Profª Neusa
Coração, cabeça e estômago
(1862)
Contexto literário:
“A sua novelística situa-se a meio caminho do Romantismo e do Realismo; mas em toda ela predominam as tintas românticas. É a novela sentimental o gênero em que mais se comprazia esse novelista de índole apaixonada e cuja vida foi, ela mesma, um agitado romance passional. “
(C.P. Luft, Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira)
Romantismo em fase final
OBRA SATÍRICA
Humor / Ironia / Caricatura
Crítica à sociedade e à igreja: hipocrisia e
imbecilidade da burguesia urbana
Dessacralização do universo ultrarromântico:
amor, mulher e cenário
Sujeito fragmentado em meio às transformações
sociais (momento de transição)
• Advertência do Autor à 2ª. Edição
• Preâmbulo
• 1ª parte - Coração • 2ª parte - Cabeça • 3ª parte - Estômago
• O EDITOR AO RESPEITÁVEL PÚBLICO
Enredo
Enredo
Advertência do Autor à 2ª edição Folheando novamente os manuscritos de Silvestre da
Silva, encontrei algumas páginas que merecem ser
intercaladas nesta 2ª. Edição de suas memórias.
A simpatia que o meu defunto amigo granjeou
postumamente na república das letras e das tetras impõe-
me o dever de empurrar portas dentro da imortalidade tudo
que lhe diz respeito.
O meu amigo Antônio Augusto Teixeira de Vasconcelos
achou que Silvestre algumas vezes abusava do
vocabulário dos eufemismos. Também me parece que sim.
Mas já agora deixemos o defunto com a sua
responsabilidade e tenhamos esperanças de que ele se
salvará primeiro que o autor da Fany, livro querido das
famílias!
Enredo Preâmbulo
Eu fui o herdeiro dos seus papéis. Alguns credores quiseram
disputarmos, cuidando que eram papéis de crédito. Fiz-lhes
entender que eram pedaços dum romance; e eles, renunciando a
posse, disseram que tais pataratices deviam chamar-se
papelada, e não papéis.
(...)
O Coração reina desde 1844 até 1854. São aqueles dez anos em
que nós vimos Silvestre fazer tolice brava.
(...)
No volume denominado Coração encontro algumas poesias, que
não traslado, por desmerecerem publicidade, sobre serem
imprestáveis ao contexto da obra. (...). Silvestre, em poesia, era
vulgar; e a poesia vulgar, mormente na pátria dos Junqueiros,
dos Álvares de Azevedo, dos Casemiros de Abreu e dos
Gonçalves Dias, é um pecado publicá- la. (...)
Basta de preâmbulo.
Enredo 1ª parte - Coração
SETE MULHERES:
1ª - Leontina = “não tinha caligrafia nem ideias”
2ª - “Nunca pude saber o nome da dama, nem lhe vi
a preceito a cara
3ª - Srª D. Catarina = “uma dama quarentona”
4ª - Clotilde = “mais amável das quatros”
5ª - Tupinoyoyo = “A mulata”
6ª - Srª D. Martinha = “pequena, entroncada; mas
bem feita e ágil”
7ª - Elise de La Sallete = “Se chama apenas a Santa”
Fase do sentimento (tese) / Lisboa
A MULHER QUE O MUNDO RESPEITA = D. Paula: “era
morgada e estava para casar”
A MULHER QUE O MUNDO DESPREZA = Marcolina:
“uma mulher que trajava de escuro e apoiava a cabeça entre as mãos”
Enredo
Ingenuidade de Silvestre = enganado
pelas mulheres/ desencanto/ morte do
coração
Enredo 2ª parte - Cabeça
JORNALISTA
PÁGINAS SÉRIAS DA MINHA VIDA
Fase intelectual (antítese) / Porto
Desejo de ascensão política e social/ Jornalismo =
ingenuidade / denúncia das mazelas sociais /
fracasso
Enredo 2ª parte - Cabeça
A mim deram-me o epíteto de caluniador convicto. Os
jornais acharam cordata a sentença (...).
Olhei em derredor de mim, procurando amigos que me
roborassem a consciência da minha justiça, esmagada a
coices dos seus sacerdotes. Fugiam das minhas
declamações os que me tinham excitado a verberar o
doutor.
Tive então nojo mortal da sociedade e de mim, (...).
Entendi que devia corrigir a obra do Criador. A minha
primeira operação de reforma foi renunciar para sempre
às manifestações da inteligência,(...).
Acabou, pois, aqui, minha vida intelectual.
Nem já coração, nem cabeça. Começa agora o meu
auspicioso reinado do estômago.
