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CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
CARLA FABIANA SILVA DA SILVA
O BRINCAR E A TRANSFERÊNCIA NO PROCESSO TERAPÊUTICO
SANTA MARIA
2017
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CARLA FABIANA SILVA DA SILVA
O BRINCAR E A TRANSFERÊNCIA NO PROCESSO TERAPÊUTICO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Curso de Graduação em
Psicologia da Faculdade Integrada de
Santa Maria – FISMA - como requisito
parcial da disciplina de TCC II, para
obtenção do grau de Psicólogo.
Orientadora: Profª Me. Lívia Padília de Teixeira
SANTA MARIA
2017
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Carla Fabiana Silva da Silva
O BRINCAR E A TRANSFERÊNCIA NO PROCESSO TERAPÊUTICO
Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdade Integrada de
Santa Maria – FISMA como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel(a)
em Psicologia.
_.
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SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................................... 5
ABSTRACT .................................................................................................................... 6
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7
MÉTODO ........................................................................................................................ 8
RESULTADOS ............................................................................................................. 10
Atendimentos a Marcos: relato de experiência ........................................................... 10
DISCUSSÃO ................................................................................................................. 14
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 24
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 25
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O BRINCAR E A TRANSFERÊNCIA NO PROCESSO TERAPÊUTICO
Carla Fabiana Silva da Silva¹
Lívia Padília de Teixeira²
RESUMO
O presente artigo trata-se de um relato de experiência de um caso clínico que
tem como tema “O brincar e a transferência no processo terapêutico”, fundamentado
teoricamente pela psicanálise. O caso relatado foi o de uma criança de sete anos de
idade, que tinha atendimentos semanais na clínica-escola na qual foi realizado um
estágio curricular. O objetivo deste estudo foi analisar um caso clínico e de
compreender de que forma a criança se utiliza da brincadeira e da fantasia como recurso
de linguagem para expressar seu sofrimento, bem como observar como a relação
transferencial auxilia na identificação desse processo. O caso clínico foi construído por
meio de relato escrito e foram selecionados alguns trechos para análise por meio do
método psicanalítico. Os resultados apontam alguns dados positivos quanto ao brincar,
contudo, demonstram também as dificuldades que se apresentam por meio da relação
transferencial e contratransferencial que se apresentaram ao longo do processo
terapêutico.
Palavras-chave: brincar; transferência; linguagem
Acadêmica¹
Orientadora²
Faculdade Integrada de Santa Maria – FISMA
Santa Maria – Rio Grande do Sul
2017
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PLAYNG AND TRANSFERENCE IN THERAPEUTIC PROCESS
Carla Fabiana Silva da Silva¹
Lívia Padilha de Teixeira²
ABSTRACT
This article is a clinical case report, theoretically based on psychoanalysis, whose main
theme is "Playing and transferring in therapeutic process”. The reported case happened
during a curricular internship in a clinical school with a seven-year-old child, who
attended the clinic weekly. The purpose of this study was to analyze this clinical case
and understand how the child uses play and fancying as a language resource to express
its suffering, as well as observe how the transference relationship helps in the
identification of this process. The clinical case was constructed as a written report and
some parts were selected for analysis by means of the psychoanalytic method. The
results of this research leads to positive data regarding playing, however, they also
demonstrate the difficulties that arise through the transference and countertransference
relationship that have occurred throughout the therapeutic process.
Keywords: playing; transference; language
Acadêmica¹
Orientadora²
Faculdade Integrada de Santa Maria – FISMA
Santa Maria – Rio Grande do Sul
2017
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INTRODUÇÃO
O presente relato referente ao tema “O brincar e a transferência no processo
terapêutico”, foi construído tendo como base a análise de um caso clínico
fundamentada pela teoria psicanalítica. O caso em questão foi proveniente de um
estágio curricular, do qual resultou nesta discussão teórica, por chamar atenção quanto à
manifestação do brincar e da relação transferencial, pela compreensão de que o
inconsciente também se manifesta como forma de linguagem por meio das brincadeiras
propostas.
Com base nisto, a análise deste relato clínico surgiu por inquietações que se
apresentaram ao longo dos atendimentos realizados com uma criança de sete anos de
idade, que aqui será chamada de Marcos (nome fictício), com diagnóstico de autismo e
que foi atendida pela autora deste trabalho durante o período em que esta realizou
estágio curricular em uma clínica-escola. A criança apresentava como demanda inicial a
queixa de comportamento inadequado e não aceitação de limites, que segundo os pais
estariam refletindo diretamente na interação familiar e social. As brincadeiras desta
criança despertaram na acadêmica o interesse pelo referido tema, onde foram analisados
conteúdos oriundos das anotações, observações e de registros das memórias decorrentes
das sessões, juntamente com a fundamentação teórica da psicanálise.
É sabido que ao longo do desenvolvimento humano ocorrem diversas situações
que podem contribuir para que surjam alguns sintomas que diferem das influências
normativas vivenciadas pela maioria das pessoas. Conforme refere Papalia (2010), as
diferenças individuais influenciam tanto no desenvolvimento quanto em suas
consequências futuras. A autora relata ainda que as pessoas diferem tanto em
personalidade quanto em reações emocionais e que, devido à complexidade do
desenvolvimento, os fatores que interferem neste nem sempre podem ser medidos com
precisão.
Deste modo, explica-se a importância de um olhar atento quanto ao brincar de
uma criança, pois através do lúdico se manifestam situações relacionadas aos seus
conflitos internos e externos, bem como de suas demandas familiares e sociais. Nesse
sentido, Freud (1915-1916) aponta que as experiências infantis merecem um olhar
diferenciado, pois, por ocorrerem em uma época onde o desenvolvimento não está
completo, podem produzir efeitos traumáticos. Para Freud (1920), o brincar exerce um
importante papel no desenvolvimento emocional da criança, afirmando assim que,
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durante o processo terapêutico, o brincar tem efeito catártico, possibilitando à criança
eliminar afetos negativos e ressignificá-los. O autor refere ainda que, ao brincar, a
criança repete experiências desagradáveis, podendo dominar a situação de forma mais
ativa e que por meio das brincadeiras ela revive experiências traumáticas, tornando o
brincar um recurso terapêutico, pois a cada repetição a criança tende a expor o que lhe
causa angústia e sofrimento.
