Download - Maria Dulce Reis
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FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
MARIA DULCE REIS
Belo Horizonte-MG
2007
TRITRITRITRIPARTIO E UNIDADE PARTIO E UNIDADE PARTIO E UNIDADE PARTIO E UNIDADE
DADADADA PSYKH PSYKH PSYKH PSYKH NO NO NO NO TIMEU TIMEU TIMEU TIMEU E E E E
NASNASNASNAS LEIS LEIS LEIS LEIS DE PLATODE PLATODE PLATODE PLATO
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MARIA DULCE REIS
TRIPARTIO E UNIDADE TRIPARTIO E UNIDADE TRIPARTIO E UNIDADE TRIPARTIO E UNIDADE
DADADADA PSYKH PSYKH PSYKH PSYKH NO NO NO NO TIMEU TIMEU TIMEU TIMEU E NASE NASE NASE NAS LEIS LEIS LEIS LEIS
DE PLATODE PLATODE PLATODE PLATO
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia. Linha de Pesquisa: Histria da Filosofia Orientador: Dr. Marcelo Pimenta Marques
Belo Horizonte-MG
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
Fev. 2007
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TRIPARTIO E UNIDADE DA PSYKH NO TIMEU E NAS
LEIS DE PLATO
Tese defendida e aprovada com a nota 100, indicada para publicao e para seleo ao
prmio CAPES de Teses, pela Banca Examinadora constituda pelos Professores:
___________________________________________________________
Dr. Marcelo Pimenta Marques (Orientador) FAFICH/UFMG
___________________________________________________________
Dr. Marcelo Perine (Examinador) PUC-SP
___________________________________________________________
Dr. Fernando Muniz (Examinador) UF-Fluminense
___________________________________________________________
Dr. Jacyntho Lins Brando (Examinador) FALE/UFMG
__________________________________________________________
Dra. Miriam Campolina Diniz Peixoto (Examinador) FAFICH/UFMG
Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 02 de fevereiro de 2007.
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Justo dedicar esta tese
a todos estes mestres e amigos
que colaboraram comigo
nesta travessia
por um mar de dificuldades.
Injusto seria, contudo, no reconhecer
que sem um deles, particularmente,
eu no teria ultrapassado
a primeira pgina...
Portanto, a estes amigos
e, especialmente,
a Jacyntho Lins Brando,
que me fez escre-ver...
quando isso me parecia
absolutamente impossvel.
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Feliz aquele que tem verdadeiros mestres... Palavras so pouco para dizer o quanto muitos
deles me ajudaram. Uma dvida impagvel, sinal de meu eterno reconhecimento e amizade.
Como foi importante o incentivo do Pe. Lima Vaz, o quanto isso me levou a persistir; as
suas palavras, os seus textos, o seu caminho rduo. O quanto jogou luzes e abriu caminhos
para cada um de ns, que tiveram ou no contato com ele, com a chama de sua alma...
Com o Prof. Marcelo Pimenta Marques, h quanto tempo venho aprendendo, em cada um
de seus cursos sobre Plato, de tal forma a provocar em mim e em tantos outros esse
irresistvel e belo vcio, que o do estudo do texto platnico; um aprendizado de
semestres, de anos, no de um momento s. Discernir, separar, diferenciar conceitos,
enfrentar o texto de Plato e o dos comentadores, deixar-se surpreender com os Dilogos
prazerosamente, isso nos foi sempre transmitido, ainda que sem o querer (tentando ser
neutro...). Correr atrs de seus cursos e de suas orientaes foi conseqncia disso.
Reinvidicar freqentemente por mais encontros e protestar contra o excesso de liberdade
concedida em relao tese ocorreram exatamente por eu confiar e desejar sempre a sua
palavra. O quanto foi importante a sua leitura crtica dos captulos, as sugestes sobre cada
pgina, os textos e livros cedidos (Robinson, Brisson e tantos outros), a reviso de vrias
passagens e da tese como um todo. Por todos esses motivos, a Marcelo todo meu
reconhecimento e gratido.
Quantas vezes e de tantas formas recebi a ajuda da Profa. Miriam Campolina... Com seu
incentivo e apoio, textos e discusses, mil vezes buscando-me de volta quando o
desnimo tomava conta, motivando, provocando debates, dando sugestes. O quanto esses
AGRADECIMENTOS
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momentos fizeram-me enxergar meu prprio trabalho de outra maneira, provocando vrias
mudanas no texto, o quanto deram frutos, estimulando-me a seguir em frente. O quanto
essa mulher-filsofa dez em vrios sentidos, na viso sinptica, no raciocnio, no rigor,
no critrio e cuidado com o trabalho de pesquisa filosfica o saber procurar, que me
ensinou ainda em minha iniciao cientfica. Sua leitura cuidadosa da verso da tese para o
exame de qualificao, as sugestes e as observaes agudas, feitas a cada pgina, foram
fundamentais para o aprimoramento e a correo da verso final. Miriam, minha eterna
gratido, por seu incentivo, exemplo, ateno e colaborao.
Que privilgio obtivemos com a colaborao do Prof. Jacyntho Lins Brando, tanto no
mestrado como no doutorado, na leitura do texto grego delimitado para esses trabalhos,
dedicando-nos muito de seu tempo, ateno e sabedoria. Qualquer nome seria muito pouco
para dizer de sua contribuio e seu gesto. Como foi importante para o desenvolvimento
destas pesquisas ouvir sua leitura, sua interpretao, debater alguns desenlaces do texto, o
que Plato teria querido dizer... Quanta pacincia teve em me socorrer, algum que nunca
foi boa aluna em grego... O quanto os dois trabalhos foram enriquecidos por sua
sensibilidade e genialidade, pois sua contribuio jogou luzes sobre o texto platnico,
sobre as hipteses iniciais, permitindo uma melhor compreenso das passagens sobre a
tripartio da alma (tanto na Repblica, como no Timeu e nas Leis) e melhor
fundamentao da argumentao, abrindo caminho para cada interpretao e para a
redao de cada um dos captulos, motivos pelos quais seremos sempre profundamente
gratos a ele. E, pessoalmente, o quanto toda essa sua contribuio e apoio foram decisivos
nos primeiros semestres da tese, em que me deparei com vrios impasses e inmeras
razes para abandon-la. Por tanto, Jacyntho foi musa... inspirador do que vi e escrevi.
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Agradeo tambm a todos os autores que, atravs de seus textos, contriburam para o nosso
trabalho, bem como ao Prof. Marcelo Perine, por sua leitura, questes e sugestes.
Enfim, minha gratido a esse filsofo, cujas palavras tm at hoje efeito curativo sobre
nossas almas, por ter-nos deixado um pensamento de tamanho valor, fertilidade,
genialidade, radicalidade e originalidade: Plato.
Fundao de Amparo Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo financiamento a
esta pesquisa por cinco semestres, o que foi fundamental para sua realizao. Ao
Departamento de Filosofia da UFMG, pelo estmulo constante pesquisa, pela qualidade
de seus cursos, professores e funcionrios. Biblioteca da FAFICH e da FALE e a seus
funcionrios. Biblioteca do Centro de Estudos Superiores (CES/ISI). Universidade
Federal de Minas Gerais, pblica, livre e, o que foi decisivo para minha formao, gratuita.
Aos professores que contriburam decisivamente para esta pesquisa, com a aquisio de
textos no exterior: Antnio Orlando Dourado Lopes, Cludio William Veloso e Luciana
Romeri, Marcelo Pimenta Marques, Mriam Campolina Diniz Peixoto, por tamanha
disponibilidade e contribuio; aos vrios colegas que auxiliaram igualmente com livros ou
textos, agradeo pelo apoio e incentivo, em especial a Hermes, por seus livros. Magda
Barbosa Taranto, pela reviso da tese. A Pe. Mrcio Paiva e Pe. Joo Nogueira Pereira, da
PUCMINAS, pelo acolhimento e apoio.
minha me, Zlia, pelo zelo de sempre... pela companhia, pacincia, fora e amor. A
meu pai, Telsforo, pela alma boa e bela, doce, alegre e pacfica, que foi e . A meus
irmos e suas famlias, pelo quanto representam para mim. Particularmente a Lilinho, pelas
leituras e debates sobre os textos de Plato, aliviando momentos inertes.
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Agradeo muitssimo e particularmente queles que me acolheram neste percurso,
cuidando de meu todo corpo e alma sem os quais, sem dvida, eu no teria realizado
esta tese e, sobretudo, uma necessria reconstruo de mim mesma: Paulo Marcelo Lessa,
Ftima Lcia de Oliveira, Antnio Luiz da Costa, Rodrigo Santiago, Cristina Vilhena.
Ao que chamamos Deus, a qualquer nome excedendo, agradeo por estes amigos, pelo que
aprendi e por ter concludo este trabalho.
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"Se Febo no tivesse feito Plato nascer na Grcia,
como teria ele curado as almas dos homens
atravs das letras?"
kai\ pw=j ei) mh\ Foi=boj a)n (Ella/da fu=se Pla/twna,
yuca\j a)nqrw/pwn gra/mmasin h)ke/sato;
Digenes Larcio, Vidas. III 45
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A presente tese defende a presena da teoria platnica da tripartio da psykh
(postulada em Repblica IV) no Timeu e nas Leis, como base da teoria tico-poltica nesses
trs Dilogos, pois os trs gneros da alma so reconhecidos como princpios de ao, sua
formao correta como geradora da virtude na alma e na cidade, sua m educao como
causa do estado interno de injustia e fonte potencial do mal moral. O trabalho aborda a
relao dos trs gneros da alma entre si, da psykh humana com a psykh csmica, com o
corpo humano, com o agir tico-poltico. Quanto ao Timeu, defende a psykh csmica
como uma terceira espcie de ousa, uma distino entre o logistikn e o princpio imortal
da alma humana, a presena de uma unidade tridica do composto corpo-alma, seu
desequilbrio como fonte das doenas da alma e sua educao como terapia. Quanto s
Leis, defende as seguintes posies: a tripartio da alma como subjacente proposio
das trs causas de nossas faltas, redefinio de injustia na alma, classificao e
tratamentos dos crimes, aos prembulos e penalidades das leis, compreenso do carter e
modo de agir do homem mau; uma reconsiderao e mudana na afirmao do paradigma
socrtico do mal inconsentido, devido ao reconhecimento do mal consentido; a virtude, o
vcio, o querer (bolesis) e a liberdade como estados internos de uma psykh tridica.
