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Introdução 1

1. Introdução O objetivo do cálculo de uma estrutura de concreto armado é o de se garantir: uma segurança adequada contra a ruptura decorrente das solicitações; deformações decorrentes das ações limitadas a valores que não comprometam sua funcionalidade; e a durabilidade da peça, através de medidas que preservem os materiais. A metodologia empregada no cálculo é a de se considerar situações limites ao atendimento destes requisitos de estabilidade, funcionalidade e durabilidade, categorizadas em duas classes de estados da estrutura. Estados limites últimos (ELU) que correspondem ao esgotamento da capacidade portante da estrutura, total ou parcial, podendo ser atingidos pela perda, generalizada ou parcial, de estabilidade da estrutura, pela ruptura de seções, pela instabilidade elástica ou pela deterioração por fadiga. Estados limites de utilização ou serviço (ELS) que correspondem à impossibilidade de emprego, total ou parcial, da estrutura por esta não oferecer mais as condições necessárias à funcionalidade e à durabilidade, ainda que sua capacidade portante não tenha se esgotado. Podem se originar, por exemplo, de deformações excessivas, de fissuração prematura ou excessiva, de existência de danos indesejáveis, como corrosão da armadura ou lixiviação do concreto, ou de vibração excessiva. As ações a serem consideradas atuantes sobre as estruturas são as cargas permanentes, as acidentais e todas aquelas que possam produzir solicitações importantes, de acordo com as normas e condições peculiares de cada obra. Deve-se analisar a necessidade de inclusão dos efeitos das ações: do vento, da variação de temperatura, da retração e deformação lenta do concreto, dos choques, dos deslocamentos de apoio; bem como os efeitos dos esforços repetidos e daqueles atuantes nas fases construtivas, decorrentes da montagem de peças pré-moldadas ou da retirada dos escoramentos. A NBR6120 - Cargas para cálculo de estrutura de edificações, fixa as condições exigíveis para a determinação dos valores das cargas que devem ser consideradas no projeto de edificações, qualquer que seja a sua classe ou destino, salvo casos especiais. Como princípio fundamental de projeto das estruturas de concreto, exige-se que a segurança em relação aos estados limites últimos jamais dependa da resistência à tração do concreto. Assim sendo, nas peças estruturais de concreto armado, os esforços internos de tração são absorvidos por armaduras de aço passivas. Isto é, por armaduras que não introduzem esforços internos nem deformações adicionais na peça, e que entram em funcionamento em decorrência das deformações da própria estrutura provocadas pelas ações externas. O concreto armado deve ser idealizado como um material composto, pelo concreto e pelo aço, respeitando-se o funcionamento solidário destes dois materiais. A técnica de armar as peças estruturais deve estar baseada no conhecimento da distribuição dos esforços internos. Para cada um dos diferentes tipos de elementos estruturais existentes numa construção, o arranjo das armaduras de aço deve seguir regras específicas estabelecidas com base em modelos que procuram reproduzir o comportamento real destas armaduras, solidárias ao concreto, até os estados limites últimos. Este curso consiste de uma introdução ao cálculo estrutural das vigas de concreto armado, ilustrada através do estudo de vigas retas de edifícios.

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Introdução 2

Fig.1.1 - Vigas de edifício - formas e esquemas estruturais

Peso próprio de V2 + alvenaria sobre V2

Reações de L1 Reações de L3

L2 L4 L5

Reações de V5 Reações de V7

Reações em P3

VIGA V2

Reações em P4

ESQUEMAS ESTRUTURAIS DAS VIGAS:

Reações de L3 e L4

Peso Próprio de V5

Reações em: V3 V2

VIGA V5

A

PLANTA DO PAVIMENTO TIPO

B

V4a

(b 4

xh4)

V

4b

V5

CO

RT

E B

-B

V2

V3

V3a (b3xh3) V3b

V5(

b 5xh

5)

V6a

(b 6

xh6)

V7a

(b 7

xh7)

(

inve

rtid

a )

V1a (b1xh1)

