Download - Direito Ao Ócio
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Conselho EditorialAdeimival Barroso de Pinho JúniorAlexandre RochaBenito Muiños JuncalDerval Cardoso GramachoIsabella FadulJosé Henrique de Freitas SantosJuarez Duarte Bonfi mSebastião Heber Vieira CostaTecla Dias de Oliveira MelloValnêda Cássia Santos Carneiro
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Coordenação EditorialSilvio César Tudela
FACULDADE 2 DE JULHO
REVISTA INDEPENDÊNCIA
Diretor GeralJosué da Silva Mello
Diretor de Administração e FinançasSergio Augusto Miranda de Souza
Coordenação Pedagógica e Acompanhamento AcadêmicoTecla Dias de Oliveira Mello
Coordenador do Curso de AdministraçãoAdeimival Barroso de Pinho Júnior
Coordenador do Curso de Comunicação SocialDerval Cardoso Gramacho
Coordenadora do Curso de DireitoValnêda Cássia Santos Carneiro
Coordenador do Curso de Engenharia ElétricaRoberto da Costa e Silva
Coordenadora do Curso de PedagogiaAna Sueli Teixeira de Pinho
Secretária AcadêmicaMarane Iara Xavier Rodrigues
Assessor de ComunicaçãoSilvio César Tudela Vieira
Coordenadora da BibliotecaRosane Rubim
EXPE
DIE
NTE
Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A utilidade da bioética
na sociedade atlantizada
Alexandre S. Rocha ........................................... 13
Corrupção e ignorância: os efeitos negativos
desta combinação no cotidiano do povo brasileiro
Jorge Lisboa de Paula ........................................ 51
Apontamentos sobre
a metodologia de Max Weber
Augusto Sá Oliveira ........................................... 63
O direito ao ócio
e a ética da preguiça
Juarez Duarte Bomfi m........................................ 89
Carnaval, democracia e discurso: uma proposta
de análise social, política e econômica
Verbena Córdula .............................................111
Os estudos culturais como ferramentas para compreensão da cultura organizacional: aproximações conceituais
Ana Claudia Freitas Pantoja ................................125
As novas tecnologias da informação
e a gestão empresarial
Ricardo C. Mello ..............................................143
SUM
ÁRIO
Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
MV Bill: o preto em movimento
no discurso étnico-midiático
José Luis de Freitas Santos .................................195
Cultura popular nordestina:
Um lugar no cânone ou um cânone do lugar?
João Evangelista do Nascimento Neto ....................175
O direito de resposta e sua exigibilidade nos ordenamentos jurídicos brasileiro e português
Valnêda Cássia Santos Carneiro ............................219
SUM
ÁRIO
Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Todo saber deve ter uma função social
Paulo Freire em sua sabedoria ensina que “sem um fi m social, o
saber será a maior das futilidades”. Tal afi rmativa revela o espírito que
deve permear a atividade intelectual do homem – seja ela cotidiana
ou não, desde que signifi que a produção ou manutenção da cultura –,
inclusive no campo acadêmico, quer na graduação, pós, ou pesquisa
e extensão.
Fato é que o saber produzido em qualquer desses níveis ou am-
bientes precisa ser compartilhado. Precisa ter uma fi nalidade social.
Alimentar as esperanças e/ou possibilidades de mudanças e o sonho.
Porque sonhar é também uma capacidade unicamente pertencente ao
ser humano.
Se o conhecimento não se difunde, não se reproduz, ele se reduz
à condição limitada de uma hipótese ou uma possibilidade de ‘vir a
ser’. Necessário se faz sua difusão no sentido de ampliá-lo, discuti-
lo, reelaborá-lo, compreendê-lo, adequá-lo, através do processo de
assimilação, e inseri-lo na agenda e nos espaços de fala da sociedade.
Somente assim, democratizado, ou melhor, socializado, é que o saber
se constitui saber e se integra ao universo da diversidade humana.
O saber ou conhecimento não é possível na situação limítrofe de
um único ser. Enquanto ele não rompe as fronteiras desta individuali-
dade não pode ser compreendido como tal. Todo saber tem, portanto,
uma função social a realizar, a cumprir.
Este é o entendimento que a Faculdade 2 de Julho tem sobre a
produção e construção do conhecimento. Porque nela se desenvolve
a concepção de que o homem precisa sonhar para conseguir realizar
o seu sonho através de uma práxis transformadora que tem por base
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OR
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Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
uma educação integral do ser. Educação que qualifi ca o homem/mulher
para atuar socialmente como agente e gestor de um novo contrato
social que vele, principalmente, pela manutenção da Paz e defesa dos
Direitos Humanos.
Neste sentido, a Faculdade compreende que nenhuma ação social
pode ser efi caz se não preserva a identidade do indivíduo, respeitando-
lhe as potencialidades, que se somam para dar sustentação à estrutura
social sonhada ou que seja possível, suportada pelo conhecimento e
pelo saber de cada um, socializado.
E como enfatiza em seu Projeto Pedagógico, propõe-se a garan-
tir um modelo que objetiva romper com os princípios da pedagogia
tradicional, que se centra na supervalorização da reprodução em
detrimento da produção e construção do conhecimento. A Faculdade
se põe na trincheira dos que compreendem como impossível conce-
ber o conhecimento como um fato estático, mas sim, como algo que
é “construído e reconstruído ao longo da vida e de forma refl exiva,
crítica e criativa”.
Este entendimento é o leme que dá norte à Revista Independên-
cia. Esta se oferta como tribuna para que disciplinar, transdisciplinar ou
multidisciplinarmente as produções construídas no âmbito da Academia
se revelem, mostrem-se ao mundo. Sejam socializadas e incluídas pela
comunidade como aquisições que se somam ao saber e à cultura de um
povo e suas múltiplas faces.
Este é um espaço de fala no qual se manifestam os inúmeros
saberes para serem degustados pelos adoradores do saber, porque estes
são adoradores da vida. E viver é também saber.
Boa leitura.
Derval Gramacho
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01
A utilidade da bioéticana sociedade atlantizada
Alexandre S. RochaDoutor em Filosofi a, professor aposentado da UFRJ, Professor Titular da FTE e da Faculdade 2 de Julho.E-mail: [email protected]
ResumoA proposta do artigo é reconhecer-se a importância da bioética como instrumento normativo para controle do poder extraordinário conferido ao homem pela irrupção da tecnologia contemporânea no mundo da vida. Isto gera uma situação em que o incremento de poder distancia-se cada vez mais do ajustamento dos valores que a sociedade pode admitir, em face das novas possibilidades de forma de vida, o fenômeno é metaforicamente chamado de “atlantização da sociedade”. Examinando-se as difi culdades de um consenso operacionalizável acerca do bem nas modernas sociedades pluralistas, conclui-se pela existência de uma indeterminação normativa, que, em virtude do caráter rapidamente cambiante do conhecimento científi co-tecnológico, determinador das circunstâncias de exercício desse poder extraordinário, não deve ser obviada pela rigidez e invariabilidade das normas jurídicas. A natureza prescritiva, mas fl exível da bioética é, no caso, o mais adequado meio de evitar-se o uso descontrolado desse poder, sem inibir a inovação.
Palavras-chaveBioética. Ética. Tecnologia e poder. Indeterminação normativa nas sociedades pluralistas. Controle.
01
15Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Introdução
Em seu livro As Origens do Pensamento Grego, Jean-Pierre Ver-
nant (2004, p.78-79) refere-se a um período de grandes transformações
na vida política e social na antiguidade nos seguintes termos:
As mudanças técnicas e econômicas [...] não se limitam ao mundo grego [...]. O que é próprio da Grécia é a reação que elas suscitam no grupo humano: [...] a refundição de toda a vida social para organizá-la em conformidade com as aspirações comunitárias e igualitárias [...]. O esforço da renovação atua em muitos planos: é ao mesmo tempo reli-gioso, jurídico, político, econômico; sempre visa diminuir a dynamis dos gene; quer fi xar um limite à sua ambição, à sua iniciativa, ao seu desejo de poder, submetendo-os a uma regra geral cuja coação se aplique igualmente a todos. Essa norma superior é a Diké [...].
Descreve, deste modo, uma situação em que as mudanças técni-
cas (com a modifi cação, que possibilitam, dos interesses econômicos)
introduzem a necessidade de reorganizar-se a vida social com a inserção
na ordem social de uma normatização consubstanciadora do Direito ou
da Justiça – Diké.
A situação que enfrentamos hoje guarda similaridade com a
desses tempos primordiais da nossa matriz cultural: o adiantamento
tecnológico criando condições que tornam necessário um ajustamento
da normatização da vida social e, portanto, do Direito. Isso é verdade
para toda alteração da forma de vida1 que se pratica em decorrência
da intromissão de novas tecnologias na vida cotidiana.
Com efeito, a tecnologia confere ao homem comum poder para
fazer, agora, o que antes era impossível até mesmo aos mais podero-
sos. Deste modo, sua capacidade de afetar o mundo natural e o mundo
16 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
social ganha uma dimensão nova, imprevista antes. Por ser imprevista,
a pauta de valores e preceitos, tanto de natureza ética quanto de
natureza jurídica, vigentes à época revela-se insatisfatória para nor-
matizar de modo adequado os comportamentos tornados possíveis. A
grande questão que aparece é: dentro das (novas) possibilidades, o que
é permissível, o que é tolerável, o que é inaceitável e o que precisa
ser efetivamente proibido para que se preserve o que a sociedade tem
como vida boa?2
Essa questão remete a uma outra, anterior e fundamental: o
que, dentro de um conceito de vida boa para uma sociedade, deve
efetivamente ser preservado e o que deve ser alterado em nome de
uma visão futura desse mesmo conceito de vida boa, mutável ao longo
da história.
Essa segunda questão envolve a crítica profunda de todas as
estruturas normatizadoras do comportamento humano: éticas, jurídi-
cas, religiosas, econômicas e culturais. O dinamismo que se instaura
entre elas é complexo e, dependendo dos interesses que prevalecem
em determinado momento da realidade que se vive, um desses setores
da vida humana parece assumir preeminência e infl uenciar – se não
determinar – a transformação que se opera nos outros. Em um mo-
mento subseqüente, até em decorrência das transformações sofridas,
o foco passa para outro setor e, assim, cria-se uma complicada rede
de infl uências recíprocas interdependentes que desafi a previsão à luz
de um pensamento linear e determinista.
Ocorre, então, em um grau maior de complexidade e sofi sticação
técnica, o fenômeno de que trata Jean-Pierre Vernant: a superação do
pensamento religioso e mítico por uma forma racional de conceber o
mundo – a fi losofi a nascente. O que vemos hoje é a dolorosa superação
17Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
da mitologia contemporânea3 – que todas as épocas as têm – por uma
visão que buscaria deslindar o que procede e o que não procede entre
as crenças de natureza religiosa ou profana que nossa sociedade acolheu
por séculos e das quais fez o alicerce de seu conceito de bem.4
Hoje, seria desarrazoada a confi ança fi deísta nos poderes da ci-
ência como autômato de descoberta da verdade, apanágio do cientismo
do século XIX e responsável por boa parte da “mitologia do saber” do
século XX. Sabe-se agora da mutabilidade da verdade científi ca e de
quanto seria leviano que se tivesse por indiscutível a última informação
oriunda, em boa fé, dos laboratórios mais sofi sticados e respeitáveis.
Mas o reconhecimento disso não invalida essa informação como po-
deroso “indício de verdade”, isto é: tão impróprio quanto considerar
indiscutível a verdade científi ca do momento é desconhecer que essa
mesma ciência à qual se quer negar uma fé dogmática ainda é, hones-
tamente praticada, o melhor – senão o único – meio de se conhecer o
funcionamento da natureza, e que suas conclusões ainda são, dentre
as coisas que conhecemos, as melhores candidatas a preencher o ideal
de verdade que a racionalidade humana pode desenvolver. As verdades
que a ciência nos revela, porém, nem são absolutas, nem são completas,
nem são imutáveis, o que signifi ca que não dão garantia de decisões
irretocáveis – supondo que essas possam existir – a respeito de assuntos
polêmicos e fundamentais.
Portanto, as transformações da forma de vida decorrentes de
novas realidades tecnológicas oferecem desafi os à ética e ao direito.
Entre elas, avultam as que decorrem da biotecnologia recente, que pos-
sibilitam ao homem contemporâneo não mais uma ação indireta sobre o
início e o fi m da vida, mas uma ação direta, intencional e voltada para
aspectos bem específi cos que, enquanto era ignorada a intimidade de
18 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
seu funcionamento, só podiam ser relegados a uma remota e indistinta
ação da Natureza, ou à “vontade de Deus”.5
Este é o confl ito em meio ao qual nos debatemos: os avanços da
ciência e da tecnologia nos levam a possibilidades inusitadas que pro-
piciam alterações drásticas na forma de vida que praticamos, levando
de roldão crenças e valores caros a nossos ancestrais.
Atribui-se ao estadista francês Clemenceau a declaração de que
“a guerra é um assunto sério demais para ser deixado a cargo dos gene-
rais”. A frase é de efeito, mas nem ele propôs que se ignorassem os ge-
nerais na guerra, nem há evidência de que os políticos se revelem mais
sensatos ou prudentes nesse assunto. Poderíamos defender, também,
que o adiantamento científi co e tecnológico – com suas conseqüências
inevitáveis – seja assunto sério demais para ser deixado aos cientistas.
Mas é impossível – e seria descabido, se possível fosse – excluí-los da
condição de interlocutores principais desse debate que, entretanto,
precisa ser de todos nós. Quanto a isto, parece fácil chegar-se a um
acordo. A difi culdade reside em estabelecer-se consenso quanto aos
critérios determinadores do quantum satis de sensatez e prudência,
para que não se tomem decisões catastrófi cas para o futuro.
O objetivo deste artigo é, por um lado, sublinhar não apenas que
a tecnologia impõe alterações radicais à forma de vida que praticamos,
mas, sobretudo, que ela confere um poder novo ao homem, afetando
aspectos da vida que, há relativamente poucas décadas, pareciam ina-
cessíveis à intromissão humana – fenômeno metaforicamente referido
como “atlantização” da sociedade. Por outro lado, a consciência desse
desafi o fundamenta a convicção da impraticabilidade ou da insensatez
de uma normatização do uso desse poder pela via jurídica, que, tendo
grau signifi cativo de perenidade e tendo a respaldá-la o aparato coer-
19Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
citivo do Estado, não exibe a fl exibilidade necessária para orientar uma
caminhada rápida para dentro do desconhecido. Entretanto, os riscos
decorrentes de deixar-se essa nova capacidade ao arbítrio de quem
dela possa lançar mão indicam a conveniência de alguma normatização,
mais fl exível e passível de ajustamento à realidade cambiante de um
conhecimento que se redesenha cotidianamente: nisto se constitui a
utilidade da bioética e a evidência de sua necessidade social.
O problema do bem e a indeterminação nor-mativa
O problema do bem na sociedade pluralista6
O operacionalismo7, desenvolvido em meados do século XX, es-
timulado pelas mudanças revolucionárias que a física contemporânea
impôs ao pensamento humano, chama a atenção para o exíguo valor
prático das defi nições retóricas, contrapondo a elas a necessidade de
defi nições operacionais. Na física, isso signifi ca que não se pode dar
por conhecido um conceito enquanto não se explicitar o modo pelo
qual são feitas as medidas que o quantifi quem. Se fi zermos uma ge-
neralização qualitativa desse modo de ver (e as diferentes versões do
pensamento baseado no pragmatismo o fazem), reconheceremos que
não se trata de discutir retoricamente conceitos como o de bem ou
de justiça, mas de estabelecer critérios de atribuição do predicado “é
bom” ou do predicado “é justo”.
Estabelecer tais critérios não é tarefa simples no seio das socie-
dades ideologicamente plurais, como as sociedades contemporâneas.
20 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
“Ideologia” usa-se aqui não no sentido com que aparece no discurso
da ciência política8 nem em outros diversos sentidos com que pode ser
usado em fi losofi a, especialmente no contexto da Teoria Crítica, mas,
especifi camente, no sentido de conjunto de idéias acerca da realida-
de em torno das quais há um acordo tácito, independentemente de
discussão, que oferece o fundamento indispensável a que a discussão
racional possa ocorrer9.
Há dois níveis em que o processo de comunicação intersubje-
tiva se desenrola: o nível ideológico e o nível racional-crítico. O que
distingue o nível racional-crítico do discurso do nível ideológico não
é a natureza das questões, mas o modo de tratá-las. Se as pessoas
estão de acordo sem suscitar discussão e, mais, consideram que não
faz sentido problematizar o acordo já existente e discutir o que já é
inquestionavelmente aceito, esses elementos do pensamento (cuja
discussão fi ca, por assim dizer, proibida) são ideológicos. Quando a
discussão cabe, pelo menos em princípio, o nível é racional-crítico e
a discussão racional, realizada pela troca de argumentos, é possível.
A necessidade de diferençar os níveis ideológico e racional-crítico é
contemporânea do fenômeno da pluralidade ideológica10. Uma questão
relevante às vezes negligenciada quando problemas éticos são discu-
tidos é a de que a pluralidade ideológica reconhecida nas sociedades
modernas não é claramente delimitada – a não ser, em certa medida,
no campo das ideologias políticas. Assim, em numerosos casos, não fi ca
clara a inutilidade, para fi ns de acordo, de um debate entre partes
que não compartilham um fundamento ideológico mínimo comum para
permitir que a discussão racional se desenvolva. Jurgen Habermas
(2004, p. 45-46) o reconhece explicitamente quando afi rma: “Apenas
com base em uma descrição ideologicamente marcada dos fatos, que
21Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
permanecem razoavelmente discutíveis nas sociedades pluralistas,
pode-se conseguir chegar a uma determinação inequívoca do status
moral – seja no sentido da metafísica cristã ou do naturalismo” (grifos
no original).
Quando se tem de discutir a divergência e o acordo na ordem
prática, precisa-se utilizar a discussão racional – o debate que se de-
cide exclusivamente pela força (cogência) para convencer que têm
os argumentos trocados, tendo por meta a construção de um acordo
intersubjetivo. Há que reconhecer que o conceito teórico de discussão
racional é um modelo, um ideal inatingível que obedece à “situação de
fala ideal”, descrita e prescrita por Jürgen Habermas (1971). Nesta,
todos os falantes compartilham iguais níveis de poder, inexistindo a
coerção como elemento determinador do resultado da discussão. Este
resultado é o consenso verdadeiro. O que existe na ordem prática é a
discussão empírica, que jamais é escoimada dos elementos espúrios
que impedem a situação de fala ideal de realizar-se. O que se procura
fazer, por meio de prescrições formais a respeito dos processos empí-
ricos de debate, é valorizar ética e racionalmente aqueles que mais
se aproximem do modelo da discussão racional.
Nossa cultura assiste a uma progressiva valorização dos ideais
da vida democrática, com a conseqüência ideológica de se admitirem
a igualdade e a liberdade como sagrados políticos. Isto se refl ete em
que haja uma enorme diferença, para as sociedades contemporâneas,
entre a capacidade coercitiva de uma autoridade pública, capaz de
impor ou proibir condutas manejando o poder do Estado (ou formas
incontrastáveis, mas privadas, de infl uência), e a capacidade cogente
de um argumento racional irrespondível, que modifi ca a convicção dos
indivíduos e os convence a alterar livremente seu comportamento11.
22 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A progressiva valorização da forma de vida democrática tem aumen-
tado o prestígio desta última forma de proceder, por contraste com a
primeira. Esta é a razão pela qual a discussão racional se torna uni-
versalmente privilegiada e, para benefi ciar-se do prestígio associado
ao livre convencimento, qualquer debate empiricamente verifi cado
precisa assemelhar-se à discussão racional para legitimar-se.
Nas sociedades tradicionais, a tradição – a entrega das normas
que regem a forma de vida que se pratica de uma geração para outra
– consubstancia a uniformidade ideológica, que não sofre contestação
substancial. Trata-se de um grupo social de grande homogeneidade
ideológica em que, em geral, é possível que uma discussão racional
termine por estabelecer um consenso a respeito do que é eticamente
adequado e do que não é. O que seja consensualmente aceito pode
aparecer de diversas formas no universo simbólico12 desse grupo, desde
uma verdade evidente por si mesma até à palavra de Deus registrada
nas escrituras. O que importa é que haverá valores sacralizados aceitos
por todos – ou, pelo menos, por todos os que importem nessa socieda-
de – transmitidos pela tradição de uma geração à outra. Os eventuais
rebeldes serão rotulados como anormais – do ponto de vista político,
intelectual, biológico etc. – e submetidos à terapêutica13 que aquela
sociedade considere adequada ao caso. Em situações extremas, serão
segregados ou destruídos.
Nas sociedades pluralistas a situação é bem outra. Nas socieda-
des ideologicamente heterogêneas, às vezes falta uma base ideológica
mínima comum às partes em debate, para que se desenvolva uma ver-
dadeira discussão racional e se chegue, por meio dela, a um consenso
verdadeiro. Ocorre, nesses casos, um desacordo inconciliável entre
pessoas que, racionalmente e de boa fé, estão seguras de defender a
23Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
verdade ou os bons costumes e consideram terem argumentos adequa-
dos para isso. Enquanto alguns considerarão que “sempre foi assim” é
um argumento válido, outros não sentirão, nesse argumento, qualquer
poder de convencimento. Alguns citarão alguma escritura que indique
claramente o caráter pecaminoso de determinada conduta; outros,
que não compartilhem da mesma religião ou que se abstenham de
comprometer-se com qualquer religião, considerarão tal argumento
irrelevante. Alguns, crentes na ciência como fonte segura da verdade,
apresentarão estudos que “provam” que, do ponto de vista sanitário,
por exemplo, determinadas práticas precisam ser desaprovadas e,
mesmo, banidas; outros, apresentarão estudos igualmente respeitáveis
e numerosos contestando os fundamentos científi cos dos primeiros,
vistos os variados graus de objetividade dos conhecimentos produzidos
pelas diferentes ciências e a reconhecida perfectibilidade da verdade
científi ca.
O problema inescapável é este: destruída a homogeneidade ide-
ológica destrói-se a unanimidade ou quase-unanimidade em relação a
valores fundamentais que, em última análise, constroem a noção de
bem14.
A dignidade humana: uma idéia-força da época contemporânea
A possível indefi nição quanto ao conceito de bem não é, porém,
empecilho a que, na ordem prática, haja noções que forneçam crité-
rios para o agir e para os juízos de valor acerca do agir, benefi ciados
por uma unanimidade ou quase-unanimidade, pelo menos retórica,
24 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
dos membros da sociedade. Há valores que, em cada época, apare-
cem como idéias-força, capazes de despertar uma adesão irrestrita,
mesmo quando o conteúdo conceitual que pretendem representar seja
indefi nido ou de difícil explicitação. A eventual defi ciência em clareza
teórica de que possam padecer esses conceitos não é necessariamente
um inconveniente. Além de favorecer a unanimidade de sua aceita-
ção – cada defensor emprestando a eles sua própria concepção – ela
facilita uma relativa unidade de ação dos seus propugnadores, o que
se traduz por acordo quanto aos critérios operacionais que lhes sejam
adequados, acordo que faltaria, talvez, em torno de uma conceituação
teórica mais precisa.
O respeito à dignidade humana e seu correlato, os direitos hu-
manos, parece estar entre os valores que, em nossa época, exibem
essa capacidade polarizadora de adesões.
No que se refere a essas questões, não apenas se espera que
os padrões éticos a serem defendidos sejam adequados a elas, mas
acredita-se que em favor delas deva operar a capacidade coercitiva
do Estado. O artigo primeiro da Lei Fundamental da antiga República
Federal Alemã proclamava que a dignidade do homem é inviolável, e
o Estado a protegerá. Difi cilmente se encontrará forma mais lapidar
e defi nitiva de consagrar a dignidade humana. A Constituição Federal
brasileira de 1988, no seu artigo 1º, afi rma que a “República Federativa
do Brasil [...] tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa
humana” (BRASIL, 1988, p. 3) e a hermenêutica constitucional que se
desenvolveu desde então tem feito amplo uso desse dispositivo para,
como base nele, defender direitos que não se acham explícitos no
direito positivo de nível infraconstitucional.
Em que consiste, porém, a dignidade humana?
25Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Os dicionários associam dignidade a nobreza, prerrogativas,
formas aparentes de deferência – idéias que se formaram em uma con-
cepção de sociedade fortemente hierarquizada e desigual. Entretanto,
a dignidade humana se apresenta como um dos pilares da sociedade
que se pretende igualitarista, que considera abusivos, por igual, o
privilégio e a discriminação. Neste paradigma igualitário, a dignidade
parece situar-se na extensão ao homem comum do que tradicional-
mente sempre foi um privilégio característico dos estratos superiores
da sociedade. De certo modo, então, acontece com o termo dignidade
o mesmo glissement de sens que ocorreu outrora com o termo aretê
(como se comentará adiante): um atributo dos grandes e poderosos se
transforma em uma propriedade intrínseca a todo ser humano15. Isto
não é apenas um fenômeno lingüístico, mas uma profunda modifi cação
nos padrões da forma de vida considerada boa e, conseqüentemente,
nas prioridades dos valores que a representam.
Pode-se afi rmar que um traço distintivo da dignidade humana é
preservar, para cada um, a capacidade discricionária de autodetermi-
nação que, no passado, era privilégio da nobreza e da soberania. Sendo
isto verdade, as ações de que o indivíduo participa, como agente ou
paciente, violam sua dignidade quando criam, de maneira irreversível,
obstáculos a que essa capacidade se exerça, no futuro, em relação a
setores fundamentais da vida.
Embora não seja incontroversa uma enumeração dessas ações,
costuma-se considerar que existe grande possibilidade de estarmos
diante delas quando se trata de ações que possam modifi car signifi ca-
tivamente elementos da identidade pessoal, não necessariamente no
sentido civil, mas no que tange à autoconsciência e à imagem pública,
elementos de natureza física, social ou espiritual. Isto será tanto mais
26 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
evidente quando a pessoa for paciente dessas ações, especialmente se
sua vontade não tiver sido levada em conta ou tiver sido contrariada.
Evidentemente não se está aqui afi rmando que qualquer ação
dessa natureza viole a dignidade humana. O que se está propondo é
que, entre as ações que podem, quem sabe, violar a dignidade humana
avultam as que de algum modo introduzam alterações irreversíveis,
voluntárias ou não, nos elementos sobre os quais a idéia de identidade
pessoal se apóia. Não é preciso enfatizar que as questões relativas à
vida e à morte incluem-se neste caso. Portanto, as questões que afe-
tem de maneira profunda as possibilidades fundamentais da vida e da
morte de uma pessoa candidatam-se a exame como possíveis questões
que afetem a dignidade humana.
Atlantização da sociedade
A revolução tecnológica
A modifi cação, pela presença da tecnologia na vida cotidiana, da
forma de vida que se pratica, de tal sorte que essa forma de vida se
altera sensivelmente em período inferior à duração de uma geração é
um fenômeno novo na história. Durante milênios, a tecnologia surgia,
era aplicada e contribuía para alterar a forma de vida no prazo de
séculos. Desse modo, as sociedades tinham tempo de adaptar-se à no-
vidade e alterar minimamente suas tradições de maneira consentânea
com as possibilidades novas criadas, sem grandes sobressaltos. Havia
grande estabilidade de valores. Sua ruptura eventual era episódica e
revolucionária.
27Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Desde o início do século XX, porém, um novo fenômeno apare-
ce: a intromissão maciça, na vida cotidiana, da tecnologia decorrente
das descobertas científi cas. Isso acelerou a modifi cação da forma de
vida que se pratica, de modo que os valores e princípios cultivados e
aprendidos por gerações parecem estar em crise, visto não terem sido
concebidos para controlar as possibilidades de manipulação do mundo
concreto que se apresentam hoje ao ser humano. Essa crise se torna
particularmente dramática quando nos referimos à manipulação da
vida e da saúde humanas, tornada exeqüível pela revolução biotec-
nológica.
A idéia de que ciência e tecnologia se correspondem é nova. Na
história da humanidade, a história da ciência e a história da tecnolo-
gia raramente se entrecruzaram e, quando isso aconteceu, às vezes
foi o avanço tecnológico que provocou o adiantamento científi co,
não o inverso. Exemplo disso é o desenvolvimento da termodinâmica,
a reboque do desenvolvimento da tecnologia da máquina a vapor. A
partir do século XX, porém, verifi cou-se que, em princípio, qualquer
descoberta científi ca é passível de aplicação tecnológica. A transição
do conhecimento de descoberta científi ca para aplicação tecnológica
passou a ser rotineira, verifi cando-se uma correlação inversa entre
o tempo médio dessa transição e o desenvolvimento econômico dos
países mais ricos15.
A interveniência da tecnologia na vida cotidiana conferiu ao
homem comum de hoje um poder extraordinário, comparado com o
que tinham seus mais poderosos antecessores de há pouco mais de
século e meio. Hoje em dia são triviais ações que eram impensáveis
há duzentos anos. Qualquer trabalhador chega à casa e, premindo um
comutador, ilumina sua sala de maneira mais feérica que o palácio de
28 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Buckingham em uma festa régia do século XVIII. Após a comercialização
do contraceptivo quimioterápico, as mulheres puderam permitir-se am-
pla liberdade sexual sem o “efeito colateral indesejado” da gravidez,
com refl exos drásticos para a moral, o direito de família, o mercado
de trabalho, a educação das crianças e muitos outros aspectos impor-
tantes da vida social.
Como tudo mais, o poder tem possibilidade de revelar-se benéfi co
ou perigoso. Um bisturi a laser nas mãos de um neurocirurgião salva
vidas; nas mãos de uma criança é uma arma destruidora. Desde Francis
Bacon, que proclamava que é preciso conhecer as leis da natureza para,
obedecendo a elas, dominá-la e dela tirar vantagens, fi cou explícito
que o poder precisa de limites para que seja utilizado construtivamente
para um propósito previamente concebido (o que, desafortunadamente,
não é garantia da legitimidade desse propósito).
Além da factibilidade material dos propósitos contemplados, o
que limita o poder é a submissão de quem o detém a restrições éti-
cas, jurídicas e, evidentemente, político-econômicas. As restrições de
natureza político-econômicas, que se citam por último, mas avultam
em importância, estão associadas à implantação ou preservação de
modelos hegemônicos de sociedades. Freqüentemente, a arena que
determina essas restrições é internacional, ou infl uenciada por in-
teresses de natureza internacional. As restrições ético-jurídicas são,
de preferência, de natureza conservadora ou estabilizadora; visam a
preservar um status quo ou uma forma de vida institucionalizada no
seio de uma sociedade que se deseja estável.
O que ocorre quando o poder disponível não encontra limites
ético-jurídicos expressos para o seu exercício é sua aplicação no con-
texto de uma “improvisação axiológica” que, sem a prova do tempo
29Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
para validá-la, distingue-se pouco do estado de anomia. A questão é:
como caracterizar uma situação em que a evolução do poder disponí-
vel, mercê das novas tecnologias, se faz em progressão geométrica,
enquanto a adequação dos valores se faz, se tanto, em progressão
aritmética?
O poder descontrolado: o fenômeno da atlanti-zação
No Timeu, de Platão, o jovem Crítias narra uma história ouvida
de seu avô, também chamado Crítias, que a ouvira de Sólon – o grande
poeta e legislador ateniense. Sólon, por sua vez, afi rmava tê-la conhe-
cido pela palavra de um sacerdote egípcio, em um templo na cidade
de Sais. A história narra a existência da Atlântida, ilha para além das
colunas de Hércules – o estreito de Gibraltar – em que vicejara uma
poderosa civilização e desaparecera, da noite para o dia, em um ca-
taclismo que a mergulhara no oceano.
A lenda Atlântida infl amou a mente de pesquisadores e literatos,
tendo recebido diversos tratamentos fi ccionais – visto o caráter par-
cimonioso das informações contidas na história de Crítias. Um desses
tratamentos fi ccionais é cativante para nós que vivemos no alvorecer
do século XXI. A Atlântida teria sido destruída porque seu poder – espe-
cialmente o poder destrutivo de suas novas tecnologias – teria crescido
mais, muito mais, do que a sensatez necessária para controlá-lo cons-
trutivamente. Na linguagem grega, seus habitantes caíram no pecado
da hybris – a ultrapassagem dos limites – abandonando sophrosine16 e
desprezando phronesis, a sabedoria. Isto naturalmente atraiu o castigo
30 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
de Nêmesis, a deusa da vingança a serviço da justiça.
Pelo uso metafórico dessa visão lendária, denomina-se aqui a
perplexidade que enfrentamos como risco de “atlantização” da socie-
dade contemporânea.
Com efeito, a tecnologia a nosso dispor é incalculavelmente
mais poderosa do que jamais foi na história conhecida da humanidade.
Portanto, o poder de que dispomos hoje sobre a natureza e sobre a
sociedade é incomparavelmente superior ao que esteve ao dispor de
qualquer ser humano no passado. Entretanto, os valores que cultiva-
mos são ainda os adequados aos períodos anteriores, em que o poder
disponível era muito menor.
É preciso deixar claro que o que se está aqui denominando atlan-
tização da sociedade não é o fenômeno de haver, episodicamente, um
incremento de poder que coloca as possibilidades de agir e alterar o
mundo em que se vive acima e além da normatização limitadora e orien-
tadora do exercício desse poder oferecida pela ética ou pelo direito.
Isto seria um momento de crise, talvez, mas nada além de um sintoma
da necessidade de ajustamento que, afi nal, poderia produzir-se.
Para que se compreenda a natureza do fenômeno da atlantização,
convém fazer-se um paralelo com os conceitos de busca da perfeição
e de progresso. A busca da perfeição é uma idéia que se apresenta na
física grega: a physis, ou natureza, além de ser o substrato da realidade
é um princípio de transformação e encaminha-se para um telos, um fi m
antecipadamente determinado, pelo menos em princípio. A natureza
busca a perfeição, isto é, o atingimento do modelo previamente deter-
minado, da causa fi nal. A idéia de progresso, típica da modernidade,
é semelhante, mas não igual. Progresso também implica movimento
em direção a um telos, mas este, em vez de modelo previamente de-
31Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
terminado, é um horizonte que se vislumbra, mas que se altera pela
própria evolução decorrente do movimento em direção à meta. Desse
modo, ainda que se possa identifi car progresso com aperfeiçoamento,
a perfeição buscada é inatingível, porque à medida que se realiza par-
cialmente, descortina horizontes antes impensados que vão confi gurar
diferenças na visão de mundo e, conseqüentemente, apresentar novos e
diversos objetivos desejáveis, colocados como novas metas a atingir.
Analogamente, a atlantização não reside na mera hipertrofi a do
poder disponível, face aos valores cristalizados nas experiências ante-
riores da humanidade, mas sim no fato de que a lacuna entre poder e
sua limitação existente agora se amplia continuamente: o aumento do
poder, derivado da ampliação cotidiana conhecimento, não pode ser
superado, nem mesmo igualado, pela rapidez de cristalização de valores
adequados ao controle do exercício desse poder tornado disponível.
Atlantização e confl ito: a ruptura da racionali-dade
Na falta de normatização limitadora, o poder de interferir no
mundo em que se vive fi ca ao talante do bom senso de cada agente ou
do grupo sociocultural de cujos valores o agente compartilhe. Percebe-
se, então, que, nas sociedades pluralistas, é grande a probabilidade
de que haja utilizações confl itantes desse poder, considerada a falta
de homogeneidade ideológica nessas sociedades, conforme se referiu
antes.
Nesse caso, é de pouco auxílio a possível unanimidade desper-
tada por idéias-forças como dignidade humana, por exemplo, porque
32 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
não se trata mais de uma polarização política em favor de decisões
práticas relativas à vida social (ou contra elas), mas, sim, da busca de
generalização e universalização – objetivos típicos da fi losofi a – que
permitam fundamentar teoricamente a construção de normas coerci-
tivas (do direito) ou indicativas (da ética) aceitáveis como imperativos
que a todos afetem por igual.
A generalização e universalização fazem-se em conseqüência de
uma análise crítica no contexto de uma discussão racional. Entretanto,
como já se observou, a discussão racional pressupõe um acordo ideoló-
gico prévio, como elemento indiscutível de apoio aos argumentos que
se oferecem a favor ou contra determinada posição. Se inexistir, pela
diferenciação ideológica, esse elemento de apoio, isto é, se os parti-
cipantes da discussão empregarem as mesmas palavras (signos gráfi cos
ou sonoros) sem que elas tenham, todavia, os mesmos signifi cados,
o intercâmbio de proferimentos terá a aparência de uma discussão
racional, mas não o será, visto que, neste caso, a possibilidade do
acordo – típica da discussão racional – não existirá.
O debate que então se estabelece – como, por exemplo, entre
os pró-vida e os pró-escolha, no caso do aborto voluntário – tem toda
a aparência de uma discussão racional, mas não o é, porque falta a
esses dois grupos a base ideológica comum que permite a discussão
racional crítica. Seus argumentos, embora usem as mesmas palavras,
não são comparáveis em termos comunicativos, porque o fundamento
ideológico dos discursos, sendo diferente, contamina os signifi cados e,
por isso mesmo, torna-se impossível o alcance de um acordo. O que se
dá, neste caso, é uma interação estratégica17, em que, lançando mão
de argumentos, mas também de efeitos retóricos que falam à emoção,
busca-se persuadir a sociedade a tomar uma decisão cujos fundamentos
33Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
éticos ou jurídicos só se produzirão retrospectivamente ex post facto.
Como se disse antes, a valorização da forma de vida democrática (uma
decisão política) contribui para que se imponha a discussão racional
como modo legítimo de estabelecer acordos consensuais. Assim, o em-
bate estratégico mimetiza necessariamente a discussão racional. Desse
modo, argumentos são oferecidos e refutados, passando-se tudo como
se a questão se resolvesse por terem sido eles produzidos no âmbito
da ação comunicativa.
É por isso que um conceito como dignidade humana não consis-
te – como poderia parecer – em regulador do que a sociedade acabará
considerando vida boa, mas coloca-se no cerne de um confl ito. Esse
confl ito pode até tomar a aparência de uma discussão racional acerca
do conceito de dignidade humana. Entretanto, o que verdadeiramente
está em questão é a determinação do conceito de vida boa para aquela
sociedade. Ao ser resolvido o confl ito, pelo estabelecimento de alguma
nova determinação do conceito de vida boa, é esse conceito que de-
terminará, em última análise, o que se poderá entender, em seguida,
por dignidade humana.
A utilidade da bioética
Ética, felicidade e dever
Tentar impedir a atlantização da sociedade proibindo o conheci-
mento é irreal. As fogueiras da Inquisição destruíram Giordanno Bruno,
intimidaram Galileu, mas foram impotentes para impedir que o sistema
copernicano fosse aceito e corrigido, quando se revelou parcialmente
34 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
incorreto. O pouso do homem na Lua e as sondas espaciais são descen-
dentes diretos desses acontecimentos. Entrementes, um sem-número
de aplicações na área da biologia e da saúde, desenvolvidas no contexto
da pesquisa espacial, aumentam a duração média da vida humana e
melhoram o nível de higidez dos idosos, por exemplo. Por outro lado, a
possibilidade de conseqüências teratológicas decorrentes da utilização
descompromissada da tecnologia de ponta, especialmente da biotec-
nologia, pode ultrapassar as previsões mais sombrias da literatura de
horror do século XIX e do século XX.
Encontrar a justa medida é a tarefa que se afi gura quase im-
possível, mas é o preço da sobrevivência ou do aprimoramento da
humanidade.
Tradicionalmente, a justifi cação do agir e das restrições ao agir
são o domínio da ética.
A origem da ética como disciplina fi losófi ca reporta-se à discussão
de Sócrates com os sofi stas a respeito da possibilidade de ensinar-se
aretê. Aretê, que se traduz comumente por virtude, é, originalmente,
algo de que dispõem os que têm o poder de governar e é exatamente o
que tem pretensão de legitimar esse poder. Os reis têm aretê; o homem
comum não tem. Se um rei derrotado em batalha é escravizado, diz
Hesíodo, Zeus lhe tira metade da aretê. (JAEGER, 1986, p. 19.)
Com o advento dos governos democráticos de Atenas, o poder
de governar é conferido pelos votos do demos e estes são obtidos por
um processo de persuasão em que a retórica desempenha papel essen-
cial. Ora, a retórica é o elemento forte dos ensinamentos sofísticos e,
assim, os sofi stas proclamam-se professores de aretê. Sócrates ques-
tiona que aretê possa ser ensinada e suscita a discussão acerca do que
seja efetivamente aretê; a nova concepção de aretê vai ser a marca
35Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
distintiva do novo período da fi losofi a grega, centrado no homem. Essa
nova concepção é que aparece com a conotação de virtude moral que a
palavra virtude tem entre nós. Aretê já não será mais uma outorga dos
deuses, nem uma circunstância genética (isto é, decorrente da perti-
nência a um gene ou família), nem, tampouco, será o resultado de um
rito político (a unção eleitoral), mas será algo intrínseco ao indivíduo
que aparece como qualidade moral, que não pode ser ensinada, mas
pode ser despertada pelo desenvolvimento da compreensão.
A correlação entre aretê, a virtude, e eudaimonia, a felicidade,
converte-se em tema central da fi losofi a grega, admitindo os platônicos
que felicidade e virtude são coextensivas18 e sustentando Aristóteles
que a felicidade não decorre da mera posse da virtude, mas sim de
seu exercício ativo.
Portanto, a ética grega tem como principal referência a indaga-
ção acerca do tipo de comportamento que produz felicidade, individual
ou coletiva. A ética ocidental do fi m da Idade Média e na Idade Moderna
apresenta uma tendência um tanto diversa.
