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Contribuies dos estudos marxianos para a Esttica: reflexes sobre a sociedade contempornea
Priscila de Souza Chist LeiteProfessora do Instituto Federal do Esprito Santo
ResumoO artigo que segue apresenta alguns apontamentos de leitura sobre Esttica e
sua relao com a contemporaneidade. Por meio de pesquisa bibliogrfica e
imagens de obras de arte, discute aspectos da histria da Esttica e da
sociedade atual. Apresenta reflexes marxianas sobre a sociedade capitalista e o
processo de embrutecimento dos sentidos humanos para, a seguir, abordar as
relaes estabelecidas entre a Indstria Cultural e a sociedade de consumo com
o intento de debater o processo de estetizao da sociedade. Finaliza ao
apontar a obra de arte e o efeito catrtico proporcionado por ela como modos
de estabelecer novas relaes com a realidade e com as diferentes
manifestaes que buscam retrat-la.
Palavras-chave: Esttica; Arte; Sociedade de Consumo.
AbstractThis article presents some critical aspects that result from readings on the
history of Aesthetics as well as the critical observation of works of art, in
order to bring forth relationships with issues of contemporary society. With
the help of critics such as Marx, this article examines relationships between the
so-called cultural industry and the society of consumption, with the purpose
of suggesting a process of aesthetization of society. In closing, the text
proposes that the well guided appreciation of works of art, and the resulting
cathartic effect of that appreciation, are of great help to establish new
relationships with the very many ways of expression of reality and, as a result,
with reality itself.
Keywords: Aesthetics; Art; Consumption Society.
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Apresentao
o presente texto pretendemos apresentar alguns apontamentos de
leitura sobre Esttica e sua relao com a contemporaneidade.
Por meio de pesquisa bibliogrfica, imagens de obras de arte e
da mdia, discutimos aspectos da histria da Esttica e da sociedade atual.
Na primeira parte, Apontamentos sobre a trajetria da esttica,
conceituamos algumas ideias de filsofos como Plato, Aristteles,
Baumgarten, Schiller, a partir das reflexes de Terry Eagleton, com o
objetivo de situar conceitualmente as ideias estticas de Marx. Assim,
apresentamos reflexes de Marx sobre a sociedade capitalista e o processo
de embrutecimento dos sentidos humanos, sob a luz de pensadores como
Vzquez, nos trechos intitulados As ideias estticas de Marx e A esttica
marxiana e a arte de massa. Abordamos as relaes estabelecidas entre a
Indstria Cultural e a sociedade de consumo, com o intento de debater o
processo de Estetizao da sociedade, no tpico Sociedade contempornea,
indstria cultural e estetizao. Finalizamos o artigo, em dilogo com
Lukcs, com o captulo A obra de arte e a catarse, apontando a obra de arte
e o efeito catrtico proporcionado por ela como modos de estabelecer novas
relaes com a realidade e com as diferentes manifestaes espetaculares
que buscam retrat-la. Esperamos, com a apresentao destas reflexes, que
o leitor se aproxime do pensamento marxiano e de seus percussores e
estabelea novas relaes com a realidade reificada.
N
1. Apontamentos sobre a trajetria da Esttica
No dia a dia, em diferentes contextos, muito comum ouvir falar sobre
esttica, como ocorre nos letreiros dos sales de beleza: Instituto de
Esttica; nos encartes promocionais: Esttica Corporal, Esttica Facial etc.
Ambas as expresses se relacionam com a beleza fsica e abrangem um bom
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corte de cabelo, uma maquiagem da moda ou cuidados mais intensos com
o corpo, como ginstica, massagens, tratamentos com cremes e cirurgias
plsticas.
No campo da Histria da Arte, encontramos expresses como: esttica
renascentista, esttica realista, esttica modernista etc. Nesse sentido, a
palavra esttica designa um conjunto de caractersticas formais que a arte
assume em determinado perodo.
Para a filosofia, esttica relaciona-se com o estudo do belo e do
sentimento que esse suscita nos homens. A esttica aparece ligada noo
de beleza e por isso a arte tem lugar privilegiado nessa reflexo, pois,
durante muito tempo, ela teve como funo exprimir a beleza de modo
sensvel.
Etimologicamente, a palavra esttica origina-se do grego, aisthesis,
com o significado de faculdade do sentir, compreenso pelos sentidos,
percepo totalizante, reafirmando a ligao da esttica com a arte. Assim,
o objeto artstico aquele que se oferece ao sentimento e percepo.
Segundo Santaella (1994), a raiz aisth, do verbo aisthanomai, quer dizer
sentir com os sentidos, ou seja, com a rede de percepes fsicas.
As questes relativas esttica, no Ocidente, tiveram sua origem no
mundo grego a partir do pensamento de Plato (428-348). No dilogo de
Filebo, Plato define aisthesis como uma excitao (pathos) da alma e do
corpo, que leva ao conhecimento do mundo sensvel. J Aristteles (1992)
situa a aisthesis entre os cinco poderes ou faculdades da alma,
caracterizando-a como aquela funo encarregada de permitir ao ser
humano formar, a partir dos objetos do mundo, uma imagem mental icnica
desses objetos que refletisse, de modo transformado, o conhecimento
abstrato.
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Para o Dicionrio Bsico de Filosofia de Japiass e Marcondes
(2008), esttica um dos ramos tradicionais da filosofia. O termo foi criado
por Alexander Von Baumgarten, no sculo XVIII, para designar o estudo da
sensao, a cincia do belo, e referia-se empiria do gosto subjetivo,
quilo que agrada aos sentidos, com fins elaborao de uma ontologia do
belo.
Terry Eagleton (1993) destaca que a esttica nasceu como um discurso
sobre o corpo. Em sua formulao original, pelo filsofo alemo Alexander
Baumgarten, o termo no se refere primeiramente arte, mas com o grego
aisthesis, a toda a regio de percepo e sensao humanas, em contraste
com o domnio mais rarefeito do pensamento conceitual (EAGLETON,
1993, p. 17).