Identifica a fonte do mal moral nas relaes (educao e interao) dos homens entre si; e
relaes de mediao tridicas como constitutivas da realidade na filosofia de Plato.
Palavras-chave: Filosofia grega. Plato. Psicologia. tica. Poltica. Alma.
RESUMO
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La thse soutient que la thorie platonicienne de la tripartition de la psykh,
postule en Rpublique IV, est maintenue dans le Time et dans les Lois, tant la base de la
thorie thique et politique de ces dialogues. Les trois genres de l'me doivent tre
reconnus comme des principes d'action et, d'une faon gnrale, la formation droite de ces
genres doit tre comprise comme tant la source de la vertu dans l'me et dans la cit. Par
contre, sa mauvaise ducation est la cause de l'tat interne d'injustice et source potentielle
du mal moral. Finalement, on envisage les rapports des trois genres de l'me entre eux, de
la psykh humaine avec la psykh cosmique, avec le corps humain et l'agir thique et
politique. Quant au Time, on soutient les positions suivantes: que la psykh cosmique est
une troisime espce d'ousia, qu'il y a une distinction entre le logistikon et le principe
immortel de l'me humaine, qu'on doit reconnatre l'unit triadique du compos corps-me,
que les maladies de l'me son due au dsquilibre de ce compos et que son ducation est
une thrapie. Quant aux Lois, on soutient les positions suivantes: que la tripartition de
l'me est toujours sous-jacente la proposition des trois causes de nos fautes, la
redfinition de l'injustice dans l'me, la classification et aux traitements des crimes, aux
prologues et aux pnalits des lois, la comprhension du caractre et de la faon d'agir de
l'homme mchant. On soutient, encore, qu'il y a un changement dans l'affirmation du
paradigme socratique, d la reconnaissance du mal consenti, que la vertu, le vice, le
vouloir (bolesis) et la libert sont des tats internes d'une psykh triadique et on retrouve
la source du mal moral dans les relations (ducation et interaction) des hommes entre eux.
Finalement, on comprend les rapports des mdiations triadiques comme tant constitutifs
de la ralit dans la philosophie de Platon, en gnerale.
Palavras-chave: Philosophie grecque. Platon. Psychologie. thique. Politique. me.
RSUM
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INTRODUO.................................................................................................... 15
PARTE 1 A TRIPARTIO DA PSYKH RETOMADA NO TIMEU......... 47
CAPTULO 1 A alma humana no contexto da cosmologia platnica............... 47
1.1 Introduo....................................................................................................... 47
1.2 A concepo filosfica da psykh csmica (35a-35b; 36d-37c)..................... 52
1.3 A alma humana em sua relao com a cosmologia e a alma csmica (41c-
44c).......................................................................................................................
72
1.3.1 A alma humana faz parte das espcies de viventes mortais (41c-e) ........... 72
1.3.2 A alma humana (encarnada) possui um princpio imortal limitado e um
princpio mortal em ao a retomada da tripartio (42a-44c)
75
1.4 Concluso....................................................................................................... 88
CAPTULO 2 A tripartio da alma humana: corpo e alma, virtude e vcio 92
2.1 Introduo....................................................................................................... 92
2.2 Alma, corpo, unidade e tripartio................................................................. 95
2.2.1 A construo da espcie mortal da alma no corpo e suas propriedades
(69c-d)...................................................................................................................
95
2.2.2 Unidade e tripartio do composto alma-corpo humano (69e-73c)......... 101
2.2.2.1 O divino e o mortal no composto alma-corpo (69d-70a)....................... 101
2.2.2.2 A insero da alma na medula (73b-d): unidade alma-corpo................... 104
2.2.2.3. A alma e a trade encfalo corao/pulmo fgado/intestinos (70a-
73d)........................................................................................................................
107
2.3 As doenas da alma e a tripartio sade e doena, virtude e vcio............. 122
2.3.1 A perspectiva da doena como desequilbrio interno alma e entre corpo
e alma (86b-87b)...................................................................................................
122
2.3.1.1 As doenas da alma definio, espcies, causas, sintomas, preveno. 122
2.3.2 A perspectiva da doena como desproporo interna na alma e entre
corpo e alma (87c-88b).........................................................................................
136
2.3.2.1 As despropores, sintomas, tratamento................................................... 136
2.4 Concluso........................................................................................................ 142
SUMRIO
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PARTE 2 A TRIPARTIO DA PSYKH IMPLCITA NAS LEIS.............. 146
CAPTULO 3 A tripartio e as injustias na alma........................................... 146
3.1 Introduo....................................................................................................... 146
3.2 A virtude e a educao da alma (livros I, II e VII)........................................ 149
3.3 O vcio ou as injustias na alma (livro IX).................................................... 159
3.3.1. Introduo ao livro IX................................................................................ 159
3.3.2 As trs causas de nossas faltas (859c6-864c8)............................................ 166
3.3.2.1 Parte I: O justo e o belo; o inconsentido e o consentido.......................... 167
3.3.2.2 Parte II: Injustia e dano; as trs causas de nossas faltas........................ 176
3.4 Concluso....................................................................................................... 210
CAPTULO 4 A tripartio e os crimes contra o indivduo, os deuses e a
cidade....................................................................................................................
214
4.1 Introduo....................................................................................................... 214
4.2 Os crimes ou injustias contra um indivduo particular (864c9-882c4)........ 218
4.2.1 Os crimes do apetitivo................................................................................. 218
4.2.1.1 Assassinatos consentidos e deliberados (869e-874b)............................... 218
4.2.1.2 Agresses e mutilaes por agresses deliberadas (876e-878b).............. 220
4.2.2 Os crimes do irascvel.................................................................................. 223
4.2.2.1 Assassinatos pela clera (866d-869d)....................................................... 223
4.2.2.2 Agresses pela clera ou pelo medo (878b-879a).................................... 226
4.2.2.3 Ultrajes (879b-882c)................................................................................. 228
4.2.3 Os crimes do racional.................................................................................. 229
4.2.3.1 Assassinatos inconsentidos (865a-866d).................................................. 229
4.2.3.2 Agresses inconsentidas (879a879b)...................................................... 230
4.3 Os crimes ou injustias contra os deuses e contra a cidade (853d5-857b4)... 231
4.3.1 O crime do apetitivo.................................................................................... 231
4.3.1.1 Roubo de Templos (853d-854b; 864d-e)................................................. 231
4.3.2 Os crimes do irascvel.................................................................................. 234
4.3.2.1 Conspirao contra as leis por um grupo (856b-857a; 864d-e)................ 234
4.3.2.2 Traio s leis por uma autoridade do governo (856b-c; 864d-e)............ 236
4.3.3 O crime do racional..................................................................................... 237
4.3.3.1 O atesmo (L.X 886b s.)........................................................................... 237
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4.4 A amatha dos ateus: a alma csmica (livro X)............................................ 247
4.5 Vcio e virtude, o querer e a liberdade: a unidade da psykh......................... 256
4.6 Concluso....................................................................................................... 267
CONCLUSO...................................................................................................... 272
REFERNCIAS................................................................................................... 294
APNDICES (A, B, C, D, E) .................................................................................. 305
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O presente trabalho situa-se entre os campos da antropologia e da tica
platnicas, ambas inseridas na complexidade da filosofia de Plato, ligadas intimamente
sua ontologia, poltica, epistemologia e cosmologia. Apresenta-se como continuidade de
nossa pesquisa de mestrado, que versou sobre a teoria da tripartio da psykh postulada
por Plato na Repblica e cujo objetivo foi o de compreender o predomnio do elemento
racional da psykh, o logistikn, como condio para a realizao da ao justa, conforme
se apresenta nos livros IV e IX da Repblica de Plato, aps abordarmos a significao da
noo de psykh em alguns momentos significativos do pensamento pr-platnico
(pitagorismo, Herclito e o Scrates dos primeiros Dilogos), assim como nos Dilogos de
maturidade Fdon e Fedro.
De nossa dissertao de mestrado surgiram, dentre diversas concluses iniciais
a respeito da teoria da tripartio da alma em Plato, muitas questes a serem investigadas
em outra pesquisa, o que deu origem ao nosso projeto de doutoramento e ao presente
trabalho. Entre essas questes, a mais imediata e primria (pois gerou todas as outras que
fomos investigando no decorrer dos captulos da tese) foi a seguinte: a teoria da tripartio
da psykh permanece presente e com a mesma importncia na teoria tico-poltica de
Plato nos Dilogos tardios?
Nesse sentido, a presente tese teve como objetivos: investigar a relao entre a
teoria da tripartio da psykh e a teoria tico-poltica de Plato, nos Dilogos tardios
Timeu e Leis1, e demonstrar que a teoria da tripartio da psykh mantm-se como
1 H dificuldades quanto periodicizao dos Dilogos de Plato, discutidas pela literatura, sobretudo aps 1950, como aponta Brisson em sua traduo e comentrios ao Timeu / Crtias (1992). Adotamos a posio de
INTRODUO
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pressuposto fundamental da teoria tico-poltica de Plato em seus ltimos Dilogos, visto
que os trs gneros da psykh continuam sendo considerados a fonte (causa /aita) do agir
tico-poltico, bem como a ausncia ou presena de sua educao, responsvel pelo vcio
/kaka ou a virtude /aret.
No decorrer de nossas investigaes e da redao dos captulos da tese, o
prprio texto do Timeu e das Leis conduziu-nos a buscar sustentar ao menos mais duas
hipteses: a primeira a de que a teoria platnica da tripartio da alma a chave de
compreenso da relao corpo-alma no Timeu (o que chamamos de tripartio do
composto corpo-alma), bem como dos sintomas presentes nas doenas da alma
apresentadas nessa obra; a segunda a de que a teoria da tripartio da alma est na base
de toda a legislao proposta nas Leis (isto , dos prembulos, da diviso dos crimes e das
penalidades, que envolvem uma proposta de cura segundo a parte da alma afetada) e, por
esse motivo, tal teoria mostra-se tambm como a chave de compreenso dessa legislao (e
no apenas da teoria tico-poltica presente na Repblica, decorrente das concepes de
virtude e vcio como um modo de relao entre os trs gneros da alma).