V2a (b2xh2) V2b

V1b

V6b

V7b

A B

L1 L2

L3 L4 L5

P1 P2

P3 P4

P5 P6

CORTE A-A

Reações de L5

Reações em: V3 V2 V1

VIGA V7

Reações de L2

Peso Próprio de V7

V2a V2b

V7

V5 P3 P4

alvenaria

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Introdução 3

As vigas são elementos estruturais lineares tipicamente solicitados por momentos fletores e forças cortantes, provenientes da ação de cargas transversais ao eixo longitudinal e/ou de deslocamentos impostos, como recalques de apoio, variações térmicas, efeitos de retração e imperfeições de montagem. Nas vigas de edifícios, em geral, as cargas provêm das seguintes ações: peso próprio da viga, peso de paredes de alvenaria, reações devido às cargas permanentes e acidentais das lajes e das vigas secundárias que se apoiam na viga analisada. Os esforços numa estrutura são obtidos da análise de um modelo estrutural, no qual se pressupõe um padrão de comportamento do material - elástico, plástico, linear, não-linear, etc. A dificuldade de se estabelecer um modelo de análise para as vigas de concreto armado reside no fato de que o comportamento à flexão apresenta diferentes fases, isto é, a rigidez à flexão EI depende da intensidade das solicitações e da armadura da seção, que em geral não são conhecidas a priori. 1.1. Estádios de comportamento à flexão k = (εcc + εct ) / h = curvatura εsc = alongamento específico máximo εcc = encurtamento específico máximo, em valor absoluto Fig.1.2 - Trecho de viga, material homogêneo, isótropo e elástico linear, solicitada à flexão pura O comportamento de um trecho de viga, em material homogêneo, isótropo e elástico-linear, solicitado à flexão pura, ilustrado na fig.1.2, é idealizado pela Resistência dos Materiais através de suas hipóteses: • a hipótese de Bernouilli ou da seção plana estabelece que a seção transversal permanece plana e perpendicular ao eixo fletido. • da lei de Navier, tem-se que a deformação longitudinal específica de uma fibra distante y da linha neutra é dada por εx = k y • da lei de Hooke, para o material elástico linear com módulo de Young E, a tensão normal nesta fibra é dada: σx = E εx = E y k • do equilíbrio das tensões com as forças normais N=0 N = ∫A σx dA = ∫A E y k dA = E k ∫A y dA = 0 onde E k π 0 Æ Qs = ∫A y dA = 0 conclui-se que a linha neutra passa pelo centróide da seção transversal pois o momento estático da seção em relação ao eixo z é nulo. • do equilíbrio com o momento fletor M M = ∫A σx y dA = ∫A E y2 k dA = E k ∫A y2 dA , conclui-se que a relação momento-curvatura é linear: M = ( E I ) k I = Iz = ∫A y2 dA = momento de inércia da seção em relação ao eixo z centroidal

M M

dx

x

εcc

εct

εx

deformações

σcc

σct

σx

tensões

dA

Seção Transversal ( A ; Iz )

M

EI

k

Relação M-k linear

h y

z C Posição da Linha neutra é constante

b

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Introdução 4

Para esta viga, em material elástico-linear, a posição da linha neutra é definida unicamente pela geometria da seção transversal. A rigidez à flexão EI é uma constante, dada pela características geométricas da seção transversal e pelo módulo de elasticidade do material, sendo seu valor independente da intensidade da solicitação. Portanto, para qualquer valor da solicitação M, a curvatura é diretamente determinada através da relação linear M-k: k = M/( EI ). A partir da curvatura pode-se determinar as deformações e as tensões. As vigas em concreto armado têm comportamento não linear, a rigidez EI não é constante, ao contrário, ela depende da intensidade de solicitação e da armadura existente na peça. O diagrama momento-curvatura que se obtém para o carregamento progressivo de um trecho de viga em concreto armado (fig.1.3), com armadura longitudinal de tração de área As constante, tem o aspecto representado na fig.1.4. Neste diagrama M-k, podem ser observadas 4 fases distintas de comportamento à flexão ao longo do carregamento. Em todas as fases, ditas estádios de comportamento, a hipótese da seção plana permanece válida, porém, a posição da linha neutra e a distribuição das tensões normais, de tração e compressão, (fig.1.5) variam fase à fase. • Estádio I: M < Mr1 ; relação M-k linear Para as pequenas deformações decorrentes da baixa intensidade da solicitação M, o comportamento do concreto ( e do aço) pode ser admitido como elástico-linear, tanto à compressão como à tração. O comportamento no estádio I é o descrito pela Resistência dos Materiais. Para M=Mr1, na fibra inferior, a mais alongada, inicia-se a plastificação do concreto à tração. • Estádio Ia: M r1 < M < Mrn ; relação M-k não-linear, com plastificação do concreto à tração. A tensão de resistência à tração do concreto fct é da ordem de 10o/o da resistência à compressão fcc. O concreto tracionado de uma seção da viga pode se romper, sem que haja ruína da peça, pois a armadura As (se suficiente) tem condição de substituir do ponto de vista estático a parte tracionada desta seção fissurada. Nesta fase, o diagrama momento-curvatura é não-linear, em virtude da formação de novas fissuras e aumento das já existentes. Até que para M=Mrn o panorama de fissuração da viga tende a se estabilizar numa configuração definitiva. • Estádio II: Mrn < M < Muo ; relação M-k aproximadamente linear No Estádio II, os esforços de tração são absorvidos praticamente só pela armadura. Assim, é usual se desprezar totalmente a contribuição do concreto à tração. O concreto à compressão continua em regime linear-elástico até que em M=Muo, na fibra mais encurtada, inicia-se a plastificação à compressão. • Estádio III: Muo < M < Mun ; relação M-k não-linear; com plastificação do concreto à compressão . O diagrama M-k volta a ser não-linear pois, nesta fase, ocorres uma plastificação progressiva do concreto comprimido. Em M=Mun , atinge-se à situação limite, com ruptura da seção por compressão do concreto. Nesta fase, pode também ocorrer um alongamento excessivo da armadura tracionada, o que é, convencionalmente, considerado como uma situação última da peça fletida.