Portanto, para que o processo terapêutico possa ser considerado efetivo, Bassols
afirma que se faz necessário:
criar um setting, um “espaço” de comunicação no qual a linguagem corporal,
motora ou fisiológica, a linguagem dramática do brinquedo, do teatro, da
vestimenta é compreendida como expressão de sentimentos que são
intensamente projetados no analista, que, por sua vez, precisa compreender
seus próprios sentimentos (BASSOLS et al., 2009, p. 190).
A autora expõe também quanto à importância de o terapeuta ter a compreensão
das dificuldades iniciais no tratamento da criança, no sentido de identificar e nomear ao
paciente os conflitos primitivos reeditados na relação terapêutica (BASSOLS et al.,
2009). Assim, a psicoterapia de orientação analítica mostra-se uma prática eficiente no
manejo clínico, ao proporcionar, por meio de brincadeiras, jogos e desenhos, auxiliando
a criança por intermédio do terapeuta, de forma lúdica e livre, a encontrar a melhor
forma de expressar, significar e ressignificar suas emoções, tornando possível identificar
a manifestação dos conflitos advindos de sofrimento psíquico por meio do brincar e da
transferência, ao longo do processo terapêutico conforme o descrito no relato do caso
clínico deste estudo.
MÉTODO
Para realização deste estudo, a metodologia utilizada foi o método de pesquisa
psicanalítica, que segundo Jardim e Rojas Hernándes (2010), utiliza-se da investigação
e baliza-se naquilo que o pesquisador produz a partir dos conteúdos obtidos em sessão,
através de suas anotações e observações. Neste sentido, os autores destacam ainda que o
material clínico produzido servirá como uma produção possibilitada pela transferência
por meio da linguagem, o que viabiliza a construção teórica do referido estudo. Desta
forma, após a organização do material produzido ao longo dos atendimentos, com base
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na associação livre e na atenção flutuante, estes foram escritos e reescritos muitas vezes
com o intuito de que o fenômeno a ser investigado se apresentasse.
Sempre em consonância com os pressupostos teóricos da psicanálise e da ética
que lhe são essenciais, para a construção deste estudo, foi utilizada a sistematização dos
dados conforme Silva e Macedo (2016), na qual elencam três etapas para a construção
de um caso clínico. Na primeira etapa, as autoras destacam que se devem descrever os
primeiros atendimentos, bem como a maneira como foram se apresentando à escuta do
terapeuta. O próximo passo conta com a elaboração do caso clínico, onde se apresentam
e exploram-se as hipóteses interpretadas pelo terapeuta ao longo dos atendimentos -
partindo da escuta realizada com a criança. A terceira etapa faz referência ao método
psicanalítico propriamente dito, por meio da análise dos fatos clínicos, das novas
interpretações da transferência, proporcionando a ampliação dos sentidos da dinâmica
transferencial, bem como de uma nova “escuta”, viabilizando a emergência de novos
eixos interpretativos, fomentando o aprendizado consistente da complexidade da escuta
psicanalítica, bem como seus desafios. Assim, conforme destacam Silva e Macedo
(2016), a construção dos fatos clínicos, tem como matéria-prima os acontecimentos
oriundos da situação analítica, que são singulares e subjetivos, onde a palavra do
paciente se traduz na palavra do terapeuta, não se fazendo necessária a exatidão do que
foi dito pelo analisando, por ter como objeto de estudo, o inconsciente.
Segundo destaca Iribarry (2003), para transmitir sua experiência, o pesquisador
se utiliza de técnicas específicas, bem como da leitura direcionada pela escuta e pela
transferência instrumentalizada, onde o pesquisador relaciona seus entendimentos com a
teoria, elaborando suas impressões juntamente com suas expectativas frente ao
problema de pesquisa, bem como as impressões dos participantes que contribuírem por
meio da coleta dos dados. Deste modo, “o pesquisador psicanalítico prepara-se para a
construção do ensaio metapsicológico, texto que irá compor a parte de discussão dos
dados de modo a preparar as considerações finais do trabalho” (IRIBARRY, 2003,
p.01).
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RESULTADOS
Atendimentos a Marcos: relato de experiência
O caso a ser relatado trata-se do atendimento de uma criança de sete anos de
idade, que aqui será chamado pelo nome fictício “Marcos” a fim de preservar sua
identidade. A criança que já estava em acompanhamento na clínica-escola, tinha
diagnóstico de autismo e muitas dificuldades relacionais. Porém, tal diagnóstico era
questionável, visto que os seus sintomas em tratamento não condiziam com o
Transtorno do Espectro Autista, pois não apresentavam os critérios diagnósticos que
determinam a denominação de tal Transtorno. Resumidamente serão descritos alguns
trechos do caso que foram bastante significativos ao longo dos atendimentos.
A queixa inicial da mãe era não conseguir dar limites ao filho, por isso relatava
que, em locais públicos sentia vergonha dos comportamentos do mesmo. Marcos
costumava falar muito alto, dar risadas descontextualizadas, se jogar no chão quando
contrariado, dizer muitos palavrões e praticar maus hábitos na hora de se alimentar,
como por exemplo, não usar talheres nas refeições, comendo com as mãos. A mãe
demonstrava muita dificuldade em “educar” o filho, não conseguia estabelecer qualquer
tipo de limite, tinha muita dificuldade em explicar situações cotidianas à criança,
dificuldades em nomear e significar as situações vividas. Ela realizava todos os
cuidados relativos ao menino, como levar ao médico, trazer para a terapia, levar para a
escola, etc. Porém, questões afetivas e relacionais eram tratadas com muita dificuldade
ou até mesmo não tratadas. Diante destas dificuldades da mãe e da desordem familiar,
por volta da metade do primeiro semestre indicou-se à mãe sessões quinzenais de
acompanhamento com a estagiária, onde eram trabalhadas com ela situações que
surgiam a partir da demanda apresentada por Marcos, objetivando-se desta forma obter
melhores resultados no tratamento de Marcos, Essas sessões ocorreram até o final do
ano, ao longo de todo o tratamento, além do tratamento individual que a mãe já
frequentava na mesma clínica-escola.