Na redao de nossas pesquisas (dissertao e tese), traduzimos psykh por
alma e os trs gneros da alma, algumas vezes, por partes da alma, unicamente para
permitir mais facilidade de redao, leitura e pronncia do texto, pois Plato raramente
refere-se a partes e, freqentemente, utiliza ede para mencionar os trs princpios do
psiquismo humano. Veremos, oportunamente, que Plato extremamente flexvel quanto
ao vocabulrio que utiliza para referir-se a esses trs elementos, sobretudo no Timeu e nas
Leis. No podemos exigir desse filsofo a preocupao (que nossa) com uma
terminologia nica para as disposies internas da alma e tal ausncia no compromete a
concepo de psykh platnica. Devemos esclarecer tambm que traduzimos ede por
Brisson (1992, p.340-341) quanto a tomar o Timeu e As Leis como textos posteriores ao Poltico, considerando este ltimo como posterior Repblica.
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gneros com a inteno de destacar o sentido amplo de carter, conformao, indicando
a presena de diferentes disposies no interior da alma e no no sentido de raa ou
mesmo de Forma inteligvel (por esse motivo evitamos traduzir os ede da alma por
formas).
A ntima inter-relao entre os trs gneros, o alto grau de complexidade de
cada um deles e o pressuposto platnico de que a psykh incorprea so caractersticas
suficientes, a nosso ver, para impedir a compreenso do apetitivo, do irascvel e do
racional como partes estanques e para reivindicarmos outra terminologia para a
tripartio da alma, embora essa expresso apresente aquelas mesmas facilidades
mencionadas e seja utilizada por todos os comentadores da psicologia de Plato. Contudo,
no fcil encontrarmos um termo nico em portugus que substitua tripartio e com o
qual possamos apresent-la como uma unidade diferenciada e em constante inter-
relao, motivo pelo qual, na redao do presente texto, mantivemos tripartio da alma
como terminologia para dizer respeito quela teoria da psykh apresentada por Plato na
Repblica IV.
Visto que utilizaremos nossa leitura da Repblica como instrumento de
interpretao das afirmaes a respeito da psykh presentes no Timeu e nas Leis, devemos,
nesta introduo, transmitir quais foram as principais concluses de nosso primeiro
trabalho (mestrado) e que o leitor deve ter em mente para que possa compreender nossa
investigao atual e as discusses sobre os trs gneros da alma no Timeu e nas Leis.
Plato no foi o primeiro a referir-se psykh como algo dotado da capacidade
de pensar, sentir, decidir (antecedem-no a poesia lrica e pensadores como Herclito e
Demcrito), sendo que, j antes dele, fazia parte da cultura grega a distino entre alma e
corpo, presente, sobretudo, no orfismo e no pitagorismo, que inseriram na cultura grega a
concepo de que algo de natureza divina e imortal encontrava-se dentro do homem: sua
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psykh. Entretanto, Plato quem vai pela primeira vez realizar um original e complexo
estudo terico do psiquismo humano, em meio discusso tico-poltica da Repblica,
identificando e investigando o papel de suas diversas (e conflitantes) atividades e
capacidades, elaborando uma teoria da psykh.
Nos Dilogos de maturidade Fdon, Fedro e Repblica, encontramos algumas
caractersticas comuns no que se refere psykh, como a tentativa de demonstrar sua
imortalidade, a presena da teoria da reminiscncia e a defesa da primazia dos bens da
alma em relao aos do corpo. Mas podemos perceber algumas diferenas quanto ao modo
como Plato aborda a questo da alma nesses Dilogos. No Fdon, a alma caracterizada
como unida ao corpo, fonte de perturbao para a mesma, devendo afastar-se do que
corpreo para que possa atingir a verdade pelo ato de raciocinar /logtzethai (65a-d) ou de
pensar /dianoesthai (66a). Assim, o Fdon aborda o que h de racional na alma, propondo
que a psykh deva investigar em si e por si para que possa se manifestar a ela aquilo que
puro, uno, imutvel, aquilo que realmente (65a-d; 67b-d; 82d; 83b). Desse modo, a
alma tratada como simples, pois no h meno a uma tripartio, embora possamos
sugerir a presena de seu esboo no mito escatolgico final.
No Fedro, Plato busca qual seria a natureza /phseos da alma pela observao
de seus atos e afeces (245c s.), concluindo que ela automotora, fonte de movimento e
vida para os seres gerados, princpio indestrutvel e ingnito de movimento, sendo essa a
sua definio /lgon (245e). Ao colocar em questo qual seria a forma /ida da alma, tanto
a humana como a divina, tal assunto divino abordado atravs de um mito, no qual a
alma vista como uma unidade tridica, uma parelha de cavalos alados, dirigida por um
cocheiro, unidos por uma dnamis (246a s.). Segundo essa narrativa, as almas humanas
tm dificuldade de contemplar os seres em si na regio supraceleste, pois elas so
perturbadas pelos cavalos (248a), ficando limitadas opinio. necessrio tornar dcil o
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cavalo turbulento a fim de resolver tal conflito interno, de modo que ambos os cavalos
acompanhem o cocheiro (256b-e). No se trata de uma Forma inteligvel referente alma,
mas de sua conformao, sua estrutura tridica.
Na Repblica, no mais por um recurso mtico, e sim por meio de um discurso
explicativo, Plato postula o problema da tripartio2 se h elementos distintos ou no na
alma e se as aes so resultantes de uma ou vrias determinaes e demonstra que
aprendemos, irritamo-nos e temos apetites com / em elementos distintos (IV 436a-b). Os
trs gneros da alma o apetitivo, o irascvel, o racional so trs fontes de motivao
para a ao e a relao que estabelecem entre si (que depende de uma educao
apropriada) vai determinar a presena (ou no) das virtudes na alma e a ao virtuosa. Tal
concepo da psykh significa que no s a razo, mas tambm a desrazo, a
irracionalidade, estar presente na prpria alma e que no mais o corpo a grande fonte de
perturbao para a alma, mas seus prprios elementos irracionais: o apetitivo e o irascvel.
Para que a alma apreenda as Formas inteligveis, necessrio um difcil percurso, o de sua
ascese pela dialtica. S a alma do filsofo, atravs do logistikn, pode obter o
conhecimento do Ser (o saber iluminado pela verdade). Essas diferenas de perspectiva
mostram que a concepo platnica de psykh sofre mudanas ao longo dessas trs obras, o
que no significa que sejam excludentes. Mostram tambm ser a alma a grande fonte de
motivao para a ao.
2 Quanto teoria da tripartio da alma ser postulada na Repblica IV, parece haver consenso entre os comentadores (BRS, 1968, p.95, n.14; ROBINSON, 1970, p.41). Segundo Robinson (1970, p.39), alguns autores encontram a origem e inspirao de tal teoria platnica na doutrina das Trs Vidas (STOCKS; TAYLOR apud ROBINSON, 1970) que, por sua vez, considerada como sendo de origem pitagrica (BURNET; STOCKS; TAYLOR apud ROBINSON, 1970). Enquanto Burnet e Taylor (apud ROBINSON, 1970) consideram que a teoria da tripartio extrada da tica popular, outros autores sustentam que a alma tripartite uma viso defendida por Plato, tratando-se de uma anlise psicolgica com significao prpria (STOCKS; JOSEPH, apud ROBINSON, 1970). Colocamo-nos de pleno acordo com esta ltima posio enumerada por Thomas Robinson. Sobre uma possvel origem egpcia da tripartio da alma em Plato, ver Daumas (1984), que apia sua hiptese em documentos egpcios nos quais h registros referentes a trs motivaes internas no ser humano. Entretanto, Daumas no afirma que Plato tenha tido acesso a esses textos, apenas que dizem respeito a uma poca prxima quela que Plato teria visitado o Egito.
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No livro IV da Repblica, Plato apresenta a teoria da tripartio da psykh,
afirmando que aquilo que se encontra no plano maior da cidade tem sua origem
/eggegonnai3 no homem (IV 435e), ou seja, o arranjo interno de cada alma vai refletir-se
nas relaes dos indivduos entre si, no carter da cidade. Assim, o exerccio da virtude na
alma condio para a boa ao tico-poltica (IV 443c-d). Canto-Sperber (1996, p.1.151),
Cooper (1991, p.520), Griswold (1995, p.171) e Vargas (1991, p.38) ressaltam a
importncia da estruturao da alma para a estruturao da cidade, na teoria tico-poltica
da Repblica.
Os trs gneros da psykh so estabelecidos como diferentes, no livro IV, pois
realizam e sofrem aes contrrias em relao a eles mesmos e para eles mesmos: deve-se
admitir que se encontra, dentro da psykh, algo de diferente /hteron ti (439b; 440e), pois
jamais algo, sendo ele mesmo, poder sofrer, ser ou realizar contrrios com relao a ele
mesmo /kat t aut e para ele mesmo /prs t aut (436b; 439b). Eles podem ser
considerados trs princpios de ao, pois so capazes de mover toda a alma para a
finalidade implicada em cada fonte de motivao (em cada gnero). Trata-se de trs fontes
diferentes em sua natureza e em sua competncia: ao racional (o logistikn), o menor
elemento, compete governar os demais e exercer a racionalidade pelas operaes do
intelecto (conhecer, julgar, deliberar, etc.); ao irascvel (o thymoeids) compete combater,
agindo como auxiliar do racional, executando o comando deste; j ao apetitivo (o
epithymetikn), o maior e mais insacivel, cabe buscar a preservao da vida e a satisfao
de suas disposies. A irracionalidade est presente nos gneros apetitivo e irascvel, sendo
que este ltimo ocupa posio intermediria entre a desrazo e a razo, por ser passvel de
3 Scrates pergunta para Glucon por que necessrio concordar /homologen que em cada indivduo estejam presentes os mesmos gneros /ede e caracteres /the que na cidade. Na seqncia, o prprio Scrates responde: Porque eles (os gneros /ede e os caracteres /the) no surgem nela (na plis) a partir de outro lugar. Seria, na verdade, ridculo que algum supusesse que a irascibilidade no provm /eggegonnai dos particulares /idiotn, os quais possuem tambm essa mesma causa (435e), isto , esse mesmo temperamento. importante notar o sentido de eggegonnai (ek: provm de/ vem de dentro de; nasce dentro de; tem origem em).
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ser levado a seguir o racional, ou seja, de ser educado para a firmeza moral, auxiliando na
conteno de alguns apetites.
