anais do ciclo de debates e palestras sobre reformulação curricular e ensino de geografia

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira Departamento de Ciências Humanas e Integração Social Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia Organização: Cesar Alvarez Campos de Oliveira Miguel Tavares Mathias Rejane Cristina de Araújo Rodrigues Ronaldo Goulart Duarte Rio de Janeiro 1

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Page 1: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira

Departamento de Ciências Humanas e Integração Social

Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre

Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Organização:

Cesar Alvarez Campos de Oliveira

Miguel Tavares Mathias

Rejane Cristina de Araújo Rodrigues

Ronaldo Goulart Duarte

Rio de Janeiro

Departamento de Ciências Humanas e Integração Social / CAp-UERJ

NAPE/DEPEXT/SR3

UERJ

2002

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Page 2: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Sumário

Apresentação ................................................................................................... 04

A contribuição social do ensino de Geografia .................................................. 08

Antonio Carlos Robert Moraes

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia: o ecletismo a serviço da

alienação humana ............................................................................................ 27

Marcos Antônio Campos Couto

O livro didático e a construção do conhecimento no ensino de Geografia nas

séries iniciais do Ensino Fundamental ............................................................. 52

Irene de Barcelos Alves

A importância do ensino da Geografia no Ensino Fundamental e Médio ........ 56

Marília Gomes de Oliveira Bacellar

O exame vestibular e suas relações com o ensino de Geografia .................... 61

Ana Regina Vasconcelos Ribeiro Bastos

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Page 3: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Apresentação

A educação no Brasil passa por um grande movimento de reestruturação. Há

inúmeras demandas de ordem política, econômica e social, que impelem ações

de reflexão e reestruturação, nem sempre com objetivos e valores

convergentes. Todavia, este processo afeta a escola, desde sua estrutura

organizacional e administrativa, até as propostas curriculares e práticas

pedagógicas das diferentes disciplinas, incluindo, também, os preceitos da

transdisciplinaridade. Frente a esse quadro, torna-se imperativo uma tomada

de posição, definindo que escola, que ensino e que sociedade queremos.

Diferentes governos vêem-se pressionados no sentido de oferecer educação

formal a parcelas cada vez mais amplas da sociedade. Há desde interesses

pragmáticos de renovação e qualificação de mão-de-obra, às reivindicações

por cidadania ou por ressocialização de jovens marginalizados. Generaliza-se o

conceito de inclusão que, para além da inserção dos indivíduos portadores de

necessidades educativas especiais, propõe uma estrutura educacional

abrangente, onde todas as diferenças - sociais, étnicas, culturais - se somem

na construção de espaços coletivos mais democráticos, pluralistas e solidários.

Em contraponto, o cotidiano escolar e sua realidade nos desafiam:

desinteresse, evasão escolar, relações de ensino-aprendizagem tradicionais

que não encontram nos alunos e suas famílias os elementos de apoio que no

passado os tornavam satisfatórios, pelo menos para certos grupos sociais.

Entre esses elementos, assumem fundamental importância o valor dado à

educação e aos próprios professores.

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Page 4: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

A agravar o quadro, a sociedade atual cada vez mais se estrutura com base na

massificação do consumo e dos valores do capital – individualismo,

competitividade, acumulação (de bens e poder). Soma-se a aceleração dos

processos produtivos, substituindo trabalhadores, valores e padrões culturais,

numa escala em que o tecido social não dispõe mais de tempo para assimilar e

questionar. Cria-se uma constante tensão junto aos jovens: para que serve a

escola? E também para os professores: o que, por que e como ensinar?

Perguntamo-nos então: é possível construir uma escola capaz de enfrentar tais

desafios? O que nos parece premente, é a necessidade de construir uma

escola que, tanto em termos filosóficos, quanto acadêmicos e metodológicos,

apresente uma proposta alternativa aos padrões tradicionais de ensino –

reprodução, acúmulo de dados/informações – e às demandas imediatistas e

pragmáticas do sistema econômico vigente. Todavia, como construí-la?

Para a maioria dos professores esse movimento de mudança ainda é um salto

no escuro. Frente a este pressuposto e às nossas próprias demandas por

repensarmos nossos valores e práticas, é que nasceu a proposta de um Ciclo

de Palestras focado no ensino e na estrutura curricular da Geografia.

