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1 Centro Latino-Americano

de Estudos de Violência e

Saúde (Claves), Escola

Nacional de Saúde Pública

(Ensp), Fundação Oswaldo

Cruz. Av. Brasil 4036/700,

Manguinhos. 21040-361

Rio de Janeiro RJ.

[email protected]

Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade

Qualitative analysis: theory, steps and reliability

Resumo Neste ensaio busca-se aprofundar a re-

flexão sobre o processo de análise na pesquisa qua-

litativa a partir de autores referenciais e da expe-

riência da própria autora. O texto está organiza-

do em forma de decálogo por meio do qual é trata-

do o tema processualmente. A hipótese é de que

uma análise para ser fidedigna precisa conter os

termos estruturantes da investigação qualitativa

que são os verbos: compreender e interpretar; e os

substantivos: experiência, vivência, senso comum

e ação social. A seguir a proposta avança por 10

passos que se iniciam na construção científica do

objeto pela sua colocação no âmbito do conheci-

mento nacional e internacional, na elaboração

de instrumentos que tornem concretos os concei-

tos teóricos, na execução de um trabalho de cam-

po que envolva empaticamente o investigador no

uso de vários tipos de técnicas e abordagens, tor-

nando-o um construtor de relações, de observa-

ções e de uma narrativa em perspectiva. Por fim,

a autora trata da análise propriamente dita, mos-

trando como o objeto, que já vem pensado em to-

das as etapas anteriores, deve se tornar um cons-

truto de segunda ordem, em que predomine a ló-

gica dos atores em sua diversidade e não apenas as

suas falas, dentro de uma narrativa teorizada, con-

textualizada, concisa e clara.

Palavras-chave Análise qualitativa, Pesquisa

qualitativa, Compreender, Interpretar, Dialetizar

Abstract This essay seeks to conduct in-depth

analysis of qualitative research, based on bench-

mark authors and the author’s own experience.

The hypothesis is that in order for an analysis to

be considered reliable, it needs to be based on struc-

turing terms of qualitative research, namely the

verbs ‘comprehend’ and ‘interpret’, and the nouns

‘experience’, ‘common sense’ and ‘social action’.

The 10 steps begin with the construction of the

scientific object by its inclusion on the national

and international agenda; the development of tools

that make the theoretical concepts tangible; con-

ducting field work that involves the researcher

empathetically with the participants in the use of

various techniques and approaches, making it

possible to build relationships, observations and

a narrative with perspective. Finally, the author

deals with the analysis proper, showing how the

object, which has already been studied in all the

previous steps, should become a second-order con-

struct, in which the logic of the actors in their

diversity and not merely their speech predomi-

nates. The final report must be a theoretic, con-

textual, concise and clear narrative.

Key words Qualitative analysis, Qualitative re-

search, Comprehension, Interpretation, Dialectics

Maria Cecília de Souza Minayo 1

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Introdução e estratégia de construção do texto

Neste artigo apresento uma reflexão sobre o pro-cesso de análise qualitativa de estudos com baseempírica. O texto tem duas fontes de inspiração:a primeira são os vários autores com os quaisvenho dialogando durante mais de 25 anos. Asegunda é minha própria vivência como investi-gadora, orientadora de teses e de dissertações ecomo professora na área de saúde coletiva.

Começando pela minha experiência, ressaltoque de todas as demandas que recebo de estu-dantes e colegas, a mais recorrente diz respeito acomo fazer análise do material qualitativo. É comose todas as outras fases da pesquisa, a prepara-ção do projeto e o trabalho de campo configu-rassem etapas muito simples e fáceis de seremresolvidas, em contraposição às dificuldades decomo tratar os achados empíricos e documen-tais. Essa preocupação procede, pois é diferentedos estudos quantitativos em que os dados co-lhidos de forma padronizada e tratados com téc-nicas de análise sofisticadas oferecem ao pesqui-sador certa segurança quanto à fidedignidade deseu estudo. Uma segurança que a rigor deveriaser questionada1. No caso da pesquisa qualitati-va, muitos outros problemas – que na verdadesão parte de sua própria contingência e condição– dificultam saber de antemão se as informaçõesrecolhidas e as análises elaboradas poderiam serconsideradas válidas e suficientes.

