Download - Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira
Departamento de Ciências Humanas e Integração Social
Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre
Reformulação Curricular e Ensino de Geografia
Organização:
Cesar Alvarez Campos de Oliveira
Miguel Tavares Mathias
Rejane Cristina de Araújo Rodrigues
Ronaldo Goulart Duarte
Rio de Janeiro
Departamento de Ciências Humanas e Integração Social / CAp-UERJ
NAPE/DEPEXT/SR3
UERJ
2002
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Sumário
Apresentação ................................................................................................... 04
A contribuição social do ensino de Geografia .................................................. 08
Antonio Carlos Robert Moraes
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia: o ecletismo a serviço da
alienação humana ............................................................................................ 27
Marcos Antônio Campos Couto
O livro didático e a construção do conhecimento no ensino de Geografia nas
séries iniciais do Ensino Fundamental ............................................................. 52
Irene de Barcelos Alves
A importância do ensino da Geografia no Ensino Fundamental e Médio ........ 56
Marília Gomes de Oliveira Bacellar
O exame vestibular e suas relações com o ensino de Geografia .................... 61
Ana Regina Vasconcelos Ribeiro Bastos
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Apresentação
A educação no Brasil passa por um grande movimento de reestruturação. Há
inúmeras demandas de ordem política, econômica e social, que impelem ações
de reflexão e reestruturação, nem sempre com objetivos e valores
convergentes. Todavia, este processo afeta a escola, desde sua estrutura
organizacional e administrativa, até as propostas curriculares e práticas
pedagógicas das diferentes disciplinas, incluindo, também, os preceitos da
transdisciplinaridade. Frente a esse quadro, torna-se imperativo uma tomada
de posição, definindo que escola, que ensino e que sociedade queremos.
Diferentes governos vêem-se pressionados no sentido de oferecer educação
formal a parcelas cada vez mais amplas da sociedade. Há desde interesses
pragmáticos de renovação e qualificação de mão-de-obra, às reivindicações
por cidadania ou por ressocialização de jovens marginalizados. Generaliza-se o
conceito de inclusão que, para além da inserção dos indivíduos portadores de
necessidades educativas especiais, propõe uma estrutura educacional
abrangente, onde todas as diferenças - sociais, étnicas, culturais - se somem
na construção de espaços coletivos mais democráticos, pluralistas e solidários.
Em contraponto, o cotidiano escolar e sua realidade nos desafiam:
desinteresse, evasão escolar, relações de ensino-aprendizagem tradicionais
que não encontram nos alunos e suas famílias os elementos de apoio que no
passado os tornavam satisfatórios, pelo menos para certos grupos sociais.
Entre esses elementos, assumem fundamental importância o valor dado à
educação e aos próprios professores.
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A agravar o quadro, a sociedade atual cada vez mais se estrutura com base na
massificação do consumo e dos valores do capital – individualismo,
competitividade, acumulação (de bens e poder). Soma-se a aceleração dos
processos produtivos, substituindo trabalhadores, valores e padrões culturais,
numa escala em que o tecido social não dispõe mais de tempo para assimilar e
questionar. Cria-se uma constante tensão junto aos jovens: para que serve a
escola? E também para os professores: o que, por que e como ensinar?
Perguntamo-nos então: é possível construir uma escola capaz de enfrentar tais
desafios? O que nos parece premente, é a necessidade de construir uma
escola que, tanto em termos filosóficos, quanto acadêmicos e metodológicos,
apresente uma proposta alternativa aos padrões tradicionais de ensino –
reprodução, acúmulo de dados/informações – e às demandas imediatistas e
pragmáticas do sistema econômico vigente. Todavia, como construí-la?
Para a maioria dos professores esse movimento de mudança ainda é um salto
no escuro. Frente a este pressuposto e às nossas próprias demandas por
repensarmos nossos valores e práticas, é que nasceu a proposta de um Ciclo
de Palestras focado no ensino e na estrutura curricular da Geografia.
Deseja-se a mudança, precisa-se da mudança, mas, enquanto professores,
sabemos que isso se dará de forma contínua, dialética, processual. Todavia,
urge criar espaços de reflexão e troca, já que essa transformação só será
efetiva quando se tornar coletiva.
Um Colégio de Aplicação, por sua vez, tem funções específicas, caras frente à
situação apresentada. Por um lado, é lócus de formação de mão-de-obra. O
modelo de formação e atuação que é apresentado aos futuros professores,
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será fator condicionante para a construção de valores e práticas que os
mesmos desenvolverão no mercado de trabalho. Isso implica repensar a
concepção que temos acerca da formação de professores e que campo de
estágio devemos oferecer.
Por outro lado, põe em evidência nossas próprias práticas e o tipo de formação
que oferecemos ao aluno do ensino fundamental e médio. Deve-se considerar,
ainda, que o papel do Colégio transcende o atendimento aos alunos do ensino
regular e a formação de professores. Como espaço de pesquisa e extensão,
deve gerar e socializar conhecimento.
O Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino
de Geografia foi estruturado, dentro destes princípios, para aglutinar diferentes
profissionais e instituições, de forma a apresentarem suas reflexões acerca
dessas questões e as experiências e/ou propostas que apontam ou podem
nortear a construção de uma nova postura do professor no ensino, em
particular o de Geografia. Para tanto, além dos professores que desenvolveram
palestras sobre os temas centrais elencados pela equipe organizadora, foram
convidados professores de alguns dos principais colégios da cidade do Rio de
Janeiro, para exporem seus encaminhamentos frente a essas questões,
principalmente quanto à estrutura curricular adotada.
Considerando que o principal fato político que medeia esse processo foi o
lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), optamos por
centrar as discussões nas propostas de implantação/assimilação dos mesmos,
discutindo suas motivações políticas, dificuldades de execução, vantagens e
desvantagens, espaços de ação e de resistência.
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Esta coletânea apresenta os textos referentes às palestras proferidas na
abertura de cada encontro. O evento ocorreu no período de 18 de setembro a
16 de novembro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, promovido
pelos professores de Geografia do Departamento de Ciências Humanas e
Integração Social – DCHIS – do Colégio de Aplicação desta Universidade.
Desejamos, em breve, dar continuidade a este trabalho, promovendo novos
encontros e publicações, esperando contribuir para a construção de uma nova
perspectiva no ensino de Geografia no Brasil.
A todos os participantes do evento, nosso sincero agradecimento.
Comissão Organizadora
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A contribuição social do ensino de Geografia
Antonio Carlos Robert Moraes1
Mesmo não trabalhando diretamente com o ensino de Geografia, mantenho
contatos com as discussões desta área, devido às demandas do meu campo
de atuação na Universidade de São Paulo: o ensino de metodologia da ciência.
Eu já tive uma experiência, mais ou menos antiga, de docência no ensino
fundamental e médio e sou convidado, com alguma freqüência, para opinar
sobre currículos e livros didáticos. Recentemente, realizei a avaliação dos
currículos de Ensino fundamental para a Fundação Carlos Chagas, que serviria
de subsídio para os Parâmetros Curriculares Nacionais, mas, não sei porque
razão, o MEC “colocou a carroça na frente dos burros” e lançaram os
Parâmetros Curriculares antes de publicarmos a avaliação dos currículos. Mas,
foi um trabalho muito interessante, cobrindo o país como um todo, vendo,
inclusive, a grande diversidade que há de estado para estado, em termos de
conteúdo mínimo que é abordado pela Geografia. Será a partir dessa
experiência que vou trazer algumas idéias e contribuições para o debate.
Como as boas sessões são aquelas que geram polêmicas, vou começar a
minha exposição com uma posição que defendo, já há alguns anos, que é, não
somente, bastante polêmica nos fóruns da Geografia, como também
minoritária. E eu gostaria de trazer isto, porque acho que é um ponto que vale a
pena ser discutido e noto muitos setores da Geografia refratários, sequer
dispostos a fazer esta discussão.
1 Professor da Universidade de São Paulo.
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Há muitos anos eu venho defendendo uma posição singular, que é a de uma
maior diferenciação entre a formação do geógrafo e a formação do professor
de Geografia. Eu acredito que na atual formação unificada, como no caso da
USP, o diploma de Bacharel praticamente não se diferencia do diploma do
Licenciado. O Licenciado faz apenas três ou quatro disciplinas a mais na
Faculdade de Educação. Eu acho que essa foi uma ação excessivamente
unificada (e estou tomando a USP como parâmetro) que, na verdade, traz
malefícios à formação dos dois profissionais.
Quando um determinado curso é voltado diretamente para um só desses
profissionais, ou para o geógrafo ou para o professor de Geografia, o formando
sai sem uma das duas habilitações. Já é um primeiro problema.
Agora, problema maior é quando os cursos tentam cobrir as duas
necessidades de formação. Na verdade, acaba-se tendo uma carga, às vezes,
muito aprofundada de conteúdo em certos assuntos, ou de pouco conteúdo em
outros. Vou explicar melhor: a formação, seja a do professor de Geografia, seja
a do geógrafo, é muito pesada. São vários os campos de estudo, são várias as
discussões que participamos, todas extremamente diferenciadas, indo desde
diálogos com as Ciências Naturais até diálogos com as Ciências Sociais,
passando pelo necessário diálogo com a área de Educação, no caso de quem
será professor.
Nesse sentido, com a tentativa de cobrir as duas coisas, acaba-se utilizando
um tempo que seria melhor aproveitado, no meu modo de entender, num
aprofundamento de cada uma das formações específicas. Por exemplo, no
caso da USP, uma pessoa que vai ser professor acaba tendo conteúdo, talvez
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aprofundado demais, em sensoreamento remoto, em cartografia digital e, por
outro lado, não temos uma disciplina no nosso currículo que aborde um tema
fundamental para o professor e que poderíamos chamar de “didática
cartográfica”. Isto é, aprender a utilizar um mapa como recurso educacional em
uma sala de aula. Então o indivíduo vai aprender técnicas extremamente
sofisticadas de cartografia digital e não sabe fazer o uso elementar de uma
carta como recurso em sala de aula. Isso seria válido também para vários
campos da Geografia Física que formam o indivíduo para ser um pesquisador
altamente especializado como a Pedologia, a Climatologia etc., oferecendo
conteúdos que dificilmente o professor utilizará em sala de aula e, por outro
lado, deixando lacunas incrivelmente grandes e fundamentais na formação
didático-pedagógica desse profissional.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados. Muitas vezes a indefinição
propicia isso. Há professores que dão aula pensando que estão formando
professores e há professores que dão aula achando que estão formando
pesquisadores altamente especializados.
E essa carga, que já é pesada nos dois casos, acaba gerando uma situação
maléfica para a Geografia. Na verdade, na minha opinião, a recusa clara em
discutir esse ponto nos fóruns de Geografia está associada a um conjunto de
preconceitos e, porque não dizer, um certo conservadorismo e uma certa
inércia das Instituições. Para não se promover essa discussão, se apresenta,
como argumentação (que do ponto de vista abstrato é até simpática e
charmosa), a velha idéia da unidade entre ensino e pesquisa, ou seja, a idéia
de que ambos são indissociáveis. Isso é verdade, mas não anula a diversidade
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do campo onde se exerce o ensino e a pesquisa. Nós poderíamos falar,
tranqüilamente, de uma unidade entre ensino e pesquisa, na pesquisa
acadêmica da Geografia, e numa unidade entre ensino e pesquisa, no ensino
da Geografia.
Desse modo, tal argumento perderia totalmente a eficácia. Por exemplo, a área
de ensino necessita ter um diálogo profundo, constante, com as próprias
ciências da Educação e realizar pesquisas que apontem nesse sentido. Seja o
professor de Geografia, seja o geógrafo profissional, ele tem um campo de
interlocução bastante amplo. Na verdade ninguém consegue fazer, por
exemplo, Geografia Econômica sem ter um diálogo razoável da Geografia com
a Economia. Ninguém consegue fazer Geografia Política sem estabelecer um
diálogo profundo com a Ciência Política. Ninguém consegue gerar uma boa
Climatologia sem entrar no campo da Física e da Mecânica dos Fluídos. A
mesma coisa é válida para o ensino. Uma reflexão profunda sobre o ensino de
Geografia não pode, de modo algum, abrir mão de um diálogo constante com a
Psicologia da Educação, com a Filosofia da Educação e todo um campo de
diálogo necessário e extremamente grande, o que torna essa formação
unificada ainda mais problemática.
Em nome da unidade entre o ensino e a pesquisa, na minha avaliação, na
maioria das Instituições, a área de ensino acabou ficando como uma espécie
de apêndice do curso de Geografia. Isso é real, é uma constatação. Isso fica
muito claro em algumas atitudes que são comuns no campo da atuação da
Geografia. A primeira delas e que felizmente começa a mudar, mas que até
cinco ou dez anos atrás era preponderante, podia ser visualizada muito bem na
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pós-graduação. Era o caso daquele professor de Geografia, que vivia como
professor de Geografia, que era um profissional de ensino da Geografia e que,
ao ir fazer a pós-graduação, adotava temas de grande especialização em
alguma área de pesquisa da Ciência, temas profundamente estranhos ao seu
cotidiano de trabalho docente. Isso era um quadro muito generalizado que,
volto a dizer, por felicidade, está mudando e hoje há um volume muito maior de
pesquisas de pós-graduação específicas a respeito do ensino de Geografia.
Na verdade, por trás disso, ficava clara a desvalorização que o próprio
profissional fazia do seu trabalho. Ele almejava fazer a “Grande Geografia”,
como se esta fosse apenas a Geografia de pesquisa não ligada ao ensino e
que trazia por contraste uma certa desvalorização do ensino de Geografia. Era
como se o ensino da Geografia fosse uma espécie de “bico”, e o indivíduo
ficava trabalhando até que encontrasse uma coisa melhor e a pós-graduação
era vista como um caminho para sair da área de ensino.
Acho que esse tipo de raciocínio estava presente na cabeça de muita gente e a
não discussão das especificidades entre o ensino e a pesquisa acadêmica, no
campo da Geografia, apenas escondia, ou então perpetuava, esse tipo de
visão. Isso trouxe uma série de malefícios, principalmente para o ensino.
O primeiro deles correspondia a uma postura, entendida por alguns como de
vanguarda na área de ensino, de tomar as discussões de ponta da Teoria
Geográfica e tentar repassar essas discussões para o ensino básico. Isso
aconteceu muito no Brasil. Seria algo como se nós começássemos o ensino de
Física e discutíssemos Mecânica Quântica e a Teoria dos Fractais. Quer dizer,
você foca a discussão mais avançada na área e tenta “jogá-la” como conteúdo
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mínimo para a Educação Básica. Isso acarretou, entre outras coisas, algo que
ainda se faz presente, que é uma ausência de “pedagogização” das teorias
mais complexas da Geografia contemporânea. Não é raro encontrarmos em
currículos ou em livros didáticos a tentativa de tirar a última teoria de Harvey ou
do Milton Santos e aplicar isso em classes do ensino fundamental, o que é um
despropósito total.
Falta “traduzir” essas teorias, que são muito importantes, para que elas
venham a iluminar o que seria um conteúdo básico de Geografia. Não dá para
fazer uma transposição direta de uma discussão de ponta, de vanguarda sem
nenhum tipo de “pedagogização” para o campo do ensino. Enfim, eu não aceito
essa idéia da Educação como “bico” ou como uma área marginal do universo
da Geografia. Essa coisa que você é professor até “melhorar de vida”. Isto é de
uma perversidade social muito grande, pois o ensino, ao meu ver, é a tarefa
socialmente mais importante da Geografia. Sem abrir mão dos outros campos,
no que toca à incidência social, no que toca ao impacto social da Geografia,
sem dúvida nenhuma, a área de ensino é prioritária.
O professor de Geografia, nesse modo de entender, é mais importante do que
o geógrafo. Não quero dizer que um prescinda do outro, mas, do ponto de vista
social, o professor de Geografia é a figura essencial para a Geografia fornecer
algo para o avanço social, para as discussões sociais.