Para Platão e, depois, para os neoplatônicos, cujo pensamento
vai fornecer aos primeiros padres da Igreja as bases de sua metafísi-
ca teológica, o Bem tem natureza transcendental, identifi cando-se
facilmente com a idéia de Deus da tradição judaico-cristã. Daí que
se possa chegar à conclusão de que a diretriz ética fundamental seja
conformar-se à vontade de Deus. Passa-se, assim, da idéia da busca de
um bem para a idéia de que há um dever a ser cumprido independen-
temente dos nossos próprios desejos ou sentimentos. Desembaraçada
da linguagem teológica, é essa atitude que inspirará a deontologia
racionalista e absolutista de Kant, a infl uenciar, de algum modo, todo
o desdobramento posterior da fi losofi a moral.
36 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Os conceitos de felicidade e dever aceitam tratamentos bastante
diferentes, quando se pretende explicitá-los. Embora nas sociedades
pluralistas não seja fácil, como se indicou antes, entrar em acordo in-
tersubjetivo a respeito de qualquer deles, o conceito de dever é mais
suscetível de objetivação, na medida em que pode ser explicitado pela
enunciação de uma norma convencional, de natureza jurídica (por-
tanto coercitiva) ou ética (portanto indicativa). A noção de felicidade
é muito mais fl uida. Desde Epicuro e, mais tarde, dos utilitaristas, a
idéia de felicidade se associa à de prazer. O conceito de prazer tem
uma natureza eminentemente subjetiva, e o acordo intersubjetivo que
permite defi nir, em termos de vida social, a diferença entre situações
prazerosas e dolorosas não elide a ampla liberdade de escolha quanto
ao agir individual que as sociedades pluralistas, mais que oferecem,
legitimam.
Entretanto, esses conceitos não estão completamente disso-
ciados. Idéias como bem comum, bem-estar da coletividade e, mais
recentemente, dignidade humana e direitos humanos têm, como marco
referencial, no momento de serem operacionalizadas, alguma noção
de felicidade: é a antiga noção de eudaimonia da polis, da mentali-
dade grega, transformando-se em seus correlatos modernos, os dois
últimos – dignidade humana e direitos humanos – francamente atentos
às necessidades do indivíduo, cuja valorização é um dos traços da
modernidade.
Desse modo, a idéia de dever, seja decorrente de normas ex-
pressas, seja correspondente a normas tácitas, vai associar-se à de
felicidade: o dever porventura estabelecido deve voltar-se para a busca
de uma felicidade coletiva, do tipo da eudaimonia da polis (portanto,
de terceiros), e a sensação de cumprimento do dever deve ser parte
37Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
essencial da idéia pessoal de felicidade, ainda que as ações a que esse
dever obrigue não sejam imediatamente prazerosas. Assim, a noção
de dever pode parecer, em termos imediatistas, desvinculada da idéia
de felicidade, mas, em termos de generalização e universalização,
há que se buscar uma síntese necessária entre essas duas motivações
fundamentais da ética.
A natureza da bioética
Se retomarmos o texto inicialmente citado de Jean-Pierre Vernant
(2004, p. 79-80), vemos uma exemplifi cação que não parece casual.
Diz ele:
A legislação sobre o homicídio marca o momento em que o assassínio deixa de ser uma questão privada, um ajuste de contas entre gene; à vingança do sangue, limitada a um círculo estreito, mas obrigatório para os parentes do morto e que pode engendrar um ciclo fatal de assassinatos e vinganças, substitui-se uma repressão organizada no quadro da cidade, controlada pelo grupo e onde a cole-tividade se encontra comprometida como tal.
Por que a ênfase na questão do assassínio? A resposta parece
óbvia: pelo impacto especial que têm, para a sociedade, as questões
de vida e morte. A transformação do episódio de destruição da vida em
ofensa social é um complemento natural à estruturação da sociedade
mediante regras organizadoras do conúbio gerador da vida, prescreven-
do e proscrevendo determinados tipos de relações a partir das posições
dos indivíduos na família e na ordem social. Desse modo, exibe-se uma
preocupação de regulamentar a vida, ainda que de modo indireto, desde
os primórdios do que se costuma entender como civilização.
38 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Se o desenvolvimento da tecnologia e sua intrusão na vida coti-
diana aumentaram extraordinariamente o poder do homem comum, a
chamada “tecnologia de ponta” potencializa esse aumento de um modo
diferenciado. Com efeito, as ações tornadas possíveis pela tecnologia
de ponta e que, no caso da biotecnologia, têm efeitos dramáticos sobre
as questões de vida e morte, não estão ao alcance do homem comum
enquanto agente, mas, apenas, enquanto paciente. Freqüentemente
essas ações são tornadas possíveis por aparatos tecnológicos de elevado
custo, de tal sorte que só estão disponíveis a entes coletivos – o Estado
ou empresas comerciais de grande porte. Além disso, sua operação exige
conhecimentos especializados em termos tanto de rotinas operacionais
quanto de fundamentos científi co-tecnológicos do uso, o que coloca o
emprego dessas tecnologias em mão de um grupo de especialistas que
opera em ambiente controlado por grupos econômicos de vulto.
É evidente que o conjunto de interesses que pode inspirar essas
ações tem probabilidade de distanciar-se, por vezes, dos ideais de
felicidade coletiva que, de algum modo, precisam orientar (ainda que
nominalmente) o controle social dessas ações, seja porque envolvem
a destinação de recursos públicos, seja porque seus efeitos afetam
potencialmente os interesses individuais e coletivos tutelados pelo
Estado.
O panorama que se desenha é, então, o seguinte. Há uma dis-
cussão de natureza política – portanto no nível das ações estratégicas
– que busca valer-se de diretrizes ético-jurídicas, cuja fundamentação
se daria no plano da ação comunicativa. Essas diretrizes incluiriam
conceitos como dignidade humana e direitos humanos, por exemplo.
Entretanto, como se apontou acima, esses conceitos, em uma socie-
dade pluralista, não podem ser estabelecidos apenas pelo instrumento
39Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
da discussão racional; são o resultado de um embate estratégico cuja
natureza é, essencialmente, política.
Encontra-se, assim, um terreno em que a ética pura pode ajudar,
mas não pode, por si só, pretender arbitrar a legitimação do resultado
dessas discussões. É preciso um discurso que, valorizando embora os
recursos da ética, não perca de vista os elementos de ordem prática
que informarão o conteúdo e a forma da discussão política antecedente
e conseqüente a cada momento específi co do debate pretensamente
racional. A bioética é um discurso dessa natureza.
Indeterminação normativa e bioética
No século XX, a física descobriu, para desalento e estupefação
de homens da estatura de Albert Einstein, que as relações de indeter-
minação de Heisenberg eram leis fundamentais da natureza. Em con-
seqüência, um fenômeno aparentemente simples como o movimento
(trajetória) de um elétron solitário, não pode ser determinado. Agora,
constata-se, também, que a indeterminação normativa é elemento
fundamental da sociedade contemporânea, dita pós-moderna.
A época atual enfrenta os desafi os da pluralidade: a felicidade
individual alcançou um patamar de legitimidade igual ou superior ao da
felicidade coletiva; as lealdades estão divididas, de modo que os deve-
res fi cam igualmente diversifi cados; os direitos e expectativas de direito
se afi rmam como valores com pretensão de absolutos, determinadores
de um modo de agir que leve a seu atendimento independentemente
de critérios de exeqüibilidade baseados em parâmetros outros que, no
passado, tiveram prioridade.
40 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Por exemplo, todos têm direito à saúde e, entretanto, não há
recursos tecnológicos de ponta, de atendimento à saúde, disponíveis
para toda a população. Os defensores da saúde para todos sabem
disso, mas sabem, também, que a decisão quanto às prioridades de
investimentos é política e que se não pressionarem sufi cientemente
na arena política a saúde perderá prioridade, em que pese a retórica
unânime em contrário.
No que se refere ao agente – o cientista ou profi ssional da saúde
que emprega a moderna biotecnologia – ele tem deveres para com a
sociedade, mas os tem, também, para com sua família, com as pesso-
as atendidas ou afetadas por suas ações, com seu grupo de trabalho,
disputando verbas de pesquisa ou de desenvolvimento e manutenção
dos laboratórios ou instituições em que trabalha, além de legítimo
interesse na fama e reconhecimento associados a seu trabalho. Mani-
festa-se, assim, uma ambigüidade social decorrente da superposição
de múltiplos papéis associados à mesma função, sendo que os deveres
e expectativas decorrentes desses papéis não são necessariamente
harmônicos. Pode haver – e freqüentemente há – confl itos de interesses
gerados por esses papéis.
Quanto ao paciente, por outro lado, sua felicidade pode depender
de uma decisão que invade o campo mal-defi nido de procedimentos
controvertidos ou vedados por um código de comportamento ou le-
gislação que uma parte da sociedade pode considerar retrógrados e
desatualizados.
A proibição de determinadas práticas pode representar a defesa
do conceito de dignidade humana vigente em um momento, mas pode
bloquear um desenvolvimento do saber que permitiria uma forma de
vida futura que, a seu tempo, fosse considerada essencial à dignidade
41Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
humana conforme seja compreendida. E o oposto também pode ocorrer:
em nome da dignidade futura, um atentado permanente à humanidade
poderia ser praticado no presente.
Estamos mergulhados em uma grande controvérsia da qual não
podemos fugir, na medida em que até a omissão é uma decisão do
agir. Temos uma pauta de valores socialmente proclamados (mas nem
sempre praticados), sabendo-se que muitos desses valores recebem a
concordância nominal de grupos que, no momento de operacionalizá-los
divergem drasticamente quanto a seu conteúdo ideológico. Sabemos
que essa pauta de valores está possivelmente desatualizada, mas sabe-
mos, também, que não haverá tempo de criar uma nova pelo consenso
histórico da sociedade, nem agora nem em prazo previsível.
Entretanto, na ação individual e na participação em grupos de
especialistas que operam a tecnologia contemporânea, precisamos
tomar decisões inadiáveis e não dispomos senão da razão e do bom
senso para nos orientarmos.
Nossa participação política na sociedade nos impõe propormos,
em boa fé, normas uniformizadoras do agir e, ao mesmo tempo, com-
batermos outras que hajam sido propostas e se nos afi gurem danosas
ao que entendemos ser um bem. Podemos acreditar nesse bem com
plena convicção, mas sabemos não ser esse entendimento comparti-
lhado, também em boa fé, por outras pessoas, igualmente honestas e
inteligentes, que conosco convivem na mesma sociedade pluralista.
Essas difi culdades não autorizam, porém, que desistamos das
normas unifi cadoras, porque elas são os instrumentos imemoriais da
civilização.
Aparece, então, a questão da busca de um possível critério de
certeza para essas normas, bem como o problema de sua tempesti-
42 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
vidade: elas não podem antecipar-se às possibilidades de um futuro
imprevisível (indeterminação cognitiva) e não devem perdurar quando
novos conhecimentos demonstrem sua obsolescência ou nocividade.
Neste caso, a indeterminação cognitiva acarreta a indeterminação
normativa.
Do ponto de vista jurídico, o cuidado com os critérios de certeza
e tempestividade parece mais necessário, visto que a norma jurídica
traz consigo o poder coercitivo do Estado para garantir sua efi cácia19. A
fundamentação racional de mandamentos a respeito das questões que
a atlantização da sociedade põe em evidência, até mesmo por recla-
marem a regulamentação que serviria como remédio contra o potencial
explosivo do poder descontrolado, tem, no campo jurídico, um colorido
mais dramático. No caso do direito, há princípios que, em garantia ao
cidadão, restringem o espaço de discricionariedade do julgador, para
que sua decisão se não transforme em puro arbítrio. Eles são, porém,
muitas vezes, obstáculos ao tipo de fl exibilização exigido pelo respeito
à pluralidade e recomendado em face da indeterminação cognitiva que
resulta da rapidez do surgimento cotidiano de conhecimentos novos, às
vezes para contradizer verdades anteriormente aceitas como tais.
É neste contexto que a bioética encontra sua relevância. Com-
partilhando a natureza das construções teórico-fi losófi cas – a parte
ética, propriamente dita – e prático-políticas, a bioética nem é uma
normatização com o grau de estabilidade e cristalização das normas
jurídicas, nem é uma simples lucubração de pensadores sem impacto
direto sobre o agir cotidiano: ela está no meio-termo.
Apoiada nos códigos de deontologia profi ssional da área da
saúde e imposta pelo sistema algo indefi nido, porém efi caz, de reco-
nhecimento dos pares e atribuição de prestígio profi ssional, a bioética
43Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
demonstra uma efetiva capacidade reguladora, desprovida, porém, do
poder coercitivo do Estado, pelo menos de maneira imediata20. Com
base em suas convicções, um grupo pode, por exemplo, adotar posições
bioéticas polêmicas, mas não pode reivindicar para si ou para outrem
uma legislação diversa daquela que a todos obriga. Desse modo, uma
aparente inconveniência – a fragilidade da capacidade coercitiva das
proposições bioéticas – consiste em sua maior utilidade. Preservando
ainda um efeito de regulação, ela permite, entretanto, uma permanen-
te adaptação aos problemas e aos diferentes panoramas cognitivos que
se desenham e se alteram cotidianamente, ao ritmo atual da evolução
dos conhecimentos científi cos e tecnológicos na área biológica.
A bioética atende, assim, na medida do possível e do razoável,
à necessidade de controle do uso de um poder novo e extraordinário
sobre a vida, para não permitir que esse uso se faça em bases to-
talmente discricionárias, mas, por outro lado, deixa espaço para a
inovação. Disto resultarão derivações no agir que, na dinâmica das
interações sociais na comunidade de especialistas e com a sociedade
leiga, poderão vir a ser reprimidas ou resultar, com maior segurança,
em novos caminhos para o conhecimento da natureza e alteração da
forma de vida que se pratica.
Conclusão
A presença maciça da tecnologia na vida cotidiana produziu,
a partir do século XX, uma aceleração nas mudanças por que passa
a forma de vida que se pratica. Essas mudanças, que, no passado,
percebiam-se ao longo de séculos, são, agora, aparentes no intervalo
44 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
de tempo inferior ao de uma geração.
O poder que a tecnologia confere ao homem torna possíveis e até
triviais ações que há algumas décadas eram impensáveis. Isto traz um
descompasso entre os valores tradicionalmente consagrados e aqueles
que seriam necessários para controlar o novo nível de poderio do ser
humano. O ritmo das inovações científi cas e tecnológicas indica que
a lacuna entre o padrão axiológico existente e o que seria necessário
tende a aumentar continuamente, de modo que os riscos decorrentes
do uso imoderado de um poder crescente agravam-se a cada momento.
A este fenômeno deu-se, neste artigo, metaforicamente, o nome de
“atlantização da sociedade”.
A atlantização da sociedade favorece e aguça o pluralismo ideoló-
gico. Com isso, perdem-se condições de desenvolver-se uma verdadeira
discussão racional acerca de temas fundamentais como, por exemplo,
o controle da vida, tornado possível pela moderna biotecnologia. Essa
discussão é substituída por um confl ito ideológico cuja resolução é de
natureza política.
Nessas condições, instaura-se essencialmente uma indetermina-
ção normativa no plano ético, com refl exos polêmicos nas exigências
de normatização jurídica dos procedimentos científi co-tecnológicos de
vanguarda, com especial ênfase para as questões decorrentes do uso
da biotecnologia.
A indeterminação cognitiva decorrente da rápida evolução e
mutabilidade dos conhecimentos na área biológica induz uma indeter-
minação normativa. Visto que as normas jurídicas, por sua natureza,
precisam ter estabilidade e não podem acompanhar o ritmo acelerado
das mudanças de panorama cognitivo e tecnológico e das conseqüentes
alterações da forma de vida que se pratica, torna-se inconveniente
45Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
editá-las para tutelar o que se refere ao ambiente cambiante do co-
nhecimento biotecnológico de vanguarda.
Por outro lado, o exercício descontrolado do poder extraordinário
que a moderna tecnologia confere ao homem é um risco de conseqü-
ências potencialmente trágicas. Portanto, é necessária alguma forma
de controle desse poder. Nisto reside a utilidade da bioética.
A bioética representa uma síntese entre o conhecimento teórico-
fi losófi co e um sistema de decisão prático-político que, por meio da
infl uência sobre os códigos de deontologia profi ssional da área da
saúde e das interações determinadoras de prestígio na comunidade de
especialistas, exerce um efetivo controle sobre o emprego desse poder
extraordinário. Reduz-se, desta maneira, o grau de discricionariedade
de seu uso sem, contudo, inibir por completo a inovação. A bioética
oferece, portanto, um nível de controle que se revela adequado, por
ser efi caz, mas fl exível, gozando de uma adaptabilidade à mudança
que a norma jurídica difi cilmente poderia acompanhar.
Notas
1. A noção de “forma de vida”, de amplo uso em antropologia, é instituída, por Wittgenstein, em fundamento último das pretensões de conhecimento. Cf. HINMAN, 1983, p. 339.
2. Esta noção de vida boa é utilizada por Habermas (1973, p. 153-4) ao expor sua “primeira tese”, na sua aula inaugural na Universidade de Frankfurt sob o título Conhecimento e Interesse. A tese é: O que realiza o sujeito transcendental acha seu fundamento na história natural da espécie humana. No comentário, ele afi rma que “esses interesses que dizem respeito à história natural da espécie e a que fazemos remontar os interesses que dirigem o conhecimento vêm, ao mesmo tempo, da natureza e da ruptura cultural com esta natureza. [...] Ao interesse de autoconservação, tão natural quanto possa parecer, já corresponde um sistema social que compensa as carências do equipamento orgânico do homem e assegura sua existência histórica contra uma natureza que o ameaça do exterior. [...] O que aparentemente é sobrevivência pura e simples é sempre
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uma variável historicamente defi nida, porque essa sobrevivência se mede em termos do que uma sociedade tem como intenção, considerando vida boa para ela”. (Grifado no original)
3. Formalmente, o mito é um signo lingüístico constituído por uma narrativa à qual se empresta uma intenção alegórica e um signifi cado simbólico. Entretanto, nesse contexto, está-se considerando de natureza mítica uma proposição que tem por característica essencial o fato de sua aceitação decorrer, apenas, da autoridade daquele que a proclama. Desse modo, as idéias-forças que impulsionam a sociedade nas diferentes fases de sua existência são de natureza mítica. O cientismo do século XIX, referido a seguir, é um exemplo dessas mitologias.
4. A questão do que seja o bem é fi losofi camente complexa. Para uma análise de diversos modos de entendê-la veja-se, por exemplo, MACKIE, 1990, p.50 sq. Para uma posição oposta à de Mackie, veja-se, por exemplo, POJMAN, 1999.
5. Paolo Rossi (1966, p.85) refere-se, neste sentido, à transformação da própria insufi ciência técnica em ontologia. (Grifado no original).
6. Para o conceito de sociedade pluralista ou plural, veja-se, por exemplo, BERGER; LUCKMANN, p. 168
7. As bases do operacionalismo encontram-se em BRIDGMAN, 1946.
8. No sentido da ciência política, “ideologia” pode defi nir-se como conjunto de idéias, verdadeiras ou falsas, que um grupo político afi rma propugnar como instrumento de conquista e manutenção do poder.
9. Este conceito de ideologia pode ser assimilado ao que Raymond Geuss (1988, p.13) chama de “ideologia no sentido puramente descritivo”. A noção utilizada por BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 166 sq., embora não seja rigorosamente igual, é compatível com esta.
10. Estas mesmas idéias acham-se mais desenvolvidas em outro trabalho do autor. Veja-se ROCHA (1999)
11. O signifi cado e a importância dos argumentos cogentes para chegar-se ao consenso verdadeiro podem ser encontrados em outro trabalho do presente autor: Cientifi cidade e Consenso: Esboço de uma Epis-te-mologia a partir da Teoria Consensual da Verdade de Jürgen Haber-mas in OLIVA, 1990.
12. Para os conceitos de universo simbólico e legitimação, veja-se BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 123 sq.
13. Para a noção de terapêutica, veja-se BERGER; LUCKMAN, 2003, p. 153.
14. É um equívoco generalizado supor-se que qualquer forma de epistemologia consensualista seja incompatível com a aceitação de que existam verdades objetivas. Há, também, grande diferença entre afi rmar a existência de verdades objetivas e estabelecer-se o critério de verdade que permite identifi cá-las.
15. O autor se recorda de comentários, nos anos de 1980, de especialistas em ciência e tecnologia (C&T) observando que na economia americana, que,
47Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
embora gigantesca, crescia pouco, à época, essa transição do laboratório para a fábrica levava, em média, cerca de três vezes mais tempo do que levava a economia japonesa, em pleno milagre desenvolvimentista, para fazer essa mesma transição.
16. Sophrosine, talvez a maior das virtudes para o grego antigo, costuma ser traduzido por temperança. O sentido de sophrosine é manter-se a pessoa dentro se seus próprios limites. A ultrapassagem desses limites caracteriza a hybris. É hybris um mortal aperfeiçoar-se em alguma arte a ponto de alcançar a profi ciência de um deus. Ao contrário dos modernos, para quem esse desempenho seria louvável, para os gregos antigos era uma intolerável perversão da natureza das coisas, algo merecedor de punição. Assim, quando o rei Midas se aperfeiçoa em tanger a lira de modo a poder concorrer com Apolo, deus da música e inventor da lira, é castigado, recebendo do deus orelhas de burro.
17. Para as noções de ação comunicativa e ação estratégica, veja-se HABERMAS, 1983, p. 285.
18. Em Platão, a noção de aretê identifi ca-se com a qualidade de ser-se bom. Trata-se de agathos – o Bem – em seu aspecto funcional.
19. É claro que a consideração do direito como um sistema formal, desvinculado da realidade factual, dá uma aparente solução a este problema. Entretanto, na medida em que qualquer sistema normativo – o do direito entre eles – se afaste tanto da realidade que com ela não guarde qualquer vínculo de utilidade, ele será simplesmente desconsiderado, perderá importância política e será substituído por alguma coisa mais adequada ou aceitável como elemento regulador da vida social. Tornar-se-á tão irrelevante, para efeitos práticos, quanto a rigorosa etiquette que presidiu a vida no Petit Trianon ao tempo da rainha Maria Antonieta; desaparecidos os pressupostos sociais e políticos que conferiam efi cácia àquelas normas, elas foram relegadas à curiosidade histórica.
20. A invocação do poder coercitivo do Estado pela atividade regulamentadora de organismos não-estatais traz à discussão o problema, na organização político-social contemporânea, das funções paraestatais de organizações da sociedade civil. Este assunto, relevante que seja, foge ao escopo deste artigo.
Referências
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado da sociologia do conhecimento. 24. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988.
48 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
BRIDGMAN, P. W. The Logic of Modern Physics. New York: Macmillan, 1946.
GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt. São Paulo: Papirus, 1988.
HABERMAS, J. Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz in HABERMAS; LUHMAN, 1971.
______. La technologie et le science comme “idéologie”. Paris: Gallimard, 1973.
______. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontres, 2004.
______. Raison et Legitimité. Paris: Payot, 1978.
______. The theory of communicative action. Vol 1. Boston: Beacon Press, 1983.
HABERMAS, Jürgen & LUHMAN, Niklas. Theorie der Gesellshaft oder Sozialtechnologie. Frankfurt: Suhrkamp, 1971.
HINMAN, Lawrence M. Can a form of life be wrong? Philosophy, vol. 58, no 225. Jul. 1983.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1986
MACKIE, J. L. Ethics: inventing right and wrong. New York: Penguin Books, 1990.
POJMAN, Louis P. Ethics: discovering right and wrong. Belmont, CA: Wadsworth Publishing Company, 1999.
ROCHA, Alexandre Sergio da. Cientifi cidade e Consenso: Esboço de uma Epis-te-mologia a partir da Teoria Consensual da Verdade de Jürgen Habermas in OLIVA, 1990, pp. 1977-212.
______. O problema ético nas sociedades pluralistas e alguns equívocos. Air & Space Power Journal, n. 1/1999, p. 34-56, 1999.
OLIVA, Alberto (org.) Epistemologia: a cientifi ci-da-de em questão. Campinas, Papirus, 1990.
ROSSI, Paolo. Los fi lósofos y las máquinas: 1400-1700. Barcelona: Labor, 1966.
VENANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Difel, 2004.
Corrupção e ignorância: os efeitos negativos desta combinação no cotidiano do povo brasileiro
Jorge Lisboa de PaulaMestre em Sociologia pela Université de Perpignan, França.Professor da Faculdade 2 de Julho.E-mail: [email protected]
ResumoEste artigo objetiva estimular a discussão sobre os prejuízos sofridos pela sociedade brasileira em conseqüência do seu afastamento das noções básicas dos conceitos fundamentais de cidadania e ética. Em função do que podemos perceber que vivemos um momento bastante delicado, no qual uma seqüência ininterrupta de constrangimentos tem submetido a população brasileira a uma rotina de alternância de desapontamentos e intranqüilidade, ou, para ser mais justo, de insegurança e irritações insuportáveis. Sabemos, porém, que esta situação é conseqüente do profundo estado de degradação promovido pelos elevados níveis de desigualdade social que são impostos à nossa gente. Sabemos, igualmente, que há condições para a alteração deste quadro. Acreditamos que os meios de comunicação desempenham um papel preponderante para tomada de consciência dessa cruel realidade, do mesmo modo que acreditamos na força da imprensa para a mobilização do homem rumo à restauração dos nossos valores culturais mais importantes, que nos últimos tempos têm sido esquecidos ou intencionalmente abandonados.
Palavras-chaveCorrupção. Ética. Realidade brasileira. Desigualdade social. Direitos civis. Cidadania.
02
53Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
“Dormia a nossa pátria mãe tão distraída,
sem perceber que era subtraída
em tenebrosas transações…”
(Chico Buarque)
A dura realidade social brasileira caracteriza-se pelo seu elevado
nível de desigualdade e pela sua crescente exclusão, que tem como
fatores determinantes os problemas estruturais da nossa sociedade. As
políticas públicas praticadas não têm conseguido avançar o bastante
para promover a tão esperada inclusão social, e o que se observa é
um contínuo aprofundamento da crise e o agravamento das condições
sociais de vida da população que se concentra da classe “B” para
baixo.
A conseqüência mais nociva desta situação é o estímulo à desin-
tegração da sociedade que cresce a cada dia. Neste processo de dete-
rioração das instituições sociais, os indivíduos se vêem confrontados
diariamente com os mais diversos constrangimentos que fazem da sua
vida um estado permanente de irritações e angústias. É verdade que
os desacertos operados nas políticas públicas resultam de uma mistura
bastante perigosa, a união da incompetência e disposição para a prática
da corrupção, encontrada em boa parte dos homens públicos do País.
Está provado que os elevados níveis de corrupção, como verifi ca-
dos no Brasil, só conseguem prosperar em uma sociedade desorganizada
pela ignorância, na qual a maioria dos cidadãos é desinformada, des-
conhecendo completamente os seus direitos ou deveres, permitindo,
portanto, que agentes inescrupolosos pratiquem contra ela os abusos
mais absurdos. Sabemos que a moral não é adquirida pelo nascimento,
precisa ser ensinada e apreendida, mas pelo que se tem notado, parece
54 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
que o homem brasileiro desligou-se completamente das convicções mo-
rais inerentes a todos aqueles que exercem funções administrativas ou
públicas e passou a adotar procedimentos absolutamente incompatíveis
com as responsabilidades que a eles são confi adas. Atitudes inespera-
das como ameaças, extorsões, furtos e assassinatos são praticados por
indivíduos que deveriam combater tais atos.
Por outro lado, entre os homens e mulheres das camadas popu-
lares da sociedade, a falta de uma consciência cidadã é tão profunda
que eles nem sequer se sentem titulares dos seus direitos. Além de
tudo, pessoas simples parecem interessadas em copiar os procedimentos
ilícitos dos membros das classes mais abastadas. Isso tem favorecido
a falsa noção de que ninguém mais tem responsabilidade com nada,
inclusive as autoridades outrora mais reputadas (senadores, juízes,
promotores, desembargadores...), que vivem em uma sociedade onde
todos, sem exceção para a regra, são delinqüentes e que a corrupção,
infelizmente assimilada como uma virtude nacional, constitui um
elemento integrante da paisagem do País, assim como a Chapada Dia-
mantina, o Aquipélago de Fernando de Noronha ou o Pão de Açúcar,
podendo ser ostentada como uma marca deste povo que no passado
possuía preocupações bastante diferentes.
Não se pode deixar de reconhecer que quem convive com uma
realidade igual a esta experimenta uma intranqüilidade muito grande, e
o seu cotidiano passa a ser recheado de ingredientes indesejados, como
desconforto, inquietações e irritações de todo tipo, senão neuroses e
angústias insuperáveis. Uma jornada apenas nas principais cidades do
País já seria sufi ciente para constatar os efeitos negativos produzidos
pelas irregularidades citadas na vida da maioria das pessoas. Os cons-
trangimentos são tão numerosos que ao fi nal de cada jornada podemos
55Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
fazer uma lista das práticas de incivilidade, que vão da simples desele-
gância repetida constantemente sem motivo aparente, às frequentes
ações agressivas injustifi cáveis como: invasão de sinal; ultrapassagens
perigosas; prática de atos violentos de todo tipo por jovens carentes,
que justifi cam sempre que, ao cometê-los, buscam atender as neces-
sidades elementares; outros, da classe média, agredindo mendigos ou
pobres, vistos por eles como seres inferiores; gestos grotescos de toda
sorte que infelizmente são vivenciados por todos nós.
Esta situação já é por demais insuportável e somente se trans-
formaria pela articulação do Estado com a sociedade civil no intuito
de levar ao conjunto dos seus indivíduos uma noção mais completa de
cidadania, para que então ela seja respeitada e experimentada por
todos. Este conceito especial que está relacionado ao surgimento da
vida na cidade ou na pólis grega, constitui uma garantia de vida digna,
estando relacionada também à capacidade dos indivíduos exercerem
direitos e deveres de cidadão. Na contemporaneidade, a cidadania é
uma condição que busca assegurar a todos os homens os direitos funda-
mentais (direitos civis, políticos e sociais), que, embora concentrados
em categorias distintas, permanecem associados uns aos outros porque
são complementares e, por isso mesmo, indissociáveis.
Os direitos civis basicamente são aqueles que garantem ao in-
divíduo dispor do próprio corpo: locomoção, segurança, matrimônio
etc. É no nosso corpo que nós nos deslocamos, é nele também que nós
dormimos e é através dele que trabalhamos e nos damos prazer para
tornar a nossa existência uma coisa concreta. Com elevada freqüência
estes direitos são desrespeitados. Primeiro, porque para grande parte
da população mundial são negadas as condições exigidas para uma
vida plena, resultado das práticas de desigualdade. Segundo, é impe-
56 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
rativo lembrar que em determinados momentos, principalmente nas
democracias instáveis e, sobretudo, nos períodos das ditaduras, onde
as convenções são ignoradas ou desconsideradas, estes importantes
direitos são duramente violados.
Os direitos políticos dizem respeito à deliberação do homem so-
bre sua vida, especialmente à liberdade de expressão de pensamento,
à prática religiosa etc. Este conjunto de direitos assegura aos indivíduos
(homens e mulheres) a participação em organismos de representação
como: sindicatos, conselhos, associações profi ssionais, partidos polí-
ticos, entre outros. Faculta ao homem o direito de decidir como ele
vai viver, de manifestar a sua vontade, exprimindo livremente qual o
tipo de organização social que ele deseja participar, criar, manter ou
substituir. Tais direitos mereceriam uma consideração especial porque
eles vão estabelecer as regras de convivência, além do cumprimento
e a fi scalização destas.
Os direitos sociais estão diretamente ligados ao atendimento
das necessidades humanas básicas e pela sua natureza reclamam uma
proteção privilegiada. São todos aqueles que devem repor a força de
trabalho, principalmente sustentando o corpo humano (alimentação,
habitação, saúde, educação, transporte etc.). Neste sentido, o direito
ao trabalho tem uma importância fundamental, exatamente porque ele
é a garantia de acesso aos demais direitos sociais. Entretanto, sobre
esses direitos o grosso da população exerce pouca infl uência, em geral
são os capitalistas, juntamente com os governantes, que decidem como
a classe trabalhadora vai usufruir deles.
Assim, o que se constata é que a cidadania plena vem histori-
camente sendo confrontada por estas poderosas estruturas e trans-
formada em uma cidadania de consumo. Nesse processo, alijados das
57Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
negociações e decisões mais importantes, os trabalhadores, elementos
imprescindíveis para o desenvolvimento da sociedade como um todo,
deixam de ser sujeitos participativos e atuantes para conformar-se
à condição de simples observador. Isso só lhes traz prejuízo, porque
aceitando tais imposições, ausentando-se da preparação das mudanças
necessárias à conquista da estabilidade econômica e social, esses tra-
balhadores vão consequentemente se transformar em seres passivos,
acomodados, reduzidos ao insignifi cante status de meros consumidores.
Todavia, existem inúmeras possibilidades de modifi cação desse quadro
reconhecidamente desagradável.
Comunicação e Mobilização Social: ponto de partida para a construção de uma nova realida-de.
Analisar e pensar a vida social vai de par com sentir e pressentir, mas é o fato de dizer e de exprimir que dispara verdadeiramente o processo de emergência daquilo que poderá ser uma nova cultura. (PAVAGEAU, 1985)
Convém afi rmar que a mudança social só é possível quando pre-
cedida de signifi cativa renovação nas subjetividades, ou seja, quando
alicerçada por uma modifi cação da maneira de perceber as coisas, da
maneira de pensar, expressar e agir, o que se poderia chamar de “re-
volução” cultural. Essa alteração do pensamento libertaria o homem
da alienação e do provincianismo, possibilitando a este questionar
a situação real em que vive para que possa aspirar as transformações
indispensáveis que o conduzirão a uma existência melhor e mais digna.
Tudo passa a depender da percepção, somente a partir daí, após esse
58 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
primeiro passo, é que o homem poderá, nas suas ações cotidianas,
romper com as arcaicas estruturas que o submetem a uma condição
de vida degradante para tornar-se, então, um ser contemporâneo e
universal.
Sabe-se, no entanto, que essa “revolução” não se realiza facil-
mente. Como todo fenômeno social, esta transformação é um processo
que deve ser desenvolvido pela própria sociedade, por isso ela precisa
de tempo e condições para ser construída. Para a sua realização não
se pode deixar de considerar a importância de algumas instituições e
agentes sociais, tais como: a religião, a arte, as organizações políticas
e sindicais, além de lideranças que atuam nos diversos movimentos
estudantis, comunitários, ecológicos etc. É claro que nos referimos à
religião que se interessa em fazer o homem perceber o seu espaço no
universo, a sua importância para a evolução do mundo, e não àquela
que recomenda o conformismo do indivíduo. Assim, como me reporto
a artistas engajados, dedicados à conscientização do homem, que
buscam, através de seu trabalho, chamar a atenção para a dignidade
humana e os abusos e iniqüidades perpetrados ininterruptamente contra
a nação pelo clube dos poderosos.
Aprofundando essa refl exão chegaremos à constatação de que
para se alcançar os ideais de cidadania, justiça, igualdade e liberdade,
precisaremos da importante colaboração dos meios de comunicação.
Essa colaboração é imprescindível para que conquistemos a modifi ca-
ção dos valores fundamentais da sociedade que nos últimos tempos
vêm sendo deturpados de forma acelerada. A contribuição dos meios
de comunicação é importante porque são eles que, em larga escala,
veiculam informações sobre estilos de vida, padrões de conduta, formas
de associações e até maneiras de expressão das emoções humanas.
59Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Na atualidade, feitas as devidas ressalvas, são eles que mostram à
sociedade a melhor forma de viver.
Não obstante, caberá ao próprio indivíduo sufi cientemente escla-
recido e bem informado, escolher as suas prioridades e os caminhos para
realizá-las, e nesse aspecto a comunicação (jornalística ou publicitária)
tem pecado bastante, porque tem servido mais para a alienação dos
indivíduos. Aliando-se aos capitalistas e tecnocratas, ela vem ajudando
a restringir o homem à pequenez de um ser consumidor, submisso e
robotizado. Entretanto, modifi cando as suas ações, incorporando os
anseios de liberdade, ela pode contribuir para a construção de um
novo ser, de um homem completo e independente. Por isso, esperamos
que os homens de comunicação abracem as preocupações de toda a
sociedade e na realização das suas tarefas diárias busquem conciliar
os seus deveres de seres humanos e de cidadãos.
Sem nenhuma dúvida, a tomada de consciência que promoverá
o redirecionamento dos rumos da nação precisa do suporte da comu-
nicação que, nas sociedades contemporâneas, desempenha um papel
importante na formação da opinião pública e dos valores socioculturais
indispensáveis à organização social e política. Utilizar este instru-
mento para a democratização da cultura (educação) e popularização
da informação permitirá ao indivíduo entender melhor a vida, falar
melhor a língua, conhecer e respeitar as normas vigentes, expressar
melhor os seus sentimentos, ampliar os seus horizontes. Enfi m, levar
uma vida melhor.
60 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Referências
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
PEGORARO, Olinto A. Ética é justiça. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
PAVAGEAU, Jean. Mexique-Californie, mobilité des hommes, mobilité des biens transformations sociales. Reveu du Crilaup, Presses Universitaires de Perpignan, 1995.
Apontamentos sobre a metodologia de Max Weber
Augusto Sá OliveiraEconomista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea (UFBA), Especialista em Ciências Sociais (UFS), doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, professor da Faculdade 2 de Julho E-mail: [email protected]
ResumoO presente artigo aborda a problemática e confl ituosa questão da metodologia em um autor complexo como Max Weber. O que pretendemos é levantar algumas questões e apresentar algumas críticas à teoria do conhecimento científi co, em Weber, tomando como ponto de partida A ‘Objetividade’ do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política – 1904, seu principal trabalho sobre o tema. Primeiro, fi zemos uma revisão de seu texto. Em seguida, trouxemos ao debate outros pensadores que fi zeram refl exões diferentes, bem como submeteram a perspectiva metodológica de Max Weber a uma severa crítica, a partir de uma análise comparada que tem como contraponto principal o pensamento de Karl Marx. Para fi nalizar, consideramos as implicações dos nossos comentários para as ciências sociais na contemporaneidade.
Palavras-chaveMax Weber; teoria do conhecimento; metodologia; conhecimento científi co.
03
65Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
“Eu sou o espírito que sempre nega,
e isso com razão porque tudo que existe
merece acabar”.
Goethe
“A exigência de abandonar as ilusões sobre
sua condição é a exigência de abandonar
uma condição que necessita de ilusões”.
Karl Marx
“O destino de nosso tempo, com sua racionalização
e intelectualização própria, consiste sobretudo no
desencantamento do mundo, no sentido de que
justamente os valores últimos e mais sublimes
desapareceram da vida pública”.
Max Weber
Apresentação
O objetivo destes apontamentos não é o de exaurir o exame
da problemática e confl ituosa questão da metodologia em um autor
complexo como Max Weber. Isto requereria centenas de páginas e a
consulta a uma bibliografi a muito mais vasta do que a utilizada no
âmbito destas páginas. O que pretendemos, então, é levantar algu-
mas questões e apresentar algumas críticas à teoria do conhecimento
científi co em Weber, tomando como ponto de partida A ‘Objetividade’
do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política – 1904,
seu principal trabalho sobre o tema. Primeiro, faremos uma pequena
66 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
revisão do seu texto para, em seguida, realizar um diálogo de Weber
com outros pensadores que fazem refl exões diferentes deste, bem
como submetem sua perspectiva metodológica a uma severa crítica a
partir de uma análise comparada que tem como contraponto principal
o pensamento de Karl Marx. Por último, algumas palavras são ditas à
guisa de conclusão.
A “objetividade” do conhecimento
O ensaio supracitado foi publicado na revista “Arquivo para a
Ciência Social e Política Social”, na ocasião em que sua direção foi
entregue aos editores Max Weber, Werner Sombart e Edgar Jaffé. O
propósito da revista era ampliar o saber sobre as ‘condições sociais de
todos os países’; formar juízos sobre seus problemas práticos; fazer
a crítica da práxis sociopolítica, inclusive a da legislação, e, ao mes-
mo tempo, trabalhar “com os meios característicos da investigação
científi ca”, cujo conhecimento “consistiria na ‘validade’ objetiva dos
resultados da pesquisa”.
As ciências que têm por objeto “os processos da cultura hu-
mana”, as ciências culturais, isto é, as disciplinas que estudam os
acontecimentos da vida humana a começar do seu signifi cado cultural,
partiram de perspectivas práticas para formular “juízos de valor” sobre
determinadas medidas do Estado. A economia política, por exemplo,
deveria emitir “juízos de valor” com base em uma cosmovisão eco-
nômica. Weber rejeita este ponto de vista, pois uma ciência empírica
jamais pode “proporcionar normas e ideais obrigatórios” de onde se
possa “derivar ‘receitas para a prática’”. A questão é, portanto, o que
67Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
se propõe a crítica incondicionalmente, a questão de se determinados
meios são adequados para alcançar objetivos pretendidos. Deriva disto
que todo fi m “custa” alguma coisa, isto é, há uma perda previsível da
realização de outros valores. Não se deve, então, prescindir da “pon-
deração entre fi ns e conseqüências de determinada ação”. Este é o
ponto onde a tarefa da ciência termina, não lhe sendo possível tomar
uma decisão, pois esta cabe ao homem de ação. À ciência compete,
como meta principal, apresentar de forma clara e transparente as
suas idéias, avaliando criticamente os fi ns pretendidos e os ideais que
os fundamentam dando ao homem consciência do critério último de
valor que se constitui inconscientemente no seu ponto de partida.