Deseja-se a mudança, precisa-se da mudança, mas, enquanto professores,

sabemos que isso se dará de forma contínua, dialética, processual. Todavia,

urge criar espaços de reflexão e troca, já que essa transformação só será

efetiva quando se tornar coletiva.

Um Colégio de Aplicação, por sua vez, tem funções específicas, caras frente à

situação apresentada. Por um lado, é lócus de formação de mão-de-obra. O

modelo de formação e atuação que é apresentado aos futuros professores,

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Page 5: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

será fator condicionante para a construção de valores e práticas que os

mesmos desenvolverão no mercado de trabalho. Isso implica repensar a

concepção que temos acerca da formação de professores e que campo de

estágio devemos oferecer.

Por outro lado, põe em evidência nossas próprias práticas e o tipo de formação

que oferecemos ao aluno do ensino fundamental e médio. Deve-se considerar,

ainda, que o papel do Colégio transcende o atendimento aos alunos do ensino

regular e a formação de professores. Como espaço de pesquisa e extensão,

deve gerar e socializar conhecimento.

O Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino

de Geografia foi estruturado, dentro destes princípios, para aglutinar diferentes

profissionais e instituições, de forma a apresentarem suas reflexões acerca

dessas questões e as experiências e/ou propostas que apontam ou podem

nortear a construção de uma nova postura do professor no ensino, em

particular o de Geografia. Para tanto, além dos professores que desenvolveram

palestras sobre os temas centrais elencados pela equipe organizadora, foram

convidados professores de alguns dos principais colégios da cidade do Rio de

Janeiro, para exporem seus encaminhamentos frente a essas questões,

principalmente quanto à estrutura curricular adotada.

Considerando que o principal fato político que medeia esse processo foi o

lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), optamos por

centrar as discussões nas propostas de implantação/assimilação dos mesmos,

discutindo suas motivações políticas, dificuldades de execução, vantagens e

desvantagens, espaços de ação e de resistência.

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Page 6: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Esta coletânea apresenta os textos referentes às palestras proferidas na

abertura de cada encontro. O evento ocorreu no período de 18 de setembro a

16 de novembro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, promovido

pelos professores de Geografia do Departamento de Ciências Humanas e

Integração Social – DCHIS – do Colégio de Aplicação desta Universidade.

Desejamos, em breve, dar continuidade a este trabalho, promovendo novos

encontros e publicações, esperando contribuir para a construção de uma nova

perspectiva no ensino de Geografia no Brasil.

A todos os participantes do evento, nosso sincero agradecimento.

Comissão Organizadora

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Page 7: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

A contribuição social do ensino de Geografia

Antonio Carlos Robert Moraes1

Mesmo não trabalhando diretamente com o ensino de Geografia, mantenho

contatos com as discussões desta área, devido às demandas do meu campo

de atuação na Universidade de São Paulo: o ensino de metodologia da ciência.

Eu já tive uma experiência, mais ou menos antiga, de docência no ensino

fundamental e médio e sou convidado, com alguma freqüência, para opinar

sobre currículos e livros didáticos. Recentemente, realizei a avaliação dos

currículos de Ensino fundamental para a Fundação Carlos Chagas, que serviria

de subsídio para os Parâmetros Curriculares Nacionais, mas, não sei porque

razão, o MEC “colocou a carroça na frente dos burros” e lançaram os

Parâmetros Curriculares antes de publicarmos a avaliação dos currículos. Mas,

foi um trabalho muito interessante, cobrindo o país como um todo, vendo,

inclusive, a grande diversidade que há de estado para estado, em termos de

conteúdo mínimo que é abordado pela Geografia. Será a partir dessa

experiência que vou trazer algumas idéias e contribuições para o debate.

Como as boas sessões são aquelas que geram polêmicas, vou começar a

minha exposição com uma posição que defendo, já há alguns anos, que é, não

somente, bastante polêmica nos fóruns da Geografia, como também

minoritária. E eu gostaria de trazer isto, porque acho que é um ponto que vale a

pena ser discutido e noto muitos setores da Geografia refratários, sequer

dispostos a fazer esta discussão.