Divido este trabalho em duas partes. Na pri-meira, mostro que uma boa análise começa coma compreensão e a internalização dos termos fi-losóficos e epistemológicos que fundamentam ainvestigação e, do ponto de vista prático, desdequando iniciamos a definição do objeto. Na se-gunda parte, discorrei sobre o processo da aná-lise propriamente dito.

Fazer ciência é trabalhar simultaneamentecom teoria, método e técnicas, numa perspectivaem que esse tripé se condicione mutuamente: omodo de fazer depende do que o objeto deman-da, e a resposta ao objeto depende das pergun-tas, dos instrumentos e das estratégias utilizadasna coleta dos dados. À trilogia acrescento sem-pre que a qualidade de uma análise depende tam-bém da arte, da experiência e da capacidade deaprofundamento do investigador que dá o tom eo tempero do trabalho que elabora.

Tento apontar algumas questões cruciais queoferecem as balizas da objetivação2,3 e do caráterincompleto, provisório4-6 e aproximativo do co-nhecimento7.

Discussão

As premissas para a discussão da análise qualita-tiva estão apresentadas em forma de decálogo, nabusca de facilitar a compreensão para os que bus-cam se familiarizar com a abordagem qualitativa.

Primeiro: Conhecer os termos estruturantesdas pesquisas qualitativas. Sua matéria prima écomposta por um conjunto de substantivos cujossentidos se complementam: experiência, vivência,senso comum e ação. E o movimento que informaqualquer abordagem ou análise se baseia em trêsverbos: compreender, interpretar e dialetizar8.

O termo experiência utilizado historicamentepor Heidegger9, diz respeito ao que o ser humanoapreende no lugar que ocupa no mundo e nasações que realiza. O sentido da experiência é acompreensão: o ser humano compreende a simesmo e ao seu significado no mundo da vida9.Por ser constitutiva da existência humana, a expe-riência alimenta a reflexão e se expressa na lingua-gem. Mas, a linguagem não traz a experiência pura,pois vem organizada pelo sujeito por meio da re-flexão e da interpretação num movimento em queo narrado e o vivido por si estão entranhados nae pela cultura, precedendo à narrativa e ao narra-dor10. Já a vivência é produto da reflexão pessoalsobre a experiência. Embora a experiência possaser a mesma para vários indivíduos (irmãosnuma mesma família, pessoas que presenciam umfato, por exemplo) a vivência de cada um sobre omesmo episódio é única e depende de sua perso-nalidade, de sua biografia e de sua participaçãona história. Embora pessoal, toda vivência temcomo suporte os ingredientes do coletivo em queo sujeito vive e as condições em que ela ocorre. Osenso comum pode ser definido como um corpode conhecimentos provenientes das experiências edas vivências que orientam o ser humano nasvárias ações e situações de sua vida6,9-11. Ele seconstitui de opiniões, valores, crenças e modos depensar, sentir, relacionar e agir. O senso comumse expressa na linguagem, nas atitudes e nas con-dutas e é a base do entendimento humano. Dadoo seu caráter de expressão das experiências e vi-vências, o senso comum é o chão dos estudosqualitativos. A ação (humana e social) pode serdefinida como o exercício dos indivíduos, dos gru-pos e das instituições para construir suas vidas eos artefatos culturais, a partir das condições queeles encontram na realidade. O conceito de açãoestá vinculado à noção de liberdade para agir etransformar o mundo que, para Heidegger4, nãoconstitui um lugar e sim um complexo formadopela significação das experiências que fazem doser humano um ser histórico.

