quando gram vento faz, o abrigo éste vosso solaz, u fazedes come boi, quando jaz
eno bom prad'; e diz o verv'antigo: 15 "a boi velho nom lhi busques abrigo."
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Para saber mais sobre o texto e o trovador, procure informações no Portal
das Cantigas medievais galego-portuguesas (http://cantigas.fcsh.unl.pt/). O galego
português era:
a língua falada na faixa ocidental da Península Ibérica até meados do XIV. Derivado do Latim, surgiu progressivamente como uma língua distinta anteriormente ao século IX, no noroeste peninsular. Neste sentido, poderemos dizer que, mais do que designar uma língua, a expressão Galego-Português designa concretamente uma fase dessa evolução, cujo posterior desenvolvimento irá conduzir à diferenciação entre o Galego e o Português atuais. Entre os séculos IX e XIV, no entanto, e com algumas pequenas diferenças entre modos de falar locais, a língua falada ao norte e ao sul do rio Minho era sensivelmente a mesma. E nem mesmo as fronteiras políticas que por meados do século XII se foram desenhando, e que conduziram à formação de um reino português independente ao sul, parecem ter afetado imediatamente esta unidade linguística e cultural, cujas origens remontam à antiga Galiza romano-gótica. Da mesma forma, a extensão do novo reino português até ao extremo sudoeste da Península (que se desenrola, até 1250, ainda no movimento da chamada reconquista cristã), é um processo que pode ser entendido, nesta primeira fase, como um alargamento natural desse espaço linguístico e cultural único. ( http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp#2)
Glossário: o Marinha Crespa: Marinha Crespa - Trata-se de uma soldadeira. o filhar - tomar, arranjar o por en - por isso o vervo - provérbio o prender - tomar, receber o cabo - junto a, ao pé de o ca - pois, porque o éste - é o solaz - prazer o u - onde o jazer - deitar-se, estar deitado.
http://cantigas.fcsh.unl.pt/http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp#2
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Mapa político do noroeste da Península Ibérica no século XII
Escreva uma paráfrase do texto de Pero da Ponte em português moderno e
de acordo com a norma culta da língua. Ao longo da produção, reflita sobre as
diversas alterações que ocorreram no idioma ao longo do tempo e comente a
diferença que mais chama sua atenção.
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Ficha de atividade
Unidade – Curso:
Disciplina:
Atividade:
Nome(s) completo(s):
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Unidade IV – Gêneros e tipos textuais
O texto é uma unidade de sentido, atividade sistemática de atualização
discursiva da língua na forma de um gênero; material linguístico com potencial
para conectar atividades sociais, conhecimentos linguísticos e conhecimentos do
mundo; unidade funcional, de natureza discursiva.
O texto é o espaço de materialização do discurso. Discurso, por sua vez é
conjunto de enunciados que ocorrem com certa regularidade e remetem a uma
mesma ideologia, visão, concepção de mundo de uma determinada comunidade
social numa determinada circunstância histórica. A ideologia se materializa por
meio da linguagem, não há um discurso ideológico, mas todos são e têm seus
princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva.
O sujeito não pode ser concebido como total responsável por aquilo que
diz; tampouco como alguém que não é dono daquilo que escreve ou diz, ou seja,
repetidor do discurso dos outros, mas é uma entidade psicologia e social
(psicossocial) que usa a língua como lugar de interação. Sendo assim, quando
participam ativamente da definição da situação na qual se acham engajados, os
sujeitos adquirem um caráter ativo, são atores na atualização das imagens e das
representações sem as quais a comunicação não poderia existir.
Os três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional
fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados
pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que
denominamos gêneros do discurso.
Sendo assim, quanto mais gêneros do discurso dominarmos, mais
facilidade teremos de nos comunicar de forma eficiente, clara e objetiva, mais
possibilidade teremos de influenciar positivamente os outros e de não sermos
influenciados pelo discurso alheio se isso não for conveniente para nossa vida
pessoal e profissional. Por isso é importante desenvolvermos competência
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discursiva para ler e interpretar textos de forma crítica e de produzir textos
eficientes e adequados às diferentes situações de comunicação do dia a dia.