Nas primeiras sessões, onde a relação transferencial e o vínculo foram
estabelecidos, Marcos já desde o primeiro atendimento surpreendeu com sua entrega,
não demonstrando qualquer tipo de insegurança ou resistência à nova estagiária. Ao
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entrar na sala infantil, ele já foi apresentando o ambiente à terapeuta. Ao receber o
convite para brincar, Marcos aceitou de imediato, e iniciou a contar histórias de zumbis
e monstros e propor uma brincadeira dizendo que existia o “Marcos do bem” e o “do
mal”. Em um dia, o do mal matava o do bem, a terapeuta foi convocada a sessão inteira
rastejando pelo chão com as mãos em forma de oração, implorando para um “Deus” que
permitisse que ela tivesse o poder de ressuscitá-lo e, para isto, era solicitada a justificar
sua tentativa de resgate, alegando que ele era uma criança tão legal, que ela gostava
muito de brincar com ele, etc. Enquanto a terapeuta implorava pela ressurreição de
“Marcos do bem”, ele pegou as massinhas de modelar e começou a brincar, mas sem
parar de dar os comandos de como ela deveria agir. Porém, todas as suas tentativas em
salvá-lo eram frustradas. Marcos sorria muito de toda a cena, contudo, no final da
sessão, ele disse que estava abrindo um portal no céu e que se acaso a terapeuta entrasse
lá, ela conseguiria salvá-lo, foi o que fez, sempre repetindo que ele era muito importante
para ela e do quanto sentia vontade de ajuda-lo. Desta forma, conseguiu ressuscitar
Marcos. Após o resgate, um pouco antes do final da sessão, ele deu à terapeuta um
coração feito de massinha de modelar cor-de-rosa, abraçando-a fortemente.
Desde o início dos atendimentos, mãe e filho, sempre chegavam para o
atendimento, uns vinte minutos antes do horário combinado, situação em que a e mãe
não controlava os comportamentos da criança na sala de espera. A terapeuta por sua
vez, se sentia “responsável” por fazê-lo e o fazia, ao ponto de ficar sentada na sala de
espera com ele aguardando por seu horário, tendo em vista que a sala se encontrava
ocupada.
Já por volta do final do primeiro semestre, a estagiária sugeriu à mãe que
procurasse por atendimento em uma escola especializada para crianças com autismo da
cidade explicando a ela que existia um sistema de bolsa e que ela poderia se inscrever,
pois entendia que Marcos iria se adaptar bem nesta escola, por trabalharem com uma
equipe multifuncional e com grupos para as crianças e familiares, que atenderia a
demanda de ambos. Diante das dificuldades observadas na mãe para seguir a indicação
terapêutica, a própria estagiária procurou todas as informações, sobre como ingressar na
escola, conversou com uma das professoras que trabalhava no local e entregou tudo
pronto à mãe, inclusive com o contato desta professora. Ainda assim, a mãe recorria a
ela comunicando que ninguém havia entrado em contato com ela, solicitando que a
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estagiária realizasse novas tentativas de ingresso da criança na tal escola. Em uma
situação anterior, ocorreu um fato semelhante, quando a terapeuta foi pessoalmente até
uma escola de dança, onde também forneciam bolsa para crianças de baixa renda, e
conseguiu uma vaga para Marcos por acreditar que seria importante para a criança. A
mãe levou o menino por algum tempo e logo desistiu.
No início do segundo semestre, houve uma sessão em que o paciente chegou
bastante agitado, entrou na sala e jogou tudo no chão, pegou os bonecos da casinha
terapêutica e jogou-os juntamente com os demais. Começou a fazer uma encenação com
os bonecos, dizendo algumas palavras que demonstravam que a criança estava bastante
sexualizada, e ao repetir diversas vezes tais palavras, sorria muito. Perguntou então à
terapeuta se ela gostaria que ele lhe contasse um filme que assistiu, ela respondeu que
sim e ele tentou demonstrar algo com os bonecos, mas não conseguiu realizar o que
desejava. Então, se levantou e foi para o quadro desenhar. Desenhou uma cena que
remetia ao ato sexual e, enquanto desenhava, ria e dizia palavras que demonstravam sua
angústia e incômodo com o que parecia ter presenciado. Quando questionado sobre o tal
filme, ficou bastante desorganizado, dizendo que havia assistido tudo dentro de sua
cabeça.
Após essa sessão, ao ser questionada sobre onde o filho dormia, a mãe relatou
que Marcos dormia com ela e que nos dias em que o pai os visitava, ele colocava seu
colchão aos pés da cama de casal para dormir, enquanto Marcos dormia na cama
juntamente com a mãe. Ao ser questionada sobre os momentos de intimidade do casal,
ela conta que descia para o colchão junto ao marido depois que Marcos dormia e que
desta forma, ele não via nada, que tinha o sono profundo por causa da medicação. Então
foi explicado para ela sobre a importância de seu filho passar a dormir em seu próprio
quarto, tendo em vista que a criança tinha um quarto na casa, e para preservá-lo de
possíveis exposições à intimidade do casal. A mesma demonstrou certa resistência com
tal fato e, porém, após algumas semanas, acabou aceitando a modificação proposta.
