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O IMAGINÁRIO SATÍRICO

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Page 1: O IMAGINÁRIO SATÍRICO - usp.br · OBRAS SELECIONADAS Romances ou novelas passionais Amor de Perdição, 1862 Eusébio Macário, 1879 A Brasileira de Prazins, 1882 Coração, Cabeça

O IMAGINÁRIO SATÍRICO

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Camilo Castelo Branco1825-1890

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OBRAS SELECIONADAS

Romances ou novelas pass ionais

Amor de Perdição, 1862

Eusébio Macário, 1879

A Brasileira de Prazins, 1882

Coração, Cabeça e Estômago, 1862

A Queda dum Anjo, 1866

Romances ou novelas sat í r icas

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Poligrafia: prosa de ficção, teatro, poesia, polêmica (jornalismo)

Ultrarromantismo

Sentimentalismo

Final trágico (novelas passionais)

Humor e ironia (novelas satíricas)

Tramas rocambolescas

Mestria estilística

CARACTERÍSTICAS

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ENREDO E EXCERTOS

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O fidalgo Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda,casado com a prima, dona Teodora Barbuda de Figueiroa, viveem Caçarelhos, província onde possui suas terras.

Austero, tradicionalista e ávido leitor dos clássicosportugueses, cujas obras orientam sua vida cotidiana, seucomportamento é considerado excêntrico, mas ele é tãorespeitado por seus conterrâneos, que eles o elegemdeputado.

Parte, então, para Lisboa, deixando a esposa emCaçarelhos, a cuidar dos negócios da propriedade.

Insta-se na capital e a percorre, seguindo as indicaçõeslidas nos clássicos. Decepciona-se com as diferenças queencontra entre os registros apologéticos dos livros e arealidade degradada com que se defronta.

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IV

Asneiras da erudição

Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda aLisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem ditoque, naquela porção da Lisboa antiga, a cada esquina haviaum monumento à espera de arqueólogo competente.

Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua maislimpa, supondo que os lamaçais de Alfama haviam tragado osmonumentos, lamaçais em que ele desastradamenteescorregara, e donde saíra mal-limpo, e assoviado pormarujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mauagouro! [...]

Pareceu-lhe também pesada e salobra a água.

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Recorreu ao seu clássico Luís Mendes, no artigo água, eleu que o chafariz de El-Rei dava uma linfa gostosa e de suavequentura, a qual limpava a garganta de toda a rouquidão, eafinava as vozes, e assim, dizia o clássico, “não errará quemdisser que ela é causa das boas vozes que em Lisboadocemente ouvimos cantar; e também dos bons carões queconservam as mulheres”. [...]

[Calisto] mandou buscar um barril daquela salutíferaágua, que o Mendes de Vasconcellos compara à das fontescamenas. Bebeu à tripa forra o deputado, e teve uma dor debarriga precursora de febres quartãs. Valeu-se ainda do seuclássico, e por conta dele mandou buscar à Pimenteira outrobarril de água, a qual, diz o citado autor, “se busca para osdoentes de febres”.

O velho criado e enfermeiro, quando viu o seu amo

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encharcado e cada vez pior, foi de moto próprio em cata docirurgião, o qual deu o morgado rijo e fero em quinze diascom algumas beberagens quinadas.

Desde então, Calisto Elói não bebeu senão vinho, emelhorou da garganta e do espírito, um tanto quebrantado,recitando, a cada garrafa que abria, o provérbio da sagradaescritura: “Vinum bonum laetificat cor hominis”.

Não obstante, o descrédito do seu clássico deveras lhedoeu, mormente pelo tom de mofa com que o cirurgiãoenxovalhou as cãs do honrado e lusitaníssimo escritor LuísMendes. [...]

— Fie-se lá a gente! — monologou o deputado. — Épreciso cuidado com os clássicos a respeito da água de Lisboa.[...]

Decepções sobre decepções!

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No parlamento, Calisto atrai a simpatia dos oposicionistasconservadores, mas provoca gargalhadas por seus discursosanacrônicos, embora eruditos. Apesar disso, “Calisto Elóiganhara consideração na câmara e no país”. Disputado porgovernistas e oposicionistas, “respondia que estavadescontente de gregos e troianos”.

Um amigo de Calisto, o velho desembargador Sarmento,se queixa amargamente da desavença entre o genro e suafilha Catarina, de quem se murmurava ser adúltera. Calistologra afastar o amante e reconciliar o casal.

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Afora o desembargador, uma pessoa única sabia que omorgado tinha sido o conciliador engenhoso da paz dafamília: era Adelaide. Esta menina vivera receosa de que oseu Vasco, rapaz timbroso, a não quisesse esposar, fazendo-acúmplice dos desvios da irmã. Agora, já mais esperançada narealização do casamento, via com olhos agradecidos o bomprovinciano, e atendia-o com os desvelos de extremosaamiga.

Calisto, porém, se apaixona por Adelaide.Começa a queda do anjo.

