educação estética

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artigos 33 Contribuições dos estudos marxianos para a Estética: reflexões sobre a sociedade contemporânea Priscila de Souza Chisté Leite Professora do Instituto Federal do Espírito Santo Resumo O artigo que segue apresenta alguns apontamentos de leitura sobre Estética e sua relação com a contemporaneidade. Por meio de pesquisa bibliográfica e imagens de obras de arte, discute aspectos da história da Estética e da sociedade atual. Apresenta reflexões marxianas sobre a sociedade capitalista e o processo de embrutecimento dos sentidos humanos para, a seguir, abordar as relações estabelecidas entre a Indústria Cultural e a sociedade de consumo com o intento de debater o processo de estetização da sociedade. Finaliza ao apontar a obra de arte e o efeito catártico proporcionado por ela como modos de estabelecer novas relações com a realidade e com as diferentes manifestações que buscam retratá-la. Palavras-chave: Estética; Arte; Sociedade de Consumo. Abstract This article presents some critical aspects that result from readings on the history of Aesthetics as well as the critical observation of works of art, in order to bring forth relationships with issues of contemporary society. With the help of critics such as Marx, this article examines relationships between the so-called cultural industry and the society of consumption, with the purpose of suggesting a process of “aesthetization” of society. In closing, the text proposes that the well guided appreciation of works of art, and the resulting cathartic effect of that appreciation, are of great help to establish new relationships with the very many ways of expression of reality and, as a result, with reality itself. Keywords: Aesthetics; Art; Consumption Society. Filosofia e Educação [rfe] – volume 7, número 1 – Campinas, SP Fevereiro-Maio de 2015 – ISSN 1984-9605 – p. 33-62

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Artigo sobre Estética e Educação.

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  • artigos 33

    Contribuies dos estudos marxianos para a Esttica: reflexes sobre a sociedade contempornea

    Priscila de Souza Chist LeiteProfessora do Instituto Federal do Esprito Santo

    ResumoO artigo que segue apresenta alguns apontamentos de leitura sobre Esttica e

    sua relao com a contemporaneidade. Por meio de pesquisa bibliogrfica e

    imagens de obras de arte, discute aspectos da histria da Esttica e da

    sociedade atual. Apresenta reflexes marxianas sobre a sociedade capitalista e o

    processo de embrutecimento dos sentidos humanos para, a seguir, abordar as

    relaes estabelecidas entre a Indstria Cultural e a sociedade de consumo com

    o intento de debater o processo de estetizao da sociedade. Finaliza ao

    apontar a obra de arte e o efeito catrtico proporcionado por ela como modos

    de estabelecer novas relaes com a realidade e com as diferentes

    manifestaes que buscam retrat-la.

    Palavras-chave: Esttica; Arte; Sociedade de Consumo.

    AbstractThis article presents some critical aspects that result from readings on the

    history of Aesthetics as well as the critical observation of works of art, in

    order to bring forth relationships with issues of contemporary society. With

    the help of critics such as Marx, this article examines relationships between the

    so-called cultural industry and the society of consumption, with the purpose

    of suggesting a process of aesthetization of society. In closing, the text

    proposes that the well guided appreciation of works of art, and the resulting

    cathartic effect of that appreciation, are of great help to establish new

    relationships with the very many ways of expression of reality and, as a result,

    with reality itself.

    Keywords: Aesthetics; Art; Consumption Society.

    Filosofia e Educao [rfe] volume 7, nmero 1 Campinas, SP Fevereiro-Maio de 2015 ISSN 1984-9605 p. 33-62

  • artigos 34

    Apresentao

    o presente texto pretendemos apresentar alguns apontamentos de

    leitura sobre Esttica e sua relao com a contemporaneidade.

    Por meio de pesquisa bibliogrfica, imagens de obras de arte e

    da mdia, discutimos aspectos da histria da Esttica e da sociedade atual.

    Na primeira parte, Apontamentos sobre a trajetria da esttica,

    conceituamos algumas ideias de filsofos como Plato, Aristteles,

    Baumgarten, Schiller, a partir das reflexes de Terry Eagleton, com o

    objetivo de situar conceitualmente as ideias estticas de Marx. Assim,

    apresentamos reflexes de Marx sobre a sociedade capitalista e o processo

    de embrutecimento dos sentidos humanos, sob a luz de pensadores como

    Vzquez, nos trechos intitulados As ideias estticas de Marx e A esttica

    marxiana e a arte de massa. Abordamos as relaes estabelecidas entre a

    Indstria Cultural e a sociedade de consumo, com o intento de debater o

    processo de Estetizao da sociedade, no tpico Sociedade contempornea,

    indstria cultural e estetizao. Finalizamos o artigo, em dilogo com

    Lukcs, com o captulo A obra de arte e a catarse, apontando a obra de arte

    e o efeito catrtico proporcionado por ela como modos de estabelecer novas

    relaes com a realidade e com as diferentes manifestaes espetaculares

    que buscam retrat-la. Esperamos, com a apresentao destas reflexes, que

    o leitor se aproxime do pensamento marxiano e de seus percussores e

    estabelea novas relaes com a realidade reificada.

    N

    1. Apontamentos sobre a trajetria da Esttica

    No dia a dia, em diferentes contextos, muito comum ouvir falar sobre

    esttica, como ocorre nos letreiros dos sales de beleza: Instituto de

    Esttica; nos encartes promocionais: Esttica Corporal, Esttica Facial etc.

    Ambas as expresses se relacionam com a beleza fsica e abrangem um bom

    Filosofia e Educao [rfe] volume 7, nmero 1 Campinas, SP Fevereiro-Maio de 2015 ISSN 1984-9605 p. 33-62

  • artigos 35

    corte de cabelo, uma maquiagem da moda ou cuidados mais intensos com

    o corpo, como ginstica, massagens, tratamentos com cremes e cirurgias

    plsticas.

    No campo da Histria da Arte, encontramos expresses como: esttica

    renascentista, esttica realista, esttica modernista etc. Nesse sentido, a

    palavra esttica designa um conjunto de caractersticas formais que a arte

    assume em determinado perodo.

    Para a filosofia, esttica relaciona-se com o estudo do belo e do

    sentimento que esse suscita nos homens. A esttica aparece ligada noo

    de beleza e por isso a arte tem lugar privilegiado nessa reflexo, pois,

    durante muito tempo, ela teve como funo exprimir a beleza de modo

    sensvel.

    Etimologicamente, a palavra esttica origina-se do grego, aisthesis,

    com o significado de faculdade do sentir, compreenso pelos sentidos,

    percepo totalizante, reafirmando a ligao da esttica com a arte. Assim,

    o objeto artstico aquele que se oferece ao sentimento e percepo.

    Segundo Santaella (1994), a raiz aisth, do verbo aisthanomai, quer dizer

    sentir com os sentidos, ou seja, com a rede de percepes fsicas.