O geógrafo incide diretamente na formação social do cidadão. O professor de
Geografia está participando com um conteúdo e com uma temática essencial
na formação da cidadania. A visão de mundo do estudante-cidadão, a visão do
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país, a visão da realidade local em que ele vive, tudo isso está profundamente
permeado pelo conteúdo da Geografia escolar.
A auto localização do indivíduo no mundo é essencial na formação da sua
consciência social. O indivíduo precisa se localizar no mundo em variadas
escalas, para o entender e se entender nele. Então, na verdade, o conteúdo da
Geografia ilumina uma série de campos que dizem respeito à construção de
valores morais e à própria sociabilidade do indivíduo. Por isso, o professor de
Geografia atua num terreno extremamente delicado, de alta responsabilidade
social. Realmente, é uma tarefa extremamente importante, extremamente
delicada e de uma responsabilidade social imensa, a respeito da qual nós
temos que estar a todo o momento atentos.
O professor de Geografia tem a necessidade de desenvolver o raciocínio crítico
do aluno, porém, ao mesmo tempo, de fornecer-lhe um conjunto de
informações fundamentais para ele entender o mundo. Ele não pode, de modo
algum, passar uma visão fechada e sectária da vida social, isto é, uma
explicação pronta e acabada da realidade, o que iria significativamente contra o
desenvolvimento do raciocínio crítico. Ele tem necessidade de estimular a
reflexão política do aluno, porém, sem engessar essa reflexão política em
modelos ideológicos acabados e inquestionáveis. É difícil, mas são exatamente
esses os desafios que se colocam. Desenvolver o raciocínio crítico, sem passar
uma visão fechada de mundo; estimular a reflexão política, contudo, sem
engessá-la em modelos inquestionáveis; valorizar o multiculturalismo, o direito
às diferenças, ao mesmo tempo em que alerta para as desigualdades
existentes na sociedade.
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São sempre questões tênues e delicadas e não se trata de tarefa fácil combinar
essas coisas. Nesse quadro, parece-me que o simplismo teórico e explicativo
destaca-se como primeiro componente a ser evitado. Ter a consciência de que
nós vivemos num mundo extremamente complexo, numa sociedade
extremamente complexa. Estamos inseridos, hoje, em processos e relações de
uma complexidade que nenhum raciocínio maniqueísta, simplista – do bem e
do mal, do certo e do errado – conseguirá equacionar.
Nós vivemos numa sociabilidade muito mais multifacetada que aquela vigente
no mundo do século XIX. Logo, teorias do século XIX não podem explicar o
mundo de hoje. Há processos novos, há atores sociais novos, há dinâmicas
novas. Nenhuma teoria do século XIX, gestada em uma época que não
vivenciou esses processos, teria condição de dar conta desse mundo.
Poderíamos dizer, fazendo uso do raciocínio de um enunciado bastante
dialético, que o Capitalismo que nós vivemos hoje, ainda é o mesmo daquele
do século XIX mas, ao mesmo tempo, é outro. Formulação que seria
impossível de fazer à luz da lógica formal, que consideraria isso um contra-
senso: ou é o mesmo ou é diferente. Não. É o mesmo, mas é outro. Eu não vou
me alongar nisso, mas poderia listar vários elementos para mostrar que o
Capitalismo, que vivemos hoje, é o mesmo do século XIX, mas é diferente
daquele do século XIX.
Para pegar um único ponto que é central: nós vivemos num Capitalismo que
hoje prescinde muito do trabalho vivo. Então, hoje em dia, o capital se realiza
de forma diferente. Se o Capitalismo do século XIX teve na exploração do
trabalho seu elemento chave de geração de lucro, hoje ele prescinde cada vez
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mais de trabalho vivo. Tomando, por exemplo, o desemprego, que não é algo
mais funcional ao capital para abaixar salário, mantendo um exército industrial
de reserva, como era no século XIX, mas considerado como um dado
estrutural, gerador de problemas sociais em qualquer sociedade capitalista
hoje, mesmo no centro do sistema.
Então, o Capitalismo, ainda hoje, é o mesmo e é outro. É estruturalmente o
mesmo, mas historicamente outro. E há muito que explicar nessa realidade que
nós vivemos. Há muitas novidades surgindo e numa velocidade desconhecida
em épocas anteriores. Talvez, essa aceleração do tempo, como já apontaram
vários autores, seja a marca mais forte da nossa época: uma profunda
aceleração, uma profunda rapidez na mudança das coisas. Há, inclusive,
autores que dizem que essa velocidade da inovação contemporânea é o
processo, o elemento central para explicarmos essa angústia do ser humano
na atualidade.
No passado, vivia-se num mundo comandado pela tradição e as pessoas
nasciam e morriam no mesmo mundo. Hoje, vivemos num mundo que se move
a cada momento, inclusive do ponto de vista dos valores culturais. Essa
velocidade, essa mutação das inovações é de tal ordem, de tal ritmo, que deixa
inclusive grande parte das Ciências Humanas atordoadas com o seu objeto. O
ritmo atual das inovações faz com que muitas teorias, muitos pensadores
cheguem a abrir mão do desejo de uma totalização, do desejo de uma busca
de sentindo na História, caindo para aquilo que é chamado de uma postura
Pós-moderna. Eis aí outro ponto bom para discussão. O Pós-modernismo
como expressão dessa insegurança advinda da rapidez das inovações
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vivenciadas na contemporaneidade. Então, de um lado, temos que abrir mão
de buscar um sentido, uma lógica nessa realidade na qual estamos inseridos.
Outros, na antípoda desses, se apegam a um passado teórico, onde as coisas
estavam mais claramente nos seus lugares, onde a realidade era mais simples,
onde os “mocinhos e bandidos” do processo histórico ficavam melhor
demarcados, acreditando que o apego ao dogma forneça um sentido que as
ruas, que a realidade nega. E esses passam a dar respostas metodológicas
para tudo. Qualquer problema empírico tem resposta metodológica. Respostas
metodológicas que, inclusive, explicam as coisas antes delas serem
pesquisadas. Quer dizer, nem pesquisei ainda e já sei a resposta, pois a
resposta está no método, não está na realidade. Essa é outra postura
absolutamente inadequada. Tudo está explicado no método. Pena que a
realidade, muitas vezes, não tenha sido avisada disso e contrarie totalmente
essas teorias. Isso me faz lembrar algo de bom nas tradições críticas do século
XIX, em Karl Marx, em particular, ao dizer que as teorias tinham que vir da
realidade para os livros e não o inverso, dos livros para a realidade.
Nessa Babel metodológica, ideológica que vivemos hoje, a questão, talvez,
mais central que se coloca, e aí toca direto naquelas tarefas que estão lá,
difíceis para o professor de Geografia, é a questão da legitimação das teorias
científicas. Esse problema emerge como o tema central para as Ciências
Humanas e para a Geografia nesse início do novo século.
Como se legitimam as teorias? Essa é uma questão para a qual já não se
aceitam as respostas do passado, principalmente não se aceita a
autolegitimação. Eu reúno uns dez amigos que pensam igual a mim e dizemos
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um para o outro: “Você está certo, você está certo, você está certo!” e você
acaba se iludindo de que está certo mesmo. Porém, como legitimar as teorias?
Como dizer que uma dada explicação da realidade social é certa ou errada, é
verdadeira ou falsa? Eu diria que esse é o tema central que se apresenta para
as teorizações mais avançadas em Ciências Humanas hoje em dia. E isso
vem, de certa forma, aduzir complicações nas já difíceis tarefas que se põem
para o professor. Explicar o mundo complexo sem simplificá-lo. Quer dizer,
explicar simplisticamente, abrindo mão da complexidade, é fácil. Agora,
explicar esse mundo complexo, “pedagogizá-lo”, sem cair na simplificação, é
extremamente difícil. Quer dizer, explicar criticamente o mundo, sem
transformar essa explicação num dogma, que cristaliza acriticamente pretensas
verdades. É a tarefa que está aí fora, difícil, extremamente difícil, mas é o
desafio que se põe. Acatar o pluralismo democrático sem cair num relativismo
cínico que a tudo justifica. Acatar as diversidades de opiniões como um valor,
sem pretender ser uma espécie de “dono da verdade”, porém, sem cair
naquela posição da “noite escura” do relativismo onde “todos os gatos são
pardos”, justificando qualquer atitude. Principalmente, justificando e reforçando
esse traço tão nefasto da nossa época que é o individualismo exacerbado.
Enfim, trata-se de uma agenda considerável que pede ao professor de
Geografia, não apenas o domínio do conteúdo específico da disciplina, mas
também uma formação pedagógica e humanista ampla. Certos temas da
Filosofia e da Ciência Política, por exemplo, se impõem na sua formação,
somando-se aos temas didáticos e pedagógicos, já comentados, e ao conteúdo
específico da disciplina. Por isso, acredito que deve haver separação na
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formação do geógrafo e do professor de Geografia. Além do conteúdo
específico da disciplina, além do conteúdo específico da Pedagogia, há a
necessidade dessa formação crítica e humanista, em cujo campo básico nós
teremos de avançar, no meu modo de entender, em termos de Filosofia e de
Ciência Política.
E aqui se abre, por essa necessidade de diálogo, a possibilidade de outros
equívocos. E o principal deles, que é outro ponto que eu gostaria de trazer para
a nossa discussão, é que, nesse diálogo com áreas afins, acabe-se saindo do
campo da Geografia, posição que também não é difícil de se encontrar no
universo do geógrafo. Quer dizer, eu começo a dialogar tanto com a Sociologia,
com a Ciência Política que, de repente, eu perco o foco da Geografia. Isso me
parece um equívoco muito grande. Ter uma visão clara da disciplina é um
pressuposto básico para um bom ensino de Geografia.
Eis o primeiro lugar, onde já se pode fazer um exercício da aceitação do
pluralismo, tendo claro que não existe apenas uma Geografia ou apenas uma
teoria em Geografia, mas, como em qualquer outro campo do conhecimento,
vai viver e se alimentar de polêmicas entre posicionamentos teóricos distintos,
inclusive sobre a própria natureza desse conhecimento.
Eu tenho uma visão sobre o que seja esse objeto da Geografia, mas tenho
claro, também, que essa visão não é a única e nem é exclusiva. Num campo
tão vasto podem conviver hipóteses bastante diferenciadas, cada uma podendo
trazer, inclusive, contribuições extremamente ricas para a explicação desse
mundo complexo e opaco no qual vivemos. Sem dúvida alguma, a idéia de
uma relação entre a sociedade e o espaço se impõe como uma idéia forte para
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clarificar esse campo da Geografia. Porém, vendo essa relação sociedade-
espaço como uma relação social, posição que já traria alguma polêmica entre
os que vêem o espaço diretamente como objeto e não a relação, e os que
vêem a relação sociedade-espaço como uma relação própria e não como uma
das relações sociais.
Enfim, aí temos um grande ponto de polêmica e estamos mexendo com o
cerne, com a essência mesmo do que se considera Geografia. O estudo da
espacialidade da vida social, o estudo da dimensão espacial da totalidade
social. São muitas as formulações e é necessário, para não sair da Geografia,
baixar esse nível de generalidades para explicações mais específicas, para
conceitos mais operacionais, tendo claro que a perda da abordagem geográfica
seria uma perda extremamente grande no poder explicativo da realidade social
como um todo. Isto é, a Geografia, a especificidade da abordagem geográfica,
tem uma potencialidade crítica e explicativa imensa. A maior contribuição que
podemos dar para explicar o Brasil, no campo das Ciências Humanas, é
exatamente gerar uma bela interpretação geográfica do Brasil. Na verdade, a
Geografia e a dimensão espacial tem uma grande centralidade na explicação
da realidade social como um todo. Eu acho que, se há algo nesse final de
século que as Ciências Humanas como um todo acataram, é exatamente essa
revalorização da Geografia, que andou, em um certo momento, meio em baixa
no rol das Ciências Humanas. Hoje em dia, ela conhece um momento que
propicia até algumas estultices como a de achar que a Geografia é a coisa
mais importante que existe no mundo, posição também que encontramos em
alguns autores contemporâneos, gerando idéias estapafúrdias como, por
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exemplo, Edward Soja, sugerindo substituir o materialismo-histórico dialético
por um materialismo-geográfico dialético. Aí já é um exagero, uma certa
soberba da Geografia, mas, sem dúvida nenhuma, a consciência da
centralidade explicativa desta ciência, com relação à totalidade social, é um
fato que hoje está evidente, mesmo quando lemos em autores de outras áreas.
Acredito que, por exemplo, a aceitação do livro de David Harvey sobre a
condição pós-moderna nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia
etc., é um exemplo claro dessa revalorização da dimensão espacial e da
Geografia. Então, quanto mais geógrafos nós conseguirmos ser, maior
contribuição daremos para a interpretação de nossa realidade social.
Uma posição que venho defendendo, já há algum tempo, e da qual estou
plenamente convencido, é a de que nos países de formação colonial essa
centralidade da Geografia adquire ainda maior relevo. Por quê? Porque
exatamente os países que tiveram berço colonial, são países que surgem de
processos de expansão espacial e de conquista de territórios. A própria
colonização é isso: uma apropriação de terras. Então, nesses países, a
Geografia teria um peso explicativo ainda maior do que em outros.
O Brasil é exemplar, nesse sentido. Não dá para compreender o Brasil sem
entender a Geografia do Brasil. E isso, não sou eu que estou falando, isso está
numa das últimas entrevistas dadas pelo Prof. Caio Prado Júnior que, sem
dúvida nenhuma, foi uma das figuras centrais na explicação deste país. Ele
disse, numa entrevista à Folha de São Paulo pouco antes de morrer, que sem
entender a Geografia, não se entende o Brasil. Eu estou plenamente de acordo
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com ele. Este é um país extremamente complexo. A Geografia é reveladora da
sua essência.
Nós vivemos num país que é, ao mesmo tempo, periférico e moderno. Um país
que é pobre e rico. Está aí, de novo, a dialética. Um país profundamente
desigual. Não é novidade nenhuma para ninguém, mas é mais uma razão para
estarmos atentos contra simplificações e simplismos teóricos. Nenhuma teoria
simples vai dar conta da complexidade da armação social deste país. Um país
que combina traços de pré-modernidade com traços de pós-modernidade. O
Brasil vive desde situações que poderíamos chamar de super-modernidade,
pois estão aí as redes, a informática, o Just-in-time em vários processos, tudo
isso convivendo com traços pré-modernos, a exemplo do desigual acesso à
cidadania. São traços da pré-modernidade que nos marcam profundamente.
Então, esse jogo entre atraso e modernidade vai ser um dos elementos
caracterizadores do país, e eu, particularmente, acho que, se fizermos um
balanço, nós estamos mais para um país pré-moderno do que para um país
pós-moderno. A pós-modernidade é residual, é espacialmente seletiva,
enquanto que os elementos da pré-modernidade são majoritários e estão em
qualquer lado que se olhe o país. Isso coloca, como foco central para a
reflexão (de todas as Ciências Humanas e da Geografia em particular), a
questão da inclusão/exclusão. Esse é o tema central no equacionamento do
país. É uma questão que vale para segmentos sociais e também para lugares.
Há lugares incluídos e há lugares não-incluídos, por exemplo, às redes. E a
não-inclusão nas redes significa atraso, miséria. Eu inclusive tenho uma
posição muito particular a respeito de um conceito, originário da Antropologia,
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que vem sendo bastante utilizado pelo geógrafo, que é o conceito de não-
lugar. Na concepção original de Marc Augé, que propôs esse conceito, um
não-lugar seria um lugar da super-modernidade, aquele lugar sem identidade: o
aeroporto, o shopping center etc. Porém, acho isso equivocado, acho que o
não-lugar é exatamente o contrário disso. Não-lugar é o lugar não inserido nas
redes. Aquele lugar que o Capitalismo não quer explorar. O Haiti é um bom
exemplo de não-lugar. O problema do Haiti, e aí há outro ponto para
pensarmos, não é a exploração direta do capital, mas sim o desinteresse do
capital em relação a esse país. Esses seriam os verdadeiros não-lugares, os
lugares excluídos das redes que, cada vez mais, conformam e comandam a
vida econômica contemporânea.