Enredo
3ª parte -Estômago
DE COMO ME CASEI
(...) De maneira que todas as minhas faculdades de ora em
diante em volta do estômago se movem, o estômago as rege, e
não há de alguma ideia preocupar-me sem sair elaborada nas
mesmas cinco horas que os fisiologistas assinam as funções
digestivas (...) Todo estômago, bem regulado, produz um gênio.
(...)
Fase realista (síntese) /Soutelo
Mudança para o campo / casamento com
Tomásia / dedica-se aos prazeres da boa mesa /
morte
Enredo
O EDITOR AO RESPEITÁVEL PÚBLICO “(...)De lá me escreveu, contando os progressos da
cabeça da doença e prognosticando o seu próximo fim.
Nesta carta prometia o meu amigo legar-me os seus
papéis, com plena autorização de divulgá-los, se eu visse
que podiam ser de proveito para a iniciação da mocidade.
(...).
Poucos meses depois recebi da mão de um almocreve
uma chapeleira de couro repleta de embrulhos, que me
enviava a Sra. D.Tomásia, e uma carta do sargento-mor
asseverando-me que seu genro morrera como um
passarinho - a morte do justo; com a diferença que não
ajustou contas com os credores, para quem a salvação do
meu amigo é coisa muito duvidosa...
Na carta do saudoso sogro vinha o seguinte soneto, que o
moribundo fizera, à imitação dos distintos gênios de ambos
os sexos, que sonetearam à hora da morte, tais como a
poetisa D. Catarina Balsemão e Bocage. O soneto reza
assim:
Abri meu coração às mil quimeras;
Encheram-mo de fel, e tédio, e alma,
Tive, em paga do amor, riso de infama...
Ai!, pobre coração!, quão tolo eras!
Dobrei-me da razão às leis austeras;
Quis moldar-me ao viver que o mundo ama
O escárnio, a detração me suja a fama,
E a lei me pune as intenções severas.
Enredo
Cabeça e coração senti sem vida,
No estômago busquei uma alma nova
E encontrá-lo pensei... Crença perdida!
Mulher aos pés o coração me sova;
Foge ao mundo a razão espavorida;
E por muito comer eu desço à cova!
Bem se vê que o soneto era o da morte. Um grande
merecimento tem ele: é ser o último.”
Enredo
JACINTO PRADO COELHO
“Ao evocar , na primeira parte (Coração), amores da
juventude, frutos da imaginação inquinada (= corrompida,
poluída) de literatura, Silvestre denuncia o vazio do
Ultrarromantismo, que escondia sob um palavreado sublime
a caça erótica. A segunda parte (Cabeça), menos bem
humorada, invectiva a burguesia portuense e o jornalismo
que o bajulava. A terceira parte, de „Em como me casei‟,
contém das melhores páginas (...) o tema „a cidade e o
campo‟, Silvestre exalta a vida rústica, sã, instintiva
patriarcal, com a poesia forte da ingenuidade. O hedonismo
impregna as descrições e as falas, castiças, de flagrante
verdade, dando suculência e cor ao próprio estilo. Mas, para
o inquieto Camilo, a vida aldeã não é também a chave da
ventura: o final desengana o leitor: Silvestre no campo,
estupidifica-se, adoece por „excesso de imobilidade e
cansaço das molas digestivas.”
O meu noviciado de amor passeio-o em
Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres
que vi, e que me viram.
Narrador-personagem
Silvestre da Silva
Trajetória sentimental e imprevisível
da juventude
Eu sabia que era corrente nos círculos da juventude a seguinte
história a meu respeito: ´Que eu tinha amado uma neta de reis,
filha de um titular, (...). Que, dementado pelo coração, ousara
escrever à nobilíssima herdeira, pedindo-lhe um suspiro em
troca de vida. Que a menina, fascinada pela minha mesma
temeridade, (...) me lançara uma flor, chamada ai!, na copa do
chapéu. Que o jardineiro observava o ato e o delatara ao fidalgo.
Que o fidalgo chamara a filha e, ouvida a resposta balbuciante
dela, a fizera entrar no Mosteiro das Comendadoras da
Encarnação, onde se finava lentamente, e eu cá de fora lhe
andava, a horas mortas, falando, mediante as estrelas do céu e
os murmúrios misteriosos da noite, resolvido a morrer, logo que
o anjo batesse as suas asas imortais no caminho da glória
eterna. Amém! Era isto o que se dizia; mas a verdade era outra.
