0
ELISABETE GUEDES DA SILVA
ANÁLISE DE PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE LIVROS DIDÁTICOS:
UM OLHAR PARA O ALUNO ENUNCIADOR
PORTO ALEGRE
2015
1
ELISABETE GUEDES DA SILVA
ANÁLISE DE PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE LIVROS DIDÁTICOS:
UM OLHAR PARA O ALUNO ENUNCIADOR
Dissertação apresentada ao Centro
Universitário Ritter dos Reis como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientador: Profa. Dr. Neiva Maria Tebaldi
Gomes
PORTO ALEGRE
2015
2
ELISABETE GUEDES DA SILVA
ANÁLISE DE PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE LIVROS DIDÁTICOS:
UM OLHAR PARA O ALUNO ENUNCIADOR
Dissertação de Mestrado defendida e aprovada como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Letras pela banca examinadora constituída por:
___________________________________________
Profª. Drª. Neiva Maria Tebaldi Gomes
(Profa. Orientadora – UniRitter Laureate International Universities)
___________________________________________
Profª. Drª. Marcia Cristina Corrêa (UFSM)
___________________________________________
Profª. Drª. Noeli Reck Maggi (UniRitter)
3
DEDICATÓRIA
À minha mãe (in memoriam), pelo exemplo de persistência, força e determinação. Ao meu filho Álvaro, pelo amor e por me trazer esperança renovada a todo dia e iluminar meus dias cinzentos. Ao Marco, pelo amor, paciência e cooperação.
4
AGRADECIMENTOS
Nesta caminhada tenho muito a agradecer, pois esse momento começou a ser
sonhado e construído no meu convívio com pessoas que me inspiraram a seguir em
frente e sempre me estenderam a mão amiga e a palavra de fé.
Ao Marco e ao Álvaro, a compreensão e amor nos momentos mais difíceis dessa
jornada.
Aos meus familiares, pela palavra de força.
À minha amiga professora Denise Mecking, pelo exemplo de dedicação aos estudos
da linguagem que muito me inspiraram.
Às mães dos amigos do Álvaro que sempre se dispuseram a acolhê-lo nos dias
difíceis de cumprimento de horários e obrigações de mãe.
Aos meus colegas do Mestrado e Doutorado com quem tive a alegria de construir e
trocar conhecimento e, acima de tudo, de selar amizades para vida toda.
Às minhas colegas e amigas Adriana Diniz e Débora Jael, pelo apoio e amizade leal
e sincera.
Às minhas amigas e colegas do magistério, por acreditarem que eu conseguiria
vencer os inúmeros obstáculos dessa jornada.
Às amigas e amigos da 1ª Coordenadora de Educação de Porto Alegre de quem
sempre tive uma palavra de conforto e entusiasmo.
Às professoras do Mestrado e Doutorado da UniRitter com quem aprendi a olhar o
mundo com olhos de encantamento, que generosamente me acolheram ao longo da
minha trajetória acadêmica transmitindo-me conhecimento e sabedoria.
5
À Capes, pela bolsa de estudos.
À minha orientadora, Dra. Neiva Maria Tebaldi Gomes que me fez acreditar que
esse sonho poderia realizar-se, que me guiou no caminho do conhecimento com
dedicação, firmeza, inteligência e sensibilidade.