As Tipologias Textuais
Os tipos textuais constituem estratégias utilizadas para organizar o material
linguístico e apresentam-se em estreita conexão com o gênero a que pertence o
texto. É comum um único texto conter diferentes tipos que se articulam, já que
essas categorias apresentam-se em número bastante limitado enquanto os
gêneros apresentam-se em grande quantidade e, inclusive, surgem e
desaparecem ao longo da história, quer por mudanças culturais, quer por
intermédio das novas tecnologias.
A tipologia textual é considerada por Marcuschi(2005)
uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição; constituem sequências linguísticas ou sequências de enunciados no interior dos gêneros que não são textos empíricos; sua nomeação abrange um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal (p. 23).
A noção de tipo textual é um construto teórico que abrange, em geral, as
categorias designadas narração, argumentação, exposição, descrição, injunção e
diálogo. Como dificilmente são encontrados tipos puros, um texto se define como
de um tipo por uma questão de dominância, em função do tipo de interlocução que
se pretende estabelecer e que se estabelece, e não em função do espaço
ocupado por um tipo na constituição desse texto.
Já segundo Bronckart (1999, p. 22), os tipos textuais abrangem as
categorias narração, argumentação, exposição, descrição e injunção. Segundo
ele, o termo tipologia textual é usado “para designar uma espécie de sequência
teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos
lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas)”. Como se percebe,
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Bronckart não apresenta, como faz Marcuschi, o diálogo como um dos tipos
textuais. Isso nos autoriza a pensar que, por esta perspectiva teórica, os turnos de
fala dos locutores em um diálogo podem ser categorizados como narrativos,
argumentativos, expositivos, descritivos ou injuntivos. A predominância de
determinado tipo textual dependerá do objetivo enunciativo do material linguístico
a que pertence, ou seja, das especificidades do gênero em que se insere o texto.
Em primeiro lugar, consideraremos o tipo narrativo, forma básica global
muito presente em diversos gêneros cuja finalidade é contar histórias ou fatos.
Sendo linguisticamente marcado pela contação de um fato, nessa estrutura o
autor encadeia uma sequência de acontecimentos ou de eventos que ocorreram.
Desse modo, a estrutura narrativa é caracterizada pela marcação temporal
cronológica, além do destaque dado aos agentes das ações. Na narrativa,
predominam as ações, enquanto que as descrições de situações e estados lhe
são subordinadas.
Só é possível falar de narração quando cada história contada mobilizar
personagens implicados em acontecimentos organizados no eixo do sucessivo e
quando for sustentada por um processo de intriga (BRONCKART, 1999, p. 219).
Logo, essa tipologia textual é caracterizada pela predominância de verbos no
pretérito do indicativo, uma vez que este tempo verbal remete à ideia de
acontecimentos realizados, pontua ou faz menção a estes acontecimentos,
desenvolvendo a sequência das ações em um tempo cronológico em andamento.
Certamente, há narrativas literárias que se desenrolam no presente, mas essa
estratégia gera um efeito de sentido que caracteriza o suspense a inserção do
leitor nos fatos contados. De qualquer modo, via de regra, em textos não literários,
as histórias são contadas por meio de verbos no passado.
Já o texto descritivo faz um apontamento das características de um
indivíduo, de um animal, de um ambiente, de um objeto, de uma situação e
mesmo de uma sensação. Essa tipologia textual é conhecida como aquela que
mostra, que revela, que traduz um fenômeno. A sequência descritiva apresenta a
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particularidade de ser composta de fases que não se organizam em uma ordem
linear obrigatória, mas que se combinam e se encaixam em uma ordem
hierárquica ou vertical (BRONCKART, 1999, p. 222). Analogicamente, podemos
afirmar que o texto descritivo pode ser entendido como uma imagem, uma cena
dentro da moldura e que ao autor do texto cabe mostrar essa cena. Na imagem,
não há uma sequência de acontecimentos nem uma sequência única que os olhos
devem seguir. Ao sujeito que faz a descrição é que cabe a organização dos
elementos, do todo para as partes, modo dedutivo, ou das partes para o todo,
modo indutivo. O tempo verbal apropriado para uma descrição é o presente do
indicativo, mas nada impede que sejam feitas descrições no pretérito imperfeito ou
mesmo perfeito quando elas se inserem nas narrativas. O que difere este tipo
textual da narração é a menor incidência de verbos de ação decorrente da
intencionalidade do produtor de apresentar o objeto descrito, quer dizer, o texto
descritivo é marcado por um tempo estático, o que não significa a supressão total
das ações. Havendo decurso de tempo, o texto tenderá a ser narrativo e não
descritivo.