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Introdução 5

Fig. 1.3 - Trecho de viga em concreto armado com armadura constante Fig.1.4 - Diagrama M-k na seção transversal da viga de concreto armado Fig. 1.5 - Distribuição das tensões normais no concreto nos diversos estádios

fcc

fct ≅ fcc / 10

εc

σc

concreto

M M

dx

εcc

εct εst

deformações

Posição da linha neutra variável

Estádio II - puro Mrn < M < Muo

Estádio III Muo < M < Mun

Estádio I a Mr1 < M < Mrn

M

Estádio I M < Mr1

σcc

σct

σcc

fct

σcc

σct = 0

σcc

σct = 0

Mk (em serviço)

Md (na ruptura)

Ia

M Mu n

Mu o

Mr n Mr 1

Estádios: I Estádio II Estádio III k

Form

ação

de

fis

sura

s

Fiss

uraç

ão

esta

biliz

ada

rupt

ura

fyt

εs

σs

aço

fyc = fyt

Seção Transversal

As

d h

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Introdução 6

Em geral, o funcionamento das vigas de concreto armado para as cargas de serviço se dá no estádio II. Desta forma, nos cálculos envolvendo a verificação dos estados limites de utilização, o funcionamento da seção é suposto sob as hipóteses do estádio II. Enquanto que, para a verificação dos estados limites últimos, considera-se o funcionamento da seção no estádio III, tomando-se os valores de cálculo para as solicitações e para a resistência dos materiais. 1.2. Modelos para as vigas retas à flexão simples nos ELU Para o estudo do funcionamento das vigas de concreto armado, a literatura tradicionalmente se utiliza dos resultados dos "ensaios de Stuttgart", realizados por Leonhardt e Walther. O ensaio consiste no carregamento gradativo, até o colapso, de uma viga bi-apoiada, conveniente armada sob a ação de duas cargas concentradas simétricas (fig. 1.6 e fig.1.7). O trecho central da viga está submetido à flexão pura, e os trechos extremos, à flexão simples não-uniforme.