6
...e o que a criança adquire, aprendendo, como se diz, a falar, é o mundo no qual ela vive na realidade, que a linguagem lhe dá e sobre o qual ela aprende a agir. Aprendendo o nome de uma coisa, ela adquire o meio de obter esta coisa. Empregando a palavra, ela age, pois, sobre o mundo e se dá conta obscuramente muito cedo. É o poder da ação, de transformação, de adaptação, que é a chave da relação humana entre a língua e a cultura, uma relação de integração necessária. (BENVENISTE)
7
RESUMO
As teorias enunciativas têm o sujeito como ponto de partida para a reflexão sobre a
linguagem. É na enunciação que ocorre a comunicação viva, sendo esse o contexto
de desenvolvimento de práticas discursivas situadas. Apoiada em abordagens
teóricas enunciativas, a presente pesquisa procura identificar marcas linguísticas da
presença da relação eu/tu em propostas de produção textual dos livros didáticos
Português Linguagens e Trabalhando com a Linguagem, do 9º ano do Ensino
Fundamental. Trata-se de um estudo que avalia a ocorrência de elementos que
favorecem a enunciação do aluno. A análise concentra-se tanto em formas
linguísticas quanto em aspectos do contexto não verbal evidenciados pelas
propostas. Os livros referidos são utilizados por alunos da rede pública estadual do
Rio Grande do Sul e obedecem a critérios de seleção recomendados pelo Ministério
da Educação. A pesquisa é de cunho descritivo e qualitativo-interpretativo e
fundamenta-se nos estudos enunciativos de Émile Benveniste (2006), para a análise
das formas linguísticas que estruturam os textos das propostas; em estudos
bakhtinianos, para tratar do sujeito da enunciação, do contexto não verbal e do uso
social da língua; nos Parâmetros Curriculares Nacionais, para estabelecer uma
interface: orientações oficiais/propostas dos livros didáticos. Os estudos de L. S.
Vigotski e Jean-Paul Bronckart são referências para refletir sobre o ensino-
aprendizagem da língua e sobre o agir humano por meio dos discursos. O corpus
constitui-se de seis propostas de cada um dos livros didáticos selecionados. Após a
análise dos dados, constatou-se que os textos selecionados propõem atividades de
escrita orientadas por gêneros do discurso que favorecem a enunciação do aluno.
As propostas estudadas apresentam categorias enunciativas que remetem para a
língua em uso e contribuem para a interação verbal. Ao final do estudo, apresentam-
se a análise das propostas e reflexões sobre a escrita na escola.
Palavras-chave: Produção textual. Livro didático. Enunciação do aluno. Interação
verbal.
8
ABSTRACT
The enunciation theories have the subject as a starting point for their reflection on
language. It is through enunciation that live communication occurs, which is the
development context of situated discursive practices. Supported by enunciation
theoretical approaches, this research seeks to identify linguistic marks of the
presence of the relationship I/you in textual production proposals for the textbooks
Português Linguagens and Trabalhando com a Linguagem, of the 9th grade of
elementary school. It is a study that evaluates the occurrence of elements that favor
the enunciation of the student. The analysis focuses both on linguistic forms and in
aspects of the nonverbal context evidenced by the proposals. These books are used
by students in the public schools of Rio Grande do Sul and they follow the selection
criteria recommended by the Ministry of Education. The research is descriptive and
qualitative-interpretative and it is based on the enunciation studies of Émile
Benveniste (2006), for the analysis of linguistic forms that structure the texts of the
proposals; on Bakhtin studies, to address the subject of enunciation, non-verbal
context and the social use of language; on the National Curriculum Parameters, to
establish the interface: official guidelines / proposals from textbooks. The studies of
LS Vygotsky and Jean-Paul Bronckart are references to discuss the teaching and
learning of language and the human action through discourse. The corpus consists of
six proposals for each of the selected textbooks. After analyzing the data, it was
found that the proposals present enunciation categories that refer to the language in
use and contribute to the verbal interaction. All texts analyzed propose writing
activities oriented according to discourse genres which favor the enunciation of the
student. Finally, the analysis of the proposals and reflections on writing in school are
presented.
Keywords: Textual production. Textbook. Enunciation of the student. Verbal
interaction.
9
LISTA DE ABREVIATURAS
FNDE: Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação
FIPE: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas
GLD: Guia de Livros Didáticos.
