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ciênciaEFDOMINGO, 21 DE NOVEMBRO DE 2010 A24

Pessoas e muitos outrosseres vivos sempre recebemmetade de seu DNA do pai e

a outra metade, da mãe

TUDO EM FAMÍLIA Entenda o que acontece com os casamentos consanguíneos

1Quando não há parentescoentre os pais, a chance éalta de o filho herdar duas

formas diferentes domesmo gene

2A coisa se complica quando ospais são parentes. Nesses casos,as pessoas têm alta chance de

ter a mesma versão de um gene

3Acontece quemuitos genesligados a doenças têm efeitodevastador quando a pessoa

carrega as duas cópias deles

4É por isso que umcasamento entre primos deprimeiro grau, por exemplo,

em geral não é recomendado

5

Fonte: UEPB

Frequência média de uniões consanguíneas (Em%)

Brasil Nordeste Oriente Médio e Índia

50152

41 40 33 30 30

PARAÍBA

JoãoPessoa

BRASIL

Avô Avó

Irmão(ã)

Pai

VOCÊ Primo(a)

Mãe Tio(a)

25%dos genes

12,5%dos genes

50%dos genes

XXX Y

GENE A

GENE B

GENE A

GENE A GENE A

Cidades do sertão paraibano

EFEITOMAISFORTE DADOENÇAGENÉTICA

Bernardino Batista1

1

2

3

4

5

Carrapateira2 Mato Grosso3 Lagoa4 Santo André5

Prima Primo

+

Sertão tem surto de doenças genéticasPesquisadores estão achando moléstias desconhecidas no interior da PB; casamento consanguíneo é a causa

Giuliana Rodrigues/Divulgação

União entre primos emalguns municípios podecorresponder a 40%;ainda há resistênciaa abandonar a prática

SABINE RIGHETTIENVIADA ESPECIAL A CAMPINA GRANDE

A bióloga paulistanaSilva-na Santos foi para o Nordestehá cerca de uma década porcausa da sua vizinha. Elaquis entender a origem damisteriosa doença da mora-dora dacasa ao lado.

Como relatava a própriamulher, a moléstia era co-mum na sua cidade natal,Serrinha dos Pintos, no ser-tão do Rio Grande do Norte.Santos descobriu no Nordes-te mais 70 casos de umadoença até então desconhe-cida, a síndrome Spoan, queparalisa os membros inferio-res e afeta a visão. Era o mes-momal desua vizinha.

Depois de descrever aSpoan pela primeira vez emartigo científico de 2005, abióloga encontrou outrosproblemas genéticos no ser-tão, causados por um mesmomotivo: o casamento consan-guíneo entre primos.

Em Serrinha dos Pintos,32% dos casamentos envol-vem primos de primeiro e se-gundo grau. Todos os afeta-dos pela síndrome são des-cendentes de um ancestralcomum, que chegou à regiãohá mais de século.

“As famílias conhecem asua árvore genealógica, masa maioria não aceita que asdoenças genéticas são causa-das pelos casamentos compessoas do mesmo sangue”,afirma a pesquisadora.

Hoje, Santos é professorada UEPB (Universidade Esta-dual da Paraíba), instituiçãoà qual se vinculou de tantoestudar a região.

EM FAMÍLIAOs casamentos consanguí-

neos passam dos 40% em al-gumas cidades paraibanas.A situação é mais grave nosertão, onde muitas doenças

ainda não são reconhecidascomo de origem genética.

São os agentes de saúde daregião (cada um cuida de cer-ca de 500 pessoas) que regis-tram, numa base de dados, aincidência de deficiências.“Mas ninguém analisa os da-dos para investigar causasdas doenças”, diz Santos.

DIAGNÓSTICODe acordo com a médica

Paula Medeiros, da UFPB(Universidade Federal da Pa-raíba), muitos pacientes re-cebem diagnóstico errado.

“Há médicos que relatamretardo mental em casos demucopolissacaridose [doen-ça metabólica causada pordeficiência de enzimas], semavaliar se há mais casos nafamília e qual é a origem doproblema”, diz ela.

Por isso, o trabalho dospesquisadores está sendo co-memorado por funcionáriosde alguns municípios da re-gião. É o caso de Maria do So-corro Lucena, secretária mu-nicipal de Saúde de Queima-das, uma das cidades estuda-das, onde uma nova doençagenéticafoi identificada.