    As questes relativas esttica, no Ocidente, tiveram sua origem no

    mundo grego a partir do pensamento de Plato (428-348). No dilogo de

    Filebo, Plato define aisthesis como uma excitao (pathos) da alma e do

    corpo, que leva ao conhecimento do mundo sensvel. J Aristteles (1992)

    situa a aisthesis entre os cinco poderes ou faculdades da alma,

    caracterizando-a como aquela funo encarregada de permitir ao ser

    humano formar, a partir dos objetos do mundo, uma imagem mental icnica

    desses objetos que refletisse, de modo transformado, o conhecimento

    abstrato.

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  • artigos 36

    Para o Dicionrio Bsico de Filosofia de Japiass e Marcondes

    (2008), esttica um dos ramos tradicionais da filosofia. O termo foi criado

    por Alexander Von Baumgarten, no sculo XVIII, para designar o estudo da

    sensao, a cincia do belo, e referia-se empiria do gosto subjetivo,

    quilo que agrada aos sentidos, com fins elaborao de uma ontologia do

    belo.

    Terry Eagleton (1993) destaca que a esttica nasceu como um discurso

    sobre o corpo. Em sua formulao original, pelo filsofo alemo Alexander

    Baumgarten, o termo no se refere primeiramente arte, mas com o grego

    aisthesis, a toda a regio de percepo e sensao humanas, em contraste

    com o domnio mais rarefeito do pensamento conceitual (EAGLETON,

    1993, p. 17).

    No ano de 1735, Baumgarten publicou Reflexes filosficas sobre

    algumas questes pertinentes poesia e, nesse artigo, pela primeira vez,

    empregou a palavra esttica, definindo-a como a cincia da percepo

    geral. Ele acreditava que o campo da lgica deveria ser ampliado por uma

    esttica que incluiria a coisa cognoscvel sensitivamente. Em sua obra

    posterior, Aisthetica (1750), essa cincia da percepo foi tomada como

    sinnimo de conhecimento pelos sentidos e partia da ideia de que existe

    uma esttica natural, como uma capacidade inata que o ser humano possui

    para o pensamento belo, e tambm uma esttica adquirida, que pode

    acontecer por meio do ensino ou da prtica.

    Nesse sentido, a esttica surge do reconhecimento de que o mundo da

    percepo e da experincia no pode ser simplesmente derivado de leis

    universais abstratas, mas requer do seu discurso mais inferior uma lgica

    interna. A esttica [...] nasceu como uma mulher, subordinada ao homem,

    mas com suas prprias tarefas humildes e necessrias a cumprir

    (EAGLETON, 1993, p.19).

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  • artigos 37

    O surgimento da esttica relaciona-se tambm com a busca pela

    ascenso da burguesia em frente aristocracia feudal, por uma ordem

    universal de sujeitos livres, iguais e autnomos. Por isso, era preciso pensar

    em um tipo inteiramente novo de sujeito, um sujeito que, assim como a obra

    de arte, [...] descobre a lei na profundeza de sua prpria identidade livre, e

    no em algum poder externo opressivo (EAGLETON, 1993, p. 21).

    Nesse contexto, coloca-se um novo desafio ideolgico ordem

    dominante. Isso produz novas dimenses do sentimento para alm dos

    limites propostos pelo Absolutismo. Para que o poder fosse legitimado e

    conquistado pela burguesia, ocorreu um processo profundo de emancipao

    poltica em que a liberdade e a compaixo, a imaginao e o corpo foram

    ouvidos no interior do discurso de um racionalismo repressivo.

    Portanto, a partir de Baumgarten que essa rea se tornou uma

    disciplina autnoma e culminou na Educao Esttica, que teve incio com

    os estudos de Schiller. Assim como Imanuel Kant1, Friedrich Schiller insere-

    se no contexto Iluminista, marcado pela conscientizao histrica, resultado

    do esforo de um pequeno grupo de literatos, escritores, crticos e filsofos.

    Vrios episdios que ocorreram durante a Revoluo Francesa, entre eles a

    1 Para Kant, o homem, em sua busca pelo conhecimento de mundo, precisa procurartambm a harmonia com o mundo, pois, para haver conhecimento, preciso que as nossasfaculdades se ajustem realidade material. a contemplao desta forma pura de cognio,a harmonia com o mundo, que vem a ser esttica. O filsofo acredita que existem duasfontes do conhecimento humano: a sensibilidade e o entendimento. Por meio da primeira,os objetos nos so dados; pela segunda, so pensados. S pela conjugao desses doiselementos possvel a experincia do real. Portanto, para Kant, no somos capazes deconhecer as coisas como elas so em si, s conhecemos realmente o mundo dos fenmenos,da experincia, dos objetos enquanto se relacionam conosco, sujeitos, e no com a realidadeem si, tal qual ela , independentemente de qualquer relao com o conhecimento, pois omundo dos fenmenos s existe na medida em que participamos dele. A obra de Arte paraKant desinteressada, universalmente reconhecida por um sentimento ao mesmo tempoindividual e coletivo. Contudo, as exigncias kantianas ficam difceis de serem cumpridasno sculo XXI, pois, neste momento, j no se pode mais conceber os juzos estticos comopuros e desinteressados; eles so, na maior parte das vezes, ditados por interessesmercadolgicos. Na contemporaneidade, a arte cada vez mais servir aos interessesmltiplos, como a busca desenfreada pelo lucro, a espetacularizao e a diverso.

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  • artigos 38

    execuo do rei Lus XVI, deixaram Schiller decepcionado e o levaram a

    concluir que o Iluminismo no bastava para aperfeioar as relaes

    polticas. Caberia somente arte, inserida em um sculo indigno e brbaro,

    o papel de purificar a humanidade.

    Para Schiller, a arte o impulso mais eficaz do ser humano, o meio

    mais efetivo de autorrealizao humana e, por conseguinte, a Educao

    Esttica deveria fomentar uma revoluo total da maneira de sentir,

    tornando-se a base da construo de uma verdadeira liberdade humana.

    Schiller (2002) tentou superar o seu mestre, Kant, no tratado A

    Educao Esttica do homem numa srie de cartas. Nas cartas, ele

    diagnostica as questes centrais de sua poca: a alienao, o isolamento, a

    diviso do trabalho, a consequente fragmentao do indivduo, o Estado

    moderno e o desenvolvimento cientfico e cultural. Para ele, somente a

    formao da sensibilidade seria capaz de tirar os homens da condio da

    barbrie. Nesse sentido, considera o artista como o indivduo capaz de se

    resguardar de corrupes de sua poca.

    A ideia de Schiller era criar cidados que colaborassem para a

    liberdade poltica e civil. Para ele, a Educao Esttica era a tarefa suprema

    do homem e, embora factvel, no poderia ser inteiramente realizada, pois a

    humanidade jamais seria plenamente emancipada. Porm, acreditava que o

    indivduo que se cultivasse e se enobrecesse moralmente no renunciaria

    esperana de um dia vir a ser livre. Nesse sentido, educar e ser educado

    esteticamente significaria educar e ser educado pela soberania da

    imaginao.