Os textos dissertativos, em que predomina a argumentação, por sua vez,
preocupam-se em defender ideias ou opiniões. É importante ressaltar que o texto
pode ou não trazer a primeira pessoa gramatical como marca. O texto dissertativo,
quando dispensa essa marca gramatical, procura produzir um efeito de sentido
que atribui às ideias apresentadas valor e caráter universais. O locutor quer que a
opinião expressa deixe de ser pessoal para ganhar uma dimensão mais universal
e com isso pretende conseguir a adesão do interlocutor apelando, geralmente,
para o senso comum ou para o bom senso. O tempo verbal deve ser o presente
do indicativo. A defesa de um ponto de vista e de uma argumentação embasada e
justificada leva em consideração aspectos objetivos, mas nem sempre isso ocorre
já que o sujeito que argumenta apresenta a realidade como ele a concebe. Caso
tenha a intenção de produzir um efeito de sentido que confere maior grau de
racionalidade ao texto, o locutor dispensa a expressão exaltada de valores
emocionais e subjetivos, já que a pessoalidade pode enfraquecer o argumento.
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Garcia (2002, p. 302), falando sobre um tipo de argumentação menos
emotiva, ressalta que “a argumentação deve basear-se nos sãos princípios da
lógica”, desenvolvendo-se a partir de ideias, princípios ou fatos. Dessa maneira,
segundo a visão desse autor, em texto ou debate, o uso de xingamentos, do
sarcasmo entre outras estratégias, por mais criativas possam vir a ser, jamais se
constitui como um argumento, antes podem se revelar a falta dele.
O texto injuntivo é aquele que faz uma recomendação, faz o apontamento
de como realizar determinada tarefa ou ação, dá ordens ou sugestões. Embora se
caracterize por verbos no imperativo ou por formas mais corteses no futuro do
pretérito em estruturas interrogativas como “você gostaria de fazer tal coisa?” ou
“você poderia fazer tal coisa?”, a caracterização desse tipo textual, em gêneros
mais simples como manuais de instrução ou placas de trânsito, é mais clara fazer.
Contudo, em gêneros mais complexos, predominantemente dissertativos, podem
aparecer sequências injuntivas, já que na argumentação o locutor defende uma
ideia com vistas à persuasão ou ao convencimento do interlocutor sobre um ponto
de vista e pode querer coroar o processo com sugestões, pedidos diretos ou até
ordens dadas ao auditório para efetivar a adesão deste às ideias apresentadas.
É preciso considerar, na análise da injunção, também elementos
contextuais, já que uma fala expositiva como “está calor hoje” pode ser entendida
como uma fala injuntiva se o falante quiser que o ouvinte interprete sua fala como
“por favor, traga-me um copo com água” ou “ligue o ar condicionado”, por
exemplo. A injunção trata-se, de qualquer modo, de um tipo textual que procura
levar o leitor a determinada orientação transformadora. O texto injuntivo-
instrucional, ainda que sob diferentes formas, tem o poder de transformar o
comportamento do leitor, pois confere a ele um saber. O texto injuntivo, em
contextos mais práticos, tem como objetivo controlar o comportamento do
destinatário – são textos que incitam à ação, impõem regras ou fornecem
instruções e indicações para a realização de um trabalho ou a utilização correta de
instrumentos.
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Apesar da aparente simplicidade do tipo injuntivo, ele pode, se combinado a
outros tipos textuais, transmitir ideologias, conceitos, valores, transformar o
comportamento do enunciatário em gêneros prescritivos como fábulas ou
apólogos, por exemplo. A diferença é que, enquanto o argumentativo deve apelar
para a razão (logos), no processo de persuasão do leitor, o injuntivo pode ser
usado quando o objetivo enunciativo é apelar para a emoção (pathos), num
processo de convencimento.