Emitir juízo sobre a validade de valores é assunto de fé e não tarefa
de uma ciência empírica, posto que esta “não pode ensinar a ninguém
o que deve fazer”. Assim, o que caracteriza um problema como de
caráter político-social é não poder-se resolvê-lo com simples conside-
rações técnicas. Ao contrário, deve-se ponderar sobre os valores em
questão, pois fazem parte dos problemas gerais de cultura. Quanto
mais universal for o problema em discussão, isto é, quanto maior o
seu signifi cado cultural, e menor a possibilidade de extrair-se resposta
do material empírico, tanto mais pesam as ponderações oriundas da
fé e da ética. Somente as “religiões positivas” (seitas ligadas por um
dogma) podem conferir a dignidade de um mandamento a conteúdo
de valores culturais. A idéia de que uma “linha média” possa acertar
mais a verdade científi ca do que as opiniões de partidos de extrema
direita e esquerda, bem como que uma síntese de idéias partidárias
possa estabelecer normas práticas válidas cientifi camente constituem
para Weber em grave ilusão.
O que Weber vai destacar é o caráter universal de validade do
68 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
conhecimento empírico, pois “se uma demonstração científi ca, me-
todologicamente correta no setor das ciências sociais, pretende ter
alcançado o seu fi m, tem de ser aceita como sendo correta também
por um chinês”. Isto deve ser uma meta aspirada mesmo quando a
insufi ciência do material empírico sobreponha difi culdades. Contudo,
este objetivo não pode impedir que editores, colaboradores, enfi m,
homens de ciência, possam exprimir seus ideais, juízos de valor, etc.
Isto impõe, entretanto, dois importantes deveres:
1º – tanto os autores como os leitores devem ter a “clara cons-
ciência, em cada momento, da questão de quais são os critérios
empregados para medir a realidade, e para obter – partindo
destes critérios – o juízo de valor”;
2º – “imparcialidade científi ca”, que consiste em indicar aos lei-
tores, e a nós mesmos, em que momento fala o homem de ciência
e em que momento essa fala cessa para começar a do cidadão
que tem vontades, intenções, aspirações, idéias, juízos de valor,
etc., em que momento argumentos se dirigem ao intelecto e em
qual se dirigem aos sentimentos. Existe, portanto, uma clara
distinção entre “juízo de valor” e “conhecimento empírico”,
cujo pressuposto é a existência de um tipo de conhecimento
incondicionalmente válido, ou seja, o ordenamento conceitual
da realidade empírica nas ciências sociais. Neste ponto, o pró-
prio pressuposto se torna problema, pois é necessário discutir o
signifi cado da “‘validade’ objetiva” do conhecimento nas áreas
de ciências sociais.
Desta forma, crê-se que é preciso repelir “com a maior ênfase” à
chamada “‘concepção materialista da história’”, enquanto “‘concepção
de mundo’” ou denominador comum da explicação causal da história,
69Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
por esta ser uma concepção de “inextirpável tendência monista” onde
a “explicação causal de um fenômeno histórico não fi ca satisfeita en-
quanto não se mostre (mesmo que só aparentemente) a intervenção de
causas econômicas”. Estas serviriam para sustentar hipóteses frágeis
na medida em que já estaria satisfeita a “necessidade dogmática” de
reafi rmá-las com “‘sempre determinantes em última instância’”. Não
há como sustentá-la posto que não existe nenhuma análise científi ca
da vida cultural que não seja explícita ou implicitamente, consciente
ou inconscientemente, dotada de uma perspectiva parcial e especial.
O conhecimento da realidade infi nita realizada pelo espírito humano
fi nito baseia-se na premissa tácita que somente um fragmento limitado
dessa realidade pode ser conhecido, pode ser objeto da compreensão
científi ca, isto é, só ele será “‘essencial’” no sentido de ser objeto
“‘digno de ser conhecido’”. Só um número limitado e parcial de causas
será isolado e levado em consideração no estudo de qualquer aconte-
cimento individual, não se podendo tirar das próprias coisas critério
algum para essa seleção. Não se pode aceitar a concepção de que o
ideal nas ciências da cultura seja o desenvolvimento de um sistema
de proposições do qual se possa deduzir a realidade. Ao contrário, não
tem razão de ser imaginar que o objetivo do estudo científi co seja de-
duzir da realidade empírica certo número de leis. O que, na realidade
empírica, se reveste de signifi cado para as ciências sociais não poderá
ser derivado de um estudo “‘isento de pressupostos’”. Ao contrário,
temos como premissa que algo se torna objeto de análise na medida
em que se comprove sua signifi cação.
Ainda conforme Weber, a realidade empírica é “‘cultura’” por-
que e na medida em que se relaciona com idéias de valor o próprio
conceito de cultura é um conceito de valor. Todo o indivíduo histórico
70 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
está preso de modo logicamente necessário em idéias de valor. A pre-
missa transcendental de qualquer ciência da cultura é sermos homens
de cultura, possuidores de uma posição consciente diante do mundo.
Qualquer que seja o conteúdo desta tomada de posição ela defi nirá a
signifi cação cultural que cada fenômeno terá como objeto de interesse
científi co. Todo conhecimento da realidade cultural está subordinado
a pontos de vistas particulares, podendo o pesquisador destacar da
imensa realidade, muitas vezes inconscientemente, um elemento
ínfi mo, mas que, em virtude das suas idéias de valor, seja o que lhe
importa examinar. Sem dúvida, essas idéias de valor são subjetivas;
mas não se deve deduzir deste fato que as investigações científi cas
possuem resultados subjetivos, no sentido de terem validade para uns
e não para outros. As idéias de valor do investigador servem para de-
terminar o objeto e defi nir os limites deste estudo. Assim, “só é uma
verdade científi ca aquilo que pretende ser válido para todos os que
querem a verdade”.
Isto posto, impõe-se um problema decisivo: “qual a signifi cação
da teoria e da formação teórica dos conceitos para o conhecimento da
realidade cultural?”. Para os naturalistas, os conceitos nas ciências cul-
turais devem ser semelhantes aos das ciências exatas, o que, para We-
ber, efetivamente se constitui em um preconceito. Para ele, a formação
de conceitos se dá através da constituição do conceito de “tipo ideal”.
O “tipo ideal” não é uma hipótese, mas possibilita a formação desta,
não é uma exposição da realidade, mas permite sua expressão unívoca.
Como se obtém um “tipo ideal”? Através da “acentuação unilateral de
um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande
quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que
se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por comple-
71Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
to, e que se ordenam de acordo com os pontos de vista unilateralmente
acentuados, a fi m de se formar um quadro homogêneo de pensamen-
to”. O “tipo ideal” é uma utopia, desta forma, jamais é encontrado
na realidade tal como formulado no conceito. Este conceito, de “tipo
ideal”, quando corretamente aplicado cumpre as suas funções perante
a investigação e a representação. E qual o signifi cado dos conceitos de
“tipo ideal” para uma ciência empírica? O “tipo ideal” não é um fi m
em si mesmo, mas tão somente meio para permitir o conhecimento.
Não é realidade histórica nem realidade autêntica e, sim, um quadro
de pensamento; é um conceito-limite, puramente ideal, que permite
aferir alguns elementos importantes da realidade empírica e com ela
ser comparado; é uma tentativa de apreender os sujeitos históricos em
conceitos genéricos, ou seja, os aspectos de signifi cados importantes.
As idéias que dominaram uma época só podem ser compreendidas com
rigor conceitual sob a forma de “tipo ideal”.
O “tipo ideal” assume a função precípua de instrumento de
elevado valor heurístico, utilizado para medir e comparar a realidade
ao modelo teórico. Sendo, portanto, indispensável para a investigação
e exposição das pesquisas. Ocorre que alguns cientistas, conscientes
ou inconscientemente, realizam exposições típico-ideais não apenas
no sentido lógico, mas, sobretudo, no sentido exemplar, como o devir
que a realidade deveria perseguir, nas opiniões destes. Parte-se para a
interpretação da realidade, conforme juízo de valor de cada pesquisa-
dor; abandona-se a ciência experimental, empírica, para a realização
de uma “profi ssão de fé” pessoal. Destarte, “é necessário opor a tudo
isto um dever elementar do autocontrole científi co, único suscetível
de evitar surpresas”, para que possamos distinguir a comparação da
realidade com “tipos ideais”, no sentido lógico, da avaliação desta
72 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
realidade a partir de ideais. O “tipo ideal” não tem o sentido de ob-
jetivo a ser almejado, de devir, de perfeição a ser alcançada, salvo no
sentido puramente lógico. É, deste modo, uma construção intelectual
destinada à medição e à caracterização de realidades individuais, tais
como, o cristianismo, o capitalismo, etc.
Nas ciências sociais, a noção de que o conhecimento da realidade
deve buscar a sua caracterização através de “‘leis’” foi introduzida
a partir da concepção naturalista de ciência por meio do conceito de
“‘típico’”. É que também é possível construir “tipos ideais” de desen-
volvimento. Contudo, é preciso não confundir o “tipo ideal” com a
realidade; assim, para saber se o curso empírico do desenvolvimento
ocorreu tal como descreve o “tipo ideal” é preciso tomar a este, com
o seu imenso valor heurístico, e compará-lo com os fatos históricos.
Não há, neste caso, nenhuma objeção metodológica desde que se te-
nha presente que história e conceito típico-ideal de desenvolvimento
são distintos. Contudo, ao tentar demonstrar claramente o conceito
de “tipo ideal” ou de desenvolvimento de “tipo ideal”, os cientistas
se valem, como material para ilustração, dos fatos históricos, o que,
em princípio, é legítimo em si. O perigo reside em o saber histórico
aparecer a serviço da teoria e não a teoria a serviço do conhecimento
histórico. Ou, então, o que é mais grave, como ocorre entre alguns
cientistas a mistura entre o “tipo ideal” e a história a ponto de confundi-
las. Nesta ótica, Marx é o mais importante pensador na construção
de “tipos ideais”. Suas “‘leis’” são “tipos ideais”, na medida em que
sejam teoricamente corretas; mas, se apresentadas como portadoras
de validade empírica ou de tendências históricas tornam-se perigosas,
de acordo com Weber.
Existem “ciências dotadas de eterna juventude”, como as dis-
73Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
ciplinas históricas; para as quais o fl uxo progressivo da cultura suscita
sempre novos problemas. A essência de sua tarefa constitui-se perma-
nentemente as construções típico-ideais e, inevitavelmente, construir
novos “tipos ideais”, sem os quais não se realiza o processo de conheci-
mento. A história das ciências da vida social é, e será, uma permanente
alternância entre ordenar teoricamente os fatos mediante a construção
de conceitos e decomposição dos quadros mentais, motivado pelos
deslocamentos e ampliação do horizonte científi co, e a construção de
novos conceitos a partir de uma base assim modifi cada. Nas ciências
da cultura a construção de conceitos depende da forma de propor os
problemas, e estes variam de acordo com o conteúdo da cultura. A re-
lação entre o conceito e o concebido comporta um caráter transitório
de qualquer dessas sínteses. Os maiores progressos nas ciências sociais
estão ligados aos deslocamentos dos problemas e assumem a forma de
uma crítica de conceitos. O fato dos conceitos serem tipos ideais não
impede que se o aceite, desde que a sua utilização seja como meio
intelectual para o domínio do empírico, sendo preciso formulá-los cada
vez com maior precisão dado que o conteúdo dos conceitos históricos
é variável. A utilização de conceitos exige apenas que se mantenha o
caráter de “tipo ideal” e não se confunda “tipo ideal” e a história.
O objetivo presente em toda a discussão foi separar a linha
quase imperceptível entre a ciência e a crença e mostrar o sentido
do esforço do conhecimento socioeconômico. A validade objetiva de
todo conhecimento empírico baseia-se, única e exclusivamente, na
ordenação da realidade conforme categorias que são subjetivas e de
associarem ao conhecimento verdades que só o conhecimento empírico
pode oferecer. Entretanto, a crença no valor da verdade científi ca é
algo próprio de determinadas culturas e não algo natural, nada sendo
74 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
possível oferecer àqueles que nela não crêem. A objetividade do co-
nhecimento nas ciências sociais depende do fato de o empiricamente
dado estar orientado por idéias de valor, que são as únicas a conferir-
lhe valor de conhecimento, e que o signifi cado desta objetividade está
ligado às idéias de valor; não se querendo transformar isto em uma
prova empiricamente impossível da sua validade. A luz projetada pelas
idéias de valor ilumina, de cada vez, uma parte fi nita e continuamente
modifi cada dos eventos sociais que fl uem através do tempo. O fi m último
e exclusivo das ciências sociais consiste em “servir o conhecimento da
signifi cação cultural de complexos históricos e concretos”, para o qual
contribui também “o trabalho da construção e crítica dos conceitos”,
na opinião de Weber.
Apontamentos críticos à metodologiaweberiana
Não sabemos em que medida Weber se deteve sobre a obra de
Karl Marx1, apesar de toda sua erudição e de polemizar com o seu
compatrício, quase sempre veladamente, sem muitas referências dire-
tas. Vejamos o que escreveram alguns pensadores importantes que se
reportam ao problema. Há uma quase total ausência de espaço dedi-
cado ao estudo de Marx na obra de Weber, sendo as referências diretas
extremamente raras e espalhadas por toda sua obra, é o que observa
Jürgen Zander. Para este autor, parece estranho que “as poucas passa-
gens de Weber onde está citado o próprio Marx mostram que a postura
daquele em relação a este se caracteriza por uma certa reserva. Quando
fala do próprio Marx, tem-se a impressão de que Weber não pretende
75Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
entrar no assunto, de que pretende deixar como está” (ZANDER, 1994,
83), e, o que aparece como mais grave, ainda de acordo com Zander,
é que “a obra de Weber não apresenta uma discussão aberta com Marx
na forma acabada de crítica explícita, como a que ele não deixou de
fazer a Roscher, Knies ou Stammler” (Idem, 84).
Em outro autor que introduziremos nesta discussão, Gabriel
Cohn, os aspectos metodológicos em Weber foram desenvolvidos na
“fase decisiva do amadurecimento das suas idéias, entre 1903 e 1906”
(COHN, 1979, 77). Nesse período, “pelo menos até 1906 – ou seja,
quando suas concepções metodológicas já estavam cristalizadas – tudo
indica, conforme estudiosos autorizados, que Weber não havia feito
uma leitura aprofundada de Marx” (Idem, 78). E Cohn cita como “es-
tudiosos autorizados” dois outros autores Mommsem e Giddens; deixar
que eles se apresentem através de seus próprios trabalhos parece-nos
o mais acertado. Anthony Giddens começa por sugerir que a dicotomia,
existente na literatura marxista posterior a última grande guerra, en-
tre o “jovem” Marx e o Marx “maduro”, não procede; pois Marx não
se afastou nunca “da perspectiva que inspirou suas primeiras obras”.
Tem razão Giddens em não acompanhar essa segmentação metafísica
althusseriana da obra de Marx. Mas, voltemos ao aspecto que mais
nos interessa: se a obra de Marx é marcada por um fi o condutor de
continuidade, isto é, manutenção de uma mesma perspectiva, então,
Weber não poderia ter uma visão geral da obra de Marx – ainda que
sobre ela tivesse se debruçado com muito ardor, o que, tudo indica,
parece não ter acontecido –, pois
só muito recentemente, cerca de uma década depois da morte de Durkheim (1917) e de Weber (1920), se tornou possível analisar o conteúdo intelectual dos escritos de Marx à luz dessas primeiras obras, que foram publicadas
76 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
pela primeira vez cerca de um século após terem sido escritas, mas que são fundamentais para o estudo do pensamento de Marx. (GIDDENS, 1994, 13).
A posição de Wolfgang Mommsen segue na mesma direção, sendo,
basicamente, a que dá sustentação ao ponto de vista defendido por
Cohn. Ele admite que Weber
na fase inicial de sua carreira científi ca praticamente não se preocupou com os escritos originais de Marx e de Engels. Ao menos até 1906, ele se referia nos seus textos exclusivamente às interpretações marxista-vulgares da doutrina marxiana então correntes; referências direta a Marx praticamente inexistem. (MOMMSEN, 1994, 148)2.
Faremos agora uma citação considerada importante e presen-
te no trabalho de diversos autores, e veremos as conclusões a que
chegam cada um deles. Eduard Baumgarten relata que, nos últimos
dias de vida, Weber teria dito a Oswald Spengler, após assistir uma
conferência, que
a probidade de um intelectual contemporâneo e, sobretu-do, de um fi lósofo de nossos dias pode-se medir com base em seu posicionamento diante de Nietzsche e de Marx. Quem não admite que não poderia executar partes muito importantes de seu trabalho sem o trabalho que estes dois realizaram engana-se a si mesmo e aos outros. O mundo dentro do qual nós mesmos existimos intelectualmente é um mundo em grande parte cunhado por Marx e Nietzsche. (ZANDER, 1994, 84).
A conclusão de Zander é que, no conjunto, a posição de Weber
é de uma “oposição esquiva e reservada”, não sendo manifestada de
forma inequívoca sua postura frente a Marx, nem “mesmo no círculo
mais íntimo”. Para Catherine Colliot-Thélène, esta citação permite
“colocar as coisas nos devidos lugares”, isto é, corrigir a leitura dos
77Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
comentadores franceses de Weber, que têm sublinhado, por motivos
ideológicos, os elementos do pensamento weberiano que possibilitam
uma crítica ao marxismo, “subestimando o profundo parentesco de
interrogações e perspectivas entre os dois autores” (COLLIOT-THÉLÈNE,
1995, 39/40). Tentaremos abordar esta polêmica, em torno do que seja
este “parentesco de interrogações e perspectivas” entre Marx e Weber,
no que se refere aos aspectos epistemológicos. Ainda em acordo com
Colliot-Thélène, Weber não se preocupou em prestar contas da gênese
de seus próprios conceitos, não sublinhando a dívida que tinha com
seus predecessores ou contemporâneos. Destarte, o próprio Weber foi
“excessivamente lacônico sobre o que há de comum com Marx”. Con-
tudo, ela crê que Weber toma emprestado de Marx as “questões que
animam as suas pesquisas e o objeto de estudo que elas defi nem”, isto
é, o capitalismo. Também, ente a “alienação” de Marx e a “raciona-
lização” de Weber “a distância não é grande”, revela Catherine. Por
fi m, tentando responder diretamente sua indagação, ela afi rma que a
marca de Marx no universo intelectual de Weber está “na maneira pela
qual ele concebe o que faz a especifi cidade do mundo moderno”, para,
logo em seguida, concordar “que isso não é nada”. Concluindo, esta
autora assegura que “em nenhum caso a sociologia weberiana signifi ca
uma inversão do ponto de vista marxista”, posto que, uma explicação
econômica ou socioeconômica de uma ética religiosa é plausível dentro
dessa sociologia.
Parece-nos que Colliot-Thélène enredou-se na própria “história
ideológica” do pensamento francês que começou criticando, só que com
sinal invertido. Essa mesma questão é abordada por Cohn. Para ele, há
um ponto comum entre Marx e Weber, que não deve ser subestimado,
que é a “posição central atribuída aos problemas da sociedade capi-
78 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
talista na obra de ambos”. Mesmo percebendo que partem do mesmo
objeto, Cohn nos pareceu extremamente lúcido ao detectar que há uma
diferença fundamental entre ambos: enquanto aquele se caracteriza por
exercer uma “crítica revolucionária”, este assume uma “crítica marcada
pela resignação”. Isto nos parece um elemento-chave; que Weber é um
crítico do capitalismo não temos dúvida, mas, que essa crítica assuma
a forma de resignação nos parece inquestionável. A análise de Weber
sobre a burocracia, com tendência inevitável e crescente, mostra sua
renúncia frente a qualquer perspectiva de superação do capitalismo.
Dito de outra forma, poderemos expor esta idéia tal como o fez Karl
Löwith: o trabalho teórico e prático de Marx “é em torno da explicação
e da destruição” do sistema capitalista, enquanto o de Weber “desen-
volve-se em torno da compreensão da situação” (LÖWITH, 1994, 22).
Quiçá, a melhor defi nição de Weber seja a dele próprio, apresentada a
Robert Michels em uma discussão sobre a social-democracia alemã, em
uma linguagem de cristalina pureza da herança marxiano-lukacsiana:
um “burguês com consciência de classe”.
Se é verdade que uma confrontação entre Marx e Weber, embo-
ra estivesse na ordem do dia, nunca ocorreu, também é igualmente
verdade que uma disputa teórica e metodológica, ainda que velada,
tendo a “concepção materialista da história”, por um lado, e o esque-
ma formado pelos “tipos ideais” e o “individualismo metodológico”,
por outro, sempre esteve presente, sobretudo entre os seguidores de
ambos os pensadores. Passemos, então, à concepção metodológica e
epistemológica de Weber no crivo da crítica marxista.
A primeira questão que sobressai neste combate intelectual trata
do papel da ciência e do cientista. Para Weber, conforme descrevemos
no item 2 deste trabalho, à ciência cabe ponderar “entre fi ns e conse-
79Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
qüências de determinadas ações” sem, contudo, emitir juízo de valor
sobre elas, ou seja, a ciência “não pode ensinar a ninguém o que deve
fazer”. Disto deriva uma separação explícita entre o cientista e o po-
lítico, ou homem de ação. Trata-se de conhecer e ordenar a realidade
em categorias subjetivas. Para Marx, a ciência não tem este caráter de
neutralidade, de não intervenção na realidade. A teoria científi ca de
Marx respalda-se na 11ª tese sobre Fueurbach3, isto é, a ciência tem
um papel na transformação da realidade social posto que, esta, dife-
rentemente da realidade natural, é obra do próprio homem. O cientista
e o político, destarte, devem estar reunidos em um só homem.
A segunda questão que abordamos aponta para o problema da
relação entre a infi nitude da realidade e a fi nitude do conhecimento
humano. Para Weber, somente um fragmento limitado da realidade é
“digno de ser conhecido” e apenas um número limitado de causas será
isolado e levado em consideração. Em Marx, a categoria da totalidade é
essencial ao método dialético, conforme chama a atenção Lukács4 em
História e consciência de classe. O princípio da totalidade não signifi ca
estudar toda a realidade de uma só vez, dado ao reconhecimento de
seu caráter infi nito, mas sim, compreender que qualquer fenômeno
social investigado está inserido em uma totalidade orgânica e que a
sua investigação será mediada pela compreensão da sua relação com o
todo. Destas diferentes formas de pensar o conhecimento da realidade
deriva que, para Weber, a realidade não permite que se extraia dela leis
que possibilitem compreender tendências de desenvolvimento social ou
mesmo o processo histórico. Assim, entende Weber, a teoria de Marx,
ou a chamada “concepção materialista da história”, reduz-se a uma
“tendência monista” de “explicação causal de um fenômeno histórico”
restrito à “intervenção de causas econômicas”. Neste ponto, parece-
80 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
nos que Weber se limita mais à crítica de uma formulação marxista,
herdeira do legado marxiano, mas com uma leitura muito particular
da teoria de Marx, que alguns chamam de vulgar, do que às efetivas
concepções teóricas deste.
A antológica passagem onde Weber pretende que uma “demons-
tração científi ca, metodologicamente correta no setor das ciências
sociais tem de ser aceita como correta também por um chinês” é
analisada pelo sociólogo Michael Löwy da seguinte maneira: Löwy ob-
serva, e com razão, que se Weber raciocinasse em termos de classe e
não de cultura nacional e religião, perceberia, por exemplo, ser muito
mais fácil a um “professor mandarim chinês” aceitar os seus pontos
de vista em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo do que
um “professor alemão marxista”, pois este, embora compartilhando
com Weber uma nacionalidade e cultura comuns, teria um ponto de
vista social diferente. Löwy chama ainda a atenção para dois aspectos
da conhecida separação que faz Weber entre “juízo de valor” e “ju-
ízo de fato”. O primeiro, é que não se pode deduzir os fatos a partir
dos valores: os valores podem apenas inspirar a problemática em um
trabalho científi co. O segundo, é que dos fatos não se pode deduzir
os valores, isto é, uma análise dos fatos não permite que se extraiam
conclusões políticas ou morais. Não se pode provar cientifi camente que
um valor seja certo ou errado, apenas escolher eticamente entre um
ou outro. Também os valores intermediários não são em nada melhores
cientifi camente que os valores extremos.
Löwy contesta esta tese em dois aspectos: o primeiro é que o
conhecimento dos fatos pode facilitar uma opção política: conhecer ou
desconhecer um fato econômico referente a salários pode conduzir a
políticas distintas no que diz respeito a uma greve entre os operários.
81Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O segundo, é que os “juízos de valor” – ou ideologias, visões sociais de
mundo, opções morais, éticas, como prefere Löwy – não interferem
apenas ao nível da formulação da problemática e seleção do objeto de
pesquisa, mas, também, ao nível de toda a investigação científi ca, de
todo o processo de produção de conhecimento. O motivo apontado por
Löwy, e parece-nos que com razão, deve-se ao fato de que a própria
formulação do problema já indica em grande medida o caminho a seguir
na investigação, isto é, à pergunta que se formula o cientista já traz
em si a defi nição do conteúdo da pesquisa e a resposta possível. Assim,
teóricos marxistas não se fariam a pergunta de Durkheim: “por que
certos órgãos do corpo social são privilegiados!”; bem como teóricos
positivistas não se fariam, por exemplo, a pergunta de Lukács em His-
tória e consciência de classe: “qual a classe social cuja consciência
possível pode romper o véu da reifi cação?”. Desta forma, nota-se que
há um caráter valorativo na pergunta que já dá um tom político, ide-
ológico, utópico ao conjunto da investigação e não somente à sua fase
preliminar – a escolha do objeto – como queria Max Weber. Em outras
palavras, ainda que a pergunta permita várias resposta possíveis, elas
estarão circunscritas a um leque previamente defi nido por um viés,
uma perspectiva específi ca de abordagem.
Insistindo na objetividade do conhecimento empírico e em
sua validade universal, isto é, um conhecimento incondicionalmente
válido5, Weber aponta a necessidade de que os colaboradores e edi-
tores se imponham o imperativo da “imparcialidade científi ca”. Essa
imparcialidade consiste em indicar aos leitores e a si próprio “em que
momento cessa a fala do pesquisador e começa a fala do homem que
está sujeito a intenções e a vontades, em que momento os argumentos
se dirigem ao intelecto, e em qual se dirigem ao sentimento” (WEBER,
82 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
1992, 115). Ora, esse homem “sujeito a intenções e a vontades” pode
fraquejar: para evitar que isto ocorra deve-se impor o “dever elementar
do autocontrole científi co, único suscetível de evitar surpresas” (Idem,
114). Löwy comenta, ironicamente, que este autocontrole científi co
proposto por Weber nada mais é do que o velho Barão de Münchhau-
sen querendo sair do atoleiro puxando a si próprio pelos cabelos. Dito
de outra forma, não há em Weber uma “concepção metodológica”
para alcançar a “imparcialidade científi ca”. O que há é um apelo, um
chamado que ninguém vai atender, desde quando “é uma exigência
quimérica, que está condenada a fracassar”. Para Löwy, o próprio Max
Weber é a demonstração desse fracasso e sua obra A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo um exemplo.
Outro autor que critica Weber nesta passagem é István Mészáros.
Retomemos o texto weberiano:
É necessário opor a tudo isto um dever elementar do autocontrole científi co, único suscetível de evitar sur-presas, e que nos convida a fazer uma distinção estrita entre a relação que compara a realidade com tipos ideais no sentido lógico, e a apreciação avaliadora dessa reali-dade a partir de ideais. Devemos repetir que, no sentido que atribuímos, um ‘tipo ideal’ é algo completamente diferente da avaliação apreciadora, pois nada tem em comum com qualquer ‘perfeição’, salvo com a de caráter puramente lógico6. (WEBER, 1992).
Antes de passar ao que Mészáros chama de seu “interesse fun-
damental”, isto é, saber se “é ou não possível para o próprio Weber
manter os padrões que ele mesmo estabeleceu para a avaliação da
ciência social em geral” (MÉSZÁROS, 1993, 26), ele critica Weber por
introduzir no seu esquema “juízo de valor”, ao cobrar do cientista o
“dever elementar do autocontrole científi co”, bem como considera
83Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
questionável a legitimidade de “se confi nar a ciência social à esfera da
‘perfeição puramente lógica’”. Mas, fundamentalmente, Mészáros vai
criticar a defi nição weberiana de capitalismo com o “uma cultura na
qual o princípio norteador é o investimento de capital privado” (grifo
nosso), apresentada como um “tipo ideal” supostamente “neutro”. As-
sim, sob a aparência de uma formulação ‘descritiva’ e ‘não ideológica’,
Weber adota o termo “cultura” para defi nir o capitalismo, excluindo
outros conceitos, tais como “modo de produção” ou “formação social”,
escolha essa que já predispõe a um tipo determinado de interpretação.
Adota o pressuposto de que o capitalismo tem um “princípio norteador”,
o que aparece como uma entidade metafísica na medida em que não
esclarece os seus fundamentos, bem como elimina a possibilidade de
uma pesquisa histórica, posto que o tal “princípio” está presente na
forma menos desenvolvida do capitalismo até a contemporaneidade.
O “princípio norteador” se identifi ca com o “espírito do capitalismo”,
algo um tanto misterioso.
O pressuposto adotado na defi nição do capitalismo como “in-
vestimento de capital privado” elimina a questão fundamental da
relação estrutural entre capital e trabalho. O trabalho, elemento
constitutivo e essencial ao capitalismo, não aparece no modelo geral,
tornando sem importância questões relevantes, sob outro viés, tais
como “extração de mais-valia”, “exploração”, etc. O capital privado
é investido quando existe a expectativa de lucro, isto é, se cabe falar
em “princípio norteador” este é o lucro e não o investimento, o que é
silenciosa e signifi cativamente ocultado, pois isto remete ao trabalho
apropriado e este, como já vimos, não está presente no modelo, tendo
como conseqüência a exclusão de certos problemas.
O capitalismo é caracterizado pelo “investimento privado”,
84 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
quando o não investimento do excedente social é parte igualmente
integrante do capitalismo. Defi nir o capitalismo pelo investimento
signifi ca eliminar uma área de pesquisa, o não-investimento, isto é, o
tipo específi co extremamente problemático de investimento capitalis-
ta que o conduz a crises e convulsões. Mesmo abstraindo as objeções
apresentadas acima ainda é problemático defi nir o capitalismo como
“investimento de capital privado” na medida em que tal defi nição
alcançaria validade para certa etapa nos primórdios do capitalismo,
hoje totalmente superada pela maciça presença do capital estatal na
esfera da reprodução ampliada do sistema capitalista. Reconhecer isto
traria problemas ao capitalismo criado no quadro ideológico do “tipo
ideal” de Weber.
Por fi m, embora não menos importante, a defi nição traduz um
modelo estático. A eliminação interestrutural da relação entre o capital
e o trabalho e sua substituição pela entidade metafísica do “princípio
norteador”, provoca o desaparecimento das contradições do sistema
capitalista, eliminando todo o dinamismo do cenário. Não havendo
vestígios de contradições dinâmicas, resta apenas no modelo o ele-
mento de continuidade do status quo, perdendo-se toda a dialética
da descontinuidade, bem como a possibilidade de dissolução e substi-
tuição do sistema capitalista. À defi nição weberiana de capitalismo,
Mészáros contrapõe outra: “O capitalismo é um modo de produção
caracterizado pela extração de mais-valia para efeito de produção e
reprodução do capital em escala sempre crescente” (MÉSZÁROS, 1993,
29-30). Com isto, ele pretende demonstrar que não se trata de mais
uma defi nição que poderia ser incorporada, junto com a de Weber, de
forma complementar, ao patrimônio coletivo das defi nições sobre o
capitalismo, como se todas elas fossem “tipos ideais”, criados por cada
85Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
autor, com caráter “puramente lógico” e “axiologicamente neutro”.
Longe disto, para Mészáros, estas defi nições são antagônicas e ambas
“ideológicas”.
Conclusão
Na passagem do século XX para o XXI, sob a absoluta hegemonia
do pensamento neoliberal, tornou-se corrente a idéia de que o sistema
capitalista é o “fi m da história”, isto é, por pior que seja, é o máximo
em termos de organização social humana. Nestes termos, qualquer
crítica frontal ao capitalismo é tida como obsoleta, ultrapassada,
“coisa do século XIX”. Entretanto, o próprio neoliberalismo surgiu
contra o consenso ofi cial da época e se fi rmou hoje como pensamento
ideológico dominante. Desta forma, muitas das idéias que prevalecem
no pensamento sociológico da atualidade, tomado como em “crise
de paradigmas”, ainda que apresentadas como “modernas” ou “pós-
modernas”, são, na verdade, profundamente devedoras do pensamento
metodológico e epistemológico de Max Weber, um intelectual arguto e
criativo, que buscou refl etir sobre os problemas sociais do fi nal do século
XIX e início do século XX, ele próprio apoiando-se em predecessores
como Kant e Nietzsche, para fi car nos exemplos mais importantes. O
mesmo se pode dizer de Marx, já tantas vezes “enterrado” que sozinho
encheria o cemitério, e, no entanto, às vezes é apropriado, ainda que
parcialmente, até pelos seus mais ferrenhos adversários teóricos, sem
que lhe sejam creditados os devidos méritos. Isto posto, salientamos
que teorias são enterradas como “cachorro morto” e ressurgem das
cinzas como fênix, mostrando que nas ciências sociais existe um per-
86 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
manente diálogo, quase sempre confl ituoso e nunca defi nitivo, entre
teorias, epistemologias e metodologias.
Notas
1 No texto que estamos analisando, “A ‘objetividade’ do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política – 1904”, Weber cita apenas o Manifesto Comunista (p. 121), embora se detenha em criticar seu autor.2 Esta mesma citação aparece em Catherine Colliot-Thélène e Wolfgang Mommsen.3 “Os fi lósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; ma o que importa é transformá-lo”.4 O jovem Lukács, que em 1908 foi orientando do prof. Weber, tornou-se um dos mais importantes teóricos marxistas de sua geração.5 “O ordenamento conceitual da realidade empírica na área das ciências sociais”. Weber, p. 117.6 Optamos por retirar a citação diretamente do texto de Weber em português (1992, Ed. Cortez & UNICAMP) e não a utilizada pro Mészáros, traduzida da edição americana Free Press, NY, 1949.
Referências
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ZANDER, Jürgen. O problema do relacionamento de Max Weber com Karl Marx. In: Max Weber & Karl Marx. SP: Hucitec, 1994. pp. 70-96.
O direito ao ócioe a ética da preguiça
Juarez Duarte Bomfi mSociólogo, doutor em Sociologia pela Universidade de Salamanca, Espanha, mestre em Administração pela UFBA. Professor da Faculdade 2 de Julho.E-mail: juarezbomfi [email protected]
ResumoA dialética entre o direito ao trabalho e o direito ao ócio é um dos temas fundamentais na história das relações de trabalho e do movimento operário. Em contraposição à bandeira de “direito ao trabalho” que a classe trabalhadora começa a reivindicar no século XIX, Paul Lafargue levanta a proposta de “direito à preguiça”, criticando vigorosamente as longas jornadas e condições de trabalho nas fábricas, na fase de expansão do capitalismo e do neocolonialismo. Com a revolução industrial, a introdução de inovações tecnológicas determinou um aumento de produtividade com refl exos negativos sobre o emprego. A manifestação da sociedade levou à implementação de medidas que contrabalançaram o incremento da produtividade através de conquistas sociais importantes, a exemplo da limitação imposta ao trabalho infantil, da proteção às mulheres, da restrição às extensas jornadas, com fi xação de uma jornada básica, do limite de idade para o trabalho e novas normas relativas à aposentadoria. O movimento operário se fortalece através da reivindicação da redução da jornada de trabalho como forma de diminuição da superexploração da força de trabalho e como saída ao desemprego. O presente artigo traça a trajetória desse debate a partir das suas raízes históricas e apresenta tendências possíveis para o século que se avizinha.
Palavras-chaveDireito à preguiça; redução da jornada de trabalho; movimento operário; ócio criativo; emprego e desemprego.
04
91Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O desemprego estrutural e a redução da jorna-da
Um grave problema no mundo do trabalho na era da tecnologia da
informação é o desemprego estrutural ou desemprego tecnológico, que
ocorre principalmente por dois fatores: a) a robotização, a automação
e a informatização do processo produtivo levam a que a máquina subs-
titua o trabalho humano. O advento das novas tecnologias microeletrô-
nicas proporciona crescimento sem trabalho. E hoje, a tecnologia não
apenas substitui os braços para o trabalho, como softwares poderosos
substituem o cérebro humano. Alguém já disse que a fábrica do futuro
terá apenas um funcionário e um cachorro. Não perguntem para que o
cachorro: o cachorro fará a vigilância das instalações. E o funcionário?
Dará comida ao cachorro; e b) as novas técnicas administrativas como
Reengenharia, downsizing e restruturações são desempregadoras, e os
funcionários sobreviventes a esses cortes, após lamberem as feridas,
serão sobrecarregados de trabalho, com longas jornadas, aceleração
do ritmo, exigências não mais de especialização simples, mas, sim, de
polivalência ou generalista, que traz como conseqüência a exclusão
dos trabalhadores não-qualifi cados, e para os empregados, aumento
de doenças ocupacionais como LER (Lesões por Esforço Repetitivo),
estresse, problemas de garganta e voz (entre os professores) etc. etc.
Dessa forma, o mundo do trabalho se torna o grande palco do sofrimento
na sociedade atual, tanto para os que dele se acham excluídos quanto
para os que nele permanecem. Nas empresas, os métodos de gestão
adotados questionam as conquistas sociais, lançam mão da ameaça e
apoiam-se na precarização do emprego para obter dos trabalhadores
produtividade, disponibilidade e abnegação sempre maiores.
92 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O problema não é recente. Na época da revolução tecnológica
dos anos 1920, os ganhos de produtividade foram fenomenais e os
empregadores começaram a dispensar seus empregados, como hoje.
Os instrumentos tecnológicos incrementaram a produtividade e eram
mais baratos do que os trabalhadores. Tanta gente foi demitida que
o poder de compra agregado despencou. Preferiram, como hoje, se
concentrar na propaganda e no crédito, estimulando a demanda entre
aqueles que ainda estavam empregados. E continuaram a demitir. O
resultado disso foi a mais duradoura e profunda crise do capitalismo
em toda a sua história, só encerrada no pós-Segunda Guerra.
Houve uma signifi cativa criação de empregos privados depois da
guerra, mas eles não foram sufi cientes para acomodar todos os traba-
lhadores que necessitavam de emprego. Se não fosse pelos empregos
e investimentos públicos e pelos subsídios governamentais a grandes
indústrias, não teria havido emprego para todos. O mercado privado
não resolveria a situação sozinho. O que os economistas clássicos e
neoclássicos seletivamente esquecem é que o governo teve de ser o
empregador de último recurso. Esta tem sido a história em virtualmente
todos os países do mundo desde a Segunda Guerra.
Há várias diferenças a considerar entre esses dois períodos,
década de 1920 e a atualidade. A principal delas é a natureza da
transição em termos de trabalho. Nos anos 20, estávamos em plena
revolução industrial, cuja principal característica é a utilização do
trabalho humano em massa para produzir bens e serviços. Ainda que
um setor fosse mecanizado, outro surgia para absorver a mão-de-obra
dispensada. Quando a agricultura começou a se mecanizar, por volta
de 1900, os trabalhadores foram para a indústria. Quando a indústria
começou a se mecanizar, eles foram para o setor de serviços emergente,
93Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
como funcionários de colarinho branco. A diferença hoje é que a era
da tecnologia da informação não está baseada em força de trabalho de
massa. Está baseada quase exclusivamente no uso de uma elite. São
pessoas com alta capacitação, com razoável remuneração, amparadas
por máquinas extremamente sofi sticadas.
O crescimento econômico hoje tem um caráter excludente.
Mesmo que você pudesse treinar toda a população do Brasil para atuar
no setor de conhecimento e informação, é mais do que provável que
nunca haveria emprego sufi ciente nesse setor para absorver os milhões
de trabalhadores dispensados pela indústria e pelos serviços.
A empresa mais representativa da Era Industrial, a General
Motors, chegou a empregar quase 700 mil pessoas. A Microsoft, de Bill
Gates, quintessência da Era da Informação, tem uma força de traba-
lho em torno de 14 mil pessoas. A diferença é enorme. O sucesso das
empresas na Era Industrial era medido pela magnitude de sua força de
trabalho. Sucesso na Era da Informação é medido pelo menor número
de trabalhadores que se emprega para fazer o trabalho. Mesmo no setor
de conhecimento isso acontece. As empresas vão necessitar apenas dos
melhores profi ssionais, porque o trabalho do profi ssional médio será
feito por computadores.
No Pólo Petroquímico de Camaçari, que na década de 1980
empregava cerca de 18 mil trabalhadores, na década seguinte dobrou
a sua capacidade de produção empregando apenas um terço dessa
mão-de-obra.
O problema é generalizado, atinge indiscriminadamente países
ricos e pobres (a diferença é que os pobres dos países ricos têm alguma
proteção social). Os Estados Unidos têm no momento a maior dispari-
dade de renda entre pobres e ricos desde o fi nal da Segunda Guerra. E
94 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
o censo mostra que 24% dos jovens estão abaixo da linha da pobreza.
Existe entre os economistas a expectativa de que o desemprego
refl ita apenas uma transição, de que a próxima geração estará trei-
nada para assumir os novos empregos da Era da Informação. Será? São
mais de 900 milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas no
mundo neste fi m de século. Esse é o número da Organização Interna-
cional do Trabalho. Como arrumar trabalho para um bilhão de pessoas
no Planeta mesmo avançando em direção à tecnologia da informação,
com mais máquinas aptas a fazer o trabalho conceitual que hoje é
feito por pessoas?
É mais fácil perceber os empregos que estão sendo destruídos
do que apontar aqueles que serão criados pelas novas tecnologias.
Existe uma razão para isso: não se está criando empregos. Na virada
do século, era fácil perceber que os empregos agrícolas estavam desa-
parecendo ao mesmo tempo em que muitos empregos estavam sendo
criados na indústria. Foi o mesmo nos anos 1950. Houve um tremendo
deslocamento de trabalhadores industriais, mas ao mesmo tempo um
número de empregos equivalente se abriu no setor de serviços. Nunca
houve um grande intervalo como atualmente.