Bem, com isso, aponto para aquilo que seria a principal tarefa posta para a
nossa geração de geógrafos, e para a qual o papel dos professores de
Geografia adquire um relevo fantástico: a de articular a Geografia com um
PROJETO NACIONAL nesses tempos de Globalização. Tendo claro, em
primeiro lugar, que não é a Geografia nem o geógrafo que farão isso sozinhos.
Seria uma grande soberba achar que os geógrafos são ungidos para
determinar, decidir e fazer esse projeto. Não! Um Projeto Nacional deve
expressar a vontade nacional, logo não poderia ser obra só de geógrafos, mas
do conjunto dos cidadãos. Porém, o ensino da Geografia atua diretamente na
formação desse cidadão. E isso coloca para nós, como questão-chave, definir
qual é o conteúdo básico dessa disciplina que deve interessar na formação de
todos os cidadãos. Acho que é esta a questão. Ao pensar um currículo, ao
estruturar um livro didático, ao pensar uma reforma educacional, acho que é
22
esta a questão básica, até para fugir daqueles erros, que eu coloquei, de
“pegar” teorias de ponta e sair da Geografia. A questão básica é esta: qual é o
conteúdo básico dessa disciplina que deve estar presente na formação de
todos os cidadãos? A pedra angular é discutirmos o conteúdo geográfico
mínimo. Não é a formação do Geógrafo, mas a formação do cidadão. Quer
dizer, o grande livro deveria ser assim: o que todo o cidadão deve entender de
Geografia? é isso que seria a virtude de um programa de ensino de Geografia
para o ensino fundamental e médio, tendo clareza que apenas uma parcela
diminuta daquelas pessoas se tornarão geógrafos. Os que se encantarem com
a Geografia farão, depois, uma Faculdade de Geografia. Mas o que o
trabalhador, o médico, o técnico, deve saber de Geografia para que ele tenha
capacidade de influir, decidir, opinar nesse Projeto Nacional?
Então, estaríamos discutindo a questão do conteúdo mínimo. Não as
especificidades, mas o básico, o universalizado, aquilo que deveria estar
presente na formação de todo o cidadão. Ou até fazer a pergunta invertida:
quais as informações geográficas que não podem faltar, e o caminho para nós
elaborarmos isso, na formação do cidadão? Acoplada a estas duas, porém
bem mais perigosa e delicada, já que não resolvemos as questões fugindo
delas, mas discutindo-as com seriedade e a fundo, uma questão que emerge é
a seguinte: qual o conteúdo ideológico de tratamento dessa informação
geográfica mínima, que é democraticamente aceitável, para uma formação
pluralista do indivíduo? Acho essa pergunta básica. É chata, mas essencial.
Com isto eu estou balançando o dirigismo ideológico muito presente no ensino
de Geografia.
23
Não estou propondo uma Geografia asséptica, apolítica, mas discutindo os
limites até onde uma explicação parcial do mundo pode ser apresentada para
os alunos como uma explicação universal do mesmo. Isso decorre de posições
didático-pedagógicas e volto àquelas questões iniciais: como estimular o juízo
crítico pessoal do aluno, isto é, sua capacidade de julgamento? Ou posto em
outros termos: como estimular o livre arbítrio dos indivíduos?
Vimos que há uma agenda razoável. Realizar isso não é pouca coisa. E a
pergunta básica que se impõe, que nós devemos nos fazer é: o professor de
Geografia está preparado para o exercício dessa tarefa? Os atuais currículos, a
atual formação nos capacita a saber o que é esse conteúdo mínimo? Será que
sabemos qual é esse limite ideológico na sala de aula? E aí, realmente, o
professor é o elemento básico. Não há sistema de ensino adequado que não
seja calcado na figura do professor. Não há boa educação sem um bom
educador. Qualquer iniciativa, nesse setor, deve partir dessas primícias. Não
adianta inovações teóricas, não adianta investimentos em infra-estrutura, não
adianta nada disso, se não tocarmos nesse ponto básico: o professor e sua
formação.
Eu diria que, de um ponto de vista amplo sobre o Brasil, o quadro não é dos
mais alentadores. Movimentos ou campanhas de capacitação aguerridas são
fundamentais. Há um grande número de professores há muito tempo afastados
de qualquer atividade de reciclagem, e aí se abre uma grande tarefa para as
Universidades, especialmente as públicas. Faz-se necessário pressionar as
Secretarias de Educação municipais, estaduais, o MEC, porque não teremos
24
nenhum avanço no ensino se não houver um cuidado na melhoria da
capacitação dos professores.
Buscando chegar a um conhecimento efetivo do país, dentro daquelas
informações mínimas necessárias, precisamos claramente delimitar qual é a
carga empírica essencial para ser passada nos cursos, assim como, por outro
lado, ou conectado a isso, definir uma visão clara do próprio objeto geográfico.
Isto é, combinar a constatação da realidade brasileira com o estímulo a
construção de ideais. Eu acho que esse é o ponto que interessa, ou seja, de
um lado o realismo de avaliação do mundo empírico e, de outro lado, o esforço
pelo desenvolvimento da capacidade crítica do aluno. Aí está o nosso desafio,
que é um desafio coletivo e nele está o grande, talvez o maior, engate que a
Geografia pode ter com a transformação dessa ordem social nacional
profundamente injusta. Se há algo que nos anima na Geografia brasileira,
diante do tamanho dos desafios propostos, é o fato dela ser, majoritariamente,
uma Geografia progressista, uma Geografia preocupada com a problemática
social.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia:
25
o ecletismo a serviço da alienação humana.
Marcos Antônio Campos Couto2.
Gostaria de registrar a importância deste debate sobre o ensino de Geografia,
inserido nessa articulação entre a Universidade e a escola básica. Considero
que, para o enfrentamento das questões políticas e teórico-metodológicas de
nossa carreira, de nossa profissão, no magistério de Geografia, a escola básica
não se basta. Mas a Universidade também não. Assim, temos ainda muitos
frutos a tirar de um relacionamento mais estreito entre ambos. É claro que
quando falo escola básica e Universidade, estou me referindo a essa parcela
que está interessada em fazer essa aproximação. Então, parabéns aos
organizadores pelo evento.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Geografia tem uma estrutura
bem ampla. Eles partem de uma avaliação do ensino-currículo de Geografia,
apresentam definições e propõem objetivos para a Geografia na escola e,
conseqüentemente, o que se quer da escola e com a Geografia dentro dela.
Enfim, apresentam objetivos, metodologias, avaliação, bibliografia; então, é um
documento interessante para estudar e debater. Não quero afirmar, com isso,
que ele resolva todos os problemas dos currículos escolares de Geografia.
Aliás, o que vou tentar demonstrar é que o texto dos PCNs mais nos confunde
do que nos esclarecem.
2 Professor Assistente do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores – FFP UERJ.
26
Eu não sei se vocês já leram os PCNs, mas, de qualquer forma, eu trouxe
alguns elementos de análise para estabelecer a nossa conversa. Em função de
sua abrangência, nós podemos analisá-los a partir de diferentes perspectivas,
por vários caminhos. Podemos discuti-lo no interior da política educacional
neoliberal do governo federal. Acho que é um caminho para o debate. Se cabe,
ou não cabe, um Parâmetro Curricular de caráter nacional, a quem cabe
construir um Parâmetro Curricular e como se deve fazê-lo (de maneira
democrática ou antidemocrática). Todos estes aspectos são importantes de
serem debatidos e questionados.
O caminho de análise que escolhi tem a ver, um pouco, com aquilo que eu
estou estudando agora na Faculdade de Formação de Professores – FFP, que
são os conceitos geográficos. Eu vou centrar um pouco a conversa nos
conceitos geográficos que os PCNs trazem, a partir do seu conceito de
Geografia, de sua concepção de Geografia. Então esse é um caminho que eu
estou propondo para, a partir daí, podermos estabelecer o debate e para que
vocês tragam as questões dos caminhos que querem trilhar.
Mas, na verdade, eu queria dividir a nossa conversa em três partes. O primeiro
momento, que considero importante, é a apresentação de algumas idéias,
antecedentes dos PCNs, através de um texto escrito pelo professor Antônio
Carlos Robert Moraes (1995) do Departamento de Geografia da Universidade
de São Paulo, onde realiza uma avaliação de 18 currículos oficiais de
Geografia de vários estados e municípios do Brasil. O texto resultante dessa
avaliação é muito interessante e importante para entendermos muitas das
idéias que estão nos PCNs. Há uma continuidade clara entre o texto do
27
professor Robert Moraes, que está nesse documento da Fundação Carlos
Chagas, e muitas concepções que estão dentro dos PCNs. Então, eu
começaria por ele. Depois, partiríamos para alguns elementos dos PCNs e,
finalmente, para o terceiro momento, que estou chamando de debate, que
talvez seja o momento mais interessante.
A avaliação dos currículos oficiais brasileiros.
Retiramos do texto apenas aqueles comentários mais genéricos, que marcam,
não esta ou aquela proposta curricular, mas o conjunto das propostas
analisadas.
Há dois elementos que o professor Moraes considera fundamentais na
avaliação dos currículos de Geografia do Brasil. O primeiro problema é que os
programas e currículos padecem do
“desejo militante de fazer do próprio currículo um instrumento de conscientização política, o que redunda num elevado grau de dirigismo ideológico na maioria das propostas analisadas”. (MORAES, 1995).
Segundo Robert Moraes, isso ocorreu em função dessas propostas curriculares
terem nascido após a redemocratização do Brasil, pós-regime militar, e que,
portanto, se inseriam na redemocratização da sociedade, na crítica ao regime
autoritário, na crítica da Geografia, enfim, já é resultado de um processo mais
amplo de crítica.
Este é o primeiro elemento de sua avaliação. Nós concordamos com a idéia da
presença de dirigismo ideológico nos currículos de Geografia? O que significa
28
propostas curriculares com forte dirigismo ideológico? Vamos pensando sobre
isso para o debate.
E combinado com isso, ao par disso, afirma o autor que a “sobrevivência de
posturas tradicionais e um elevado grau de incoerência epistemológica”
marcam as propostas curriculares.
Então, vejamos: em primeiro lugar, o que pode significar dirigismo ideológico,
inserido no debate ideológico do Capitalismo e do socialismo, da sociedade de
classes? Consideramos que o autor se referiu ao debate da relação da
Geografia com o Marxismo. Combinado com o dirigismo, há incoerência
epistemológica. Ao perguntar aos nossos alunos – e costumo fazer isso na
graduação – a razão da escolha da carreira de professor de Geografia, muitos
respondem que foi porque um professor do terceiro ou do segundo ano do
ensino médio, muito crítico, o despertou para o pensar a sociedade. Então, de
certa forma, esta Geografia ensinada na década de 80 e 90, tem dentro de si
um grande teor de crítica social, de crítica ideológica, que o professor Robert
Moraes acha exagerado no sentido militante do termo.
A minha opinião é que o currículo – a sua construção – é, por essência, uma
relação de poder, de escolha, de estabelecimento de prioridades, vale dizer, de
reprodução de visões de mundo. Portanto, aquilo que faz parte dele não pode
constituir-se, digamos assim, em seu maior problema; sobretudo quando se
considera, como o próprio Moraes, a conjuntura de combate com outras
concepções ideológicas naquele momento da história brasileira.
Por outro lado, concordamos com o autor quanto às estranhas carências
epistemológicas da Geografia e sua permanência no que denominamos de
29
“Geografia Crítica”; ou seja, nós ainda patinamos em termos de conceitos. Ora,
nós confundimos paisagem com espaço, espaço com região, região com
território, território com lugar, lugar com paisagem, de forma que a crítica social
não foi acompanhada de uma crítica aos fundamentos teórico-metodológicos.
Então, considero que é a isso que ele está se referindo e concordo com ele, em
parte. Em parte porque a crítica da Geografia não foi levada às últimas
conseqüências – a crítica da alienação burguesa – transformando-se a
Geografia Crítica em um rótulo, em uma nova oficialidade curricular e didática.
Depois, o professor Moraes apresenta suas concepções e pressupostos de
análise, os pontos de vista, a partir dos quais, fez a avaliação dos currículos. O
autor confronta dirigismo ideológico com pluralismo de idéias. O que nos leva a
entender que dirigismo ideológico significa, na verdade, que as propostas
curriculares assumem apenas uma metodologia ou uma concepção teórica
exclusiva, ao contrário de concepções teóricas mais variadas. Então há um
confronto entre uma proposta de dirigismo ideológico e outra de pluralismo de
idéias. E, conseqüentemente, a partir disso, o autor estabelece a sua critica ao
dogmatismo. Ou seja, se tem uma proposta que é o Marxismo, ou que não
seja, mas que se assume como única, ela acaba por assumir fóruns de
verdade, de verdade absoluta inquestionável. Segundo ele, é importante
colocar no mesmo estatuto, valorizar da mesma forma, os aspectos sociais,
valores do mesmo calibre, utopias igualitárias do pensamento crítico social e
respeito às individualidades, respeito às diferenças. Ou seja, o dogmatismo e o
dirigismo ideológico, a que ele se referia antes, nessa avaliação, não estariam
respeitando a diferença e as individualidades. Por isso, então, que, acrescido à
30
luta por igualdade social, há uma revalorização da idéia de Democracia. Ou
seja, se a crítica social da pobreza e da exploração é importante, ela torna-se
limitada se não alcançar a crítica da política, do poder e da democratização,
segundo a avaliação do autor.
Para Moraes (1995) a posse dos conhecimentos englobados no ensino
fundamental formal “aparece, cada vez mais, como o qualificativo essencial
para a alocação dos indivíduos na sociedade e no mercado”. Desta forma,
considera o autor, que em um...
"sistema democrático espera-se que o conteúdo deste aprendizado apresente um perfil crítico e pluralista, onde o aluno não apenas receba uma carga adequada de informações factuais e técnicas, mas também todo um instrumental teórico que lhe ajude a interpretar o mundo e a se posicionar face aos fenômenos." (MORAES, 1995).
Assim, a escola – e a Geografia dentro dela – tem o papel de contribuir para
esse acesso gratuito de conhecimentos que qualificam as pessoas para o
mercado, vale dizer, para a sociedade de mercado capitalista. Voltamos aqui
ao significado do termo dirigismo ideológico, da manipulação das consciências.
Formar para o mercado burguês, de forma crítica e pluralista, não significa dar
uma direção, uma intencionalidade a nossa prática e, conseqüentemente, à
história humana? Por outro lado, considero que tudo que fazemos na escola
forma consciência, constitui direções, desde os óculos que nós usamos ou os
sapatos, a maneira como nos vestimos, a maneira como falamos, até os
conteúdos que porventura desenvolvemos com nossos alunos; tudo isso vai
produzindo/reproduzindo formas de sociabilidade. Então, em qualquer das
hipóteses, nós estamos dando uma direção às consciências.
31
Bom, mas o que é a Geografia para o autor? Como ele analisou a Geografia
nos currículos oficiais brasileiros? Moraes identificou três denominações para
os conteúdos geográficos: Estudos Sociais, Integração Social ou Geografia;
embora, para ele, as três denominações não apresentem diferenças
substanciais quanto aos conteúdos propostos. Entretanto, esta ambigüidade,
na interpretação do autor, não constitui um problema menor. Por quê? Porque
diz respeito ao papel da Geografia nas Ciências Sociais e na interpretação da
realidade e, por conseguinte, na escola. Ou seja, é preciso verificar claramente
o papel da Geografia no conjunto das Ciências Sociais. Então, falar Estudos
Sociais ou Geografia não é uma questão pequena para o autor. Eu também
concordo. Veremos, mais adiante, que os textos que compõem os PCNs
reproduzem outras ambigüidades ao conceituar a Geografia.