IDEB: Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
ISD: Interacionismo Sociodiscursivo
ZDP: Zona do Desenvolvimento Proximal
LD: Livro Didático
LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
LP: Língua Portuguesa
MEC: Ministério da Educação e Cultura
M P: Manual do Professor
PCN: Parâmetros Curriculares Nacionais
PNLD: Programa Nacional do Livro Didático
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Capa do livro Português Linguagens (2009).............................................57
Figura 2 - Capa do livro Trabalhando com a Linguagem (2009)...............................58
Figura 3 - Proposta 1: Livro Português Linguagens (2009, p.18)..............................63
Figura 4 - Proposta 1: Livro Português Linguagens (2009, p.19)..............................64
Figura 5 - Proposta 1: Livro Português Linguagens (2009, p.20)..............................65
Figura 6 - Proposta 2: Livro Português Linguagens (2009, p.82)..............................67
Figura 7 - Proposta 2: Livro Português Linguagens (2009, p.83)..............................68
Figura 8 - Proposta 3: Livro Português Linguagens (2009, p.116)............................69
Figura 9 - Proposta 4: Livro Português Linguagens (2009, p.180)............................71
Figura 10 - Proposta 4: Livro Português Linguagens (2009, p. 181).........................72
Figura 11 - Proposta 4: Livro Português Linguagens. (2009, p.182).........................73
Figura 12 - Proposta 5: Livro Português Linguagens (2009, p. 206).........................75
Figura 13 - Proposta 5: Livro Português Linguagens (2009, p. 207) ........................76
Figura 14 - Proposta 5: Livro Português Linguagens (2009, p. 208) ........................77
Figura 15 - Proposta 5: Livro Português Linguagens (2009, p. 209) ........................78
Figura 16 - Proposta 6: Livro Português Linguagens (2009, p.224) .........................79
Figura 17 - Proposta 6: Livro Português Linguagens (2009, p. 225).........................80
Figura 18 - Proposta 6: Livro Português Linguagens (2009, p. 226) ........................81
Figura 19 - Proposta 1: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p.24) ..............82
Figura 20 - Proposta1: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 26)...............83
Figura 21 - Proposta 2 Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 45) ..............84
Figura 22 - Proposta 2 Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p.46)...............85
Figura 23 - proposta 2 Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 47)..............86
Figura 24 - Proposta 3: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 80)..............88
Figura 25 - Proposta 3: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p.81)...............89
Figura 26 - Proposta 3: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p.82) ..............90
Figura 27 - Proposta 4: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 118)............91
Figura 28 - Proposta 4: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p.119).............92
Figura 29 - Proposta 4: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 120)............93
Figura 30 - Proposta 5: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 132)............95
Figura 31 - Proposta 5: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 132)............96
Figura 32 - Proposta 6: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 148)............97
11
Figura 33 - Proposta 6: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 149)............98
Figura 34 - Proposta 6: Livro Trabalhando com a Linguagem (2009, p. 150)............99
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13
2 ENUCIAÇÃO: ABORDAGENS CONVERGENTES ............................................... 23
2.1 ÉMILE BENVENISTE: A ESTRUTURA FORMAL DA ENUNCIAÇÃO ................. 23
2.2 MIKHAIL BAKHTIN: A ENUNCIAÇÃO COMO FENÔMENO SOCIAL .................. 29
3 LÍNGUA E APRENDIZAGEM: UMA ABORDAGEM INTERACIONISTA .............. 34
3.1 A APRENDIZAGEM DA LÍNGUA E O CONTEXTO SOCIAL EM VIGOTSKI ........ 34
3.2 O AGIR DE/ NA LINGUAGEM NA CONCEPÇÃO DO ISD ................................... 40
4 OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: SUBSÍDIOS PEDAGÓGICOS
.................................................................................................................................. 48
4.1 O TEXTO COMO OBJETO CENTRAL DO ENSINO DA LÍNGUA ........................ 48
4.2 PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL E O REFERENCIAL TEÓRICO DOS
PCN ........................................................................................................................... 50
4.3 CONTEÚDOS PEDAGÓGICOS DO MANUAL DO PROFESSOR ....................... 51
5 PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL: UM OLHAR ENUNCIATIVO ............ 56
5.1 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS PARA ANÁLISE............. 56
5.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................ 59
5.3 CATEGORIAS DE ANÁLISE DAS PROPOSTAS ................................................ 60
5.4 ANÁLISE DE PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL ..................................... 62
5.4.1 Propostas de produção textual do 1º livro analisado ................................. 63
5.4.2 Propostas de produção textual da 2º livro analisado ................................. 82
5.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RESULTADOS DA ANÁLISE DO CORPUS...100
6 O AGIR HUMANO POR MEIO DE DISCURSOS NO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM: REFLEXÕES DE UMA PROFESSORA .................................. 102
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 105
13
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho estuda a constituição do processo enunciativo em
propostas de produção textual de livros didáticos do 9ª ano do Ensino Fundamental.