No ano de 1735, Baumgarten publicou Reflexes filosficas sobre
algumas questes pertinentes poesia e, nesse artigo, pela primeira vez,
empregou a palavra esttica, definindo-a como a cincia da percepo
geral. Ele acreditava que o campo da lgica deveria ser ampliado por uma
esttica que incluiria a coisa cognoscvel sensitivamente. Em sua obra
posterior, Aisthetica (1750), essa cincia da percepo foi tomada como
sinnimo de conhecimento pelos sentidos e partia da ideia de que existe
uma esttica natural, como uma capacidade inata que o ser humano possui
para o pensamento belo, e tambm uma esttica adquirida, que pode
acontecer por meio do ensino ou da prtica.
Nesse sentido, a esttica surge do reconhecimento de que o mundo da
percepo e da experincia no pode ser simplesmente derivado de leis
universais abstratas, mas requer do seu discurso mais inferior uma lgica
interna. A esttica [...] nasceu como uma mulher, subordinada ao homem,
mas com suas prprias tarefas humildes e necessrias a cumprir
(EAGLETON, 1993, p.19).
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O surgimento da esttica relaciona-se tambm com a busca pela
ascenso da burguesia em frente aristocracia feudal, por uma ordem
universal de sujeitos livres, iguais e autnomos. Por isso, era preciso pensar
em um tipo inteiramente novo de sujeito, um sujeito que, assim como a obra
de arte, [...] descobre a lei na profundeza de sua prpria identidade livre, e
no em algum poder externo opressivo (EAGLETON, 1993, p. 21).
Nesse contexto, coloca-se um novo desafio ideolgico ordem
dominante. Isso produz novas dimenses do sentimento para alm dos
limites propostos pelo Absolutismo. Para que o poder fosse legitimado e
conquistado pela burguesia, ocorreu um processo profundo de emancipao
poltica em que a liberdade e a compaixo, a imaginao e o corpo foram
ouvidos no interior do discurso de um racionalismo repressivo.
Portanto, a partir de Baumgarten que essa rea se tornou uma
disciplina autnoma e culminou na Educao Esttica, que teve incio com
os estudos de Schiller. Assim como Imanuel Kant1, Friedrich Schiller insere-
se no contexto Iluminista, marcado pela conscientizao histrica, resultado
do esforo de um pequeno grupo de literatos, escritores, crticos e filsofos.
Vrios episdios que ocorreram durante a Revoluo Francesa, entre eles a
1 Para Kant, o homem, em sua busca pelo conhecimento de mundo, precisa procurartambm a harmonia com o mundo, pois, para haver conhecimento, preciso que as nossasfaculdades se ajustem realidade material. a contemplao desta forma pura de cognio,a harmonia com o mundo, que vem a ser esttica. O filsofo acredita que existem duasfontes do conhecimento humano: a sensibilidade e o entendimento. Por meio da primeira,os objetos nos so dados; pela segunda, so pensados. S pela conjugao desses doiselementos possvel a experincia do real. Portanto, para Kant, no somos capazes deconhecer as coisas como elas so em si, s conhecemos realmente o mundo dos fenmenos,da experincia, dos objetos enquanto se relacionam conosco, sujeitos, e no com a realidadeem si, tal qual ela , independentemente de qualquer relao com o conhecimento, pois omundo dos fenmenos s existe na medida em que participamos dele. A obra de Arte paraKant desinteressada, universalmente reconhecida por um sentimento ao mesmo tempoindividual e coletivo. Contudo, as exigncias kantianas ficam difceis de serem cumpridasno sculo XXI, pois, neste momento, j no se pode mais conceber os juzos estticos comopuros e desinteressados; eles so, na maior parte das vezes, ditados por interessesmercadolgicos. Na contemporaneidade, a arte cada vez mais servir aos interessesmltiplos, como a busca desenfreada pelo lucro, a espetacularizao e a diverso.
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execuo do rei Lus XVI, deixaram Schiller decepcionado e o levaram a
concluir que o Iluminismo no bastava para aperfeioar as relaes
polticas. Caberia somente arte, inserida em um sculo indigno e brbaro,
o papel de purificar a humanidade.
Para Schiller, a arte o impulso mais eficaz do ser humano, o meio
mais efetivo de autorrealizao humana e, por conseguinte, a Educao
Esttica deveria fomentar uma revoluo total da maneira de sentir,
tornando-se a base da construo de uma verdadeira liberdade humana.
Schiller (2002) tentou superar o seu mestre, Kant, no tratado A
Educao Esttica do homem numa srie de cartas. Nas cartas, ele
diagnostica as questes centrais de sua poca: a alienao, o isolamento, a
diviso do trabalho, a consequente fragmentao do indivduo, o Estado
moderno e o desenvolvimento cientfico e cultural. Para ele, somente a
formao da sensibilidade seria capaz de tirar os homens da condio da
barbrie. Nesse sentido, considera o artista como o indivduo capaz de se
resguardar de corrupes de sua poca.
A ideia de Schiller era criar cidados que colaborassem para a
liberdade poltica e civil. Para ele, a Educao Esttica era a tarefa suprema
do homem e, embora factvel, no poderia ser inteiramente realizada, pois a
humanidade jamais seria plenamente emancipada. Porm, acreditava que o
indivduo que se cultivasse e se enobrecesse moralmente no renunciaria
esperana de um dia vir a ser livre. Nesse sentido, educar e ser educado
esteticamente significaria educar e ser educado pela soberania da
imaginao.
De acordo com Schiller, a imaginao a faculdade mxima na esfera
esttica, assim como o entendimento a faculdade maior na esfera terica e
a razo na esfera prtica. Este foi um dos maiores mritos de Schiller: tentar
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mostrar como essas faculdades remetem umas s outras no interior das
diferentes esferas e como tais esferas se articulam num todo.
2. As ideias estticas de Marx
No final do sculo XIX, a partir das ideias schillerianas, Marx critica o
capitalismo industrial, as capacidades atrofiadas, os poderes dissociados e a
totalidade da natureza humana arruinada. Ele inverteu Schiller ao apreender
a liberdade humana como uma questo da realizao dos sentidos e no
como uma liberao deles. Porm, herda o ideal esttico schilleriano que
concebe o desenvolvimento integral das capacidades humanas como um fim
em si mesmo (EAGLETON, 1993).
Contudo, no h, nos escritos de Marx, uma teoria sistemtica da arte,
embora tenha manifestado, durante toda sua vida intelectual, um grande
interesse pela esttica e pelas artes. Os vrios e curtos trechos em que tratou
dessas questes constituram a base da esttica marxiana. Tendo isso em
vista, busca-se neste artigo entender as ideias de Marx sobre a esttica,
sabendo que, na tradio marxista, existem outros estudos que partem dos
de Marx, mas que caminham por diferentes direes.