Para Moraes, então, a Geografia faz parte de uma tradição discursiva sobre o
mundo, que conforma um campo de saber, um campo disciplinar circunscrito
aos estudos que tematizam o espaço, ou melhor, nas letras do autor,
tematizam a relação sociedade-espaço.
O autor afirma que, embora haja concordância entre os geógrafos sobre sua
temática de análise – o espaço – a “totalidade das propostas de currículo
analisadas encaixam-se na [resistente e não abandonada] busca de nexos
entre fenômenos naturais e fenômenos sociais”. Portanto, são duas
concepções de Geografia. Nós vamos ver que os PCNs oscilam entre ambas.
Segundo o professor, “as propostas curriculares analisadas apresentam
razoável similaridade de concepções e propósitos”. Além do dirigismo
ideológico, já comentado, há ainda similaridade nas concepções e objetivos da
32
Geografia. O autor dividiu a sua síntese crítica em dois grandes grupos: “de um
lado as propostas que apresentam coerência interna e, de outro, as que podem
ser qualificadas como incoerentes”.
Enquanto as primeiras apresentam articulação entre objetivos, fundamentação
metodológica e conteúdos, o segundo grupo, mesmo assumindo proposições
críticas – discurso da crítica ao Capitalismo, à sociedade – reproduz programas
de corte bem tradicional, o que ele chama de Geografia Tradicional.
Segundo o autor, há um modelo que preside a organização dos conteúdos,
sobretudo nas séries iniciais (1ª a 4ª séries) que é a visão de círculos
concêntricos, de progressiva apreensão do espaço, seguindo a seguinte
seqüência de abordagem: “o indivíduo (unidade corpórea), a casa, a escola, a
rua, o bairro, o município e o estado”. Parte-se do espaço mais próximo e,
progressivamente, aumenta-se a escala de análise.
O autor afirma, entretanto, que, embora os programas tomem o espaço de
vivência mais próximo como um ponto de partida, eles não apresentam a
fundamentação teórico-metodológica da Fenomenologia e da chamada
Geografia Humanista que, para ele, “constituem orientação metodológica que
mais diretamente trabalha tal concepção na Geografia”.
Assim, para ele, a Fenomenologia é o suporte teórico metodológico
fundamental para pensar o próximo e o vivido. Nós concordamos com isso?
Avalio que, fundamentalmente, os PCNs constituam uma tentativa de construir
uma proposta curricular baseada na Fenomenologia. Tenho dúvidas se
conseguiram. Mas considero este aspecto lapidar, porque os PCNs estão todos
costurados por aí. É por isso, então, que os PCNs realçam muito o subjetivo, o
33
indivíduo, a experiência, o vivido, a valorização do imaginário, a experiência
das pessoas. E aí eu quero reforçar a pergunta: o Marxismo tem contribuições
para pensar o indivíduo e seu espaço vivido, produzido e concebido? E outras
correntes do pensamento? Ou será apenas a Fenomenologia? A resposta dos
PCNs me parece que é, sobretudo, a Fenomenologia.
O autor afirma que esta ausência da Fenomenologia
“contraria certa tendência mundial de tratar a questão do ensino fundamental de Geografia dentro de bases fenomenológicas, realçando os temas da consciência e representação do espaço como experiência de vida”. (MORAES, 1995).
Mas os temas da representação e da consciência não são, também, temas do
Marxismo? Entretanto, os temas da consciência e da subjetividade estão, nos
textos dos PCNs, vinculados às percepções individuais.
Outra questão apontada é a do lugar e do local, onde Moraes (1995) avalia,
negativamente, a idéia de uma proposta de círculos concêntricos, que parta do
local, da casa e depois vá ampliando os espaços até chegar ao espaço
brasileiro, na quarta série, ou ao espaço mundial, entre a quinta e a oitava
séries; pois o autor indaga sobre o “estatuto da realidade local num mundo
globalizado, ou em rápido processo de globalização”. Isso porque, segundo o
autor, o “mundo é bem mais do que a sua rua”. Conseqüentemente, é
necessário contemplar as escalas simultaneamente, combinando “os níveis
local/nacional/global”, através da idéia de um “espaço relacional” e da
“moderna noção de rede”.
Para o autor, as propostas possuem uma “grande confusão conceitual”, pois
juntam ou combinam conceitos provenientes de diferentes concepções
metodológicas como, por exemplo, espaço geográfico e produção do espaço
34
ou modo de produção e gênero de vida, sem o aprofundamento teórico-
metodológico que esta articulação exige.
Para Moraes, as propostas curriculares padecem de uma revisão bibliográfica;
característica que os PCNs buscaram resolver. Apesar de falarem da
interdisciplinaridade, os documentos analisados acabam não transformando
isso em proposta curricular. Para ele,
“os trabalhos interdisciplinares se alimentam de conhecimentos que lhes são prévios, gerados nos campos disciplinares, e, nesse sentido, não eliminam a especificidade de cada abordagem. Antes, têm o resultado destas como matéria-prima”. (MORAES, 1995).
Ou seja, na verdade, apostar na interdisciplinaridade não significa diluir a
Geografia, ou desfazê-la, ou fragmentá-la no processo de aproximação com as
outras ciências. Pelo contrário, nós vamos nos integrar com outras ciências
sabendo exatamente quem nós somos e o que queremos, ou seja, qual é o
aspecto da realidade que queremos avaliar, que como disse anteriormente,
para o autor, significa o estudo da relação sociedade-espaço. A partir daí, ele
indica três interfaces para a interdisciplinaridade: uma com a História, através
da formação dos territórios; outra com a questão ambiental, articulada com as
Ciências, a Biologia e, também, as representações do espaço com a Língua e
com a Literatura Portuguesa.
Em minha avaliação, estes aspectos anteriormente apresentados estão muito
presentes nos PCNs de Geografia – tanto nos da 1ª a 4ª , quanto nos da 5ª a
8ª séries – isto é, estão muito coerentes com essas avaliações e,
fundamentalmente, buscam respondê-la.
Então, o primeiro ponto de partida para nossa conversa é se nós concordamos
com essa avaliação? Concordamos em parte? Concordamos com o seu núcleo
35
fundamental de argumentação? Esse é o primeiro ponto de partida para o
debate.
Eu queria antecipar a minha opinião. Considero que, ao se referir à questão do
dirigismo ideológico, o professor Moraes está se referindo, sobretudo, a
proposta curricular do estado de São Paulo; que também teve participação, em
sua elaboração, de professores da Universidade de São Paulo. Então, me
parece (eu queria ter estado aqui no debate com o professor Robert Moraes,
mas não pude) que, na verdade, trata-se de um debate entre duas partes, ou
dois grupos, do Departamento de Geografia da USP. Embora considere o
economicismo que marca a proposta curricular do estado de São Paulo e,
assim, esta qualidade de dirigismo ideológico, não concordo que isto tenha
ocorrido de forma generalizada, como o autor está afirmando. E mesmo, o que
significa isso? Se pensarmos no título do livro do professor Moraes, em que ele
rotula, na minha avaliação, de Geografia Tradicional tudo o que passou, e de
Geografia Crítica o que é atual, considero, isso sim, o supra-sumo do dirigismo
ideológico. De qualquer forma, foi aquele o momento histórico em que o livro
estava sendo escrito, no combate com a Geografia mais clássica, no combate
dentro da AGB, dentro dos Departamentos; então é compreensível relacionar
àquele combate, tudo que estava se passando. Assim, eu acho que o
fundamental da crítica das propostas curriculares não cabe aí. O lugar da
crítica não é esse.
Mas vamos então agora aos PCNs.
36
PCNs de Geografia: ecletismo ou confusão teórico-metodológica
Queria começar pelo conceito de Geografia. Eu fui peneirando os PCNs para
achar este conceito, que é o ponto de partida. E aí, considero que os PCNs não
respondem a uma questão que o Robert Moraes colocou em seu texto, que
considero fundamental: o de definir, claramente, de que se trata a Geografia.
Então, para os PCNs:
"A Geografia estuda as relações entre o processo histórico que regula a formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza, por meio da leitura do espaço geográfico e da paisagem.A divisão da Geografia em campos de conhecimento da sociedade e da natureza tem propiciado um aprofundamento temático de seus objetos de estudo. Essa divisão é necessária, como um recurso didático, para distinguir os elementos sociais ou naturais, mas é artificial, na medida em que o objetivo da Geografia é explicar e compreender as relações entre a sociedade e a natureza, e como ocorre a apropriação desta por aquela.(...)Identificar e relacionar aquilo que na paisagem representa as heranças das sucessivas relações no tempo entre a sociedade e a natureza é um de seus objetivos.(...)A preocupação básica é abranger os modos de produzir, de existir e de perceber os diferentes espaços geográficos; como os fenômenos que constituem as paisagens se relacionam com a vida que as anima." (PCNs: 1997, 109)
"A Geografia estaria, então, identificada como a ciência que busca decodificar as imagens presentes no cotidiano, impressas e expressas nas paisagens e em suas representações, numa reflexão direta e imediata sobre o espaço geográfico e o lugar." (PCNs, 1997: 112/113)
Nos PCNs (1999) de Geografia para o terceiro e quarto ciclo do ensino
fundamental (5ª à 8ª séries), os autores assim definem a Geografia:
"Área de conhecimento comprometida em tornar o mundo compreensível para os alunos, explicável e passível de transformações (...) em sua meta de buscar um ensino para a conquista da cidadania brasileira e (...) em prol da democratização da escola. (...) Seu estudo proporciona aos
37
alunos a possibilidade de compreenderem sua própria posição no conjunto de interações entre sociedade e natureza.A Geografia tem por objetivo estudar as relações entre o processo histórico na formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza por meio da leitura do lugar, do território, a partir de sua paisagem." (PCNs, 1999: 26)
Não vou fazer comentários sobre a vinculação escola-cidadania, dos limites
políticos do conceito de cidadania. Não vou me referir a isso neste momento.
Identificamos, pelo menos, três conceitos de Geografia, provenientes de
diferentes matrizes teórico-metodológicas: o que define a Geografia como o
estudo da relação homem-meio (homem-natureza, sociedade-natureza), o que
a define como o estudo da paisagem, e, finalmente, o conceito que define a
Geografia como o estudo da produção do espaço.
Qual é o problema? Na falta de articulação clara e explícita das contribuições
das diferentes concepções de Geografia, o que se reproduz é a imprecisão e a
ambigüidade. Como selecionar/hierarquizar os conceitos e conteúdos de forma
coerente, se não sabemos onde queremos chegar, sem ter certeza da pergunta
que queremos responder?
Por outro lado, a definição da Geografia como o estudo da relação
sociedade/natureza nos parece muito abrangente, pois, a rigor, esta temática é
comum ao conjunto das ciências, além de outras formas de conhecimento. A
Economia, a História, a Biologia, também estudam a relação sociedade-
natureza, mas cada uma por um viés particular. Então, na verdade, este
conceito não nos ajuda em várias coisas: uma é na identificação do nosso
papel dentro do conjunto das ciências e, outro, é no melhor entendimento dos
conceitos geográficos. Ou seja, os textos dos PCNs não conseguiram
38
responder a uma indicação, proposta pelo professor Moraes (1995): a de nos
identificar enquanto um campo do conhecimento.
Por outro lado, fragmentar sociedade e natureza, mesmo apresentando o álibi
didático, tem sido a tradição do discurso clássico da Geografia que,
contraditoriamente, se reivindica como o estudo da relação sociedade-
natureza.
A identificação de nosso objeto de estudo, não podemos esquecer, só será útil
se o utilizarmos para a interpretação do seu sujeito. Entretanto, se o objeto de
estudo se perde na dispersão e empiricidade dos conteúdos, o sujeito – o ser
humano – não passará de mais um dos seus conteúdos.
Mas os autores dos PCNs apresentam as idéias de espaço e de espacialização
dos fenômenos, articulados aos conceitos geográficos de paisagem, território e
lugar. Para eles:
"o estudo da paisagem local, global não deve se restringir à mera constatação e descrição dos fenômenos que a constituem. Será de grande valia pedagógica explicar e compreender os processos de interação entre a sociedade e a natureza, situando-as em diferentes escalas espaciais e temporais, comparando-as, conferindo-lhes significados. O ensino da Geografia, nesses ciclos, pode intensificar ainda mais a compreensão, por parte dos alunos, dos processos envolvidos na construção das paisagens, territórios e lugares. A preocupação da Geografia é com o espaço terrestre." (PCNs, 1999)
Como estamos “acostumados” com a ambigüidade conceitual, utilizamos, com
o mesmo sentido, conceitos que não correspondem à mesma coisa: espaço
terrestre, espaço geográfico, relação sociedade/natureza não são a mesma
coisa.
Para os autores, é “na construção do território, como parte integrante da
sociedade humana e suas interações dinâmicas, que se fundamenta o conceito
39
de espaço geográfico, como uma categoria no interior das ciências humanas e
sociais”. Assim, ficamos em dúvida se a Geografia é o estudo da relação
sociedade/natureza, do espaço ou do território. Gostaria de conversar com
vocês sobre isso. Mas os autores voltam a afirmar que é essencial que não se
perca de vista que o seu objeto de estudo, e de ensino, é o espaço geográfico
(voltou ao espaço), seu território, paisagens e lugares. Procuram trabalhar com
a busca da compreensão, da diversidade das paisagens e lugares onde o
modo de vida, a cultura e a natureza interagem.
Então, na minha avaliação, eu vou voltar mais uma vez, os PCNs não resolvem
um problema que é chave: o que se quer com esse campo do saber, com esse
campo disciplinar que é a Geografia. E, me parece, também, que nós já temos
elementos bastante interessantes para pensar a questão da sociedade e do
seu espaço, que o próprio professor Moraes (1995) fez referência. Temos a
obra do Milton Santos e outras que nos dão elementos importantes para pensar
a Geografia como um discurso sobre o homem, sobre o ser humano
produzindo o seu espaço. Porque é isso que nos diz respeito. A Geografia é
um discurso sobre a condição humana, através de um dos caminhos da
produção da condição humana, que são as práticas espaciais da sociedade.
Isso é relação homem/natureza? É também. Mas, a nossa questão, acho que é
pensar o homem e a sociedade através da produção do espaço e, a partir daí,
pensar as categorias geográficas.
Agora, o problema dessa imprecisão, eu queria adiantar, é que na verdade nós
carecemos de discutir e entender o que é o espaço. Quando falamos espaço
terrestre, espaço natural ou espaço geográfico, estes termos não significam a
40
mesma coisa. Se pensarmos espaço natural, nós podemos pensar o espaço
anterior à existência humana, não é isso? O espaço natural, o espaço da
natureza. Mas se eu estou chamando de Geografia o que diz respeito à
sociedade humana, cria-se uma confusão teórica que é preciso esclarecer.
Bom, de que se trata, então? É um espaço como existência humana ou não é,
afinal de contas? É o espaço terrestre que parece esse espaço natural anterior
ao próprio homem? Ou seja, do que se trata?
Em função dessa imprecisão conceitual da Geografia, e conseqüentemente do
espaço, o que vem depois piora, ou seja, os conceitos que os PCNs nos
trazem. O que considero como um ponto positivo, a recuperação dos conceitos
geográficos, que nos ajudam a focalizar o olhar geográfico sobre a realidade,
acaba por nos confundir. Os conceitos centrais da Geografia, eleitos pelos
autores dos PCNs, são: paisagem, território/territorialidade e lugar (Quadro 1).