Existe o mito da solução da crise de empregos pelo empreen-
dedorismo. Certamente a tecnologia está abrindo oportunidades para
pequenos empreendedores. Milhares de pequenos negócios estão sendo
abertos, mas eles são um criador de empregos limitado. O objetivo
desses novos empreendimentos é ter poucos empregados. Eles almejam
ser empresas virtuais, mesmo aqueles que estão crescendo. Muitos dos
empreendedores vêem as próprias empresas como uma coisa efêmera,
mais virtual do que física. A força de trabalho para eles é transitória,
momentânea, tipo emprego just-in-time. Estima-se que nos próximos
95Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
dez ou vinte anos haverá máquinas tão inteligentes e baratas que o
trabalhador mais barato do mundo será mais caro que a máquina mais
avançada.
A idéia de uma sociedade de empreendedores é temerária. Ima-
gine um país do tamanho do Brasil em que toda a força de trabalho
vivesse insegura, sem saber se haveria dinheiro no fi nal do mês. O país
teria um colapso, qualquer país. Os empreendedores são necessários
à economia. Eles criam riqueza, desafi am o status quo, correm riscos.
Mas são uma minoria. A maioria das pessoas não conseguiria viver
assim. Não há como manter a estabilidade social em uma economia
sem empregos.
Como alternativa a esta realidade, cresce em todo o mundo a
idéia da redução da jornada de trabalho como uma das soluções para
criar novas vagas em um mercado de trabalho cada vez mais restrito.
Na Europa, em particular na Alemanha e na França, já é praticada a
diminuição da jornada semanal. Seria uma tendência histórica. Desde a
revolução industrial – como vimos – a introdução de inovações tecnoló-
gicas determinou um aumento de produtividade com refl exos negativos
sobre o emprego. A manifestação da sociedade levou, ainda no século
XIX, a medidas que contrabalançaram o incremento da produtividade
através de conquistas sociais importantes, em especial nas economias
centrais, a exemplo da limitação imposta ao trabalho infantil, da pro-
teção às mulheres, da restrição às extensas jornadas, com fi xação de
uma jornada básica, do limite de idade para o trabalho e novas normas
relativas à aposentadoria.
Assim, como no passado, a expectativa é que sejam adotadas
medidas que socializem os ganhos de produtividade, possibilitando
que grandes parcelas da população excluídas do mercado de trabalho
96 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
voltem a integrá-lo.
Entretanto, empiricamente pode-se observar que aquela tendên-
cia de redução da jornada não corresponde às condições atuais. Ao con-
trário, vive-se uma situação de ampliação da jornada, considerando-se
as diversas formas de relações de trabalho existentes, como o trabalho
de tipo “tempo parcial”, “precário”, em empresas “terceiras” e mesmo
o trabalho “autônomo”. Em todos estes segmentos há aumento da jor-
nada de trabalho, diferente daquelas categorias profi ssionais reguladas
pela legislação e fi scalizadas por sindicatos de trabalhadores.
São segmentos do mercado sobre as quais as organizações sin-
dicais de trabalhadores têm grande difi culdade em controlar, situação
que estaria se agravando com as políticas de desregulamentação do
mercado de trabalho. Dessa forma, proposições de redução da jornada
teriam efeito somente sobre as empresas maiores, que são empresas-
chave nos setores produtivos, e que têm decrescido sua participação
no mercado de trabalho, transferindo para subcontratadas atividades
que, anteriormente, eram de sua responsabilidade. Conseqüentemente,
a idéia de que a redução da jornada de trabalho pudesse contribuir
para a diminuição dos índices de desemprego seria de pequeno alcan-
ce - ou errônea.
Na França, o parlamento aprovou a proposta do governo de
uma jornada semanal de 35 horas a partir do ano 2000. De imediato,
as empresas que começarem a implementar a redução antes do pra-
zo farão jus a subsídio temporário do Estado, desde que alcancem a
meta de reduzir progressivamente a jornada de trabalho associada ao
crescimento da produção.
Para o pleno funcionamento do sistema, contudo, deverão ser
aprovadas normas complementares, o que tem causado temores na
97Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
representação sindical dos trabalhadores, preocupados com a criação,
em um momento seguinte, de mecanismos de redução dos salários e
benefícios.
Estas medidas sofrem a reação contrária das lideranças empre-
sariais francesas, que alegam correr o risco de perder competitividade
internacional. Porém, representa uma atitude corajosa do governo
social-democrata em uma conjuntura internacional adversa a medidas
de ampliação da proteção social pelo Estado.
No Brasil, predominam as concepções que tomam como base
o paradigma norte-americano de combate ao desemprego – de des-
regulamentação do mercado de trabalho – que pode representar um
obstáculo a soluções mais efetivas para a questão.
Conforme os defensores da fl exibilização das relações de traba-
lho, os países que praticam a fl exibilidade para contratar, demitir e
remunerar a força-de-trabalho apresentam baixo nível de desemprego:
Inglaterra (6%), Holanda (6%), Estados Unidos (4,8%), Japão (3,2%) e os
tigres asiáticos (2% em média) – a inclusão dos países asiáticos perde
sentido após a crise das bolsas, em fi ns de 1997. Ao mesmo tempo,
apontam, os sistemas que representam maior rigidez nas regras traba-
lhistas amargam taxas de desemprego altas: Alemanha (12%), França
(13%) e Itália (15%).
O argumento não se aplicaria para Espanha e Argentina, que
mantêm taxas de desemprego de 22% e 17%, respectivamente. Ale-
gam que, apesar de terem implementado medidas de fl exibilização,
não teria havido tempo hábil para que se manifestassem os efeitos
pretendidos.
O setor empresarial brasileiro – representado pela Confedera-
ção Nacional da Indústria – considera que a redução da jornada para
98 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
a criação de novos empregos só teria alguma efi cácia se: a) isso não
se traduzisse em um aumento da produtividade do trabalho que com-
pensasse exatamente a redução da jornada, já que neste caso nenhum
emprego seria criado; e b) que, se as empresas forem obrigadas a
empregar por menos horas para empregar mais gente, isso não resulte
– em uma economia aberta – em crescimento dos preços de venda, com
conseqüente perda de competitividade das empresas, que reduziriam
sua produção e emprego. Para a CNI, como estas condições não estão
presentes, a redução da jornada de trabalho não se constitui, a seu
ver, em solução para o desemprego.
Pode se considerar o segundo argumento (b) um argumento velho,
que vem sendo usado durante toda Revolução Industrial. Os industriais
sempre disseram que não podem ser competitivos se reduzirem a jor-
nada de trabalho e aumentarem os salários. No início, a desculpa era
a competição local, agora é a competição internacional. E em cada
momento da história os empregados se organizaram e provaram que era
possível. A história do desenvolvimento do capitalismo e do movimento
operário está ligada à redução da jornada diária de trabalho. Isso fez
o sistema capitalista funcionar. Sem essas pressões o capitalismo não
teria fl orescido.
À proposta de redução da jornada o empresariado contrapõe a
desregulamentação e fl exibilização das relações de trabalho. Entre
outras coisas, a jornada passaria a ser contratada em termos de car-
ga horária anual, não-semanal ou diária, como é hoje. Com isso, os
efeitos das oscilações na demanda de produtos das empresas seriam
compensados pela oscilação da jornada, a critério do empregador –
quando a empresa precisar e a demanda estiver aquecida, o empregado
trabalharia mais, sem que houvesse necessidade de arcar com custos
99Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
adicionais como o pagamento de hora-extra, por exemplo. Por outro
lado, quando a demanda por produtos diminuir, reduz-se a produção e
os trabalhadores fi cam em casa. Ao fi nal, a jornada anual contratada
seria mantida, salvo disposições de acordos específi cos.
Essa fl exibilização, imposta de maneira generalizada pelas em-
presas, faz com que, em um estado como a Bahia, por exemplo, aprovei-
tando-se da fraqueza momentânea do movimento sindical, raras sejam
as empresas que ainda remuneram as “horas extras”, substituindo-as
pelo “banco de horas”. Porém, isso não ocorre sem reação:
Os bancários paralisaram, ontem, seis agências do Banco Real (Comércio, Calçada, Barra, Iguatemi, Pituba e Mer-cês) para pressionar a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) a atender a pauta de reivindicação da catego-ria. Na última quarta-feira eles paralisaram seis agências do Unibanco. No próximo dia 23, a categoria se reúne no Encontro Nacional dos Bancários, podendo decretar greve por tempo indeterminado. Os bancários reivindicam, entre outros itens, um índice de 5,79% de reajuste referente às perdas de setembro de 98 a agosto de 99; 4,58% de reajuste, referentes às perdas de setembro de 94 a agosto de 98, e 15% de produtivida-de (...) O presidente do Sindicato dos Bancários, Álvaro Gomes, informou que a Fenaban também quer retirar o anuênio da categoria e “fl exibilizar” a jornada de traba-lho, o que, no seu entendimento, signifi ca aumentar as horas de trabalho da categoria (...) Os bancários também exigem o atendimento de algumas reivindicações especí-fi cas, a exemplo de extensão do horário de atendimento aos clientes das 9 às 17 horas, com criação de dois turnos (atualmente o atendimento é das 10 às 16 horas) e dimi-nuição da cobrança das taxas de serviços prestados aos clientes. ( A TARDE, 8 out. 1999, Local p.3)
O direito à preguiça
Tudo isso remete à discussão do direito à preguiça. No seu pan-
fl eto homônimo (O Direito à Preguiça, 1880), Paul Lafargue se levanta
100 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
contra a escravidão moderna, manifesta no regime de trabalho fabril,
criticando duramente as condições de trabalho na fábrica do século XIX
e as longas jornadas. Dessa maneira, Lafargue incorpora-se a uma das
bandeiras fundamentais do movimento operário naquela fase, a redu-
ção da jornada de trabalho. A redução da jornada teria o duplo efeito
de evitar a superexploração do trabalho e as crises de superprodução,
cíclicas no capitalismo concorrencial, de anarquia de produção.
Doze horas de trabalho por dia, esse era o ideal dos fi lan-tropos e moralistas do Século XVIII. Como superamos esse nec plus ultra! As fábricas modernas tornaram-se casas ideais de correição, onde são encarceradas as massas operárias, onde se condenam a trabalhos forçados de 12 e 14 horas não apenas homens, mas também mulheres e crianças! E dizer que os fi lhos dos heróis do Terror se deixaram degradar pela religião do trabalho a ponto de aceitar, após 1848, como uma conquista revolucionária, a lei que limitava a doze horas de trabalho nas fábricas; eles proclamavam, como sendo um princípio revolucioná-rio, o direito ao trabalho. Envergonhe-se o proletariado francês! Somente escravos seriam capazes de tamanha baixeza. Seriam precisos vinte anos de civilização ca-pitalista para um grego dos tempos heróicos conceber tamanho aviltamento.E se as dores do trabalho forçado, se as torturas da fome se abateram sobre o proletariado em número maior que os gafanhotos da Bíblia, foi porque ele as invocou. O trabalho que, em junho de 1848, os operários exigiam, armas nas mãos, foi por eles imposto a suas próprias famí-lias; entregaram, aos barões da indústria, suas mulheres e seus fi lhos. Com suas próprias mãos, demoliram seus lares; com suas próprias mãos, secaram o leite de suas mulheres; as infelizes, grávidas que amamentavam seus fi lhos, tiveram de ir para as minas e manufaturas curvar a espinha e esgotar os nervos; com suas próprias mãos, estragaram a vida e o vigor de seus fi lhos. Envergonhem-se os proletários! (LAFARGUE, 1983)
Em contraposição à bandeira de “direito ao trabalho” que a
classe trabalhadora reivindica ainda no século XIX, Lafargue levanta o
direito à preguiça. A dialética entre o direito ao trabalho e o direito
101Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
ao ócio torna-se um dos temas fundamentais na história das relações
de trabalho e do movimento operário. Lafargue cria uma outra ética,
a preguiça como valor positivo. E essas idéias, apesar de centenárias,
soam revolucionárias e instigantes, pois, ao longo do século XX, a ide-
ologia “trabalhista” foi hegemônica na sociedade industrial, seja ela
burocrático-capitalista ou socialista-burocrática. O que se disseminou
foi a ética do trabalho, em expressões como “o trabalho dignifi ca o ho-
mem” ou na música popular (o homem se humilha se castram seu sonho,
seu sonho é sua vida e vida é trabalho, e sem o seu trabalho o homem
não tem honra e sem a sua honra se mata se morre... – Gonzaguinha);
depois da Revolução Russa, em 1917, Lênin e Trotski defenderam a
obrigatoriedade do trabalho, inscrita na legislação do novo Estado
operário, em função das tarefas de construção do socialismo.
Eis a ética da preguiça:
Onde estão essas comadres de que falavam nossos velhos contos e lendas, atrevidas, francas no linguajar, amantes da garrafa? Onde estão essas folgazãs, sempre saltitando, sempre cozinhando, sempre cantando, sempre semeando a vida ao gerar a alegria, parindo sem dor crianças sadias e vigorosas?...[...] Cristo, em seu discurso sobre a montanha, pregou a preguiça: “Olhem os lírios crescendo nos campos, eles não trabalham nem tecem e, no entanto, digo, Salomão, em toda sua glória, nunca esteve tão brilhantemente vestido.”[...] Mas para que tenha consciência de sua força, é preciso que o proletariado pisoteie os preconceitos da moral cristã, econômica e livre-pensadora; é preciso que volte a seus instintos naturais, que proclame os Direitos à Preguiça, mil vezes mais nobres e mais sagrados que os tísicos Direitos do Homem, arquitetados pelos advogados metafísicos da revolução burguesa. É preciso que ele se obrigue a não trabalhar mais que três horas por dia, não fazendo mais nada, só festejando, pelo resto do dia e da noite. (LAFARGUE, 1983)
102 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Sobre a questão do lazer, de como preencher o tempo livre
dos operários, os projetos e utopias têm sido vários. Trotski chegou a
retomar o tema da preguiça. Considerava o homem como preguiçoso
e tal característica (diferente da indolência parasitária da burguesia)
era uma qualidade, embasada em uma importante medida sobre o
progresso humano. “Pois se o homem não tivesse procurado economizar
suas forças, ele não teria propiciado o desenvolvimento da técnica nem
a aparição da cultura social”. A preguiça, desse ponto de vista, é uma
“força progressiva” e é neste sentido que Labriola pôde representar o
homem comunista do futuro como um “feliz e genial preguiçoso”.
Na obra de Lafargue, questões mais atuais como a do monopó-
lio da indústria cultural e das ideologias próprias à cultura de massas
ainda não estavam presentes no horizonte histórico. Ele vislumbrava
intermináveis passeios, grandes piqueniques populares regados a bom
vinho, comemorações e jogos nos dias de festa, espetáculos, repre-
sentações teatrais dos grupos amadores de “teatro social” e festivais
em benefício dos jornais da imprensa operária. Naquela época, o lazer
ainda era organizado pelas próprias associações sindicais e culturais
da classe operária. Eram práticas inerentes ao próprio movimento da
classe trabalhadora.
Em 1923, Trotski, preocupado com a utilização do tempo livre
pela classe operária russa diante da infl uência da vodka (alcoolismo) e
da Igreja, propõe o cinematógrafo como nova forma de lazer, de fantasia
e de espetáculo, não descartando a função educadora (ideológica) que
o cinema poderia desempenhar.
Tempo livre para o lazer, a diversão, o vinho, a dança e a festa;
intermináveis passeios, grandes piqueniques, comemorações, espetá-
culos, festivais e representações teatrais. A emancipação do homem
103Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
através do prazer e da felicidade, relacionados ao ócio.
Contra o trabalho
Antes da sociedade industrial até os escravos nunca trabalhavam
mais de seis horas por dia, em média. Isso foi observado em todos os
estudos econômicos sobre a escravidão. É a indústria que vai aumen-
tar enormemente a jornada de trabalho. O tempo torna-se o grande
eixo do ser humano. A divisão parcelar do trabalho, a criação da linha
de montagem permitem produzir o dobro de produtos no dobro do
tempo, esticando-o para aumentar a quantidade de produtos. E uma
empresa se torna mais efi ciente por quantos mais produtos ela produz
em menos tempo.
A indústria tem dois grandes méritos históricos: em primeiro
lugar, criou uma grande riqueza e, em segundo lugar, criou um grande
impulso para a nova sociedade, que é a sociedade pós-industrial. O
progresso tecnológico, o progresso urbano, a globalização, os meios de
comunicação de massa, a escolarização de massa, tudo isso determina
um novo tipo de sociedade, a sociedade pós-industrial, em que gran-
de parte do trabalho físico, repetitivo, prejudicial, pesado, brutal, e
grande parte do trabalho intelectual repetitivo pode ser delegado à
máquina, que se torna cada vez mais inteligente.
Caracteriza-se a sociedade atual como pós-industrial devido a
alguns fatores como: nos Estados Unidos os trabalhadores agrícolas
constituem 2,8% da mão-de-obra empregada, enquanto que os traba-
lhadores do terciário são 70% deste conjunto, e os operários da indústria
são apenas 17% – os restantes estão empregados no terceiro setor.
104 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
As grandes empresas a cada ano precisam de 4% a menos de
trabalho humano. Isso pode signifi car duas coisas, ou que demitem 4%
da própria população de funcionários ou que reduzem em 4% o horário
de trabalho, a preferência tem sido por demitir.
Hoje grande parte das atividades no trabalho e no lazer é efetu-
ada através do cérebro. É o cérebro que trabalha de forma contínua,
dia e noite. Ainda sobre os Estados Unidos: a população operária não
supera os 17% da população economicamente ativa, enquanto que os
83% restantes se constituem de trabalhadores intelectuais.
A conseqüência dessas transformações é o declínio da impor-
tância quantitativa e qualitativa da classe operária, com implicações
substanciais para a compreensão das mudanças sociais.
Na sociedade pós-industrial, a criatividade torna-se mais im-
portante que a produtividade. A vida social deixa de ser centrada na
produção de bens materiais, para se concentrar na produção de infor-
mações, valores, estética, entretenimento. Cresce a importância de
indivíduos e grupos criativos como os esportistas, cientistas, artistas
e intelectuais.
Outra coisa: a expectativa de vida dobrou em duas gerações,
enquanto nas gerações precedentes tinha-se mantido inalterada. Hoje
homens e mulheres vivem cerca de 600 mil horas, enquanto o homem
de Neandertal vivia 300 mil e os bisavós do homem de hoje viviam
350 mil horas. Esses bisavôs deixavam de trabalhar em torno de 50
anos e depois morriam. Sabiam que toda a sua vida estava reduzida
ao trabalho e o colocavam no centro de sua existência. Mas, com o
aumento da expectativa de vida, o trabalho não terá mais esse signifi -
cado totalizante. Porém, a ideologia “trabalhista” ainda prevalece. O
indivíduo não é educado para o tempo livre. A família e a escola educam
105Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
apenas para o trabalho. E o trabalho representa apenas um sétimo da
existência humana – o restante corresponde à infância, velhice, sono,
descanso etc.
A administração do tempo é fundamental para a criatividade,
porque a criatividade se nutre de ócio. Para ter idéias é preciso tempo
para introspecção. O homem moderno, além de ter muito mais tempo
livre do que seus antepassados, dispõe de mais instrumentos para
administrá-lo. Cerca-se de relógios precisos, secretárias eletrônicas
que recebem mensagens, anda com telefones celulares que permitem
economizar tempo, pode ouvir rádio enquanto dirigir o carro. Não
obstante, a sensação de não ter tempo é enorme. Há uma sensação
de estar sempre atrasado.
A redução da jornada de trabalho, mais tempo livre, pode servir
de antídoto ao controle burocrático dentro das organizações. Quanto
mais há controles, mais se destrói a motivação. O controle é o reino da
burocracia. A motivação é o reino da criatividade. A burocracia é o seu
grande inimigo. Burocracia signifi ca não ter fantasia, essa manifestação
do inconsciente que nutre a criatividade.
O sociólogo italiano Domenico de Masi desenvolve a tese do
ócio criativo, dá um conteúdo moral ao ócio, no sentido de que, se o
ócio disponível não for usado para “o bem”, isto é, para a acumulação
capitalista (ou qual seja o nome que lhe dê), deixa de ter signifi cado.
Paul Lafargue, assim como os gregos antigos, não tinha essa restrição.
Daí a ética da preguiça.
106 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
À guisa de conclusão… fragmentos de um discurso
Em uma palestra recente, o autor deste artigo argumenta:
Na década de 1990 ressurgem essas teses, com o grupo Krisis, da
Alemanha — “O manifesto contra o trabalho” e, entre outros, Dome-
nico De Masi, com a teoria do ócio criativo. Para De Masi, o ócio, mais
tempo livre, deve ser implementado nas organizações para o combate
à burocracia. A burocracia é inimiga da fantasia, essa manifestação
do inconsciente. Na sociedade pós-industrial que vivemos, o mais
importante é o desenvolvimento de criatividade. Sessenta a 70% dos
trabalhadores atuais são trabalhadores do conhecimento.
Aí, duas coisas: 1º) longas jornadas não torna o trabalhador do
conhecimento mais produtivo. Se você dobrar a jornada de um traba-
lhador braçal – operador de máquinas ou uma faxineira – certamente
haverá aumento de produção. Dobrando a jornada de um trabalhador
do conhecimento, isso não resulta em maior criatividade.
Quando temos as nossas melhores idéias?
— Ricardo Reira (para um assistente na platéia), quando você
tem suas melhores idéias?
— Quando tomo uma!...
— Certamente nossas melhores idéias surgem não é no horário
que assinamos o “livro do ponto”…
2º) Não há uma fronteira nítida entre trabalho e não-trabalho
para o trabalhador do conhecimento. O que estamos fazendo aqui
agora? É trabalho? É educação? É diversão? Será arte? Alguns, como
os professores, poeta e o capoeirista aqui presentes devem estar se
divertindo muito.
107Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Daí que, redução da jornada, mais tempo livre, estimula a criati-
vidade, reduz a burocracia, e podemos ter melhor qualidade de vida e
participarmos de organizações melhores. O ócio pode não ser criativo,
levar ao tédio ou ao consumismo; o ócio, enquanto redução da jornada,
pode signifi car mais postos de trabalho. E na sociedade pós-industrial,
onde a máquina libera o homem da fadiga, do trabalho repetitivo,
alienante, infelizmente também tem desempregado, excluído os indi-
víduos dos benefícios criados pela tecnologia. A renda é cada vez mais
concentrada e a tecnologia não promove o bem-estar social.
— Que fazer?
Os críticos afi rmam que o modelo comunista demonstrou saber
distribuir a riqueza, mas foi incapaz de produzi-la; assim como o mo-
delo capitalista está demonstrando que consegue produzir riqueza, mas
não consegue distribuí-la. E apontam a necessidade de uma terceira
via, que ninguém sabe direito o que é: social liberalismo, liberalismo
social? Muitos falam da terceira via: Bobbio, Merquior, De Masi, Clin-
ton, Tony Blair, FHC, Mangabeira Unger, Ciro Gomes… todos falam na
terceira via.
Bem, nós trabalhadores, independentemente dessa discussão,
devemos resgatar a bandeira de Paul Lafargue, o direito à preguiça,
e lutar por mais tempo livre contra a exploração do trabalho, que se
estabelece com o não-pagamento de horas trabalhadas para a extra-
ção da mais valia; lutar por tempo livre para nos dedicarmos às nossas
famílias, à leitura, ao amor, ao sexo, a passeios, à prosa & à glosa,
ao “não fazer nada”, ao pôr-do-sol e ao nascer da lua, ao prazer e a
felicidade. E dessa maneira podermos seguir a vocação caymmica,
macunaímica do brasileiro, espreguiçarmos em uma rede e dizer: Ai,
que preguiça!
108 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Referências
ALBAN, Marcus. Crescimento sem emprego. Salvador: Casa da Qualidade, 1999.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? SP: Cortez; Campinas: Ed. UNICAMP, 1998.
DE MASI, Domenico. A Sociedade Pós-Industrial. SP: Editora SENAC, 1999.
_________________ . O Futuro do Trabalho. RJ: José Olympio, 1999.
_______________. A Razão e a Regra. RJ: José Olympio, 1999.
_________________ . Desenvolvimento sem trabalho. SP: Ed. Esfera, 1999.
DEJOURS, Christophe. A Banalização da Injustiça Social. RJ: Ed. FGV, 1999.
D’INTIGNANO, Béatrice. A Fábrica de Desempregados. RJ: Bertrand Brasil, 1999.
LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça. SP: Kairós, 1983.
KURZ, Robert e outros. Manifesto Contra o Trabalho. SP: GEOUSP, 1999.
RIFKIN. Jeremy. O Fim dos Empregos. SP: Makron, 1996.
SENNET, Richard. A Corrosão do Caráter. SP; Record, 1999.
ARTIGOS DE PERIÓDICOS E AVULSOS
A TARDE. Bancários paralisam agências e podem decretar greve geral. 8 out. 1999. Local-3
EXAME. Ócio criativo. Entrevista com Domenico de Masi. 24 mar.1999, pp. 62-68
VASCONCELOS. Nilton. Sobre a redução da jornada de trabalho in GAZETA MERCANTIL, 16 jul.1998, p.3.
Carnaval, democracia e discurso: uma proposta de análise social, política e econômica
Verbena CórdulaDoutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid, professora da Faculdade 2 de Julho e da rede pública estadual de ensino da Bahia.E-mail: [email protected]
ResumoMuitos podem ser os olhares sobre o Carnaval. A beleza, o glamour, o aquecimento turístico, a projeção do Bahia para o mundo podem ser alguns deles. A partir de uma visão crítica da construção discursiva, este trabalho propõe uma outra tipologia de olhar, o refl exivo, que remete a uma análise desta expressiva representação da cultura brasileira com base em uma comparação com as características sociais e econômicas do País, notadamente aquelas que demarcam “o lugar de cada um” no cenário social, político e econômico.
Palavras-chaveCarnaval, Bahia, construção discursiva, exclusão
05
113Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Introdução
É indiscutível o valor cultural do Carnaval da Bahia, considerando
cultura a partir de uma perspectiva analítica ampla, qual seja aquela
que a conceitua como sendo uma dimensão do processo social, da
vida de uma sociedade, a fusão de todos os aspectos da vida social,
assinalada na obra de José Luiz dos Santos (1996).
Passando para uma análise mais pragmática pode-se afi rmar que
o Carnaval baiano é uma das maiores expressões de beleza, hibidris-
mo e projeção cultural do País para o resto do mundo. Contudo, há
outras perspectivas possíveis de análise dessa grandiosa festa popular
brasileira, notadamente não vista com “bons olhos” por aqueles que
se recusam a enxergar essa expressão da cultura baiana a partir de
um prisma mais crítico, remetendo a um olhar do Carnaval como um
“espelho” da realidade do Brasil, do ponto de vista social, político e
econômico.
A maioria dos discursos que estamos acostumados a ouvir e até
mesmo a reproduzir, nos sugere o Carnaval apenas como uma festa onde
reina a beleza, a participação multirracial, o aquecimento das ativida-
des ligadas ao turismo – a geração de emprego e de renda, sem contar
com a projeção da Bahia e do Brasil no cenário internacional, dado
o contingente de turistas estrangeiros que anos após anos “invade” o
circuito da festa, desfrutando de todas as maravilhas por ela oferecidas
e conseqüentemente divulgando em seus países de origem.
No entanto, o Carnaval da Bahia é um verdadeiro “laboratório”,
através do qual os que detêm uma visão mais aguçada podem enxergar,
sem o auxílio da microscopia, a “composição celular” da sociedade
114 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
brasileira, com todas as suas contradições. O convívio entre o lixo e o
luxo; a diversidade étnico-cultural e a chamada democracia racial con-
trastando com as atitudes cotidianas de falta de respeito a essa mesma
diversidade; são algumas das barreiras que separam rico de pobre, que
se confi guram no dia-a-dia da realidade não apenas do estado da Bahia
ou da cidade do Salvador, mas do País como um todo.
Pretende-se aqui, sugerir, de maneira suscinta, um questiona-
mento mais profundo da realidade que permeia o Carnaval da Bahia,
objetivando contribuir para uma discussão mais aberta, a fi m de des-
mistifi car a falsa idéia já enraigada em nossa sociedade – salvo algumas
exceções – de que a democracia reina nesta grande festa popular e
que, sobretudo, nos dias quando são realizados estes festejos, a cida-
de se torna uma só, envolta no “manto sagrado” da diversidade e da
harmonia, como querem fazer pensar aqueles desprovidos – mesmo
inconscientemente – do compromisso com a construção de uma socie-
dade de fato mais democrática.
Democracia restrita
Desconsiderar a existência de caráter excludente e segregador
do Carnaval não somente confi gura uma atitude pouco crítica em rela-
ção a um “recorte” da realidade brasileira, senão um comportamento
talvez perverso que tenta encobrir as mais diversas situações degra-
dantes contidas nesta festa, uma reprodução, em uma escala menor,
das mazelas sociais como o desemprego, o racismo, a criminalidade, a
violência policial, os discursos demagógicos de políticos profi ssionais,
dentre outras. O Carnaval baiano deve ser encarado como um “labo-
115Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
ratório” sociológico, econômico e político que pode contribuir para
o questionamento do discurso de democracia que impera em nossa
sociedade.
A democracia atualmente reinante do País, por mais paradoxal
que possa parecer, está muito mais próxima à democracia ateniense
da Grécia Antiga do que daquela idealizada pelos revolucionários li-
berais do século XVIII, cujos marcos foram as Revoluções americana e
francesa – 1776 e 1789, respectivamente –, tendo esta culminado com
a Declaração dos Direitos do Homem.
Em Atenas, ainda que a instituição do regime democrático tenha
signifi cado um avanço extraordinário no sistema político da época,
prevalecia uma signifi cativa parcela de exclusão, já que nem todos
conquistaram o direito à cidadania, ou seja, o direito de participar
ativamente das decisões importantes da vida na Pólis.
A democracia dos antigos era restrita, tanto no sentido de que excluía grande parte da população da vida políti-ca, quanto no sentido de que aqueles que teoricamente deveriam ter acesso a ela, na prática, não usufruíam igualmente nem dos direitos políticos, nem dos bens materiais produzidos naquele momento. A democracia que assegurava, no plano formal, a igualdade política a todos os cidadãos, no plano real convivia com uma desigualdade material, o que, certamente, expressava o caráter limitativo da participação política (CABRAL NETO, 1997, 5).
Da mesma maneira pode ser observada a democracia no Estado
brasileiro. Tal como ocorre em muitos outros espaços públicos mundiais,
o questionamento acerca da efi cácia da democracia, ou mesmo de sua
operacionalidade se coloca no sentido de que ainda não foram edifi cadas
as condições que permitam estabelecer uma igualdade de bem-estar
para todos os segmentos destas sociedades. Não basta a democracia
116 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
representativa, é mister a ampliação do acesso, irrestrito, a essas
condições de bem-estar. E, ao observarmos a realidade cotidiana, no
Brasil isso parece estar longe de se tornar uma realidade objetiva.
Ao direcionar um olhar mais crítico sobre o Carnaval da Bahia,
comparando os cenários neles contidos e o cotidiano da realidade social,
é possível observar como esta situação está bem demarcada. Pode-se
ver, a partir desse olhar mais profundo, o que se tenta camufl ar o tempo
todo no Brasil: miséria, exclusão, violência, segregação, a partir de um
discurso apaziguador, no qual fi guram os espforços para a geração de
emprego e de renda, para o aparelhamento policial repressor, para a
disseminação de justiça social, proferido cotidianamente por aqueles
que estão no comando da máquina administrativo-fi nanceira do País.
Esses discursos dão a sensação de um Brasil no caminho para
aniquilar as mazelas sociais, quando em realidade não é isso que se
constata se se direciona um olhar mais refl exivo à realidade cotidiana
do País. Sobrepõe o discurso da inefi ciência, do fracasso do Estado, dito
democrático, que deveria estar muito mais em evidência.
Realidade, discurso e poder
O Brasil nunca exportou como nestes últimos tempos. São mais
de US$ 100 bilhões em exportações. No entanto, o País está como um
dos piores no que se refere à distribuição de renda. Salvador, em par-
ticular, lidera o ranking nacional do desemprego; os demais municípios
brasileiros amargam números igualmente desalentadores, sem contar
o desmantelamento do sistema de saúde, o descaso com a educação,
entre outros. No entanto, a compreensão desse paradoxo requer alguns
questionamentos: na prática, para onde estão sendo canalizados estes
117Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
recursos? Quem, na realidade, lucra com esses expressivos valores? Os
dados mostram que, se por um lado a balança comercial nunca esteve
tão bem, o sistema fi nanceiro nunca antes na história da República
esteve tão satisfeito com os resultados obtidos.
Da mesma maneira pode-se analisar o Carnaval. Não há como
negar o volume de renda movimentado por esta festa, particularmente
na capital. Contudo, é necessário averigüar quem se benefi cia, majori-
tariamente, destes montantes. Pode-se afi rmar, sem medo de equívoco,
que os resultados altamente satisfatórios do Carnaval acabam fi cando
para os “pequenos-grandes” grupos, a exemplo dos setores hoteleiro, de
comunicação de massa, de grandes entidades carnavalescas e artistas
renomados, sem deixar de lado as cervejarias, dotados, inclusive, do
“poder” de determinar o lugar de cada grupo na festa.
No entanto, um discurso, muito bem construído, disseminado
principalmente pelos meios de comunicação de massa, propaga que
o Carnaval gera uma quantidade expressiva de emprego e de renda,
sem detalhar como se confi gura essa distribuição, as proporções destes
ganhos, não fi cando claro, portanto, quem, de fato, se apropria “do
maior pedaço do bolo”.
Considerando estes aspectos, é importante direcionar especial
atenção à construção de tais discursos, objetivando possiblilitar a
detecção do sentido dessas construções, atentando para os “ingre-
dientes” socioculturais que as caracterizam. Como bem adverte Milton
José Pinto:
Defi nir os discursos como práticas sociais implica que a linguagem verbal e as outras semióticas com que se constroem os textos são partes integrantes dos contextos sócio-histórico e não alguma coisa de caráter puramente instrumental, externa às pressões sociais [...] (PINTO, 1999, p. 28).
118 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Assim, ao analisar discursos é necessário o interesse tanto pelo
que o texto mostra quanto, sobretudo, para como e por que o diz e
mostra, conforme assinala Pinto. Signifi ca afi rmar, em última instância,
o caráter ideológico da construção dos discursos, aspecto relevante e
imprescindível a ser considerado no processo interpretativo.
A partir desta perspectiva deve ser o olhar remetido aos discur-
sos sobre o Carnaval não somente do ponto de vista econômico. Ao
analisarmos as construções discursivas acerca da diversidade e har-
monia racial, por exemplo, necessário se faz enxergar além da mera
aparência. Apesar de ser inegável esse caráter multirracial contido na
festa, é indiscutível, também, analisamos sob um prisma mais amplo,
a expressiva segregação existente no referido ambiente.
Há um contraste visível – para alguns e para outros nem tan-
to: no lado mais glamuroso da folia se encontra um grupo, formado
majoritariamente por indivíduos “brancos” e economicamente mais
abastado, usufruindo nos camarotes, com todo o conforto, tomando
uísque importado, comendo canapés e até mesmo estabelecendo laços
para a realização de futuros negócios lucrativos, outros no meio da
folia, nos milionários blocos.
Contrastando com o cenário anterior se encontra o segundo
grupo, dividido em subgrupos, formado majoritariamente por “pre-
tos” e pobres, “usufruindo” do lado mais “pesado” da festa, menos
glamuroso: parte carregando caixas na cabeça, buscando garantir a
susbsistência por alguns dias; outros trabalhando como seguranças nas
portas dos luxuosos camarotes ou mesmo no interior deles, na qualidade
de meros serviçais; aqueles distribuídos na segurança dos blocos para
garantir o conforto e a integridade física dos foliões mais abastados;
outra parcela espalhada pelo circuito da festa praticando crimes, co-
119Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
locando em evidência a dura realidade brasileira das grandes cidades
no cotidiano e um outro subgrupo assumindo o papel de “carrasco”,
esbanjando violência física em nome da manutenção da ordem, da
mesma maneira como é “mantida” no cotidiano da cidade, através da
prática da violência contra aqueles excluídos que encontraram no delito
a maneira de “sobreviver” nesse cenário tão segregador, demarcador
do “lugar de cada um”.
Por último, uma parcela intermediária, que não faz parte nem do
primeiro e nem do segundo grupos, para quem tudo é maravilhoso, para
quem o Brasil é o lugar dos sonhos, onde não há racismo e sim integração
social; para quem Salvador é linda e, por fi m, para quem o Carnaval é
uma festa lucrativa para todos e deveria durar muito mais.
A divisão do Carnaval, sobretudo aquela demarcada pelo primeiro
e segundo grupos, encerra o cenário bem existente e pouco discutido
no País, que é a coexistência de dois lado antagônicos que o historia-
dor Luís Mir aborda com muita propriedade em sua obra Guerra Civil
– Estado e Trauma:Para os mais ricos – incluindo o próprio Estado – o controle social tem o status de sobrevivência: dos corpos, das casas, dos locais de trabalho, de lazer e das escolas. Mas o problema não é criminal e, sim, de ordenação social e econômica, de dominação [...] Não houve, no século passado recém-fi ndo, qualquer alteração da simetria e da relação de forças entre a velha ordem (dominante) e a ordem democrática (coadjuavante) dentro da sociedade brasileira [...] (MIR, 2003, p. 149).
Ainda acompanhando o raciocínio do historiador:
O edifício social brasileiro é invenção do escravismo. Marcou seu território, os espíritos e determina, ainda hoje, as vias de acesso social e econômico deste país. A territorialização continua seletiva; os recursos nacionais são utilizados a serviço de determinados grupos sociais; as migalhas para a maioria da sociedade (SANTOS apud MIR, 2003, p. 104).
120 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Todavia, os discursos historicamente construídos tentam, na
maioria das vezes, desviar a atenção do corpo social como um todo
para estas problemáticas, colaborando, de maneira signifi cativa, com
o fomento do status quo tão favorável a setores privilegiados, que “se
nutrem” desta situação.
Geopolítica do Carnaval
Considerando essa perspectiva analítica pode-se inferir que há
uma “guerra” no Brasil, com dois lados demarcados, todavia nem sem-
pre claros para a maioria: os excluídos e os que lucram com a exclusão.
E essa fronteira se refl ete também no Carnaval, mais notadamente em
Salvador.
Se observados com minúcia, os camarotes representam os con-
domínios fechados, que em nome da segurança abrigam quem pode
pagar caro. É a maneira mais prática de “equacionar” o problema da
falta de segurança no País, que deveria ser encarada a partir de outro
prisma, aquele que remete a uma análise mais ampla, direcionando a
questão para a observância de temas ligados à distribuição de renda
e de justiça social.
Os condomínios são falsas “fortalezas” e nada mais fazem do
que favorecer o mercado imobiliário, as empresas de segurança, que
a cada dia se consolidam como uma necessidade, em deterimento de
uma refl exão social acerca da urgência de se transformar as estruturas
do Brasil. Cotidianamente setores privilegiados buscam encobrir essa
cruel realidade. E quando alguns questionam a visível exclusão socio-
econômica, as políticas aplicadas são vergonhosamente paliativas. O
121Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
que prevalece mesmo é o “salve-se quem puder” (pagar).
Do mesmo modo ocorre com o Carnaval da Bahia. O colapso e a
própria exclusão visivelmente demarcados nesta festa começam a ser
questionados por alguns setores – principalmente aqueles formados
por grupos vitimados pela exclusão – e em conseqüência disso medi-
das paliativas vêm sendo adotadas, a exemplo do retorno da festa aos
bairros. No entanto, esses circuitos não estão sendo dotados das mes-
mas estruturas dos circuitos consagrados, que há tempo se tornaram
as vitrines que servem para vender a imagem de uma Bahia linda e
maravilhosa e da melhor e mais linda festa do mundo.
Essas iniciativas não fazem desarticular as segregações existentes
no Carnaval, mas confi rmá-las, na medida em que servem para “pulve-
rizar” as exclusões e as outras mazelas delas oriundas, “desafogando”
um pouco mais os circuitos elitizados. Isso também ocorre em nível de
política nacional. Instituem-se medidas paliativas, como as cotas, as
bolsas, que não são e jamais serão – principalmente pela maneira como
foram implantada – capazes de solucionar o grande abismo que separa
ricos e miseráveis da sociedade brasileira. Servem apenas para camufl ar
e mesmo barrar uma eventual insurreição. Há quem afi rme o caráter
temporário destas medidas e a necessidade de defendê-las enquanto
ações transformadoras não chegam; mas a realidade não sinaliza para
essa transformação e, sim, para a consolidação desse tipo de política.
Seria necessário ir além das medidas atenuantes, já que
a geopolítica urbana do Estado brasileiro colocou as populações brasileiras em luta permanente entre si e nos fez retroceder àquele estado de natureza, no qual os homens se assumiram, não como os bons selvagens, mas como os predadores cruéis. As cidades brasileiras foram moldadas como um espaço de derrota privada, não limitadas pela moral, pelo direito e pela natureza, mas por quem vence. Territorializou as segregações sociais,
122 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
econômicas e políticas, quando estabeleceu a fronteira física entre habitantes de um mesmo território, quando traçou uma linha que, conforme Nicolas Poulantzas, serve para separar e dividir, cortar para quadricularizar, celulizar para englobar, segmentar para homogeneizar, individualizar para esmargar as alteridades e as diferen-ças. (MIR, 2003, p. 650).