    De acordo com Schiller, a imaginao a faculdade mxima na esfera

    esttica, assim como o entendimento a faculdade maior na esfera terica e

    a razo na esfera prtica. Este foi um dos maiores mritos de Schiller: tentar

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  • artigos 39

    mostrar como essas faculdades remetem umas s outras no interior das

    diferentes esferas e como tais esferas se articulam num todo.

    2. As ideias estticas de Marx

    No final do sculo XIX, a partir das ideias schillerianas, Marx critica o

    capitalismo industrial, as capacidades atrofiadas, os poderes dissociados e a

    totalidade da natureza humana arruinada. Ele inverteu Schiller ao apreender

    a liberdade humana como uma questo da realizao dos sentidos e no

    como uma liberao deles. Porm, herda o ideal esttico schilleriano que

    concebe o desenvolvimento integral das capacidades humanas como um fim

    em si mesmo (EAGLETON, 1993).

    Contudo, no h, nos escritos de Marx, uma teoria sistemtica da arte,

    embora tenha manifestado, durante toda sua vida intelectual, um grande

    interesse pela esttica e pelas artes. Os vrios e curtos trechos em que tratou

    dessas questes constituram a base da esttica marxiana. Tendo isso em

    vista, busca-se neste artigo entender as ideias de Marx sobre a esttica,

    sabendo que, na tradio marxista, existem outros estudos que partem dos

    de Marx, mas que caminham por diferentes direes.

    Para Marx, o objetivo da vida a felicidade ou o bem-estar. A sua obra

    uma investigao extensiva sobre as condies materiais necessrias para

    realizar esse objetivo. Ele nasceu em 1818 e foi um estudioso que exerceu

    grande influncia sobre o pensamento filosfico, social e histrico da

    humanidade. A publicao tardia de vrios de seus escritos promoveu a

    oportunidade tambm tardia do conhecimento da sua obra. Alm disso,

    muitas de suas ideias foram obscurecidas pelas tentativas de adaptar o seu

    significado s circunstncias polticas variadas.

    Marx, alemo nascido de famlia de classe mdia, estudou na

    Universidade de Berlim, onde conheceu o pensamento hegeliano. Participou

    Filosofia e Educao [rfe] volume 7, nmero 1 Campinas, SP Fevereiro-Maio de 2015 ISSN 1984-9605 p. 33-62

  • artigos 40

    ativamente do movimento dos jovens hegelianos e produziu crticas severas

    ao Cristianismo. Foi trabalhar em um jornal liberal e escreveu incisivos

    artigos sobre as questes econmicas de sua poca, o que implicou o

    fechamento do jornal pelo governo. Aps o fechamento do jornal, Marx foi

    para Paris e, com um grupo de trabalhadores alemes, dirigiu uma revista

    que pretendia ser a ponte entre o nascente socialismo e as ideias dos

    hegelianos radicais alemes.

    Durante os primeiros meses de permanncia em Paris, comeou a

    registrar suas ideias e novas concepes escrevendo os Manuscritos

    econmico-filosficos de 1844, que permaneceram inditos at 1930. Os

    Manuscritos esboavam uma concepo humanista do comunismo, um

    comunismo que tinha como objetivo final a existncia humana. Nessa

    ocasio, Marx, influenciado pela filosofia de Feuerbach, baseava-se no

    contraste entre a natureza alienada do trabalho no capitalismo e uma nova

    sociedade comunista na qual os seres humanos desenvolveriam livremente

    sua natureza em produo cooperativa.

    Com os Manuscritos, Marx tenta decifrar a sociedade civil de ordem

    burguesa. Ele cria uma teoria da ordem burguesa. Ele empenhou-se em

    estudar a sociedade burguesa na perspectiva de subsidiar a luta operria.

    Para tanto, mergulha nas leituras sobre os economistas polticos, como

    Ricardo e Smith, e cria os Manuscritos, tidos como uma obra de transio,

    em que, pela primeira vez, Marx confronta as suas concepes terico-

    filosficas com a reflexo prpria dos economistas polticos.

    Os Manuscritos no foram redigidos para publicao, mas criados

    como material de estudo. Eles so um texto de transio em que Marx

    desenvolve um conjunto de determinaes que sero recorrentes em sua

    obra, um texto radical, entendendo que ser radical implica tomar as coisas

    pela raiz.

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  • artigos 41

    Para Marx, a raiz do homem seria o prprio homem, pois o homem

    uma constante tenso entre a sua genericidade humana, entre o seu ser

    genrico e a sua singularidade. O que prprio do ser humano existir

    como ser singular. Essa singularidade imediata que nos constitui

    insuprimvel; ela se transcende e se resolve na genericidade humana.

    Marx considera que o homem constitudo de toda a sua

    referencialidade cultural, pois o horizonte cultural que o transcende e do

    qual ele portador. O homem s se expressa singular e genericamente na

    medida em que um ser objetivo. aquele que s se mantm enquanto tal

    na medida em que se objetiva. A objetivao a condio da existncia

    humana. Ela se d por meio de formas pouco perenes como o gesto, o riso, o

    movimento, a fala cotidiana, mas tambm por meio de formas mais

    privilegiadas, como a Cincia, a Arte, a Literatura etc. Esse conjunto de

    objetivaes, que o acervo da humanidade, deve ser apropriado pelos

    indivduos, precisa ser subjetivado pelos indivduos. Porm, o objeto

    produzido s se torna uma objetivao da humanidade quando o homem no

    se perde mais nele, ou seja, o objeto s existe para o sujeito na medida em

    que o sujeito desenvolveu a faculdade necessria apreenso do objeto.

    O homem rico, para Marx, no aquele que TEM; aquele que , pois

    o domnio da humanidade o domnio do SER e no o domnio do TER. O

    homem rico aquele que consegue subjetivar uma riqueza de objetivaes.

    Para Marx, s possvel ser rico interiormente se se puder interiorizar a

    riqueza de objetivaes da humanidade. Assim, a verdadeira riqueza a

    elaborao das possibilidades criativas humanas, sem qualquer pressuposto

    alm do desenvolvimento histrico anterior. S o acesso s objetivaes

    permite a subjetivao. Marx pensa no individuo socialmente constitudo e,

    portanto, socialmente rico. Ningum nasce rico ou pobre; a sociedade que

    nos torna rico ou no. o sistema de objetivaes que faz emergir e

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  • artigos 42

    desenvolver o ser social. A humanidade vem se desenvolvendo na medida

    em que desenvolve seus sistemas de objetivaes.2 Sobre isso Marx pontua:

    V-se como, em vez da riqueza e da misria da economia poltica

    existe o homem rico e a necessidade humana rica. O homem rico ao

    mesmo tempo aquele que tem necessidade de uma totalidade de

    manifestaes humanas da vida. O homem para quem a sua prpria

    realizao existe como uma necessidade interior, como uma carncia

    (MARX; ENGELS, 1986, p. 26).