A pesquisa é motivada pela experiência de quinze anos atuando como professora de
Língua Portuguesa e pela importância que o exercício da escrita assume no
desenvolvimento de habilidades que contribuem para a compreensão dos fatos
sociais que se processam por meio da linguagem.
O trabalho justifica-se, também, pela necessidade de busca de subsídios
teóricos que possam contribuir como o aprimoramento do processo de ensino-
aprendizagem da língua. Outro fator que justifica este estudo é a importância que a
linguagem assume nas relações sociais, como o afirmam os Parâmetros
Curriculares Nacionais. Segundo esse documento, os homens e mulheres se
comunicam pela linguagem, acessam informações, expressam e defendem pontos
de vista, compartilham ou constroem visões de mundo, produzem cultura. (PCN,
1998).
A experiência como professora de Língua Portuguesa, no Ensino
Fundamental da rede pública, possibilita a identificação de alguns dos problemas
enfrentados no desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem da língua em
ambiente escolar. No exercício docente, percebe-se que os problemas enfrentados
pelos alunos são motivados por diferentes fatores e entre eles, certamente, estão os
temas apresentados como sugestão de escrita. Muitas vezes, são temas que, sob o
ponto de vista da atribuição de sentido, pouco se relacionam com o conhecimento
de mundo do aluno.
Em algumas situações, as propostas de escrita apresentam temas que
exigem do aluno/enunciador a apropriação de conceitos complexos, o que pode ser
facilitado por meio da mediação do professor. Os textos, se adequados ao contexto
de uso da língua, servem como meio para manifestações das ideias dos
alunos/enunciadores por possuírem elementos linguísticos favoráveis à produção de
sentido e à ação/intervenção do sujeito no mundo. Na terminologia de Bronckart
14
(2008), há certas características linguísticas presentes nos textos que favorecem o
agir humano, tema abordado no capítulo 3 desta dissertação.
Os indicadores de repetência na disciplina de Língua Portuguesa são
considerados altos por órgãos institucionais como o Ministério da Educação e
Secretarias de Educação. No Ensino Médio, esses índices passam dos 20%. O
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)1, dos estados e municípios
brasileiros, que é calculado pelas notas da Prova Brasil e pelo fluxo escolar, indicam
que as notas do Ensino Médio ficaram estagnadas e que nos anos finais do Ensino
Fundamental não houve melhora suficiente para atingir a meta estimada em 4.4 para
o ano de 2013. As notas medem a competência em Português e Matemática e o
fluxo escolar considera as taxas de aprovação. O Ensino Médio atingiu a média de
3.7 e o Ensino Fundamental alcançou o índice de 4.2. Os dados foram coletados na
rede pública e na rede de ensino privada. Embora esses indicadores comportem
dados globais do processo de ensino-aprendizagem, o índice de proficiência em
Língua Portuguesa não apresenta progresso nos estudos da língua materna. Nessa
direção, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), também informam que
as dificuldades de compreensão de textos simples são notórias e os indicadores de
repetência e de proficiência em leitura e escrita atingem índices preocupantes.
Na prática escolar, verifica-se, ainda, uma abordagem de ensino de língua
concentrada nos aspectos estruturais do texto, que pouco se relacionam com o
desenvolvimento das competências discursivas dos estudantes. A produção escrita
e demais operações cognitivas implicadas nesse processo são orientadas, quase
que unicamente, por sugestões das propostas de produção textual dos livros
didáticos.