Outra situação bastante intensa, ocorrida ao longo dos atendimentos aconteceu
por volta da metade do segundo semestre, quando Marcos chegou para o atendimento
bastante agitado, demonstrando isto já na recepção, onde solicitava a presença de sua
terapeuta para aguardarem juntos por seu horário. Ao entrar na sala de atendimento, ele
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ainda muito agitado, caminhava de um lado para o outro da sala repetindo sem parar
palavras que remetiam à terapeuta a ideia de que havia acontecido algo em sua família
que o deixava muito confuso e desorganizado. As tentativas de acalmá-lo eram
frustradas, com isto, a terapeuta decidiu respeitar sua reação, oferecendo um
acolhimento/holding para seu sofrimento permitindo assim, que ele expressasse o que
estava sentindo naquele momento. Após algum tempo nesta agonia, ele abriu a casinha
terapêutica e começou a derrubar todos os móveis para fora, repetindo as mesmas
palavras de quando entrou na sala, a terapeuta então se aproximou dele e perguntou se
poderia ajuda-lo de alguma forma e ele bastante alterado rejeitou sua ajuda. A estagiária
relata ter sentido uma agonia muito grande e uma sensação de impotência, porém,
continuou respeitando sua necessidade de extravasar todo aquele sofrimento. Isto durou
aproximadamente uns 20 minutos, até que ele se acalmou e sentou-se no tapete. A
terapeuta sentou-se ao seu lado, perguntando se havia acontecido algo e se ele gostaria
de conversar sobre o que havia acontecido. Ele olhou para ela muito triste e disse que
estava cansado, que gostaria de ir embora. E ela então, responde que tudo bem, porém,
ele não se movimentou para ir, deitando-se no tapete. A estagiária, sem saber ao certo o
que fazer diante daquela criança arrasada deitada no chão, coloca-se ao seu lado em
silêncio. Ele então, sem olhar para ela, estendeu sua mão e a encostou na mão da
estagiária e assim eles permaneceram por 10 minutos no mais profundo silêncio. Depois
disto, ele levantou-se e convidou a terapeuta para arrumarem a sala dizendo que queria
ir embora, já bem mais calmo.
Enquanto ele foi ao banheiro, a mãe se aproximou da porta e a terapeuta então
solicitou uma sessão com ela para tentar compreender o que havia acontecido naquela
sessão. Foi quando a mãe relata que precisava mesmo uma sessão extra porque ela havia
se separado de seu marido, no mesmo dia, ocorreu o mesmo com sua mãe e seu
padrasto. Todos no mesmo dia e por meio de muitas agressões verbais, e muitas
ameaças de agressões físicas. Em conversa com a mãe, já na sessão extra, ela descreve
as cenas bastante intensas da briga em família, dizendo que havia marcado uma consulta
com o neuropediatra de Marcos porque ele estava muito agitado desde o ocorrido e ela
achava que precisava aumentar a dosagem do remédio. Quando perguntado a ela onde o
filho estava na hora do acontecido, ela respondeu que ele não havia visto nada, pois
estava no quarto. Explicou ainda que ele só saiu quando houve uma tentativa de
agressão física contra ela, que fez o menino correr e gritar em defesa da mesma. A todo
o momento, a terapeuta vai conhecendo melhor a mãe e percebendo o quanto esta
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demonstra dificuldade para perceber sozinha a gravidade de situações como esta, e do
quanto influenciam negativamente na saúde mental do filho. A terapeuta, então, tenta
explicar a ela por meio de sua fala que seu filho havia escutado tudo, e perguntando de
que forma isto foi explicado a ele. Para o espanto da terapeuta, a mãe diz que ninguém
falou nada para o menino e que ele foi para a escola normalmente, mas que desde então
ele começou a não querer ficar na escola também.
No final do segundo semestre, em sua última sessão, foi proposto a ele que cada
um desenhasse algo para o outro como recordação. Ele respondeu, para surpresa da
terapeuta que somente ela tinha que desenhar algo para ele, que ele já tinha feito um
coração a ela no primeiro dia. Então ela fez um desenho para ele, que ficou sentado ao
seu lado, observando tudo que ela fazia. Quando terminou o desenho, entregou-lhe, e
ele se abraçou no desenho e depois nela, dizendo que pediria a sua mãe para pendurar
na parede de seu quarto. Quando terminou a sessão, chegou falando alto na recepção e
mostrando o desenho, pedindo à mãe que colasse na parede de seu quarto.
A última vez em que ambos se encontraram, não mais como terapeuta/paciente,
ele ficou muito feliz em revê-la, procurando por ela nos corredores da clínica como
costumava fazer. Em um dia, ocorreu da ex-estagiária sentar com ele no chão do
corredor externo ao local de atendimento para esperar por sua sessão. Nessa ocasião, é
interessante observar que ele deitou-se em sua perna dizendo que gostaria de fazer uma
lavagem cerebral e apagar seu cérebro.
DISCUSSÃO
No decorrer dos atendimentos foi possível perceber que o paciente conseguiu,
com muita dificuldade, compreender e significar alguns de seus conflitos, confirmando
isto por meio de suas brincadeiras, demonstrando uma melhora em seu comportamento
bem como compreendendo a possibilidade de obter ajuda para resolver seus conflitos.
Podendo assim, ressignificar algumas questões, contudo, suas relações familiares eram
bastante conturbadas, o que dificultou bastante seu progresso terapêutico.
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Com a construção e análise do caso clínico, percebe-se o quanto houve uma
relação transferencial e contransferencial neste caso, no sentido de a terapeuta assumir
inconscientemente uma demanda de maternagem da criança, por identificação com o
discurso do paciente, reagindo como se a mãe do mesmo não conseguisse suprir suas
demandas. Assim, quando se fala em maternagem no referido caso, observa-se uma
identificação com o que referem Arruda e Andrieto (2009) ao falarem sobre o fato de
que para uma mãe desempenhar adequadamente seu papel faz-se necessário que ela viva
o que foi denominado por Winnicott como preocupação materna primária, situação em
que permite a identificação da mãe com seu bebê, possibilitando desta forma, seu
desenvolvimento. Destacam ainda, quanto à importância da mãe tanto em sua adaptação
à realidade quanto no seu desenvolvimento emocional primitivo, tendo dentre seus
papéis o de proteger e significar gradativamente o mundo que se apresenta à criança,
pois esta necessita de cuidados que propiciem um ambiente satisfatório que atenda suas
necessidades básicas ao longo de seu desenvolvimento.
Desta forma, nas situações em que a mãe demandava da estagiária que assumisse
seu papel diante do filho, exercendo a maternagem, esta sentia-se convocada a fazê-lo.
Lacan (19861, apud FERRARI, 2009) destaca que a criança por vezes, pode estar
manifestando um sintoma da família, que pode corresponder à falta materna, valendo-se
da fantasia para suprir tal falta. Destacando ainda, a importância de se estar atento
quanto a isto, pois a criança ao utilizar tal recurso, poderá estar adentrando no campo da
psicose, que se faz necessário em tal situação reavaliar o sintoma.