    Para Marx, a objetivao elementar que constitui o ser social o

    trabalho. Ao conjunto dessas objetivaes estaria preservado o conceito de

    prxis. Ele considera que o ser humano prtico e social. Esse carter do

    homem exemplificado paradigmaticamente pelo trabalho, objetivao

    privilegiada que garante a condio humana. O trabalho a condio eterna

    do homem, integra a sua essncia, ou seja, o conjunto de atributos,

    qualidades que o ser humano, ao longo da sua trajetria na terra, conseguiu

    realizar.

    O trabalho a condio necessria para o aparecimento da arte, bem

    como da relao esttica do homem com seus produtos. O trabalho uma

    atividade consciente por meio do qual o homem transforma e humaniza a

    matria. Foi por intermdio do trabalho que surgiu a criao artstica. A arte

    nasce, no paleoltico superior, a partir do trabalho, [...] recolhendo frutos da

    vitria do homem pr-histrico sobre a matria, para assim elevar o humano

    mediante esta nova atividade que hoje chamamos artstica a um outro

    nvel (VZQUEZ, 1968, p. 73). Nesse sentido, para que pudessem surgir

    2 Contudo, nem sempre as potencialidades criativas humanas so eficazes em termos debem-estar. Isso se deve ao fato de que algumas capacidades humanas podem ser destrutivas,como a construo de campos de concentrao que tambm foi uma realizao dos podereshumanos (EAGLETON, 1993).

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  • artigos 43

    os primeiros objetos artsticos, foi preciso que o homem afirmasse, pelo

    trabalho, um domnio cada vez maior sobre a matria. O progresso ocorreu

    devido fabricao de instrumentos que, ao se sofisticarem, possibilitaram a

    elevao do domnio do homem sobre a matria, o que permitiu a ampliao

    das fronteiras da humanizao e da natureza (VZQUEZ, 1968).Nesse

    momento, ao objeto dado valor para alm da sua utilidade. Leva-se em

    conta agora o objeto que materializa o potencial criador do homem.

    A capacidade da subjetividade do homem explicitada na relao

    esttica do homem ser social por essncia com a realidade. Nesse

    sentido, a obra de arte um objeto no qual o sujeito se expressa, se

    exterioriza e reconhece a si mesmo. Se o homem s pode se realizar saindo

    de si mesmo, projetando-se para fora, isto , objetivando-se; a arte cumpre

    uma alta funo no processo de humanizao do prprio homem.

    Contudo, ter ou no contato como as objetivaes da humanidade, por

    vezes, passa pela posio de classe. Esse contato, em larga medida, tambm

    determinado pelo rendimento familiar. Como conhecer museus, ir ao

    teatro, assistir apresentaes musicais? Em algumas ocasies preciso ter

    condies financeiras para isso, o que muitas vezes no acontece com o

    trabalhador assalariado. Nesse sentido, o acesso aos espaos ligados arte

    fica restrito aos mais favorecidos economicamente. Em outros momentos as

    pessoas no se sentem atradas a realizarem tais programas culturais por

    desconhecimento ou por desinteresse.

    Para Marx, no sistema capitalista a razo e o prazer esto em disputa.

    Uma das possibilidades de reconciliao por meio do objeto artstico, que

    deve proferir modelos de reconciliao, sensualizar a razo e racionalizar o

    prazer, maneira como vimos anteriormente, nas ideias de Schiller. Porm,

    nem sempre todos tm acesso a essas produes. Muitos nem sabem que

    existem espaos culturais destinados a apresentar as obras de arte para a

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  • artigos 44

    sociedade ou, quando sabem, no se sentem capazes de entender os

    trabalhos mostra. A crescente instrumentalizao da natureza e da

    humanidade, o processo do trabalho sob o domnio de uma lei abstrata e

    imposta, que se afasta de qualquer prazer corpreo, so aspectos que podem

    explicar o distanciamento dos indivduos das experincias sensveis.

    No h, em Marx, a percepo sensorial pura, ou mesmo a pura

    intuio sensvel, pois para ele, a evoluo da percepo sensorial e do

    modo de intuir dos homens no se fez margem do desenvolvimento das

    faculdades intelectuais especulativas e do raciocnio abstrato. Em suas

    pesquisas sobre essa questo, Konder (1967) enfatiza que o

    desenvolvimento da faculdade de pensar por meio de conceitos no acarreta

    a atrofia da faculdade de sentir, pois o homem se humaniza tanto no

    raciocnio como na sensibilidade. Ao desenvolver a sua capacidade de sentir

    as coisas, ele tambm enriquecer sua reflexo a respeito delas. O homem

    mais inteligente tende a ser, globalmente o mais sensvel; e o mais bem

    dotado de sensibilidade tem maiores possibilidades para o desenvolvimento

    da sua inteligncia (KONDER, 1967, p. 29).

    Para Marx, a percepo sensvel deve ser a base de toda cincia. S

    quando a cincia comea pela percepo sensvel na sua forma dupla da

    conscincia sensvel e da necessidade dos sentidos, ela verdadeiramente

    cincia. No foi, pois, apenas pelo pensamento, mas atravs de todos os

    sentidos que o homem se afirmou no mundo objetivo (MARX; ENGELS,

    1986, p. 24). Assim, a percepo sensorial apresentada como uma

    faculdade que se desenvolve historicamente e cujo desenvolvimento um

    aspecto substancial da autoconstruo do homem em geral. Complementa

    ainda que [...] o homem premido pelas necessidades grosseiras e esmagado

    pelas preocupaes imediatas incapaz de apreciar mesmo o mais belo dos

    espetculos (MARX, 2004, p. 25).

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  • artigos 45

    Sobre o processo de humanizao do homem, Marx aponta que, para

    confirmar a sua humanidade, O homem se apropria da sua essncia

    omnilateral [em todas as dimenses] de uma maneira omnilateral [de uma

    maneira compreensiva], portanto, como um homem total (MARX, 2004,

    p.108).

    Todas as relaes humanas com o mundo ver, ouvir, cheirar,

    saborear, sentir, pensar, contemplar, querer, agir, amar, em resumo,

    todos os rgos da sua individualidade assim como aqueles que, na

    sua forma imediata, so comuns a todos encontram-se na sua atitude

    objetiva ou na atitude para o objeto como uma adoo deste ltimo. A

    adoo da realidade humana e sua atitude para com o objeto

    constituem a manifestao da realidade humana: a atividade e

    sofrimento humanos, para sofrer, encarados humanamente,

    representam a auto-satisfao do homem (MARX; ENGELS, 1986,

    p.77).

