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Juventude e democracia: Resenha do Livro Juventude, Cultura Cívica e Cidadania1

Fernando Perlatto*

As últimas semanas foram marcadas pelo debate em torno dos chamados “rolezinhos”,

que têm sido organizados por jovens em shoppings centers de várias cidades do Brasil. Questões

de diferentes ordens tomaram o espaço da imprensa e das conversas cotidianas, como, por

exemplo: trata-se de um fenômeno temporário ou permanente? Mera “zoação” ou manifestação

consciente de meninos e meninas que vivem diariamente os processos de exclusão social da

sociedade brasileira? Desejo por produtos, na onda da “ostentação”, ou anseio por cidadania, no

bojo da luta pela garantia ou expansão de direitos? Perguntas como estas evidenciam o embaraço

da sociedade e as dificuldades em compreender o mundo dos jovens, seus sentimentos, vontades,

anseios e desejos. Esta mesma perplexidade pôde ser observada quando das manifestações que

tomaram as ruas do país, em junho de 2013, impulsionadas e compostas, em sua grande maioria,

por segmentos juvenis. Em grande medida, é possível dizer que o que perpassa o incômodo com

essas diferentes iniciativas organizadas pelos jovens – sobretudo quando relacionadas ao mundo

popular – advém da incapacidade da opinião pública, de maneira geral, e das diferentes

instituições – como famílias, escolas e universidades –, em particular, em entenderem os jovens,

encarando-os enquanto sujeitos plurais, reflexivos e portadores de distintas aspirações e visões

de mundo.

Quando nos deparamos com um livro que busca compreender este complexo mundo dos

jovens, a partir de uma perspectiva aberta para suas potencialidades, devemos saudar a iniciativa.

Este é o caso da obra Juventude, Cultura Cívica e Democracia, editada por Angela Randolpho

Paiva, e que reúne artigos escritos pela própria organizadora e por outros três pesquisadores, a

saber, Paulo Renato Flores Durán, Edilaine Andrade e Julia Ventura. Resultado de uma ampla

pesquisa interessada em compreender as complexidades deste universo juvenil, este trabalho

procura avaliar precisamente o que pensam sobre diversas temáticas jovens, com idades entre 16

1 PAIVA, Angela Randolpho (Org.). (2013), Juventude, Cultura Cívica e Cidadania. Rio de

Janeiro, Garamond.

* Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e Pesquisador do Centro de

Estudos Direito e Sociedade (CEDES-PUC-Rio)

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e 18 anos. Estes jovens pesquisados cresceram em um país redemocratizado, o qual, a despeito

de eventuais crises, manteve a estabilidade institucional, e tem testemunhado ao longo das

últimas décadas, um gradativo processo de inclusão social. Trata-se, nesse sentido, de investigar

o universo reflexivo de jovens escolarizados que, diferentemente de outras gerações anteriores,

vivem em um país democrático e possuem acesso a informações diversificadas, provenientes não

somente da mídia tradicional, mas, sobretudo, da internet, e que incorporaram ao seu cotidiano a

reflexão sobre temáticas plurais, associadas às noções de cidadania, desigualdade e participação

política.

Ainda que a pesquisa que originou o livro tenha estado associada à formação na iniciação

científica de alunas da graduação, ela acabou adquirindo um escopo mais abrangente, como

evidenciam os capítulos da obra. Esta pesquisa, realizada por mais de cinco anos, a partir de

2004, teve como foco principal jovens do 2º ano do ensino médio, das redes pública e particular,

vinculados a vinte e cinco escolas localizadas no Rio de Janeiro, em bairros da Zona Sul (Leblon,

Gávea Botafogo, Humaitá, Laranjeira e outros), na Tijuca e na Barra da Tijuca. Além da

aplicação, em todas as escolas, de um questionário com 45 perguntas direcionadas aos

estudantes, a pesquisa também envolveu a realização de grupos focais em quinze das escolas

visitadas, com a presença de cerca de 10 alunos das mesmas séries e turmas, nas quais as

questões levantadas nos questionários puderam ser aprofundadas. De maneira geral, os

pesquisadores objetivaram compreender o que pensam os jovens sobre assuntos distintos, ligados

a aspectos como cultura cívica e valores, cidadania, cultura política e grau de confiança nas

instituições sociais, como família, escola, partidos políticos, igreja, polícia, ONGs e o judiciário.

No primeiro artigo da coletânea, intitulado “Juventude: desigualdades e simetrias”,

Angela Randolpho Paiva analisa os elementos centrais que nortearam a pesquisa e os

pressupostos teóricos que orientaram a elaboração dos questionários e o roteiro da discussão da

pesquisa empírica. Um dos elementos centrais do argumento da autora que merece ser ressaltado

é o destaque por ela conferido à capacidade reflexiva dos jovens para pensarem sobre as

instituições políticas, sociais e culturais do país, bem como acerca dos dilemas e obstáculos

existentes para o exercício pleno de seus direitos e de sua cidadania. Outro aspecto analisado por

Paiva que deve ser destacado – e que também está presente em outros textos da coletânea – diz

respeito à discussão sobre as desigualdades existentes entre as redes pública e privada de ensino,

que implicam em possibilidades diferenciadas para os jovens ingressarem na universidade ou no

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mercado de trabalho. As diferenças não se dariam tanto pela área da cidade na qual a escola se

localiza, mas pela rede de ensino, na medida em que ela diz respeito às classes sociais às quais

pertencem estes jovens.