Analogicamente, o mesmo acontece com a “geopolítica do Car-
naval” de Salvador: demarca fonteiras físicas, sociais, econômicas,
segmenta, individualiza e “esmaga”. No entanto, sobretudo a partir e
através dos discursos apaziguadores, forja-se uma realidade imagética
de perfeita harmonia, que cristalizam as mazelas sociais reproduzidas
no circuito da festa, sem que se aguçem as percepções da maioria dos
sujeitos sociais a fi m de possibilitar formas diferentes de visualização
dessa inegável representação da cultura brasileira.
Como bem afi rma Foucault em A ordem do discurso, é impossível
qualquer instituição se sustentar se não estiver lastrada por um dis-
curso pautado, permanentemente, em linguagem favorável. Somente
assim as instituições continuam a fazer sentido e, principalmente, a
produzir poder.
Corroborando com essa análise foucaultiana, a sustentação de um
Estado excludente continua vigorando no Brasil, lastrada por discursos
sofi stas que buscam criar uma sensação de melhoria nas condições
sociais e econômicas no País, quando a realidade palpável demonstra,
através de variados indicadores – entre eles os índices de desemprego,
de homicídio, de educação e de saúde, por exemplo – que as condições
objetivas de existência de uma quantidade expressiva da população
continuam abaixo do aceitável, tomado como parâmetro o necessário
a uma sobrevivência digna. E, por conseguinte, a sustentação das
condições do Carnaval baiano segue a mesma trilha, sedimentada por
123Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
construções discursivas que não proporcionam uma visão mais ampla e
crítica acerca deste objeto e, portanto, colaboram para a manutenção
de uma “praça de guerra” camufl ada de “espaço democrático” onde
reina a diversidade, como se os antagonismos e os choques fossem
meros detalhes não signifi cativos.
[...] em toda sociedade a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e re-distribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
Referências
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PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso: introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker, 1999.
MIR, Luís. Guerra Civil – Estado e trauma. São Paulo: Geração Editorial, 2004.
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estudos Psicológicos, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/epsic/v2n2/a05v02n2.pdf. Acessado em 15 de abril de 2007.
SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura? São Paulo: Brasiliense, 1996.
Os estudos culturais como ferramentas para compreensão da cultura organizacional: aproximações conceituais
Ana Claudia Freitas PantojaMestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA.Docente da Faculdade 2 de Julho (Salvador-BA).E-mail: [email protected]
ResumoPartindo da crítica a alguns modelos comunicacionais implícitos em publicações sobre Comunicação Organizacional, sobretudo os que sugerem fluxos unidirecionais e verticalizados de informações, este artigo defende como alternativa a adoção de mecanismos interdisciplinares de análise. Em especial, são expostos conceitos vinculados aos Estudos Culturais que podem ser de grande aplicabilidade nas pesquisas sobre Cultura Organizacional, preenchendo lacunas signifi cativas. Os pontos selecionados visam ao desenvolvimento de um referencial teórico mais condizente com a complexa realidade das organizações na contemporaneidade.
Palavras-chaveComunicação organizacional; cultura organizacional; teorias da comunicação; estudos culturais.
06
127Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A Comunicação na Organização é uma seara de trabalho e es-
tudo híbrida. Assim o determinam sua trajetória histórica, graus de
diversifi cação (as formas possíveis são diretamente proporcionais ao
número de organizações existentes) e variação de correntes teóricas
que lhe desvendam a forma e conteúdo. A Administração de Empre-
sas, as Relações Públicas, o Jornalismo, a Psicologia e Antropologia
são apenas algumas áreas que lançam seus olhares sobre os processos
comunicacionais desencadeados no universo das fábricas, escritórios,
ONGs, etc. Cada uma dessas vertentes introduz perspectivas peculiares,
cria soluções específi cas e enfrenta seus próprios limites. Porém pouco
intercambiam experiências. Àquele interessado em enveredar pelos
espinhosos (e fascinantes) meandros da Comunicação Organizacional,
cabe a tarefa de colher informações em fontes múltiplas, tornado-se
não um especialista em todos os campos de conhecimento, mas alguém
capaz de reconhecer, apreender e articular conceitos provenientes de
práticas bem diversas.
No entanto, até se chegar a este verdadeiro ponto de interseção,
muitos obstáculos tem de ser vencidos, tanto por profi ssionais quanto
por pesquisadores. Primeiro, há a questão da terminologia vinculada
a cada domínio acadêmico. Depois estão as premissas que regem as
linhas de pensamento. Por último, o volume de pesquisa é tamanho,
que optamos quase sempre pelo foco no que vou chamar de “elemento
aglutinador”. Um psicólogo, ao recorrer a um conteúdo de Relações
Públicas, por exemplo, tende a concentrar-se num elemento teórico que
lhe pareça mais próximo dos estudos em psicologia, para daí esboçar
uma argumentação coerente. Algo que, convenhamos, soa bastante
natural. Contudo, essa iniciativa pode afastar o investigador daquilo que
as Relações Públicas podem oferecer de novo, de diferente no exame
128 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
de um assunto, em relação à Psicologia. Buscando continuamente o
semelhante, corremos o risco da repetição ou pelo menos o perigo de
caracterizar de maneira simplória uma realidade complexa.
É exatamente em alguns desses “elementos aglutinadores” que
boa parte dos estudos sobre Comunicação Organizacional estão se
detendo, mais particularmente aqueles desenvolvidos originalmente
na área de Administração e que procuram referências no âmbito da Co-
municação Social. Buscam eles, na “Teoria da Comunicação”, modelos
que permitam compreender o câmbio de informações em geral.
Por “Teoria da Comunicação”, compreende-se o amplo estudo de
correntes e escolas diversas que analisam os grupos sociais, a mídia,
as formas de consumo do público e a interação entre esses elementos.
Nesse rol inclui-se desde os primeiros esboços sobre os veículos de
comunicação de massa até o novíssimo mundo digital. Até tudo bem.
O problema é que uma parcela signifi cativa das pesquisas em Comuni-
cação Organizacional estaciona nas teorias comunicacionais ditas de
caráter “administrativo”, achando que elas provavelmente são mais
aplicáveis ao contexto organizacional. Com isso, excluem-se as análises
mais recentes, inovadoras e instigantes sobre comunicação.
Um caso bem comum é o uso de modelos que inserem o processo
de troca de informações no contexto do sistema. Neles, a comunicação
evita o isolamento total entre as partes, detecta possíveis ameaças
ao todo e repassa dados da cúpula do sistema para os segmentos
periféricos. Analogias biologizantes são muito úteis nessas situações,
quando a comunicação chega a ser comparada ao sistema circulatório
humano. Ela existe para garantir equilíbrio do sistema e representa a
manutenção da ordem e do status quo (WOLF, 1987, p 55-59). Aplique
essa idéia à organização e o resultado é uma análise que privilegia as
129Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
vias ofi ciais de comunicação, reconhecendo (às vezes indiretamente)
os fl uxos informais como potencialmente nocivos.
Outra vertente que pode facilmente seduzir é a que aproxima o
funcionamento da comunicação ao de aparelhagens mecânicas. Numa
situação em que a troca de informações não dá o resultado previa-
mente determinado, fala-se simplesmente em “ruídos”, como se um
fi o telefônico invisível conectasse os interlocutores e o sinal sofresse
interferências externas. A mensagem é tida como uma questão clara.
Os receptores devem estar munidos dos “equipamentos” adequados
para a decodifi cação. Resta ao especialista deixar o ambiente livre de
obstáculos (MATTELART, 2001, p. 53-55). O fator humano, seu imenso
potencial de atribuir signifi cações diversas, de captar nuances e inter-
pretar até mesmo a linguagem não verbal fi cam de fora das análises.
Há ainda a tentativa de supor a Comunicação Organizacional
como um elemento que desmobiliza inteiramente tensões internas e
externas, construindo uma situação hipotética em que todo o confl ito
é transformado em anuência, em mobilização em prol de uma causa
comum – a organização. Nessa perspectiva, a comunicação e seus recep-
tores são localizados em posições assimétricas: um, superestimado em
seu poder de persuasão; o outro, transformado num elemento cordato
no processo. Ora, o quadro exposto não difere muito dos primeiros
modelos comunicacionais, datados do início do século passado, que
caracterizam o emissor (os meios de comunicação de massa) como
onipotentes e o público como absolutamente passivo na sua forma de
consumo. Sob essa ótica, se uma pessoa é exposta ao conteúdo da mídia
ou de força equivalente, pode ser “controlada, manipulada, levada a
agir” (WOLF, 1987, p 23). Automática e acriticamente.
O curioso, no entanto, é notar a aplicação desses exemplos em
130 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
textos que, em suas introduções, adotam um discurso bem diferente
sobre a Comunicação nas Organizações. Não é raro encontrar artigos
e livros que falam da necessidade de reconhecer e trabalhar em par-
ceria com a rádio peão1, em fl uxos multidirecionais de comunicação e
com fl exibilização organizacional na troca de dados, mas que, lá pela
metade do caminho, utilizam modelos verticalizados de comunicação.
Há uma discrepância, às vezes inconsciente, entre os fragmentos do
discurso, o que denota – a meu ver – uma realidade incômoda: sabe-se
o destino almejado (a democratização da informação e seus processos),
porém não se conhece ainda as formas ideais para atingi-lo. A redução
da Comunicação Organizacional a alguns gráfi cos, repletos de setas,
círculos e pontos de confl uência não parecem tão convincentes, nem
facilmente aplicáveis à prática.
Na busca pela resolução desse dilema crítico e central, algumas
teorias comunicacionais menos próximas da esfera administrativa tra-
dicional, portanto distante dos “elementos aglutinadores”, podem ser
úteis. Vejamos um exemplo.
Uma das idéias mais propagadas no universo da Comunicação
Organizacional nos últimos anos é a de Cultura Organizacional. Autores
falam sobre a necessidade de examiná-la o mais detalhadamente pos-
sível, traçando um diagnóstico sério antes de qualquer tarefa propria-
mente dita, a fi m de desenvolver projetos comunicacionais adequados
à realidade de cada organização. O que faz todo o sentido.
Mas, apesar da veemência da proposta, constata-se que uma
questão-chave permanece intocada pelos pesquisadores. Um ponto de
partida fundamental é ignorado (o que é estranho em se tratando de
textos em formato acadêmico). Onde está, afi nal, o próprio conceito
de cultura, que deveria anteceder ao de cultura organizacional?
131Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Na maioria dos textos, simplesmente não está em lugar algum.
É exatamente no preenchimento dessa lacuna existente em boa
parte da bibliografi a sobre Cultura e Comunicação Organizacionais
que Teoria da Comunicação pode oferecer o suporte necessário. Mais
particularmente através das pesquisas dos chamados Estudos Culturais.
E aqui reside o objetivo deste artigo: ele trata de aproximar conceitos
oriundos dessa linha, os Estudos Culturais, ao que chamamos de Cultura
Organizacional.
Cultura Organizacional
Vejamos como alguns autores defi nem Cultura Organizacional.
Para Idalberto Chiavenato, trata-se da “maneira costumeira ou
tradicional de pensar e fazer as coisas que é compartilhada por todos
os membros da organização e que os novos membros devem aprender
e concordar para serem aceitos no serviço da organização” (CHIA-
VENATO, 1999, p. 139). Perceba a ênfase no aspecto concordância /
compartilhamento.
Sidinéia Freitas também aborda o tema sob o ponto de vista do
consenso, porém sinaliza a questão das relações de poder, associando
a cultura organizacional a
um conjunto de valores e pressupostos básicos, expres-sos em elementos simbólicos que em sua capacidade de ordenar, atribuir signifi cações, construir a identidade or-ganizacional, tanto age como elemento de comunicação e consenso como instrumentaliza as relações de dominação (FREITAS, 2005, acesso em:19 set., 2005).
Já Cahen é ainda mais incisivo. Para ele, cultura organizacional
132 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
é um imperativo mero e simples de instâncias superiores, constituindo-
se no “somatório de idiossincrasias pessoais de diretores passados e
presentes, fundadores, chefes de setor mais poderosos, imposições
de situações ocorridas no passado e que continuam sendo praticadas”
(CAHEN, 2003, p. 59).
Em contraponto a este último, nem todos os autores concordam
com uma defi nição que se restrinja à determinação de diretores e chefes
em geral. Vários identifi cam a criação, desenvolvimento, manutenção
e abrangência da cultura organizacional como instâncias de decisão
coletivas. Andréa Clara Batista, por exemplo, menciona explicitamente
as relações afetivas, emocionais e profi ssionais entre todo o corpo de
funcionários e a organização como partes desse processo (BATISTA,
2006, acesso em: 12 mar. 2007).
Mônica Alvarez também deixa clara a vinculação entre cultura
organizacional e compatibilização entre os interesses dos empregados
e os da empresa, enfatizando a troca de experiências em todos os níveis
hierárquicos (ALVAREZ, 2006, acesso em: 12 mar. 2007).
A unanimidade entre os autores reside no fato de todos reco-
nhecerem as atividades de Comunicação Organizacional como um
mecanismo indispensável na consolidação ou transformação da Cultura
Organizacional. Andréa Clara Batista é enfática nesse ponto, afi rman-
do que uma estrutura de comunicação profi ssionalizada é crucial na
incorporação de novos valores e processos de gestão durante o desen-
volvimento de atividades cotidianas pelo público interno (BATISTA,
2006, acesso em: 12 mar. 2007).
Nessa ânsia pelo diagnóstico e modifi cação de Culturas Orga-
nizacionais, alguns autores descrevem a relação entre mecanismos
comunicacionais e Cultura na Organização como um casamento idíli-
133Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
co. Para eles, mudando o teor das mensagens e suas formas de envio,
transforma-se a cultura de uma organização.
Ora, a prática de profi ssionais em comunicação seriamente
comprometidos com ideais de mudança, trabalhando diariamente com
os dilemas internos, tensões e confl itos de interesses em organizações
diversas, não coaduna com essa lógica de maleabilidade simplista.
Seria preciso ampliar e aprofundar a concepção de cultura, de manei-
ra a dar conta, ou pelo menos estreitar, a distância entre conceitos
e observações empíricas. Abandonando uma visão linear de cultura
(tida como um conjunto de valores facilmente moldável), temos de
buscar em outras referências as ferramentas para a construção de uma
Comunicação Organizacional mais efi caz. Os Estudos Culturais são uma
dessas alternativas.
Os Estudos Culturais
Em primeiro lugar, é importante frisar que os Estudos Culturais
lidam com a comunicação também. Isto é, não tratam exclusivamente
dela. Estão ainda englobadas como áreas de interesse: a História, a So-
ciologia, a Lingüística, Etnografi a, etc. Essa abordagem interdisciplinar
é exatamente uma das marcas do movimento, iniciado na Inglaterra
dos anos 502, que visa a analisar fenômenos sociais sob o ponto de
vista da cultura.
Quatro autores são especialmente felizes na caracterização dos
Estudos Culturais: Mauro Wolf; Armand e Michèle Mattelart; e Ana Caro-
lina Escosteguy. Sobretudo esta última consegue traçar um painel bas-
tante interessante, reunindo as coordenadas essenciais da teoria através
134 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
de um estilo claro e fl uente. Contudo, em razão da clara e necessária
brevidade do formato “artigo”, vou restringir a discussão aos conceitos
mais diretamente aplicáveis à Comunicação Organizacional.
Heterogeneidade
Um avanço importante introduzido pelos Estudos Culturais é a
concepção de que cultura “não é uma entidade monolítica ou homo-
gênea” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 156). Muito pelo contrário. Trata-se de
uma formação social histórica complexa e multifacetada. Segundo Wolf,
um espaço de negociação entre práticas comunicativas diferenciadas,
às vezes extremamente diferenciadas (WOLF, 1987, p. 95).
A conseqüência natural dessa compreensão é a queda do mito
de que o público interno de uma organização é um todo coeso. Reúna
um grupo de funcionários numa sala e exiba um vídeo. Partindo do
pressuposto de uma cultura inteiramente partilhada, bastaria ouvir um
membro da equipe para medir a aceitação do conteúdo exposto. Ledo
engano. Haverá pontos de confl uência de leitura e interpretação do
vídeo, tanto quanto existirão articulações próprias, desenvolvidas por
cada grupo de expectadores. Portanto, ainda que interseções sejam
cruciais para as práticas comunicacionais, somente o reconhecimento
e entendimento da diversidade cultural podem garantir um diagnós-
tico de Cultura Organizacional realmente efi ciente. Mattelart afi rma
que, nos Estudos Culturais, cultura é uma palavra plural (MATTELART,
2001, p. 106).
135Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Reconhecimento de poder
Também plural por não estarmos lidando apenas com a esfera
do artefato, do visível, das formas materiais, mas sobretudo com as
representações simbólicas. Ora, símbolos não são elementos sumaria-
mente impostos por chefi as; são frutos de negociações, mediações e
consumo (não necessariamente no âmbito monetário, mas no âmbito
comunicacional).
E se estamos falando de negociação, isso implica necessariamente
no reconhecimento do poder de barganha dos agentes envolvidos. Aqui
atingimos outra idéia básica na compreensão de cultura: o poder que
todos os sujeitos detém durante o processo de intercâmbio de informa-
ções. Nos Estudos culturais, ao receptor é concedido não um assento
em meio a uma platéia silenciosa, mas uma posição de autoridade e
competência interpretativa. Daí Escosteguy afi rmar que:
Os Estudos Culturais construíram uma tendência impor-tante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de hierarquias entre formas e práticas culturais, estabe-lecidas a partir de oposições como cultura alta/baixa, superior/inferior, entre outras binariedades (ESCOSTEGUY, 2001, p. 157).
E o que isso muda em termos de Comunicação Organizacional?
A depender da leitura desse conceito realizada pelo profi ssional res-
ponsável, pode mudar tudo. Veja, nas publicações acadêmicas atuais
fala-se da investigação e do respeito à Cultura Organizacional para
que o fl uxo de informações seja contínuo e efi caz. A possibilidade de
feedback é até acalentada, mas o objetivo ao fundo é claro: fazer com
que as informações de interesse da cúpula das organizações cheguem
de maneira mais clara e ágil às instâncias inferiores. Compreendendo
136 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
as práticas culturais como relações entre sujeitos em pé de igualdade,
no mesmo patamar em termos de negociação comunicacional, podemos
idealizar uma modifi cação de fato na direção dos fl uxos de informa-
ção. Ao invés de transmitir assuntos de interesse da diretoria através
de formatos agradáveis e inteligíveis ao público interno, poderíamos
pensar exatamente no contrário, tendo os grupos economicamente
subalternos como protagonistas da Comunicação Organizacional, de
onde partem os temas a serem debatidos.
É interessante notar que os Estudos Culturais já tentaram empre-
ender iniciativas desse tipo na Inglaterra, não exatamente no âmbito
empresarial, mas através da criação de ateliês de história oral e na
produção de trabalhos sobre a “história das mulheres” contada pelas
próprias mulheres, conforme atesta Mattelart (2001, p. 107).
Resistência
Ainda que essa inversão não se dê de maneira completa, é
preciso ressaltar que em toda Comunicação Organizacional (mesmo
nos modelos mais verticalizados) essa dinâmica cultural composta por
agentes igualmente poderosos faz-nos ver o público interno de maneira
diferente. Segundo Escosteguy, os Estudos Culturais inauguram “o olhar
de que no âmbito popular não existe apenas submissão, mas também
resistência” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 153). O indivíduo ganha lugar de
destaque e sua atuação passa a ser tida como uma atividade crítica
e de intervenção constante sobre a realidade. A ilusão de consumo
pacífi co e passivo da comunicação desfaz-se.
Uma das conseqüências diretas dessa dissolução é o reposiciona-
137Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
mento do profi ssional ofi cialmente contratado para “produzir” a Comu-
nicação Organizacional. Apreendendo e aplicando essas premissas sobre
cultura, ele deixa de ser “o” responsável pelos fl uxos, transformando-se
num grande sintetizador e catalisador de tendências internas.
Cultura e Economia
Outra importante ferramenta que os Estudos Culturais podem
fornecer à Comunicação Organizacional são as idéias de vinculação da
cultura com a esfera econômica.
É impressionante como as condições materiais de existência e
trabalho, as formas de distribuição de riqueza produzidas e os senti-
mentos de conformidade ou revolta são desconsideradas nos escritos
sobre Cultura Organizacional. Os Estudos Culturais defendem a inclusão
desses elementos na análise, entendendo como indissolúveis cultura
e economia.
Isso não quer dizer, entretanto, que os Estudos Culturais alinhem-
se às correntes marxistas ortodoxas, que vêem nas práticas culturais
refl exos absolutos dos modos de produção, sem qualquer vislumbre
de independência. Tampouco eles acreditam numa cultura existente
num vácuo de isolamento, sem relação com o poder econômico. Para
Escosteguy, os Estudos Culturais tentam “compreender a cultura na
sua ‘autonomia relativa’, isto é, ela não é dependente das relações
econômicas, nem seu refl exo, mas tem infl uência e sofre conseqüências
das relações político-econômicas” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 156). É o
chamado caminho do meio.
138 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Cultura e Diversidade
Reunindo os tópicos acima (heterogeneidade, reconhecimento
de poder, resistência cultural e economia) esboça-se um corpo teóri-
co um pouco mais apto a abarcar a diversidade cultural existente na
sociedade, incluindo as organizações.
É importante sinalizar aqui, mesmo sem ser possível aprofunda-
mento, os avanços signifi cativos que os Estudos Culturais têm obtido
nas pesquisas em torno de identidades, sejam elas sexuais, de classe,
étnicas, geracionais, etc.
Considerando as concepções atuais de que o ambiente organi-
zacional deve crescentemente agregar profi ssionais de backgrounds
diferenciados (a fi m de constituir-se em entidades com alto poder de
adaptação e dinamismo), podemos supor que as organizações também
tendam a se tornar espaços onde as práticas culturais vão ganhar con-
tornos cada vez mais complexos. Reunindo colaboradores de identidades
diversas, qual será a identidade fi nal da organização? Como a parte
interfere e transforma o todo? São questões que os Estudos Culturais
podem ajudar a responder.
Considerações fi nais
Três destaques merecem ainda ser feitos. Primeiro, ao logo
do texto houve a preocupação de mencionar sempre “alguns” textos
relacionados à Comunicação Organizacional com uso de modelos co-
municacionais pouco adequados. Nem todos os autores incorrem na
mesma prática. Há uma série de publicações competentes em traçar
139Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
um modelo mais horizontalizado de comunicação, apesar da reduzida
referência às correntes mais recentes da Teoria da Comunicação.
Segundo, apesar da ênfase atribuída aos Estudos Culturais, é
preciso vê-los mais como elementos de suporte e ferramentas adicionais
do que como substitutos absolutos de teorias correntes com relação à
Comunicação Organizacional.
Por fi m, um breve adendo. Realizou-se aqui um exercício – passí-
vel de muitas críticas e correções – de aproximação entre Estudos Cul-
turais e Cultura Organizacional. Novas proposições podem aperfeiçoá-lo
ou suprimi-lo por completo. O que permanece indelével, contudo, é
fi rme convicção de que só a prática interdisciplinar, o intercâmbio
entre linhas diversas de pensamento, pode ajudar na compreensão
dos fenômenos contemporâneos. A sociedade atual, incluindo as or-
ganizações, não condiz mais com visões altamente restritivas e sem
interface com múltiplas variantes, sob pena de transformar a pesquisa
em palavra morta.
Notas
1 Conforme Bertuollo (2006), rádio peão consiste “no conjunto de manifestações comunicacionais não controladas que correm pelo caminho da informalidade dentro das organizações”. O mesmo autor explica que o uso do substantivo “rádio” indica a instância na qual todo discurso é transitável, enquanto o adjetivo “peão” é uma marca evidente de preconceito lingüístico. “Assim, ‘rádio peão’ traduzida ao pé-da-letra signifi ca os discursos manifestados por funcionários incultos do baixo escalão” (BERTUOLLO, 2006). O próprio Bertuollo reconhece, porém, que hoje a expressão é utilizada mesmo em se tratando de funcionários da cúpula de uma empresa, sendo referência de uma prática discursiva não ofi cial, independente do nível hierárquico envolvido. 2 Apesar de ter como marco inicial o período pós-guerra, foi efetivamente a partir da década de 60 que os Estudos Culturais ganharam ampla repercussão e reuniram, de fato, pesquisadores de áreas tão diversas.
140 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Referências
ALVAREZ, Mônica. Públicos Internos: o número 1. 2006. Disponível em: <http://www.comtexto.com.br/2convicomcciMonicaAlvarez.htm>. Acesso em: 12 mar. 2007.
BATISTA, Andréa Clara. O Tripé das Organizações: pessoas, cultura e comunicação. 2006 Disponível em: <http://www.comtexto.com.br/2convicomartigoAndreaClaraFreireBatista.htm>. Acesso em: 12 mar. 2007
BERTUOLO, Claudemir. “Rádio Peão”: do chão às estrelas, do tático para o estratégico. 2006. Disponível em: <http://www.comtexto.com.br/2convicomcciRadioPeaoClaudemirBertuolo.htm> . Acesso em: 12 mar. 2007
BUENO, Wilson da Costa. Comunicação Empresarial: teoria e pesquisa. Barueri, SP: Manoele, 2003.
CAHEN, Roger. Comunicação Empresarial: a imagem como patrimônio da empresa e ferramenta de marketing. 9. ed. São Paulo: Best Seller, 2003.
CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: o novo papel dos recursos humanos nas organizações. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os Estudos Culturais. IN: HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C. & FRANÇA, VERA, Veiga (Orgs). Teorias da Comunicação: Conceitos, Tendências e Debates. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
FREITAS, Sidinéia Gomes. Comunicação, Poder e Cultura Organizacional. São Paulo: 2005. Disponível em: <http://aberje.com.br/livros/livro1/poder.htm>. Acesso em: 19 set. 2005.
MATTELART, Armand e Michèle. História das Teorias da Comunicação. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2001
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 1987.
As novas Tecnologias da Informação e a Gestão Empresarial
Ricardo C. MelloMestre em Ciência da Informação pela UFBA, onde também se graduou em Administração de Empresas.Professor da Faculdade 2 de Julho e da Universidade Católica do Salvador.E-mail: [email protected]
ResumoAs Novas Tecnologias da Informação e a Gestão Empresarial é um estudo descritivo sobre a utilização das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC) nas organizações. O objetivo deste artigo é investigar as peculiaridades da incorporação da tecnologia no gerenciamento de informações, revendo o impacto nos processos organizacionais. O tema é apresentado em uma perspectiva histórica, a partir de revisão de literatura, porém enfocando os imperativos contemporâneos. Os resultados apresentam o impacto das NTIC sobre o fl uxo informacional a ser proporcionado, especialmente, no processo de tomada de decisões de micro e pequenas empresas.
Palavras-chaveInformação; gestão do conhecimento.
07
145Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A informação é um recurso estratégico que tem custo, preço e,
sobretudo, valor. Como tal, surge a necessidade de ser gerenciada da
mesma maneira como o são os demais recursos no âmbito organizacio-
nal, sejam fi nanceiros, materiais ou humanos.
A crescente necessidade de administrar a informação, consi-
derando-se os aspectos humanos e da Tecnologia da Informação rela-
cionados, resultou na proposta da formação de uma área profi ssional,
originalmente chamada de information resources management e
traduzida como “Gestão da Informação”. Este campo, já consolidado
nos Estados Unidos da América e na Europa, vem se confi gurando como
uma área de conteúdos teóricos e operacionais imprescindíveis para
qualquer organização que necessite produzir, localizar, coletar, tratar,
armazenar, distribuir e estimular o uso da informação.
A relação transdisciplinar e direta da Gestão da Informação com
a Ciência da Informação, a Administração e a Informática, resulta em
um conjunto de habilidades e conhecimentos teórico-práticos que
possibilitam a estruturação de sistemas de informação, assim como o
oferecimento de serviços, produtos e atividades de informação.
Destarte, um crescente número de instituições de pequeno,
médio e grande porte, de cunho privado ou governamental, frente
à dinâmica das transformações mundiais decorrentes do surgimento
da chamada “Sociedade da Informação”, vê-se obrigado a adotar
programas de gestão da informação, visando o desempenho ótimo das
atividades e um adequado processo de tomada de decisão.
Neste contexto, LASTRES e ALBAGLI (1999) afi rmam que, quando
aglutinadas e compartilhadas por indivíduos, as informações geram co-
nhecimentos. Estes dão origem aos planos que, por sua vez, viabilizam
a elaboração de estratégias. Pelas novas possibilidades de manejo,
146 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
armazenamento e acesso da informação, as TI revelam-se como uma
ferramenta útil na gestão empresarial, podendo, em um mercado cada
vez mais competitivo e globalizado, promover diferenciais competitivos
para as organizações que as adotam efi cazmente.
HAMMER e CHAMPY (1994) afi rmam que a tecnologia tem a facul-
dade de reinventar as formas de produzir e comercializar, descentrali-
zando o trabalho, o que permite o compartilhamento de informações
em qualquer lugar e a qualquer momento. Tal se dá porque o boom
tecnológico ocorrido na segunda metade do século XX proporcionou
grandes modifi cações ao modelo Taylor-Fordista até então vigente
nas empresas. A fi m de se discutir as transformações ocasionadas pelo
impacto das novas tecnologias, apresentar-se-á primeiro, ainda que
sucintamente, o modelo Taylor-Fordista.
Na década de 30 do século XX, Henry Ford preconizou uma revo-
lução ao desenvolver um sistema produtivo baseado na massifi cação de
produtos a um custo proporcionalmente menor, conforme a escala em
que fosse gerado. Tendo como alicerce a automação associada a práticas
gerenciais otimizadas, o paradigma, conhecido como Taylor-Fordista,
proporcionou um novo referencial teórico para as economias nacionais
que residia na otimização da infra-estrutura a partir do melhor acesso
e uso dos recursos naturais na cadeia produtiva.
Entretanto, o referencial teórico foi melhor avaliado por ocasião
da II Grande Guerra. Para atender a contingências cada vez mais rígidas,
onde a efi ciência era almejada em todos os setores da economia, as
nações envolvidas no confl ito mundial foram forçadas a trabalhar com
melhores processos produtivos. Nos campos de batalha e nos labora-
tórios de pesquisa de novas tecnologias, creditou-se ao processamento
de uma grande quantidade de informação, substanciados pelo advento
147Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
da primeira geração de computadores, pelos acertos nas tomadas de
decisão (MCGEE e PRUSAK, 1994).
Após a desmobilização dos estados nacionais para o confronto
bélico, muito dos aprendizados do período foram aproveitados nas
práticas gerenciais das organizações, entre eles, os conceitos de tá-
tica, de planejamento e o foco na qualidade de produtos e serviços.
As implicações do paradigma Taylor-Fordista na consolidação da su-
premacia dos EUA serviram para transformar a percepção a cerca do
diferencial competitivo de uma economia e alavancar investimentos
no aperfeiçoamento dos principais vetores que o sustentaram. Para
PINHEIRO (1995), o boom tecnológico decorrente caracterizou também
o momento em que a informação se tornou basilar para o progresso
econômico, ancorado no binômio ciência e tecnologia. A autora defende
que a eclosão do fenômeno impactou fortemente a organicidade das
empresas, a gestão e os processos produtivos.
A informação, sua armazenagem, a otimização de seu fl uxo e a
de seu acesso tornaram-se vitais às organizações. As políticas econô-
micas associadas a práticas gerenciais mais efi cientes, resultantes do
toyotismo, geraram, nos países hegemônicos, um excedente de capital
desimpedido e ávido para circular por onde houvesse maior taxa de re-
torno sobre o investimento. Para as organizações que foram capazes de
utilizar a tecnologia mundialmente na transmissão de informação sobre
ativos, o planeta encolheu, pois o campo de ação foi ampliado.
Em ampla caracterização, compreende-se a sociedade contem-
porânea como representativa de um novo paradigma (informacional)
que infl ui em diferentes níveis e nos mais diferentes setores – ainda
que não de forma uniforme. Gerar, obter e aplicar conhecimento passa
a ser item básico para enfrentar essas mudanças.
148 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Como retrata VALENTIM (2002:10),
O que caracteriza uma sociedade como “sociedade da informação” basicamente é a economia alicerçada na informação e na telemática, ou seja, informação, comu-nicação, telecomunicação e tecnologias da informação. A informação, aqui entendida como matéria-prima, como insumo básico do processo, a comunicação/telecomuni-cação entendida como meio/veículo de disseminação/distribuição e as tecnologias da informação entendidas como infra-estrutura de armazenagem, processamento e acesso.
QUADRO 1 - COMPARAÇÃO DE PARADIGMAS
Taylor-Fordista(1920 a 1970)
Informacional(1971 a ? )
Principaisinovaçõese técnicas
PrincipaisinovaçõesOrganizacionais
Lógica deproduçãoquanto ao usode atores-chave
Padrões deproduçãopreponderantes
- Motores à explosão, Prospecção, extração e refino de petróleo, minerais e produção de derivados.
- Microeletrônica, Tecnologia digital, Tecnologias da informação.
- Sistema de produção em massa, Fordismo, automação- Aperfeiçoamento de alguns dos fatores da cadeia de valor (tecnologia, marketing & vendas, logística etc.)
- computadorização; sistematização e flexibilização (Toyotismo)- Interligações em redes- Programas de qualidade- Inteligência competitiva- Rápida capacidade de adaptação ao mercado- Foco no cliente em todos os processos internos
- Intensiva em energia e materiais
- Aumento significativo da oferta de bens e serviços- Padronização- Hierarquização- Departamentalização- Veloz obsolescência de processos e produtos- Cultura do descartável- Concorrência individual e formação de cartéis
- Transmissão e acesso rápidos a enormes volumes de informação- Customização- Interligação em redes- Cooperativismo- Aceleração da obsolescência de processos, bens e serviços- Experiências virtuais- Aceleração do processo de globalização
- Intensiva em informação e conhecimento- Preservação ambiental e de recursos
149Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O conceito de “sociedade da informação” exige dos diferentes
segmentos econômicos uma mudança signifi cativa no processo produtivo
e inovativo. A relação desta com a economia de um país se dá através
de uma superestrutura de comunicação, apoiada em tecnologias da
informação e, o mais importante, através da geração, armazenamento
e disseminação do conhecimento. Em outras palavras, o que se deno-
mina atualmente de “nova economia” é a associação da informação
ao conhecimento, sua conectividade e apropriação social e econômica
(VALENTIM, 2002).
Como observa ANGELONI (2003:18),
as organizações gerenciadas nos moldes taylorianos estão cada vez mais cedendo espaço a novas formas de gestão. O foco nos bens tangíveis cede lugar a outros bens, os intangíveis. Dos bens intangíveis relevantes para o geren-ciamento das organizações, destacamos nesse trabalho o dado, a informação e o conhecimento como subsídios essenciais à comunicação e à tomada de decisão.
Na opinião da autora, para que as decisões organizacionais se-
jam de fato tomadas com rapidez e qualidade, é importante que as
organizações disponham de um sistema de comunicação efi ciente, que
permita a rápida circulação da informação e do conhecimento. Assim,
o suporte da tecnologia mostra-se indispensável.
Rezende (2003) observa que são inúmeras as atividades para as
quais as tecnologias da informação podem auferir vantagens para as
organizações, de modo a agregar valores aos produtos/serviços, arrai-
Comunicação daorganização como consumidor
- Em larga escala e de forma impessoal- Em uma só via, monólogo- Uso de correio e banco de dados genérico
- Personalizada conforme o perfil do consumidor- Em duas vias, debate- Serviços de ouvidoria, Internet e relações públicas
Fonte: Adaptado de LASTRES e ALBAGLI, 1999.
150 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
gando inteligência competitiva e empresarial. Com a necessidade de in-
formações oportunas e conhecimentos personalizados, as organizações
inteligentes demandam das tecnologias da informação desempenhar
um papel relevante e estrategicamente alinhado ao negócio.
Parece haver consenso entre os especialistas sobre a necessi-
dade das organizações integrarem o planejamento de negócios ao de
TI de forma coerente e sinergética. O sucesso da TI não está somente
relacionado ao uso efi ciente de hardware, software ou de metodolo-
gias de programação, mas ao uso efetivo e alinhamento às estratégias
empresariais com fi ns competitivos (PORTER, 1989).
No processo de tomada de decisão, é importante ter dis-poníveis dados, informações e conhecimentos, mas esses normalmente estão dispersos, fragmentados e armazena-dos na cabeça dos indivíduos e sofrem interferência de seus modelos mentais, mas também reconhecer que de fato constitui conhecimento. (NONAKA apud DAVENPORT e PRUSUAK, 1998: 19).
Rezende (2003) reitera que as informações e os conhecimentos
devem circular interna e externamente, na medida em que não adianta
a organização dispor de dados, informações e conhecimentos, se nela
persistir a cultura de que dados, informações e conhecimentos não
constituem poder. Portanto, como as intensas e rápidas mudanças le-
varam a sociedade e as organizações à Era da Informação, os recursos
estratégicos básicos da Era Industrial devem também ceder lugar a
outros recursos: a informação e o conhecimento apoiados pelas novas
tecnologias.
Como afi rma Beraldi (2000), dentro do novo contexto empresarial
criado pela globalização e pelo boom tecnológico, é o uso adequado das
tecnologias da informação que pode fornecer possibilidades de perma-
151Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
nente atualização e integração do negócio, visto que potencializa os
processos de disseminação, tratamento, armazenagem e transferência
de informações.
Contudo, enfatiza-se que a simples adoção das tecnologias da
Informação, por si só, não garante à gestão empresarial a obtenção
de quaisquer vantagens competitivas, não havendo uma relação direta
entre a sua adoção e a obtenção de retorno. Este depende, sobretudo,
do modo como são estas utilizadas (REZENDE, 2003).
Nesse contexto, a importância da Ciência da Informação – e do
profi ssional desta área – no processo da gestão empresarial é evidente.
O aumento crescente do volume dos dados e informação é refl exo direto
da cada vez maior complexidade das organizações e da sociedade em
geral. Assim, a gestão efi caz só é possível quando suportada por siste-
mas que assegurem a informação necessária para o desenvolvimento
das atividades.
Uma questão crucial para as organizações a respeito das tecno-
logias da informação não é de ordem técnica, mas de como gerenciar
o uso das NTIC efi cazmente. É desejável compreender, inicialmente,
as diferentes dimensões de cada setor produtivo, seus desafi os e com-
plexidades, de forma a permitir a desejada utilização e usufruto das
tecnologias como suporte ao sistema de informação.
A informação como diferencial
Frente ao quadro de mudanças propiciadas pelas novas tecnolo-
gias à gestão empresarial, Dosi (1992) afi rma que a tecnologia possui
um caráter cumulativo de conhecimentos agregados, com uma múlti-
152 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
pla interdependência de vetores endógenos e exógenos. Aaker (2001)
menciona ser através da combinação destes fatores que a tecnologia
produz diferencial, uma vez que só se traduz em vantagem competitiva
se houver comprometimento histórico com o desenvolvimento de outros
fatores da cadeia produtiva.
As peculiaridades do meio social formatam a estrutura de negó-
cios da organização e as estratégias empresariais. Não obstante, ante-
riormente à apreensão de novas técnicas, cabe prospectar o ambiente,
no qual a organização está inserida, e o histórico de interação com a
tecnologia (DOSI, 1992).
Na concepção de Schumpeter (apud CABRAL, 1999), o processo
empreendedor, da inovação tecnológica – radical ou incremental –, é
capaz de infl uenciar a ordem de produção, gerando diferencial entre
os competidores de mercado. As organizações que melhor fazem uso da
informação distanciam-se dos concorrentes, imprimindo uma identidade
própria aos negócios, segmentando clientela e mercado.
As vantagens obtidas pelas organizações líderes em inovação
tecnológica tendem a ser copiadas pelos competidores (PORTER, 1989;
DOSI, 1992). Assim, o padrão tecnológico, que outrora representava
diferencial competitivo para uma organização, pode vir a ser a base
do mercado.
Porter (1989) ressalva que o impacto da tecnologia sobre a
organização nem sempre é benéfi co, vez que pode comprometer o
diferencial estratégico em relação à concorrência. A incorporação de
padrões técnicos pelo setor pode difundir valores e tecnologias nem
sempre apropriadas à efi ciência dos processos dos competidores. A
dependência de um único caminho (path dependence) compromete a
estratégia das organizações inovadoras, obrigando-as a se tornarem
153Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
constantes desenvolvedores de soluções tecnológicas criativas para
evitar a saturação e a própria perda de identidade (DOSI, 1992; HAMEL
e PRAHALAD, 1995).
Sem um projeto de longo prazo para o uso da tecnologia o
processo de criação de valor para o consumidor é inefi caz, revelando
um desconhecimento da função instrumental desta por parte da or-
ganização.
Ansoff (1991), Dosi (1992) e Porter (1989) creditam a tecnologia
à faculdade de impelir a estrutura organizacional para a transformação
de processos produtivos, incrementando a produtividade e auferindo
rendimentos marginais.
A ótima alocação dos recursos gera vantagens competitivas para
a organização, na medida em que a permite se diferenciar dos com-
petidores por um somatório de atributos relacionados à distribuição
e à redução de custos, proporcionados pelo pioneirismo da inovação
tecnológica (PORTER, 1989).
Santos e Beraquet (2001), por sua vez, afi rmam que, no Brasil
das últimas décadas, muito se tem discutido e escrito sobre informação
como recurso estratégico das empresas. Registros de pesquisas, desen-
volvidas em centros de excelência sobre práticas de gestão estratégica
da informação, demonstram que o êxito de todo e qualquer sistema
de gestão de informação requer o concurso de profi ssionais que, antes
de enfatizar o perfeccionismo do domínio de técnicas e ferramentas,
procurem preparar-se para aceitar o risco de uma interação forte e
intensa entre a oferta e a demanda de informação (MAYERE, 1994 apud
SANTOS; e BERAQUET, 2001). Devem, especialmente, atentar para
um cenário turbulento e interagir com profi ssionais das mais diversas
especialidades e com diferentes trânsitos nos relacionamentos, quer
154 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
seja na fonte da informação, quer seja no espaço de demanda do co-
nhecimento estratégico.