Para Marx, o objetivo da vida a felicidade ou o bem-estar. A sua obra
uma investigao extensiva sobre as condies materiais necessrias para
realizar esse objetivo. Ele nasceu em 1818 e foi um estudioso que exerceu
grande influncia sobre o pensamento filosfico, social e histrico da
humanidade. A publicao tardia de vrios de seus escritos promoveu a
oportunidade tambm tardia do conhecimento da sua obra. Alm disso,
muitas de suas ideias foram obscurecidas pelas tentativas de adaptar o seu
significado s circunstncias polticas variadas.
Marx, alemo nascido de famlia de classe mdia, estudou na
Universidade de Berlim, onde conheceu o pensamento hegeliano. Participou
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ativamente do movimento dos jovens hegelianos e produziu crticas severas
ao Cristianismo. Foi trabalhar em um jornal liberal e escreveu incisivos
artigos sobre as questes econmicas de sua poca, o que implicou o
fechamento do jornal pelo governo. Aps o fechamento do jornal, Marx foi
para Paris e, com um grupo de trabalhadores alemes, dirigiu uma revista
que pretendia ser a ponte entre o nascente socialismo e as ideias dos
hegelianos radicais alemes.
Durante os primeiros meses de permanncia em Paris, comeou a
registrar suas ideias e novas concepes escrevendo os Manuscritos
econmico-filosficos de 1844, que permaneceram inditos at 1930. Os
Manuscritos esboavam uma concepo humanista do comunismo, um
comunismo que tinha como objetivo final a existncia humana. Nessa
ocasio, Marx, influenciado pela filosofia de Feuerbach, baseava-se no
contraste entre a natureza alienada do trabalho no capitalismo e uma nova
sociedade comunista na qual os seres humanos desenvolveriam livremente
sua natureza em produo cooperativa.
Com os Manuscritos, Marx tenta decifrar a sociedade civil de ordem
burguesa. Ele cria uma teoria da ordem burguesa. Ele empenhou-se em
estudar a sociedade burguesa na perspectiva de subsidiar a luta operria.
Para tanto, mergulha nas leituras sobre os economistas polticos, como
Ricardo e Smith, e cria os Manuscritos, tidos como uma obra de transio,
em que, pela primeira vez, Marx confronta as suas concepes terico-
filosficas com a reflexo prpria dos economistas polticos.
Os Manuscritos no foram redigidos para publicao, mas criados
como material de estudo. Eles so um texto de transio em que Marx
desenvolve um conjunto de determinaes que sero recorrentes em sua
obra, um texto radical, entendendo que ser radical implica tomar as coisas
pela raiz.
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Para Marx, a raiz do homem seria o prprio homem, pois o homem
uma constante tenso entre a sua genericidade humana, entre o seu ser
genrico e a sua singularidade. O que prprio do ser humano existir
como ser singular. Essa singularidade imediata que nos constitui
insuprimvel; ela se transcende e se resolve na genericidade humana.
Marx considera que o homem constitudo de toda a sua
referencialidade cultural, pois o horizonte cultural que o transcende e do
qual ele portador. O homem s se expressa singular e genericamente na
medida em que um ser objetivo. aquele que s se mantm enquanto tal
na medida em que se objetiva. A objetivao a condio da existncia
humana. Ela se d por meio de formas pouco perenes como o gesto, o riso, o
movimento, a fala cotidiana, mas tambm por meio de formas mais
privilegiadas, como a Cincia, a Arte, a Literatura etc. Esse conjunto de
objetivaes, que o acervo da humanidade, deve ser apropriado pelos
indivduos, precisa ser subjetivado pelos indivduos. Porm, o objeto
produzido s se torna uma objetivao da humanidade quando o homem no
se perde mais nele, ou seja, o objeto s existe para o sujeito na medida em
que o sujeito desenvolveu a faculdade necessria apreenso do objeto.
O homem rico, para Marx, no aquele que TEM; aquele que , pois
o domnio da humanidade o domnio do SER e no o domnio do TER. O
homem rico aquele que consegue subjetivar uma riqueza de objetivaes.
Para Marx, s possvel ser rico interiormente se se puder interiorizar a
riqueza de objetivaes da humanidade. Assim, a verdadeira riqueza a
elaborao das possibilidades criativas humanas, sem qualquer pressuposto
alm do desenvolvimento histrico anterior. S o acesso s objetivaes
permite a subjetivao. Marx pensa no individuo socialmente constitudo e,
portanto, socialmente rico. Ningum nasce rico ou pobre; a sociedade que
nos torna rico ou no. o sistema de objetivaes que faz emergir e
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desenvolver o ser social. A humanidade vem se desenvolvendo na medida
em que desenvolve seus sistemas de objetivaes.2 Sobre isso Marx pontua:
V-se como, em vez da riqueza e da misria da economia poltica
existe o homem rico e a necessidade humana rica. O homem rico ao
mesmo tempo aquele que tem necessidade de uma totalidade de
manifestaes humanas da vida. O homem para quem a sua prpria
realizao existe como uma necessidade interior, como uma carncia
(MARX; ENGELS, 1986, p. 26).
Para Marx, a objetivao elementar que constitui o ser social o
trabalho. Ao conjunto dessas objetivaes estaria preservado o conceito de
prxis. Ele considera que o ser humano prtico e social. Esse carter do
homem exemplificado paradigmaticamente pelo trabalho, objetivao
privilegiada que garante a condio humana. O trabalho a condio eterna
do homem, integra a sua essncia, ou seja, o conjunto de atributos,
qualidades que o ser humano, ao longo da sua trajetria na terra, conseguiu
realizar.
O trabalho a condio necessria para o aparecimento da arte, bem
como da relao esttica do homem com seus produtos. O trabalho uma
atividade consciente por meio do qual o homem transforma e humaniza a
matria. Foi por intermdio do trabalho que surgiu a criao artstica. A arte
nasce, no paleoltico superior, a partir do trabalho, [...] recolhendo frutos da
vitria do homem pr-histrico sobre a matria, para assim elevar o humano
mediante esta nova atividade que hoje chamamos artstica a um outro
nvel (VZQUEZ, 1968, p. 73). Nesse sentido, para que pudessem surgir
2 Contudo, nem sempre as potencialidades criativas humanas so eficazes em termos debem-estar. Isso se deve ao fato de que algumas capacidades humanas podem ser destrutivas,como a construo de campos de concentrao que tambm foi uma realizao dos podereshumanos (EAGLETON, 1993).