    Assim, pela presena da cultura, tornamo-nos humanos. Nas palavras

    de Marx (2001, p. 143-144):

    S por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano

    que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade

    subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas,

    em resumo, os sentidos capazes de satisfao humana e que se

    confirmam como capacidades humanas). Certamente, no so apenas

    os cinco sentidos, mas tambm os chamados sentidos espirituais

    [simblicos], os sentidos prticos (vontade, amor, etc.), ou melhor, a

    sensibilidade humana e o carter humano dos sentidos, que vm

    existncia mediante a existncia do seu objeto, por meio da

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  • artigos 46

    caracterstica humanizada. A formao dos cinco sentidos a obra de

    toda a histria mundial anterior.

    Portanto, o fundamental perceber que, na constituio do indivduo,

    os sentidos e sentimentos so socialmente engendrados e se distanciam da

    sensibilidade animal constrangida pela necessidade imediata. Os sentidos se

    humanizam medida que se produzem objetivaes humanas (quando o

    homem coloca a sua marca no objeto) e estas so apropriadas (quando o

    homem incorpora as produes) em meio a relaes sociais determinadas.

    O olho tornou-se um olho humano, no momento em que o seu objeto se

    transformou em objeto humano, social, criado pelo homem para o homem

    (MARX, 2001, p. 142). Com isso, enfatiza-se no apenas a necessidade do

    objeto (a natureza humanizada) na formao do sujeito, mas o prprio

    carter histrico desse processo. Nesse sentido, considera-se a formao dos

    sentidos como trabalho de toda a histria universal at a atualidade.

    Para Marx, os sentidos no so apenas uma regio isolvel cujas leis

    so investigadas racionalmente, mas a prpria forma de nossas relaes

    prticas com a realidade. Para ele, o homem um ser total. Contudo, o autor

    alerta que a propriedade privada nos tornou to estpidos e unilaterais, que

    um objeto s nosso se o possumos, ou seja, existe para ns como capital

    ou utilizado por ns: imediatamente possudo, comido, bebido, usado no

    nosso corpo ou vivido.

    Embora a propriedade privada considere todas essas encarnaes de

    posse imediatas apenas como meios de subsistncia, a vida que

    servem a da propriedade privada, trabalho e capital. Portanto,

    verificou-se uma simples alienao de todos esses sentidos; e o

    sentido de ter ocupar o lugar de todos os sentidos fsicos e espirituais.

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  • artigos 47

    A existncia humana tinha de ser reduzida a esta pobreza absoluta,

    para dar origem sua riqueza intima... (MARX, 1986, p. 77).

    A esttica de Marx tem como base a filosofia da prxis, uma prxis

    que tende a transformar radicalmente a realidade humana a fim de instaurar

    uma sociedade na qual o homem possa explicitar criadoramente suas foras

    essenciais, frustradas, negadas, potencializadas ou despotencializadas. Esse

    marxismo se identifica como um verdadeiro humanismo, com a

    transformao radical do homem em todos os planos, o homem que seja o

    ser supremo para o homem. Nesse processo, o esttico no pode ser alheio

    ao marxismo humanista, j que constitui uma dimenso essencial da

    existncia humana.

    Marx se interessou em definir o homem no s como produtor de

    objetos ou produtos materiais, mas tambm de obras de arte. Ele buscava,

    em seus estudos, o homem social que, nas condies econmicas e

    histricas da sociedade capitalista, se desfaz, se mutila ou nega a si prprio.

    Esta mutilao do homem, ou perda do humano, se d precisamente no

    trabalho, na produo material, isto , na esfera na qual o homem deveria se

    afirmar como tal e que tornou possvel a prpria criao esttica

    (VZQUEZ, 1968, p. 52). Na sua busca pelo humano perdido, Marx

    encontra o esttico como a esfera essencial. Ele volta-se para o esttico a

    fim de esclarecer quanto o homem perdeu com a sociedade capitalista e

    vislumbrar quanto pode ganhar numa nova sociedade na qual dominem

    relaes verdadeiramente humanas.

    3. A esttica marxiana e a arte de massa

    Como foi apontado, Marx considera que, nas condies econmicas e

    histricas da sociedade capitalista, o homem perde a sua humanidade e nega

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  • artigos 48

    a si prprio. Ao invs de afirmar-se no capitalismo, o homem aliena a sua

    essncia. Em vez de humanizar-se, desumaniza-se.

    Na sociedade capitalista, os homens no produzem para satisfazer

    diretamente suas necessidades pessoais ou comunitrias. Nesse processo, o

    homem perde sua dimenso especificamente humana como atividade que

    revela a sua natureza criadora para se reduzir a uma dimenso meramente

    econmica: produzir e consumir mercadorias.

    O sistema capitalista se afirma na coisificao na medida em que

    prope a coisificao da existncia humana. Baseia-se em uma das formas

    mais repulsivas de manipulao dos indivduos e das conscincias: a

    mxima transformao do homem em coisa, em objeto. Vzquez intitula o

    homem que manipulado como homem-massa o homem ideal, do

    ponto de vista dos interesses desse capitalismo voraz,

    [...] o homem engendrado por suas prprias relaes; isto , o

    homem despersonalizado, desumanizado, oco por dentro, esvaziado de

    seu contedo, concreto e vivo, que pode se deixar modelar docilmente

    por qualquer manipulador de conscincias; em suma, o homem-massa.

    Ora, qual a arte ou pseudoarte que este homem-massa pode digerir

    ou consumir? Qual a arte que o capitalismo tem interesse em

    patrocinar fundamentalmente, sobretudo numa sociedade industrial e

    altamente desenvolvida de um ponto de vista tcnico, na qual se do

    as condies para estender e aprofundar o processo de

    despersonalizao ou massificao? Arte de massas (VZQUEZ,

    1968, p. 276).

    A arte de massas aquela cujos produtos satisfazem as necessidades

    pseudoestticas dos homens-massa, coisificados, que so, ao mesmo tempo,

    um produto caracterstico da sociedade industrial capitalista.

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  • artigos 49

    Seu consumo de massa acha-se assegurado pela existncia de um

    pblico potencial, qualitativamente imenso, bem como pelas

    possibilidades de aceder a tais produtos artsticos em virtude dos

    poderosos meios de difuso (imprensa, rdio, cinema e televiso) que

    a tcnica atual coloca sua disposio. Estes produtos so, no terreno

    literrio, as historietas e toda classe de novelas (fotonovelas,

    radionovelas e telenovelas), bem como a maior parte do romance

    policial; msica, grande parte das canes chamadas modernas,

    romnticas ou populares; e, no cinema, a maior parte da produo

    flmica (VZQUEZ, 1968, p. 277).

    A arte de massas a caricatura da verdadeira arte. uma pseudoarte

    produzida pela vontade da classe dominante para o gozo ou consumo das

    massas ou, mais exatamente, dos homens-massa. uma arte que deixa o

    homem na superfcie ou na margem das coisas e que se distingue, por sua

    vez, graas a uma linguagem astutamente fcil, que corresponde sua falta

    de profundidade humana: Uma linguagem que assegura uma

    inteligibilidade e comunicao to mais extensas quanto mais superficial e

    vazio for seu contedo e quanto mais pobres, banais e dbeis forem seus

    meios de expresso (VZQUEZ, 1968, p. 277).