Porém, ao que parece, o discurso encerra-se nele mesmo,
confi nando-se aos centros acadêmicos e às organizações públicas de
prestação de serviço de informação. O desafi o é, portanto, a profi ssiona-
lização dos serviços, cujas experiências bem sucedidas têm, na maioria
das vezes, permanecido sob um enfoque artesanal da informação.
Uma crítica, apontada por Santos e Beraquet (2001) é a de
que, muitas vezes, profi ssionais de informação, escudados em teorias
modernas de gestão do conhecimento, de capital intelectual, em dis-
positivos técnicos de estruturação e armazenamento da informação,
conferem ao processo tecnológico o status da solução em si mesma,
em detrimento da prática das relações sociais entre oferta e demanda,
cuja fi nalidade deveria ser a de contextualizar as necessidades reais
e as especifi cidades dos usos e impactos da informação, no âmago das
organizações.
Como observa VALENTIM (2003:21),
o profi ssional de tecnologia da informação que o mercado exige hoje, deve estar em sintonia principalmente com as tecnologias, habilitado não só a desempenhar funções técnicas, mas também a auxiliar a tomada de decisão, realizando o gerenciamento de dados, informação e conhecimento.
Em outras palavras, deve ser o profi ssional realmente capaz de
usar a informação como diferencial, agregando-lhe valor e contextos
próprios, tornando-a um conhecimento útil e aplicável à gestão em-
presarial. O conhecimento é a informação com valor agregado, capaz
de modifi car fatos, encontrar caminhos e, principalmente, na área de
inteligência competitiva proporcionar vantagem competitiva. Mussak
155Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
(2002) entende ainda que o conhecimento é um produto perecível,
quando não usado degrada, quando não aumentado ou reciclado,
desvaloriza-se.
Das atividades desenvolvidas pelo profi ssional da informação pela
competitividade empresarial, destacam-se atividades estratégicas,
gerenciais, técnicas e humanas. O profi ssional precisa possuir conhe-
cimentos específi cos dos métodos, técnicas e instrumentos da área de
inteligência competitiva, pois conforme relata Carvalho (2002). Deve
estar apto a trabalhar com sistemas de coleta, tratamento, análise e
disseminação da informação para a organização. Deste modo, as ativi-
dades do profi ssional de Ciência da Informação podem ser incorporadas
ao setor de marketing, de fi nanças, de pesquisa e de desenvolvimento,
ou mesmo vendas, planejamento entre outras, ou seja, todo e qualquer
setor que utiliza a informação como insumo de sua atividade.
É papel do especialista em Ciência da Informação contribuir para
a gestão otimizada da informação e para o perfeito funcionamento
do SI. A função é oferecer suporte à tomada de decisão, na busca de
vantagem competitiva e de informações críticas e qualifi cadas. Anali-
sadas de modo a agregar valor, auxiliam na formulação de estratégias,
proporcionando a conexão entre a gestão da informação, a gestão do
conhecimento e a inteligência competitiva, o que proporciona ganhos
para a organização como um todo.
Assim sendo, reitera-se a Valentim (2003) quando afi rma que
o profi ssional da informação atua em diferentes níveis: a gestão da
informação, que trabalha essencialmente com os fl uxos formais de
informação; a gestão do conhecimento, que trabalha essencialmente
com os fl uxos informais; e a inteligência competitiva, que trabalha com
os dois fl uxos: formais e informais.
156 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A inteligência competitiva e as tecnologias da informação
Toda e qualquer organização possui e gere um sistema de in-
formação (SI) como insumo de suas atividades. O SI assume um duplo
papel na gestão: o papel substantivo de reduzir a incerteza e apoiar a
decisão, e o papel complementar de criar representações da realidade
que auxiliem a instituição a atingir os seus objetivos.
Todo sistema, pautado ou não em recursos de Tecnologia da In-
formação, que manipula e gera informação, pode ser genericamente
considerado Sistema de Informação (SI). Embora seja possível existir SI
sem o uso de computadores, a observação da realidade permite concluir
que são raras as organizações que não desejam integrar equipamentos
ao SI, na medida em que a tecnologia representa um dos principais
veículos para a disseminação da informação frente ao enorme fl uxo
(ALTER, 1996).
Desta forma, o sucesso de um SI depende intrinsecamente da
qualidade do planejamento, desenvolvimento e exploração, ou seja,
da qualidade da gestão. Se pensados e utilizados corretamente, os SI
podem abrir caminho para novas oportunidades, auxiliando não só a
racionalização dos procedimentos e fl uxos de informação, como também
reorganizando o ambiente de trabalho ou, até mesmo, alterando a sua
própria natureza. É papel do especialista em Ciência da Informação
contribuir para a gestão otimizada da informação e para o perfeito
funcionamento do SI.
— A Informação como Fator de Competitividade Organizacio-
nal:
157Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Cabe, neste ponto, uma referência a Valentim (2002), que con-
ceitua as organizações em três âmbitos, ou níveis, distintos.
O primeiro âmbito refere-se à estrutura – organograma –, onde se
visualiza o “ambiente” formado pelas diferentes unidades de trabalho,
como diretorias, gerências, divisões, departamentos, setores, seções
etc., e as inter-relações.
No segundo nível, compreende-se uma empresa ou organização
no âmbito do subsistema de recursos humanos, dos indivíduos e suas
interações, isto é, o ambiente das relações entre as pessoas das dife-
rentes unidades de trabalho.
O terceiro e último, refere-se à estrutura informacional, ou seja,
à geração de dados, informação e conhecimento pelos dois ambientes
anteriores e ao próprio fl uxo no interior desta.
Valentim (2002) apresenta um esquema que ajuda a melhor com-
preender estes três “ambientes” em suas interações (FIGURA 1). A partir
do reconhecimento dos âmbitos, pode-se mapear os fl uxos informais de
FLU
XO
S FO
RM
AIS
FLU
XO
S IN
FO
RM
AIS
ESTRUTURA DA EMPRESA(organograma)
ESTRUTURA DERECURSOS HUMANOS(capital intelectual)
ESTRUTURADE INFORMAÇÃO
(dados, informaçãoe conhecimento)
Figura 1 Ambientes OrganizacionaisFonte: VALENTIM, 2002
158 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
informação existentes na organização, assim como estabelecer fl uxos
formais de informação para consumo da própria organização.
As pessoas das diferentes unidades de trabalho que compõem uma
organização têm necessidade de dados, informação e conhecimento
para desenvolverem as tarefas cotidianas, bem como para traçarem
estratégias de atuação. Portanto, dados, informação e conhecimento
são insumos básicos para que as atividades apresentem resultados
satisfatórios ou excelentes.
Conforme Valentim (2002), para gerenciar os fl uxos informacio-
nais, quer formais ou informais, é necessário realizar algumas ações in-
tegradas objetivando prospectar, selecionar, fi ltrar, tratar e disseminar
todo o ativo informacional e intelectual da organização. Neste, incluem-
se tanto os documentos, bancos e bases de dados etc., produzidos
interna e externamente à organização, como também o conhecimento
individual dos diferentes atores existentes na organização.
É importante salientar que os fl uxos informacionais formais e informais ocorrem tanto no ambiente interno quanto no ambiente externo à organização e as ações integradas devem ser realizadas nos dois ambientes. Desta maneira, argumenta-se a importância da organização defi nir em seu organograma uma unidade de trabalho especifi ca-mente voltada a desenvolver ações e atividades à gestão da informação, gestão do conhecimento ou inteligência competitiva na organização. (VALENTIM, 2002: 7).
No entanto, cabe ainda a conceituação específi ca dos termos
“gestão da informação”, “gestão do conhecimento” e “inteligência
competitiva”, uma vez que também se confundem pela proximidade
do signifi cado.
— A Gestão da Informação:
O conceito de Gestão da Informação sintetiza-se como sendo o
159Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
planejamento, a construção, a organização, a direção, o treinamento
e o controle associados com a informação (de qualquer natureza).
O termo pode agregar tanto a própria informação, como os recursos
relacionados, tais como pessoas, equipamentos, recursos fi nanceiros e
tecnologia. Outrossim, pode ser tematizado como englobando todas as
ações relativas à “obtenção da informação adequada, na forma corre-
ta, para a pessoa indicada, a um custo adequado, no tempo oportuno,
em lugar apropriado, para tomar a decisão correta” (WOODMAN apud
PONJUÁN DANTE, 1998: 135).
Para explicar melhor o conceito de gestão da informação, Ponjuán
Dante (1998) defi ne “gestão de recursos de informação” como sendo
“o processo dentro do segmento da gestão da informação que serve ao
interesse corporativo” (BURK e HORTON apud PONJUÁN DANTE, 1998:
136). A gestão de recursos da informação deve ter por meta norteadora
a utilização e associação da informação de modo a benefi ciar a orga-
nização em sua totalidade, mediante a exploração, desenvolvimento
e otimização dos recursos de informação.
— A Gestão do Conhecimento
Barroso (1999:156) conceitua a gestão do conhecimento como a
“arte de criar valor alavancando os ativos intangíveis; para conseguir
isso, é preciso ser capaz de visualizar a empresa apenas em termos de
conhecimento e fl uxos de conhecimento”. Machado Neto (1998 apud
VALENTIM, 2002:5), por sua vez, apresenta a gestão do conhecimento
como sendo um “conjunto de estratégias para criar, adquirir, compar-
tilhar e utilizar ativos de conhecimento, bem como estabelecer fl uxos
que garantam a informação necessária no tempo e formato adequados,
a fi m de auxiliar na geração de idéias, solução de problemas e tomada
de decisão”.
160 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A exemplo de Terra (2000:70), compreende-se que a gestão do
conhecimento está, “dessa maneira, intrinsecamente ligada à capaci-
dade das empresas em utilizarem e combinarem as várias fontes e tipos
de conhecimento organizacional para desenvolverem competências
específi cas e capacidade inovadora”.
— A Inteligência Competitiva
Tyson afi rma que inteligência competitiva é “um processo siste-
mático que transforma bits e partes de informações competitivas em
conhecimento estratégico para a tomada de decisão” (apud COSTA E
SILVA, 1999: 2).
Para Canongia (1998: 2-3), a defi nição de inteligência competitiva
está muito ligada à noção de processo, uma vez que objetiva agregar
valor à informação,
fortalecendo seu caráter estratégico, catalisando, assim, o processo de crescimento organizacional. Nesse sentido, a coleta, tratamento, análise e contextualização de infor-mação permitem a geração de produtos de inteligência, que facilitam e otimizam a tomada de decisão no âmbito tático e estratégico.
A inteligência competitiva tem por função, pois, apoiar a tomada
de decisão requerida pelo desenho e execução da estratégia competi-
tiva. Representa o conjunto de capacidades próprias mobilizadas por
uma entidade lucrativa, destinadas a assegurar o acesso, capturar,
interpretar e preparar conhecimento e informação com alto valor
agregado (VALENTIM, 2002).
Ainda conforme a autora, os três termos – gestão da informação,
gestão do conhecimento e inteligência competitiva – são muito próxi-
mos e relacionados, porquanto a ação de um incide na ação do outro,
embora seja possível hierarquizá-los. Cumpre frisar que as tecnologias
161Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
de informação integram o contexto, pois, como afi rma Petrini:
Um sistema de informações pode ser caracterizado como uma tecnologia ‘intelectual’, porque afeta a organização das funções cognitivas do homem: a coleta, o armazena-mento e a análise de informações assim como atividades de previsão, concepção, escolha, decisão (1998: 14).
A conceituação pode ser aplicada tanto à gestão da informação,
quanto à gestão do conhecimento e à inteligência competitiva. No
quadro 2 estabelecem-se as relações entre os conceitos.
A gestão da informação está vinculada ao conhecimento explíci-
to, aos dados e informações consolidados em algum tipo de veículo de
comunicação, como, por exemplo, um livro impresso ou, até mesmo,
a Internet. A relação entre os três conceitos – dados, informação e co-
nhecimento – existe, pois se complementam e representam os insumos
básicos para os três modelos referendados por Valentim (2002). O que
GESTÃO DOCONHECIMENTO
Foco: Capital Intelectualda Organização
GESTÃO DAINFORMAÇÃO
Foco: Negócioda Organização
INTELIGÊNCIACOMPETITIVA
Foco: Estratégiasda Organização
- Prospecção, seleção e obtenção da informação. - Mapeamento e reconhecimento dos fluxos formais de informação- Tratamento, análise e armazenamento da informação utilizando tecnologias de informação.- Disseminação e mediação da informação ao público interessado- Criação e
- Desenvolvimento da capacidade criativa do capital intelectual da organização- Prospecção, seleção e filtragem de informações estratégicas nos dois fluxos informacionais: formais e informais- Agregação de valor às informações prospectadas, selecionadas e filtradas- Utilização de sistema de informação
- Desenvolvimento da cultura organizacional voltada ao conhecimento- Mapeamento e reconhecimento dos fluxos informais de informação- Tratamento, análise e agregação de valor às informações utilizando tecnologias de informação.- Transferência do conhecimento ou socialização do
162 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
muda é a complexidade das ações despendidas.
Como observa a autora, no caso da gestão do conhecimento, a
complexidade está na inserção do conhecimento tácito nesse universo,
isto é, um ou mais indivíduos da organização fornecem suas experiên-
cias, crenças, sentimentos, vivências, valores etc. Fica latente que,
como afi rma Valentim (2002), a inteligência competitiva está ligada ao
próprio conceito de processo contínuo. A maior complexidade reside
no fato de esta “estabelecer relações e conexões de forma a gerar
inteligência para a organização na medida em que cria estratégias
para cenários futuros e possibilita tomadas de decisão de maneira mais
segura e assertiva”. (2002: 7).
Vale ressaltar que, de forma inusitada, as empresas de menor
porte (micro e pequenas) podem competir com ferramentas ou estra-
tégias tão potentes quanto as das grandes corporações. A informação,
que marca a competição daqui para frente, é um recurso disponível e
democrático. Mas, para que as ferramentas, estratégias e informações
sejam bem utilizadas, é preciso defi nir previamente os rumos da em-
presa. Deve existir um plano gestor em consonância com os princípios
de uma gestão da informação e do conhecimento qualitativo e aliado
ao uso da inteligência competitiva.
disponibilização de produtos e serviços de informação
de informação estratégico voltado à tomada de decisão- Criação e disponibilização de produtos e serviços específicos à tomada de decisão
conhecimento no ambiente organizacional- Criação e disponibilização de sistemas de informação empresariais de diferentes naturezas.
Trabalha essencialmente com os fluxos formais de informação
Trabalha com os dois fluxos de informação: formais e informais
Trabalha essencialmente com os fluxos informais de informação
Fonte: VALENTIM, 2002
163Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
— Características das Micro e Pequenas Empresas no Brasil e as
Tecnologias:
O conceito de pequena empresa é um dado que varia conforme
os parâmetros socioeconômicos de cada país. De acordo com Cutlip
e Center (1961) são algumas características comumente observáveis
entre as organizações de pequeno porte:
1. Trato direto e pessoal com seu público [...].
2. Elegibilidade como membro da Câmara de Comércio local
e da Associação Nacional de Pequenos Comerciantes.
3. A propriedade do negócio e a vontade de ligar sua vida a
ele.
4. Ambição de desenvolver-se, de obter um benefício e de
ser considerado como parte importante da vida da comu-
nidade.
5. A direção do negócio (realizada) de forma tal a se obter o
maior partido possível das ‘pequenas coisas que contam’
[...].
6. Interesse vital nos assuntos nacionais e no exercício da
infl uência pessoal através de sua associação. (CUTLIP e
CENTER, 1961: 415).
Para Leone (1999), nas pequenas empresas, a própria vida pessoal
do empresário confunde-se, em muitos casos, com a gestão do negócio.
Ademais, as micro e pequenas empresas no Brasil apresentam como
regra de ouro um alto grau de informalidade no trato com a cliente-
la, a marcante presença familiar na condução dos negócios, o uso de
baixa ou primitiva tecnologia e o pouco uso de capital via instituições
fi nanceiras, dada a inexistência de uma política nacional para fomento
a este tipo de organização.
164 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Problemas advindos da gestão familiar não são raros. Ainda mais
grave é o desprovimento de uma sistemática educacional montada para
atender ao empresário na educação para o trabalho dos empregados.
Este é um dos principais pontos para o desenvolvimento competitivo
pleno da estratégia empresarial.
Apoiado fi rmemente no conhecimento adquirido ao longo da
própria vida laboral, o empresário transforma-se em educador para o
trabalho dos empregados da organização, o que nem sempre é o bas-
tante para assegurar a perfeita assimilação das responsabilidades e o
ótimo desempenho das funções (LIMA, 1999). São exíguos os casos em
que o empresário atua com destreza na função de educador e de ges-
tor. Ademais, é reconhecido que uma considerável parcela dos micro e
pequenos empresários possui menos de cinco anos de educação formal,
o que o alija da contemporaneidade das inovações tecnológicas.
No âmbito da pequena empresa, o papel que a tecnologia possui
no processo de transformação de valor em uma organização está em
função do entendimento de sua fi nalidade por parte do corpo diretivo. A
maioria deste tipo de organização revela desconhecer a potencialidade
da tecnologia para explorar novas aplicações e obter vantagens com-
petitivas. Observa-se que esta infl uência decorre da forte vinculação
das práticas organizacionais com o perfi l do empresário (LEONE, 1999;
e LIMA, 1999).
O risco de inovar, adotando novas tecnologias, associado à in-
certeza que paira sobre o ambiente das pequenas e médias empresas,
faz com que o uso de novas tecnologias seja incrementado e adotado
somente após a consagração nas organizações líderes (LEONE, 1999).
As oportunidades de evolução são ofuscadas pelo risco da inovação, o
que restringe o uso da tecnologia.
165Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Fato relevante também no universo da pequena empresa é a não
disseminação da informação, elemento fundamental para delineamento
da estratégia ao longo da estrutura organizacional (DAVENPORT, 1998).
Estancada em estruturas de poder, nas quais o dirigente é o único res-
ponsável pelas direções administrativas, percebe-se que informação
tem valor apenas no curto prazo. Qualquer combinação de fatores na
cadeia produtiva reverbera no interior da organização em um horizonte
de tempo estreito. Sucumbe, portanto o teor estratégico nas decisões
gerenciais, prevalecendo a orientação operacional.
Ao exame dos conceitos de estratégia, parece acertado concluir
que as organizações de pequeno porte são desprovidas de uma lógica
formal constituída capaz de conceber planos operacionais ou estrata-
gemas reativos, por orientarem as decisões fortemente para o curto
prazo.
As tecnologias da informação como suporte a tomada de decisões
A informação e conhecimento podem propiciar o surgimento
de inovação no ambiente corporativo. Havendo gestão adequada das
informações, a TI pode exercer um elemento relevante à estrutura,
contribuindo para a efi cácia dos processos organizacionais.
Para garantir um adequado fl uxo de informação, a construção de
sistemas de informação corrobora o processo de tomada de decisões
organizacional, uma vez que a informação está ligada ao conhecimento
do ambiente interno e também do externo. Para Valentim (2003), nas
organizações, o uso da informação com valor estratégico tem sido cada
166 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
vez mais corrente. Destaca que a evolução da tecnologia da informação
e da telecomunicação contribui signifi cativamente para o desenvolvi-
mento das ações em geral.
Dada a necessidade de obter informações cada vez mais rápidas,
surgem novas tendências que objetivam recuperar a informação de
modo acelerado. Faz-se necessário, portanto, pesquisar uma gama de
informações expressiva, saber como localizar e analisar fatos relevantes
ao contexto. Neste caso, a disseminação assume um papel de grande
relevância no processo, pois o fl uxo de disseminação da informação,
para decidir e agir, necessita ser bem planejada, do contrário a infor-
mação não circula e não se completa o processo.
Para isso, repensar a concepção de gestão organizacional é
imprescindível. É necessário que haja mudanças nos modelos vigentes
da organização, adotando inovações e buscando novos conhecimentos.
Porém, muitas organizações não assimilam as transformações ocorridas
e têm a sensação de perda de controle, na medida em que acabam
por gerar um ciclo vicioso onde investimentos maciços são necessários
para se acompanhar as tendências.
Nesse processo, a organização terá que desafi ar o ambien-te em que atua, inteirar-se dos acontecimentos externos, identifi car as oportunidades e ameaças, adotando postu-ras pró-ativas, defi nindo metas a serem atingidas, enfi m, estabelecer as estratégias competitivas que deverão ser priorizadas visando nortear as diretrizes que serão segui-das quando da tomada de decisão. (VALENTIM, 2003: 9).
Para que a organização alcance sucesso no processo de tomada
de decisão, necessita de informações úteis, corretas, entregues na
hora certa e às pessoas certas. Desse modo, as informações precisam
ser gerenciadas da mesma forma que os outros recursos.
167Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Através do estabelecimento de políticas, programas de orga-
nização e do uso adequado das NTIC, desenvolve-se um sistema de
informação capaz de tratar as informações efi cazmente. A informação
deixa de ser um elemento comum do cotidiano e assume um papel de
importância, passando a ser considerada tão vital quanto os recursos
humanos (capital intelectual), materiais ou fi nanceiros, que são im-
prescindíveis à sobrevivência das organizações (CARVALHO, 2001).
A tecnologia da informação (TI) pode e deve ser utilizada a
serviço da gestão empresarial como suporte a tomadas de decisões.
Por intermédio das tecnologias – mas não unicamente – consegue-se
gerenciar a informação como um recurso organizacional.
Como afi rma Valentim (2003), para tal cabe primeiramente ve-
rifi car as necessidades informacionais dos indivíduos da organização.
Em uma segunda etapa, cabe prospectar e coletar o que é relevante.
Em terceiro lugar, selecionar (fi ltrar), organizar, tratar, armazenar, e,
por último, disseminar, transferir e gerar novas necessidades. Assim,
evidencia-se a necessidade de se buscar metodologias e ferramentas
adequadas (propiciadas pelas TI) para desenvolver essas atividades de
maneira efi ciente, a fi m de gerar conhecimento e inteligência, visando
subsidiar o processo decisório.
As tecnologias da informação como estratégia de relacionamento e fi delização da clientela
Outro ponto de destaque do uso das NTIC na gestão empresarial
é na elaboração da estratégia de relacionamento com a clientela, que
possibilita a fi delização através de vantagens intrínsecas.
168 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Para fi delizar o cliente é importante que exista uma política de
relacionamento individualizada (PEPPERS e ROGERS, 2000). Na visão de
Sviokla e Shapiro (1994) uma rotina de fi delização e encantamento da
clientela pressupõe: a antecipação de anseios, o estudo de tendências
e hábitos de consumo do consumidor por parte da organização.
A literatura ratifi ca que, para uma efetiva fi delização da clien-
tela, a monitoração do nível de satisfação do cliente pela empresa ou
organização deve ser constante e sistemática, sendo um compromisso
de toda a organização, não somente dos setores que lidam direta-
mente com público. Não se pode desconsiderar o elemento humano
no contato com o cliente no atendimento, mesmo que o fenômeno
de compilação de dados ocorra de forma mais instantânea e precisa
através da tecnologia.
A atenção e o cuidado dispensados ao consumidor (Customer
Care) diferenciam os competidores (PEPPERS e ROGERS, 2000), não o
aparato tecnológico isoladamente (DAVENPORT, 1998), uma vez que,
com o passar do tempo, os produtos tendem a se assemelhar pela alta
tecnologia empregada (DOSI, 1992).
Pode-se dizer que o cliente torna-se fi el a uma organização ao
consumir produtos e serviços de rara qualidade, incomparável à en-
contrada em qualquer outro concorrente no mercado. Para obter um
padrão de qualidade singular, a organização necessita reforçar a sua
imagem através de uma consistente política de relacionamento com a
clientela, associando aos serviços e produtos comercializados, os valores
apregoados e praticados pela empresa em todos os departamentos e
por todos os trabalhadores. A genuína fi delização passa pelo reconhe-
cimento do cliente de valores na organização que se coadunem à sua
forma de agir e pensar.
169Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
As novas TI oferecem múltiplas possibilidades de fi delização da
clientela, pelas facilidades que oferecem, em decorrência das múltiplas
possibilidades de interconectividade e interatividade possibilitadas por
ferramentas como a Internet ou mesmo o fax.
Os clientes podem ter acesso a diferentes informações sobre
variados produtos e lançamentos, como também vir a adquirir commo-
dities, através de TI, otimizando o tempo e o custo com o transporte.
Tais elementos podem ser decisivos para o cliente na hora de optar
entre duas empresas que oferecem o mesmo produto ou um serviço
similar.
Entende-se que a fi delização da clientela é uma missão árdua,
considerando o grau de amadurecimento que a organização e seus
integrantes precisam possuir para se comprometer com as mudanças
necessárias. Recursos precisam ser destinados para a reciclagem de
pessoal, reestruturação de processos e investimento em aparato tecno-
lógico, o que nem sempre é fácil, especialmente para as organizações
de pequeno porte.
Implantar tecnologia da informação exige um planejamento tão
grande quanto o existente na construção de um edifício complexo.
Investimentos em TI, contudo, podem não proporcionar o retorno
desejado pelas empresas. Na maior parte das vezes, o fenômeno de-
corre da falta de uma estratégia adequada para o desenvolvimento e
implantação dessas tecnologias, e pela não consideração dos aspectos
comportamentais e culturais envolvidos na implantação e utilização dos
sistemas. É vital a identifi cação dos requisitos funcionais do projeto,
a estimativa do custo do ciclo de vida (durabilidade de aplicação) do
sistema de informação, os riscos e benefícios (na medida do possível),
bem como as respectivas análises conduzidas para gerar estimativas.
170 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
No entanto, se implementadas de modo adequado, as TIs
revelam-se de grande valia como suporte à estratégia de fi delização
da clientela (CANONGIA, 1998).
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Cultura popular nordestina:Um lugar no cânone ou um cânone do lugar?
João Evangelistado Nascimento NetoMestre em Literatura e Diversidade Cultural. Professor e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão da UNEB.E-mail: [email protected]
ResumoEste artigo visa analisar o lugar das manifestações artísticas nordestinas ao discutir a relação cânone – literatura, apresentando um entre-lugar para a intitulada Literatura Popular. Para tanto, utiliza-se da produção artística de grandes artistas nordestinos como Jorge Amado, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré, a fi m de questionar os conceitos de Literatura Nacional e Literatura Regional.
Palavras-chaveLiteratura Regional; Literatura Nacional; Nordeste; Cânone.
08
177Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Prólogo conceptual
Concepção de cultura
Discutir acerca da cultura é levar em consideração seu caráter
e manifestações ideológicos. A sinonímia existente entre cultura e
civilização é um legado do etnocentrismo, que difundiu tal concepção
como contraponto com barbarismo, ignorância.
Ter cultura passou, então, a signifi car ter acesso à educação
sistematizada. Dessa forma, pode-se separar o mundo em blocos cultu-
rais distintos: os povos cultos – detentores do conhecimento empírico;
os povos em estágio de transformação – referente às sociedades que
estavam buscando o cientifi cismo; e os povos selvagens – sinônimos de
primitivos, destituídos do domínio da ciência.
Logo, valorizou-se uma sociedade em detrimento de outra não
pelas suas manifestações artístico-culturais, por exemplo, mas pela
sua capacidade de desenvolver e apropriar-se de tal ramo do conhe-
cimento.
Conceber cultura como a identidade de um povo, uma região, é
desmitifi car tal assertiva etnocêntrica ainda existente na atualidade,
embora seja inegável o poderio político-econômico em face de es-
tabelecer conceitos e ascender certas manifestações culturais como
melhores ou piores que as demais.
O discurso competente é o discurso constituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com o discurso no qual os interlocutores
178 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfi m, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência. (...) O que é o discurso competente? Sa-bemos que é o discurso do especialista, proferido de um ponto determinado da hierarquia organizacional. (CHAUÍ, 1997, p. 7-11)
A voz é outorgada àquele que também detém o poder econômico;
a ele é permitido valorar o mundo e suas diferentes manifestações.
Confere-se ainda o direito de conceituar a cultura em observância aos
valores que compartilha, restringindo assim a própria palavra e sua
abrangência.
Cultura não é basicamente coisa alguma. Cultura é um vocábulo-conceito. Foi criado pelo homem e pode ser usado arbitrariamente para designar qualquer coisa; podemos defi nir o conceito como bem entendermos. (WHITE, 1978, p.18)
Cultura passa a signifi car exteriorizações sociais específi cas,
como um estilo de música, de dança, de expressividade religiosa, a
maneira de falar, etc. Excetuam-se da defi nição os hábitos diários que
caracterizam uma região, mas que também se constituem como expres-
são cultural. O que se entende por cultura, então, são os traços mais
fortes situados à superfície de uma determinada sociedade; os meandros
que formam esse mesmo grupo social e que geram as especifi cidades
desse grupo são marginalizados em favor de uma cultura latente.
A tentativa de criar um distanciamento entre elite e povo forçou
a subdivisão da cultura entre cultura erudita – ou alta cultura, científi ca
e, portanto, teorizada; cultura popular – vicejada fora dos meios aca-
dêmicos e muitas vezes de caráter coletivo e anônimo e, a posteriori,
179Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
a cultura de massa – considerada um subproduto do capitalismo.
Tais classifi cações marcam o distanciamento entre as classes
sociais, uma evidência da evolução de uma sobre a outra, enfi m o
cunho etnocêntrico imperando na contemporaneidade. Com base
nessa corrente ideológica, a cultura erudita não é acessível às pesso-
as de classes menos favorecidas economicamente, porque essas não
possuem estrutura mental condicionada a apreciar tais manifestações
estruturais alcançadas através da ciência. E quando fragmentos dessa
erudição alcançam o povo é por um mero caráter didático, para educar
e questionar o senso comum.
Quanto à cultura popular, é meramente encarada como um teor
menor e superfi cial, isenta de análises e refl exões e confundida com a
cultura de massa, a qual se utiliza muitas vezes daquela para alcançar
os altos lucros orçados. De qualquer forma, não se pretende aqui exor-
cizar a cultura erudita como se a sua única função fosse menosprezar
a expressão popular ou mesmo a cultura de massa por banalizar a re-
presentação do povo, inclusive porque essa cultura popular consegue
sobressair e fortalecer-se cada vez mais, abrindo espaços de discussão
nas Academias, os centros dos estudos científi cos.
Por que importa tanto aos eruditos a cultura da plebe e suas
relações com outro status cultural?
Primeiramente, existe cultura popular porque existe o povo.
Embora essa afi rmação à primeira vista possa parecer pleonástica, é
mister desmascarar os meandros que percorrem tal defi nição. Entender
povo como alguém alheio às inovações tecnológicas ou até mesmo às
grandes obras artísticas, canonizadas pela tradição não cabe mais,
visto que a intersecção entre classes diferentes sempre existiu e de
forma mais ou menos intensa deixou marcas concomitantes no modo
180 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
de pensar e viver.
A infl uência econômica é condição importante na visibilidade de
uma representação artística, mas não a única. O Nordeste tem con-
seguido estabelecer seus ícones entre os grandes nomes da intitulada
cultura nacional.
O cânone e a cultura popular
Entende-se como cânone uma seleção de obras de ramo espe-
cífi co do conhecimento. Assim, o campo artístico também referenda
aquilo que considera modelo para as gerações: A Música elege seus
clássicos; o Cinema seleciona os grandes diretores e suas criações; o
Teatro reverencia as grandes produções; as Artes Plásticas corroboram
para manter vivas as imagens de seus grandes artífi ces; a Literatura
apresenta compêndios em que os grandes autores são citados, lem-
brados e relembrados.
Estabelecer um cânone, portanto, é algo inerente à cultura
humana e o é necessário à medida que proporciona à humanidade
oportunidades de conhecer e reconhecer-se nessa produção artística.
Mas o cânone constitui-se um problema de estudo devido ao seu caráter
excludente. É certo que o homem precisa fazer escolhas e a relação de
obras que faz parte de um cânone é uma dessas preferências, porém
instituir um paradigma tornou-se um meio cruel de impedir a entrada
nesse cânone de artistas que fogem a critérios preestabelecidos, quer
sejam eles estéticos quer sejam ideológicos.
Alguns críticos, como Harold Bloom, crêem que a avaliação
estética é a condição essencial para uma obra adentrar e permanecer
181Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
na listagem de obras consideráveis.
O movimento de dentro da tradição não pode ser ideológi-co nem colocar-se a serviço de quaisquer objetivos sociais, por mais moralmente admiráveis que sejam. A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui basicamente de um amálgama: domínio da linguagem fi gurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante. (BLOOM, 1995, p. 36)
Sem uma qualidade estética notável não se pode elevar uma
obra ao cânone, porém há outros elementos que corroboram para a
sua inserção nesse elenco, tais como: lugar de origem da obra e seu
autor, temática, infl uências; tudo isso resumido em uma só palavra:
IDEOLOGIA.
Seguindo a lista de Leila Perrone-Moisés, pode-se estabelecer um
exame concreto para a possível inclusão de uma obra no cânone:
1) existência de ensaio (livro ou artigo) dedicado ex-clusivamente a um autor; 2) referências recorrentes e elogiosas a um autor; 3) repercussão da obra de um autor na obra poética ou fi ccional do escritor-crítico; 4) traduções de um autor feitas pelo escritor-crítico. (PERRONE-MOISÉS, 1997, p. 70)
Aliado às normas supracitadas podemos acrescentar: 5) estudo
no exterior do autor-obra; 6) criação de sites na Internet; 7) instituição
de seminários, conferências; 8) adaptação de obras e presença do autor
em meios de comunicação de massa; 9) instituição de um prêmio com
o nome do autor.
Todas as avaliações citadas são válidas e verdadeiramente con-
tribuem para que a obra e o seu autor sejam valorizados, mas essas
avaliações passam pelo crivo ideológico. Se Bloom e Perrone-Moisés
optam pelo critério estético, fazem-no também seguindo conceitos ide-
182 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
ológicos. Decidem-se por seguir a ideologia que privilegia a estética.
O que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que o conceito de cânone implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.). (REIS, 1992, p. 70)
Roberto Reis é bem pontual quando cita a ideologia como algo
presente em todas as escolhas do homem. A cultura é uma construção
simbólica e utiliza-se da linguagem, bem como o discurso (a linguagem)
é uma tentativa de dominar e infl uenciar, pode-se concluir que o cânone
é o resultado dessas implicações.
Uma obra de valor estético reconhecido poderá adentrar na
lista dos ‘grandes’ mesmo destituída do poder das infl uências, mas
certamente percorrerá um percurso bem maior do que aquelas que,
ideologicamente, subscrevem os mecanismos de escolhas.
A ideologia não se sobrepõe à estética, mas caminha ao seu
lado, colaborando com esta ou não. Se um compositor compõe para ser
ouvido, se um escritor cria para ser lido, se um dançarino ensaia para
ser assistido, etc., os meios para que isso aconteça são procurados e
é bastante natural que assim se proceda.
Após fi rmar a questão de que estética e ideologia quase sempre
caminham lado a lado, o debate foca-se nas possíveis compensações
que os autores—obras devem propiciar ao sistema para conseguirem
notoriedade.
Quem defende a estética como o único parâmetro a ser reco-
nhecido afi rma que um autor não pode fazer concessões em sua obra
183Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
para tornar-se notável. Não é necessário e se isso ocorresse tal obra
não seria merecedora de fi gurar na lista dos maiores e melhores. Mas
se não se consegue esquivar totalmente do processo dominante, pode-
se, no entanto, preservar o trabalho que, em última instância, é uma
esfera que ratifi ca ou modifi ca a ideologia em vigor.
Conforme Raul Antelo e Rita Terezinha Schmidt, a solução para
tornar o cânone mais acessível e aberto a outras infl uências e expe-
riências não é a implosão do mesmo, mas a existência de um contra-
cânone, ou um cânone paralelo, que dê visibilidade a obras de grande
importância que foram relegadas a segundo plano.
A cultura popular durante muito tempo coexistiu com a cultura
nacional através de um contra-cânone. Assim o foi com os autores nor-
destinos a serem citados nesse trabalho, assim o é com muitos outros
ainda na contemporaneidade.
Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Jorge Amado e Ariano Suassu-
na, nordestinos, defensores de uma propagação da vida do homem do
Nordeste litorâneo e/ou sertanejo, preenchem todos (ou quase todos)
os parâmetros citados anteriormente para a inserção de uma obra no
cânone e, por isso mesmo, dão credibilidade a esse contra-cânone em
que estão ou já fi zeram parte.
O contra-cânone visibiliza e proporciona que haja uma transpo-
sição de lugar, alguns membros de seu quadro penetraram as barreiras
do cânone ofi cial e hoje fazem parte deste.
Luiz Gonzaga, inicialmente representante da música nordestina
para os retirantes no Sul do País, é tido, na atualidade, como um dos
grandes nomes da MPB e fi gura no cânone da música brasileira; Patativa
do Assaré, ainda situado no contra-cânone, encontra-se em processo
de transposição devido ao grande interesse por sua produção artística
184 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
na contemporaneidade; Jorge Amado, representante originariamente
de uma literatura regional, é considerado hoje um dos maiores auto-
res brasileiros, inclusive um dos mais lidos no exterior e membro da
Academia Brasileira de Letras.
O contra-cânone ou cânone local é uma seleção importante para
dar exposição. Ao criar o cânone negro, feminino, nordestino não se
propõe o fi m do modelo ofi cial, mas a oportunidade de que este ca-
tálogo possa ser ampliado com aqueles representantes que não foram
inclusos, mas são dotados de grande caráter estético.
Eis aí, por hora, apenas o início da discussão: a ideologia presente
e atuante, mas a serviço da estética.
Artífi ces da cultura nordestina
Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e Jorge Amado são exemplifi -
cações evidentes de que a cultura popular tem a aptidão de galgar os
mais altos postos na classifi cação artística, vencendo as barreiras da
regionalidade e do preconceito e tornando-se arquétipos não mais de
uma região do País, mas representações de toda uma nação às outras
pátrias.
Luiz Gonzaga, pernambucano de Exu, foi, como muitos outros
nordestinos, um retirante. Partiu para o Sul do País em busca de tra-
balho e uma melhor condição de vida. Ao participar de um concurso de
calouros com uma composição sua, ganhou o primeiro lugar no programa
do renomado compositor Ary Barroso.
Com sucesso e um emprego garantido na Rádio Nacional onde
ganhara o prêmio, Gonzagão, como fi cou conhecido, obteve espaço
185Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
na mídia para a divulgação de sua obra musical e, por conseguinte, da
expressão cultural nordestina. As suas músicas não tinham por mérito
apenas engrandecer o espaço do Nordeste, mas além disso desvelar o
sofrimento desse povo, como se pode constatar em Vozes da Seca:
Seu dotô os nordestino têm muita gratidãoPelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão Mas doutô uma esmola a um homem qui é sãoOu lhe mata de vergonha ou vicia o cidadãoÉ por isso que pidimo proteção a vosmicêHome pur nóis escuido para as rédias do pudêPois doutô dos vinte estado temos oito sem chovêVeja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê(Luiz Gonzaga e Zé Dantas)
Ao desfraldar as subcondições de vida do sertão, o Velho Lua traz
à refl exão a ação dos políticos para a transformação dessa realidade.
Ponderar sobre as questões políticas, utilizando-se até da oralidade do
nordestino é dar mais veracidade a sua alocução.
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudageLivre assim nóis da ismola, que no fi m dessa estiageLhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corageSe o doutô fi zer assim salva o povo do sertãoQuando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chãoComo vê, nosso distino mecê tem na vossa mão. (Idem)
A voz de Luiz Gonzaga é a síntese da voz do sertanejo nordes-
tino: uma cobrança por ações que possam dirimir o impacto da seca.
A concepção que apresenta é a de que o nordestino não deseja sair
186 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
do lugar em que vive e ama, mas o de permanecer e contribuir para o
sustento do País. O assistencialismo praticado pelo governo é também
questionado e conceituado de ‘esmola’ e ‘vergonha’ para o povo do
Nordeste. Combater tais práticas é dar dignidade a esse povo.
Luiz Gonzaga é a confi rmação de que a cultura popular não é
meramente superfi cial, mas dotada da capacidade de questionar. É
ainda a esfera para demonstrar a riqueza dessa cultura, como se ob-
serva em A vida do viajante:
Minha vida é andar por esse país/Pra ver se um dia des-canso felizGuardando as recordações/Das terras onde passeiAndando pelos sertões/E dos amigos que lá deixei Chuva e sol/Poeira e carvãoLonge de casa sigo o roteiro/Mais uma estaçãoE alegria no coraçãoMar e terra/Inverno e verãoMostro o sorriso /Mostro a alegriaMas eu mesmo não/E a saudade no coração(Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil)
A cultura nordestina é, para Gonzagão, o resultado de um apren-
dizado alcançado pelas viagens. Uma excursão comum aos retirantes
que são infl uenciados pelo meio estranho em que vivem ao sair de sua
terra natal. Ao viajar para outras terras, o sertanejo não se esquiva
de aprender e ensinar também. As ‘recordações’ desses locais serão
determinantes na cultura popular nordestina, pois se agregam a essa,
em uma constante re-elaboração de costumes.
Por fi m, Luiz Gonzaga esclarece que apesar das difi culdades e do
êxodo forçado, o nordestino é contemplado por uma ‘alegria’ capaz de
fazer-lhe resistir às intempéries do tempo, do abandono político e do
preconceito sulista. Alegria e esperança de vislumbrar mudanças.
187Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O cearense Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, faz
parte dos tradicionais cantadores sertanejos, os chamados repentistas.
É itinerante, como grande parte dos sertanejos, e divulga sua obra com
as suas andanças pelo Brasil. Sua obra possui uma feição baseada na
oralidade de sua região, assim como Luiz Gonzaga. Propositadamente
cria uma identidade sertaneja transcrevendo os sentimentos e falares
dessa região.