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O verbo principal da análise qualitativa é com-preender. Compreender é exercer a capacidade decolocar-se no lugar do outro, tendo em vista que,como seres humanos, temos condições de exerci-tar esse entendimento6. Para compreender, é pre-ciso levar em conta a singularidade do indivíduo,porque sua subjetividade é uma manifestação doviver total. Mas também é preciso saber que aexperiência e a vivência de uma pessoa ocorremno âmbito da história coletiva e são contextuali-zadas e envolvidas pela cultura do grupo em queela se insere. Toda compreensão é parcial e inaca-bada, tanto a do nosso entrevistado, que tem umentendimento contingente e incompleto de sua vidae de seu mundo, como a dos pesquisadores, poistambém somos limitados no que compreende-mos e interpretamos. Ao buscar compreender épreciso exercitar também o entendimento dascontradições: o ser que compreende, compreendena ação e na linguagem e ambas têm como carac-terísticas serem conflituosas e contraditórias pe-los efeitos do poder, das relações sociais de pro-dução, das desigualdades sociais e dos interes-ses12. Interpretar é um ato contínuo que sucede àcompreensão e também está presente nela: todacompreensão guarda em si uma possibilidade deinterpretação, isto é, de apropriação do que secompreende. A interpretação se funda existenci-almente na compreensão e não vice-versa, poisinterpretar é elaborar as possibilidades projeta-das pelo que é compreendido6,9.

Segundo – Definir o objeto sob a forma deuma pergunta ou de uma sentença problematiza-dora e teorizá-lo. A indagação inicial norteia oinvestigador durante todo o percurso de seu tra-balho. Sua reflexão analítica, neste momento, ori-enta-se para o delineamento adequado do objetono tempo e no espaço: que não deve ser tão am-plo que permita apenas uma visão superficial enem tão restrito que dificulte a compreensão desuas interconexões. A definição de um objeto nãoreside na indagação em si, mas no seu esclareci-mento e contextualização por meio da teorizaçãoque o torna um fato científico construído. É ób-vio que a clareza sobre o objeto – que nunca serátotal e definitiva - só se alcança ao final de umapesquisa. Qualquer investigação nada mais é doque a busca de responder à indagação inicial.Como nos lembra Pascal13, a conclusão de umaobra já deve estar latente em sua formulação, poistodas as coisas são causadas e causadoras.

Para tornar o objeto um construto científicoé preciso investir no conhecimento nacional e in-ternacional acumulado, dialogando com ele ouem torno dele, caso não haja estudos sobre omesmo assunto, como ocorre nas investigações

exploratórias. Feita a análise das fontes de pes-quisa, o investigador deve escolher o marco teó-rico que vai adotar, detalhando os conceitos, ascategorias e as noções que fazem sentido parasua pesquisa. Este é o momento também de co-locar de forma mais fundamentada as hipótesesou os pressupostos que já existiam como intui-ção nas indagações iniciais.

Terceiro – Delinear as estratégias de campo. Épreciso ter em mente que os instrumentos ope-racionais também contêm bases teóricas: sãoconstituídos de sentenças (no caso dos roteiros)ou orientações (no caso da observação de cam-po) que devem guardar estreita relação com omarco teórico, sendo cada um desses elementosum tipo de conceito operativo pensado na teori-zação inicial.

Quarto – Dirigir-se informalmente ao cená-rio de pesquisa, buscando observar os processosque nele ocorrem. É preciso ir a campo sem pre-tensões formais e ampliar o grau de segurançaem relação à abordagem do objeto, inclusive, sepossível, realizar algumas entrevistas abertas,promover o redesenho de hipóteses, pressupos-tos e instrumentos, buscando uma sintonia finaentre o quadro teórico e os primeiros influxos darealidade. O olhar analítico deve acompanhartodo o percurso de aproximação do campo.

Quinto – Ir a campo munido de teoria e hipó-teses, mas aberto para questioná-las. É precisoimergir na realidade empírica na busca de infor-mações previstas ou não previstas no roteiro ini-cial. Conforme ensina Malinowski14 em seu clás-sico trabalho sobre os princípios da abordagemantropológica: é fundamental ter todo o materialteórico elaborado, todos os instrumentos opera-cionais prontos e à disposição, como se o êxito dainvestigação dependesse somente deles. Mas étambém crucial estar tão atento e tão aberto àsnovidades do campo que, caso seja preciso, o in-vestigador abra mão de suas certezas a favor dosinfluxos da realidade. Lembra Lévy-Strauss15:

“O trabalho de campo é mãe e nutriz de todadúvida (...) antropológica que consiste em se sa-ber que nada se sabe, mas, também em expor oque se pensava saber, às pessoas que [no campo]podem contradizer [nossas verdades mais caras]”.