    Qual seria a funo da pseudoarte? Ela cumpre uma funo ideolgica

    bem definida: manter o homem-massa em sua condio de homem-massa,

    fazer com que se sinta to massificado que no lhe seja permitido

    vislumbrar um mundo verdadeiramente humano e, com isso, a possibilidade

    de tomar conscincia de sua alienao, bem como dos caminhos para

    destru-la.

    Para Vzquez, em uma sociedade na qual impera a lei fundamental do

    lucro, a produo no apenas produz produtos que satisfazem determinadas

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  • artigos 50

    necessidades, mas tambm as prprias necessidades e, com elas, os

    consumidores. Sob os efeitos das tcnicas de persuaso, da publicidade e de

    uma educao unilateral, tecnicista e coisificante, entre outras estratgias, os

    homens terminam por desejar o que no necessitam ou o que no

    corresponde s suas grandes necessidades humanas.

    Para o autor, a preferncia pela pseudoarte ocorre de modo induzido,

    fabricado, produzido de fora, no qual o produtor recorre a toda sorte de

    mentiras sobre as qualidades de seu produto, para assegurar o consumo mais

    vasto possvel de suas mercadorias. Sobre a base de certas qualidades

    imaginrias, cria-se artificialmente o desejo de consumi-la, ainda que se

    trate de um produto que, na realidade, no satisfaz uma necessidade

    verdadeira de quem o adquire.

    Vzquez aponta que, apesar de o pblico, em geral, nas condies

    prprias do consumo de massas, preferir quase sempre os produtos mais

    inconsistentes, do ponto de vista esttico, isso no significa que no exista

    um setor que recuse tais produtos e busque outros mais elevados. Mas a

    realidade que, apesar dos esforos destas instituies e dos desejos de um

    setor mais exigente, o pblico outorga sua preferncia aos subprodutos

    artsticos ou a obras de baixa ou duvidosa qualidade esttica (VZQUEZ,

    1968, p. 287). como se o gosto fosse adaptado para apreciar determinados

    produtos e falsas solues que no discutem os problemas fundamentais dos

    seres humanos. Percebe-se, ento, a grande necessidade de se pensar modos

    de resistir, problematizar e destruir essas estruturas alienantes.

    4. Sociedade contempornea, Indstria Cultural e estetizao

    Em consonncia com as ideias de Marx e Vzquez, atualmente outras

    nomenclaturas e conceitos sobre o consumo das massas e para as massas

    foram elaborados, como o termo Sociedade de consumo.

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  • artigos 51

    A Sociedade de consumo consequncia da expanso do capitalismo

    que assume hoje formas mais flexveis de acumulao do capital. A

    flexibilidade uma das caractersticas marcantes do modelo emergente de

    desenvolvimento e de organizao do trabalho capitalista. A acumulao do

    capital flexvel tambm refletida nos processos de trabalho, mercados de

    trabalho, produtos e padres de consumo. Uma de suas caractersticas a

    integrao e a organizao de alguns pases em blocos geoeconmicos como

    estratgias para proteger seus interesses contra os interesses de terceiros.

    Nesse sentido, o termo globalizao expressa a ideia de um mundo mais

    integrado e interdependente no s em termos econmicos, mas tambm em

    questes sociais, culturais etc. (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003). O

    conceito de aldeia global induz a pensar uma relao de continuidade e

    homogeneidade que no existe entre as naes. Nesse contexto, o termo

    globalizao relaciona-se a um enfraquecimento do Estado-Nao e a

    universalizao dos mercados e do capital (DELLA FONTE; LOUREIRO,

    2003, p. 32).

    Por conseguinte, muitas vezes o desenvolvimento tecnolgico

    interpretado como sinnimo de libertao do ser humano em relao ao

    trabalho, em razo do aumento do tempo disponvel para as atividades de

    lazer. Alm da avanada tecnologia, a vida cotidiana passou a se constituir

    de informaes abundantes que circulam em to rpida velocidade que,

    muitas vezes, s possvel captar a sua imediatez, suas impresses

    superficiais.

    Nesse sentido, o ritmo de produo de mercadorias acelerado, os

    produtos tornam-se obsoletos, com o tempo de uso reduzido e provocam

    uma avalanche de modas fugazes. A produo acelerada corresponde a um

    consumo frentico mobilizado pelo trabalho publicitrio de erotizao das

    mercadorias e da realizao hedonista.

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  • artigos 52

    Sobre esse assunto, Freitas (2003, p. 51) coloca que A sociedade

    contempornea estabelece uma postura esttica fundada no gozo narcisista

    de perceber todos os objetos consumidos como signos da inteireza do

    prprio ego. Segundo o autor, do mesmo modo que a personagem Narciso,

    da mitologia grega (Figura 1), apaixonou-se por sua prpria imagem e

    acabou sucumbindo ao afogar-se na superfcie da gua que ele refletia, o

    indivduo contemporneo possui uma sede por conquistar uma expresso

    razoavelmente coesa daquilo que ele possa chamar de eu. Significa a busca

    desse objeto to acalentado que parece ser o nico capaz de permanecer

    constante, apesar das flutuaes de toda as desavenas polticas, correntes

    ideolgicas, variao de humor do chefe, alteraes do mercado de cmbio

    etc. (FREITAS, 2003, p.53).

    Figura 1 CARAVAGGIO, Michelangelo Merisi. Narciso, 1597. leo sobre tela, 110 x 92cm.

    Freitas (2003) pontua que a sociedade de consumo atual parece

    introduzir uma caricatura bastante distorcida da caracterstica da liberdade

    de nossas faculdades do juzo esttico nos moldes kantianos. Todos os

    produtos que podemos comprar, msicas que podemos ouvir, filmes e

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  • artigos 53

    propagandas a que podemos assistir produzem um ambiente em que

    proliferam uma dinmica ldica, despreocupada, que parece ser o oposto do

    trabalho maante e repetitivo a que estamos sujeitos normalmente na vida

    cotidiana. A falsa liberdade de escolha dos locais de trabalho, a monotonia

    do trabalho que no possui criatividade e a infinidade de opes de objetos

    que nos circulam criam uma imagem falsa de liberdade a ser exercida

    virtualmente e sem limites.

    Para Freitas (2003), a grande fantasia que move o indivduo

    contemporneo a de que ele possui um ego suficientemente forte capaz de

    prolongar a sensao de prazer que ele busca em cada um dos objetos que

    poderia refletir sua imagem. O ego e todos os objetos de desejo funcionam

    como um sistema que confirma o merecimento de ter o desejado; como se

    a possibilidade de comprar, de ouvir ou ver alguma coisa pudesse

    proporcionar esse vnculo. Todos gostaramos de nos sentir em casa no

    mundo, que funciona como uma enorme metfora para o tero materno e

    para uma espcie de concepo espacial da nossa prpria subjetividade

    (FREITAS, 2003, p. 56). a busca pelo TER que Marx tanto criticou.