1 Professor da Universidade de São Paulo.

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Page 8: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Há muitos anos eu venho defendendo uma posição singular, que é a de uma

maior diferenciação entre a formação do geógrafo e a formação do professor

de Geografia. Eu acredito que na atual formação unificada, como no caso da

USP, o diploma de Bacharel praticamente não se diferencia do diploma do

Licenciado. O Licenciado faz apenas três ou quatro disciplinas a mais na

Faculdade de Educação. Eu acho que essa foi uma ação excessivamente

unificada (e estou tomando a USP como parâmetro) que, na verdade, traz

malefícios à formação dos dois profissionais.

Quando um determinado curso é voltado diretamente para um só desses

profissionais, ou para o geógrafo ou para o professor de Geografia, o formando

sai sem uma das duas habilitações. Já é um primeiro problema.

Agora, problema maior é quando os cursos tentam cobrir as duas

necessidades de formação. Na verdade, acaba-se tendo uma carga, às vezes,

muito aprofundada de conteúdo em certos assuntos, ou de pouco conteúdo em

outros. Vou explicar melhor: a formação, seja a do professor de Geografia, seja

a do geógrafo, é muito pesada. São vários os campos de estudo, são várias as

discussões que participamos, todas extremamente diferenciadas, indo desde

diálogos com as Ciências Naturais até diálogos com as Ciências Sociais,

passando pelo necessário diálogo com a área de Educação, no caso de quem

será professor.

Nesse sentido, com a tentativa de cobrir as duas coisas, acaba-se utilizando

um tempo que seria melhor aproveitado, no meu modo de entender, num

aprofundamento de cada uma das formações específicas. Por exemplo, no

caso da USP, uma pessoa que vai ser professor acaba tendo conteúdo, talvez

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Page 9: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

aprofundado demais, em sensoreamento remoto, em cartografia digital e, por

outro lado, não temos uma disciplina no nosso currículo que aborde um tema

fundamental para o professor e que poderíamos chamar de “didática

cartográfica”. Isto é, aprender a utilizar um mapa como recurso educacional em

uma sala de aula. Então o indivíduo vai aprender técnicas extremamente

sofisticadas de cartografia digital e não sabe fazer o uso elementar de uma

carta como recurso em sala de aula. Isso seria válido também para vários

campos da Geografia Física que formam o indivíduo para ser um pesquisador

altamente especializado como a Pedologia, a Climatologia etc., oferecendo

conteúdos que dificilmente o professor utilizará em sala de aula e, por outro

lado, deixando lacunas incrivelmente grandes e fundamentais na formação

didático-pedagógica desse profissional.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados. Muitas vezes a indefinição

propicia isso. Há professores que dão aula pensando que estão formando

professores e há professores que dão aula achando que estão formando

pesquisadores altamente especializados.

E essa carga, que já é pesada nos dois casos, acaba gerando uma situação

maléfica para a Geografia. Na verdade, na minha opinião, a recusa clara em

discutir esse ponto nos fóruns de Geografia está associada a um conjunto de

preconceitos e, porque não dizer, um certo conservadorismo e uma certa

inércia das Instituições. Para não se promover essa discussão, se apresenta,

como argumentação (que do ponto de vista abstrato é até simpática e

charmosa), a velha idéia da unidade entre ensino e pesquisa, ou seja, a idéia

de que ambos são indissociáveis. Isso é verdade, mas não anula a diversidade

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Page 10: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

do campo onde se exerce o ensino e a pesquisa. Nós poderíamos falar,

tranqüilamente, de uma unidade entre ensino e pesquisa, na pesquisa

acadêmica da Geografia, e numa unidade entre ensino e pesquisa, no ensino

da Geografia.