Esses livros chegam às escolas brasileiras por meio do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação e Cultura (MEC).
1O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica é medido de três em três anos. É possível consultar os indicadores de todas as escolas do Brasil que participaram da avaliação no site http://portal.mec.gov.br. Os indicadores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, segundo dados consultados no site do Ministério da Educação e Cultura, atingiram as metas estimadas para esse período nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.
15
Conforme Batista (2003), o programa teve início em 1985, por meio do Decreto nº
91542, de 19/08/85. O objetivo era a aquisição e a distribuição de livros didáticos
para alunos do Ensino Fundamental da rede pública brasileira de maneira universal
e gratuita. Desde o ano de 1996, o MEC, para assegurar a qualidade dos livros
selecionados, procede à análise pedagógica desses instrumentos didáticos. Os
técnicos do MEC passam a analisar os livros com base nos aspectos pedagógicos e
recomendar às escolas as coleções selecionadas. E é nesse momento que é
publicado, pela primeira vez, o Guia de Livros Didáticos. Os professores, seguindo
as recomendações do GLD, escolhiam, então, a coleção que seria adotada na
escola. A autonomia do docente ficava, dessa maneira, restrita à indicação de uma
coleção dentre 12 coleções recomendadas pelo MEC.
O PNLD influenciava-se pela questão qualitativa e pelas condições políticas e
operacionais de todo o processo que envolvia a escola. No início do programa,
algumas coleções eram recomendadas com ressalvas e outras com distinção pelos
técnicos do MEC. Os professores escolhiam, na maioria das vezes, os livros
indicados com ressalvas. Por essa razão, segundo aponta Batista (2003), havia um
descompasso entre as expectativas desses técnicos, que aprovavam ou reprovavam
os livros didáticos concorrentes, e os professores que por meio da análise
pedagógica definiam, a partir dos recomendados e recomendados com ressalvas, os
livros que os alunos receberiam.
No retrospecto histórico, o autor expõe essa problemática estabelecendo uma
relação com a autonomia do professor, com as condições de trabalho e com
formação docente. Nesse sentido, informa que, no PNLD de 1999, a maioria dos
docentes escolheu, justamente, livros didáticos com indicação de “recomendados
com ressalvas” (46,74%). As escolhas dos livros recomendados com distinção foram
de apenas 8,40%. A respeito desse descompasso, Batista comenta que:
[...] inúmeros relatos de técnicos de secretarias estaduais vêm reportando, nos encontros nacionais do PNLD, dificuldades enfrentadas por muitos grupos de docentes no uso efetivo dos recomendados e recomendados com distinção por eles escolhidos. Portanto, uma visão de conjunto da escolha do livro didático, assim como alguns dados relativos a seu uso em sala de aula apontam claramente para a formação docente como um dos fatores relevantes para a compreensão do referido descompasso. (BATISTA, 2003, p. 50).
16
Outros fatores citados pelo pesquisador relacionam-se com o processo de
escolha dos livros pelos professores. Segundo o autor, os livros didáticos são
escolhidos num prazo muito curto e, normalmente, em condições inadequadas. O
autor assegura que muitas vezes não se oferecem recomendações nem subsídios
que auxiliem a realização de escolhas fundamentadas. Essa problemática é
verificada no cotidiano das escolas, pois, muitas vezes, não são disponibilizadas aos
professores oportunidades para debater sobre os próprios critérios de seleção do
MEC que selecionam os livros sem considerar, por exemplo, as peculiaridades de
cada região do Brasil.
Segundo Batista, as condições de trabalho no ambiente escolar e as
necessidades dos professores, em função da forma de organização da escola,
“tendem a construir um ponto de vista singular sobre os fenômenos escolares –
neles incluídos os padrões de qualidade do livro didático – que é necessário
escolher, conhecer e articular, de modo mais adequado, ao PNLD”. (BATISTA, 2003,
p. 51). Essa situação é influenciada, também, pela qualidade da formação docente
nas Faculdades e Universidades brasileiras.