    Um exemplo que ajuda a entender as consequncias do consumo

    exacerbado e a transformao disso em espetculo apresentado na srie

    americana para a televiso chamada Acumuladores. Os programas so

    exibidos na televiso por assinatura, portanto no direcionados classe

    popular. Discutem casos de extremo consumismo e o apego excessivo pelos

    objetos que impedem as pessoas de descartar qualquer coisa, por mais

    desnecessria ou absurda que possa parecer. Os apresentadores do programa

    visitam as casas de pessoas que sofrem de casos severos de acumulao

    extrema para abordar os aspectos psicolgicos desse comportamento

    compulsivo e apresentam as aberraes nas vitrines televisivas.

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  • artigos 54

    O prprio site do programa apresenta um dos casos mais severos de

    acumulao extrema que veio luz em maro de 1947, quando a polcia de

    New York foi chamada para investigar a descoberta de um cadver em um

    edifcio de trs andares no Harlem, que pertencia a dois irmos idosos .

    Quando os agentes entraram no imvel, depararam-se com montanhas

    de lixo que chegavam at o teto, incluindo quatorze pianos, um automvel e

    os restos de um feto de duas cabeas. Dentro de um sistema de tneis que

    usavam para andar entre os dejetos, estavam os corpos sem vida dos idosos:

    um foi esmagado pelo lixo, e o outro morreu de inanio.

    Esse episdio nos leva a pensar que, do mesmo modo que o Narciso

    composto por lixo, de Vik Muniz (Figura 2), olha e contempla sua imagem

    como bela, os dois idosos, cobertos por lixo, contemplavam suas compras,

    consumiam compulsivamente at que, num dado momento, transformaram-

    se naquilo em que suas compras haviam se transformado: lixo.

    Figura 2MUNIZ, Vik. Narciso depois de Caravaggio, 2005. Fotografia.

    Esse caso citado, desde a dcada de 1940, como exemplo do que o

    consumismo exacerbado pode causar. Aberraes como essas so alvo de

    interesse da televiso que, como redentora, agora pela via da Discovery,

    salvar aqueles que sucumbiram sociedade de consumo: os acumuladores.

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  • artigos 55

    Uma contradio, pois a mesma televiso que impulsiona o consumo

    insinua que consumir demais faz mal sade.

    As ideias de Freitas (2003) e de Della Fonte e Loureiro (2003) alertam

    que a imposio imagtica dos veculos de comunicao de massa

    transforma a vida em algo para ser visto, um espetculo no qual se prescinde

    do real e se advoga a sua representao, o seu simulacro. Entre ns e o

    mundo esto os meios tecnolgicos de comunicao/interao, ou seja, de

    simulao. Eles no nos informam sobre o mundo, simplesmente o refazem

    sua maneira, hiper-realizam o mundo, transformando-o em espetculo

    (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003, p. 38).

    A espetacularizao e a banalizao da vida tambm possuem um

    potencial de acomodao de conflitos e controle social. O mundo passa a se

    resumir naquilo que se v nas imagens dos jornais, da televiso, das revistas.

    O que no se v considerado inexistente. Nesse sentido o visvel torna-se

    real e, portanto, verdade (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003, p. 39).

    Della Fonte e Loureiro (2003) colocam que a equivalncia entre o

    visvel, o real e o verdadeiro adquire novos contornos medida que se

    considera que a imagem tambm se transformou em uma mercadoria e se

    encontra, cada vez mais, submetida ao seu valor de troca.3 Como

    mercadoria, a imagem corresponde visibilidade daquilo que se vende e se

    compra.

    Sendo assim, comum ouvir dizer que estamos no s na era da

    informao, mas tambm na era da civilizao da imagem. Isso tem sido

    revelado pela crescente proliferao dos meios imagtico-eletrnicos e dos

    sistemas computadorizados que vm ocupando parte significativa das

    3 Valor de troca: a expresso do trabalho abstrato contido na mercadoria, graas ao qualdeterminadas mercadorias podem ser equiparadas vendidas ou compradas no mercado.O valor no determinado pelas propriedades naturais ou criadas das coisas, mas pelasrelaes sociais que elas plasmam (MARX apud VZQUEZ, 1968, p. 100).

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  • artigos 56

    relaes sociais na sociedade contempornea (DELLA FONTE;

    LOUREIRO, 2003).

    Como possvel observar, atualmente o cinema e a televiso

    representam as principais formas de mdia imagtico-eletrnica, veculos de

    formao da cultura poltico-social no Ocidente e, provavelmente, tambm

    no Oriente, industrializado. Nesse ciclo alienante, o homem passa a no

    reconhecer mais a arte autntica: [...] ainda que a arte verdadeira se oferea

    ao sujeito, este ser incapaz de reconhec-la por causa de sua

    impossibilidade de estabelecer uma relao propriamente humana Esttica

    com ela (VZQUEZ, 1968, p. 288).

    Podemos concluir que a Indstria Cultural4 ou, nos moldes de

    Vzquez, a pseudoarte, um dos modos incessantes que possibilitam a

    manuteno do sistema de valorizao da mercadoria. Esse processo de

    valorizao chamado de estetizao: uma espcie de embelezamento

    superficial da mercadoria cujo contedo abriga (ou esconde) apenas o valor

    de troca. como se a poltica, a tica e a religio pudessem ser diludas na

    esttica, supervalorizando-a em detrimento das outras dimenses. A

    mercadoria se transforma, se embeleza seja pela introduo de novas

    tecnologias, seja pelo relativismo de modelos passados, pelo pastiche ou

    pelo ecletismo que mistura elementos de diferentes pocas inserindo

    novos meios de extrao de mais-valia (TROJAN, 2007, p. 14).

    4 A Indstria Cultural, termo cunhado por Adorno e Horkheimer, surgiu da necessidadedesses autores de abandonar o termo cultura de massas. Assim, utilizaram Indstria Culturalpara descaracterizar a concepo de que a cultura que se produz, aparentemente de formaespontnea no cotidiano das massas, seja uma forma atualizada da Arte popular. Para eles,Indstria Cultural a fbrica de realidade e fantasia; e a mdia o espelho que reflete,orienta do que se deve gostar, desejar, o que se deve sentir, pensar e fazer. A IndstriaCultural expressa a dinmica da mercantilizao da cultura na sociedade capitalista maisavanada, na qual a indstria e a racionalidade da produo modificam o processo decriao cultural e conferem uma homogeneidade de padro que perpassa diferentes veculosculturais (DELLA FONTE; LOUREIRO, 2003).

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  • artigos 57

    Nesse contexto, o conhecimento tambm se torna mercadoria e junto

    com ele os valores estticos, ticos e polticos que constituem a imagem.