Desse modo, tal argumento perderia totalmente a eficácia. Por exemplo, a área

de ensino necessita ter um diálogo profundo, constante, com as próprias

ciências da Educação e realizar pesquisas que apontem nesse sentido. Seja o

professor de Geografia, seja o geógrafo profissional, ele tem um campo de

interlocução bastante amplo. Na verdade ninguém consegue fazer, por

exemplo, Geografia Econômica sem ter um diálogo razoável da Geografia com

a Economia. Ninguém consegue fazer Geografia Política sem estabelecer um

diálogo profundo com a Ciência Política. Ninguém consegue gerar uma boa

Climatologia sem entrar no campo da Física e da Mecânica dos Fluídos. A

mesma coisa é válida para o ensino. Uma reflexão profunda sobre o ensino de

Geografia não pode, de modo algum, abrir mão de um diálogo constante com a

Psicologia da Educação, com a Filosofia da Educação e todo um campo de

diálogo necessário e extremamente grande, o que torna essa formação

unificada ainda mais problemática.

Em nome da unidade entre o ensino e a pesquisa, na minha avaliação, na

maioria das Instituições, a área de ensino acabou ficando como uma espécie

de apêndice do curso de Geografia. Isso é real, é uma constatação. Isso fica

muito claro em algumas atitudes que são comuns no campo da atuação da

Geografia. A primeira delas e que felizmente começa a mudar, mas que até

cinco ou dez anos atrás era preponderante, podia ser visualizada muito bem na

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Page 11: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

pós-graduação. Era o caso daquele professor de Geografia, que vivia como

professor de Geografia, que era um profissional de ensino da Geografia e que,

ao ir fazer a pós-graduação, adotava temas de grande especialização em

alguma área de pesquisa da Ciência, temas profundamente estranhos ao seu

cotidiano de trabalho docente. Isso era um quadro muito generalizado que,

volto a dizer, por felicidade, está mudando e hoje há um volume muito maior de

pesquisas de pós-graduação específicas a respeito do ensino de Geografia.

Na verdade, por trás disso, ficava clara a desvalorização que o próprio

profissional fazia do seu trabalho. Ele almejava fazer a “Grande Geografia”,

como se esta fosse apenas a Geografia de pesquisa não ligada ao ensino e

que trazia por contraste uma certa desvalorização do ensino de Geografia. Era

como se o ensino da Geografia fosse uma espécie de “bico”, e o indivíduo

ficava trabalhando até que encontrasse uma coisa melhor e a pós-graduação

era vista como um caminho para sair da área de ensino.

Acho que esse tipo de raciocínio estava presente na cabeça de muita gente e a

não discussão das especificidades entre o ensino e a pesquisa acadêmica, no

campo da Geografia, apenas escondia, ou então perpetuava, esse tipo de

visão. Isso trouxe uma série de malefícios, principalmente para o ensino.

O primeiro deles correspondia a uma postura, entendida por alguns como de

vanguarda na área de ensino, de tomar as discussões de ponta da Teoria

Geográfica e tentar repassar essas discussões para o ensino básico. Isso

aconteceu muito no Brasil. Seria algo como se nós começássemos o ensino de

Física e discutíssemos Mecânica Quântica e a Teoria dos Fractais. Quer dizer,

você foca a discussão mais avançada na área e tenta “jogá-la” como conteúdo

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Page 12: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

mínimo para a Educação Básica. Isso acarretou, entre outras coisas, algo que

ainda se faz presente, que é uma ausência de “pedagogização” das teorias

mais complexas da Geografia contemporânea. Não é raro encontrarmos em

currículos ou em livros didáticos a tentativa de tirar a última teoria de Harvey ou

do Milton Santos e aplicar isso em classes do ensino fundamental, o que é um

despropósito total.

Falta “traduzir” essas teorias, que são muito importantes, para que elas

venham a iluminar o que seria um conteúdo básico de Geografia. Não dá para

fazer uma transposição direta de uma discussão de ponta, de vanguarda sem

nenhum tipo de “pedagogização” para o campo do ensino. Enfim, eu não aceito

essa idéia da Educação como “bico” ou como uma área marginal do universo

da Geografia. Essa coisa que você é professor até “melhorar de vida”. Isto é de

uma perversidade social muito grande, pois o ensino, ao meu ver, é a tarefa

socialmente mais importante da Geografia. Sem abrir mão dos outros campos,

no que toca à incidência social, no que toca ao impacto social da Geografia,

sem dúvida nenhuma, a área de ensino é prioritária.