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Ai! Se Calisto Elói foi de repente assalteado do dragão doamor, como hei de eu inventar prelúdios e antecedências quea natureza não usou com ele!? Se o homem, espantado, a simesmo se interrogava, e dizia: — isto que é?! — como hei deeu dizer ao leitor o que foi aquilo?! [...]

Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobremas pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra é a tênia. Ossintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos,confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muitoacume de vista e longa prática para descriminá-los. Passa omesmo com a tênia, lombriga por excelência. O aspectomórbido das vítimas daquele parasita, que é para osintestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos,confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde ohidrotórax até à espinhela caída.

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E aqui está que Calisto Elói — ia me esquecendo dizê-lo —também sentiu a queda da espinhela, sensação esquisita devácuo e despego, que a gente experimenta, uma polegada etrês linhas acima do estômago, quando o amor ou o susto nosleva de assalto repentinamente.

Calisto substitui suas vestimentas antiquadas por novas,mas de tão péssimo gosto, que provoca risos. Então:

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Entrou a inventariar as alterações que devia fazer nosubstancial e acidental da sua personalidade.

O uso do meio grosso pareceu-lhe incompatível com umgalã. Aqueles sibilos da pitada, bem que denotassem espíritoscogitantes e gravidade de juízo, deviam de toar ingratamentenos ouvidos de Adelaide. [...]

Viu-se no espelho de barbear, modesto utensílio do estojode bezerro, e conveio no deslavado prosaísmo da sua caraclerical. Resolveu deixar pera e meia barba, como transiçãopara o bigode, que devia ir-lhe bem na tez um tanto moreno-pálida. [...]

Depois, quando a ânsia de uma pitada começava aimportuná-lo, fez provisão de charutos, e fumou o primeirocom aflitivas caretas, e engulhos de estômago.

Colheu informações dos alfaiates de melhor fama, e foi aoKeil encomendar duas andainas de fato. O artista ofereceu-

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-lhe os figurinos; e, como lhe falasse francês, Calisto supôsque o atencioso alfaiate lhe dava a conhecer os retratos dealguns sujeitos ilustres da França. Corrido do engano, depoisde ler as indicações das toilettes, saiu dali a procurar mestrede línguas, e a comprar dicionários e guias de conversação.[...]

Quem tivesse conhecido, um mês antes, Calisto Elói deSilos e Benevides de Barbuda, devia chorá-lo, quando o viuentrar num café a pedir água para combater os vômitosprovocados pelo charuto!

Irá perder-se aquela alma tão portuguesa, aqueleexemplar marido, aquele sacerdote e glorificador dosclássicos lusitanos?

O amor abrirá no pavimento da câmara um alçapão, ondese afunda aquele grande brilhante, desluzido, masprometedor de refulgente lume?

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Calisto oferece versos de amor e se insinua a Adelaide, querevela o assédio ao velho pai. Este remete a família a uma casade campo, para afastar a filha. Ao saber disso, Calisto vai aosítio e, de noite, ao aproximar-se da casa, às escondidas,presencia o seguinte diálogo entre Adelaide e seu quase noivo:

— Ainda bem que recebeste a minha carta, Vasco!... —disse Adelaide [...]

— Fiquei espantado — disse Vasco da Cunha — Querápida deliberação foi esta?! Vir para uma quinta com tãomau tempo! Foi caso de maior!...

— Fui eu a causa — tornou ela — São melindres do meucoração, que, por amor de ti, não sofre que outra voz dehomem lhe fale a linguagem que eu só quero e aceito de tua

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boca. Antes me quero aqui escondida com a tua imagem, quever-me obrigada a tolerar os atrevimentos do Calisto deBarbuda...

— Quê?! — atalhou Vasco — pois aquele homem tãosério!... tão temente a Deus!...

— É um hipócrita com a brutalidade de um provinciano!...Ofereceu-me uns versos em segredo! Que ultraje! que faltade respeito à minha posição...

— E que desmoralizada e irreligiosa criatura! Casado, jádaqueles anos, legitimista, e católico, segundo diz, e ousar...Estou espantado! [...] Fiem-se lá!...

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Desiludido, Calisto retorna a Lisboa e é procurado pelabelíssima Ifigênia, viúva do tenente-coronel Gonçalo TelesTeive Ponce de Leão, parente distante de Calisto. Ela lhe pedeamparo, por encontrar-se em dificuldades materiais. Calistonão só a instala em uma casa requintada em Cintra, torna-se,também, seu amante.

Procurado em Lisboa pelo mestre-escola Brás Lobato, umconterrâneo da sua província à espreita de vantagens, Calistoo decepciona. Ele, então, se vinga ao denunciar a Teodora osamores adúlteros de Calisto.

Teodora quer viajar a Lisboa, mas, antes que o fizesse, ésurpreendida com a chegada do marido.

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Teodora entrou a encarar no homem muito de fito, erompeu num choro desfeito.