    Nessa perspectiva, a funo social da educao [...] adequar o modo de

    conhecer, fazer, ser e conviver das pessoas s novas formas de organizao e

    de produo econmica, s representaes ideolgicas que correspondem ao

    atual estgio de desenvolvimento do capitalismo e s relaes que lhe

    correspondem (TROJAN, 2007, p. 14).

    Longe da esttica proposta por Marx, na perspectiva de refletir sobre

    um mundo essencialmente humano, a estetizao do real prprio da

    esttica da mercadoria cujo contedo a prpria forma se constitui como

    imperativo da sociedade contempornea. A estetizao do real atravessou

    todos os mbitos da experincia subjetiva. Como aponta Farina (2008), a

    indstria da felicidade hoje no comercializa apenas medicamentos

    antidepressivos, ou produtos como pacotes de viagens que incluem turismo

    e cirurgia esttica, ou ainda mercadorias como pets excntricas mas a

    prpria experincia esttica. J no se adquire um automvel ltimo tipo,

    mas um estilo de vida. O que est em jogo como as relaes com esse

    comrcio afetam as relaes conosco prprios e entre ns (FARINA, 2008,

    p. 3).

    Nesse sentido, as imagens e os discursos que compem nosso

    universo esttico tm o poder de orientar tica e politicamente nossas

    prticas, pois nos do referncias sobre o que vemos, pensamos e fazemos.

    A estetizao da sociedade contribui para justificar a ordem social e o

    processo de reestruturao produtiva. Substitui a tica pela esttica no

    mbito da poltica e causa grande impacto na sociedade.

    5. Obra de arte e catarse

    Em contraponto situao descrita est a obra de arte. O encontro com essa

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  • artigos 58

    produo humana, ou seja, a experincia esttica, pode contribuir para o

    processo reflexivo originado pela relao do sujeito com a obra de arte. Esse

    processo fundamental para colaborar com a transformao das estruturas

    alienantes, proporcionando uma nova atitude diante dos acontecimentos

    cotidianos. Portanto, a Arte, tende a possibilitar ao homem transcender

    fragmentao produzida pelo fetichismo da sociedade capitalista. Ela produz

    uma elevao, uma suspenso da cotidianidade, uma elevao da

    subjetividade do plano meramente singular para o campo mediador da

    particularidade que a separa inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a

    operao de retorno vida de modo enriquecido.

    A relao entre obra de arte e receptor implica, necessariamente, uma

    relao social, uma troca entre sujeitos, um dilogo tanto com o autor da

    obra quanto com as vozes sociais que ecoam na obra. Permite desencadear

    um processo reflexivo fundamental na construo social do indivduo,

    provoca reflexes transformadoras sobre estruturas alienantes,

    manipuladoras e obliteradoras da realidade, proporciona uma nova atitude

    diante dos eventos cotidianos. Essa reflexo fundamental na formao do

    indivduo, pois como foi dito, nossa sociedade est calcada na

    espetacularidade dos acontecimentos, em que o espetculo da realidade, por

    vezes, substitui a prpria realidade. Nesse contexto, um olhar aguado,

    aliado a um senso crtico apurado, colabora para o estabelecimento de novas

    relaes com essa realidade e com as diferentes manifestaes espetaculares

    que buscam retrat-la.

    As reflexes suscitadas pela obra de arte fazem parte de um contnuo

    processo de formao e de transformao que colabora com a construo

    das relaes que envolvem o processo de apreender a Arte e que, portanto,

    integra uma proposta de nos desenvolvermos altura das mximas

    possibilidades existentes no gnero humano.

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  • artigos 59

    O encontro com a obra de arte torna possvel a cada indivduo

    reconhecer sua prpria essncia, sua histria no processo de

    desenvolvimento do ser humano. Como aponta Lukcs, ocorre um processo

    que possibilita aos homens [...] a sntese ontolgico-social de sua

    singularidade, convertida em individualidade, com o gnero humano,

    convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si (LUKCS, apud

    FOERSTE, 2004, p. 33).

    Lukcs (1966) nos esclarece que o poder orientador e evocador da

    Arte penetra na vida do receptor, subjuga seu modo habitual de contemplar

    o mundo e chama a ateno para o mundo cheio de contedos novos ou

    visto de modos novos. Faz com que o indivduo receba esse mundo com

    sentidos e pensamentos rejuvenescidos, renovados (LUKCS, 1966). Esse

    poder da Arte o que leva o homem catarse, compreendida pelo filsofo

    como [...] efeito que desencadeia o choque entre o mundo objetivo

    esteticamente refletido com a mera subjetividade cotidiana

    (LUKCS,1966, p. 517, traduo nossa). nesse processo catrtico que (ao

    menos em tese) possvel ocorrer a transformao do homem inteiro

    (imerso na cotidianidade) em homem inteiramente receptvel Arte, que

    amplia e enriquece contedos e formas, efetivos e potenciais da sua psique.

    Traz novos contedos que aumentam seu tesouro vivencial, desenvolve sua

    capacidade receptiva e sua capacidade de reconhecer e gozar novas formas

    objetivas, novas relaes, etc.

    Ao se comover pela obra de arte, o receptor desencadeia um

    sentimento negativo, um pesar por no ter percebido nunca, na realidade, na

    prpria vida, o que to naturalmente se oferece na conformao artstica.

    Assim, [...] nessa comoo contm uma anterior contemplao

    enfeitiadora do mundo, a sua destruio pela sua prpria imagem

    desenfeitiada na obra de arte e a autocrtica da subjetividade (LUKCS,

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  • artigos 60

    1966, p. 507, traduo nossa). Essa relao tica, submetida ao efeito

    catrtico, [...] uma sacudida tal da subjetividade do receptor que as suas

    paixes vitalmente ativas cobrem novos contedos, uma nova direo e,

    assim, purificadas, se transformem em embasamento anmico de

    disposies virtuosas (LUKCS, 1966, p. 508, traduo nossa).

    A Arte, tende a possibilitar ao homem transcender fragmentao

    produzida pelo fetichismo da sociedade capitalista. Ela produz uma

    elevao, uma suspenso da cotidianidade, uma elevao da subjetividade

    do plano meramente singular para o campo mediador da particularidade que

    a separa inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a operao de retorno

    vida, de olhos mais abertos. Nesse sentido, cada catarse esttica um

    reflexo concentrado e consciente produzido de comoes contidas na vida.

    O processo catrtico desencadeado no receptor reflete os traos mais

    essenciais dessas constelaes vitais. A catarse se traduz num processo de

    encontro entre sujeitos (obra e receptor), de quebra de uma realidade

    alienante, proporcionando trocas de saberes e afetividades. Dentro desse

    processo de interao social, a transformao do indivduo no ocorre

    instantaneamente, ela gradual e varivel, pois, acontece por meio de

    encontros e de convvio com a obra de arte.

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