O professor de Geografia, nesse modo de entender, é mais importante do que

o geógrafo. Não quero dizer que um prescinda do outro, mas, do ponto de vista

social, o professor de Geografia é a figura essencial para a Geografia fornecer

algo para o avanço social, para as discussões sociais.

O geógrafo incide diretamente na formação social do cidadão. O professor de

Geografia está participando com um conteúdo e com uma temática essencial

na formação da cidadania. A visão de mundo do estudante-cidadão, a visão do

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Page 13: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

país, a visão da realidade local em que ele vive, tudo isso está profundamente

permeado pelo conteúdo da Geografia escolar.

A auto localização do indivíduo no mundo é essencial na formação da sua

consciência social. O indivíduo precisa se localizar no mundo em variadas

escalas, para o entender e se entender nele. Então, na verdade, o conteúdo da

Geografia ilumina uma série de campos que dizem respeito à construção de

valores morais e à própria sociabilidade do indivíduo. Por isso, o professor de

Geografia atua num terreno extremamente delicado, de alta responsabilidade

social. Realmente, é uma tarefa extremamente importante, extremamente

delicada e de uma responsabilidade social imensa, a respeito da qual nós

temos que estar a todo o momento atentos.

O professor de Geografia tem a necessidade de desenvolver o raciocínio crítico

do aluno, porém, ao mesmo tempo, de fornecer-lhe um conjunto de

informações fundamentais para ele entender o mundo. Ele não pode, de modo

algum, passar uma visão fechada e sectária da vida social, isto é, uma

explicação pronta e acabada da realidade, o que iria significativamente contra o

desenvolvimento do raciocínio crítico. Ele tem necessidade de estimular a

reflexão política do aluno, porém, sem engessar essa reflexão política em

modelos ideológicos acabados e inquestionáveis. É difícil, mas são exatamente

esses os desafios que se colocam. Desenvolver o raciocínio crítico, sem passar

uma visão fechada de mundo; estimular a reflexão política, contudo, sem

engessá-la em modelos inquestionáveis; valorizar o multiculturalismo, o direito

às diferenças, ao mesmo tempo em que alerta para as desigualdades

existentes na sociedade.

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Page 14: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

São sempre questões tênues e delicadas e não se trata de tarefa fácil combinar

essas coisas. Nesse quadro, parece-me que o simplismo teórico e explicativo

destaca-se como primeiro componente a ser evitado. Ter a consciência de que

nós vivemos num mundo extremamente complexo, numa sociedade

extremamente complexa. Estamos inseridos, hoje, em processos e relações de

uma complexidade que nenhum raciocínio maniqueísta, simplista – do bem e

do mal, do certo e do errado – conseguirá equacionar.

Nós vivemos numa sociabilidade muito mais multifacetada que aquela vigente

no mundo do século XIX. Logo, teorias do século XIX não podem explicar o

mundo de hoje. Há processos novos, há atores sociais novos, há dinâmicas

novas. Nenhuma teoria do século XIX, gestada em uma época que não

vivenciou esses processos, teria condição de dar conta desse mundo.

Poderíamos dizer, fazendo uso do raciocínio de um enunciado bastante

dialético, que o Capitalismo que nós vivemos hoje, ainda é o mesmo daquele

do século XIX mas, ao mesmo tempo, é outro. Formulação que seria

impossível de fazer à luz da lógica formal, que consideraria isso um contra-

senso: ou é o mesmo ou é diferente. Não. É o mesmo, mas é outro. Eu não vou

me alongar nisso, mas poderia listar vários elementos para mostrar que o

Capitalismo, que vivemos hoje, é o mesmo do século XIX, mas é diferente

daquele do século XIX.

Para pegar um único ponto que é central: nós vivemos num Capitalismo que

hoje prescinde muito do trabalho vivo. Então, hoje em dia, o capital se realiza

de forma diferente. Se o Capitalismo do século XIX teve na exploração do

trabalho seu elemento chave de geração de lucro, hoje ele prescinde cada vez

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Page 15: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

mais de trabalho vivo. Tomando, por exemplo, o desemprego, que não é algo

mais funcional ao capital para abaixar salário, mantendo um exército industrial

de reserva, como era no século XIX, mas considerado como um dado

estrutural, gerador de problemas sociais em qualquer sociedade capitalista

hoje, mesmo no centro do sistema.