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os primeiros objetos artsticos, foi preciso que o homem afirmasse, pelo
trabalho, um domnio cada vez maior sobre a matria. O progresso ocorreu
devido fabricao de instrumentos que, ao se sofisticarem, possibilitaram a
elevao do domnio do homem sobre a matria, o que permitiu a ampliao
das fronteiras da humanizao e da natureza (VZQUEZ, 1968).Nesse
momento, ao objeto dado valor para alm da sua utilidade. Leva-se em
conta agora o objeto que materializa o potencial criador do homem.
A capacidade da subjetividade do homem explicitada na relao
esttica do homem ser social por essncia com a realidade. Nesse
sentido, a obra de arte um objeto no qual o sujeito se expressa, se
exterioriza e reconhece a si mesmo. Se o homem s pode se realizar saindo
de si mesmo, projetando-se para fora, isto , objetivando-se; a arte cumpre
uma alta funo no processo de humanizao do prprio homem.
Contudo, ter ou no contato como as objetivaes da humanidade, por
vezes, passa pela posio de classe. Esse contato, em larga medida, tambm
determinado pelo rendimento familiar. Como conhecer museus, ir ao
teatro, assistir apresentaes musicais? Em algumas ocasies preciso ter
condies financeiras para isso, o que muitas vezes no acontece com o
trabalhador assalariado. Nesse sentido, o acesso aos espaos ligados arte
fica restrito aos mais favorecidos economicamente. Em outros momentos as
pessoas no se sentem atradas a realizarem tais programas culturais por
desconhecimento ou por desinteresse.
Para Marx, no sistema capitalista a razo e o prazer esto em disputa.
Uma das possibilidades de reconciliao por meio do objeto artstico, que
deve proferir modelos de reconciliao, sensualizar a razo e racionalizar o
prazer, maneira como vimos anteriormente, nas ideias de Schiller. Porm,
nem sempre todos tm acesso a essas produes. Muitos nem sabem que
existem espaos culturais destinados a apresentar as obras de arte para a
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sociedade ou, quando sabem, no se sentem capazes de entender os
trabalhos mostra. A crescente instrumentalizao da natureza e da
humanidade, o processo do trabalho sob o domnio de uma lei abstrata e
imposta, que se afasta de qualquer prazer corpreo, so aspectos que podem
explicar o distanciamento dos indivduos das experincias sensveis.
No h, em Marx, a percepo sensorial pura, ou mesmo a pura
intuio sensvel, pois para ele, a evoluo da percepo sensorial e do
modo de intuir dos homens no se fez margem do desenvolvimento das
faculdades intelectuais especulativas e do raciocnio abstrato. Em suas
pesquisas sobre essa questo, Konder (1967) enfatiza que o
desenvolvimento da faculdade de pensar por meio de conceitos no acarreta
a atrofia da faculdade de sentir, pois o homem se humaniza tanto no
raciocnio como na sensibilidade. Ao desenvolver a sua capacidade de sentir
as coisas, ele tambm enriquecer sua reflexo a respeito delas. O homem
mais inteligente tende a ser, globalmente o mais sensvel; e o mais bem
dotado de sensibilidade tem maiores possibilidades para o desenvolvimento
da sua inteligncia (KONDER, 1967, p. 29).
Para Marx, a percepo sensvel deve ser a base de toda cincia. S
quando a cincia comea pela percepo sensvel na sua forma dupla da
conscincia sensvel e da necessidade dos sentidos, ela verdadeiramente
cincia. No foi, pois, apenas pelo pensamento, mas atravs de todos os
sentidos que o homem se afirmou no mundo objetivo (MARX; ENGELS,
1986, p. 24). Assim, a percepo sensorial apresentada como uma
faculdade que se desenvolve historicamente e cujo desenvolvimento um
aspecto substancial da autoconstruo do homem em geral. Complementa
ainda que [...] o homem premido pelas necessidades grosseiras e esmagado
pelas preocupaes imediatas incapaz de apreciar mesmo o mais belo dos
espetculos (MARX, 2004, p. 25).
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Sobre o processo de humanizao do homem, Marx aponta que, para
confirmar a sua humanidade, O homem se apropria da sua essncia
omnilateral [em todas as dimenses] de uma maneira omnilateral [de uma
maneira compreensiva], portanto, como um homem total (MARX, 2004,
p.108).
Todas as relaes humanas com o mundo ver, ouvir, cheirar,
saborear, sentir, pensar, contemplar, querer, agir, amar, em resumo,
todos os rgos da sua individualidade assim como aqueles que, na
sua forma imediata, so comuns a todos encontram-se na sua atitude
objetiva ou na atitude para o objeto como uma adoo deste ltimo. A
adoo da realidade humana e sua atitude para com o objeto
constituem a manifestao da realidade humana: a atividade e
sofrimento humanos, para sofrer, encarados humanamente,
representam a auto-satisfao do homem (MARX; ENGELS, 1986,
p.77).
Assim, pela presena da cultura, tornamo-nos humanos. Nas palavras
de Marx (2001, p. 143-144):
S por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano
que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade
subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas,
em resumo, os sentidos capazes de satisfao humana e que se
confirmam como capacidades humanas). Certamente, no so apenas
os cinco sentidos, mas tambm os chamados sentidos espirituais
[simblicos], os sentidos prticos (vontade, amor, etc.), ou melhor, a
sensibilidade humana e o carter humano dos sentidos, que vm
existncia mediante a existncia do seu objeto, por meio da
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caracterstica humanizada. A formao dos cinco sentidos a obra de
toda a histria mundial anterior.
Portanto, o fundamental perceber que, na constituio do indivduo,
os sentidos e sentimentos so socialmente engendrados e se distanciam da
sensibilidade animal constrangida pela necessidade imediata. Os sentidos se
humanizam medida que se produzem objetivaes humanas (quando o
homem coloca a sua marca no objeto) e estas so apropriadas (quando o
homem incorpora as produes) em meio a relaes sociais determinadas.