Em primeiro lugar, cabe uma pergunta: são estes os conceitos centrais da
Geografia? São os conceitos fundamentais? Não caberia discuti-los? Não
poderiam ser outros? Mas estes foram eleitos. Estou me referindo também,
neste momento, aos critérios de construção dos PCNs e a maneira de elaborá-
los. Embora não possamos creditar ao professor Moraes os problemas teórico-
metodológicos dos PCNs, o ponto de partida para sua elaboração foi a
avaliação dos currículos brasileiros de Geografia produzida por apenas um
intelectual. E o texto dos PCNs foi construído por outros dois professores,
sendo que os três são membros do Departamento de Geografia da
Universidade de São Paulo.
41
Esses conceitos realmente permitem pensar a experiência concreta de vida?
Mas a experiência concreta de vida dos nossos alunos, o vivido, não é o vivido
do espaço do Capitalismo? E aí o Marxismo não tem contribuições para a
analise da experiência de vida do Capitalismo? Embora os autores façam
referência a importância do Marxismo para a Geografia, a sua contribuição
para tal análise é descartada. Enfim, essas são perguntas para alimentar o
nosso debate.
A Geografia é considerada como um discurso sobre o espaço – dentro dos
PCNs está essa idéia, mesmo que vagamente – sem que este conceito esteja
incluído como um dos fundamentais. Onde está o conceito de espaço? Por que
essa fuga do conceito de espaço? Em minha avaliação da “Geografia Crítica”,
ou qualquer nome que se queira dar, ou avaliando a Geografia que se ensina
nessa renovação, considero que está aí um dos problemas fundamentais: nós
fugimos da discussão do conceito de espaço. E aí vamos discutir o território, a
paisagem, o lugar, sem ter resolvido esse problema que, para mim, é anterior.
Porque, se nós chamamos esses conceitos – território, territorialidade,
paisagem, lugar – de geográficos, e são conceitos geográficos, tem que
haver, entre eles, algo de comum, para que eu afirme que eles são
geográficos. O que há de comum entre território, territorialidade, paisagem e
lugar? Porque no fundo, no fundo, o que há de comum entre eles, o que deve
haver de comum entre eles, é justamente a idéia de espaço, ou o conceito de
Geografia. E, aí, os PCNs não nos ajudam nesta reflexão. Aliás, pelo contrário,
nos confundem mais do que nos esclarecem. Eu estou dizendo eles nos
42
confundem aqui no Rio de Janeiro, diria também que em São Paulo, então eu
acho que a confusão, aí, pode ser muito pior em outros lugares do Brasil.
A confusão e a imprecisão conceituais, apontados pelo professor Moraes
(1995), também se reproduz nos conceitos de paisagem, lugar e território que
ora se diferenciam, ora se confundem. O território parece ser a relação
sociedade/natureza e, por outro lado, o conjunto das paisagens; parece, às
vezes, que território é espaço e, ainda, lugar. Ainda incorpora as idéias de
Milton Santos (1996) e apresenta o conceito de território como o sistema de
objetos e, assim, a Geografia ora é compreendida como o estudo do território,
ora como o estudo do espaço. O mesmo acontecendo com os conceitos de
paisagem e lugar.
A paisagem, para os autores, é “algo criado pelos homens, é uma forma de
apropriação da natureza”. Se, em lugar de paisagem, afirma-se que o espaço é
algo criado pelos homens e é uma forma de apropriação da natureza, os dois
conceitos teriam o mesmo sentido.
E finalmente o conceito de lugar. Para os autores, o “sentimento de pertencer a
um território, e à sua paisagem, significa fazer deles o seu lugar de vida e
estabelecer uma identidade com eles”.
Os conceitos são permeados pela idéia de subjetividade, imaginário,
concedendo um peso muito forte ao espaço vivido, ao espaço da experiência
imediata, que, embora possa se transformar em uma contribuição, não deve se
limitar a isso. O espaço é vivido, é experienciado, mas é também concebido, é
também produzido. E produzido e concebido de acordo com o que é a
sociedade e construindo-se enquanto sociedade. E aí não dá para fugir da
43
escala global, se refugiar na escala local, sem fazer análise do Capitalismo
enquanto tal. Em função do Marxismo, que influenciou o pensamento
geográfico, não ter realçado os aspectos da subjetividade humana, e ter
privilegiado as categorias da luta de classes ou as categorias econômicas, o
que se propõe agora é jogar a água suja fora com o bebê.
Eu vou encerrando por aqui, queria só fazer algumas considerações finais. Do
meu ponto de vista, os PCNs nos confundem mais do que nos ajudam.
Considero que os aspectos da consciência, do vivido, da experiência de vida,
que a Fenomenologia nos traz como uma reflexão, são importantes e não
devem ser desprezados, pois dizem respeito à condição humana. Mas, de
certa forma, os PCNs não nos ajudam nessa reflexão. Porque se nós ainda
entendemos que o homem é essa síntese da objetividade/subjetividade, as
duas dimensões são fundamentais para entendê-lo e, portanto, a produção do
seu espaço e vice-versa. Então, talvez seja interessante começarmos a
debater a relação entre a Fenomenologia e o Marxismo, que considero um
caminho interessante. Não é jogar as duas coisas no mesmo saco, mas
conversar sobre a relação entre essas coisas. Mas, o peso dado aos PCNs é o
peso do indivíduo e da individualidade e, aí, me parece que cai, sobretudo, na
concepção liberal de homem, de sociedade, de indivíduo e que perde de vista
vários aspectos que também são importantes. Porque se nós somos sexo,
etnia, gênero, nós ainda continuamos sendo classe, porque o Capitalismo
ainda continua sendo a luta de classes. Talvez aí seja o nosso ponto de
conversa com os PCNs e com as propostas curriculares. Pensar a condição
humana e, sobretudo, pensar a crítica à sociedade capitalista – aliás é assim
44
que eu entendo a crítica: a crítica para mim deve se confundir com a crítica à
sociedade capitalista – a partir destas contribuições do vivido, do concebido, do
produzido, como, de certa forma, uma parcela de geógrafos vem buscando
apresentar nestes anos de renovação.
Para finalizar, apenas um comentário sobre a estrutura temática dos PCNs.
Quando analiso os conteúdos (página 40 do documento), percebo problemas
maiores. Por quê? Nos eixos temáticos, colocados para o terceiro ciclo, estão:
“a Geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do mundo”; “o
estudo da natureza e a sua importância para o homem”; “o campo e a cidade
como formações sócio-espaciais”; “a cartografia como instrumento de
aproximação dos lugares e do mundo”. (PCNs, 1999: 40).
Mais uma vez se reproduz a questão teórica do “lugar” da natureza nos
estudos geográficos que, nos PCNs, aparece apartada das questões
relacionadas ao lugar, a paisagem, ao território, ao espaço e,
fundamentalmente, ao próprio homem.
Embora considere a cartografia como instrumento da análise geográfica da
realidade, tenho dúvidas, como apontado por Sposito (1999), se ela deva se
transformar em uma temática do programa, ou deva permear todo o currículo
de Geografia.
De qualquer forma, essa distribuição dos eixos temáticos nos faz pensar nas
velhas fragmentações homem/natureza, sociedade/espaço, que conhecemos e
criticamos bastante, mas que, ainda, são nossos fantasmas.
45
Conclusão
Para finalizar, diria que os PCNs, do ponto de vista de seu conteúdo teórico,
constituem um documento a mais para o debate. Não é o principal, não é o
único, mas é um documento para o debate, para a reflexão. Observando as
propostas de Geografia do Colégio Pedro II, dos municípios do Rio de Janeiro
e de Niterói, os PCNs não trazem muitas novidades. Quando observo os livros
didáticos de primeira à quarta série – e os currículos que lhes são apenas
cópias – verdadeiros amontoados de conteúdos geográficos, considero que os
PCNs podem significar algum avanço. Porque em muitas obras didáticas não
há perguntas, questões a responder, a problematizar, mas apenas conteúdos
com pouca ou nenhuma articulação.
É lamentável que os autores dos PCNs, utilizando-se, mesmo que
confusamente, dos temas e debates que vinham sendo travados, desde o final
da década de 1970, nos Departamentos, nos Congressos da AGB, não nos
permitiram o papel de interlocutores.
Do ponto de vista da política educacional, os PCNs assumem um caráter
perverso, dado que o próprio MEC explicita que a política de currículo lança
luzes para as políticas do livro didático, de formação de professores, de
avaliação externa. Então, todos os problemas que possamos identificar nos
PCNs, com certeza, trarão conseqüências para esses outros campos de nossa
atuação política e profissional.
A Geografia deveria ser um discurso sobre a condição humana, pelo viés de
sua espacialidade. Quando Milton Santos insiste nisso, eu acho que não é por
46
capricho, mas porque cada vez mais a nossa experiência de vida é o espaço,
não é mais aquela natureza pretérita, passada, natural. Cada vez mais o
espaço é a sociedade. O espaço cada vez mais denso de História, de
sociedade e de técnica. E mais, o mundo hoje tem a cara da escala, que é um
conceito que nos é muito próximo. Então, analisar a condição humana, nessa
virada de século, pelo instrumental da Geografia, é uma coisa que não
podemos perder de vista. Mas nós temos que aprofundar o debate sobre o que
é espaço, sobretudo porque ainda vigora entre nós a idéia do espaço absoluto,
aquele espaço eterno, que existe independente da ação humana, anterior a ela
e que, portanto, impõem-se ao homem como condição eterna, Ou seja, nós
ainda não conseguimos visualizar o homem em nossas análises do espaço.
Para finalizar, diria o seguinte: eu vinha para cá ouvindo o Cartola, o que me
despertou para o debate sobre a condição humana, sobre tudo isso de que
tratamos, sobre a Fenomenologia. Assim, gostaria de construir, numa mesa, a
crítica da sociedade, que fosse a síntese das idéias de Marx e Rosa
Luxemburgo - crítica à sociedade capitalista - do Guevara - um homem que
viveu, construiu a revolução - do Cartola - biscateiro e poeta da Mangueira - e
do Noel Rosa - poeta da Vila Isabel. De maneira que ela seja construída, de
onde viesse - do gênero, da raça, do lugar, da crítica política, da crítica
ideológica, da cultura - como, fundamentalmente, crítica à alienação humana
na sociedade capitalista, que ainda precisa ser transformada.
47
Quadro 1
Os Conceitos Geográficos nos PCNs
Território
Área de vida em que a espécie desempenha todas as suas funções vitais ao longo do seu
desenvolvimento. Território é o domínio que os animais e as plantas têm sobre porções da
superfície terrestre (Biologia, séc. XVIII. Augusto Comte incorporou aos estudos da
sociedade).
Apropriação do espaço, ou seja, o território, para as sociedades humanas, representa
uma parcela do espaço identificada pela posse. É dominado por uma comunidade ou por
um Estado (Geografia, Ratzel). Na geopolítica, o território é o espaço nacional ou a área
controlada por um Estado-nacional: é um conceito político que serve como ponto de
partida para explicar muitos fenômenos geográficos relacionados à organização da
sociedade e suas interações com as paisagens. (p. 27).
O território é uma categoria fundamental quando se estuda a sua conceitualização ligada
à formação econômica e social de uma nação. Nesse sentido, é o trabalho que qualifica o
território como produto do trabalho social.
Além disso, compreender o que é território implica também compreender a complexidade
da convivência, nem sempre harmônica, em um mesmo espaço, da diversidade de
tendências, idéias, crenças, sistemas de pensamento e tradições de diferentes povos e
etnias.
O território refere-se a um campo específico do estudo da Geografia. Ele é representado
por um sistema de objetos fixos e móveis, como, por exemplo, o sistema viário urbano
representando o fixo e o conjunto dos transportes como os móveis. (p. 28)
Pode até mesmo ser considerado o território como o conjunto de paisagens.
48
Territorialidade
É fundamental reconhecer a diferenciação entre a categoria território e o conceito de
territorialidade. Enquanto a categoria território representa para a Geografia um sistema de
objetos, sendo básica para a análise geográfica, o conceito de territorialidade representa a
condição necessária para a própria existência da sociedade como um todo.
Paisagem
Compreensão subjetiva da paisagem como lugar, o que significa dizer: a paisagem
ganhando significados para aqueles que a constroem e nela vivem; as percepções que os
indivíduos, grupos ou sociedades têm da paisagem em que se encontram e as relações
singulares que com ela estabelecem. (p. 27). Pode até mesmo ser considerado o território
como o conjunto de paisagens. A paisagem é algo criado pelos homens, é uma forma de
apropriação da natureza.
A paisagem é definida como sendo uma unidade visível do território, que possui
identidade visual, caracterizada por fatores de ordem social, cultural e natural, contendo
espaços e tempos distintos; o passado e o presente. A paisagem é o velho no novo e o
novo no velho!
Quando se fala da paisagem de uma cidade, dela fazem parte seu relevo, a orientação
dos rios e córregos da região, sobre o quais se implantaram suas vias expressas, o
conjunto de construções humanas, a distribuição de sua população, o registro das
tensões, sucessos e fracassos da história dos indivíduos que nela se encontram. É nela
que estão expressas as marcas da história de uma sociedade, fazendo assim da
paisagem um acúmulo de tempos desiguais. (p. 28)
Lugar
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A categoria paisagem, por sua vez, também está relacionada à categoria lugar, tanto na visão
da Geografia Tradicional quanto nas novas abordagens. O sentimento de pertencer a um
território e a sua paisagem significa fazer deles o seu lugar de vida e estabelecer uma
identidade com eles. Nesse contexto, a categoria lugar traduz os espaços com os quais as
pessoas têm vínculos afetivos: uma praça onde se brinca desde criança, a janela de onde se
vê a rua, o alto de uma colina de onde se avista a cidade. O lugar é onde estão as referências
pessoais e o sistema de valores que direcionam as diferentes formas de perceber e constituir a
paisagem e o espaço geográfico. É por intermédio dos lugares que se dá a comunicação entre
o homem e o mundo.
Bibliografia
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História, Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, 1ª à 4ª séries, 1997.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, 5ª à 8ª séries, 1999.
CARLOS, A. F. A. & OLIVEIRA, A. U. Org. Reformas no mundo da Educação – parâmetros curriculares e Geografia. São Paulo: Contexto, 1999.
LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988.
MARX, K. Manuscritos económicos-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.
MORAES, A. C. R. "Propostas Curriculares de Geografia". In "As Propostas curriculares oficiais – análise das propostas curriculares dos estados e de alguns municípios das capitais para o ensino fundamental". São Paulo: Fundação Carlos Chagas, Departamento de Pesquisas Educacionais, Projeto MEC/UNESCO/FCC: Subsídios à elaboração dos PCNs, 1995.
MOREIRA, R. O discurso do avesso (para a crítica da Geografia que se ensina). Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987.
SANTOS, M. A natureza do espaço - técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SPOSITO, M. E. B. "Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Geografia: pontos e contrapontos para uma análise". In Reformas no mundo da Educação – parâmetros curriculares e Geografia. São Paulo: Contexto, 1999.
O livro didático e a construção do conhecimento no ensino de Geografia
50
nas séries iniciais do Ensino Fundamental
Irene de Barcelos Alves3
Nossa história com o livro didático para as primeiras séries do Ensino
Fundamental, em parceria com a professora Marília Bacellar, teve início
quando participamos do trabalho de reformulação curricular do ensino de
Geografia na rede pública municipal do Rio de Janeiro, no final da década de
1980. Trabalho este realizado em duas fases, do qual participei apenas da
primeira. Foi a partir do contato com professores de todo o Ensino
Fundamental, que identificamos as dificuldades que encontram no trabalho
com as disciplinas de História e Geografia, uma vez que, em geral, são
carentes de uma formação especifica nessas áreas. Faltavam-lhes os
conceitos básicos das disciplinas. Por outro lado, são professores que têm uma
maior disponibilidade de tempo, um maior contato com as crianças e uma
formação que lhes confere um domínio didático que o professor de 5a a 8a
séries, muitas vezes, não dispõe. Esta carência na formação dos professores a
partir da 5a série, decorre do modelo adotado pelas Universidades que não os
prepara para este convívio com a criança, nem para a criação de trabalhos
adequados à faixa etária dos menores, tão pouco para o trabalho lúdico na sala
de aula etc.