Fig. 1.6 - Viga ensaiada - esquema estrutural Numa primeira fase, a viga não apresenta fissuras, pois o concreto da fibra inferior não atingiu à tensão de ruptura à tração. O funcionamento se dá no estádio I. Os pontos da peça não fissurada estão sob estados planos de tensões, normais e tangenciais, cujas trajetórias de tensões principais de tração e de compressão estão esquematizadas na fig.1.7. Com o aumento da carga, a tensão de ruptura à tração é atingida no trecho central e começam a aparecer fissuras verticais que se estendem até pouco abaixo da linha neutra. O funcionamento desta fase é no estádio II, quando os esforços de tração são absorvidos pela armadura. No início desta fase, os trechos extremos ainda estão funcionando no estádio I, mas o aumento progressivo da carga até ao colapso, forçará toda a viga a trabalhar fissurada, com exceção de regiões muito pequenas, próximas aos apoios. Neste trecho, em presença das tensões cisalhantes, as fissuras são inclinadas. O panorama de fissuração da peça ao atingir o estado limite último pode ser muito diferente daquele que poderia se prever da análise das trajetórias de tensões elásticas, pois depende do arranjo para a distribuição das armaduras. Em princípio existiriam duas possibilidades para o arranjo das armaduras. Uma primeira, teoricamente possível, é baseada na idéia da substituição local de material, onde barras de armadura seriam distribuídas por todo volume a peça estrutural, de modo que ao se abrir uma fissura já existiria uma armadura capaz de absorver a tração liberada do concreto. Neste caso, a distribuição dos esforços internos seguiria o mesmo padrão de antes da fissuração. Porém, nada garante que este arranjo seja o mais eficiente para a segurança em relação aos estados limites e nem o mais econômico. A segunda, se baseia no fato de que uma parte das barras de aço é melhor aproveitada quando empregada de forma concentrada, em posições preferenciais da estrutura. Este é o princípio dos arranjos de armadura padronizadas, estabelecidas de acordo com modelos nos estados limites

V

a a

P

Pa

P

P

P

M

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Introdução 7

Fig.1.7- Fases de comportamento e modos de ruptura no ELU

P P

Estádio II - no limiar do estado limite último

• • •

A

E B

C

Modos de ruptura na região de apoio intermediário de viga contínua

Modos de ruptura das vigas de concreto armado A. ruptura por flexão B. ruptura por força cortante - tração ou flexão da armadura longitudinal C. ruptura por força cortante - flexão D. ruptura por escorregamento das ancoragens E. ruptura cortante - compressão F. ruptura por perda de aderência - escorregamento da armadura

P P

Modos de Ruptura - estado limite último

A B D C E

óI

óII P < PI P < P1

Estádio I - trajetória de tensões principais

• • •

bw

d h

F

Escorregamento da armadura

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Introdução 8

últimos das peças estruturais. Estes modelos devem sempre garantir a estabilidade, global e local, da peça. Para o trecho central da viga, onde as seções transversais estão solicitadas à flexão pura, o modelo típico consiste de seções resistentes formadas por um banzo comprimido de concreto e um banzo tracionado correspondente à armadura longitudinal disposta junto à face inferior. Para os trechos extremos, sob flexão não uniforme, o modelo idealizado é o de uma treliça, que considera a interação entre o momento fletor e a força cortante. A treliça tem banzos longitudinais, comprimido e tracionado, como no trecho central, ligados diagonais comprimidas e tirantes. As diagonais comprimidas, ditas bielas, representam o concreto entre as fissuras. Os tirantes, verticais ou inclinados, representam a armadura transversal da viga, completando o esquema estático da treliça e costurando as fissuras. Fig. 1.8 - Modelo de treliça para dimensionamento da viga no ELU 1.3. Armaduras padronizadas das vigas retas As armaduras podem ser classificadas segundo sua finalidade • Armaduras de equilíbrio global Flexão: longitudinais de tração e de compressão Cisalhamento: (transversais) estribos ou barras dobradas • Armaduras de equilíbrio local de costura: barras retas de suspensão: estribos ou barras dobradas eventualmente necessárias: contra fendilhamento; contra flambagem das barras comprimidas; mudança de direção dos esforços longitudinais • Armaduras auxiliares montagem ; de pele ou costelas (vigas altas); complementares

• •

Seção transversal P P

Banzo comprimido

Banzo tracionado

P P

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Introdução 9

As armaduras padronizadas das vigas retas estão representadas esquematicamente na fig.1.9. Fig. 1.9 - Armaduras padronizadas das vigas retas Os esforços solicitantes podem ser determinados através da análise em regime elástico ou elasto-plástico. Uma aproximação inicial, usual, do modelo estrutural para a análise elástica é aquele em que o módulo de elasticidade E material é definido como o módulo Ec tangente inicial do concreto e o momento de inércia I correspondente à seção transversal bruta em concreto, desprezando-se a

Estribos (cisalhamento e suspensão)

cavalete ( flexão e cisalhamento )

longitudinal ( flexão )

longitudinal ( flexão ou montagem)

longitudinal (flexão)

longitudinal (flexão)

viga secundária

apoio intermediário

apoio extremo

costelas ( fissuração)

Seção A-A

A

A

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Introdução 10

presença da armadura ou de fissuras na peça. Devido o caráter iterativo do problema, a validade desta aproximação inicial deve ser verificada posteriormente.


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