A psykh tridica apresenta-se como sujeita ao conflito /stsis4. O gnero
apetitivo pode opor-se radicalmente ao racional. Ao funcionar como auxiliar do racional,
quando, juntamente com ele, faz a guarda do apetitivo, cabe ao elemento irascvel
intermediar essa oposio. Mas, se no for educado devidamente, o irascvel pode,
tambm, opor-se s instrues do racional ou, ainda, entrar em conflito com determinados
apetites. A irracionalidade, inscrita no interior da alma, surge como fonte de conflito para a
mesma. A presena do conflito interior alma e a possibilidade de que um dos elementos,
que no o racional, tome o lugar do comando da alma, no sentido de uma sublevao,
explica uma srie de vcios possveis, seja das almas, seja dos regimes polticos, como
demonstra Plato no decorrer dos livros VIII e IX.
A teoria da tripartio da alma, apresentada na Repblica, muda a perspectiva
da concepo de alma presente nos Dilogos que a antecedem, no que se refere aos atos de
conhecer, julgar e agir, exercidos pela alma. Pois, na Repblica, Plato relaciona, entre
outros fatores, razo e apetite (o conhecimento impulsionado por um apetite que lhe
corresponde: o apetite de saber) e no s a alma conhece, diferentemente, coisas que se
distinguem conforme o grau em que participam da verdade e da claridade, mas tambm o
que ela pode conhecer e julgar depende da relao e da disposio dos trs gneros da alma
entre si. a alma tripartite que est envolvida como um todo nas atividades de conhecer,
julgar e agir, e no apenas a alma simples dos primeiros Dilogos.
O logistikn possui papel determinante nessas atividades, mas, nelas, todos os
trs gneros encontram-se envolvidos. Se no h a educao devida do thymoeids e do
4 O termo stsis pode ter o sentido de conflito, revoluo ou insurreio. Todos esses significados cabem situao da alma humana, os dois ltimos caracterizando melhor o estado da alma injusta, como veremos em nosso estudo das Leis IX. Por esses motivos, traduziremos diferentemente suas ocorrncias na Repblica, no Timeu e nas Leis, segundo for mais apropriado, conforme a presente observao.
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logistikn, se a alma no exercita a dialtica, se no utiliza o raciocnio, a experincia e o
discernimento como instrumentos para julgar /krnesthai, mas julga pela riqueza e o ganho
ou pela honra e a coragem (demandas do apetitivo e do irascvel), ela no poder
contemplar o que verdadeiro ao mximo e assim ir julgar, de forma equivocada, ser
mais (inteligvel) aquilo que menos. Apenas aqueles que exercitam a justia em sua
prpria alma (os que tm a experincia da sabedoria e da virtude) podem transpor a justia
para a ao e podem resistir s dores e paixes que escravizam o homem.
O logistikn permite que a alma resista dor e ao padecimento /pthos,
libertando-a, quando a alma como um todo segue a razo. A abordagem dos diferentes
tipos de prazer, no livro IX, permite a concluso de que a dor resulta da falta de
determinada satisfao e os prazeres resultam de uma satisfao ilusria de plenitude, com
exceo do prazer verdadeiro, ligado contemplao do inteligvel, ao qual no se
sucede a dor e que no deixa qualquer sofrimento, quando cessa. Por isso no se trata de
um prazer enganoso, sombrio, mas de um prazer puro, provado pela alma purificada
atravs da filosofia.
Tanto no Fdon como no Fedro e na Repblica, Plato afirma que aqueles que
agem seguindo os sentidos ou o par prazer-dor ou, ainda, movidos pelo apetitivo ou pelo
irascvel, sem que esses sejam guiados pela razo, enganam-se em relao ao que
verdadeiramente, envolvem-se com fantasmas, simulacros, encontram-se embriagados ou
dormindo, em um sonho e no na realidade. Portanto, Plato faz uma inverso no s da
concepo de realidade do senso-comum (atravs da diferenciao dxa/ epistme, visvel/
inteligvel), como das concepes ingnuas de psykh e de virtude. O visvel no o mais
verdadeiro, e sim o inteligvel. A psykh no simples (opondo-se, assim, ao corpo), mas
complexa, uma vez que seus trs gneros demandam diferentes objetos e fins,
encontrando-se em constante estado de tenso. A virtude no corresponde propriamente a
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determinado conhecimento, mas a uma dinmica saudvel estabelecida entre os trs
gneros da alma, uma ordenao interna na qual todos os trs gneros esto implicados.
a relao que o racional estabelece com o apetitivo e o irascvel que vai determinar seja a
virtude (sade da alma), seja o vcio (stsis na alma). Tais inverses indicam a
originalidade e a complexidade do empreendimento de Plato e a grande importncia da
teoria da tripartio da alma no contexto maior de sua filosofia.
A psykh tripartite deve buscar a sabedoria, a cincia a respeito do que o
melhor para o todo, alm das virtudes da temperana, da coragem e da justia. Cada uma
dessas virtudes constitui um modo de relao saudvel entre os trs gneros da alma (442b-
444b). A contemplao das Formas inteligveis afirmada como acessvel ao filsofo, por
meio da dialtica, e esse saber especfico necessrio para garantir a harmonia5 e a virtude,
na alma e na cidade. Assim, o futuro governante deve receber a educao filosfica. Nesse
sentido, a relao entre a psicologia e a tica presente nos livros IV, VIII e IX da Repblica
leva em conta todo o percurso de educao da alma do filsofo, descrito entre os livros V e
VII.
No mbito maior da Repblica, por meio da reflexo possibilitada pela teoria
da tripartio da alma e pela teoria das Formas inteligveis que Scrates responde aos
argumentos apresentados nos livros I e II por Polemarco, Trasmaco, Glucon e Adimanto.
Em resposta tese geral de que o homem mais injusto o mais feliz, Scrates desenvolve,
entre os livros IV e IX, trs demonstraes de que o homem justo (o rei-filsofo) o mais
feliz. Em nossa dissertao de mestrado, pretendemos ter argumentado o suficiente para
sustentar que a psicologia de Plato constitui uma das bases sob as quais se edifica a teoria
tico-poltica da Repblica, pois todas as trs demonstraes de que o homem justo o
5 Esta harmonia, na alma, diz respeito a uma relao de equilbrio entre os trs gneros hierrquicos e incorpreos da psykh, o que difere da concepo de alma-harmonia do pitagorismo, segundo a qual a alma seria uma mistura harmnica de pares de elementos corpreos e contrrios (Fdon 86b-c).
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mais feliz pressupem a teoria da tripartio da alma, o que no vimos ser reconhecido
pelos comentadores da Repblica aos quais tivemos acesso.
Quanto primeira dessas demonstraes, nosso estudo a respeito da tripartio
da alma evidenciou que, visto ser a justia uma virtude que resulta de uma relao
especfica entre os trs gneros da alma, relao essa em que o logistikn promove o estado
de unidade dos trs gneros em harmonia interna, o homem justo possui a sade da alma e
a situao oposta ocorre na alma do tirano, na qual o apetitivo a governa como um todo,
gerando um estado de injustia interna, de doena da alma (577e s.). Disso decorre que,
enquanto a alma filosfica parmetro de exerccio de liberdade e de justia, a alma do
tirano exercita a injustia e a escravido em si mesma. Assim, Scrates faz uma primeira
demonstrao, em resposta a Trasmaco, de que o homem justo (o filsofo) o melhor e o
mais feliz, em oposio ao tirano, que corresponde ao pior em virtude e ao mais infeliz.
A segunda demonstrao ocorre a partir da anlise dos diferentes tipos de
prazer e de homens, no livro IX. O filsofo, amigo do saber e do lgos, quem julga
melhor em relao ao amigo do ganho e ao amigo da honra, ele o mais experiente quanto
aos diferentes tipos de prazer (quais sejam: o prazer de aprender as coisas que so,
experimentado apenas pelo filsofo, o prazer de ser honrado, o prazer de lucrar); o nico
que experincia une o discernimento e que utiliza os lgoi como principal instrumento
para julgar. Sendo assim, as coisas que ele elogia so verdadeiras ao mximo. Nele,
governa a parte da alma que tende para o saber a verdade. Assim, dos trs prazeres que
existem, o desta parte da alma, atravs da qual aprendemos, ser o mais agradvel e
naquele em quem ela governa, a vida mais aprazvel (583a). O filsofo julga melhor,
tem o prazer mais puro, por isso o mais feliz.
A terceira demonstrao, o golpe mximo e decisivo, d-se por uma
complexa reflexo a respeito da experincia da verdade e pela diferenciao do prazer do
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filsofo em relao aos demais. Enquanto o prazer destes ltimos uma espcie de
sombreado, o prazer experimentado pelo filsofo totalmente verdadeiro (583b) e
puro. A falta de experincia quanto aos diferentes tipos de prazer (dentre os quais se inclui
o prazer puro) associada falta de experincia da verdade (584e s.), no seguinte sentido:
mais verdadeira a plenitude de nutrio do que mais, do que participa mais da
essncia pura /kathars ousas, daquilo que se refere espcie imutvel, do que diz
respeito espcie de coisas que se referem alma e no ao corpreo, daquilo que se enche
com as coisas que so mais, tambm ele sendo mais. Assim, o que enchido mais
pelo que e pelas coisas que so, tanto essencial quanto verdadeiramente, poderia alegrar-
se com o verdadeiro prazer (585e, grifo nosso).
Concluindo a terceira demonstrao, aqueles que tm experincia do
discernimento e da virtude, nos quais a alma toda segue o filsofo (586e), apenas eles
podem ter a experincia do que est verdadeiramente acima e, assim, do verdadeiro
prazer. Nos homens cujas almas seguem o elemento apetitivo ou naqueles em que o
irascvel no se encontra guiado pela cincia e pela razo, tal situao faz com que eles se
enganem quanto experincia da verdade. Eles ignoram a verdade e no provam o prazer
firme e puro, mas apenas seus simulacros. Ao contrrio, naqueles homens em cujas almas
o racional governa e o irascvel cumpre sua natureza de auxiliar do racional, ocorre que
eles aproximam-se da experincia da verdade e do prazer verdadeiro. Nesse sentido,
portanto, a teoria da tripartio da alma fundamenta todas as trs demonstraes feitas por
Scrates na Repblica, de que o homem justo o mais feliz, ao contrrio do injusto.