A respeito disso os dados do censo escolar indicam formação insuficiente,
embora, ao longo dos últimos anos, indicadores do Fipe/USP2 demonstrem um
aumento no nível de escolaridade. Um dado ainda mais preocupante é que a
“formação docente, em nível médio ou superior, não tem se mostrado adequada
para o desenvolvimento de competências básicas para a atuação profissional”.
(Ibidem, p. 52). Dessa maneira, no processo de escolha do livro didático, ocorrem
diferentes situações que podem determinar e influenciar a preferência dos
professores por uma determinada coleção didática.
As orientações pedagógicas para a escolha desse material são
fundamentadas nas diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998).
Nesse documento, há orientações voltadas a propostas de trabalho com enfoque
enunciativo-discursivo. Esse contexto verbal, de acordo com os PCN, favorece o
2A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE é uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, criada em 1973 para apoiar o Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), com destacada atuação nas áreas de pesquisa e ensino.
17
desenvolvimento das competências discursivas no processo de ensino-
aprendizagem da língua. As afirmativas levam-nos a pressupor que as propostas de
produção textual de livros didáticos são recursos pedagógicos que apresentam
essas potencialidades. No entanto, é necessário proceder-se à análise de textos
desses materiais para apresentar dados comprobatórios sobre essa hipótese.
Os PCN afirmam que “um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito
ser capaz de utilizar a língua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de
sentido e adequar o texto a diferentes situações de interlocução”. (PCN, 1998, p.23).
O referencial teórico desses documentos, no que se refere ao estudo do texto e à
produção escrita, se ampara em teorias que se preocupam com a linguagem em
uso. Entre elas, citamos a teoria enunciativa bakhtiniana e os estudos sobre os
gêneros do discurso. Bronckart, na obra Agir nos Discursos (2008), assume os
pressupostos teóricos dos gêneros do discurso defendidos por Volochínov/Bakhtin3.
Esses dois autores concebem a língua na interação verbal entre sujeitos.
Nessa abordagem, o texto escolar deveria servir como meio de interlocução
entre locutor e interlocutor. Os princípios pedagógicos presentes nos PCN de Língua
Portuguesa estão apoiados em ideias de interação verbal viabilizadas pelos
diferentes gêneros discursivos. Nesse sentido, informam que a interação pela
linguagem resulta em uma atividade discursiva, “dizer alguma coisa a alguém, de
uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
circunstâncias de interlocução” (PCN, 1998, p.20-21). O Manual do Professor (MP),
que orienta pedagogicamente a seleção dos livros didáticos no PNLD, também
aponta para necessidade de considerar a dimensão dialógica no trabalho com o
texto escolar. Os livros didáticos, analisados nesta dissertação, estão alinhados
teoricamente às diretrizes dos PCN, haja vista a base teórica ancorada nos estudos
bakhtinianos e nos estudos do interacionismo sócio-discursivo. Os dois títulos
estudados apresentam no referencial teórico autores como Bakthin, Bronckart e
Benveniste.
3Jean-Paul Bronckart ao referir-se à análise dos gêneros do discurso, no livro Agir nos Discursos (2008, p. 76), afirma que os trabalhos de Bakhtin se desenvolveram com base na teoria dos gêneros verbais de Volochinov. Encontramos referência a duas formas de grafar o nome desse autor: em Marxismo e Filosofia da Linguagem encontra-se grafado com acento (Volochínov), já na obra de Bronckart a palavra é traduzida sem acento (Volochinov).
18
Seguindo a concepção de língua como organismo vivo, o presente estudo
assume a concepção de texto como discurso postulada na teoria bakhtiniana, já que
a linguagem, em contexto de interação, é viabilizada por meio dos enunciados.
Consideramos, no entanto, que, embora os PCN contemplem princípios teóricos
bakhtinianos dos gêneros do discurso, o que é possível depreender somente pelo
exame da bibliografia apresentada, o texto não é definido como conjunto de
enunciados. Segundo os PCN, o texto é considerado como uma unidade significativa
global, que serve para materializar os diferentes discursos. (PCN, 1998).