Num trabalho de campo profícuo, o pesqui-sador vai construindo um relato composto pordepoimentos pessoais e visões subjetivas dos in-terlocutores, em que as falas de uns se acrescen-tam às dos outros e se compõem com ou se con-trapõem às observações. É muito gratificantequando ele consegue tecer uma história ou umanarrativa coletiva, da qual ressaltam vivências eexperiências com suas riquezas e contradições. Já

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nesse momento, o pesquisador pode articular asinformações que recebe como num quebra-ca-beças, e para enriquecê-las, buscar novos inter-locutores e fazer novas observações. É precisoressaltar que um relato coletivo não significa umconto homogêneo e, sim, uma história em queos diversos interesses e as várias visões tenhamlugar e possibilidade de expressão. Bertaux16 con-sidera que um bom trabalho de campo é ao mes-mo tempo a “construção de uma representaçãodo objeto socioantropológico”. Em resumo, otrabalho de campo não é um exercício de con-templação. Tanto na observação como na inter-locução com os atores o investigador é um atorativo, que indaga, que interpreta, e que desenvol-ve um olhar crítico.

Sexto – Ordenar e organizar o material se-cundário e o material empírico e impregnar-sedas informações e observações de campo. É pre-ciso investir na compreensão do material trazidodo campo, dando-lhe valor, ênfase, espaço e tem-po. Tendo em vista que a análise do material qua-litativo se apóia nos verbos e substantivos cita-dos no primeiro ponto do decálogo, qualquertentativa de realizá-la apenas tecnicamente em-pobrece os resultados.

A ordenação constitui um trabalho organizati-vo: (1) dos textos teóricos e referências que baliza-ram o projeto e agora precisam ser complemen-tadas; (2) do material de observação, que geral-mente está contido no diário de campo, fonte le-gítima de informação para compor a análise; (3)dos documentos geográficos, históricos, estatís-ticos e institucionais que porventura existam, queforam pesquisados e que devem ajudar na con-textualização do objeto; (4) das entrevistas, resul-tados de grupos focais e de outras fontes primá-rias (que devem ter sido desgravadas caso a inter-locução tenha sido mediadas por gravações). Oselementos citados nos itens 1,2,3 são contextuais.Os do item 4 dizem respeito ao conteúdo das fa-las e das observações que a partir de então devemter prioridade numa leitura atenta, reiterativa echeia de perguntas. A esse movimento costumochamar de “impregnação” ou “saturação”.

Sétimo – Construir a tipificação do materialrecolhido no campo e fazer a transição entre aempiria e a elaboração teórica. O processo de ti-pificação é mais denso e intenso que o exercício deordenação, mas tem a mesma finalidade: apro-priação da riqueza de informações do campo, ten-tando, na medida do possível, não “contaminá-lo” por meio de uma interpretação precipitada. Épreciso esclarecer que não existe uma mente vaziade dados anteriores ou uma cabeça isenta de teo-rias e ideologia. O esforço compreensivo tem o

sentido de valorizar ao máximo os achados docampo. Para isso é importante: (1) organizar osrelatos e os dados de observação em determinadaordem. Por exemplo, caso a pesquisa empíricatenha sido feita com grupos diferenciados por clas-se social, por idade, por sexo, por religião, porépocas históricas diferentes (todas essas divisõessão aqui hipotéticas), vários subconjuntos devemser criados, visando a uma leitura das homoge-neidades e das diferenciações para que seja possí-vel fazer comparações entre os vários subconjun-tos. (2) As leituras horizontais de impregnaçãodão lugar a uma elaboração transversal do con-junto ou de cada subconjunto do material empí-rico, com uma intenção específica: recortar cadaitem do texto, conforme foram apresentados pe-los entrevistados10. Todo esse esforço de recorte ecolagem pode ser organizado tecnicamente emsubconjuntos ou gavetas, separados por assun-tos, constituindo já a primeira forma de classifi-cação do material; (3) em seguida, o pesquisadordá um passo a mais na compreensão das estrutu-ras de relevância apresentadas pelos entrevista-dos. O material contido nas muitas gavetas devepassar por uma nova leitura e organização paraque seja rearrumado em quatro ou cinco tópicosque os entrevistados destacaram, sobretudo, pormeio da reiteração. O esforço de síntese diminui onúmero de subconjuntos, mas não despreza a ri-queza de informações. Apenas a reclassifica, enfa-tizando quais são as estruturas de relevância apon-tadas no estudo de campo. Dentro de cada tópi-co, as questões devem ser tratadas em sua homo-geneidade e em suas diferenciações internas. Omovimento classificatório que privilegia o senti-do do material de campo não deve buscar neleuma verdade essencialista, mas o significado queos entrevistados expressam.