O que havia sido indicado j nos livros I e II por Scrates (que a justia um
bem em si mesma, que sua utilidade est nos efeitos que produz, que ela deve tornar o
outro melhor) fica demonstrado ao final desse Dilogo, no s pela teoria das Formas
inteligveis, mas, tambm, graas teoria da tripartio da alma. A justia o exerccio da
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ordem e da unidade, seja na psykh, na plis ou no ksmos, e produz como efeitos a unio
e a amizade. A sabedoria um bem, mas tambm o tudo aquilo que preserva e que
beneficia o homem, que o aprimora, o que inclui tambm seus sentimentos e apetites. A
injustia presente na alma do tirano, do timocrata, do oligarca e do democrata s pode ser
compreendida tendo como referncia a tripartio da alma no livro IV, ou seja, como um
estado de desequilbrio entre os trs gneros da alma. Por todos esses motivos,
consideramos ser impossvel uma compreenso aprofundada da Repblica sem a
compreenso adequada da teoria da tripartio da alma, ou seja, de suas importantes
relaes com a ontologia, a epistemologia e a tica platnicas.
Quanto ao logistikn nos livros IV e IX em relao ao justa, vimos que ele
possui papel decisivo quanto ao virtuosa, fazendo a ligao entre o saber (a
experincia do que est verdadeiramente acima) e a prxis (a passagem da virtude na
alma ao virtuosa; a ordenao da alma em funo do bem). Por isso, o logistikn
capaz de dirigir-se seja ao visvel, seja ao inteligvel. Se for devidamente educado - pela
filosofia (dialtica) - capaz de apreender as Formas inteligveis ou, como j referido
desde o Fdon, de possibilitar que se manifeste alma o que cada ser em si.
O pleno desenvolvimento e a efetiva realizao do logistikn est em transpor
o saber para a ao, a virtude na alma para a ao virtuosa. A relao entre teoria e prxis
pode ser vista como anloga relao do irascvel com os demais gneros da alma. A ao
pode ou no ser guiada pela razo. Nesse sentido, h a possibilidade de um conflito entre o
racional e o irascvel. Analogamente, h a possibilidade de conflito entre a teoria e a
prxis, j que o irascvel o elemento que executa (ou no) o que estabelecido pela
razo. H ambivalncia quanto ao (ela pode ser guiada ou no pela razo), assim como
h uma ambivalncia inerente ao irascvel. A soluo de Plato que, sendo o irascvel
auxiliar do racional por natureza, analogamente o poder e a prxis devem ser guiados pela
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razo. O poder poltico e a ao tica devem auxiliar a realizao da razo, do que h de
melhor e mais verdadeiro, no mbito da cidade.
A psicologia de Plato, conforme os livros IV, VIII e IX da Repblica,
evidencia que o homem pode agir em funo de apetites selvagens ou em resposta a um
grande conflito interno ou, ainda, em funo de um sentimento, pois no s o gnero
racional da alma princpio de ao, mas tambm o irascvel e o apetitivo. Plato talvez
tenha sido o primeiro a perceber no uma ciso entre teoria e prxis, mas a dificuldade,
dada a complexidade da alma, de que ela transponha o saber para a ao. No livro V,
Scrates afirma que a ao tem menos aderncia verdade do que as palavras (473a) e que
se trata, portanto, de realizar uma cidade mais prxima possvel daquela que estavam a
compor. Tal viso de Plato parece dever-se, entre outros possveis motivos, clareza da
sua compreenso de que o irascvel - elemento da alma diretamente ligado coragem, ao
combate, ao - pode aderir tanto razo quanto desrazo e que o logistikn dele
necessita para a realizao daquilo que reconhece como verdadeiro, que julga ser o melhor.
Portanto, sustentamos que o problema que aparece na Repblica no o da
possibilidade da no-coincidncia entre teoria e prxis - pois uma das potencialidades da
razo (e do logistikn) a de promover a unidade na diferena. O problema como educar
a alma, para que ela possa ser justa, para que ela possa visar e realizar o melhor (o Ser, o
Bem). A resposta para esse problema a proposta de educao pela filosofia, ou seja, no
s a educao do thymoeids pela arte das musas e pela ginstica, mas a educao do
logistikn pelas diversas cincias e, acima delas, pela dialtica, verdadeira cincia (alma do
filsofo).
Segundo interpretamos, somente por meio da nica cincia capaz de conduzir a
alma ao princpio autntico (a dialtica), a alma poder realizar a experincia da
contemplao do Ser e estar em justia. Esse parece ser o acrscimo dado pelo livro IX
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em relao ao IV, quanto relao entre a tripartio e a ao justa: ser justo no s
exercer um determinado modo de relao entre os diferentes elementos da alma, mas
faz-lo a partir da experincia de um saber especfico, o da contemplao da verdade. Isto
explica a necessidade da educao do guardio pela dialtica, de modo a fazer-se do
guardio um filsofo (L. VI-VII).
Plato reconhece uma estreita ligao entre apetite e saber, entre desejo e
razo (ros e lgos). As diversas operaes do logistikn (conhecer, julgar, discernir,
decidir, etc.) decorrem no apenas do impulso de determinados apetites, mas, de modo
mais amplo, da ao do desejo, isto , do movimento do ros filosfico, pois este conduz a
alma como um todo no s ao que h de mais valoroso, mas continuidade de seu
movimento, continuidade da vida (seja em direo imortalidade ou plena realizao
de seu ser). A educao da alma envolve, assim, o direcionamento do fluxo dos apetites
para o logistikn, a ateno aos apetites melhores, isto , que possuem mais valor, pois so
aqueles capazes de conduzir a alma ao conhecimento e realizao do que h de melhor,
nos sentidos ontolgico e tico.
Quanto mais a alma age em funo de um apetite, sem a orientao do
logistikn, sobretudo dos apetites mais selvagens, mais se torna invivel a vida tico-
poltica (como o caso do tirano e da tirania). Quanto mais a alma age guiada pelo desejo
do melhor e da unidade (o que implica a ao do logistikn), mais alimenta o que h de
sbio e divino em si mesma e tanto mais viabiliza a realizao, no plano maior da cidade,
da ordem /ksmos, da justia, da vida tico-poltica.
No contexto maior da Repblica (aquele da busca da justia), a investigao
sobre a alma humana e sua resposta atravs da complexa teoria da tripartio ocupam papel
fundamental. Apenas uma demonstrao da verdadeira natureza da alma humana pode
desmascarar os argumentos a favor da injustia e, ao mesmo tempo, dar razo tese do
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governo do melhor (do racional; do bem nele mesmo) e da justia como um bem. Ao final
da Repblica fica evidenciado que:
. afirmar (como o fazem os defensores da injustia) que vantajoso ser injusto
afirmar, como bem maior para o homem, a aquisio, o poder ou a satisfao de
determinados apetites, ou seja, aquilo que responde s demandas dos gneros irascvel
e apetitivo da alma; significa identificar o bem ao prazer, ao poder, o que constitui um
equvoco, pois ele no nem o prazer, nem o poder, nem algo que se restrinja ao
apetite;
. afirmar (como o faz Scrates a partir da teoria da tripartio da alma) que melhor ser
justo afirmar que o bem maior para o homem o da plena realizao de sua
humanidade, o que no se restringe ao desenvolvimento de sua capacidade racional,
mas diz respeito, tambm, ao desenvolvimento do que ele possui de afetivo e de
apetitivo, e que passvel de ser voltado em direo ao melhor: ao bem, ao lgos,
ordem, sabedoria. afirmar tambm que ser justo depende do governo do melhor,
isto , daquele que predisposto por natureza a governar, a discernir o melhor do pior,
daquele que sbio e divino: o logistikn.
O logistikn o nico elemento da alma capaz de direcionar a diversidade dos
apetites e sentimentos, a multiplicidade de pensamentos, discursos e opinies, rumo
unidade da razo, ao caminho que ela indicar. Por possuir esse papel semelhante ao da
Forma inteligvel, em relao multiplicidade sensvel, o logistikn destaca-se em relao
aos demais elementos da alma e apresenta-se como aquele elemento que faz da alma um
ser entre o sensvel e o inteligvel, capaz de dirigir-se ao mutvel e ao imutvel. O governo
exercido pelo logistikn no imposto pela fora; um governo exercido pela cincia, que
ele pode e deve possuir; exercido, portanto, pelo conhecimento (a contemplao do
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inteligvel, o saber sobre o que prprio a cada um dos gneros da alma) e pela palavra (o
deixar-se guiar pelo lgos).
A tripartio da psykh exposta na Repblica permite a interpretao da alma
como uma espcie de potncia de relao6, bem como a virtude como um modo de
relao entre os trs gneros da alma, e no apenas como conhecimento. Para que o
irascvel preserve o que transmitido pela razo, em relao ao que temvel ou no
(coragem), necessrio que o par irascvel-racional atue efetivamente sobre o apetitivo.
Para que o racional governe cada um e todo o conjunto dos trs elementos da alma, ele
deve atuar sobre o par irascvel-apetitivo, governando a ambos com sua cincia
(sabedoria). Para que haja sintonia entre os trs elementos, preciso que o par irascvel-
apetitivo no se revolte contra o racional (temperana). Para que haja unidade na alma
(justia), necessrio o governo de si mesmo por si mesmo /rkanta autn auto, o que
requer a ao do logistikn sobre os demais gneros, o exercer cada elemento aquilo que
lhe prprio, a harmonia entre os trs diferentes elementos.