Cá no sertão eu infrentoA fome, a dô e a misera.P’ra sê poeta diveraPrecisa tê sofrimento... (Cante lá que eu canto cá)
Sou matuto sertanejoDaquele matuto pobreQue não tem gado nem quêjo,Nem ôro, prata nem cobre. (Vida sertaneja)
Percebe-se em Patativa do Assaré o que já fora evidenciado em
Luiz Gonzaga, um forte sentimento de indignação e inconformidade
com o descaso político que atinge o Nordeste.
A bem do nosso progressoQuero o apoio do congressoSobre uma Reforma AgráriaQue venha por sua vezLibertar o camponêsDa situação precária. (Eu quero)
Acerca do preconceito existente com a cultura nordestina e
especifi camente com a sua obra, Patativa afi rma sua ‘menoridade’
em relação aos grandes parâmetros de bom compositor. Sua obra é
destinada aos seus semelhantes, como assegura, não tendo lugar no
188 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
‘rico salão’, compõe para aqueles que possam entender seu lamento,
escreve para quem possa compartilhar seu ideário, sua cantoria.
Meu verso rastêro, singelo e sem graça,Não entra na praça, no rico salão,Meu verso só entra no campo e na roçaNas pobre paioça, da serra ao sertão[...]Não vá percurá neste livro singeloOs cantos mais belo da lira vaidosa,Nem brio de estrela, nem moça encantada,Nem ninho de fada, nem chêro de rosa. (O poeta da roça)
Patativa do Assaré, no entanto, equivoca-se concernente ao desti-
no de sua obra. Ao retratar o Nordeste e sua condição social, demonstra
que um sertanejo humilde, sem muita instrução pode liricamente falar
de dor, sofrimento. Suas composições corroboram para desmascarar o
preconceito contra o povo do sertão e a arte popular. Tais temas não
se confi guram como regionais, mas caracterizam-se como matéria de
interesse irrestrito.
O escritor baiano Jorge Amado também sintetiza o Nordeste,
mas partindo do viés do litoral e da religião do candomblé. Transcreve
em seus livros a fala das personagens que cria, o mestiço, a prostitu-
ta, o fi lho de santo, o capoeirista, enfi m indivíduos que quase nunca
freqüentaram a escola e por isso não dominam o falar culto, mas são
mestres na capacidade de viver dia-a-dia, senhores no ofício da va-
diagem (arte do amor) e excelentes na transmissão de suas expressões
artístico-religiosas.
... Olga puxou o canto de saudação aos orixás:Agô lelê
189Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
agô lô dakêô xaoorô[...] As Yansãs foram chegando, uma a uma. Os convidados se apertavam, todos queriam ver. Cresceu o som dos ataba-ques, ouviu-se o acompanhamento do agogô e da cabaça. Olga do Alaketu partiu, cavalo no galope, disparado, que beleza! (O sumiço da Santa, 1973, p. 393-394)
Ao contrário dos outros autores citados que centraram suas obras
no sertão impregnado da religiosidade católica, Jorge Amado abandona
os juízos de valores cristãos e lida de maneira recorrente e sem pudor
com a sexualidade humana:
Vai fi car no ora veja quem pensa regalar-se com expres-sões eróticas, detalhes pícaros, excitantes, suspiros e gemidos, palavras doces: vem, minha safadinha, minha puta descarada, língua de ouro, xoxota de veludo, cu de carrapeta, coisas assim de ternura, delicadas, român-ticas, divinas expressões de amor. Não se contará do descabaçamento.Descabaçamento? Não já acontecera? Vinte anos passados, na lua-de-mel após o casamento, sobre os lençóis de linho na casa do doutor Fernando Almeida? Naquele então, com mau jeito e pressa descabida, Danilo comera o cabaço de Adalgisa, incrustado sob a mata de pêlos encaracolados na boca do mundo, virginal. [...](O sumiço da santa, 1973, p. 433)
Os tabus da sociedade são desvelados quando da exposição da
intimidade humana por Jorge Amado e obviam um re-direcionamento da
moral, desconstruindo o conceito de pudicidade que fora outorgado pela
Igreja, apregoando em seu lugar a moral do prazer e da satisfação.
Para ele, Amado, por que se negar ao prazer se ele é inerente
ao mestiço e dele não se pode fugir? Se o homem vive impulsionado
pelo sexo, se suas atitudes quase sempre refl etem um desejo reprimi-
do, o prosador baseia-se nos postulados freudianos para compor seus
enredos.
190 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Assim, o escritor baiano defende a queda do poderio erudito,
simbolizado pelos políticos e artistas embevecidos pelas infl uências
européias e a reestruturação do sistema sob a autoridade do mestiço,
o verdadeiro representante do Brasil, o resultado da mistura dos povos
que formaram o País.
Dessa forma, a sexualidade para Jorge Amado não deve ser vista
como elemento discriminatório (as mulatas fogosas, os mestiços bem
dotados), entretanto como dado diferenciador do purismo existente
no ápice do poder.
Se Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga utilizam-se do sertanejo
como elementos símbolos da cultura nordestina, Jorge Amado centra-
se no ‘mulato’ e no candomblé como novos parâmetros para uma so-
ciedade mais igualitária, mais justa e mais alegre. Uma sociedade em
que os valores do senso comum sejam preconizados e ocupem lugar de
destaque do âmbito civil:E aqui se dá por fi nda a história de Adalgisa e de Manoela, descendentes do castelhano Paco Perez y Perez e da negra Andreza, tia e sobrinha, fi lhas as duas de Yansã. Yansã veio à Bahia em visitação para consertar-lhes a vida torta, pôr o cobro à maldade, ensinar o bem e o gozo, a alegria de viver. [...] Deletreou com Dorival Caymmi, com Carybé e com este vosso criado, obrigado, três obás de Xangô, três doutores honoris causa da escola da vida, três rapazes da Bahia, um músico, um pintor, um romancista, saravá! (O sumiço da santa, 1973, p.434-435)
Para Jorge Amado, há uma alternativa viável para a coexistência
entre cientifi cismo e senso comum, o popular e o erudito. Questionar
as estruturas discriminatórias de poder é tão-somente uma investida
para a equiparação de forças: de um lado uma ciência comprovada
por testes, análises e discussões, defendida por um pequeno grupo
detentor do poder; do outro a grande parcela da população que luta
pela felicidade, sobrevive e possui suas práticas diárias comprovadas
não em laboratórios, porém testadas pela vida.
191Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Epílogo
Depois de traçar um breve panorama a respeito das represen-
tações populares do Nordeste, é mister explicitar que a uma cul-
tura marginalizada restam duas opções: ser legitimada pelo centro
artístico-econômico do País e assim ter sua divulgação e conseqüente
reconhecimento referendados, fi rmando-se no cânone nacional, ou
obter notoriedade em seu próprio lugar de origem e, dessa forma,
chamar a atenção do centro para a periferia, o chamado cânone local
ou contra-cânone.
Em qualquer das duas hipóteses de canonização, não se deve
deixar de considerar a afi rmação de Caldas de que “a cultura popular
pode ser um dos pontos de apoio das transformações verbais”.
Acreditar na capacidade transformadora da arte, apoiar-se na
propriedade desestabilizadora que esta possui é conjeturar que uma
obra artística é também o instrumento das grandes mudanças sociais,
mudanças essas que são iniciadas no âmbito do discurso, a palavra e a
sua capacidade de convencimento.
Através da arte é possível subverter o sistema vigente e instaurar
outra ideologia. Expor as mazelas da sociedade é um meio de desven-
dar as vigas apodrecidas do sistema. Assim o fazem com sua obra os
artistas nordestinos. Assinalam com seu canto de dor as moléstias do
povo do Nordeste. Assomam com seus trabalhos a força e persistência
do sertanejo que porfi am por lutar, mas não só lutar, extrair um canto
dessa luta, um hino pela sobrevivência.
Crer deste modo é assegurar que a expressão artística popular
do Nordeste não é uma subcultura, mas constitui-se tão-somente como
uma das muitas representações da cultura nacional.
192 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
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MV Bill: o preto em movimentono discurso étnico-midiático José Luis de Freitas SantosLicenciado em Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas, professor do Humanidades – Centro de Estudos em Literatura e Cultura.E-mail: [email protected]
ResumoEste trabalho apresenta a emergência midiática de MV Bill no cenário nacional e suas estratégias periféricas de negociação com os veículos de comunicação para visibilizar um potente discurso identitário e étnico-afi rmativo por meio de suas produções artísticas e culturais, bem como nos valores da cultura Hip-Hop que ele cultiva. Busca-se, na análise dos trabalhos deste rapper, sobretudo, compreender a importância da formulação de contra-discursos, como o conceito forjado por ele do “preto em movimento”, que é de extrema importância para pensar uma cultura diaspórica como a brasileira, além de dar suporte no processo de viabilização da aplicação da lei nº 10.639, que institui como obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira.
Palavras-chaveMV Bill, cultura hip-hop, discurso identitário, contra-discursos, aplicação da lei nº 10. 639.
09
197Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Para melhor compreender as motivações das ações afi rmati-
vas do rapper MV Bill e sua importância referencial étnico-racial na
sociedade brasileira contemporânea, torna-se necessário analisar as
condições oferecidas ao povo negro quando inseridos em uma outra
cultura, cujas teorias racistas permeiam a sociedade. Estas teorias
implantaram no Brasil análises que alcançaram status “científi co”,
estabelecendo a concentração de um poder hierárquico entre raças.
Renato Ortiz, em seu livro “Cultura brasileira e identidade nacional”,
nos apresenta três teorias que impactaram as construções identitárias
na sociedade brasileira:
[...] o positivismo de Comte, o darwinismo social, o evo-lucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser consideradas sob um aspecto único: o da evolução histórica dos povos. [...]. Do ponto de vista político, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar à elite eu-ropéia uma tomada de consciência de seu poderio que se consolida com a expansão mundial do capitalismo. (ORTIZ: 1998:14)
No século XIX, as teorias fundamentadas em estudos biológicos,
“confi rmaram a hierarquia racial”. Assim, adotadas pela inteligentsia
brasileira, afi rmaram que os povos originaram da raça branca. Com
efeito, manter laços sanguíneos e/ou estéticos brancos seria sinônimo
de pureza. Desta forma, em uma classifi cação racial, o negro seria a
mais distante raça com traços de pureza ou evolutivos e isso refl etiria
em seu posicionamento mais primitivo. Extinguir traços referentes
a essa negritude passou então a ser uma comprovação de evolução,
facilitando, portanto, a aceitação na sociedade brasileira, que regula
as relações inter-raciais por meio do discurso racista. Partindo destas
afi rmações históricas, podemos compreender a repulsa ou o estra-
198 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
nhamento causado pelos discursos de personalidades que conquistam
certa visibilidade quando assumidamente impõem-se como negros nos
veículos midiáticos contemporâneos. De acordo com Foucault,
Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistri-buída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (Apud. REVEL, 2005: 08)
O discurso é perpassado por vários aspectos históricos, ideoló-
gicos e sociais, e é produto de mecanismos de controle, sendo que,
dar visibilidade aos emergentes discursos é a alternativa possível de
novas construções de identidades na cultura brasileira. Por isso, os
estudos contemporâneos se voltam para a história ofi cial brasileira,
reconstruindo-a, focando-se nas novas produções artístico-culturais
com o intuito de construir ou tornar visíveis discursos identitários que
libertam da “Mental Slavery”, isto é, a “escravidão mental”, da qual
falava Luther King, e também Steve Biko, ao afi rmar que “a força do
opressor encontra-se na mente do oprimido”, ou seja, referiam-se aos
processos de subjetivação negativa sofrida pelo povo negro mesmo
após a escravidão física. Diante destas afi rmativas torna-se necessário
pontuar a importância da música em meio a este “combate ideológico-
social”, como uma das produções midiáticas expansionistas, mundiali-
zadora em fi ns do século XX.
Se levarmos em conta o poder e a importância que a música, enquanto expressão estético-comportamental e principalmente como produto cultural, conquistou no decorrer desse século, poderemos deduzir o quanto a mesma tem sido determinante para o reconhecimento e legitimação da cultura negra nos últimos tempos. (GODI, 1999:273-274)
199Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Estas produções músicos-culturais tornam-se também veículo
referencial identitário, na medida em que associações simbólicas
surgem por meio das produções musicais, construindo-se através de
uma assimilação de negritude que forja uma origem partida de África,
visando a fortalecer a construção de uma narrativa identitária que
seja estratégica nas relações contemporâneas, uma vez que, conforme
Canclini, “a identidade é uma construção que se narra”.
Neste trabalho, a vertente musical utilizada como veículo de
afi rmação identitária é o Hip-Hop, meio pelo qual Alex Pereira Barbosa
ganhou visibilidade e narra a sua trajetória e de outras “faces negras”
na mídia. Este fenômeno de tomada de consciência social por meio do
Hip-Hop é comentado no Livro Vermelho do Hip-Hop (www.realhiphop.
com.br).
O ‘autoconhecimento’ é estratégico no sentido de com-preender a trajetória da população negra na América e no Brasil. Livros como ‘Negras Raízes’ (Alex Haley), ‘Escrevo o que eu Quero’ (Steve Byko), biografi as de Martin Luther King e Malcolm X, a especifi cidade do racismo brasileiro, especialmente discutido por Joel Rufi no e Clóvis Moura, bem como lutas políticas da população negra, passaram a integrar a bibliografi a dos Rappers. (www.realhiphop.com.br/olivrovermelho/spensy_pimentel2.htm)
Neste contexto, Alex vê também a possibilidade de protagonizar
sua própria história, com referências positivas de uma luta com a qual
ele tem anseio em colaborar. Sua participação ativa e processo de afi r-
mação de sua negritude ocorrem por meio do movimento Hip-Hop.
Observando a biografi a no site ofi cial de MV Bill (www.mvbill.
com.br), estabelecendo o diálogo com um dos relatos presentes do
livro “Cabeça de porco”, o capítulo intitulado “O choro do mensageiro”
(p.189-202), como fontes iniciais de informações, podemos notar como
200 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
emerge a fi gura do rapper MV Bill, diante ao contexto social desfavo-
rável ao seu sonho de ser reconhecido através da ação transformadora
do Hip-Hop.
Alex Pereira Barbosa, garoto de família humilde, vê no Hip-Hop
a alternativa de ser um grande cantor de rap. Filho de dona-de-casa,
Dona Cristina, e do bombeiro hidráulico e sambista Mano Juca, com o
qual inicialmente compõe e canta samba, Alex identifi ca-se mais tarde
com a ideologia do movimento Hip-Hop, e dentro de suas possibilidades
buscou se articular para realizar seu sonho. E como todo artista, ele
adquire o nome que o representará no meio artístico de forma simples
durante sua trajetória. Na infância, os colegas o comparam com um
desenho animado o “Rato Bill”, e na sua juventude, após deixar-se
infl uenciar por referências negras politizadas como Malcolm X e Zumbi
dos Palmares, dos quais ele lê a biografi a, e inspira-se nas letras das
músicas do grupo nova-iorquino, “Public Enemy”, grupo de postura
politizada do movimento Hip-Hop, Alex passa a falar frequentemente
sobre questões étnico-raciais.
Estas referências fi zeram Alex perceber o contexto social no qual
estava inserido e mudar sua postura em busca de um posicionamento
político. Esta atitude lhe rendeu a segunda sigla “MV, Mensageiro da
Verdade”, doação das senhoras evangélicas da CDD: “Algumas senhoras
evangélicas da Cidade de Deus, ao verem como o cantor transmitia a
mensagem popular das favelas e suas críticas aos problemas sociais,
batizaram-no como mensageiro da verdade” (www.mvbill.com.br).
Alex, que havia explorado seu talento artístico compondo e cantando
samba como o pai, começou, então, a emergir no movimento Hip-Hop,
ou como descreve seu empresário e amigo Celso Athayde, ele sofreu
sua primeira “metamorfose”.
201Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Celso descreve, desta forma, a mudança comportamental do
menino que lhe apresentou o sonho, na porta de sua casa, de ser
rapper: “Alex era magro, feio, fechado, ranzinza, aparentemente
triste. Era incapaz de atravessar uma sala repleta de gente” (Cabeça
de Porco. p.198).
Convencido por Edson de Deus, Celso ofereceu a este mesmo me-
nino, na época, sua primeira grande oportunidade de aparição. Edson,
produtor dos “Racionais MC’s”, propõe que Alex abra o show deles no
Império Serrano. Neste evento, o rapper é observado e descrito por
Celso ao cantar sua música “Marquinho Cabeção”:
O público vinha abaixo. Era ele, o neguinho mal-encarado que acabara de se transformar num bicho, num domador, num guia, Messias. Em determinado momento, ele parou o show para falar. [...]. Não era possível que aquele neguinho magricela pudesse ser aquele astro, mas era. Acabou sua performance aos gritos e aplausos efusivos. Impressionante tudo aquilo. (EDUARDO, BILL, ATHAYDE, 2005:199)
Neste trecho do livro, surge de forma complicada a descrição
empolgada do empresário e amigo do rapper que, infelizmente, antes
de descrevê-lo como “Messias”, caracteriza-o por uma “metamorfose
outra”. Neste momento, termos de classifi cação pejorativa aparecem
de forma ambivalente provocando um estranhamento com a sua mar-
ca “depreciativa” ao mesmo tempo em que denotam a intimidade de
Celso Athayde com Bill, uma vez que ambos viveram como amigos a
mesma situação de exclusão e ele testemunhou a transformação de
Alex Pereira em MV Bill, e também a sua como líder comunitário, con-
forme consta no capítulo “O choro do mensageiro” (p.202), do livro
“Cabeça de Porco”:
202 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Ali começou a grande mudança, na minha vida, na vida do Bill e na vida da cidade de Deus. Hoje, aquele Alex é o Bill que o Brasil inteiro respeita, e parte do mundo conhece. Hoje posso afi rmar que o Bill é um homem, um outro homem. Daquele tempo só sobraram os seus maiores méritos: a humildade, a simplicidade e sua dedicação verdadeira ao povo das cabeças de porco. (EDUARDO, BILL, ATHAYDE, 2005:199)
O “Marquinho Cabeção”, primeira música de apresentação em
um grande evento cantada por MV Bill, baseia-se em uma das muitas
cenas das favelas do Brasil, que o rapper teve a sensibilidade de ob-
servar e contestar em seu trabalho. A letra da música conta a história
de um garoto, que desiludido pela situação de miséria em que vive,
abandona o seu sonho de ascensão social por meio do futebol, por
ver na criminalidade uma alternativa de ascensão dentro da favela.
A possibilidade de aproveitar de alguns prazeres fúteis o direciona
precocemente à morte.
Esta música, desde sua introdução, faz uma forte crítica às de-
sigualdades sociais causadas pelo “capitalismo selvagem”, que ganha
força com a mídia.
Apenas um garoto, 15 anos de idade, seu grande sonho era ser jogador de futebol, mas como sempre acontece no Rio de Janeiro, a ilusão pela TV, veio primeiro. Queria ter carro, muita mulher, acabou entrando para a vida do crime, essa é a história de Marquinho Cabeção. (BILL, 1998:f.8)
A música “Marquinho Cabeção” é baseada em uma história real
acontecida na CDD, e a mudança ocorrida na narrativa foi feita apenas
para preservar o verdadeiro protagonista do cenário catastrófi co. Foi
com esta noção de bom senso e perseverança que MV Bill ganha espaço
e a confi ança de Celso e lança seu primeiro CD, “CDD Mandando Fecha-
203Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
do”, em 1998, após já ter se destacado no “Tiro Inicial”, evento que
revelou novos representantes do Hip-Hop. O mesmo álbum é relançado,
em 1999, com novo título “Trafi cando informação”.
MV Bill teve presença marcante em eventos como Free Jazz, por
apresentar uma performance no palco que ao mesmo tempo em que
correspondia a um estereótipo do “negro favelado, soldado do tráfi -
co”, contestava a descrição estéril desse sujeito periférico através do
choque e do espetáculo desconcertante que promove: um negro, sem
camisa, com o corpo tatuado e arma na cintura invade a cena can-
tando ameaçadoramente sua letra contestadora “Soldado do morro”.
Os críticos, no entanto, focaram na imagem e esqueceram de suas
palavras, que contestavam um mundo sinistro, excluído, marginal e,
por vezes, criminoso, apresentado a um garoto em uma favela, o qual
não assimila bem as disparidades sociais de que é vítima e, inclusive, o
invisibiliza. Daí a provocação que se faz presente no refrão da música:
“Feio e esperto com uma cara de mal/A sociedade me criou mais um
marginal/Eu tenho uma nove e uma hk/Com ódio na veia pronto para
atirar (2x)” (F.8).
O videoclipe desta música é lançado em 2000, e assim como ou-
tros trabalhos do rapper, passa por investigação da polícia “confusa”
quanto às ações de Bill, que é morador de favela, é negro e tem certo
contato com pessoas envolvidas no tráfi co de drogas, acusa-o, por suas
pesquisas e trabalhos artísticos realizados, de fazer apologia ao tráfi co.
Ele argumentou na época que a “intenção era mostrar a realidade que
está escondida no nosso dia-a-dia. Muitos têm interesse em que ela
permaneça desse jeito, os que pregam a paz e acabam fi nanciando a
guerra” (www.BrazilianArtists.net).
Em 2002, com o álbum “Declaração de guerra”, é lançado o
204 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
videoclipe “Só Deus pode me julgar”.
Bill mostra a seriedade de seu sucesso como representante do
movimento Hip-Hop, fazendo do seu trabalho uma marca forte de con-
testação aos desníveis sociais, e, por isso, recebe diversos prêmios, a
exemplo, o título de Rapper mais politizado outorgado pelo UNICEF —
Fundo das Nações Unidas para a Infância (2004), e de Cidadão do Mundo,
pelo Fórum Mundial das Culturas, em Barcelona, Espanha, em 2003.
Em 2005, lança o livro “Cabeça de Porco”, com Luis Eduardo Soares
e Celso Athayde. Em 2006, ele lança um material que é resultado da
pesquisa de seis anos, o documentário “Falcão: meninos do tráfi co”,
que depois de nova polêmica conquista o espaço do “Fantástico”, na
Rede Globo (19/03/2006).
A produção artística do rapper ganha visibilidade, e seu livro e
documentário são apresentados ao presidente Luis Inácio Lula da Silva e
seus ministros. Quando questionado quanto às propostas que ajudariam
a solucionar os problemas expostos por seu trabalho, Bill apresentou
o modelo do projeto CUFA como alternativa no auxilio do combate aos
problemas ocorridos nas favelas.
O CD “Falcão: O bagulho é doido” é lançado também em 2006,
com seu próprio selo, “Chapa Preta”, mais um mecanismo de articu-
lação midiática. Durante todo o processo no qual MV Bill surge como
cantor e escritor, seu posicionamento crítico o impulsionou a uma
maior preocupação com as favelas, com o tráfi co e seus “verdadeiros
administradores”, com as vidas interrompidas na infância ou juventude,
com o racismo e as disparidades sociais.
Reconhecendo o poder midiático constitutivo do imaginário
popular e a emergência das discussões étnico-raciais, a representa-
tividade peculiar do rapper MV Bill, do movimento Hip-Hop, torna-se
205Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
importante para se pensar na construção identitária e nos resultados
das experiências diaspóricas intrínsecas a essa personagem/personali-
dade da contemporaneidade como paradigma social brasileiro, sendo
ele um dos representantes de um grupo étnico-racial marginalizado.
Micael Herschmann afi rma que:
Assistimos hoje à crise de um modelo, de um paradigma de Brasil, no qual era possível encobrir ou colocar em segundo plano aquilo que o outro traria de irredutível, os diferentes interesses presentes em nosso cotidiano social com o recurso simbólico a imagens unifi cadoras construídas a partir de diferentes materiais. (HERSCH-MANN, 200:33)
MV Bill é um dos representantes da cultura marginal. Pode ser
visto também como um dos artistas que promove uma rachadura neste
espelho da sociedade brasileira que só refl ete alegria, principalmente
nas manifestações culturais do País. Esta forçada redefi nição de Brasil
ou de brasis dentro desta nova dinâmica de construção identitária,
partindo das camadas menos privilegiadas acerca do País, faz emergir
a multiplicidade de imagens que compõem o território nacional. Bill,
neste contexto, alcança certa visibilidade por meio de sua construção
discursivo-midiática após ser perseguido por “dispositivos de controle”
depois da apresentação do videoclipe “Soldado do Morro” para sua
comunidade, “Cidade De Deus (CDD)”, e este material audiovisual foi
fi lmado, de forma não-autorizada, por um repórter da Rede Globo e
exibido posteriormente também sem a conivência dos autores e da
comunidade da CDD.
O documentário “Falcão, meninos do tráfi co” foi apresentado
em um dos programas considerados de maior audiência da Rede Glo-
bo, “Fantástico”, em 19 de março de 2006, após vários adiamentos,
206 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
o que causava ainda mais curiosidade nos telespectadores, até que
fi nalmente foi ao ar. Esta conquista do rapper é comentada em uma
entrevista, feita em uma das salas da CUFA (www.jt.com.br). Nela, Bill
demonstra satisfação por ter conseguido dar visibilidade a um material
importante para tornar pública uma das realidades do Brasil, porém
ele se mostra consciente do processo de negociação ambivalente que
permite o sucesso de sua estratégia midiática: “Eu uso a mídia, mas
tenho a plena consciência de que sou usado por ela. Preciso tomar
muito cuidado para não virar mais um produto”.
MV Bill, ao iniciar sua performance nos palcos, costuma bradar
de forma incisiva “MV Bill está em casa”, diferenciando-se de outros
rappers, que normalmente fazem saudações com um “alô” ou “um sal-
ve” para as várias comunidades nas quais mantém algum vínculo, como
se afi rmassem estar destoado do ambiente, mesmo estando presente e
preferindo “conexões extra cenário”. Bill posiciona-se como integrante
do ambiente em que se insere não permitindo o que na modernidade
chamamos do “deslocamento do sujeito”. Ele integra-se ao ambiente
interagindo e impondo-se como potencial agente transformador.
Bill denuncia problemas sociais e amplia seu discurso, mostrando-
se fi rme por se assumir como negro e ter consciência de seu protagonis-
mo dentro da CDD, comunidade a qual representa, oferecendo noções
de negritude-periférica, a partir do Rap. Refl etindo sobre a postura
de rapper, baseado na concepção desenvolvida pelo professor Dênis
de Moraes, da Universidade Federal Fluminense, no texto “O partido
e a expressão da vontade coletiva”, no qual analisa Antonio Gramsci,
identifi camos Bill como um “intelectual orgânico”:
Os intelectuais assumem o protagonismo na articulação do partido revolucionário que empreenderá a reforma
207Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
intelectual e moral. Gramsci entende que todos os membros de uma agremiação devem ser considerados intelectuais, não pelo seu nível de erudição, mas pelas funções que exercem. Para ele, existem dois tipos de intelectual: o “intelectual orgânico”, que, em sintonia com a emergência de uma classe social determinante no modo de produção econômico, procura dar coesão e consciência a essa classe, também nos planos políticos e social; e o “intelectual tradicional”, que se conserva relativamente autônomo e independente, mesmo tendo desaparecido a classe a que pertencia no passado. Ambos cumprem funções análogas às do partido: buscam dar forma homogênea à consciência da classe a que estão ligados ou, no caso dos intelectuais tradicionais, às classes a que emprestam sua adesão, e desse modo preparam a hegemonia sobre o conjunto de seus aliados. São, em suma, instrumentos da consolidação de uma vontade coletiva, de um bloco histórico. (http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv80.htm)
Dentre as próprias práticas de apresentação e representação da
negritude periférica, Bill, que não tem o nível fundamental concluído,
que assume a postura deste “intelectual orgânico”, é uma das vozes
reivindicadoras que alerta para o descaso dos governantes e da própria
população. Sua ação denuncia a ignorância aos problemas ocorridos nas
relações inter-raciais e de classe do País, que além de não apresenta-
rem propostas de reconfi guração social, ainda promovem estratégias
visando à imobilidade social da população periférica, em sua grande
maioria negra.
Stuart Hall, em seu texto “Identidade cultural e diáspora”,
afi rma que as representações culturais dos sujeitos pós-coloniais têm
o negro como foco. O “preto em movimento”, conceito forjado por
MV Bill, dialoga com as afi rmativas de Hall, na medida em que ele
procura mostrar o dinamismo desta construção discursiva identitária
negra na cultura brasileira. As práticas de representação centram-se
no sujeito da enunciação, sendo ele o rapper MV Bill, nascido e criado
na periferia, pobre e negro. Seu “perfi l” dentro das construções iden-
208 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
titárias como sendo “o outro” na sociedade brasileira, tem referência
de negatividade.
Consciente deste fato, Bill apropria-se da mídia, narra a história
de resistência e reelaboração cultural. Das experiências oriundas do
contato com outras culturas no deslocamento do povo negro de África
até o Brasil contemporâneo. Na linguagem vídeoclíptica do “preto
em movimento” (www.mvbill.com.br), Bill aparece em um momento
inicial fazendo referência a personagens negras em meio a toques de
atabaques, vestido de paletó e gravata, em uma sala de aula, a qual
em um momento anterior um professor iniciava sua aula informando
a seus alunos sobre o dia da consciência negra. Em uma seqüência
de imagens o professor apresenta no telão fotos de personalidades
referenciais negras a seus alunos. Em meio às fotos de Bob Marley,
Zumbi e Sandra de Sá, surge também a de MV Bill, cantando. Dentre
as imagens do videoclipe, as que mais chamam a atenção é a alusão a
gestos de profi ssionais/profi ssões de grande status social atribuído a
alunos, enquanto brincam em um momento de recreação, e então as
imagens cinza ganham o colorido.
Bill conscientemente mostra por meio da mídia o novo sujeito
constituído desta experiência diaspórica, de culturas agregadas, inseri-
do na sociedade brasileira como agente social, que interage nos âmbitos
sociais, tendo uma referência simbólica de uma negritude de África:
Não sou o movimento negro/sou o preto em movimentoTodos os lamentos (me fazem refl etir) /sobre a nossa históriaMarcada com glóriasSentimento que eu levo no peito/é de vitóriaSeduzido pela paixão combativaBusquei alternativa (e não posso mais fugir).(BILL, 2006:f. 7)
209Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Bill, agindo em consonância com a afi rmativa de Hall quanto às
identidades culturais, reconhece que, embora ele encontre similarida-
des nas concepções de negritude, existem pontos críticos de diferença
constituindo “o que nós nos tornamos”. A postura apresentada por Bill
oportuniza demonstrar neste poema-canção a reprodução da sua noção
de ação afi rmativa. Certo de sua negritude construída historicamente
com vozes que lhe antecedem na sua construção identitária, ele dialoga
com uma destas vozes representantes da black music brasileira Sandra
de Sá, com sua música “Olhos coloridos”.
Em um contexto social desfavorável, cercado de preconceito
racial no qual a história ofi cial é contada na ótica do colonizador, o
rapper valoriza as entrelinhas da história, as vitórias conseguidas por
representantes negros como Zumbi, referência recorrente em suas
músicas. Dignifi car o que foi conquistadoMudar de estado, sair de baixoSem esculacho é o que eu acho Não me encaixo nos padrõesQue visam meus irmãos como vilõesNa condição de culpadosOvelha branca da naçãoQue renegou pretidão (na verdade é que você...) Tem o poder de mudar ‘RAPÁ’.(BILL, 2006:f. 7)
A canção demonstra a percepção do rapper, quanto à condição
submissa de uma parcela do povo negro, que direcionados às mazelas
sociais recorreram à marginalidade. Neste trecho, Bill ressignifi ca a
expressão “ovelha negra”, apresentando a “ovelha branca”, seduzida
pelo padrão estético e econômico do poder hegemônico branco do
Brasil, demonstrando que perdendo sua consciência identitária negra
210 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
ela não dignifi ca as conquistas de personalidades negras e do movi-
mento negro, que buscaram e buscam por meio de ações afi rmativas
garantir melhor educação, moradia, posição social, etc., por meio de
alternativas não vinculadas à marginalidade.
Então passe para o lado de cá, vem cáOutra corrente que nos une A covardia que nos pune A derrota se esconde irmãoQue não se assume Chora quando é pra sorrirRi na hora de chorarLevanta quando é pra dormirDorme na hora de acordarDesperta/sentindo a atmosfera, que liberadosPorões/e te liberta (Sarará crioulo...)(BILL, 2006:f. 7)
Neste trecho surge o “sujeito deslocado”, fruto da modernidade,
envolvido pelas adversidades impostas à sua vida, que ainda não se
encontrou como agente ativo nas margens sociais em que ele se encon-
tra. Bill apropria-se do símbolo da corrente que um dia a história uniu
nossos semelhantes à miséria e ressignifi cá-la construindo o sentido de
um vinculo étnico, em uma organização mais coerente nas intervenções
sociopolítica e cultural.
A questão mais importante e recorrente nas letras de MV Bill é o
chamado à libertação do conformismo, da marginalidade, das teorias
de embranquecimento, estratégias repressoras forjadas para segregar
o povo negro e afro-descendente no Brasil.
Muita força pra encarar qualquer bagulhoResistência sempre foi a nossa marca, meu
211Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Orgulho/ é bom ouvir o barulhoQue ensina como caminhar (Eu estou sempre na minha)Não vou pela cabeça de ninguémPode vir que temAgbara, Ôminara, Português, Faveles ouEm Iorubá, Axé.(BILL, 2006:f. 7)
Bill tem como exemplo o passado de luta e resistência do povo
negro conservando sua cultura como referencial, para fortalecer sua
posição afi rmativa da negritude. Ele recorre também às supostas varia-
ções lingüísticas que permitiriam o diálogo atemporal de descendentes
negros. Citando também um “barulho que ensina como caminhar”, que
nos impulsiona, espera pelo seu gesto de levar a mão ao ouvido, os
batuques dos tambores usados como guias para evocar os ancestrais,
quando se escuta o scratches do DJ, que também fortalecem a cami-
nhada do movimento Hip-Hop, no intuito de sair da miséria “determi-
nada” ao povo negro.
Pra quem vai buscar um acue/ E deixa de ser um qual-querJá viu como é/ Preto por convicção acha bom submis-sãoNão, da ré no Monza e embranquece na Missão/ tem que ser sangue bom com atitudeSaber que a caminhada é diferente pra Quem vem da negritude/ que um dia isso mudePor enquanto vou rezar por santo/ E que nós nos ajude.(BILL, 2006:f. 7)
Fica exposto neste trecho da música que, embora ainda tente
manter no imaginário popular a imagem do conformismo, a resistên-
cia negra permanece pela convicção da postura legítima adotada por
um “sangue bom, com atitude”, que mesmo ciente das adversidades
212 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
acredita nos bons resultados em sua trajetória, fortalecida pela fé dos
santos e pelos seus semelhantes negros, marginalizados e politizados.
Segue a imagem de Bill, em um pátio de escola direcionando-se às crian-
ças, que reúne para tirar uma foto. Neste momento, transformam-se
novamente as crianças, caracterizados com fardamentos de profi ssões
de prestígio, totalmente coloridos, contrastando com todo um cenário
cinzento. Coerente com esta imagem em que algumas crianças conse-
guem ascensão social por meio da educação e da cultura, Bill divulga
também a Central Única de Favelas.
A CUFA é um projeto usado como base para integrar favelas.
Os jovens fundadores deste projeto buscavam visibilidade, partindo
da concepção consensual de “transformar as favelas, seus talentos e
potenciais diante de uma sociedade onde os preconceitos de cor, de
classe social e de origem ainda não foram superados”. Projeto dos e
para os marginalizados, a CUFA torna-se uma alternativa ainda mais
interessante, pois quem o construiu conhece as verdadeiras demandas
da população, utilizando-se do meio mais forte de resistência social, a
cultura, para romper as “margens invisíveis da sociedade”.
A CUFA promove eventos nas áreas educativas, de lazer, de es-
portes, da cultura e da cidadania. Porém, sua força construtiva vem se
expandido pelo Brasil, buscando viabilizar todo um suporte de produção
midiática, discos, vídeos, programas de rádio, cinema, para possibilitar
promover concursos, shows, seminários e outras ações importantes
ligadas à cultura Hip-Hop. O surgimento da CUFA é comentado no seu
site ofi cial (www.cufa.com.br), revelando a identifi cação de Bill e seus
parceiros nesta “empreitada”.
Existe uma afi nidade fundamental entre a militância do Hip-Hop e os trabalhos da CUFA. O Hip-Hop é uma solução
213Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
criada pelos próprios habitantes das comunidades. É um movimento de afi rmação identitária composto por ele-mentos que representam a luta em prol dos excluídos e cuja linguagem fala de dentro para dentro, retratando a imagem da periferia como ela é realmente. A favela é um personagem que deve falar por si e participar do diálogo cultural, político e social com outros grupos. O público-alvo e os objetivos que ambos almejam são os mesmos: estimular as ações de protagonismo dos moradores de comunidades; promover uma revolução popular na cultura brasileira. (www.cufa.org.br/06/in.php?id=acufa)
Pensando nesta via de acesso cultural de construção identitária
que é o Hip-Hop, por meio principalmente do Rap, é interessante pensar
sobre a validade das ações afi rmativas construídas pelo rapper, MV Bill,
que passa a ser também referência no cenário nacional, somando-se
positivamente as ações afi rmativas ofi ciais. Acreditando na elaboração
de alternativas discursivas por meio da cultura Hip-Hop, produzida den-
tro das favelas para mobilizar mecanismos de conscientização política,
reitero a necessidade do investimento nesta expressão artística que
propicia o surgimento de ações afi rmativas da negritude, por meio de
releituras de personalidades negras, de desconstrução de estereótipos,
de reformulação da história ofi cial, tornando-se, assim, um mecanismo
viável de aplicação da lei nº 10. 639, apoiando o ensino da história e
cultura afro-brasileira.
A lei nº 10.639/2003, que prevê o ensino da História e Cultura
Afro-brasileira e Africana nos estabelecimentos de ensino fundamental
e médio, ofi ciais e particulares, refere-se, em especial, aos componen-
tes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil.
Estas conquistas dos Grupos Negros, que ganharam força pelas produ-
ções artísticas de conscientização popular, como o Hip-Hop, resultam
em uma mudança importante no Sistema Educacional, promovendo a
refl exão da construção etnocêntrica social no Brasil.
214 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Pretendendo sugerir meios de abordagem de temas relacionados
a posturas afi rmativas podem não só apresentar personalidades como
Dandara, Sabotage, Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), MV Bill,
Nelson Mandela, Racionais MC’s, Lélia Gonzalez, Luiz Silva (Cuti), Luiz
Gama, Milton Santos, Edson Gomes, Solano Trindade, André Rebouças,
José Correia Leite, Martin Luther King, Milton Santos, Rainha Nzinga
Mbandi, Alzira Rufi no, Abdias do Nascimento, Malcom X e Luiza Mahin,
todos negros que fugiram dos estereótipos forjados de submissão, mas
também oferecer possibilidade de articulação na sociedade proporcio-
nando a educação pela arte. Esta ação fornecerá pontos referenciais
na reconstrução identitária Afro-brasileira, e o melhor entendimento
da cultura Afro na escola.
Referências
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. SP: Brasiliense, 1998.
REVEL, Judith. Michel Foucault: Conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.
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Discografi a:
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Sites consultados
(http://pt.wikipedia.org/wiki/MV_BILL)
(http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv80.htm)
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Falc%C3%A3o:_Meninos_do_ Tr%C3%A1fi co)
(http://mv-bill.letras.terra.com.br/letras/97244/)
(www.vermelho.org.br/diario/2006/0319 mvbill-falcao.asp)
216 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
(www.cufa.org.br/06/in.php?id=acufa)
(www.mvbill.com.br/mvbill.htm)
(www.globalproject.info/art-1803.html)
(www.vagalume.com.br)
(www.BrazilianArtists.net)
(www.vivafavela.com.br)
O direito de resposta e sua exigibilidade nos ordenamentos jurídicos brasileiro e português
Valnêda Cássia Santos CarneiroBacharela em Direito pela UCSal, Especialista em Direito da Comunicação Social pela UL-PT, Mestre pela UCSal e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade 2 de Julho.E-mail: [email protected]
ResumoO instituto jurídico do direito de resposta é examinado comparativamente nos ordenamentos jurídicos de Portugal e do Brasil. Indica-se a utilidade desse instituto como solução ao confl ito entre a necessidade de garantir-se a liberdade de imprensa, pilar da democracia, e preservarem-se os direitos individuais à intimidade e à honra. É apresentado um breve histórico da legislação de imprensa para contextualizar os dispositivos legais que consagram o direito de resposta. Uma análise da titularidade para exigir-se o direito de resposta mostra as peculiaridades da legislação brasileira em face do direito português. Os procedimentos para a obtenção do direito de resposta são, afi nal, apresentados.
Palavras-ChaveDireito de resposta. Direitos fundamentais. Garantias constitucionais. Liberdade de imprensa. Ética da informação.
10
221Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Introdução
Este artigo analisa brevemente o direito de resposta e sua exigi-
bilidade em face das atividades dos modernos meios de comunicação
de massa.
O direito de resposta é uma forma de reparação dos danos causa-
dos à imagem pública de pessoas físicas ou jurídicas quando associadas
a notícias inexatas ou inapropriadas que possam atingir essa imagem.
É um modo pelo qual a alegada verdade dos fatos pode ser restaurada
sem que isso implique em um controle sobre atividade da imprensa que
seria incompatível com o modo de vida democrático.
O problema da liberdade de imprensa e dos danos que o uso
inconsiderado dessa liberdade pode causar, especialmente ao cidadão
particular, é um tema que tem preocupado os teóricos da comunicação
e, em especial, da ética da comunicação social.