A esse momento fundamental em que poucoa pouco o pesquisador chega ao sentido das fa-las e de sua contextualização empírica denominológica interna dos atores, do grupo, ou do seg-mento. No momento em que compreender o sen-tido do que lhe foi relatado e do que observou nocampo, o pesquisador não necessita mais estarcolado às falas: seu aprisionamento a elas é umadas maiores fraquezas de quem faz análise qua-litativa, pois significa que o investigador não foicapaz de ultrapassar o nível descritivo do seumaterial empírico. Como nos lembra Canguil-lem17: A verdade só ganha sentido ao fim de umapolêmica. Assim não poderia haver verdade pri-meira. Só há erros primeiros. A evidência pri-meira nunca é uma verdade fundamental.

Oitavo – Exercitar a interpretação de segun-da ordem. A compreensão propiciada pela leitu-

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ra atenta, aprofundada e impregnante que deuorigem às categorias empíricas ou unidades desentido, nesse momento, deve merecer um novoprocesso de teorização. Pode ocorrer que as refe-rências teóricas que constituíram balizas funda-mentais para o início da investigação não sejamsuficientes para contemplar a interpretação dosachados de campo. Em forma de tópicos, no casode um artigo, ou de capítulos (no caso de elabo-ração de um livro) cada uma das unidades desentido deve então merecer uma leitura de refe-rências nacionais e internacionais, de forma acolocar o material classificado, no contexto dasquestões nacionais e internacionais que ele susci-ta. E igualmente, é importante enriquecer todo oconjunto de falas e observações, com elementoshistóricos e contextuais: para que de sua “aldeia”o pesquisador converse com o mundo e sobre omundo, de forma compreensiva e crítica.

A interpretação nunca será a última palavrasobre o objeto estudado, pois o sentido de umamensagem ou de uma realidade está sempre aber-to em várias direções. No entanto, quando bemconduzida, ela deve ser fiel ao campo de tal ma-neira que caso os entrevistados estivessem pre-sentes, compartilhariam os resultados da análi-se. Gadamer6 acrescenta, recuperando o pensa-mento de vários autores como Dilthey18 e Schlei-ermarcher19, que a interpretação deve ir além dosentrevistados e surpreendê-los, pois quando elesderam seus depoimentos, não tinham consciên-cia de tudo o que seria possível compreender, apartir de suas falas, sobre seu tempo, seus con-temporâneos e sobre a sociedade em que vivem.

Nono – produzir um texto ao mesmo tempofiel aos achados do campo, contextualizado e ac-cessível. A conclusão de uma análise qualitativadeve apresentar um texto capaz de transmitir in-formações concisas, coerentes e, o mais possível,fidedignas. Pois, o relato final da pesquisa confi-gura uma síntese na qual o objeto de estudo re-veste, impregna e entranha todo o texto. O con-texto, as determinações mais próximas e as maisabstratas, nessa etapa do “concreto pensado”20,devem emanar do objeto e não ao contrário. Por-tanto, consideramos um trabalho incompleto oupobre o que apenas descreve o que encontrou nocampo. Mas a compreensão e a interpretação emseu formato final, também assinalam um mo-mento na práxis do pesquisador. Por isso, nuncaserá uma obra acabada e suas conclusões devemse abrir para novas indagações. Na sua exposi-ção, é importante que o autor inclua suas condi-ções e suas dificuldades de interpretação, poiselas fazem parte da objetivação da realidade e desua própria objetivação21.