Se a virtude no propriamente conhecimento, ento ela no algo a ser
propriamente aprendido, mas um estado de alma a ser conquistado. Na Repblica (VIII-
IX), diferentemente da concepo socrtica dos primeiros Dilogos, o agir moral pode ser
determinado por um apetite mau e no simplesmente pela ignorncia. Assim, no caso da
tirania, por exemplo, o que impede a conduta virtuosa no apenas que o tirano ignora a
verdade no sentido ontolgico e tico. O problema que isso ocorre porque sua alma
governada pela parte apetitiva, mais especificamente por apetites selvagens. Sua alma no
6 Ressaltamos que o uso do termo potncia de relao para caracterizar a alma na Repblica nosso, pois Plato utiliza essa terminologia no Sofista para designar a sua concepo de Ser (e no de alma) como dnamis koinonas, aqui no sentido de condio de possibilidade inteligvel do entrelaamento recproco dos gneros maiores. Em analogia, propomos reconhecer a alma humana como uma potncia de relao, devido dinmica interna entre seus gneros, bem como sua capacidade de afetar e ser afetada pelo meio externo. Vale dizer que a alma referida como potncia tanto na Repblica 437a-b como no Fedro 270c-d. A partir de Repblica 436b, Scrates parte para a investigao das aes e afeces da alma, ou seja, o que ela faz e o que ela sofre. O par aes-afeces engloba a noo de dnamis, como potncia de agir e sofrer
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conquistou a harmonia, no exercita a justia nela mesma. por isso que o tirano est o
mais distante da virtude e da ao justa. Vimos que a questo na Repblica no se a
virtude pode ser ensinada, mas, sim, se a alma pode ser educada, sendo necessrio, para
tanto, investigar a sua estrutura, como ela age e como afetada. Por isso, a proposta de
Plato a de educao da alma, para que ela possa fazer-se virtuosa, dirigindo-se ao que
realmente tem valor. Portanto, no apenas o logistikn em sua natureza, mas mais
propriamente a educao do logistikn mostra-se como a condio para a realizao da
ao justa. Ela redireciona o olhar da alma para o que h de puro e de melhor: o inteligvel,
o Bem e permite o movimento da alma em direo sua plena realizao.
Tomando-se a cidade boa e o rei-filsofo como ideais tico-polticos (no
sentido de um projeto possvel para o homem de realizao plena das potencialidades
humanas) e a tirania e o tirano como seu oposto (como possibilidade de destruio da vida
pblica), podemos concluir que a ao humana vai situar-se entre esses dois plos, em
funo daquilo que os determina: a presena ou a ausncia do desejo e do conhecimento
acerca do que h de mais valoroso nos sentidos ontolgico e tico (o Ser e o Bem); a
educao (ou no) do logistikn como condio fundamental para a ao justa.
No h, portanto, ao absolutamente justa ou alma absolutamente justa (assim
como seus opostos absolutos). Mesmo no caso do rei-filsofo, a alma e a ao so justas no
sentido de que participam da Forma inteligvel da justia, sendo, portanto, imagens desta.
Ainda mais se levarmos em conta que a alma humana existe e atua no espao entre os
dois plos a que referimos. Nesse espao, a alma e a ao sero to mais justas quanto
mais verdadeiro for o conhecimento, pela alma, do que h de mais valoroso (do inteligvel,
do bem nele mesmo); quanto mais a alma buscar o bem em si e no bens particulares;
quanto mais mobilizar (isto , desenvolver e usar) o que h de mais valoroso na alma, isto
ao e nele se manifestam os trs gneros da alma, segundo Vargas (1991, p.42): Platn non hace aqu explcita su doctrina de la dnamis, pero la usa.
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, as potencialidades do logistikn, o que ela possui de mais humano e de mais prximo do
divino.
H, portanto, uma hierarquia, seja no interior da prpria alma (o logistikn = o
melhor; apetites ligados ao racional = os melhores), seja entre visvel e inteligvel (o
inteligvel = o mais iluminado pela verdade), seja entre bens particulares e o bem em si
(o bem tem seu valor em si mesmo e pelos efeitos que produz; fundamento da justia).
O caminho educativo indicado por Plato para o homem , portanto, o de
seguir o que h de mais valoroso, o reorientar o olhar para onde deveria (518d),
tornando livre a alma e assim tambm a cidade. A escravido, tanto para a alma como para
a cidade, est na vitria daquilo que h de menos valoroso e que se ope ao lgos,
medida, ao que puro e divino. Ao contrrio, a liberdade o guiar-se pelo que h de mais
valoroso, o exerccio (e o desejo) do melhor, a realizao (e a vitria) da razo e do bem
em si e por si, seja no domnio da alma, seja no da cidade. A tica platnica apresenta-se
como cincia da liberdade (VAZ, 1993a, p.184) e como horizonte capaz de conduzir o
homem plena realizao de sua humanidade.
Destacam-se, na teoria tico-poltica presente na Repblica, as concepes de
regncia de si prprio /rkanta autn e de liberdade /eleuthera como conseqncia desse
domnio de si mesmo. Elas implicam o exercer a justia internamente, sobre si mesmo,
sobre suas prprias coisas (entre os trs elementos da alma), isto , pressupem a presena,
no homem, de uma lei interna, do governo da razo em si prprio. Assim, guiar-se pelo
lgos ser livre (o que se ope ao guiar-se pelo que h de insacivel, desprovido de razo,
sem leis e que por isso escraviza o homem, aproxima-o do animal). A plena realizao de
sua humanidade corresponde, portanto, plena realizao das potencialidades do
logistikn, a uma aproximao ao divino, que pode ser interpretada como uma realizao
do divino no homem.
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Em sntese, aquele que exerce o governo de si mesmo, a liberdade em si
mesmo, a escolha do melhor em sua prpria alma no necessita seguir uma espcie de lei
moral universal. Ele j tem, dentro de si mesmo, as condies para realizar a ao moral, a
ao justa, pois j exercita, em si mesmo, constitutivamente, a justia. por esta via que o
projeto de Plato ultrapassa a histria e aplica-se ao homem no sentido universal. Plato
estabelece que a vida poltica depende significativamente do homem interior: do arranjo
interno de sua alma, do elemento que a governa (qual princpio de ao, quais apetites); do
que busca (qual bem, qual prazer, qual saber), da compreenso que possui quanto ao que
mais verdadeiro e quanto ao que existe de mais valor. A antropologia platnica, conforme
se apresenta na Repblica, afirma, assim, a necessidade de compreenso da psykh (de sua
natureza, de seus atos e afeces) para se pensar o contexto maior da poltica, o que faz da
psicologia de Plato um ponto de importncia fundamental em sua antropologia.
A teoria da tripartio da alma postulada na Repblica permite a Plato
reconhecer a vida poltica como uma via de mo-dupla, pois tanto a forma da constituio,
a educao e a formao influenciam o destino do homem particular, como o arranjo
interno da alma humana traz conseqncias para a vida tico-poltica. No caso especfico
do governante, inclusive, tal arranjo determina o modo de governo que este ir exercer
junto cidade7. Tratando da vida poltica, Plato joga luzes sobre o homem e a tica ao
mencionar que os caracteres da cidade surgem a partir do homem interior. Assim, nas mos
do homem esto igualmente colocadas as possibilidades da destruio da vida pblica e da
construo de uma cidade justa. A antropologia platnica estar sempre visada na
convergncia entre psicologia e poltica (alma e cidade), tica e ontologia (virtude e Ser;
homem, cidade e ksmos).
7 O que Plato desenvolve nos livros VIII e IX da Repblica. Poder-se-ia argumentar que, assim como os males da cidade encontram sua origem na alma de cada indivduo, tais males tambm produzem indivduos injustos. Isso pode ocorrer, mas no a todos os indivduos, o que excluiria o prprio Scrates platnico (considerado, por Plato, o mais justo dos homens at o ltimo momento de vida do mestre).
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Resta-nos indicar os motivos que justificam a presente tese de doutorado e,
sobretudo, quais so as correlaes que propomos fazer entre a Repblica, o Timeu e as
Leis. Tendo em vista os pressupostos da filosofia de Plato j expostos, bem como nossos
objetivos, tais justificativas e correlaes so as seguintes:
A) A importncia de se considerar a tripartio da alma em Plato como um
conceito central em sua filosofia e, mais especificamente, pela relao direta que
mantm com sua teoria tico-poltica.
A teoria da tripartio da alma postulada na Repblica e mantida por Plato at
seus ltimos Dilogos , em geral, brevemente tratada pelos comentadores, que destacam
mais freqentemente como conceitos determinantes da teoria da alma platnica a definio
da alma como princpio de movimento e de vida ou, ainda, a defesa de sua imortalidade.
Poucos so os trabalhos (por ns identificados em nossa pesquisa bibliogrfica) que tratam
da teoria da tripartio da alma e que explicitam a relao direta que ela possui com a
teoria tico-poltica de Plato. Nossa pesquisa poder contribuir para a explorao do tema
e para preencher essa insuficincia na bibliografia platnica. A tripartio da alma
apresentada na Repblica torna a teoria da alma, at ento presente nos Dilogos
socrticos, mais complexa e propriamente platnica, firmando-se como um conceito
central em sua filosofia, articulada sua ontologia, epistemologia, cosmologia e teoria
tico-poltica8.
8 Concordamos plenamente com os autores que percebem a teoria da tripartio da alma na Repblica como original e complexa e no apenas como decorrncia da analogia estabelecida entre cidade e alma. Entre esses autores, destacamos: Canto-Sperber (1996, p.1.151), para quem la psychologie morale de Platon est dune si grande complexit quil semblerait trs reducteur dy voir lombre porte par des divisions politiques, e Cooper (1996, p.520), ao considerar que la thorie de Platon propose, de manire subtile et intressante, des faits incontestables sur la psychologie de la motivation humaine, et que cette thorie rend compte, mieux que ne peuvent le faire dautres thories postrieures, de certains traits fondamentaux des tres humains... Il y a, en fait, tout lieu de penser que pour Platon, en dpit de lordre dexposition adopt, lide selon laquelle
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B) Importncia de dar continuidade ao trabalho j realizado em nossa dissertao de
mestrado, investigando, agora, a relao entre a teoria da tripartio da alma e a
teoria tico-poltica de Plato em Dilogos tardios.
Pelo exposto no item anterior e pelo fato de que a tripartio da alma mantida
(tanto direta como indiretamente) no Timeu e nas Leis, temos motivos suficientes para
investigar esses Dilogos, sobretudo por tratar-se dos provveis ltimos textos de Plato,
os quais tm fortes ligaes com sua teoria tico-poltica.
C) Importncia de aprofundar a argumentao a favor da hiptese de que a teoria da
tripartio da alma fundamenta o conceito de virtude propriamente platnico
(diferentemente da concepo de virtude como conhecimento, presente nos Dilogos
socrticos) e de que seu exerccio condio necessria sade9 da alma e da vida
tico-poltica.