Na concepção teórica assumida nesta dissertação, o texto é entendido como
um conjunto de enunciados que se realizam no discurso, favorecendo a tomada de
atitude responsiva pelo sujeito-aprendiz. Na visão de Bakhtin, o enunciado tem como
particularidade constitutiva um destinatário, ou seja, um enunciado pressupõe um
alguém se dirigindo a outro alguém. Assim, se os enunciados de comando se
estruturam com elementos linguísticos constitutivos da relação eu/tu, favorecerá a
produção de sentido na medida em que o interlocutor é convocado, por meio dos
enunciados, a dar uma resposta ao que se enuncia. Nessa visão teórica, “toda a
compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva”.
(BAKTHIN, 2003, p.270).
Situada nesse contexto, a pesquisa busca responder ao seguinte
questionamento: As propostas de produção textual de livros didáticos contêm os
elementos constitutivos que poderiam promovê-las em eventos enunciativos,
favorecendo a manifestação do aluno/enunciador na interação verbal?
Para responder a essa questão, estabelece-se como objetivo geral analisar
propostas de produção textual de livros didáticos a fim de verificar se contemplam os
elementos constitutivos de um ato de enunciação. Vinculados ao objetivo geral,
elegem-se quatro objetivos específicos:
a) Identificar nas propostas de texto marcas linguísticas do evento enunciativo:
categorias de pessoa, de tempo / espaço que definem o estatuto do sujeito.
19
b) Averiguar, nas propostas, a ocorrência de aspectos constitutivos da enunciação, a
relação locutor/interlocutor, o objetivo comunicativo para o aluno produzir seu texto;
a indicação de gênero; o contexto de produção e de circulação que favoreçam a
interação verbal.
c) Estabelecer uma interface: diretrizes pedagógicas oficiais presentes nos
PCN/orientações didáticas e pedagógicas para o trabalho com o texto escolar
presentes nas propostas estudadas.
d) Contribuir com reflexões teóricas sobre o desenvolvimento intelectual da criança e
sobre a importância do texto escolar como meio possível para a expressão dos
alunos/enunciadores.
Na literatura recente, buscou-se resposta ao questionamento que gerou o
objetivo geral desta dissertação. Encontramos pesquisas concentradas no estudo de
livros didáticos como mediadores da aprendizagem, trabalhos com propostas de
produção textual vinculados aos gêneros do discurso e uma dissertação com foco
enunciativo nas propostas de texto na área de Língua Inglesa. Pelo estudo
realizado, não localizamos pesquisas específicas sobre o nosso tema. Assim, esse
trabalho pode contribuir para a discussão sobre o processo de ensino-aprendizagem
da língua, oferecendo subsídios teóricos que podem auxiliar o trabalho docente com
a produção textual escolar.
A abordagem pedagógica desse profissional poderá ser amparada pelas
teorias enunciativas, por considerarem o sujeito na relação com outro sujeito. Nessa
perspectiva, o professor assume a tarefa de mediador entre o locutor/autor das
propostas e o interlocutor/aluno. Os estudos de Vigotski, no que se referem aos
conceitos de medição e (ZDP) Zona de Desenvolvimento Proximal, podem auxiliar o
professor a compreender como a aprendizagem se desenvolve na criança em idade
escolar. Considera-se, também, que a teoria do agir nos discursos, representada por
Bronckart, nos oferece suporte teórico para pensar a linguagem/língua como meio
para o desenvolvimento humano, meio pelo qual os alunos podem exercer sua
cidadania ao apropriarem-se de diferentes discursos sociais que circulam na
sociedade.
20
Para atingir os objetivos propostos, analisam-se seis propostas do livro
Português Linguagens (2009) e seis propostas do livro Trabalhando com a
Linguagem (2009), do 9º ano Ensino Fundamental. A opção por livros do 9º ano
deve-se, entre outros motivos, ao fato de que esse ano escolar “apresenta
características próprias, devidas tanto ao perfil escolar do alunado desse nível
quanto às demandas sociais que a ele se apresentam ao final do período”. (PCN,
1989).