Sarcasmo e ironia
A minha cara ajeitava-se pouco à expressão dum vivo
tormento da alma, em virtude de ser uma cara sadia,
avermelhada e bem fornida de fibra musculosa (...). Um
médico de minha íntima amizade receitou-me uma
essência roxa com a qual eu devia pintar o que
vulgarmente se diz “olheiras” (...) O artístico amor com
que eu fazia isto deu em resultado uma tal perfeição no
colorido que até o próprio médico chegou a persuadir-
se, de longe, que o pisado dos meus olhos era natural, e
eu mesmo também me parece que cheguei à persuasão
do médico.
Dessacralização do ideal romântico
Figura do herói
Ó mulheres do Porto, ó virgens saudosas da minha mocidade,
ó santas da natureza como Deus as fizera, que é feito de vós,
que fizeram de vós os romances, e o vinagre, e a Lua (...)?!
Tomásia era um rapariga desempenada e com olhares
derretidos. (...) O Sol, ao nascer, nunca a surpreendeu em
jejum. Trabalhava de portas adentro com as criadas: fazia as
barrelas, fabricava o pão, administrava a salgadeira e vendia
os cereais e as castanhas. (...) As meias eram de lã ou
algodão azuis; mas não usava ligas, de jeito que as meias
caiam em refegos à roda do tornozelo - o que não era feio.
(...) Os pulsos eram duma cana só, como lá dizem para
exprimirem a força. Cada palma de mão parecia uma lixa (...).
Ideal de mulher
Coaxavam as rãs e zumbiam os besouros. Dos soutos e
carvalheiras vinha o pio gemente das corujas e dos
mochos. Os morcegos voejavam por entre os pilares da
varanda. Nas cortes vizinhas da casa balavam os cordeiros
e refocilavam-se as cabras, produzindo o som cavo do
embate das marradas – divertimento que a humanidade usa
com menos estrondo e mais às claras.
Cenário
Teor crítico
Era o mesmo algibebe que levara no colete de veludinho com a
casca de melão. Que mudança de cara e de maneiras ele fizera!
O dinheiro faz essas mudanças e outras mais espantosas
ainda. Chegaram à fala, deram-se explicações e casaram. (...).
Estão gordos, ricos e muito considerados na sua rua.
Dinheiro + Aparência + Hipocrisia
Cansei-me de ouvir dizer que a segunda cidade de Portugal é
um enxame de moedeiros falsos, de contrabandistas, de
mercadores de negros, de exportadores de escravos e de
magistrados de aquilaria. Venalidade, crueza e latrocínio são os
três eixos capitais sobre que roda, no entender da crítica
mormente, o maquinismo social de mil almas
Teor crítico
Dinheiro + Aparência + Hipocrisia
O espírito subiu da glândula pineal para o frisado; o
entendimento desceu a reluzir no polimento das botas; o
coração entumecido enfumou os bofes da camisa; as
aspirações grandiosas acolchetaram-se à abotoadura dos
diamantes; os apertos de alma atribulada passaram para o
atesamento da luva.
A alma, conquanto seja um ser imponderável, veste
tafetás e lemistes, calça verniz, enluva-se de pelica,
bamboa-se em coxins; e, se exercita algumas operações
intelectuais e filosóficas, é quando se mete no estômago,
como Diógenes na cuba.
Assanhado pelos estorvos, que me embargavam o passo,
escrevi contra a estupidez da geração nova, que não valia mais
que a velha, e chamei os povos às armas. (...).
Velho/Novo
Sentimentalismo/ Racionalismo
Romantismo em transformação
É o mesmo, se a comparação vos quadra, nas quedas do amor e
nas quedas do raciocínio. Das primeiras erguemo-nos
sacudindo as folhas secas de umas ilusões, enquanto outros
gomos vêm já desabrolhando na alma para mais tarde
reflorirem. Das segundas não há senão lama a sacudir e muita
pisadura a curar com o bálsamo do tempo e duma vida
brutalmente desapegada de tudo que ultrapassa o momento da
sensação.
“[...] ... em Coração, cabeça e estômago o que ironicamente se põe em causa é a possibilidade de superar o dilema cidade/campo, vida intensa/vida tranquila, em relação ao problema da felicidade. Com efeito, nenhuma dessas alternativas dá a Silvestre a ambicionada ventura.”
Jacinto do Prado Coelho
Revisita os textos de Silvestre Modifica o que julga necessário Acrescenta notas e comentários (tom
irônico e crítico) Subtrai o que considera de mau-gosto Preocupação com o leitor (Defendo a
paciência do leitor dos duros golpes que estão iminentes)
Editor (amigo herdeiro)
Narrador em 1ª pessoa, mortos
Criação de um remédio para a cura da melancolia
Enveredaram pelo jornalismo e falham
Relações amorosas tratadas com ironia
Intertextualidade, metalinguagem, digressão
Diálogo com o leitor
Ironia e desencanto