Surgiu, daí, a necessidade de elaborar um livro que contemplasse a base
teórico-conceitual, através dos conceitos fundamentais de História e Geografia,
adequando-os à prática didática do professor das primeiras séries do Ensino
3 Professora do Centro Federal de Ensino Tecnológico – CEFET.
51
Fundamental. Em nossa concepção, o professor de 1a a 4a séries não vai
desenvolver a História e a Geografia, mas construir os alicerces fundamentais
para a aprendizagem dessas disciplinas. Na realidade, ele vai apresentar os
conceitos e desenvolver as habilidades que, mais tarde, os professores do
segundo segmento irão ampliar. Considerando que as duas disciplinas ainda
são trabalhadas em conjunto, mesmo que já se discuta no MEC a separação,
priorizamos os seguintes conceitos na construção da coleção de livros:
trabalho, natureza, espaço, grupos sociais/sociedade, tempo e cultura.
Estes conceitos são apresentados através de uma série de atividades
propostas que possibilitam sua compreensão pela criança. O conceito de
espaço, por exemplo, tão importante para a Geografia, é apresentado e
trabalhado a partir das vivências espaciais dos próprios alunos, partindo-se
sempre do mais próximo e conhecido para, depois, trazer realidades mais
distantes.
E quanto às habilidades: quais são aquelas fundamentais para serem
desenvolvidas nessa faixa etária? Em termos gerais, trabalhamos com
classificação, ordenação, orientação e localização, levando o aluno a observar
mudanças e permanências, bem como estabelecer relações que possibilitem
algum grau de análise e posicionamento crítico perante fatos e situações.
Contudo, ao longo do trabalho com os conceitos geográficos, há uma
habilidade que se torna fundamental: é a capacidade de leitura e confecção de
mapas. É transformar o aluno em um sujeito mapeador, capaz de elaborar e ler
mapas. Também é importante o resgate da história dos mapas e seu papel
fundamental na conquista e domínio do território.
52
O desenvolvimento da habilidade de leitura de mapas é um dos grandes eixos
de introdução ao saber geográfico nos primeiros anos do Ensino Fundamental.
As dificuldades que depois surgirão, para a leitura e interpretação dos mesmos,
decorrem da não realização/efetivação destes procedimentos. O aluno deve,
primeiro, se tornar um mapeador para, depois, ser capaz de compreender o
código formal que compõe o mapa. Para alcançar este objetivo, propomos a
elaboração de maquetes, confecção de plantas baixas, exercícios de
interpretação e localização, para que o aluno entenda a construção/
composição dos mapas através do uso da legenda e da escala. De início, o
aluno não domina todos esses elementos e a escala aparece como um
problema específico. O aluno não consegue realizar as operações matemáticas
de conversão. Isto acaba induzindo-o a decorar as relações métricas que a
escala representa, sem entender o que aquilo quer dizer. Se começarmos
medindo a sala de aula, utilizando objetos concretos como barbante e cabo de
vassoura, e depois relacionarmos as medidas encontradas com objetos
menores, como pedaços de pau, fósforo ou borracha, a criança será capaz de
perceber as relações de proporção, independente da operação numérica. Este
processo é gradual e, por vezes, o professor, na ansiedade de que o aluno
aprenda, acaba atropelando o tempo de aprendizado da criança. É necessário
sinalizar ao professor que a criança muitas vezes ainda não está madura para
a execução do raciocínio matemático formal, o que não impede a compreensão
do conceito.
Inicialmente os alunos se encantam pelo estudo da História e da Geografia,
depois afirmam que ambas são disciplinas para decorar. O que acontece?
53
Percebemos que a resposta está nas estratégias e nos instrumentos que nós
passamos a utilizar. Deixamos de observar o cotidiano e supervalorizamos o
texto formal, como se o texto em si encerrasse toda a percepção da Geografia.
A partir desta constatação, procuramos resgatar outras linguagens. A presença
do lúdico, dos trabalhos de campo e do estudo das artes procura tornar o livro
um veículo de informação e descobertas prazerosas. A inclusão do manual
procura dar ao professor um embasamento teórico para o desenvolvimento dos
conteúdos e atividades. É essencial que tanto o aluno quanto o professor se
sintam atraídos pelo livro.
Enfim, elaborar material didático é um trabalho de Penélope. É um processo de
construção ininterrupto e longo, num contínuo fazer e refazer para que haja a
possibilidade do aprender e de progredir. Esperamos que o livro didático,
especificamente a coleção de nossa responsabilidade, seja uma contribuição
para o professor, dando-lhe a oportunidade de ampliar ainda mais o seu
trabalho em sala de aula.
A importância do ensino de Geografia no Ensino Fundamental e Médio
Marília Gomes de Oliveira Bacellar 4
4 Professora do Centro Universitário Augusto Motta e do Colégio Pedro II.
54
O objetivo de nossa presença neste encontro é de tentar trazer uma
contribuição ao ensino de Geografia, a partir de nossa experiência, acumulada
ao longo de muitos anos, como professora de Geografia no segundo segmento
do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior em instituições
privadas.
Porque, e para que, fazer ou estudar Geografia?
As pessoas ainda não perceberam que a Geografia faz parte de nossas vidas,
de nosso cotidiano.
Há pouco tempo, um aluno de 7a série virou-se em sala e disse:
“Professora! A senhora poderia falar um pouco sobre aquele ‘cara’ que tem um mapa na cabeça? Meu pai estava conversando com alguns amigos e ele não sabia quem era. Eu disse que iria perguntar para a minha professora que sabe tudo!”
O conteúdo que estávamos trabalhando no momento era justamente Europa e
aproveitei para falar de Gorbatchev e de sua importância política, para que o
aluno pudesse “dar aula” ao pai.
Então, ele me disse: “Isto é muito importante! Vou ganhar pontos ‘à beça’ com
meu pai, se eu lhe ensinar tudo isso sobre aquele tal ‘homem com o mapa na
cabeça’.”
Outro exemplo, para mostrar como as pessoas, indiretamente, estão fazendo
Geografia, é o interesse nos conflitos do Oriente Médio. As lutas constantes
naquela região provocam curiosidade. Onde ficam Israel, Cisjordânia,
Palestina? Quem é Yasser Arafat?
Se pensarmos nos trajetos que percorremos todos os dias, circulando pela
cidade e observando as mudanças que a paisagem sofre, estamos fazendo
Geografia; quando analisamos notícias de jornais ou acompanhamos em
55
tempo real, pela mídia, ações que estão acontecendo do outro lado do mundo,
estamos fazendo Geografia; quando saímos para trabalhar ou passear e
observamos o tempo, isso também é fazer Geografia, só que as pessoas não
percebem.
Então vejam! Para a escola, ensinar Geografia dessa forma é muito importante.
Ela não deve ignorar os conceitos espontâneos que o aluno possui, ou seja,
uma bagagem de conhecimentos adquiridos gradativamente ao longo da vida e
que não podem ser substituídos de uma hora para outra por conteúdos formais,
que para esse aluno não têm nenhum significado. Mesmo porque, o tempo de
permanência na escola é muito pequeno para que nossas “verdades
acadêmicas” tornem-se oficiais.
O papel da escola é transformar esses conceitos (geográficos) espontâneos,
principalmente no Ensino Fundamental, em conceitos científicos e habilidades,
tais como mapear o seu espaço na escola ou seu espaço de vida, incentivando
a sua transposição para o papel, com a criação de símbolos para os
“acidentes” que ele encontrar em seus trajetos e achar mais relevantes. Assim,
estará criando habilidades para, no futuro, perceber e ler legendas, interpretar
mapas etc.
Uma atividade muito utilizada para o ensino fundamental é fazer a criança
contar os componentes da turma, separando-os por sexo, idade, altura ou outro
parâmetro que o professor indicar e depois construir um gráfico bem simples e
colorido. Isso nada mais é do que a base para a leitura posterior de gráficos,
tabelas, ou seja, a construção de habilidades que serão úteis nas séries mais
avançadas.
56
Outro aspecto do ensino de Geografia a se discutir, é a interdisciplinaridade.
De um modo geral, o professor é muito solitário no trabalho que realiza em sala
de aula. Por uma série de fatores, ele tem pouca oportunidade de trocar idéias
com os colegas da sua própria disciplina e muito menos aprofundar o contato
com colegas de disciplinas diferentes, se a escola não promover e até forçar
esses encontros.
A Geografia, dentro desta perspectiva, pode se relacionar com várias
disciplinas, como, por exemplo, Ciências, no estudo dos problemas ambientais,
de saneamento, de saúde, do solo etc; com Língua Portuguesa, na leitura,
interpretação e construção dos textos; com Matemática, para a construção de
gráficos, escalas etc.
Enfatizamos sempre o cuidado, mesmo nas séries mais altas, de se partir para
a construção de habilidades e conceitos da realidade próxima ao aluno.
Quando se trabalha Brasil, por exemplo, numa 6a série, devemos iniciar a
construção do conhecimento pelo lugar onde o aluno vive e convive, analisar
seus problemas com o auxílio de outras disciplinas, para depois, então, partir
para a análise de outros espaços que ele não conhece, mas que, a partir da
base conceitual e de conteúdos apreendida, possa compreender. A partir da
observação de diferenças sociais que estão ao seu lado, aqui no Rio de
Janeiro, podemos, depois, extrapolar para outras regiões. Mais tarde, quando
precisarmos trabalhar com a regionalização do mundo, os conceitos já estarão
consolidados. Não se pode esquecer da importância da utilização de mapas
em todos os segmentos de ensino de Geografia.
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Essa visão que norteia o ensino de Geografia, mais centrada na atuação do
homem sobre o meio físico, leva muitos professores a se perguntar: onde
vamos colocar o relevo, o clima, a vegetação, a hidrografia? Lógico que os
aspectos físicos estão presentes, não mais em compartimentos estanques,
como se fazia há algum tempo, mas inseridos nas relações do homem com a
natureza, nas modificações que o homem faz no espaço para transformá-lo em
seu espaço de vida e nas conseqüências dessa ação.
Esses processos serão mais desenvolvidos no Ensino Médio, quando
passamos a trabalhar com grandes temas. Por grandes temas nos referimos,
por exemplo, aos grandes problemas rurais e urbanos, ao processo industrial,
aos problemas da energia e do transporte, às questões demográficas e suas
conseqüências, até chegarmos na regionalização do mundo em grandes blocos
econômicos, no processo de globalização e seus efeitos.
A idéia que algumas instituições de Ensino Médio têm, principalmente as
particulares, de preparar seus alunos para o vestibular, faz com que, às vezes,
aceleremos os programas, o que torna as informações muito superficiais,
servindo apenas para “passar” nas provas. Na nossa opinião, a escola de
Ensino Médio não tem essa função, mas sim a de terminalidade de um ciclo de
estudos. Isso não quer dizer que não ofereçamos ao aluno a oportunidade de
ascender a um outro nível de ensino, apesar desse processo não espelhar a
realidade brasileira em termos educacionais. Os que conseguem a
terminalidade no Ensino Médio e, com ela, um lugar no mercado de trabalho, já
deram um grande passo.
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Para concluir nossa participação, gostaríamos de falar um pouco sobre a
utilização do livro didático. Para muitos professores ele se torna o único
instrumento em sala de aula, o que é um perigo, pois algumas obras
apresentam erros conceituais, opiniões fechadas sobre determinados assuntos.
O livro didático deve ser mais um instrumento de trabalho em sala; pode e deve
ser um sintetizador de conteúdos, mas não o único. Ao aluno, deve ser
permitido expressar sua opinião sobre os temas levantados em classe. Ao
professor, cabe orientar sobre fontes de pesquisa, promover discussões e
debates, mostrar aos alunos que fazer Geografia é criar uma consciência
crítica, é estar antenado com o que está acontecendo em sua comunidade, no
Brasil e no mundo, e perceber que as ações locais vão ter repercussões
globais.
É assim que entendemos o ensino de Geografia.
O exame vestibular e suas relações com o ensino de Geografia
Ana Regina Vasconcelos Ribeiro Bastos5
5 Professora Assistente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Colégio Pedro II.
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Relembrando o que colocávamos no dia da abertura deste seminário, em que
tive a incumbência de apresentar o professor Antonio Carlos Robert de Moraes,
a motivação maior para essa série de encontros foi se repensar o planejamento
curricular no ensino da Geografia diante das reformas que estão sendo
implementadas pelo MEC no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.
Na verdade, o título do tema a mim endereçado para este ciclo de debates, se
definiu a partir da contraproposta que fiz à sugestão inicial dos colegas do CAp-
UERJ, que seria falar sobre: “o Ensino Médio, a Geografia a e o vestibular”.
Considerando que a sugestão dos colegas é mais adequada aos propósitos
deste seminário, resolvo enfrentar o desafio de retomar o tema original, até
porque avaliei que não é possível pensar em reformulação no Ensino Médio
centrado na questão do vestibular.
Sem dúvida, há muito que se discutir sobre o Ensino Médio no contexto da
reforma educacional que está sendo estabelecida a partir das Diretrizes
Curriculares Nacionais e dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Médio. Dessa forma, partindo de uma escala mais abrangente, dividirei minha
exposição em três partes. Em primeiro lugar, farei considerações sobre a
reformulação do Ensino Médio, apontando para as questões de fundo que
precisam ser enfrentadas para se pensar em reformulação curricular. Num
segundo momento, tentarei abordar criticamente como a Geografia é
apresentada nesses documentos oficiais. Em terceiro lugar, então, eu tratarei
do novo modelo do vestibular da UERJ e como a Universidade está
enfrentando estas transformações, destacando, principalmente, o que concerne
à Geografia.
60
Com relação à reforma do Ensino Médio, entendo que a palavra de ordem é
“cuidado”, muito cuidado, todo cuidado é pouco! Vivencia-se uma reforma de
ensino que apresenta um discurso extremamente sedutor do ponto de vista
pedagógico. Este, vem sendo assimilado por pessoas, colegas nossos,
bastante progressistas que, inclusive, no passado, sempre foram contestadores
de uma ordem política que leva à exclusão. Na verdade, isto se dá porque o
governo tem o apoio dos meios de comunicação; esse discurso penetra no
senso comum e sem um olhar atento para o que está por trás dele, podemos
embarcar numa “canoa furada” no encaminhamento de uma proposta
curricular, obedecendo às Diretrizes e aos Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio.
Não vou optar por uma discussão filosófica a respeito desses documentos
porque não me sinto preparada para tal. No entanto, tenho uma intuição de que
os textos que constituem as bases legais desses documentos, especialmente
os escritos no volume 1 dos PCNs, são objeto de análise extremamente fértil
para uma discussão filosófica, sociológica e psicológica, na medida que eles
estão a serviço da adequação social do indivíduo diante da inquietação
provocada por um momento social marcado pela insegurança, pela
instabilidade e pela própria exclusão.
Tratando dos aspectos mais objetivos dessa reforma, é preciso entender que
ela se dá num contexto em que há, na América Latina, uma homogeneidade no
discurso sobre o tema, ligado à urgência de reformas educacionais orientadas
para a melhoria de qualidade dos sistemas de ensino. Há uniformidade ainda
nos eixos norteadores. Esses eixos são a descentralização, a qualidade, a
61
flexibilização, a modernização e as novas tecnologias. Os mesmos são
tratados dentro de uma perspectiva em que seriam a base de um poder
redentor no campo social, no qual a Educação sozinha, orientada para atender
ao modelo produtivo atual, iria levar à superação de todos os problemas
nacionais dos países da América Latina.