A teoria tico-poltica platnica exposta na Repblica (associada teoria da
tripartio da alma) diferencia Plato de seus antecessores, inclusive de Scrates. Nos
Dilogos do perodo de maturidade de Plato, percebe-se a retomada da investigao sobre
a alma e a virtude, que teria sido feita por Scrates (assim como de seu mtodo dialgico) e
a tentativa, por parte de Plato, de superar as aporias presentes nos primeiros Dilogos,
aprofundando significativamente a reflexo sobre o Ser, a alma, a virtude. Nesse sentido,
no s a teoria das Formas inteligveis, mas tambm a teoria da tripartio da alma (alm
la justice requiert trois classes sociales distinctes sappuie sur la conception selon laquelle il y a trois parties indpendantes dans lme, plutt quelle ne lappuie. Cest la thorie psychologique que Platon considrait comme mieux ancre dans les faits. Si cela est vrai, il faut alors, en restituant largumentation de la Rpublique, donner la place dhonneur la thorie psychologique. 9 Cf. Repblica IV 444b-e.
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da teoria da reminiscncia) representam um avano em relao filosofia socrtica e
podem ser consideradas como aquelas que caracterizam propriamente a filosofia de Plato.
Plato, assim como Scrates, inscreve a eticidade na natureza da alma, o que j
significa um rompimento com a moralidade comum10. Mas, diferentemente do chamado
intelectualismo socrtico (no qual a virtude saber e conhecer a virtude ser virtuoso),
Plato reconhece uma fundamentao do agir moral que pode ser tanto racional quanto
irracional ou afetiva e concebe a virtude como uma atividade interna da alma, que envolve
todos os seus trs elementos. A teoria da tripartio da alma permite que Plato conceba a
virtude no apenas como conhecimento, mas como um modo de relao entre os trs
gneros /ede da alma, concepo mais complexa que a presente nos Dilogos que
antecedem a Repblica. a relao que o racional estabelece com o apetitivo e o irascvel
que vai determinar seja a virtude (sade da alma), seja o vcio (stsis na alma). Da decorre
o papel fundamental da educao do irascvel e do racional para que cada elemento cumpra
aquilo que lhe prprio por natureza, para que haja a presena da virtude e da harmonia na
alma11.
Autores recentes reconhecem que Plato concebe a virtude na Repblica como
um modo de funcionamento timo, seja do interior da alma, seja das classes /gne na
cidade12. Entretanto, parece mais ampla a concepo de virtude como uma dinmica de
relao entre os trs gneros da alma, tal como desenvolvida no livro IV da Repblica. O
fim da ao continua sendo algum bem (prprio disposio de cada elemento), mas seu
ponto de partida tanto pode ser o desejo de apreender o Ser quanto a simples necessidade
10 Plato defende realidades morais objetivas (Canto-Sperber, 1996, p.1.148), que no dependem dos desejos dos homens nem de uma conveno; ao mesmo tempo, Plato vai fundar o agir moral em bases no exclusivamente racionais ao reconhecer a alma humana como no exclusivamente racional. 11 Cf. Repblica 431e; 430c. 12 Ver, por exemplo, essa mesma afirmao em Canto-Sperber (1996, p.1.151) e em Vargas (1991, p.38).
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de satisfazer a disposio de um apetite em si, como o de comer. A presena do conflito no
interior da alma, de motivaes totalmente diferentes (algumas opostas), assim como a
formulao dos trs gneros da/na alma como trs princpios de ao diferenciam a
concepo de alma e a tica de Plato daquelas do Scrates dos primeiros Dilogos.
O que a alma pode conhecer e julgar depende da relao e da disposio entre
os seus trs gneros, bem como o agir moral. Como vimos na Repblica, se no h a
educao devida do thymoeids e do logistikn, se a alma no exercita a dialtica, se no
utiliza o raciocnio, a experincia e o discernimento como instrumentos para julgar, ela no
poder contemplar o que verdadeiro ao mximo e assim ir julgar de modo equivocado
que mais (inteligvel) aquilo que menos, que tem mais valor aquilo que tem menos
valor. Nesse caso, a alma no exercer a(s) virtude(s) em si prpria, bem como na vida
tico-poltica.
A filosofia de Plato concebe a justia como verdadeira natureza da alma,
assim como a medicina concebia o modelo de sade como estado normal (aret) da
natureza fsica (JAEGER, 2001, p.759, n.202). Ao ligar as razes da virtude natureza da
alma, Plato retira a justia do terreno ambguo da conveno e permite que ela surja como
parmetro para a definio da vida melhor (BIGNOTTO, 1998, p.100). O que
melhor no ser propriamente aquilo que estabelecido culturalmente como tal, mas
aquilo que, impresso pela natureza, faz com que o homem cumpra o que lhe prprio13,
que realize plenamente (e aqui se insere sua realizao como ser poltico) a sua
humanidade.
D) Necessidade de demonstrar que a teoria da tripartio da alma mantm papel
fundamental na teoria tico-poltica tardia de Plato, ao contrrio do que defendem
13 No livro IX da Repblica, ao tratar dos apetites ligados ao irascvel, Scrates acrescenta: se o melhor /bltiston para cada um tambm o mais prprio /oikeitaton. (586e; grifo nosso).
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certos autores, como veremos a seguir. O que justifica nossa tese que nos Dilogos
tardios os trs gneros da alma so igualmente considerados fontes de motivao
para a ao, responsveis pela conduta tico-poltica; a educao da alma sendo o
fator necessrio conquista da virtude, tanto nas Leis (IX 863a-864c) como no
Timeu (86e-87b).
No Timeu e nas Leis, a teoria da tripartio da alma mantm o mesmo papel
fundamental no mbito da teoria tico-poltica de Plato que aquele presente na Repblica.
Entretanto, ela no se encontra to extensamente tematizada como ocorre na Repblica,
pois no se trata de postul-la, mas de mant-la como um pressuposto subjacente sua
filosofia. H uma retomada da tripartio da alma, portanto, nos ltimos Dilogos de
Plato, de forma direta no Timeu e de forma indireta, como pretendemos demonstrar, nas
Leis.
No Timeu, a tripartio da alma retomada de forma articulada cosmologia
platnica. As almas humanas so geradas a partir da gerao da alma do ksmos, com
elementos que sobraram da gerao desta (41d-44e). Os trs gneros da alma humana
so agora considerados em sua ligao com regies correspondentes do corpo humano
(69b-72d). Desse modo, h uma relao especfica entre os gneros da alma, que coincide
com o j afirmado na Repblica, o elemento irascvel capaz de ouvir e executar os
comandos do elemento racional, que no deve dar ouvidos aos clamores da parte
apetitiva, daquela que busca impelir satisfao imediata. Os trs gneros da alma
encontram-se em trs locais correspondentes da medula e esses laos s se desfazem com a
morte (82d-e). Alma e corpo so ligados por toda a vida e esto em comunicao
constante.
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O Timeu fala tambm sobre como surgem as doenas do corpo, passando, a
partir de 86a, a tratar das doenas da alma (86b-88b), abordando duas espcies de
desrazo /anoas, isto , a loucura e a ignorncia /t mn manan, t d amathan (86b). Os
prazeres e as dores excessivos seriam as mais graves doenas da alma. Os tratamentos
propostos por Plato para tais doenas incluem a educao da alma para a virtude (87b) e a
devida nutrio dos trs gneros da alma (89d-90e). Todas essas importantes passagens
devero ser exploradas em nossos captulos sobre o Timeu.
Em Timeu 86e-87b, tendo j tratado da tripartio da alma no mbito da
cosmologia e de sua ligao com o corpo humano, Timeu acrescenta: ningum mau
consentidamente; os homens s se tornam ruins por educao mal dirigida e alguma
disposio viciosa do organismo (86e). importante investigar o sentido dessa relao
(alma /corpo /educao) e do fator educativo como possvel fonte do mal moral. Em 87a,
Timeu afirma:
O mesmo ocorre com os sofrimentos, fonte de grandes vcios para a alma, por intermdio do corpo. (...) Abrindo caminho na direo das trs regies da alma, de acordo com a regio invadida, os humores da pituitria produzem formas de humor moroso e tristeza, audcia ou covardia, esquecimento ou dificuldade em aprender...
Tal narrativa sugere uma ntima relao entre corpo e alma na produo das
doenas da alma. Portanto, h sintomas psicofsicos e causas do agir moral que parecem
estar diretamente ligados tripartio da alma. Tais correlaes e a relao corpo-alma no
Timeu valem ser estudadas com profundidade.
Quanto s Leis, seu texto no faz referncia explcita tripartio da alma, mas
a teoria da tripartio parece estar subjacente argumentao desenvolvida por Estrangeiro
de Atenas, Clnias e Megilo, tanto no que diz respeito educao da alma do cidado
(livros I, II, VII) quanto extensa reflexo acerca da injustia na alma e da ao m (livro
IX). Buscaremos, ento, fazer uma leitura dos livros I, II, VII e IX das Leis sob a
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perspectiva da tripartio da alma, isto , diferentemente das habituais interpretaes dos
comentadores a respeito desses livros, devemos mostrar o quanto e como a teoria da
tripartio da alma encontra-se interligada proposta tico-poltica e educativa defendida
por Plato nas Leis.
No livro IX, destacam-se as passagens nas quais o Estrangeiro de Atenas
discute as motivaes internas do homem para agir, ou seja, os apetites maus, os prazeres e
as paixes, as afeces, como a inveja, a ira, o medo, alm de vrios tipos de ignorncia
(853d-854b, 860d-862b, 863a-863c, 864b-864d), o que parece significar uma nova
retomada da teoria da tripartio da psykh. Em 863a864c, h um debate a respeito das
trs causas de nossas faltas. Acreditamos que elas estejam diretamente ligadas aos trs
gneros da alma. Assim, posicionamos-nos contra a opinio dos autores que
desconsideram a presena fundamental da teoria da tripartio da alma nas Leis (entre eles,
BRS, 1968; PRICE, 1998; ROBINSON, 1970), como teremos a oportunidade de detalhar.
Pretendemos sustentar tal presena e importncia a partir do estudo de
passagens do livro IX, como as que mencionamos e como a 864a. Nela, a injustia na alma
definida como o domnio tiranicamente exercido na alma pela clera, o medo, o prazer,
a dor, as invejas e os apetites, quer provoquem dano ou no. Na sequncia (864b), o
Estrangeiro de Atenas considera que haveria trs tipos de males, fazendo referncia a mais
uma trade:
um, como sabemos, doloroso e isso ns chamamos de paixo /thymn e medo /phbon. O segundo tipo consiste de prazer /hdons e apetites /epithymin; o terceiro, que um tipo distinto, consiste no abandono das esperanas e da opinio verdadeira em relao ao melhor /per t riston...