Estas convocações ficam evidenciadas por meio de relatos dos episódios em que
a estagiária sentiu-se convocada a buscar ela mesma inserir seu paciente em outras
instituições por entender que seriam importantes para o desenvolvimento da criança.
Porém, evidencia-se o fato de que a mesma ultrapassou seu papel enquanto terapeuta, ao
passo que ao invés de sugerir à mãe que o fizesse auxiliando na compreensão da
importância disto para o tratamento do filho, assumiu para si tal responsabilidade.
Winnicott, ao falar sobre pacientes com limitações introjetivas ou projetivas,
reforça quanto às dificuldades que surgem ao terapeuta, destacando a necessidade de
atuação deste, bem como dos fenômenos transferenciais que dispõem de apoio
instintual. O autor destaca que:
“Em casos assim, a principal esperança do terapeuta é ampliar o campo de
1 LACAN, J. Deux notes sur l’enfant. Ornicar, n.37, p. 13-14, 1986.
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ação com respeito às identificações cruzadas, e isso surge não tanto pelo
trabalho de interpretação quanto através de certas experiências específicas
que ocorrem nas sessões analíticas. Para chegar a estas experiências, o
terapeuta tem de levar em consideração um fator temporal e não se podem
esperar resultados de tipo instantâneo. As interpretações, por precisas e
oportunas que sejam, não podem conceder a resposta completa.
(WINNICOTT, 1975, p. 188)
Marcos era uma criança com muitas dificuldades de relacionamento e
comportamentos, porém, tais questões estariam diretamente ligadas às dificuldades da
mãe, em não conseguir dar sentindo, nem significar situações do cotidiano ao filho,
dificultando muito sua inserção no mundo da linguagem. Tais dificuldades sempre
existiram, atrapalhando sua compreensão da realidade, em discernir entre seu mundo
interno e externo, sua própria subjetividade, assim como o descrito por Freud:
Imaginemo-nos na situação de um organismo vivo quase inteiramente
inerme, até então sem orientação do mundo no mundo, que esteja recebendo
estímulos em sua substância nervosa. Esse organismo estará muito em breve
em condições de fazer uma primeira distinção e uma primeira orientação. Por
um lado, estará cônscio que podem ser evitados pela ação muscular (fuga);
estes, ele os atribuiu a um mundo externo. Por outro, também estará cônscio
de estímulos contra os quais tal ação não tem qualquer valia e cujo caráter de
constante pressão persiste apesar dela; esses estímulos são os sinais de um
mundo interno, a prova de necessidades instintuais. A substância percentual
do organismo vivo terá encontrado, na eficácia de sua atividade muscular,
uma base para distinguir entre um “de fora” e um “de dentro” (FREUD,
1915, p.139)
Dolto (1999) destaca quanto à importância de sabermos que a criança não tem o
conhecimento de que é uma criança, afirmando que esta criança é um reflexo de quem é
interlocutora. Tal fato, também foi destacado por Lacan, ao falar que é por referência do
outro que o sujeito se constitui como Eu, que “revela-se para nós, como um
conseguinte, como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma
relação do organismo com sua realidade” (LACAN, 1998, p.100). O autor destaca ainda
que “este momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação
com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial [...], a dialética que
desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas” (LACAN, 1998, p.101).
E nesse sentido, as dificuldades da criança evidenciam-se já no primeiro
encontro, onde a relação transferencial teve seu início, ao passo que Marcos demandou
muita entrega por parte da terapeuta, parecendo testá-la com a intenção de certificar-se
que a mesma realmente estava disposta a ajuda-lo em suas questões. Zavaschi et al., ao
falarem sobre o desempenho do terapeuta ao longo dos atendimentos, destacam quanto
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a importância deste ser regulado pela própria criança, fazendo-se necessário a alguns
terapeutas certa “regressão a serviço do ego”, vencendo desta forma algumas inibições
pertencentes ao mundo adulto. Assim como Aberastury (1982) fala sobre o temor da
criança em repetir sua relação com o objeto originário, do medo projetado no terapeuta,
esperando uma conduta negativa deste, como a de seus pais e o ataca. A autora refere
ainda que: “Este objeto originário em seus aspectos amados – nos aspectos em que
satisfez suas necessidades – confere ao terapeuta os atributos necessários para curá-lo”
(ABERASTURY, 1982, p.112). Isto se evidencia quando, ao final da sessão, Marcos
entrega a estagiária um coração feito de massinha de modelar, parecendo desta forma,
autorizar a entrada em seu mundo.
Dolto et al. (19882 apud SOLER; BERNARDINO, 2012), aponta que, durante a
relação terapêutica, a situação da transferência se transforma em um personagem e
durante os atendimentos, pela facilidade com que as crianças fornecem seus conteúdos
de sonhos, bem como seus segredos e faltas, é por meio da relação de confiança
estabelecida ao longo do processo terapêutico, que esta se torna a base do tratamento.
Refere ainda que por intermédio da transferência o terapeuta pode observar os
mecanismos inconscientes do sujeito bem como seu comportamento diante do mesmo,
participando do que o paciente vive em relação ao outro.
Fuhr e Laurindo (2015) destacam também, que se constitui como papel do
terapeuta compreender a dimensão da transferência e manejá-la, possibilitando desta
forma, o processo terapêutico. Já Aberastury (1982) alerta quanto à importância da
dupla fonte de transferência (amor e ódio), do quanto o terapeuta precisa compreender
que se deve interpretá-la desde o primeiro momento, contudo, estar atento, pois, tais
aspectos permanecem ao longo dos atendimentos e que esta interpretação quanto ao seu
significado deverá ser reavaliada quantas vezes se fizerem necessária durante o
tratamento.
Assim, por meio do relato deste caso, observaram-se as dificuldades relacionais
existentes entre mãe e filho, além da desorganização familiar, fato que demonstrou ter
influenciado diretamente na construção da identidade do paciente e em sua constituição
psíquica. Silva (2015) refere que sem a fala do outro, as percepções da criança são
direcionadas apenas ao seu próprio corpo, chamando a atenção ainda, para a
importância da interação familiar durante o processo de subjetivação para que se tenha a
2 Dolto, F. (1988). Psicanálise e pediatria (A. Cabral, trad., 4a ed.). Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.