Finalmente, o tipo expositivo cumpre a função de informar utilizando a
explicação. Utiliza a razão e o entendimento com a finalidade de definir, esclarecer
ou explicar um determinado tema, assunto, situação ou acontecimento. Essa
tipologia está associada à apresentação e asserção de conceitos. No texto
expositivo, o autor preocupa-se em dar explicações e elaborar os pontos-chave da
informação, a fim de que seu auditório entenda o porquê e o como. Em gêneros
essencialmente argumentativos, o tipo textual expositivo está presente na hora em
que o produtor contextualiza e apresenta sua tese, bem como funciona como
coadjuvante no desenvolvimento dos argumentos.
Por estas considerações, percebe-se que é difícil haver um gênero
exclusivamente vinculado a uma única tipologia textual, em um mesmo texto pode
haver uma sequência de ações e uma caracterização dessa ação, ambiente,
pessoa etc. A categorização do texto como narrativo ou descritivo vai ser dada de
acordo com a predominância de uma tipologia, não de acordo com a exclusividade
dela. A exclusividade de um tipo textual ocorre apenas em gêneros simples cujos
objetivos enunciativos são muito específicos como placas de trânsito que podem
ser simplesmente injuntivas "Pare" ou expositivas como "Obras na pista"1. Em
geral, os textos mais complexos de quaisquer gêneros são híbridos, pois podem
1 Isso levando-se em consideração que esses textos não estejam deslocados de seus contextos originais, pois uma placa de trânsito “Pare” fixada no quarto de um adolescente produz um efeito de sentido que vai além daquele dado pelo injuntivo. Pode estar querendo significar, entre outras coisas, um recado aos pais: “Este território me pertence”.
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trazer em sua composição aspectos narrativos ou descritivos ou dissertativos ou
injuntivos.
Para compreender a organização textual em sua complexidade, é
necessário evitar apenas rotular o material linguístico pela tipologia que ele
apresenta em um primeiro momento. Devemos considerar que se pode, em um
texto argumentativo, narrar uma breve história que servirá como argumento; pode-
se, em um texto narrativo, contar uma história com a finalidade de mudar o
comportamento de alguém, ou seja, com a intenção argumentativa e até injuntiva,
por assim dizer, como no caso das fábulas. Classificar textos a partir da tipologia,
simplesmente, pode ser improdutivo quando se pretende empreender uma análise
profunda do sentido das construções linguísticas, mas a classificação tipológica,
por outro lado, pode ser um relevante instrumento para se verificar a
intencionalidade do enunciador e para se avaliar os efeitos de produção de sentido
nas estruturas linguísticas.
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Estudo da narrativa Famigerado – conto de Guimarães Rosa
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
“Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…” Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal.
Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha
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sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
— “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras… Estou vindo da Serra…”
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
— “Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso… Saiba que estou com ele à revelia… Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade… O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado…”
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
— “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro…”
Se sério, se era. Transiu-se-me. — “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o
legítimo — o livro que aprende as palavras… É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias… Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam… A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?”
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes: — Famigerado? — “Sim senhor…” — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da
raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha
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eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho…”
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio. — Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”… — “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” — Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos… — “Pois… e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?” — Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito… — “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?” Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse: — Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!… — “Ah, bem!…” — soltou, exultante. Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição…” — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não…” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças… Só pra azedar a mandioca…” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
O texto anterior trata-se de uma narrativa, um conto literário. Narrar é contar
histórias, ficcionais ou não. Pode-se afirmar que se trata de uma narrativa porque
nele prevalecem os aspectos que sustentam uma narração, que podem ser
sintetizados por meio das questões: o que aconteceu?; quando aconteceu?; onde
aconteceu?; quem participou do acontecimento?; quem narra o acontecimento?;
por que o fato narrado ocorreu?
Entremeados à narrativa, temos os outros tipos textuais que aparecem em
menor escala: descrição, injunção, exposição e argumentação.
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Colocando em prática os conceitos
a) Escreva um texto, de no máximo dez linhas, que sintetize, com a maior
objetividade possível, a narrativa anterior. Procure se guiar pelas
questões apresentadas anteriormente que constituem a base da
narrativa.