Em que pese a relevância dos aspectos éticos da questão, o
foco deste artigo se restringe tão somente ao direito de resposta e,
neste, aos seus aspectos jurídicos, esboçando um estudo comparativo
do tratamento deste instituto no Brasil e em Portugal. As razões dessa
escolha residem nas similaridades culturais dos dois países e no fato de
terem ambos passado, em épocas próximas, por importantes processos
de redemocratização.
O artigo se inicia com a contextualização do confronto entre
liberdade de imprensa e direito à intimidade para justifi car-se a juris-
dicização das relações entre mídia e público, em que aparece o direito
de resposta. Em seguida, analisa-se brevemente a história da legislação
de imprensa no Brasil e o direito de resposta, no que se refere a sua
natureza, titularidade para exigi-lo e modos de requisitar esse direi-
222 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
to. A comparação entre os casos de Brasil e Portugal enseja a que as
especifi cidades do tratamento do assunto pelo direito brasileiro sejam
naturalmente sublinhadas.
Liberdade de imprensa e direito à intimidade
É conhecimento comum que a liberdade de imprensa representa
condição necessária da legitimidade dos governos democráticos. Este
é um conceito típico da modernidade, entendida esta como o período
inaugurado pelas revoluções burguesas a Revolução Americana e a
Revolução Francesa do fi nal do século XVIII. É a época da prevalência
do liberalismo e, como diz Daniel Cornu (1998, p. 111), “no que se
refere à mídia, as teorias liberais assentam-se sobre os princípios do
livre mercado, da informação e das idéias, cujo objetivo é garantir o
pluralismo como condição de emergência da verdade”.
A visão liberal da informação associa a liberdade à autonomia
redacional, o que traz à consideração, imediatamente, o problema
da responsabilidade moral do profi ssional da mídia em exercitar sua
liberdade (Cf. MERRILL, 1989).
Na medida em que a mídia é importante fator para a construção
ou a destruição da imagem pública de pessoas físicas e jurídicas, a
questão da responsabilidade em relação às informações divulgadas,
sem perder sua natureza ética, torna-se sufi cientemente expressiva
para merecer a tutela do Estado no seu dever de proteger direitos
fundamentais do cidadão.
Gera-se, deste modo, tensão entre o cuidado em limitar o poder
do Estado de interferência sobre a mídia, em benefício da liberdade
de imprensa, e a necessidade de preservarem-se direitos fundamentais
223Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
passíveis de violação, de boa ou de má fé por ações que se abriguem
sob o manto protetor dessa liberdade.
Paulo Bonavides (1997, p. 561) declara que os direitos funda-
mentais, propriamente ditos, são, na essência, os direitos do homem
livre e isolado, direitos que possuem face do Estado. Esses direitos têm
caráter histórico e costumam ser agrupados em gerações, períodos que
caracterizam o reconhecimento comum de determinadas garantias
fundamentais da sociedade. Os direitos de primeira geração são os
direitos relativos à liberdade, pioneiros na inserção de sua garantia
no instrumento normativo constitucional.
Entre os direitos associados à liberdade encontra-se o direito à
liberdade de expressão, forma de materializar objetivamente a liber-
dade de pensamento.
A liberdade de expressão, por sua vez, só se torna efi caz pelo
conhecimento que dela advém, isto é, está intimamente associada ao
direito à informação. Com efeito, a expressão pressupõe uma produção
de informação que pode ser recebida e que efetivamente o é.
É por isso que a liberdade de imprensa torna-se fundamental à
prática democrática, porque é a mídia que permite a repercussão ao
pensamento do pensamento livremente expresso.
Cornu (1998 p. 128) cita John Rawls para afi rmar que
a liberdade de expressão de reunião, a liberdade de ex-pressão do pensamento e de consciência estão na base de qualquer regime democrático. [...] Sob este prisma, a informação pode ser tida como uma necessidade de primeira ordem [...]
Não obstante a estreita correlação lógica entre o direito à in-
formação e o direito à liberdade de expressão, o núcleo dos direitos à
informação é de terceira geração, situando-se entre os direitos de fra-
224 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
ternidade direito à comunicação, ao desenvolvimento, à paz, ao meio
ambiente e à propriedade do patrimônio comum da humanidade.
Luiz Antônio Rizzato Nunes (2000 p. 43-50) observa que o direito à
informação tem sido interpretado em três sentidos, a saber: (a) direito
de informar o direito à manifestação do pensamento, à criação, à ex-
pressão; (b) o direito de informar-se o caráter público da informação
produzida; e (c) o direito de ser informado decorrente do dever que
alguém tenha de informar.
A liberdade de imprensa decorre do direito de informar, com-
patível com a liberdade de manifestação do pensamento. Entretanto,
ela também capacita a população a exercer o direito de informar-se,
considerando-se que é exatamente esta a função social da imprensa:
permitir que a população se informe, o que é fundamental para o sis-
tema político em um regime democrático.
Desse modo, o ato de informar coloca os veículos de comuni-
cação diante de duas condições, para que a liberdade da informação
possa ser invocada como de inequívoco interesse público: (1) é preciso
que os fatos divulgados sejam verdadeiros; (2) é preciso que os fatos
divulgados tenham interesse público.
Esta última condição é vital na medida em que a informação
divulgada afete a intimidade das pessoas, invada sua vida particular,
ferindo os direitos de preservação da vida privada.
Assim, a mesma concepção jurídica que sustenta, em nome da
liberdade, o direito da livre divulgação dos fatos, sustenta também, a
necessidade do uso responsável dessa liberdade, em nome da indivi-
dualidade, outro princípio fundamental do pensamento liberal e, tal
qual a liberdade, constitucionalmente protegida.
Acontece, então, que atos de informar possam encontrar-se
225Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
na confl uência, ou melhor, no confl ito de duas garantias igualmente
valorizadas pela sua inserção no nível constitucional do ordenamento
jurídico. Destarte, é necessário, que o sistema jurídico solucione esse
confl ito, quando suscitado, de modo a proteger um interesse constitu-
cionalmente garantido sem violar outro interesse igualmente garantido
pela Constituição.
Relações jurídicas e responsabilidades na co-municação social
A jurisdicização das relações de comunicação, decorrentes da
importância da mídia para a vida jurídico-política da sociedade e da
existência de direitos do cidadão, suscetíveis de serem violados pelo ato
de informar obriga a que sinalizem os conceitos relativos à imprensa.
A relação das mídias que prestam informação ao grande público
com este é uma relação jurídica na qual as mídias ocupam um pólo
ativo e o público ocupa o pólo passivo.
O pólo ativo, a imprensa, precisa atender a determinados
requisitos legais quanto à composição da empresa jornalística e à
sua propriedade. O sujeito passivo, o público, tem o direito de ser
corretamente informado. Desse modo, é preciso que haja um sistema
estatal de fi scalização das empresas jornalísticas, para garantir que,
desrespeitado no direito a ser informado, o público possa valer-se
das prerrogativas que o direito lhe confere para obter da imprensa a
correção da informação e/ou a reparação devida quando à incorreção
da notícia ou sua inadequação produzirem danos que precisem ser re-
parados. Entre as formas legalmente previstas de correção da notícia
226 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
encontra-se o exercício do direito de resposta.
O direito de resposta reside no dever, por parte da imprensa, de
cumprir exatamente sua função social: divulgar a verdade ao público,
sem se transformar em poder de manipulação.
Guilherme Fernandes Neto (2004) observa que o exercício da
comunicação social está associado a um conjunto de princípios jurídi-
cos fundamentais, que defl uem dos artigos 220 a 224 da Constituição
Federal.
No pensamento constitucional brasileiro o conceito de comuni-
cação social é amplo, abrangendo todas as espécies de transmissão em
massa de informações, alcançando a publicidade e a propaganda, a
Internet e as comunicações por correio eletrônico. Vedando a “censura
de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 2º), proibindo
condutas que impliquem “embaraço à plena liberdade de informação”
(art. 220, § 1º), restrição à “manifestação do pensamento, criação e
expressão (art. 220, caput), o texto constitucional proíbe, por outro
lado, o abuso no direito de comunicação, ao criar instrumentos que
previnam situações vexatórias ou dêem direito aos ofendidos de obter
a reparação de danos porventura a eles causados, inclusive o “direito
à indenização por danos materiais e morais em função da agressão à
imagem e à honra” (art. 5º, X). A possibilidade de violação das co-
municações telegráfi cas, de dados e telefônicas e nos demais casos
para investigação criminal (art. 5º, XII) só é admitida com autorização
judicial prévia, e são, também, garantidos o sigilo da fonte (art. 5º,
XIV), a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), o direito de ação e resti-
tutio in integrum (art. 5º, XXXV). Observe-se, porém, que o art. 221,
IV, da Constituição Federal, determina “o respeito aos valores éticos
e sociais da pessoa e da família”, como limite legal da liberdade de
expressão.
227Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A comunicação social deve, assim, respeitar os princípios funda-
mentais da República brasileira, à frente deles o princípio da dignidade
da pessoa humana.
O princípio da dignidade humana impõe à comunicação social o
dever de respeitar o decoro, sem explorar as mazelas humanas de modo
sensacionalista nem degradar as qualidades morais do indivíduo.
Aplicam-se, também, à comunicação social os princípios da
legalidade e da função social da comunicação.
A função social da comunicação de massa evidencia-se em razão
da capacidade desta em alterar comportamentos, causando indubita-
velmente, grande impacto na sociedade, quer em razão dos efeitos
que causa na coletividade, quer em razão de sua natureza.
A Constituição Brasileira concede à União a atribuição de explo-
rar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão,
os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Desse modo,
a exploração da radiodifusão não está livre e aberta a todos que qui-
serem explorá-la. O antigo Código Brasileiro de Telecomunicações já
previa a necessidade de um responsável com idoneidade moral para
fazer uso da concessão, havendo limites também para o espaço de
inserções publicitárias.
O princípio da legalidade relativo à comunicação social encon-
tra-se fundamentado na Constituição Federal Brasileira, podendo ser
extraído, de início, do art. 220, em razão deste dispositivo trazer
limitações imanentes ao exercício da comunicação social, impondo às
empresas jornalísticas o direito de resposta.
Assim, as limitações trazidas pelo princípio da legalidade não
proíbem a liberdade de informação, mas condicionam seu exercício
para adequar o grande poder da imprensa à sua verdadeira função de
informar.
228 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Por sua vez, o princípio do acesso à justiça efetiva, expresso,
entre outras formas, na garantia constitucional de que nenhuma lesão a
direitos pode ser afastada da apreciação pelo Poder Judiciário, garante
às pessoas porventura prejudicadas a forma de buscar ressarcimento
por algum abuso do direito de informar.
A restitutio in integrum (restituição integral) tem por objetivo
o ressarcimento integral: restituir o status quo ante a situação fática
alterada em razão da ilicitude. Esta garantia confunde-se com o desi-
derato da justiça e incide diretamente sobre a comunicação social em
razão do art. 5º, V, da Constituição Brasileira, pelo qual “é assegurado
o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral ou à imagem”.
Vinculado a este princípio é o de igualdade de armas, por meio
do qual o ofendido tem o direito de obter, por parte dos veículos de
comunicação social, a retifi cação ou resposta a fatos ofensivos ou
falsamente divulgados, com o mesmo tamanho, caracteres e, se for
direcionada ao rádio ou televisão, com a mesma duração da transmissão
que se pretende atacar.
Liberdade de imprensa e direito de resposta
A legislação de imprensa no Brasil remonta há mais de três sécu-
los, alcançando a época colonial, na qual as Ordenações Portuguesas
ainda vigoravam no País, por não haver necessidade da criação de um
sistema jurídico brasileiro próprio nem interesse em fazê-lo.
Em 1808, a Imprensa Régia, mantenedora dos interesses da cor-
te, era instaurada no Brasil. Foram, então, escritas leis que visavam
229Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
impor a ordem na colônia, nesse período. A partir de então, a imprensa
existente na época e a que surgiria estava fadada a aceitar as leis
impostas pela corte.
O primeiro ato normativo vigente no Brasil fora a lei portuguesa
de 12 de julho de 1821, inicialmente aplicada apenas no Estado da
Bahia. Com caráter repressor, previa a criação de uma espécie de
Tribunal do Júri posteriormente conhecido por Tribunal de Imprensa
-, composto por 24 cidadãos escolhidos pelo príncipe-regente, com
competência para julgar os crimes de imprensa (PACHECO, s. d.).
Em 7 de setembro de 1822 o Brasil tornava-se independente de
Portugal e em 22 de abril de 1824 era outorgada sua primeira Consti-
tuição.
Constando de 179 artigos, a Constituição Brasileira de 1824 dedica
apenas um único dispositivo à liberdade de expressão e de imprensa,
que, embora traga a previsão de responsabilização por abusos, ainda se
mostra lacunoso no que diz respeito ao direito de resposta.1 Tratava-se
de norma de efi cácia limitada, pois estava condicionada à promulgação
de uma lei, que veio a ser a Lei de Imprensa de 20 de Setembro de
1830, que regulava as penas de castigos corporais e pecuniárias, além
de um detalhamento sobre o Tribunal de Imprensa (LANER, 2000).
Após a proclamação da República, uma nova lei foi promulgada,
a Lei Adolfo Gordo (Lei n.º 4.743, de 31 de outubro de 1923), que limi-
tou a liberdade de imprensa na origem, impondo a censura prévia. Em
1950, na época do segundo governo de Getúlio Vargas, foi promulgada
a Lei n.º 2.083, de 12 de novembro de 1953, que, embora concedesse
maior liberdade à imprensa, tinha algumas lacunas técnicas que lhe
difi cultavam a aplicação. Esta lei sobreviveu até 1967, quando foi pro-
mulgada a Lei n.º 5.250, em 9 de fevereiro do referido ano. Atualmente,
230 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
tramita no Congresso Nacional o projeto de uma nova lei de imprensa
(PL 3232/1992) que visa revogar dispositivos autoritários presentes
na lei atualmente em vigor, que, embora não sejam aplicados diante
da vigência da nova Constituição Brasileira, estão distantes da atual
realidade que a sociedade brasileira vive.
O direito de resposta é um instituto jurídico, cujas origens remon-
tam aos primórdios da Revolução Francesa, com fi nalidade de obter, por
parte da imprensa (e, atualmente, de demais mídias comunicativas),
a revisão de fatos noticiados de maneira inverídica ou de forma dolo-
samente ofensiva. Partindo-se do pressuposto que a imprensa deve ser
livre em um Estado Democrático de Direito, o direito de resposta surge
como alternativa extrajudicial necessária à pacifi cação de confl itos ou,
ao menos, minoração dos danos à honra e à imagem dos envolvidos em
fatos noticiados incorretamente.
Em geral, o direito de resposta é exercido pelo particular sobre
o qual versou a notícia, que deverá instruir seu pedido por escrito e
levá-lo ao órgão de imprensa que veiculou a matéria. Verifi cando-se o
erro ou a ofensa, deverá o veículo de comunicação apresentar a versão
do ofendido, empregando o mesmo espaço e caracteres tipográfi cos (ou
a mesma duração, se for mídia de radiodifusão), não se eximindo da
obrigação de ressarcimento por danos irreparáveis eventualmente ocor-
ridos, ou de seus responsáveis responderem por crimes de imprensa.
Apesar de possuir uma fórmula comum, o exercício do direito
de resposta comporta algumas diferenças sutis, que decorrem da in-
terpretação, por parte dos diversos ordenamentos, de sua origem e de
sua fundamentação. Entender o contexto no qual o direito de resposta
está inserido e os direitos fundamentais com os quais pode colidir é
premissa indispensável para o bom entendimento de seu exercício.
231Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O instituto do direito de resposta no Brasil e em Portugal possui
raízes comuns. Vital Moreira (1994) afi rma que dois são os principais
sistemas em que se baseia o direito de resposta: o francês e o alemão.
No sistema alemão, o direito de resposta refere-se apenas a um direito
de defesa dos particulares contra fatos supervenientemente compro-
vados como falsos pelo titular do direito de resposta. Desta maneira,
ao possuir o direito constitucional de ser bem-informada, a sociedade
adquire a prerrogativa de, por intermédio dos ofendidos, fazer a im-
prensa revelar a verdade.
Diametralmente oposta é a fundamentação jurídica do sistema
francês, que traz a sutil diferença entre direito de resposta e direito
de retifi cação. O segundo equivale ao direito de resposta do sistema
alemão, ou seja, o poder popular de fazer a imprensa retifi car fatos,
porque informados de maneira falsa ou incompatível com a realidade.
Todavia, a grande inovação do sistema francês reside na amplitude
conferida ao direito de resposta, que assume um verdadeiro caráter
de direito ao contraditório por parte da pessoa visada. Signifi ca dizer
que se qualquer pessoa for citada em jornais franceses, ainda que não
seja o destinatário da matéria jornalística, terá o direito de manifes-
tar sua opinião, não sendo necessário que os fatos apresentados pela
imprensa sejam falsos. Trata-se de uma concepção de natureza indi-
vidualista, bastante compreensível no contexto da formação jurídico-
constitucional da França, cujas liberdades individuais foram colocadas
em primeiro plano na escala axiológica.
Percebe-se a diferença entre os dois sistemas quanto à titula-
ridade do direito de resposta. Enquanto na Alemanha este direito se
traduz apenas em uma prerrogativa de retifi cação, na França, como foi
dito, juízos de valor podem ser atacados. Assim, no primeiro sistema,
232 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
os titulares do direito de resposta serão apenas os interessados que
diretamente foram atingidos por declarações falsas, apresentando eles,
por meio da imprensa infratora, a sua versão alternativa. Por outro
lado, na França, são titulares do direito de resposta todas as pessoas
singulares ou coletivas, privadas ou públicas que tenham sido citadas,
independentemente de agressão, ataque ou crítica.
Costuma-se afi rmar que o direito de resposta tem caráter univer-
sal. Tal conclusão, embora de cunho generalista, advém da interpre-
tação das leis reguladoras da liberdade de imprensa de todo o mundo,
que, no geral, trazem um elenco de sujeitos de direito capazes de,
uma vez atingidos, reclamarem a retifi cação, por parte da imprensa,
de fatos inverídicos ou a resposta a opiniões agressivas. As leis de im-
prensa brasileira e portuguesa não fogem à regra.
A Lei de Imprensa portuguesa faz distinção entre um direito
de resposta e outro de retifi cação, em seu art. 16º, n.º 12. Todavia,
o alcance desta dualidade conceitual nem sempre foi do sentido que
atualmente se conhece, pois, como expõe Vital Moreira (1940), por
dois períodos, o direito português da liberdade de imprensa estava
especialmente inspirado no modelo francês, podendo-se verifi car que
nas leis lusitanas o direito de resposta era aplicado de maneira seme-
lhante à que tinha curso na França3.
No sistema brasileiro, embora a lei de imprensa empregue dis-
tintamente os termos direito de resposta e de retifi cação, verifi ca-se
que, tecnicamente, não se pretendeu, na prática, uma diferenciação
entre os institutos, embora esta possa acontecer a partir de uma
interpretação à luz da Constituição Brasileira, sobretudo diante do
princípio do contraditório e da ampla defesa4. As interpretações his-
tórica e teleológica da lei não clarifi cam a controvérsia, pois sabe-se
233Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
que o contexto de sua criação é completamente diverso do atualmente
vivido no Brasil. Portanto, caberá aos tribunais a interpretação mais
ou menos extensiva dos dispositivos, encontrando-se entendimentos
nos dois sentidos.
A Constituição da República Portuguesa, em seu artigo 37º,
afi rma que a todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado,
em condições de igualdade e efi cácia, o direito de resposta e de rec-
tifi cação, bem como o direito de indemnização pelos danos sofridos.
Menos detalhista quanto a este assunto, a Constituição Brasileira traz
a previsão do direito de resposta, mas, no Brasil, sua abrangência está
descrita no art. 29 da Lei de Imprensa atualmente em vigor, dispondo
que toda pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade pública, que
for acusado ou ofendido em publicação feita em jornal ou periódico,
ou em transmissão de radiodifusão, ou a cujo respeito os meios de
informação e divulgação veicularem fato inverídico ou errôneo, têm o
direito de resposta ou retifi cação.
Titularidade do direito de resposta em Portugal e no Brasil
De imediato, pode-se verifi car que uma grande controvérsia ca-
bível no direito português perde sentido diante da legislação brasileira,
que é a possibilidade de órgãos públicos serem titulares do direito de
resposta em sentido estrito, ou seja, de se defenderem contra ataques
que venham a ferir a sua reputação e boa fama5.
Sustenta Vital Moreira (1994) que não há cabimento para todas as
entidades públicas e órgãos administrativos se defenderem de ataques
234 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
à sua honra objetiva. Distingue ele entes públicos com formação mais
abstrata de outros formados basicamente por pessoas, como é o caso
das universidades e corporações públicas. Neste caso, como o direito
de resposta por ofensa à honra objetiva é um direito pessoal, apenas
entidades públicas nas quais os indivíduos se envolvam de maneira mais
direta é que podem ser sujeitos ativos de tal prerrogativa legal, em
razão da honra objetiva de cada um deles encontrar-se abalada com
um escrito de imprensa que fi ra o nome da universidade ou corporação.
Todavia, existiriam outras entidades públicas, mais despersonalizadas,
em que tal extensão de direito não teria cabimento.
No Brasil, essa distinção não tem sentido, porque a Lei de Im-
prensa brasileira categoriza diversos sujeitos de direito, entre eles as
entidades públicas, como titulares dos direitos de resposta e também
do direito de retifi cação. Uma interpretação diversa da lei brasileira,
aproximando-se das distinções em direito administrativo formuladas
pela doutrina portuguesa, conduziria o aplicador tão-somente a juízos
contra legem.
Partindo-se de interpretação histórica, é possível a razão da ma-
nutenção das entidades públicas como titulares das duas subespécies de
direito de resposta. Primeiro, a Lei de Imprensa brasileira atualmente
em vigor foi promulgada em pleno período de ditadura militar, no qual
a liberdade de imprensa deveria ser limitada para os próprios interes-
ses do governo. Segundo, analisando-se os instrumentos legislativos
anteriores à atual Lei de Imprensa brasileira, verifi ca-se que todos eles
foram promulgados em momentos antidemocráticos do país, nos quais
o Estado punha-se acima de muitos direitos e garantias fundamentais
consagrados na atual carta constitucional brasileira.
Apesar de gozar de tal proteção, na prática pouco se tem conhe-
235Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
cimento de uso, por parte do governo brasileiro, do direito de resposta
contra críticas ou juízos de valor. Desde a instauração do regime de-
mocrático, os governos brasileiros e órgãos administrativos estatais,
quando utilizam a lei de imprensa, o fazem apenas corrigir fatos inve-
rídicos apresentados pelos jornais, preferindo a via publicitária para
divulgarem seus feitos e, dessa maneira, indiretamente responder a
períodos de má popularidade.
Em regra, só pode exercer o direito de resposta aquele que tenha
sido visado por uma notícia publicada ou difundida, sendo, portanto,
um direito de natureza individual, não se reconhecendo, pela doutrina
clássica, qualquer tipo de legitimidade difusa ou popular6. Assim, apenas
aqueles que foram diretamente ofendidos podem requerer do jornal a
revisão da matéria ofensiva ou de conteúdo falso que fora publicado.
É importante distinguir titularidade de legitimidade7. Aquela
se refere à posição abstrata e, portanto, potencial, que venha a ser
conferida a determinado sujeito de direito que fora vítima de uma
matéria jornalística que abusa da liberdade de imprensa. Da análise
da titularidade, verifi ca-se que diversas pessoas e entidades podem ser
afetadas pela imprensa, inclusive entes estatais, como já visto.
Por outro lado, a legitimidade: quando a relação se instaura,
através do ato jurídico da empresa jornalística que publica fatos ofen-
sivos ou inverídicos acerca de alguém, este alguém será o legitimado,
sendo o único capaz de requerer a correção da matéria supostamente
ofensiva. Frise-se que nenhum dos titulares poderá ingressar em nome
de outrem, como, por exemplo, um órgão administrativo pleitear o
direito de resposta de um cidadão português.
No sistema jurídico brasileiro, essa regra sofre uma modifi cação,
pois, após a promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988, o
236 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
Ministério Público ganhou contornos jurídicos singulares se comparado
com o de outros países de tradição romano-germânica. Institucional-
mente, o Ministério Público não é vinculado ao quadro administrativo
de qualquer dos três poderes do Estado, tendo independência fi nan-
ceira e capacidade de auto-organização. No tocante às competências,
tornou-se o defensor da sociedade, dos interesses que são indisponíveis
ou de natureza transindividual, alinhando-se com a tendência mais
moderna do direito processual pela qual as lides8 coletivas são mais
valorizadas do que as individuais, por signifi carem maior economia e
efi cácia, em relação ao esforço equivalente em uma demanda judici-
ária individual.
Durante muitos séculos, a tutela dos direitos referiu-se, ba-
sicamente, à proteção de direitos considerados individuais, noção
fortalecida com a vigência do Código Civil Napoleônico. Trata-se de
uma visão na qual a relação jurídica é vista por meio de uma oposição
entre um débito e um crédito, na qual a insatisfação deste confere
a prerrogativa ao titular do direito de obter sua satisfação por meios
coercitivos amparados pela lei e operacionalizados por meio do Poder
Judiciário.
José Carlos Barbosa Moreira (1986, p. 35), em obra anterior à
Constituição Brasileira de 1988, demonstrou que existem certos tipos
de relações jurídicas que não poderiam ser enxergadas como retas
paralelas independentes e desvinculadas, mas defi nem-se por um in-
tercruzamento em que convergissem a um ponto comum e indivisível.
Surgia então um novo tipo de interesse, que não visava proteger apenas
uma pessoa, mas várias, até mesmo não conhecidas ou determináveis.
Estes são os chamados interesses transindividuais, que, oriundos da
sociedade de massa, têm por fi nalidade condicionar os interesses es-
tatais aos sociais.
237Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
O Código de Defesa do Consumidor, vigente no Brasil com a
promulgação da lei nº 8.078/90, tornou-se, também, uma espécie de
código de tutela dos interesses transindividuais, tendo suas normas
ganhado efi cácia para além deste microssistema jurídico. Conforme
esse diploma legislativo, os interesses transindividuais dividem-se em
difusos, coletivos e individuais homogêneos.
De acordo com o Código, os direitos difusos são aqueles que se
situam na órbita mais ampla, pois alcançam pessoas indeterminadas e
indetermináveis, ligadas apenas por uma situação fática. Sua exten-
são é tão ampla que, por vezes, confunde-se com o próprio interesse
público, como na hipótese de divulgação de propagandas enganosas
sobre medicamentos. Portanto, o Ministério Público, ao ingressar com
uma ação que vise obter a retifi cação, por parte da imprensa, de uma
publicidade ou notícia falsas ou enganosas, encontra-se agindo em
nome de um interesse difuso.
Os interesses coletivos diferem do difuso pela presença de um
elemento quantitativo, em que é possível determinar, por meio de
cálculos matemáticos, o número de pessoas pertencentes a uma clas-
se, grupo ou categoria dos que são atingidos pela relação jurídica em
análise. Em sentido jurídico, fala-se em pessoas indeterminadas, mas
determináveis. O objeto jurídico permanece igualmente indivisível,
como nos direitos difusos, mas é possível determinar qual grupo será
benefi ciário da demanda jurídica. No âmbito do direito de resposta,
uma notícia que divulgue erroneamente que as mensalidades escola-
res seriam ajustadas de acordo com determinado índice ensejariam
uma demanda coletiva por parte do Ministério Público, pois seriam
sujeitos ativos de tal direito o grupo social de pais com fi lhos em idade
escolar.
238 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
A última espécie de direitos transindividuais é a dos direitos
individuais homogêneos. São, na verdade, direitos de pessoas determi-
nadas e, ao contrário dos interesses coletivo e difuso, possuem caráter
divisível. A categoria existe por uma opção legislativa, de facilitar o
acesso ao Judiciário. Assim, em vez de diversas pessoas ingressarem
com ações judiciais individualmente, legitima-se o Ministério Público
a ingressar com tal demanda, evitando que o Judiciário venha a ser
demandado em milhares de ações com idêntico objeto jurídico. Tam-
bém é possível vislumbrar a aplicação do direito de resposta nessa
situação, ao se buscar retifi car uma notícia que tenha divulgado que
os estabelecimentos comerciais teriam direito à cobrança de uma taxa
adicional destinada aos garçons, quando, na verdade, não há qualquer
lei que obrigue os consumidores a fazê-lo. Em vez de cada pessoa buscar
o exercício deste direito de retifi cação, o Ministério Público poderá
fazê-lo em nome de interesses individuais homogêneos.
Procedimento para obtenção do direito de res-posta
Como todo direito, o de resposta obedece a prazos fi xados em
lei, cuja decadência faz extinguir a obrigatoriedade de retratação
pública do veículo de imprensa, mas não outras responsabilidades de
natureza civil e penal. Este prazo é efêmero, concedendo a lei portu-
guesa períodos que variam dos vinte aos noventa dias, contados a partir
da publicação efetiva da notícia, a depender do veículo pelo qual foi
divulgada, se televisão, rádio, mídia impressa, entre outros. No direito
brasileiro, por sua vez, a Lei de Imprensa unifi cou todos os prazos em
239Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
sessenta dias, sendo válido para todos os tipos de mídia.
Necessário ao exercício do direito de resposta é o conhecimento
detalhado da matéria que se visa impugnar. Muitas vezes, o legitima-
do apenas foi informado de que publicaram algo a seu respeito e é
comum que a narração do fato por terceiros não corresponda ao que
fora efetivamente divulgado. Dessa forma, as leis de imprensa, tanto
brasileira quanto a portuguesa, consagram a garantia de acesso ao
material publicado, seja o exemplar do período, seja a mídia conten-
do a transmissão por televisão ou rádio. Nas disposições fi nais, a lei
brasileira ainda indica o prazo mínimo pelo qual as concessionárias de
rádio e televisão deverão manter arquivados os textos originais que
foram utilizados em matérias ou entrevistas.
Após o conhecimento do fato e entendendo merecer o direito de
resposta, o ofendido deverá requerer sua prerrogativa ao veículo de co-
municação, fazendo acompanhar a solicitação do texto a ser publicado
ou da mídia contendo a gravação a ser transmitida, no caso de veículos
de rádio ou televisão. Embora exista o princípio da igualdade de armas
no direito de resposta, existem pequenas modifi cações, em ambos os
sistemas, português e brasileiro, que ora limitam, ora benefi ciam o
direito de uma das partes. Com efeito, no sistema português, há limites
máximos no rádio e na imprensa escrita, enquanto no brasileiro existem
limites mínimos, pelos quais a resposta poderá, na prática, ocupar mais
espaço ou tempo do que a notícia supostamente ofensiva99
No tocante à recusa da publicação da resposta, os sistemas
português e brasileiro se equivalem, pois, em ambos, os veículos de
imprensa estão desobrigados de apresentar escritos ou gravações que:
1) não tenham relação com o motivo ensejador do direito de resposta;
2) que contenham expressões inapropriadas; 3) causadoras de respon-
240 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
sabilidade civil e penal. No caso de excesso de tamanho do escrito ou
gravação de resposta, desde que o ofendido pague por isso (dentro de
limites máximos fi xados por lei) ainda assim o veículo de imprensa será
obrigado à sua publicação.
Sobre os prazos de publicação da resposta, a lei brasileira é
mais rigorosa, pois exige que seja divulgada em 24 horas, em rádio
ou televisão, e no próximo número, se em mídia impressa periódica.
Concede ainda a mesma lei a opção para o ofendido de, em não sendo
o programa televisivo ou de rádio diário, preferir que seja veiculada a
resposta em sua próxima edição.
Na hipótese de recusa imotivada do veículo de comunicação
para publicação da resposta, em Portugal, existirá a possibilidade de
recurso à AACS Alta Autoridade de Comunicação Social, que possui
poder executório para fazer a resposta ser publicada. Apenas em caso
de inoperância desta instância é que os litigantes poderão recorrer ao
Poder Judiciário para obterem a resolução da controvérsia.
No Brasil, não há um órgão público com semelhante competên-
cia. Com a chamada desestatização, foram criadas diversas agências
reguladoras, com o objetivo de fi scalizar os diversos concessionários e
permissionários de serviços públicos e, assim, proteger a população de
eventuais abusos do poder econômico. A ANATEL, agência fi scalizadora
de telecomunicações, tem por fi nalidade verifi car a regularidade de
diversos serviços, incluindo os de rádio e televisão, mas não lhe foi
outorgada a atribuição de ser uma instância administrativa para obrigar
as diversas emissoras a atenderem pedidos de direito de resposta. Com
relação à imprensa escrita, a situação torna-se ainda mais frágil, pois
sequer existem agências governamentais para fi scalizar a publicação
dos periódicos. Portanto, a solução encontrada no Brasil é a efetivação
241Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
do exercício do direito de resposta por meio do Poder Judiciário, uma
vez que sua atividade é inafastável, conforme preceitua a Constituição
Brasileira.
Conclusão
Uma das questões mais desafi adoras para os ordenamentos
jurídicos dos Estados democráticos é a tensão que se instaura entre a
necessidade de garantir-se a liberdade de imprensa, pilar da demo-
cracia, e protegerem-se os direitos fundamentais do indivíduo quando
passíveis de violação pelo ato de informar da mídia.
O direito brasileiro e o direito português, seguindo as tradições
européias dos direitos da França e Alemanha, incorporam aos mecanis-
mos de proteção do cidadão a fi gura jurídica do direito de resposta.
Há similaridades entre as posturas jurídicas portuguesa e bra-
sileira, embora percebam-se diferenças, em nível de minúcia, como
a existência de uma instância administrativa, em Portugal, que pode
impor coercitivamente o direito de resposta inexistindo no Brasil órgão
desse teor e distinções sutis entre direito de resposta e direito de re-
tifi cação, que se entendem diferentemente em Portugal e no Brasil.
No caso brasileiro, a diferença principal em relação à titularidade
para exigência do direito de resposta é a função do Ministério Público,
com a competência que lhe deu a Constituição Federal de 1988.
A competência do Ministério Público abrange a defesa do direito
de resposta de natureza transindividual, que se pode adicionar como
direito difuso, coletivo ou homogêneo.
A exigibilidade efi caz do direito de resposta é um importante
242 Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
instrumento de conciliação da liberdade democrática de expressão do
pensamento com a garantia dos direitos individuais. Avulta, portanto,
em importância que se conheça esse instrumento em todas as suas
facetas, com vistas a seu constante aprimoramento.
Notas
1 Preceituava o art. 179 da Constituição Imperial Brasileira de 1824: A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: [...] IV Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar. 2 Estabelece o aludido dispositivo: “Os periódicos são obrigados a inserir dentro de dois números, a contar do recebimento em carta registrada, com aviso de recepção e assinatura reconhecida, a resposta de qualquer pessoa singular ou colectiva ou organismo público, que se considerem prejudicados pela publicação no mesmo periódico de ofensas directas ou de referências de facto inverídico ou errôneo que possam afectar a sua reputação e boa fama, ou o desmentido ou rectifi cação ofi cial de qualquer notícia neles publicada ou reproduzida. 3 Um exemplo disso é a presença nas leis portuguesas das chamadas retifi cações ofi ciais, com regime privilegiado de publicação e as chamadas respostas dos particulares, que serviam como resposta da população a ofensas da imprensa. 4 O art. 5º, inciso LV da Constituição Brasileira dispõe que são asseguradas tanto aos litigantes em processos administrativos ou judiciais, como aos acusados em geral as garantias do contraditório e da ampla defesa (grifo nosso). 5 No Brasil, costuma-se denominar a expressão “reputação e boa fama” como honra objetiva. 6 O Prof. Vital Moreira (1994, p. 94) afi rma que “só pode exercer o direito de resposta quem seja visado numa notícia publicada ou difundida”. 7 Norberto Bobbio (1989, p. 674) propõe a seguinte diferença entre legalidade e legitimidade: “Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e um requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age legalmente ou tem o timbre da legalidade quando é exercido no âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e muitas vezes até no uso télegalidade e legitimidade,
243Revista IndependênciaAno 2, n. 2, Outubro de 2008
costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário”. 8 Conforme José Carlos Barbosa Moreira (1986, p. 43), os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos possuem características que os diferenciam dos direitos meramente individuais. Direitos coletivos são Transindividuais, com determinação relativa dos titulares (= não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares coletivos decorre de uma relação jurídica-base. Exemplo: Estatuto da OAB). Os difusos Transindividuais, com indeterminação absoluta dos titulares (= não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares difusos decorre de mera circunstancia de fato. Exemplo: morar na mesma favela). Individuais (= há perfeita identifi cação do sujeito, assim da relação dele com o objeto do seu direito). A ligação que existe com outros sujeitos decorre da circunstancia de serem titulares (individuais) de direitos com “origem comum”. 9 A Lei de Imprensa brasileira estabelece, no § 1º do art. 30, que o tamanho do material de resposta deverá ser igual ao material agressor, havendo, contudo, um limite mínimo de 100 linhas para a resposta escrita e 1 minuto para transmissões de rádio ou televisão. Com isso, demonstra-se que o princípio de igualdade de armas no Brasil sofre abrandamentos no sentido de benefi ciar o ofendido à notícia inverídica ou ofensiva.
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NORMAS PARA
A REVISTA INDEPENDÊNCIA é uma publicação da FACULDADE 2 DE
JULHO, indexada no ISSN, que tem como missão fomentar a produção
e a disseminação do conhecimento das Humanidades.
O público-alvo da REVISTA INDEPENDÊNCIA é composto por aca-
dêmicos – professores, pesquisadores e estudantes – assim como todo
público interessado em conteúdo de profundidade analítica na área
de Humanidades.
O principal requisito para publicação na REVISTA INDEPENDÊNCIA
consiste em que o artigo represente, de fato, contribuição científi ca.
O tema tratado deve ser relevante, ter linguagem clara e objetiva,
instigar perspectivas provocativas e inovadoras, ter referencial teórico-
conceitual, ser consistente, e conclusão clara e concisa.
A REVISTA INDEPENDÊNCIA tem interesse na publicação de artigos
de desenvolvimento teórico, trabalhos empíricos, ensaios e resenhas.
A REVISTA INDEPENDÊNCIA está aberta a colaborações do Brasil
e do exterior, sendo a pluralidade de abordagens e perspectivas in-
centivada.
ENCAMINHAMENTO DE ARTIGOS
Os artigos deverão conter, no máximo, 15 páginas e ser encami-
nhados para a Editoria com as seguintes características:
Formatação:
Folha: A4
Editor de texto: Word for Windows 6.0 ou posterior
Margens: esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm.
Fonte: Times New Roman, tamanho 12.
Parágrafo: espaçamento anterior: 0 pontos; posterior: 12 pontos;
entre linhas: duplo; alinhamento à esquerda.
Texto: a primeira página do artigo deve conter:
Título, com, no máximo, oito palavras, em maiúsculas e negri-
to.
Resumo em português, com cerca de 150 palavras, alinhamento
à esquerda, contendo campo de estudo, objetivo, método, resultado
e conclusões.
Cinco palavras-chave, alinhamento à esquerda, em português.
Resumo em inglês e/ou espanhol, com cerca de 150 palavras,
alinhamento à esquerda, contendo campo de estudo, objetivo, método,
resultado e conclusões.
Cinco palavras-chave, alinhamento à esquerda, em inglês e/ou
Espanhol.
Em seguida, deve ser iniciado o texto do artigo.
Referências: devem ser citadas no corpo do texto com indicação
do sobrenome, ano e página de publicação. As referências bibliográfi cas
completas deverão ser apresentadas em ordem alfabética no fi nal do
texto, de acordo com as normas da ABNT (NBR-6023).
Notas: devem ser reduzidas ao mínimo necessário e apresentadas
ao fi nal do texto, numeradas seqüencialmente, antes das referências
bibliográfi cas.
Diagramas, quadros e tabelas: devem apresentar título e fonte
e ser colocados ao fi nal do texto, após as referências. Sua posição deve
ser indicada no próprio texto e também deve constar referência a eles
no corpo do artigo. Deve-se evitar que repitam informações contidas
no texto.
Informações complementares: em separado, o autor deverá
enviar:
Página 1: título do artigo; seguido da identifi cação do(s) autor(es)
– nome completo, instituição a qual está ligado, cargo, endereço para
correspondência, fone, fax e e-mail.
Página 2: resumo indicando a contribuição do texto com cerca
de 30 palavras.
Os artigos podem ser enviados em português, inglês ou espanhol.
Excepcionalmente, a critério do editor, serão aceitos artigos em outras
línguas.
Os artigos são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es).
AVALIAÇÃO
O processo de avaliação da REVISTA INDEPENDÊNCIA consta de
duas etapas:
· primeiro, uma avaliação preliminar pelo editor, que examina
a adequação do trabalho à linha editorial da revista;
· segundo, revisão técnica pelo conselho editorial.
Os autores serão comunicados dos passos do processo por e-
mail.
Os avaliadores da REVISTA INDEPENDÊNCIA devem apresentar,
quando necessário, além do parecer quanto à publicação, sugestões
de melhoria quanto ao conteúdo e à forma, inclusive aos artigos não
aceitos.
RESENHAS
A seção de resenhas tem como objetivo apresentar aos leitores
os lançamentos nos campos da Administração, Comunicação Social e
Direito, contribuindo, assim, para a disseminação dos referidos co-
nhecimentos.
As obras escolhidas para preparação das resenhas devem ser
recentes e apresentar conteúdo inovador e consistente, de interesse
para o público da REVISTA – INDEPENDÊNCIA.
As resenhas devem conter, no máximo, cinco páginas e podem
ser enviadas em dois formatos: Resenhas de um livro, analisando um
lançamento, nacional ou estrangeiro, e resenhas múltiplas, analisando
duas a cinco obras, com as mesmas características de formatação dos
artigos.
Os arquivos devem ser encaminhados para a Editoria da REVISTA
INDEPENDÊNCIA, através do e-mail: [email protected].