(Trabalho original publicado em 1971)
18
compreensão do sujeito, fazendo-se necessária a compreensão da relação mãe-filho e
pai-filho.
No caso de Marcos, esta interação parece ter ocorrido com falhas significativas
nas funções materna e paterna. A mãe de Marcos somente fornecia a ele cuidados
básicos, não conseguia significar e nomear nada para esta criança, dificultando sua
inserção no campo da linguagem e da comunicação. Segundo Jardim (2001) cabe à
função materna, fundamentalmente, transmitir o desejo de existência, de pertencimento
a uma história da qual tem início antes mesmo de seu nascimento, quando a mãe, ao
pensar em um nome para seu bebê; ao imaginar a aparência dele; ao organizar o enxoval
de seu bebê e etc., estará fazendo função materna. Assim como quando consegue supor
que no corpinho daquele bebê que nasceu está uma subjetividade diferente da sua,
porém, totalmente ligada a sua própria subjetividade. No caso relatado aqui, isto foge
completamente à capacidade da mãe em compreender a subjetividade do filho, tendo em
vista as dificuldades que enfrentava para compreender sua própria subjetividade, não
conseguindo desta forma exercer adequadamente a função materna conforme a
descrição feita por Jardim (2001).
Quanto à falha na função paterna, percebem-se dificuldades relacionais entre pai
e filho. O pai fazia visitas esporádicas e demonstrava pouco interesse pela criança,
dedicava pouco investimento afetivo e, assim como a mãe, praticava somente os
cuidados básicos relativos ao cotidiano do filho. O pai não conseguia nem mesmo
referir-se a criança como filho ou chama-lo pelo próprio nome, referia-se a ele como “o
guri”. Ao falar sobre os comportamentos inadequados do filho, não se responsabilizava
ou se implicava na situação, ao contrário, culpava a mãe por sua incapacidade em
estabelecer limites. Sobre isso, Dolto propõe que:
O pai e a mãe, criticando mutuamente o comportamento um do outro na
frente do filho, desencadeiam sua culpabilidade recíproca. Essa provoca , por
sua vez, em certas etapas do desenvolvimento da criança, a culpabilidade
desta com relação ao seu crescimento e a seu sexo, induzida pelo
comportamento tornado aberrante de seus modelos adultos e essenciais.
(DOLTO, 2013, p.11)
O pai desta criança acaba, por meio de sua indiferença relacionada ao filho,
negligenciando a ele a entrada da lei, pois, conforme refere Jardim (2001), a função
paterna, tem a missão de, entre outras coisas, barrar e mediar à relação desejante
constituída entre a mãe e seu bebê. Assim, tal função traz consigo a possibilidade de
registro simbólico da lei e da lei da castração. Esta operação psíquica é o que permite
19
ao filho a constituição psíquica inserida na realidade, na linguagem e nas convenções
sociais e culturais nas que estará inserido. A autora afirma ainda que “Podemos partir da
premissa de que uma criança fala e se representa no que diz quando ocupou lugar no
desejo materno e foi devidamente arrancada daí pela lei paterna” (JARDIM, 2001, p.
01).
Na sessão em que Marcos chega ansioso, querendo contar sobre o tal filme que
disse ter assistido em sua cabeça, parece ter tentado demonstrar sua angústia de várias
maneiras, com os brinquedos, por meio da fala, até encontrar no desenho a maneira de
expressar o que estava sentindo naquele momento, repetindo incessantemente palavras
que desqualificavam o tal filme, bem como a personagem feminina, rindo bastante ao
falar tais palavras. Desenhou então, algo que remete a uma cena de ato sexual. Segundo
Aberastury (1996), o brinquedo e o desenho servem como uma linguagem pré-verbal,
que constitui a comunicação da criança, fazendo alusão ao lugar que ocupa a palavra no
tratamento psicanalítico de adultos. A autora refere ainda que, para interpretar o
conteúdo dos atendimentos, faz-se necessário observar a maneira como a criança brinca,
com o que brinca, como se expressa e quais palavras que diz durante as brincadeiras.
Além dos detalhes do brincar, é importante observar a relação estabelecida com o
terapeuta, suas reações, etc., entendendo que se deve considerar todo o contexto dos
atendimentos.
Ao interpretar o desenho, foram considerados, tanto os relatos da mãe quanto à
intimidade do casal, bem como a resistência da mãe em permitir que o filho dormisse
em seu próprio quarto. Após este episódio, passaram a se realizar atendimentos
quinzenais com a mãe tendo em vista suas dificuldades em manejar certos cuidados
relacionadas à saúde mental do filho. Segundo Dolto (1988), apud Soler e Bernardino
2012, a criança adoece do inconsciente dos pais, por isso, a autora diz não trabalhar
isoladamente com a criança, sua interrogação inicial é relativa à dinâmica familiar, pois
por vezes, nada pode ser feito enquanto a criança é tomada como objeto por um ou
outro dos pais. Isso ficou evidenciado por meio da resistência da mãe em separar-se do
filho, aumentando desta forma as dificuldades da criança. Wiles e Ferrari destacam que:
[...] Uma das formas mais graves dessas patologias –as piscoses- forma-se
por uma série de manifestações sintomáticas que surgem especialmente em
defesa de um Outro excessivo, intrusivo, que tem um poder totalizante sobre
a criança, mantendo-a na posição de objeto de gozo. Ela estaria assim,
inserida nesse Outro, sem uma separação possível, sendo obrigada a ocupar
um lugar de prolongamento. Entretanto, é fundamental salientar que
20
compreendemos as estruturas na infância como não decididas, uma vez que a
infância é um tempo de abertura e confirmação de novas inscrições. (WILES;
FERRARI, 2015, p.108)
Desta forma, as sessões com a mãe passaram a surtir efeito positivo, pois ao
serem trabalhadas algumas questões com ela, a criança demonstrava sinais em suas
brincadeiras de que as intervenções com a mãe estavam funcionando. Isso foi observado
quando, por exemplo, a mãe conseguiu coloca-lo para dormir em seu quarto. Tal fato
refletiu-se em suas brincadeiras em sessão, passou a separar-se física e simbolicamente
da terapeuta durante suas brincadeiras, como por exemplo, quando ao brincar sugeriu
que ambos criassem uma empresa fictícia, em que no início fazia-se necessário que as
empresas fossem criadas conjuntamente, inclusive o nome desta era uma fusão dos
nomes da estagiária e de Marcos. Aos poucos a brincadeira se modificou. Ao passo que
a mãe foi conseguindo separar-se do filho em casa, ele passou a solicitar isto em terapia
também, rompendo com a sociedade na empresa fictícia e separando inclusive os
espaços físicos dentro da sala de atendimento, bem como sugerindo que cada um
escolhesse um nome para sua empresa. Tais situações se confirmam com o descrito por
Wiles e Ferrari (2015), ao referirem que na operação de alienação da relação com o
Outro, a criança, não está somente alienada ao desejo deste, mas sim, consentindo que
este Outro lhe imprima significantes para que seja inserido deste modo, no campo da
linguagem e do simbólico. Destacando que, ao ser desejado e ter impresso tais
significados o sujeito se constitui, e que é por meio da alternância entre presenças e
ausências deste outro, que a criança prepara-se para a separação, bem como a inserção
da função paterna.