Selecione e copie quatro fragmentos do texto que sejam, respectivamente,
sequências: a) descritiva; b) expositiva; c) injuntiva; d) argumentativa.
b) Transforme o texto a seguir, um poema, em uma narração em que você
coloque os fatos em ordem cronológica. Para fazer isso, guie-se pelas
perguntas que devem ser respondidas em três blocos: versos de 1 a 4 -
a) quem praticava a ação? b) qual a ação? c) por quanto tempo? d) por
que o sujeito praticava a ação; versos de 5 a 8 - a) quais sujeitos
praticam ações? b) qual a ação cada sujeito pratica? c) por quanto
tempo?; d) por que as ações são praticadas pelos sujeitos?; versos de
10 a 14: a) quem praticava a ação? b) qual a ação? c) por quanto
tempo? d) qual o resultado da ação?
Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; Mas não servia ao pai, servia a ela, E a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assi negada a sua pastora, Como se a não tivera merecida; Começa de servir outros sete anos, Dizendo: – Mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida!
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Ficha de atividade
Unidade – Curso:
Disciplina:
Atividade:
Nome(s) completo(s):
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Rebelião deixa seis presos mortos em cadeia de Pernambuco FOLHA DE SÃO PAULO, 25/07/2016
Uma rebelião de detentos em uma unidade prisional de Caruaru, no agreste pernambucano, terminou com seis presos mortos e outros 11 feridos.
De acordo com a secretaria de Justiça e Direitos Humanos, as vítimas fatais foram atingidas com golpes de falcão —um preso, inclusive, foi decapitado.
Os sobreviventes foram levados para o Hospital Regional do Agreste, sendo que três deles já retornaram à cadeia.
A rebelião teve início às 17h30 deste sábado (24) na Penitenciária Juiz Plácido de Souza e perdurou por três horas. Por volta das 13h deste domingo (25), o clima ainda era tenso no local.
O Grupo de Operações e Segurança, do sistema prisional local, além de efetivos da PM e da Polícia Civil fazem a segurança do presídio.
Por medida de segurança, 11 detentos foram transferidos para outras cadeias do Estado após o motim.
Segundo Pedro Eurico de Barros e Silva, secretário da pasta da Justiça do Estado, a rebelião ocorreu em razão de um desentendimento entre grupos rivais que disputam o controle do tráfico de drogas na unidade.
Dois pavilhões foram incendiados. Os danos, no entanto, ainda estão sendo contabilizados, informou Barros e Silva.
"Vamos abrir uma investigação para responsabilizar quem comandou e executou os homicídios na unidade", diz o secretário.
As visitas de familiares, que aconteceriam neste domingo, foram suspensas. A Penitenciária Juiz Plácido de Souza está superlotada. Com capacidade para
abrigar 400 presos, o local tem hoje 1.850 homens.
No texto anterior, também prevalece a narrativa. Diferente do conto
“Famigerado” de Guimarães Rosa, nele prevalece um tom mais objetivo em
virtude das exigências do gênero a que pertence. Sendo uma narrativa, é possível
responder às perguntas: o que aconteceu?; quando aconteceu?; onde
aconteceu?; quem participou do acontecimento?; quem narra o acontecimento?;
por que o fato narrado ocorreu?
a) Confrontando os dois textos, é possível responder às questões
anteriores do mesmo modo nos textos de Guimarães e na notícia?
Justifique.
a) Quais são os elementos que conferem objetividade à notícia?
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b) Ainda que mais objetivo, o texto apresenta marcas do sujeito que o
redigiu. Identifique essas marcas e procure mostrar o efeito de sentido
que elas produzem na notícia.
Ficha de atividade
Unidade – Curso:
Disciplina:
Atividade:
Nome(s) completo(s):
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Estudo da descrição
Os textos a seguir, de diferentes gêneros, são predominantemente
descritivos:
“Juliana entrou, arranjando nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta
anos e era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de
tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa
inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de
vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme.
Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto da roda, tufado
pela goma das saias — mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinas de
duraque com ponteiras de verniz.” (Eça de Queirós, O Primo Basílio)
“Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre
baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detrás
das lentes, um forte brilho