O olho tornou-se um olho humano, no momento em que o seu objeto se
transformou em objeto humano, social, criado pelo homem para o homem
(MARX, 2001, p. 142). Com isso, enfatiza-se no apenas a necessidade do
objeto (a natureza humanizada) na formao do sujeito, mas o prprio
carter histrico desse processo. Nesse sentido, considera-se a formao dos
sentidos como trabalho de toda a histria universal at a atualidade.
Para Marx, os sentidos no so apenas uma regio isolvel cujas leis
so investigadas racionalmente, mas a prpria forma de nossas relaes
prticas com a realidade. Para ele, o homem um ser total. Contudo, o autor
alerta que a propriedade privada nos tornou to estpidos e unilaterais, que
um objeto s nosso se o possumos, ou seja, existe para ns como capital
ou utilizado por ns: imediatamente possudo, comido, bebido, usado no
nosso corpo ou vivido.
Embora a propriedade privada considere todas essas encarnaes de
posse imediatas apenas como meios de subsistncia, a vida que
servem a da propriedade privada, trabalho e capital. Portanto,
verificou-se uma simples alienao de todos esses sentidos; e o
sentido de ter ocupar o lugar de todos os sentidos fsicos e espirituais.
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A existncia humana tinha de ser reduzida a esta pobreza absoluta,
para dar origem sua riqueza intima... (MARX, 1986, p. 77).
A esttica de Marx tem como base a filosofia da prxis, uma prxis
que tende a transformar radicalmente a realidade humana a fim de instaurar
uma sociedade na qual o homem possa explicitar criadoramente suas foras
essenciais, frustradas, negadas, potencializadas ou despotencializadas. Esse
marxismo se identifica como um verdadeiro humanismo, com a
transformao radical do homem em todos os planos, o homem que seja o
ser supremo para o homem. Nesse processo, o esttico no pode ser alheio
ao marxismo humanista, j que constitui uma dimenso essencial da
existncia humana.
Marx se interessou em definir o homem no s como produtor de
objetos ou produtos materiais, mas tambm de obras de arte. Ele buscava,
em seus estudos, o homem social que, nas condies econmicas e
histricas da sociedade capitalista, se desfaz, se mutila ou nega a si prprio.
Esta mutilao do homem, ou perda do humano, se d precisamente no
trabalho, na produo material, isto , na esfera na qual o homem deveria se
afirmar como tal e que tornou possvel a prpria criao esttica
(VZQUEZ, 1968, p. 52). Na sua busca pelo humano perdido, Marx
encontra o esttico como a esfera essencial. Ele volta-se para o esttico a
fim de esclarecer quanto o homem perdeu com a sociedade capitalista e
vislumbrar quanto pode ganhar numa nova sociedade na qual dominem
relaes verdadeiramente humanas.
3. A esttica marxiana e a arte de massa
Como foi apontado, Marx considera que, nas condies econmicas e
histricas da sociedade capitalista, o homem perde a sua humanidade e nega
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a si prprio. Ao invs de afirmar-se no capitalismo, o homem aliena a sua
essncia. Em vez de humanizar-se, desumaniza-se.
Na sociedade capitalista, os homens no produzem para satisfazer
diretamente suas necessidades pessoais ou comunitrias. Nesse processo, o
homem perde sua dimenso especificamente humana como atividade que
revela a sua natureza criadora para se reduzir a uma dimenso meramente
econmica: produzir e consumir mercadorias.
O sistema capitalista se afirma na coisificao na medida em que
prope a coisificao da existncia humana. Baseia-se em uma das formas
mais repulsivas de manipulao dos indivduos e das conscincias: a
mxima transformao do homem em coisa, em objeto. Vzquez intitula o
homem que manipulado como homem-massa o homem ideal, do
ponto de vista dos interesses desse capitalismo voraz,
[...] o homem engendrado por suas prprias relaes; isto , o
homem despersonalizado, desumanizado, oco por dentro, esvaziado de
seu contedo, concreto e vivo, que pode se deixar modelar docilmente
por qualquer manipulador de conscincias; em suma, o homem-massa.
Ora, qual a arte ou pseudoarte que este homem-massa pode digerir
ou consumir? Qual a arte que o capitalismo tem interesse em
patrocinar fundamentalmente, sobretudo numa sociedade industrial e
altamente desenvolvida de um ponto de vista tcnico, na qual se do
as condies para estender e aprofundar o processo de
despersonalizao ou massificao? Arte de massas (VZQUEZ,
1968, p. 276).
A arte de massas aquela cujos produtos satisfazem as necessidades
pseudoestticas dos homens-massa, coisificados, que so, ao mesmo tempo,
um produto caracterstico da sociedade industrial capitalista.
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Seu consumo de massa acha-se assegurado pela existncia de um
pblico potencial, qualitativamente imenso, bem como pelas
possibilidades de aceder a tais produtos artsticos em virtude dos
poderosos meios de difuso (imprensa, rdio, cinema e televiso) que
a tcnica atual coloca sua disposio. Estes produtos so, no terreno
literrio, as historietas e toda classe de novelas (fotonovelas,
radionovelas e telenovelas), bem como a maior parte do romance
policial; msica, grande parte das canes chamadas modernas,
romnticas ou populares; e, no cinema, a maior parte da produo
flmica (VZQUEZ, 1968, p. 277).
A arte de massas a caricatura da verdadeira arte. uma pseudoarte
produzida pela vontade da classe dominante para o gozo ou consumo das
massas ou, mais exatamente, dos homens-massa. uma arte que deixa o
homem na superfcie ou na margem das coisas e que se distingue, por sua
vez, graas a uma linguagem astutamente fcil, que corresponde sua falta
de profundidade humana: Uma linguagem que assegura uma
inteligibilidade e comunicao to mais extensas quanto mais superficial e
vazio for seu contedo e quanto mais pobres, banais e dbeis forem seus
meios de expresso (VZQUEZ, 1968, p. 277).
Qual seria a funo da pseudoarte? Ela cumpre uma funo ideolgica
bem definida: manter o homem-massa em sua condio de homem-massa,
fazer com que se sinta to massificado que no lhe seja permitido
vislumbrar um mundo verdadeiramente humano e, com isso, a possibilidade
de tomar conscincia de sua alienao, bem como dos caminhos para
destru-la.