Apesar de alguns avanços, a desorganização familiar continuava refletindo em
suas brincadeiras, como exemplificado na sessão em que chegou bastante ansioso e
agitado, demonstrando claramente que algo havia ocorrido em sua família, não
conseguindo verbalizar o que sentia e expressando-se primeiramente pela via do corpo e
em seguida pelo silêncio, demonstrando assim, seu sofrimento. A reação de comoção
despertada na estagiária pode ser compreendida como parte do processo analítico
manifestado por meio da contratransferência ao sentir-se novamente convocada a
assumir a maternagem do paciente. Zimmerman (2008), ao falar sobre o manejo clínico
frente a tais angústias, relata que além de acolher o sofrimento da criança, o terapeuta
deve dar sentido, significado e nome às experiências emocionais manifestadas de forma
lúdica ou comportamental, por meio de uma linguagem que a criança consiga
21
compreender. Porém, Winnicott (2000), ao falar sobre a diferenciação entre desejo e
necessidade de um paciente regredido escreveu:
É correto falar dos desejos do paciente, por exemplo o desejo de ficar quieto.
Com o paciente regredido, porém, o termo desejo revela-se inadequado. Em
seu lugar usamos a palavra necessidade. Se um paciente regredido precisa do
silêncio, nada se poderá fazer se este não for conseguido. Quando a
necessidade não é satisfeita a consequência não é a raiva, mas uma
reprodução da situação original de falha que interrompeu o processo de
crescimento do eu. A capacidade do indivíduo de „desejar‟ sofreu uma
interferência, e testemunhamos então o ressurgimento da causa original do
sentimento de inutilidade. (WINNICOTT, 2000, p.385)
Deste modo, pode-se pensar que naquele momento a intervenção realizada de
acolher seu sofrimento por meio do silêncio foi adequada, visto que respeitou sua
necessidade em momento de regressão psíquica temporária. Kahtuni (2005) ao ponderar
sobre o manejo do setting, fala do cuidado que o terapeuta deve ter em adaptar-se às
necessidades do paciente, da elasticidade da abstinência, mais do que das intervenções
interpretativas, destacando que nestes casos, “a precisão do paciente aqui é de um
terapeuta sensível, empático e verdadeiro, capaz de utilizar sua função de holding”
(KAHTUNI, 2005, p.01). Destacando ainda, que o terapeuta ao adaptar o consultório às
suscetibilidades do paciente, estaria comunicando-se com a criança por meio da
linguagem não-verbal, compreendendo desta forma seu silencio e estabelecendo um
setting de confiança.
Contudo, a partir deste momento, houve um movimento da terapeuta de realizar
intervenções de holding muito frequentemente, o que hoje com a análise do caso clínico
pode ser compreendido como um aceite inconsciente do lugar ofertado pela mãe devido
às suas dificuldades relacionais e emocionais com o filho. Kahtuni (2005) destaca que
na relação terapeuta/paciente é necessário ser sensível e estar atento às necessidades do
paciente, valorizando e legitimando suas características positivas, assumindo assim um
novo modelo de figura materna possibilitando a internalização no lugar daquela que
falhou ou inexistiu em determinados aspectos. Contudo, Dolto destaca que “mesmo que
o terapeuta passe a ocupar, então um lugar essencial na vida da criança, [...] estima que
ele não deve jamais substituir os pais quanto ao papel de educadores que têm no
cotidiano”. (DOLTO, 2013, p.13). Porém, percebe-se neste caso, que o impulso se deu
quanto ao fato de não realizar as intervenções diretamente com Marcos e sim na
tentativa de “ensinar” a mãe como esta deveria agir, aguardando passivamente o
resultado das intervenções realizadas com a mesma aparecerem por meio das
22
brincadeiras propostas por ele. Contudo, é importante observar quanto à importância de
se refletir sobre o papel do terapeuta no caso, buscando investir psiquicamente no
tratamento enquanto profissional, porém mantendo-se neste lugar e negando-se ao
convite inconsciente de assumir a função materna. Sobre isso, ressalta-se que “o
terapeuta necessita estar em contato com seus próprios aspectos infantis, sem perder a
consciência de seu papel analítico diante do material que a criança apresenta”
(ZAVASCHI et al., 2015, p.737). Os autores afirmam ainda que o terapeuta passa a ser
alvo das projeções bem como dos sentimentos deste, e que não poderia descuidar-se
desta forma às suas próprias respostas afetivas, suas questões internas, bem como de sua
família real. Segundo Dolto (1988 apud SOLER; BERNARDINO, 2012), o objetivo
central da psicoterapia infantil é, através das brincadeiras propostas pela criança,
traduzir por meio de uma linguagem acessível a ela, a sua visão dos efeitos produzidos
pela relação familiar.
Lacan (1988), ao falar sobre a contratransferência, aponta o terapeuta como
alguém não desprezível nos efeitos da terapia, destacando quanto à importância deste.