É preciso refletir sobre em que circunstâncias políticas e sociais esse discurso
aparece. Como foi construído o consenso sobre a urgência das reformas
educacionais? Quais são os atores sociais dessas reformas que têm tanta
uniformidade?
O argumento dos que estão à frente da construção dessa reforma é bastante
sedutor; o argumento é a qualidade, justificando o discurso.
Embora o senso comum associe sempre a palavra reforma à situação de
avanço, de progresso, é preciso entendê-la através de uma associação às
relações de poder. A educação não é uma prática social autônoma e essa
reforma vem servindo para legitimar um determinado projeto político social, que
se tornou hegemônico a partir de um dado momento histórico.
No caso da América Latina, foram realizados por organismos internacionais,
especialmente o Banco Mundial, e por técnicos locais, diagnósticos sobre os
sistemas educacionais. Inspirados em enfoques economicistas, esses
diagnósticos apontaram para a necessidade de reformas educacionais que
viessem favorecer a inserção desses países na lógica da competitividade de
um mundo globalizado. Na perspectiva neoliberal, observou-se uma crise de
eficiência, uma crise de eficácia e uma crise de produtividade no campo
educacional, manifestadas por uma série de variáveis, tais como: os sistemas
62
escolares são pesados e ineficazes, as despesas são excessivas, as práticas
pedagógicas são desatualizadas, há uma qualidade insatisfatória –
desvinculada das exigências postas pela transformação produtiva – e os
recursos didáticos são anacrônicos em face do avanço das novas tecnologias.
Chama a atenção, o enfoque economicista comum à reforma implementada
aqui pelo MEC e às reformas de outros países da América Latina, que vão
subordiná-las à lógica produtiva. Isto está bastante comprovado pelos
documentos do PREAL – Programa de Reforma Educacional para a
América Latina, que propõem um currículo moderno, sintonizado com as
necessidades do mundo do trabalho, que vem a exigir a formação de
indivíduos mais flexíveis, com mais autonomia, com maior capacidade de
comunicação. É evidente que esses atributos devem ser construídos nos
educandos, mas não podem estar associados a uma lógica empresarial,
definindo as competências a serem alcançadas no ensino de um país. A
Educação é mais do que isso.
Quanto aos atores sociais dessa reforma, não tenho dúvida que os grandes
protagonistas são os organismos internacionais. O Banco Mundial vem
assumindo um papel importantíssimo, com uma proposta ideológica orgânica,
no sentido de oferecer estratégias para a melhoria da qualidade do sistema
educacional. Prestando assistência técnica, o referido Banco vem operando
como um banco de idéias para essas políticas uniformes, investindo em
determinados aspectos que são até procedentes, como o aumento do tempo
de instrução, flexibilização dos horários, oferta de livros didáticos, capacitação
docente, mas, ao mesmo tempo, vem desestimulando os investimentos em
63
laboratórios, aumento dos salários dos professores, quantidade de alunos por
turma etc.
Há uma proposta clara para os países da América Latina, com algum processo
de modernização produtiva. As propostas embutidas nessas pesquisas,
seguem orientações que vão nortear as reformas educacionais desses países,
com indicação para o sistema nacional de avaliação e para reformas
curriculares. Neste ponto, considero que devemos tomar muito cuidado, porque
podemos correr o risco de aproximação com o trivial, com o superficial, ao
implementar essa proposta de reformulação como uma camisa de força para
amarrar o nosso planejamento curricular. Além disso, há uma proposta de
centralização que é descentralizadora, uma estratégia que evidentemente tem
uma lógica paradoxal: ao mesmo tempo em que promove a municipalização e
a estadualização da educação básica vai promover uma centralização através
do sistema nacional de avaliação e através de um currículo nacional único,
norteado aí por algumas competências em que o norte é a preocupação com
as novas tecnologias.
Vejamos como os PCNs do Ensino Médio confirmam que a reforma atual se dá
nas circunstâncias retratadas acima. Escolhi alguns trechos do documento para
mostrar e eles foram selecionados de forma aleatória. A minha impressão, ao
ler esses textos, é de que em qualquer página que se abra, há como encontrar
algo para confirmar as colocações que fiz.
Logo na apresentação, no primeiro parágrafo do volume 1 (Brasil, 1998), está o
seguinte:
“a consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudanças na produção de bens, serviços e conhecimentos
64
exigem que a escola possibilite aos alunos integrarem-se ao mundo contemporâneo nas dimensões fundamentais da cidadania e do trabalho.” (BRASIL, 1998)
Então, logo no primeiro parágrafo, há evidência de preparação para o trabalho,
há referência às novas tecnologias, à produção de bens e serviços etc.
Na página 14, um pouco mais adiante, está escrito o seguinte:
“a formação do aluno deve ter como alvo principal à aquisição de conhecimentos, a preparação científica e a capacidade de utilizar as diferentes tecnologias relativas às áreas de atuação.” (BRASIL, 1998: 14)
Mais a seguir, na página 102, no relatório que acompanha a resolução da
Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, está escrito
o seguinte: “o esforço de reforma teve como forte motivação inicial às
mudanças econômicas e tecnológicas”.
Observando esses documentos, podemos concluir o seguinte: o mesmo
governo que insiste na inserção desenfreada do país na economia globalizada,
reconhece a instabilidade provocada por tal opção e, ao mesmo tempo, propõe
uma reforma educacional que servirá para a adaptação do homem àquilo que é
a opção firmada.
Para nós de Geografia, por exemplo, é muito interessante observar o que está
na página 93, quando o texto faz referência ao fenômeno que eles chamam de
“a onda dos adolescentes”:
"A expectativa de crescimento do ensino médio é ainda reforçada pelo fenômeno chamado a onda de adolescentes, identificado em recentes estudos demográficos (...). Finalmente, como mostra o mencionado estudo, a onda de adolescentes acontece num momento de escassas oportunidades de trabalho e crescente competitividade pelos postos existentes. Na verdade, os dois fenômenos somados – escassez de emprego e aumento geracional de jovens – respondem pela expressiva diminuição (...) da porcentagem dos que já fazem parte da população economicamente ativa." (BRASIL, 1998: 93)
65
Isto não é novidade nenhuma para nós, pois se trata de um fenômeno
demográfico: com a queda da taxa de natalidade, vai se dando uma mudança
na estrutura etária, que apontará para um maior contingente de pessoas numa
faixa de idade que está a exigir sua inserção no mercado de trabalho.
É impressionante como é possível perceber no texto que o governo reconhece
a exclusão. Propõe um messianismo pedagógico através da reforma
educacional e não propõe, por outro lado, uma política de geração de
empregos para atender às necessidades de absorção pelo mercado de
trabalho dessa população que precisa de trabalho, para vislumbrar melhoria
nas suas condições sociais.
Quanto às três áreas do conhecimento estabelecidas pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais do Ensino Médio (área de Linguagens, códigos e suas
tecnologias; área das Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias;
área das Ciências Humanas e suas tecnologias), somente gostaria de salientar
que, na nomeação delas, as palavras que finalizam cada uma são: “e suas
tecnologias”. Deixaremos isto para daqui a pouco, quando falaremos da nossa
área, das Ciências Humanas.
Para finalizar essa parte, queria enfatizar novamente o cuidado que devemos
ter na reformulação curricular, tendo como guia os “Parâmetros Curriculares”.
Na verdade, a expressão já tem uma conotação de medida: para – ao lado de;
metro – medida.
Não podemos cair na armadilha de um pensamento único que venha reforçar
um processo de modernização conservadora.
66
No meu entendimento, uma reforma educacional não poderia ter como
pressuposto a melhoria da qualidade de ensino, com o objetivo claro e único de
formar bons produtores e bons consumidores; quer dizer, um objetivo ligado à
lógica de mercado. Na minha perspectiva, a qualidade não pode estar reduzida
a esses aspectos técnicos.
Considero que as reformas educacionais adequadas deveriam, em primeiro
lugar, ser apoiadas nas pessoas; quer dizer, os sujeitos da comunidade
educacional que tivessem a preocupação com a valorização da pesquisa, da
produção teórica, sensibilidade para a qualidade social e cultural das escolas,
que vislumbrassem uma luta pela defesa do ensino público; isto sim é que
deveria estar norteando uma reforma educacional em geral. Na minha
perspectiva, haveria necessidade de se respeitar os processos históricos
diferenciados e a pluralidade cultural. Entendo que se deveria rejeitar a
subordinação do sistema educacional ao processo produtivo e à formação de
consumidores competentes. Haveria necessidade de se propor uma reforma
educacional em que a formação do indivíduo crítico e criativo não servisse
apenas para a adaptação à situação estabelecida, mas que fosse formado para
ser gestor da transformação, que pudesse reinventar a sociedade. E
finalmente, seria necessário enfatizar a defesa da Educação pública como
direito de todos. Entendo que um processo pedagógico coerente não pode
deixar de estabelecer a relação entre Educação e igualdade de oportunidades,
Educação e Justiça, Educação e solidariedade, Educação e diferença, também.
Quanto à Geografia nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, é
preciso dizer que essa reforma do MEC, sem dúvida, tem um caráter de
67
flexibilidade, e isto não é nenhuma novidade porque a palavra é norteadora do
novo modelo produtivo.
Mas, a partir disso, é possível encontrar algumas brechas para termos saídas
na reformulação curricular na nossa disciplina.
Entendo, sem dúvida, que a reforma, na verdade, é tudo e é nada, por permitir
essa flexibilidade. Nela, apenas duas coisas estão fechadas: uma, é que as
disciplinas estejam agrupadas nas três áreas do conhecimento; outra, que se
respeite, na terminalidade do ensino, os princípios da interdisciplinaridade e de
contextualização. Isto está colocado, posto para as escolas que têm de fazê-lo.
O resto, creio, devemos fazer “ouvido de mercador”, porque se adotarmos a
postura de realizar a reformulação curricular obedecendo a esses Parâmetros,
de forma cega e ao pé da letra, nós teremos uma situação de desmonte do
ensino neste país.
Com relação às palavras finais de cada uma das áreas, quando entrei em
contato com a nossa – Ciências Humanas e suas tecnologias – de imediato,
me pairou uma dúvida crucial: o que são “Ciências Humanas e suas
tecnologias”? Ficou o seguinte: isto está pressupondo que as Ciências
Humanas têm as suas próprias tecnologias? Ou este título serve para que se
utilize as Ciências Humanas como um instrumento da decodificação da
realidade da Revolução Técnico-científica e que venha propor uma adequação
do indivíduo a esta realidade?
Nos documentos, as duas situações são levadas em conta. Na página 164 do
volume 1, está escrito assim:
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“...não se trata apenas de apreciar ou dar significado ao uso da tecnologia, mas de conectar os inúmeros conhecimentos e suas aplicações tecnológicas." (BRASIL, 1998: 164)
Mais adiante, diz o seguinte:
“dessa maneira, a presença da tecnologia no ensino médio remete diretamente às atividades relacionadas à aplicação dos conhecimentos e habilidades constituídos ao longo da educação básica, dando expressão concreta à preparação para o trabalho, prevista na LDB." (BRASIL, 1998: 164)
Podemos observar que a valorização tecnológica está presente no elenco das
competências gerais da área das Ciências Humanas. Li atentamente essas
competências e contei: de nove competências cinco fazem referência às novas
tecnologias e ao modelo produtivo. Vale lembrar que o discurso é que temos de
fazer um ensino em cima das competências. Também acho, devemos trabalhar
em cima de competências, mas não essas.
Há um entendimento das tecnologias acima, sob a ótica da organização
produtiva, e, ao mesmo tempo, concebe-se a idéia das tecnologias próprias
das Ciências Humanas, que vão envolver os processos de gestão e seleção e
tratamento das informações, ou tecnologias desenvolvidas a partir das Ciências
Humanas.
Consideram, nos documentos, que as Ciências Humanas têm importante papel
na compreensão do significado das tecnologias, no sentido do impacto que
elas podem promover na organização social: nisto estamos concordando.
Ressaltam a importância das Ciências Humanas para o entendimento de que
as modernas estratégias de planejamento e ação coletiva vêem requerendo,
cada vez mais, o emprego de tecnologias de comunicação e informação. Isto é
fato, mas nós temos que ter cuidado com a medida disso numa organização
curricular.
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É muito interessante observar o que se diz no volume 4, página 36,:
"No aspecto social a difusão no domínio dessas tecnologias (...) propicia aos indivíduos meios para amenizarem as conseqüências negativas que o próprio processo de Educação provoca.” (BRASIL, 1998: 36)
E aí eu me pergunto: como é que o governo tem coragem de propor uma
reforma educacional para amenizar conseqüências negativas de um processo
de transformação que é adoçado e incentivado por ele próprio?
Quanto ao aspecto da interdisciplinaridade e da contextualização, vejamos o
que está nesses documentos. Na página 44 do volume 1 (Brasil, 1998), está
assim:
"a tendência atual, em todos os níveis de ensino, é analisar a realidade segmentada, sem desenvolver a compreensão dos múltiplos conhecimentos que se interpenetram e conformam determinados fenômenos. Para esta visão segmentada contribui o enfoque meramente disciplinar que na nova proposta de reforma curricular pretendemos pela perspectiva interdisciplinar e pela contextualização dos conhecimentos." (BRASIL, 1998: 44)
Aí, estamos diante do aspecto mais sedutor dessa reforma; o mais sedutor e o
mais perigoso, por conta do frisson que as escolas estão na busca da
interdisciplinaridade. É evidente que não podemos ser contra a
interdisciplinaridade. Ela é salutar, mas não pode ser vista como um ponto de
partida: é um ponto de chegada. Somente com o aprofundamento no campo
disciplinar é possível chegar à interdisciplinaridade. Não podemos dispensar a
observação de que a realidade é decodificada através do olhar interdisciplinar,
mas sem o aprofundamento no campo disciplinar, não se chega lá. Na minha
perspectiva, entendo que é necessário, sim, ter sensibilidade para o diálogo
entre as disciplinas. No entanto, quando uma disciplina, na escola, é o discurso
70
de uma ciência, não se pode perder de vista os limites do seu objeto, sob o
risco de cair no trivial, no superficial.
Passamos, no caso da Geografia, anos a fio, discutindo e tentando fazer o
convencimento de alguns professores mais conservadores de que teríamos
que fazer um trabalho apoiado na clareza do objeto, que teríamos que fazer
estudos sobre a Teoria da Geografia para construir um bom ensino.
Deveríamos fazer uma opção metodológica diante do nosso objeto definido e
estávamos sempre com uma preocupação marcada no sentido de desenvolver
a postura crítica.
Esta posição, para mim, não é fragmentadora, de jeito algum, ela é a base da
construção do conhecimento e é a base da apreensão da totalidade. E, neste
processo, a realidade vai se mostrar interdisciplinar, na medida em que o
diálogo seja salutar e permanente.
Vejamos, agora, como especificamente a Geografia aparece nos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Médio.
O texto se inicia com uma discussão sobre a, já antiga, crise da Geografia,
relacionada à dicotomia entre “ciência da sociedade" e "ciência dos lugares", e
faz uma referência à renovação da Geografia a partir dos anos 70, levantando,
aí, que essa discussão ficou no âmbito da Academia, que houve um atraso na
assimilação disso pelas escolas de Ensino Fundamental e Médio e que havia
uma dificuldade de inserção da Geografia Crítica nas escolas.
Neste aspecto, o texto vai indo muito bem até que ele faz uma confusão
relacionada à história do pensamento geográfico. Por intenção, omissão, ou
interferência dos técnicos do MEC, há uma confusão na contextualização da
71
Geografia Crítica, tornando ausente da discussão teórica a sua característica
fundamental, que é a perspectiva da denúncia. Na verdade, a Geografia Crítica
é vista, no documento, como uma forma de pensar a ciência que abandona a
dimensão do descritivo e se afirma como uma Ciência Social. Para o
documento, a Geografia Crítica é só isso. A sensação que tenho, lendo o texto,
é que houve convites a pessoas da nossa comunidade geográfica no sentido
de elaborá-lo, mas que se constituíram em consultoria e não em autoria, dando
a impressão de que houve interferências no texto original entregue.