Aqueles estudantes que estão vinculados à rede privada ou à rede pública “de excelência”

– os Colégios de Aplicação das duas universidades do Rio de Janeiro (UERJ e UFRJ) e o colégio

federal Pedro II, filiais Tijuca e Humaitá – compartilham determinadas características – como,

por exemplo, as altas taxas de escolaridade dos pais – que lhes facultam uma formação escolar

mais sistemática e maiores possibilidades de continuidade nos estudos ou acesso a um emprego

qualificado. O mesmo se dá com jovens que estudam em escolas públicas e que, como

decorrência da formação precária, se vêem diante de maiores obstáculos para acessar a

universidade e ingressar no mercado de trabalho. Essas diferenças conduzem a um perverso

quadro de fragmentação social, enfatizado por Angela Randolpho Paiva, na medida em que os

pressupostos necessários para a integração social – como, por exemplo, uma escola igualitária

para todos os estudantes – se vêm ameaçados pela desigualdade do sistema social e do sistema

escolar. Conforme destacado por Edilaine de Andrade, no terceiro artigo da coletânea, intitulado

“Juventudes: acesso à educação e ao mercado de trabalho”, estas diferenças e a situações de

vulnerabilidade social a ela associadas são percebidas pelos jovens das escolas públicas, que têm

consciência dos limites dados pelo sistema escolar para seu ingresso no ensino superior e para

sua inserção no mercado de trabalho.

Os dois outros artigos que compõem a obra, “Em direção à cidadania crítica: serão os

jovens sujeitos políticos?” e “Juventude e política: visões de cidadania no Brasil do século XXI”,

escritos, respectivamente, por Paulo Renato Flores Duran e Júlia Ventura, como os próprios

títulos indicam, dedicam-se à compreensão do que pensam os jovens pesquisados sobre questões

relacionadas à política e à democracia. A despeito das particularidades de cada um dos textos,

eles convergem em apontar, em primeiro lugar, para o alto grau de reflexão e compreensão dos

jovens sobre questões vinculadas à cidadania, à desigualdade e à cultura cívica. Nesse sentido, ao

contrário do que parece sugerir parte da bibliografia e do senso comum, que insistem em apontar

para a apatia juvenil, os entrevistados evidenciam clara compreensão dos obstáculos colocados

para a efetivação dos seus direitos econômicos, sociais e políticos. Ainda que não exista clareza

quanto às alternativas e aos mecanismos a serem mobilizados para a transformação do status

quo, existe a percepção dos problemas e o desejo de modificar a realidade presente.

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Em segundo lugar, os dois textos procuram destacar algo que se mostrou evidente nas

mobilizações de junho de 2013, que tomaram as ruas do país, a saber: o descompasso entre as

aspirações dos jovens e as instituições políticas, em especial as estruturas representativas e

partidárias. A maior confiança destes jovens tem sido depositada nas instituições de

sociabilidade mais próximas, com destaque para as escolas e as famílias. Se essas conclusões

sugerem uma crescente desmobilização e perda da legitimidade das instituições políticas – com

todos os riscos daí advindos para a própria democracia –, elas também indicam um grau de

insatisfação com a situação atual, que pode ser potencializado e educado – no sentido

gramsciano do termo – para uma maior conscientização e para a promoção de mudanças mais

substanciais no sistema político, de modo que este passe a efetivamente a dialogar e a representar

as demandas e anseios das juventudes. Além disso, essas conclusões evidenciam a importância

que as escolas e as famílias possuem para esses jovens não somente enquanto espaços de

formação pessoal e curricular, mas também de construção da cultura cívica, da cidadania e de

valores democráticos.

A despeito de estar focada nos estudantes da rede pública e particular do Rio de Janeiro, a

partir de um recorte particular, a obra Juventude, Cultura Política e Democracia, logra sucesso

em traçar um rico e multifacetado panorama da juventude, constituindo-se como uma importante

contribuição para a reflexão sobre o tema. Seus méritos principais se vinculam quer ao reforço

do argumento que enfatiza a existência de desigualdades nos interior do sistema escolar – que

ficam evidentes na comparação entre escolas públicas e privadas –, contribuindo para

problematizar noções fortemente presentes no debate público como “meritocracia”, quer à

percepção dos jovens enquanto atores reflexivos, que se preocupam com questões vinculadas aos

seus estudos, ao mercado de trabalho e aos problemas do país. Ao destacarem o papel importante

que a escola exerce na realidade destes jovens, os artigos do livro ainda contribuem para

estimular uma reflexão mais sistemática sobre o próprio espaço escolar, para que este se repense

e aprenda a dialogar com as demandas, sentimentos e desejos juvenis, reconhecendo os

problemas, mas também as potencialidades desse mundo jovem.


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