Segundo ele, faz-se necessário realizar um aprofundamento cada vez maior da mola
inconsciente, relatando ainda que:
[...] trata-se da tentação que se apresenta ao analista de abandonar o
fundamento da fala, justamente em campos em que sua utilização, por
confinar com o inefável, exigiria mais do que nunca seu exame: a saber, a
pedagogia materna, a ajuda samaritana e a mestria/dominação dialética.
Torna-se grande o perigo quando, além disso, ele abandona sua linguagem,
em benefício de linguagem já instituídas e das quais ele conhece pouco as
compensações que elas oferecem à ignorância. (LACAN, 1998, p.244)
Sendo assim, faz-se necessário observar o que dizem Zavaschi et al. (2015) ao
destacarem quanto a importância de a criança poder confrontar-se com suas ações,
mesmo que estas sejam destrutivas. Considerando o setting como sendo o espaço
apropriado para tal confronto, pois este tem por finalidade auxiliar que a criança
expresse seus conflitos livremente. Assim, afirmam que tudo aquilo que ocorre durante
o processo terapêutico servirá para compreender o psiquismo e os afetos da criança que
serão interpretados ao longo dos atendimentos, tendo como fio condutor a relação
transferencial estabelecida.
Dolto, ao falar sobre a seriedade de manter a comunicação ao longo dos
atendimentos, destaca a importância de se falar sobre o sofrimento para que este seja
superado:
23
[...] quando o sofrimento é falado, as pulões em jogo se abrandam pelo fato
de ter encontrado alguém que escuta. [...] a partir do momento em que se
informa alguém de qual é sua enfermidade, isso lhe permite criar um tesouro
de compensações para continuar sujeito, em vez de ser um indivíduo carnal
cada vez mais objeto dos outros” (DOLTO, 1999, p.85).
Desta forma, Zavaschi et al. (2015) enfatizam quanto ao valor terapêutico que
se dá por meio da comunicação, afirmando que ao ajudar a criança em seu brincar,
possibilita-se um desenvolvimento não por desvelar o significado, mas sim por auxiliar
a criança na construção de seus próprios significados.
Assim apesar de ter obtido resultados positivos em relação aos atendimentos
com Marcos, ao construir e analisar este caso clínico, questionamentos acerca do
manejo adotado são construídos no sentido de compreendê-lo mais a fundo. Como todo
e qualquer tratamento psicanalítico está sujeito, observou-se que aspectos inconscientes
da terapeuta estavam presentes na condução do caso. Como destaca Freud, ao falar
sobre as questões do ego:
Deparamos com algo no próprio ego que é também inconsciente, que se
comporta exatamente como o reprimido – isto é, que produz efeitos
poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial
antes de poder ser tornado consciente. (FREUD, 1923, p. 30)
Esta intervenção baseada no inconsciente do terapeuta poderá estar a favor do
tratamento ou contra ele no sentido de que muitas vezes, com ele, se atende a demanda
do paciente, porém não a sua necessidade. No caso de Marcos, pode-se pensar que
ambos ocorreram, pois foram colhidos muitos benefícios como toda a modificação de
sua forma de simbolizar suas vivências por meio do brincar, aproximando-se deste
modo, do simbólico. Contudo, nos momentos em que a terapeuta assumia um papel
mais materno, pode ter contribuído para o desejo da mãe de mantê-lo como objeto
desejante desta. Como descreve Dolto (1999), há que se ter muito cuidado ao satisfazer
um desejo da mãe para que não se caia na armadilha de reforçar um pensamento de que,
agindo de determinada maneira, esta continue “sentindo-se útil para alguma coisa” por
meio do filho. Por isso, salienta-se a importância de se ter o cuidado em satisfazer as
“necessidades”, porém, nem sempre os desejos do paciente em tratamento analítico.
Quanto à situação descrita após o termino dos atendimentos em que se
encontraram no corredor da clínica situação em que a criança deitou-se na perna da ex-
estagiária, a mesma sentiu-se novamente convocada a exercer a maternagem. Isso se
observa pela reação desta, porém, ao decidir afastar-se da criança, parece ter refletido
24
sobre as reações contratransferenciais que persistiam mesmo após o encerramento do
tratamento, percebendo que esta relação havia deixado de ser terapeuta/paciente,
passando a ser sim, materno/filial, caracterizada pela necessidade de afeto e
compreensão, nutrida por uma interpretação de que a mãe não o fazia e nem o poderia
fazer. Fazendo com que sentisse muita dificuldade em despedir-se da criança e que por
algum tempo ainda demandou preocupação desejando saber por quem a criança seria
atendida no semestre seguinte. Assim, com esse trabalho, ao refletir sobre esse
desfecho, observa-se a riqueza e a intensidade dessa experiência para a estagiária autora
deste trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As dificuldades na condução deste relato foram muitas, pois foram encontradas
identificações e reações contratransferenciais causando surpresas que foram possíveis
de serem observadas, provavelmente, devido ao afastamento que ocorreu entre os
atendimentos e a produção deste estudo, proporcionando maior clareza ao analisar o
caso. Tornando possível a compreensão de o quanto se faz necessário estar atento aos
movimentos transferenciais e contratransferenciais envolvidos ao longo de todo o
processo terapêutico para não permitir a atuação deste inconsciente de forma
contraproducente ao tratamento.
Contudo, apesar de alguns tropeços, que fazem parte do aprendizado ao qual era
a proposta dos atendimentos, percebe-se que o paciente conseguiu obter benefícios por
meio do tratamento analítico, por meio do qual utilizava o brincar como um uma forma
de linguagem com o intuito de comunicar-se, tendo em vista sua enorme dificuldade em
nomear e significar suas vivencias ao longo de seu desenvolvimento. Assim, conforme
destaca Lacan, “falar da perda do sentido na ação analítica é tão inócuo quanto explicar
o sintoma por seu sentido, enquanto esse sentido não é reconhecido”. (LACAN, 1998,
p.246). Deste modo, pode-se entender que este caso proporcionou benefícios não
somente a criança em atendimento, mas também para a autora deste trabalho, pois
depois de algum tempo e muito estudo, agregou conhecimento teórico aliado à
experiência para suas futuras vivencias clínicas.
25
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