— Que tens tu? — perguntou ele.— Como tu estás mudado! não me pareces o meu

homem!... [...]Calisto sorriu-se, com um profundo tédio de sua mulher.

Naquele instante alanceou-o mortalmente a saudade deIfigênia. Aquela casa de Caçarelhos e a mulher pareceram-lheum retalho do inferno, daquele inferno alagado e frio de quefala o padre A. Vieira. [...]

Teodora estava num daqueles elevados graus de amorososentimento, em que a mulher menos esperta conhece que édesamada. Repelida daquele modo, ainda as lágrimas lhevidraram os olhos; mas o despeito secou-as.

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— Não me podes ver à tua beira! — disse ela comaltiveza. — Vê-se mesmo na tua cara que me aborreces!Ainda agora chegaste, e já estás a falar na ida para Lisboa.Escusavas então de cá vir. Mal haja a hora em que saíste destacasa. Já não tenho marido!...

Neste ponto, não pôde represar as lágrimas. Acocorou-seno chão a chorar, com a cara metida entre os joelhos. [...]

No dia da partida, a despedaçada senhora experimentouum ataque de eloquência. Entrou com o almoço no gabinetedo marido, e bradou:

— Então que é isto? Entendamo-nos.— Isto quê?— Sempre vais para a vida perdida?— Vou hoje para Lisboa — respondeu serenamente

Calisto Elói, dobrando em maços os títulos de sua casa.

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— E então da tua mulher não queres saber mais nada?— Minha mulher fica em sua casa, e eu vou cumprir os

meus deveres como deputado.— Mas eu não quero saber disso.— Então que queres tu saber, prima Teodora?— Quero saber a lei em que hei de viver.— Vive na lei de Deus.— E tu na do diabo, hein?— Berra pouco.— Hei de berrar o que eu quiser.— Pois berra, que eu não te hei de ouvir muito tempo.— Se isto é assim, quero separar-me.— Separa-te.— Vou para o meu morgadio de Travanca.— Pois vai.

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— Cada qual fique com o que é seu.— Pois sim. Leva daqui o que for teu.A desesperação de Teodora aumentava à medida que a

fleugma do marido lhe cravava o dardo do desengano nocoração ainda fiel. Começou a pobre mulher a saltar nopavimento, sem proferir sons articulados. Expedia unsgrunhidos roucos, que fizeram pavor a Calisto. Este feiíssimotrejeitar desfechou num insulto nervoso, com sintomasepilépticos.

De volta a Lisboa, a transformação de Calisto se completa.Passa a ser visto com inveja e admiração. Politicamente, junta-se aos governistas:

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Na primeira votação importante para o ministério, CalistoElói defendeu o projeto que era vital para o governo, e fez-sedesde logo necessário à situação. Orou, por vezes, comseriedade tal de princípios, que não servem para romance osseus discursos. Explicou a profissão da sua nova fé,respeitando as crenças políticas dos seus antigoscorreligionários. Disse que escolhia o seu humilde posto nasfileiras dos governamentais, por que era figadal inimigo dadesordem, e convencido estava de que a ordem só podiamantê-la o poder executivo, e não só mantê-la, senãodefendê-la para consolidar as posições, obtidas contra oscobiçosos de posições. Reflexionou sisudamente, e fez escola.Seguiram-se-lhe discípulos convictíssimos, que ainda agorapugnam por todos os governos, e por amor da ordem queestá como poder executivo.

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Teodora, furiosa com o marido, decide ir buscá-lo emLisboa. O primo Lopo da Gamboa escreve a Calisto avisando-odo intuito da mulher. O fidalgo parte com Ifigênia para aFrança, evitando o encontro com a esposa.

De regresso a Caçarelhos, Teodora vai morar em suapropriedade e amasia-se com o primo Lopo da Gamboa.

Calisto, ao voltar de Paris, recebe o título de barão e vaimorar com Ifigênia, com quem tem duas crianças. Teodoratem um filho com Lopo.

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Conclusão

Deixá-lo ser feliz: deixá-lo. Calisto Elói, aquele santohomem lá das serras, o anjo do fragmento paradisíaco doPortugal velho, caiu.

Caiu o anjo, e ficou simplesmente o homem, homemcomo quase todos os outros, e com mais algumas vantagensque o comum dos homens.

Dinheiro a rodo!Uma prima que o presa muito!Dois meninos que se lhe cavalgam no costado!Saúde de ferro!E barão!Conjectura muita gente que ele é desgraçado, apesar da

prima, do baronato, dos meninos, do dinheiro e da saúde.

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Eu, como já disse, não sei realmente se lá no recesso dosarcanos domésticos há borrascas.

Na qualidade de anjo, Calisto, sem dúvida, seria mais feliz;mas, na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, láse vai concertando menos mal com a sua vida.

Eu, como romancista, lamento que ele não vivamuitíssimo apoquentado, para poder tirar a limpo a sãmoralidade deste conto.

Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não háde levar ao céu número de almas mais vantajoso que o doano passado.