Para Vzquez, em uma sociedade na qual impera a lei fundamental do
lucro, a produo no apenas produz produtos que satisfazem determinadas
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necessidades, mas tambm as prprias necessidades e, com elas, os
consumidores. Sob os efeitos das tcnicas de persuaso, da publicidade e de
uma educao unilateral, tecnicista e coisificante, entre outras estratgias, os
homens terminam por desejar o que no necessitam ou o que no
corresponde s suas grandes necessidades humanas.
Para o autor, a preferncia pela pseudoarte ocorre de modo induzido,
fabricado, produzido de fora, no qual o produtor recorre a toda sorte de
mentiras sobre as qualidades de seu produto, para assegurar o consumo mais
vasto possvel de suas mercadorias. Sobre a base de certas qualidades
imaginrias, cria-se artificialmente o desejo de consumi-la, ainda que se
trate de um produto que, na realidade, no satisfaz uma necessidade
verdadeira de quem o adquire.
Vzquez aponta que, apesar de o pblico, em geral, nas condies
prprias do consumo de massas, preferir quase sempre os produtos mais
inconsistentes, do ponto de vista esttico, isso no significa que no exista
um setor que recuse tais produtos e busque outros mais elevados. Mas a
realidade que, apesar dos esforos destas instituies e dos desejos de um
setor mais exigente, o pblico outorga sua preferncia aos subprodutos
artsticos ou a obras de baixa ou duvidosa qualidade esttica (VZQUEZ,
1968, p. 287). como se o gosto fosse adaptado para apreciar determinados
produtos e falsas solues que no discutem os problemas fundamentais dos
seres humanos. Percebe-se, ento, a grande necessidade de se pensar modos
de resistir, problematizar e destruir essas estruturas alienantes.
4. Sociedade contempornea, Indstria Cultural e estetizao
Em consonncia com as ideias de Marx e Vzquez, atualmente outras
nomenclaturas e conceitos sobre o consumo das massas e para as massas
foram elaborados, como o termo Sociedade de consumo.
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A Sociedade de consumo consequncia da expanso do capitalismo
que assume hoje formas mais flexveis de acumulao do capital. A
flexibilidade uma das caractersticas marcantes do modelo emergente de
desenvolvimento e de organizao do trabalho capitalista. A acumulao do
capital flexvel tambm refletida nos processos de trabalho, mercados de
trabalho, produtos e padres de consumo. Uma de suas caractersticas a
integrao e a organizao de alguns pases em blocos geoeconmicos como
estratgias para proteger seus interesses contra os interesses de terceiros.
Nesse sentido, o termo globalizao expressa a ideia de um mundo mais
integrado e interdependente no s em termos econmicos, mas tambm em
questes sociais, culturais etc. (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003). O
conceito de aldeia global induz a pensar uma relao de continuidade e
homogeneidade que no existe entre as naes. Nesse contexto, o termo
globalizao relaciona-se a um enfraquecimento do Estado-Nao e a
universalizao dos mercados e do capital (DELLA FONTE; LOUREIRO,
2003, p. 32).
Por conseguinte, muitas vezes o desenvolvimento tecnolgico
interpretado como sinnimo de libertao do ser humano em relao ao
trabalho, em razo do aumento do tempo disponvel para as atividades de
lazer. Alm da avanada tecnologia, a vida cotidiana passou a se constituir
de informaes abundantes que circulam em to rpida velocidade que,
muitas vezes, s possvel captar a sua imediatez, suas impresses
superficiais.
Nesse sentido, o ritmo de produo de mercadorias acelerado, os
produtos tornam-se obsoletos, com o tempo de uso reduzido e provocam
uma avalanche de modas fugazes. A produo acelerada corresponde a um
consumo frentico mobilizado pelo trabalho publicitrio de erotizao das
mercadorias e da realizao hedonista.
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Sobre esse assunto, Freitas (2003, p. 51) coloca que A sociedade
contempornea estabelece uma postura esttica fundada no gozo narcisista
de perceber todos os objetos consumidos como signos da inteireza do
prprio ego. Segundo o autor, do mesmo modo que a personagem Narciso,
da mitologia grega (Figura 1), apaixonou-se por sua prpria imagem e
acabou sucumbindo ao afogar-se na superfcie da gua que ele refletia, o
indivduo contemporneo possui uma sede por conquistar uma expresso
razoavelmente coesa daquilo que ele possa chamar de eu. Significa a busca
desse objeto to acalentado que parece ser o nico capaz de permanecer
constante, apesar das flutuaes de toda as desavenas polticas, correntes
ideolgicas, variao de humor do chefe, alteraes do mercado de cmbio
etc. (FREITAS, 2003, p.53).
Figura 1 CARAVAGGIO, Michelangelo Merisi. Narciso, 1597. leo sobre tela, 110 x 92cm.
Freitas (2003) pontua que a sociedade de consumo atual parece
introduzir uma caricatura bastante distorcida da caracterstica da liberdade
de nossas faculdades do juzo esttico nos moldes kantianos. Todos os
produtos que podemos comprar, msicas que podemos ouvir, filmes e
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propagandas a que podemos assistir produzem um ambiente em que
proliferam uma dinmica ldica, despreocupada, que parece ser o oposto do
trabalho maante e repetitivo a que estamos sujeitos normalmente na vida
cotidiana. A falsa liberdade de escolha dos locais de trabalho, a monotonia
do trabalho que no possui criatividade e a infinidade de opes de objetos
que nos circulam criam uma imagem falsa de liberdade a ser exercida
virtualmente e sem limites.
Para Freitas (2003), a grande fantasia que move o indivduo
contemporneo a de que ele possui um ego suficientemente forte capaz de
prolongar a sensao de prazer que ele busca em cada um dos objetos que
poderia refletir sua imagem. O ego e todos os objetos de desejo funcionam
como um sistema que confirma o merecimento de ter o desejado; como se
a possibilidade de comprar, de ouvir ou ver alguma coisa pudesse
proporcionar esse vnculo. Todos gostaramos de nos sentir em casa no
mundo, que funciona como uma enorme metfora para o tero materno e
para uma espcie de concepo espacial da nossa prpria subjetividade
(FREITAS, 2003, p. 56). a busca pelo TER que Marx tanto criticou.