A escolha do título Português Linguagens é motivada por dados dos
indicadores do PNLD. Esses dados informam que esse livro é o mais usado pelos
alunos da rede pública estadual brasileira. Ressalta-se que esse título também foi o
primeiro da lista dos recomendados pelo MEC, no triênio 2008/2009/2010, conforme
dados do PNLD.
O segundo título, Trabalhando com a Linguagem, foi selecionado por
constarem na sua bibliografia dois teóricos da enunciação que sustentam esse
estudo: Émile Benveniste e Bakhtin. Destaca-se, ainda, que no último PNLD-2014
esse livro não figura na lista das indicações do MEC. Em função disso, não está em
uso nas escolas brasileiras. Nesse sentido, é possível estabelecer algumas
diferenças entre eles. O primeiro título é o mais usado do Brasil, enquanto que o
segundo, embora estivesse na lista dos recomendados no triênio 2011/ 2012/2013
do PNLD, em 2014, não foi reprovado pelo MEC, pois não consta da lista dos
indicados para escolha.
Outro aspecto que os diferencia é a organização didática para o trabalho
com a produção escrita. O livro Trabalhando com a Linguagem apresenta,
primeiramente, as atividades de trabalho com o texto de maneira unificada. O estudo
da gramática está organizado separadamente do trabalho com a produção
escrita/interpretação e compreensão textual. A seção destinada às questões
gramaticais trata, especialmente, de exercícios estruturais da língua. Já no livro
Português Linguagens, os dois níveis de estudo estão inter-relacionados.
A metodologia adotada para o estudo baseia-se em aspectos qualitativos e
interpretativos-descritivos. As propostas de produção textual foram selecionadas de
21
forma a contemplar unidades de estudo do início, do meio e do fim de ambos os
livros. O corpus da pesquisa é constituído por seis propostas de cada um dos livros
estudados.
Os procedimentos de análise ancoram-se, por um lado, nos estudos
enunciativos concentrados na análise das formas linguísticas, conforme postula
Benveniste (2006) e, por outro lado, nos aspectos enunciativos que envolvem o
contexto social, conforme estudos de Bakhtin (2003). Para tecer reflexões sobre o
processo de ensino-aprendizagem de língua, buscam-se subsídios nos princípios do
Interacionismo Sociodiscursivo, doravante (ISD).
Essa corrente teórica é ancorada por diferentes autores de diferentes áreas
do conhecimento e tem como principal representante Jean-Paul Bronckart. Dentre
eles, destaca-se Vigotski que serve de referência para a discussão sobre os
processos cognitivos e suas implicações em ambiente de aprendizagem escolar.
Para refletir sobre a linguagem, como meio pelo qual o homem existe e age, por
meio do texto escrito, nos apoiamos nos pressupostos teóricos do grupo do ISD
genebrino.
O trabalho divide-se em seis capítulos. O primeiro constitui a introdução que
traz informações gerais sobre a dissertação. No segundo capítulo, discute-se o
processo da enunciação com foco nos elementos constitutivos do ato enunciativo,
conforme estudos benvenistianos e o processo enunciativo como um fenômeno
social, na perspectiva bakhtiniana. No terceiro capítulo, discutem-se ideias Vigotski,
no que se referem ao processo de ensino-aprendizagem da língua, e conceitos de
Jean Paul Bronckart, na perspectiva do agir na/pela linguagem.
No quarto capítulo, apresentam-se diretrizes pedagógicas de Língua
Portuguesa, dos anos finais do Ensino Fundamental, presentes nos PCN. Logo
após, explicitam-se orientações pedagógicas para o ensino-aprendizagem da língua,
conforme o Manual do Professor (MP) no (PNLD). No quinto capítulo, apresentam-se
os procedimentos metodológicos para análise dos textos que compõem o corpus da
pesquisa e os resultados. Por fim, no último capítulo, apresentam-se considerações