Revelando essa oposição entre Geografia Crítica e Geografia Tradicional, há
uma opção pela Geografia Crítica. Há, no entanto, um encaminhamento para o
abandono, na formação do educando, da visão simplesmente apoiada na
memorização e na descrição, com informações sobrepostas de relevo, clima,
vegetação, população, agricultura, indústria etc, contrastando com uma
proposta de superação do modelo de "denúncia". Como ser crítico sem
denúncia, se isso está no contexto dessa corrente de pensamento geográfico?
Sobre os Parâmetros do Ensino Fundamental, sei que há uma situação de
rejeição a uma opção doutrinária pela via marxista. Mas a Geografia Crítica não
é somente doutrinada pela via marxista; a denúncia está embutida nesta
corrente de pensamento e ela não pode ser abandonada.
A proposta indica que o trabalho de Geografia no Ensino Médio deve estar
associado à construção de competências que permitam a análise do real e
ampliação das possibilidades de conhecimento estruturado e mediado pela
escola, que conduza à autonomia necessária para o cidadão do próximo
milênio. Aí eu pergunto: que autonomia? Autonomia para quê? Autonomia para
72
a adaptação ou autonomia para serem cidadãos que venham estabelecer uma
interferência na transformação? Não me parece que a transformação esteja
evidenciada no texto dos Parâmetros.
Cabe destacar o que aparece na página 62 do volume 4:
"entendemos que ao se identificar com o seu lugar no mundo, ou seja, o espaço de sua vida cotidiana, o aluno pode estabelecer comparações, perceber impasses, contradições e desafios do nível local ao global." (BRASIL, 1998: 62)
Será que é só para perceber os impasses? Nós não temos uma função de
motivar a inquietação para transformar?
Com relação a esse texto específico da Geografia, devo fazer um destaque
louvável no que diz respeito ao tratamento da interdisciplinaridade. No texto,
está colocada a ênfase à interatividade com outras disciplinas, sem que se
perca a especificidade e identidade. Mas isto está claro no texto da Geografia;
não está claro, para mim, em outros momentos desses textos.
A proposta da Geografia, para o Ensino Médio, ressalta que a construção do
ensino da disciplina pressupõe a escolha de um corpo conceitual que venha
atender aos objetivos anteriormente traçados. Agora, esses objetivos são
anteriormente traçados pelo MEC. Há sim, um rol de conceitos-chave, bem
colocados, inclusive indicando que não se utilize esses conceitos como um
receituário nos programas, e sim que eles venham a ser elementos
norteadores da organização curricular. Mas não está clara, para mim, a opção
metodológica dessa proposta. Na verdade, pelo que eu li, em relação aos
Parâmetros do segundo segmento do Ensino Fundamental, há uma crítica ao
ecletismo metodológico proposto. Mas, nesses Parâmetros para o Ensino
73
Médio, eu não percebo ecletismo; simplesmente, não vejo a proposta
metodológica.
Na grade das competências e habilidades a serem desenvolvidas pela
Geografia, observa-se que qualquer conteúdo programático pode servir ao
atendimento do que propõem os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio,
desde que sejam valorizadas: a leitura e a interpretação de mapas, gráficos e
tabelas; o reconhecimento das escalas cartográficas e geográficas; a
observação dos processos de transformação dos territórios, ressaltando-se a
importância das novas tecnologias e o estabelecimento das redes sociais; a
análise das questões de degradação e preservação ambiental, dentro da
perspectiva interdisciplinar, identificando e avaliando o impacto das
transformações naturais, sociais, econômicas e culturais.
Resumindo, há flexibilidade; mas, os Parâmetros, embora com propostas, às
vezes, pertinentes, não contemplam, a meu ver, as possibilidades de
construção do conhecimento geográfico no Ensino Médio, mesmo que elas
também tenham que estar.
Esse caráter de flexibilidade, na verdade, é o grande escape dessa
reformulação. Ela permite uma mudança radical, mas conservadora. Fazer uma
leitura radical disso, levaria a uma subordinação do ensino da Geografia a ter,
como parâmetro, uma lógica comprometida com interesses do modelo
produtivo. Fazendo uma leitura com vista grossa, há saídas, desde que se
venha refutar a proposta de abandonar a perspectiva da transformação no
trabalho com o Ensino Médio.
74
Com relação ao vestibular da UERJ, diante das transformações impostas pela
reforma do MEC, cabe fazer algumas considerações iniciais.
Na verdade, a equipe que compõe o DSEA – Departamento de Seleção
Acadêmica que planeja, coordena e executa o vestibular da UERJ – está junta
desde o vestibular 97, sob a direção do professor Paulo Fábio Salgueiro, que
trouxe, ao assumir, o propósito firmado de fazer alterações no modelo do
vestibular. Isto aconteceu justamente no momento em que estavam se dando
as transformações ligadas à reforma do MEC. Esse modelo novo foi construído
com um diálogo permanente com as escolas do Ensino Médio do Rio de
Janeiro, com uma preocupação na melhoria da qualidade do alunado que
chega à Universidade e com a busca permanente de formas de acesso que
fossem mais democráticas.
Havia necessidade de interagir com as escolas para que se pudesse avaliar
essas políticas educacionais que o MEC estava colocando, ajustar os pontos
essenciais de cobrança e avaliar o modelo que estava sendo construído.
De imediato, diante do dispositivo da LDB que confere autonomia didático-
científica às universidades para escolher seu processo seletivo, enfrenta-se a
questão, mediada pelo poder da mídia, de que o vestibular pode acabar.
Evidentemente que o vestibular não vai acabar, pelo menos para as
Universidades de maior prestígio social, onde se observa um descompasso
entre o número de candidatos e o número de vagas oferecidas pelo poder
público.
No caso da UERJ, este ano, no Exame de Qualificação, primeira etapa do
vestibular, houve mais de 130 mil pessoas inscritas, para um conjunto de 4.457
75
vagas. Quer dizer, é evidente que temos reconhecimento do caráter de
exclusão que este evento encerra e que não se tem condições de resolver.
Podemos lutar, enquanto cidadãos, no sentido de buscar junto ao poder
público, que este venha a oferecer maior número de vagas para as
Universidades públicas, mas é sabido que o trabalho desenvolvido nos
Departamentos que organizam os vestibulares não vai resolver essa questão
social.
Mas, de qualquer maneira, isso não pode nos inibir no sentido de buscar
formas de acesso que, pelo menos, promovam menor tensão e que venham
permitir maior leveza em um evento que, pelo seu caráter de exclusão, tem um
peso tão grande.
Começou-se a pensar em formas alternativas, entendendo que era preciso
avaliar o modelo até então vigente. O antigo modelo causava desconforto em
alguns aspectos. O primeiro deles, era o vestibular acontecer num único
momento; quer dizer, num único momento se definia quem entrava e quem não
entrava na Universidade. Além disso, havia um outro impasse, que era a
passagem da 1ª para a 2ª fase que se dava, através de um critério
administrativo, levando em conta a relação candidato/vaga por carreira. Então,
todo o trabalho que vinha se desenvolvendo na elaboração das provas ficava
parcialmente comprometido, na medida em que o parâmetro era administrativo
e não pedagógico.
Sem dúvida, o DSEA, que é o Departamento que realiza o vestibular da UERJ,
faz a interface entre a Universidade e o Ensino Médio e não pode deixar de
considerar as políticas educacionais que o MEC vem implementando. O
76
modelo foi construído levando em conta que, por mais que se possa ter críticas
de fundo, ou críticas sobre determinados aspectos dessa reforma, e como
vocês viram, eu, particularmente, tenho várias, é obrigação do Departamento
respeitá-la, aproveitando o seu caráter de flexibilidade, visto que as Diretrizes
para o Ensino Médio foram instituídas por uma resolução da Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. A construção do modelo
respeita o que está estabelecido pela resolução do MEC, mas aponta para a
possibilidade de se fazer uma leitura não literal dos Parâmetros.
Assim, neste novo modelo de vestibular, em sua primeira fase, que nós
denominamos de Exame de Qualificação, considerou-se o que está fechado
nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio: o agrupamento das
disciplinas nas três áreas do conhecimento; o respeito aos princípios da
interdisciplinaridade e da contextualização. A interdisciplinaridade é vista como
o final do processo, como ponto de chegada através do diálogo permanente
entre as disciplinas da área. A contextualização já era um princípio que vinha
norteando a elaboração das provas, antes mesmo da mudança do modelo,
porque sempre houve a preocupação da direção do Departamento em
encaminhar, como orientação às bancas elaboradoras de prova, o
estabelecimento de pontes entre o aprendido e as situações do real. Inclusive,
sempre chamamos essa prova, mesmo quando ainda não tinha acontecido a
mudança do modelo, de prova do direito do cidadão, no sentido de que sempre
se entendeu que todo o indivíduo que terminasse o Ensino Médio deveria ter o
direito, e não o dever, de ser bem sucedido nesta fase.
77
Neste modelo, o Exame de Qualificação cria duas oportunidades, durante o
ano, para os candidatos. Em cada uma, esses candidatos são alocados em
quatro faixas de desempenho e o que estará valendo, é o melhor desempenho
dele numa ou noutra das chances dessa primeira etapa.
Há o encaminhamento, nesta cobrança dos conhecimentos nas três áreas
estabelecidas pelo MEC, para a aferição de determinadas habilidades e
competências. Só que essas competências aparecem de uma forma diferente
do que está nos Parâmetros. A coordenadora acadêmica do DSEA, a
professora Elisabeth Murad, foi muito feliz no sentido de elaborar uma grade de
competências estabelecidas em quatro categorias: observar, interpretar,
analisar e avaliar. Na categoria observar, as bancas são orientadas a fazer
questões que venham estabelecer o cruzamento entre os conteúdos propostos
para o Exame de Qualificação – que não são todos os conteúdos do Ensino
Médio, e sim, uma fração dos mesmos – no sentido de identificar, apontar etc.
Na categoria interpretar, se busca o cruzamento daqueles conteúdos para o
exame de qualificação, para aferir competências e habilidades de descrever,
discriminar, compor, explicar e classificar. Na categoria analisar, se faz a
proposta do cruzamento dos conteúdos, para aferir a habilidade de transferir
conhecimentos e levantar hipóteses. E na categoria avaliar, o cruzamento
daqueles conteúdos para aferir habilidades de crítica com base em critérios
internos e externos.
Com relação a este exame, no momento, a Geografia faz parte da área das
Ciências Humanas junto com a disciplina de História. Está se pensando na
inclusão de Filosofia e Sociologia. Estas disciplinas, que estão juntas no
78
momento, se prestam de forma exemplar à interdisciplinaridade. Há uma
convivência acadêmica, já de longa data, com relação à aproximação dessas
Ciências, havendo, também, uma convivência bastante próxima dos
professores da área das Ciências Humanas.
Na perspectiva de que a sociedade seja vista dentro da sua organização ao
longo do tempo e da sua expressão espacial, há grandes possibilidades para a
elaboração de programas e questões interdisciplinares.
Com relação à contextualização, se entende que há uma facilidade para
provocar o aluno a estabelecer a ponte entre o aprendido e as situações do
cotidiano.
O programa do exame de qualificação se apresentou com uma orientação
geral, com uma proposta de conteúdos básicos interdisciplinares e com uma
parte para os aprofundamentos disciplinares, no caso dessa área, da Geografia
e da História.
Após o exame, menos de um mês atrás [setembro de 2000], o DSEA promoveu
um grande seminário de avaliação do Exame de Qualificação do vestibular da
UERJ, onde foram convidados representantes de todas as escolas do
município do Rio de Janeiro. Em momentos diferenciados, foi feita a avaliação
deste modelo novo, nesta primeira fase: primeiro, a avaliação de sua
estruturação e, depois, um momento de avaliação para cada uma das áreas. A
direção do Departamento convidou professores da UERJ para avaliarem a área
que lhes competia. No caso da área das Ciências Humanas foram convidados
a professora Lúcia Bastos, representando a História, e o professor Helion
Póvoa, representando a Geografia.
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Tentarei pontuar alguns aspectos levantados somente em relação à Geografia.
Com relação à orientação geral, foi colocado pelo professor Helion, que a
interdisciplinaridade não deve se dar apenas através dos conteúdos, que a
integração se dá através do objeto tratado na dimensão temporal e espacial.
Com relação aos conteúdos básicos interdisciplinares, do programa do Exame
de Qualificação, houve algumas críticas do professor. Quando se está tratando
do processo de globalização, faltaria uma periodização mais clara, para servir
de balizamento para os professores e para os alunos. Quanto à formação
espacial, territorial e regional questionou-se a restrição ao Século XIX,
levantando a omissão do programa em relação ao Brasil Colônia. Quanto à
questão da relação natureza-sociedade se enfatizou que a natureza só é
tratada na dimensão ambiental, embora tenha se reconhecido que a opção
facilita a interdisciplinaridade.
Em relação ao aprofundamento disciplinar, foi levantado que há uma ausência
da Geografia Física, também se reconhecendo que, isto deve ter acontecido,
para facilitar a elaboração de questões de caráter interdisciplinar. O professor
aponta para o fato de que a dinâmica da mobilidade da força de trabalho é
uma expressão que não cobre todos os processos relativos à Geografia, às
migrações e que os processos de crescimento da população não se encontram
contemplados no programa. Salientou o professor que houve uma preocupação
marcada com a atualização na elaboração do programa.
Em relação às provas, foi colocado que algumas omissões do programa vão
estabelecer alguns limites na formulação das questões, mas que as provas, no
geral, foram bem elaboradas e houve o uso criativo de materiais alternativos –
80
charges, ilustrações de época, músicas – e que esses materiais foram vistos
como fontes de informação e discurso sobre as sociedades em vários
contextos históricos e geográficos. Valorizou-se ainda a aferição da
competência de leitura – através das categorias interpretar, analisar e criticar –
e o destaque para os temas da atualidade. Considerou o professor que as
provas foram felizes na busca da interdisciplinaridade, não se limitando ao
conteúdo onde há a exploração rica dos recursos e, o que eu gostei mais, foi
colocado que está patente o posicionamento crítico frente às posições e
discursos pouco generosos do ponto de vista social; quer dizer, houve uma
preocupação com a construção da cidadania.
Com relação à segunda fase deste novo modelo – Exame Discursivo – a
Geografia aparece como uma disciplina para algumas carreiras, porque a
proposta, para esta etapa, é que todos os candidatos façam prova de Língua
Portuguesa Instrumental com Redação e mais três disciplinas específicas. Os
candidatos que fazem prova discursiva de Geografia, são submetidos a uma
cobrança com maior aprofundamento de conteúdo, devendo demonstrar
capacidade maior de organização das idéias, de estabelecimento de relações,
de interpretação dos fenômenos e dos processos, no campo da disciplina.
Para finalizar, entendo que, com todos esses problemas levantados, a
experiência nova do vestibular da UERJ pode apontar para a perspectiva de
que é possível fazer uma mudança, sem se apoiar nos elementos norteadores
da reforma que venham causar um esquema de “camisa de força”, por conta
do maior mérito desta reforma: sua flexibilidade.
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No caso do encaminhamento de uma reformulação curricular, a minha proposta
é que se venha a levar em conta que a Geografia, transformada em disciplina
escolar, deve contribuir para a formação do educando, no sentido de que ele
seja capaz de resistir e intervir na sociedade da qual é participante.
Bibliografia
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História, Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, ensino de 1ª à 4ª séries, 1997.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, ensino de 5ª à 8ª séries, 1998.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio: Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica – MEC/SEMT, 1999.
82