Um exemplo que ajuda a entender as consequncias do consumo
exacerbado e a transformao disso em espetculo apresentado na srie
americana para a televiso chamada Acumuladores. Os programas so
exibidos na televiso por assinatura, portanto no direcionados classe
popular. Discutem casos de extremo consumismo e o apego excessivo pelos
objetos que impedem as pessoas de descartar qualquer coisa, por mais
desnecessria ou absurda que possa parecer. Os apresentadores do programa
visitam as casas de pessoas que sofrem de casos severos de acumulao
extrema para abordar os aspectos psicolgicos desse comportamento
compulsivo e apresentam as aberraes nas vitrines televisivas.
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O prprio site do programa apresenta um dos casos mais severos de
acumulao extrema que veio luz em maro de 1947, quando a polcia de
New York foi chamada para investigar a descoberta de um cadver em um
edifcio de trs andares no Harlem, que pertencia a dois irmos idosos .
Quando os agentes entraram no imvel, depararam-se com montanhas
de lixo que chegavam at o teto, incluindo quatorze pianos, um automvel e
os restos de um feto de duas cabeas. Dentro de um sistema de tneis que
usavam para andar entre os dejetos, estavam os corpos sem vida dos idosos:
um foi esmagado pelo lixo, e o outro morreu de inanio.
Esse episdio nos leva a pensar que, do mesmo modo que o Narciso
composto por lixo, de Vik Muniz (Figura 2), olha e contempla sua imagem
como bela, os dois idosos, cobertos por lixo, contemplavam suas compras,
consumiam compulsivamente at que, num dado momento, transformaram-
se naquilo em que suas compras haviam se transformado: lixo.
Figura 2MUNIZ, Vik. Narciso depois de Caravaggio, 2005. Fotografia.
Esse caso citado, desde a dcada de 1940, como exemplo do que o
consumismo exacerbado pode causar. Aberraes como essas so alvo de
interesse da televiso que, como redentora, agora pela via da Discovery,
salvar aqueles que sucumbiram sociedade de consumo: os acumuladores.
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Uma contradio, pois a mesma televiso que impulsiona o consumo
insinua que consumir demais faz mal sade.
As ideias de Freitas (2003) e de Della Fonte e Loureiro (2003) alertam
que a imposio imagtica dos veculos de comunicao de massa
transforma a vida em algo para ser visto, um espetculo no qual se prescinde
do real e se advoga a sua representao, o seu simulacro. Entre ns e o
mundo esto os meios tecnolgicos de comunicao/interao, ou seja, de
simulao. Eles no nos informam sobre o mundo, simplesmente o refazem
sua maneira, hiper-realizam o mundo, transformando-o em espetculo
(DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003, p. 38).
A espetacularizao e a banalizao da vida tambm possuem um
potencial de acomodao de conflitos e controle social. O mundo passa a se
resumir naquilo que se v nas imagens dos jornais, da televiso, das revistas.
O que no se v considerado inexistente. Nesse sentido o visvel torna-se
real e, portanto, verdade (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003, p. 39).
Della Fonte e Loureiro (2003) colocam que a equivalncia entre o
visvel, o real e o verdadeiro adquire novos contornos medida que se
considera que a imagem tambm se transformou em uma mercadoria e se
encontra, cada vez mais, submetida ao seu valor de troca.3 Como
mercadoria, a imagem corresponde visibilidade daquilo que se vende e se
compra.
Sendo assim, comum ouvir dizer que estamos no s na era da
informao, mas tambm na era da civilizao da imagem. Isso tem sido
revelado pela crescente proliferao dos meios imagtico-eletrnicos e dos
sistemas computadorizados que vm ocupando parte significativa das
3 Valor de troca: a expresso do trabalho abstrato contido na mercadoria, graas ao qualdeterminadas mercadorias podem ser equiparadas vendidas ou compradas no mercado.O valor no determinado pelas propriedades naturais ou criadas das coisas, mas pelasrelaes sociais que elas plasmam (MARX apud VZQUEZ, 1968, p. 100).
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relaes sociais na sociedade contempornea (DELLA FONTE;
LOUREIRO, 2003).
Como possvel observar, atualmente o cinema e a televiso
representam as principais formas de mdia imagtico-eletrnica, veculos de
formao da cultura poltico-social no Ocidente e, provavelmente, tambm
no Oriente, industrializado. Nesse ciclo alienante, o homem passa a no
reconhecer mais a arte autntica: [...] ainda que a arte verdadeira se oferea
ao sujeito, este ser incapaz de reconhec-la por causa de sua
impossibilidade de estabelecer uma relao propriamente humana Esttica
com ela (VZQUEZ, 1968, p. 288).
Podemos concluir que a Indstria Cultural4 ou, nos moldes de
Vzquez, a pseudoarte, um dos modos incessantes que possibilitam a
manuteno do sistema de valorizao da mercadoria. Esse processo de
valorizao chamado de estetizao: uma espcie de embelezamento
superficial da mercadoria cujo contedo abriga (ou esconde) apenas o valor
de troca. como se a poltica, a tica e a religio pudessem ser diludas na
esttica, supervalorizando-a em detrimento das outras dimenses. A
mercadoria se transforma, se embeleza seja pela introduo de novas
tecnologias, seja pelo relativismo de modelos passados, pelo pastiche ou
pelo ecletismo que mistura elementos de diferentes pocas inserindo
novos meios de extrao de mais-valia (TROJAN, 2007, p. 14).
4 A Indstria Cultural, termo cunhado por Adorno e Horkheimer, surgiu da necessidadedesses autores de abandonar o termo cultura de massas. Assim, utilizaram Indstria Culturalpara descaracterizar a concepo de que a cultura que se produz, aparentemente de formaespontnea no cotidiano das massas, seja uma forma atualizada da Arte popular. Para eles,Indstria Cultural a fbrica de realidade e fantasia; e a mdia o espelho que reflete,orienta do que se deve gostar, desejar, o que se deve sentir, pensar e fazer. A IndstriaCultural expressa a dinmica da mercantilizao da cultura na sociedade capitalista maisavanada, na qual a indstria e a racionalidade da produo modificam o processo decriao cultural e conferem uma homogeneidade de padro que perpassa diferentes veculosculturais (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003).
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Nesse contexto, o conhecimento tambm se torna mercadoria e junto
com ele os valores estticos, ticos e polticos que constituem a imagem.
Nessa perspectiva, a funo social da educao [...] adequar o modo de
conhecer, fazer, ser e conviver das pessoas s novas formas de organizao e
de produo econmica, s representaes ideolgicas que correspondem ao
atual estgio de desenvolvimento do capitalismo e s relaes que lhe
correspondem (TROJAN, 2007, p. 14).