Se a ao m est ligada a esses trs tipos de males e aos trs gneros da alma,
devemos buscar investigar como isso ocorre em cada gnero de crime e se seria possvel
direcionar tais almas a um estado de virtude. O livro IX mostra que uma boa legislao e
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constituio poltica devem levar em conta a complexidade da alma humana, ou seja, os
trs diferentes gneros da psykh como princpios de ao.
O destaque que damos a tais passagens do Timeu e das Leis visa a enfocar o
papel da tripartio da alma em relao teoria tico-poltica de Plato nesses Dilogos.
Nossa pesquisa no pretende desconsiderar, entretanto, a esfera maior dos dois Dilogos
em questo, assim como a sequncia de reflexes, em cada um dos textos, que conduziu a
tais afirmaes como as descries acerca da alma csmica e da gerao da alma
humana, de sua tripartio e encarnao feitas no Timeu ou a importante discusso sobre as
relaes entre o justo e o belo, o ato consentido e o ato inconsentido, o dano e a injustia,
no incio do livro IX das Leis, bem como as importantes afirmaes relativas alma no
livro X.
As diversas questes que decorrem de todos esses temas, no abordadas na
presente justificativa, sero oportunamente levantadas no decorrer da tese (tais como: qual
o lugar da alma na inteno poltica do Timeu? Qual a relao entre o que h de mortal e
de imortal na alma e os crculos do mesmo e do outro expostos no Timeu? Qual a
relao entre natureza da alma e constituio da alma, imortalidade e eternidade, gerao e
corrupo? Qual a relao entre a alma mpia do livro IX das Leis e a definio da alma
presente no livro X? Qual a proposta de cura para os males da alma referidos nos dois
Dilogos? A meno da tripartio da alma no Timeu e nas Leis possui inteno idntica
quela presente na Repblica ou no? Qual o papel da educao e do desequilbrio na
alma, nas reflexes sobre vcio e virtude dos Dilogos em questo? H ou no diferena
entre a concepo platnica da origem do mal presente nos dois Dilogos?).
Essas e outras questes sero discutidas e aprofundadas em nosso dilogo com
os comentadores e com o prprio texto platnico.
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A presente tese foi dividida em duas partes. A primeira: A tripartio da alma
retomada no Timeu, constando de dois captulos; a segunda: A tripartio da alma
implcita nas Leis, constando tambm de dois captulos. No primeiro captulo sobre o
Timeu, tratamos da alma humana no mbito da cosmologia platnica. Para tanto,
abordamos a concepo filosfica da psykh csmica (35a-35b; 36d-37c) e a alma humana
em sua relao com a cosmologia e a alma csmica (41c-44c), destacando a narrativa sobre
a fabricao do que h de imortal e de mortal na alma humana. No segundo captulo
sobre o Timeu, tratamos da tripartio do composto alma-corpo e sua relao com a sade
e a doena (da alma), com a virtude e o vcio. Em um primeiro subitem, denominado
Alma, corpo, unidade e tripartio, analisamos a construo da espcie mortal da alma
no corpo e suas propriedades (69c-d) e a unidade e tripartio do composto alma-corpo
humano (69e-73d). Nesse momento detalhamos o que Plato considera divino e mortal no
composto alma-corpo (69d-70a), a unidade alma-corpo representada pela insero da
alma na medula (73b-d), bem como a ntima relao entre corao/ pulmo, fgado/
intestinos, formando uma trade com o encfalo (70a-73d). No segundo subitem, As
doenas da alma e a tripartio sade e doena, virtude e vcio, tratamos da perspectiva
platnica das doenas da alma como um desequilbrio interno alma e entre corpo e alma
(86b-87b). Aqui especificamos a definio e as espcies de doenas da psykh, suas causas,
sintomas e preveno e discutimos uma segunda perspectiva de abordagem das doenas
da alma apresentada por Timeu na sequncia do texto, isto , a perspectiva da doena
como desproporo interna na alma e entre corpo e alma (87c-88b), analisando essas
dessimetrias, seus sintomas e tratamento.
Na parte sobre as Leis, abordamos, no primeiro captulo, o que Plato chama de
injustia na alma (capaz de levar o homem ao crime) e sua relao com a teoria da
tripartio da alma exposta na Repblica. Aps breve referncia educao da alma para a
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virtude conforme os livros I, II e VII das Leis, passamos anlise do vcio com base no
livro IX, em um segundo subitem. Buscamos fazer uma anlise de passagens bastante
significativas do livro IX (o que compreende desde 859c6 at 864c8), visto que os
interlocutores debatem sobre aquilo que visto pela maioria como injustia, bem como
sobre ato consentido e inconsentido, levando diferenciao entre dano e injustia e
discusso tanto a respeito do carter e modo de agir injustos como das trs causas de
nossas faltas. No segundo e ltimo captulo, tratamos da relao entre a teoria da
tripartio da alma e os crimes, seja contra o indivduo, seja contra os deuses e a cidade,
conforme o livro IX das Leis. No primeiro subitem discutimos os crimes ou injustias
contra um indivduo particular (864c9-882c4), categorizando o que consideramos crimes
do apetitivo, crimes do irascvel e crimes do racional, bem como os crimes ou
injustias contra os deuses e contra a cidade (853d5-857b4), tambm dividindo-os em
crimes do apetitivo, crimes do irascvel e crimes do racional. Destacamos o crime de
atesmo, cujas causas abordamos e analisamos no terceiro subitem, A amatha dos ateus:
a alma csmica (livro X). Buscamos identificar os fatores que levariam ao ato criminoso,
conforme o que apresentado no texto das Leis IX, a gravidade do ato e da penalidade, a
dificuldade de cura segundo cada espcie de crime e, sobretudo, a contribuio da teoria da
tripartio da alma para a compreenso de todos esses pontos. Tal reflexo levou-nos ao
quarto e ltimo subitem, no qual discutimos o querer e a liberdade no mbito maior das
concepes platnicas de virtude e vcio, segundo a Repblica, o Timeu e as Leis,
antecipando algumas das concluses da tese.
A metodologia utilizada foi a leitura transversal do tema da tripartio da
psykh, tomando a Repblica como chave de interpretao das ocorrncias do Timeu e das
Leis, destacando-se o livro IX, que traa a legislao proposta para cada tipo de crime ou
injustia. Priorizamos as referncias internas dessas obras, isto , seu contedo terico,
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visto que o nosso enfoque a psicologia de Plato, conforme exposta em seus Dilogos14.
No estamos desconsiderando as particularidades das problemticas e das posies tericas
contidas em cada Dilogo, o que significa admitir que uma mesma teoria no
necessariamente precisa ser encontrada em todos eles. No entanto, isto no deve impedir
que se tome como problema de pesquisa avaliar se a concepo de alma humana tridica
presente na Repblica encontra-se presente ao final da obra de Plato e se a teoria da
tripartio da alma permanece como um dos pressupostos de sua teoria tico-poltica.
Em nosso projeto de doutoramento, as passagens 86e-87b do Timeu e IX 863a-
864c das Leis constituam o ncleo de nossa investigao. medida que nossa pesquisa do
texto platnico foi se desenvolvendo, levamos em considerao outras passagens desses
Dilogos, correlacionadas quelas que delimitamos no projeto. Selecionamos as seguintes
passagens desses dois Dilogos para uma leitura do texto grego: no Timeu, 35a-b; 41c-44c;
69c-73d; 86b-88b; no livro IX das Leis, 853d-857b; 859c-864c; 864c-882c. Buscamos,
metodologicamente, fazer o exerccio de comparao de diversas tradues, sendo o texto
grego nossa referncia mais segura. Como pesquisa bibliogrfica secundria, consultamos
referncias em peridicos especializados em levantamento da bibliografia platnica, como
a Lustrum e o Lanne Philologique.
Nossa pesquisa bibliogrfica demonstrou que h poucos livros dedicados
psykh em Plato e que, quanto tripartio da psykh especificamente, parece no haver
livro exclusivamente a respeito. Ela encontra-se, geralmente, brevemente referida em
algumas obras e tematizada em alguns artigos estrangeiros escritos, sobretudo, a partir da
dcada de 50 do sculo XX, em sua ampla maioria enfatizando a tripartio da alma na
Repblica. Limitamo-nos aos ttulos em francs, ingls e espanhol. As referncias
tripartio da alma no Timeu freqentemente limitam-se a discutir sua localizao no
14 Por esse motivo, apenas em um segundo plano buscamos realizar a anlise de testemunhos de contemporneos de Plato (como Aristteles) e de autores que lhe so posteriores.
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corpo humano e, quanto a uma possvel presena da teoria da tripartio da alma nas Leis,
no encontramos artigo, obra ou captulo de livro especificamente sobre tal tema. Isso fez
da leitura do prprio texto platnico a principal fonte de investigao e de defesa da nossa
tese. Para tanto, tivemos a colaborao inestimvel do Prof. Jacyntho Lins Brando
(Faculdade de Letras da UFMG), na leitura do texto grego das passagens selecionadas, sem
a qual no teramos chegado s correlaes e concluses a que chegamos. Citamos em
nosso trabalho, inclusive, sua prpria traduo, no publicada, de algumas dessas
passagens.
Alm de nossa dificuldade de traduo do texto grego, enfrentamos tambm a
dificuldade de acesso aos textos publicados sobre a tripartio da alma em Plato e temas
afins. Alguns textos foram encontrados no Brasil, mas devemos muito de nossa pesquisa
colaborao de amigos, que conseguiram a maior parte desses textos no exterior e a quem
devemos toda gratido. Destacamos a colaborao dos professores Antnio Orlando
Dourado Lopes, Cludio William Veloso e Luciana Romeri, bem como de Miriam
Campolina Diniz Peixoto e Marcelo Pimenta Marques, que contriburam, tambm, de
vrias outras formas para a realizao desta pesquisa, como citamos em nossos
agradecimentos.
Devemos reconhecer que o nosso estudo da relao entre a teoria da tripartio
da alma apresentada na Repblica e a alma humana no Timeu e nas Leis, levou-nos a
descobertas que estavam muito alm de nossas hipteses e respostas iniciais, quando de
nossa elaborao do projeto de doutorado. A importncia e amplitude dessas descobertas
tal que no iremos apresent-las nesta introduo, deixando para o leitor surpreender-se
com o prprio texto platnico, medida que as passagens que selecionamos desses
Dilogos forem abordadas em nossos captulos.