De acordo com Lucena, osrecursos públicos para a saú-de da sua cidade, que tem 40mil habitantes, são suficien-

tes apenas para o atendimen-to “básico”. E só. “Consigoatender partos, casos de tiro,tratamento de hemodiálise,esse tipo decoisa”, diz.

Além de evitar que maispessoas padeçam de doen-ças evitáveis causadas porconsanguinidade, o aconse-lhamento genético sai maisbarato aos cofres públicos.

No caso dos pacientes demucopolissacaridose, quetraz problemas motores, decrescimento e até mentais, otratamento de um tipo dadoença pode chegar a R$ 100mil pormês, por paciente.

Hoje, seis portadores quevivem no sertão da Paraíbaestão em tratamento no hos-pital da UFPB, aos cuidadosdamédica Paula Medeiros.

FAZ-TUDOO trabalho deles começa já

na prospecção de casos, emparceria com os agentes desaúde. São também os cien-tistas que realizam o mapea-mento genético e identificamas possíveis doenças heredi-tárias, posteriormente divul-gadas à comunidade acadê-mica em congressos e em ar-tigos científicos.

O processo todo leva, emmédia, três anos, tambémpor causa das dificuldadesestruturais. Hoje, um mapea-mento genético no Brasil sópode ser feito nas regiões Sule Sudeste, que contam comlaboratórios para isso.

“Eu oriento as pessoas so-bre os riscos de nascimentode deficientes quando ospais são um casal de pri-mos”, diz Santos. A ideia, deacordo com ela, é informar osjovens em idade reprodutiva.

Mas essa não é uma apro-ximação simples. A descren-ça nos cientistas, e um certofatalismo, ainda são comuns.

“Não acredito nessa coisade doença causada por casa-mento entre primos”, dizuma moradora do municípioOlho d’Água, próximo deQueimadas. Filha de primose casada com um primo, elatem três dos seus cinco filhossurdos. “Tive filhos surdosporque Deusquis.”

FOTO3.036.0

Neurologista Jovany Luis Alves de Medeiros, da UEPB, examina família de Queimadas

Grupo propõe elo entre tradição e judaísmo

“Consigoatender partos, casosde tiro, tratamentode hemodiálise, essetipo de coisa, masnão mapear doençasMARIA DO SOCORRO LUCENAsecretária municipal de Saúde deQueimadas (PB)

A maioria dapopulação não aceitaque as doenças sãocausadas peloscasamentos depessoas do mesmosangueSILVANA SANTOSbióloga da UEPB

DA ENVIADA A CAMPINA GRANDE

O casamento entre primosna região Nordeste pode terorigem no judaísmo. A hipó-tese é de alguns dos pesqui-sadores da UEPB, que veemsemelhanças entre costumesda área e atradição judaica.

A influência pode ter tidoorigem nos séculos 16 e 17,quando os marranos ou cris-tãos-novos, conversos de ori-gem judaica, vieram para oBrasil na esteira da coloniza-çãoportuguesa.

Apesar de terem sido for-çadamente convertidos aocristianismo, alguns costu-mes do judaísmo teriam semantidona região até hoje.

O mais óbvio deles é a en-dogamia, ou seja, o hábito de

só se casar com membros daprópria comunidade. No ju-daísmo mais tradicional, issoacontece para evitar a mistu-ra étnica com indivíduos nãojudeus, como forma de pre-servar ogrupo.

Usos menos óbvios do co-tidiano, no entanto, talvez re-metam também ao judaísmo.Por exemplo, o hábito de co-mer “jabá”(carne seca compouco sangue)aos sábados.

Isso lembraria a proibição,presente no Antigo Testa-mento, do consumo de carnecom o sangue do animal,bem como o dia sagrado dojudaísmo, que é o sábado.

MENOS NÃO É MAISControvérsias étnicas à

parte, outro dado preocu-

pante levantado pelos pes-quisadores é que a quantida-de de pessoas com deficiên-cia parece aumentar na me-dida em que o tamanho domunicípio diminuiu.

A conclusão é de um estu-do coordenado pelo geneti-cista Mathias Weller, daUEPB. Ele fez uma análisedos dados do Datasus (Siste-ma de Informação da Aten-ção Básica do SUS) sobre adistribuição de indivíduoscom deficiência em 223 mu-nicípios da Paraíba.

Weller notou que as cida-des mais interioranas do Es-tado— que também são asmenos populosas— têm emmédia 1/6 mais deficientesem comparação com a árealitorânea. (SR)

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