Longe da esttica proposta por Marx, na perspectiva de refletir sobre
um mundo essencialmente humano, a estetizao do real prprio da
esttica da mercadoria cujo contedo a prpria forma se constitui como
imperativo da sociedade contempornea. A estetizao do real atravessou
todos os mbitos da experincia subjetiva. Como aponta Farina (2008), a
indstria da felicidade hoje no comercializa apenas medicamentos
antidepressivos, ou produtos como pacotes de viagens que incluem turismo
e cirurgia esttica, ou ainda mercadorias como pets excntricas mas a
prpria experincia esttica. J no se adquire um automvel ltimo tipo,
mas um estilo de vida. O que est em jogo como as relaes com esse
comrcio afetam as relaes conosco prprios e entre ns (FARINA, 2008,
p. 3).
Nesse sentido, as imagens e os discursos que compem nosso
universo esttico tm o poder de orientar tica e politicamente nossas
prticas, pois nos do referncias sobre o que vemos, pensamos e fazemos.
A estetizao da sociedade contribui para justificar a ordem social e o
processo de reestruturao produtiva. Substitui a tica pela esttica no
mbito da poltica e causa grande impacto na sociedade.
5. Obra de arte e catarse
Em contraponto situao descrita est a obra de arte. O encontro com essa
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produo humana, ou seja, a experincia esttica, pode contribuir para o
processo reflexivo originado pela relao do sujeito com a obra de arte. Esse
processo fundamental para colaborar com a transformao das estruturas
alienantes, proporcionando uma nova atitude diante dos acontecimentos
cotidianos. Portanto, a Arte, tende a possibilitar ao homem transcender
fragmentao produzida pelo fetichismo da sociedade capitalista. Ela produz
uma elevao, uma suspenso da cotidianidade, uma elevao da
subjetividade do plano meramente singular para o campo mediador da
particularidade que a separa inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a
operao de retorno vida de modo enriquecido.
A relao entre obra de arte e receptor implica, necessariamente, uma
relao social, uma troca entre sujeitos, um dilogo tanto com o autor da
obra quanto com as vozes sociais que ecoam na obra. Permite desencadear
um processo reflexivo fundamental na construo social do indivduo,
provoca reflexes transformadoras sobre estruturas alienantes,
manipuladoras e obliteradoras da realidade, proporciona uma nova atitude
diante dos eventos cotidianos. Essa reflexo fundamental na formao do
indivduo, pois como foi dito, nossa sociedade est calcada na
espetacularidade dos acontecimentos, em que o espetculo da realidade, por
vezes, substitui a prpria realidade. Nesse contexto, um olhar aguado,
aliado a um senso crtico apurado, colabora para o estabelecimento de novas
relaes com essa realidade e com as diferentes manifestaes espetaculares
que buscam retrat-la.
As reflexes suscitadas pela obra de arte fazem parte de um contnuo
processo de formao e de transformao que colabora com a construo
das relaes que envolvem o processo de apreender a Arte e que, portanto,
integra uma proposta de nos desenvolvermos altura das mximas
possibilidades existentes no gnero humano.
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O encontro com a obra de arte torna possvel a cada indivduo
reconhecer sua prpria essncia, sua histria no processo de
desenvolvimento do ser humano. Como aponta Lukcs, ocorre um processo
que possibilita aos homens [...] a sntese ontolgico-social de sua
singularidade, convertida em individualidade, com o gnero humano,
convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si (LUKCS, apud
FOERSTE, 2004, p. 33).
Lukcs (1966) nos esclarece que o poder orientador e evocador da
Arte penetra na vida do receptor, subjuga seu modo habitual de contemplar
o mundo e chama a ateno para o mundo cheio de contedos novos ou
visto de modos novos. Faz com que o indivduo receba esse mundo com
sentidos e pensamentos rejuvenescidos, renovados (LUKCS, 1966). Esse
poder da Arte o que leva o homem catarse, compreendida pelo filsofo
como [...] efeito que desencadeia o choque entre o mundo objetivo
esteticamente refletido com a mera subjetividade cotidiana
(LUKCS,1966, p. 517, traduo nossa). nesse processo catrtico que (ao
menos em tese) possvel ocorrer a transformao do homem inteiro
(imerso na cotidianidade) em homem inteiramente receptvel Arte, que
amplia e enriquece contedos e formas, efetivos e potenciais da sua psique.
Traz novos contedos que aumentam seu tesouro vivencial, desenvolve sua
capacidade receptiva e sua capacidade de reconhecer e gozar novas formas
objetivas, novas relaes, etc.
Ao se comover pela obra de arte, o receptor desencadeia um
sentimento negativo, um pesar por no ter percebido nunca, na realidade, na
prpria vida, o que to naturalmente se oferece na conformao artstica.
Assim, [...] nessa comoo contm uma anterior contemplao
enfeitiadora do mundo, a sua destruio pela sua prpria imagem
desenfeitiada na obra de arte e a autocrtica da subjetividade (LUKCS,
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1966, p. 507, traduo nossa). Essa relao tica, submetida ao efeito
catrtico, [...] uma sacudida tal da subjetividade do receptor que as suas
paixes vitalmente ativas cobrem novos contedos, uma nova direo e,
assim, purificadas, se transformem em embasamento anmico de
disposies virtuosas (LUKCS, 1966, p. 508, traduo nossa).
A Arte, tende a possibilitar ao homem transcender fragmentao
produzida pelo fetichismo da sociedade capitalista. Ela produz uma
elevao, uma suspenso da cotidianidade, uma elevao da subjetividade
do plano meramente singular para o campo mediador da particularidade que
a separa inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a operao de retorno
vida, de olhos mais abertos. Nesse sentido, cada catarse esttica um
reflexo concentrado e consciente produzido de comoes contidas na vida.
O processo catrtico desencadeado no receptor reflete os traos mais
essenciais dessas constelaes vitais. A catarse se traduz num processo de
encontro entre sujeitos (obra e receptor), de quebra de uma realidade
alienante, proporcionando trocas de saberes e afetividades. Dentro desse
processo de interao social, a transformao do indivduo no ocorre
instantaneamente, ela gradual e varivel, pois, acontece por meio de
encontros e de convvio com a obra de arte.
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