Então, o Capitalismo, ainda hoje, é o mesmo e é outro. É estruturalmente o

mesmo, mas historicamente outro. E há muito que explicar nessa realidade que

nós vivemos. Há muitas novidades surgindo e numa velocidade desconhecida

em épocas anteriores. Talvez, essa aceleração do tempo, como já apontaram

vários autores, seja a marca mais forte da nossa época: uma profunda

aceleração, uma profunda rapidez na mudança das coisas. Há, inclusive,

autores que dizem que essa velocidade da inovação contemporânea é o

processo, o elemento central para explicarmos essa angústia do ser humano

na atualidade.

No passado, vivia-se num mundo comandado pela tradição e as pessoas

nasciam e morriam no mesmo mundo. Hoje, vivemos num mundo que se move

a cada momento, inclusive do ponto de vista dos valores culturais. Essa

velocidade, essa mutação das inovações é de tal ordem, de tal ritmo, que deixa

inclusive grande parte das Ciências Humanas atordoadas com o seu objeto. O

ritmo atual das inovações faz com que muitas teorias, muitos pensadores

cheguem a abrir mão do desejo de uma totalização, do desejo de uma busca

de sentindo na História, caindo para aquilo que é chamado de uma postura

Pós-moderna. Eis aí outro ponto bom para discussão. O Pós-modernismo

como expressão dessa insegurança advinda da rapidez das inovações

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Page 16: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

vivenciadas na contemporaneidade. Então, de um lado, temos que abrir mão

de buscar um sentido, uma lógica nessa realidade na qual estamos inseridos.

Outros, na antípoda desses, se apegam a um passado teórico, onde as coisas

estavam mais claramente nos seus lugares, onde a realidade era mais simples,

onde os “mocinhos e bandidos” do processo histórico ficavam melhor

demarcados, acreditando que o apego ao dogma forneça um sentido que as

ruas, que a realidade nega. E esses passam a dar respostas metodológicas

para tudo. Qualquer problema empírico tem resposta metodológica. Respostas

metodológicas que, inclusive, explicam as coisas antes delas serem

pesquisadas. Quer dizer, nem pesquisei ainda e já sei a resposta, pois a

resposta está no método, não está na realidade. Essa é outra postura

absolutamente inadequada. Tudo está explicado no método. Pena que a

realidade, muitas vezes, não tenha sido avisada disso e contrarie totalmente

essas teorias. Isso me faz lembrar algo de bom nas tradições críticas do século

XIX, em Karl Marx, em particular, ao dizer que as teorias tinham que vir da

realidade para os livros e não o inverso, dos livros para a realidade.

Nessa Babel metodológica, ideológica que vivemos hoje, a questão, talvez,

mais central que se coloca, e aí toca direto naquelas tarefas que estão lá,

difíceis para o professor de Geografia, é a questão da legitimação das teorias

científicas. Esse problema emerge como o tema central para as Ciências

Humanas e para a Geografia nesse início do novo século.

Como se legitimam as teorias? Essa é uma questão para a qual já não se

aceitam as respostas do passado, principalmente não se aceita a

autolegitimação. Eu reúno uns dez amigos que pensam igual a mim e dizemos

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Page 17: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

um para o outro: “Você está certo, você está certo, você está certo!” e você

acaba se iludindo de que está certo mesmo. Porém, como legitimar as teorias?

Como dizer que uma dada explicação da realidade social é certa ou errada, é

verdadeira ou falsa? Eu diria que esse é o tema central que se apresenta para

as teorizações mais avançadas em Ciências Humanas hoje em dia. E isso

vem, de certa forma, aduzir complicações nas já difíceis tarefas que se põem

para o professor. Explicar o mundo complexo sem simplificá-lo. Quer dizer,

explicar simplisticamente, abrindo mão da complexidade, é fácil. Agora,

explicar esse mundo complexo, “pedagogizá-lo”, sem cair na simplificação, é

extremamente difícil. Quer dizer, explicar criticamente o mundo, sem

transformar essa explicação num dogma, que cristaliza acriticamente pretensas

verdades. É a tarefa que está aí fora, difícil, extremamente difícil, mas é o

desafio que se põe. Acatar o pluralismo democrático sem cair num relativismo

cínico que a tudo justifica. Acatar as diversidades de opiniões como um valor,

sem pretender ser uma espécie de “dono da verdade”, porém, sem cair

naquela posição da “noite escura” do relativismo onde “todos os gatos são

pardos”, justificando qualquer atitude. Principalmente, justificando e reforçando