Décimo – Assegurar os critérios de fidedigni-dade e de validade. Popper22 nos lembra que aobjetividade é uma questão social dos cientistas,envolvendo a crítica recíproca, e “a divisão hos-til-amistosa de seu trabalho, sua cooperação outambém sua competição”. Mas os critérios deverificação devem ser assegurados, assim comoum certo apego do cientista a sua proposta e aseus métodos, diz Popper, pois “se nos sujeitar-mos à crítica com demasiada facilidade, nuncadescobriremos onde está a verdadeira força denossas teorias”22. No sentido de salvaguardar afidedignidade, sugerimos alguns passos: (1) Oprimeiro de todos é aquele que guia universal-mente toda pesquisa científica: teoria, método etécnicas adequados, descritos e avaliáveis porqualquer outro investigador. (2) Por exigir pre-sença, envolvimento pessoal e interação do pes-quisador em todo o processo, uma boa análisequalitativa deve explicitar suas ações no campo,assim como seus interesses e dificuldades na cons-trução do objeto. Existem ainda alguns cuidadospossíveis de serem realizados durante o processode realização da investigação que lhe assegurammaior grau de validade: (3) a triangulação inter-na à própria abordagem23, que consiste em olharo objeto sob seus diversos ângulos, comparar osresultados de duas ou mais técnicas de coleta dedados e de duas ou mais fontes de informação,por exemplo. (4) A validação dos relatos, com-parando as falas com as observações de campo.(5) O alerta para os relatos e os fatos que contra-digam as propostas e as hipóteses do investiga-dor, tratando de problematizá-los e de apresen-tá-los, em lugar de ocultá-los. E (5) a fidedigni-dade aos vários pontos de vista, garantindo adiversidade de sentidos expressos pelos interlo-cutores, fugindo à idéia de verdade única.

Conclusões

Antes de terminar essas reflexões, gostaria de lem-brar que muitos artefatos tecnológicos têm sidocriados para a produção de análises qualitativas.Há pesquisadores que os utilizam e certamenteencontram nele um importante apoio, como odemonstra a obra de Pope e Mays24.

Talvez por hábito de estar presente de formaanalítica e crítica em cada uma das etapas da in-vestigação, sinto muita dificuldade em terceirizar,para tais dispositivos, a tarefa analítica, uma vezque ela privilegia uma etapa apenas e não leva emconta o contexto intersubjetivo indissociável e fi-losoficamente fundamental para a pesquisa qua-litativa e, portanto, para o processo de análise.

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Por isso, neste texto, toda a reflexão supõe apresença e o acompanhamento do pesquisadorem cada passo do trabalho, num movimento aomesmo tempo somativo e de superação da faseanterior. A implicação do investigador no traba-lho se constitui numa perspectiva circular: “ele sóconhece a realidade na medida em que a cria”25.Partindo dessa compreensão, considero que nemum bom técnico-analista de conteúdo pode ga-rantir a qualidade de um texto final quando nãose dá conta das condições de sua produção.

O reconhecimento de que existe uma polari-dade complementar entre sujeito e objeto no pro-cesso qualitativo de construção científica leva, porsua vez, à necessidade de um esforço metodológi-co que garanta a objetivação, ou seja, a produçãode uma análise o mais possível sistemática e apro-fundada e que minimize as incursões do subjeti-vismo, do achismo e do espontaneísmo. Nesse sen-tido, sem contradizer o que falei no parágrafo an-terior, é preciso valorizar as técnicas: para revisãosistemática ou narrativa da indagação inicial, tor-

nando-a um objeto pensado; para elaboração dehipóteses coerentes com a pergunta e que possamguiar o trabalho; para construção dos instrumen-tos que devem traduzir os conceitos em itens ob-serváveis ou em guias para conversas no campo;para elaboração de uma narrativa sobre o objetoque ao mesmo tempo leve em conta a preparaçãorealizada cuidadosamente e a supere, trazendonovas descobertas e relevâncias; para organizar,categorizar, contextualizar e construir o relato fi-nal, fruto sempre de uma análise provisória.

O percurso analítico e sistemático, portanto,tem o sentido de tornar possível a objetivação deum tipo de conhecimento que tem como matériaprima opiniões, crenças, valores, representações,relações e ações humanas e sociais sob a perspec-tiva dos atores em intersubjetividade. Desta for-ma, a análise qualitativa de um objeto de investi-gação concretiza a possibilidade de construçãode conhecimento e possui todos os requisitos einstrumentos para ser considerada e valorizadacomo um construto científico.

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Apresentado em 01/09/2011

Aprovado em 12/10/2011

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