esse traço tão nefasto da nossa época que é o individualismo exacerbado.

Enfim, trata-se de uma agenda considerável que pede ao professor de

Geografia, não apenas o domínio do conteúdo específico da disciplina, mas

também uma formação pedagógica e humanista ampla. Certos temas da

Filosofia e da Ciência Política, por exemplo, se impõem na sua formação,

somando-se aos temas didáticos e pedagógicos, já comentados, e ao conteúdo

específico da disciplina. Por isso, acredito que deve haver separação na

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Page 18: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

formação do geógrafo e do professor de Geografia. Além do conteúdo

específico da disciplina, além do conteúdo específico da Pedagogia, há a

necessidade dessa formação crítica e humanista, em cujo campo básico nós

teremos de avançar, no meu modo de entender, em termos de Filosofia e de

Ciência Política.

E aqui se abre, por essa necessidade de diálogo, a possibilidade de outros

equívocos. E o principal deles, que é outro ponto que eu gostaria de trazer para

a nossa discussão, é que, nesse diálogo com áreas afins, acabe-se saindo do

campo da Geografia, posição que também não é difícil de se encontrar no

universo do geógrafo. Quer dizer, eu começo a dialogar tanto com a Sociologia,

com a Ciência Política que, de repente, eu perco o foco da Geografia. Isso me

parece um equívoco muito grande. Ter uma visão clara da disciplina é um

pressuposto básico para um bom ensino de Geografia.

Eis o primeiro lugar, onde já se pode fazer um exercício da aceitação do

pluralismo, tendo claro que não existe apenas uma Geografia ou apenas uma

teoria em Geografia, mas, como em qualquer outro campo do conhecimento,

vai viver e se alimentar de polêmicas entre posicionamentos teóricos distintos,

inclusive sobre a própria natureza desse conhecimento.

Eu tenho uma visão sobre o que seja esse objeto da Geografia, mas tenho

claro, também, que essa visão não é a única e nem é exclusiva. Num campo

tão vasto podem conviver hipóteses bastante diferenciadas, cada uma podendo

trazer, inclusive, contribuições extremamente ricas para a explicação desse

mundo complexo e opaco no qual vivemos. Sem dúvida alguma, a idéia de

uma relação entre a sociedade e o espaço se impõe como uma idéia forte para

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Page 19: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

clarificar esse campo da Geografia. Porém, vendo essa relação sociedade-

espaço como uma relação social, posição que já traria alguma polêmica entre

os que vêem o espaço diretamente como objeto e não a relação, e os que

vêem a relação sociedade-espaço como uma relação própria e não como uma

das relações sociais.

Enfim, aí temos um grande ponto de polêmica e estamos mexendo com o

cerne, com a essência mesmo do que se considera Geografia. O estudo da

espacialidade da vida social, o estudo da dimensão espacial da totalidade

social. São muitas as formulações e é necessário, para não sair da Geografia,

baixar esse nível de generalidades para explicações mais específicas, para

conceitos mais operacionais, tendo claro que a perda da abordagem geográfica

seria uma perda extremamente grande no poder explicativo da realidade social

como um todo. Isto é, a Geografia, a especificidade da abordagem geográfica,

tem uma potencialidade crítica e explicativa imensa. A maior contribuição que

podemos dar para explicar o Brasil, no campo das Ciências Humanas, é

exatamente gerar uma bela interpretação geográfica do Brasil. Na verdade, a

Geografia e a dimensão espacial tem uma grande centralidade na explicação

da realidade social como um todo. Eu acho que, se há algo nesse final de

século que as Ciências Humanas como um todo acataram, é exatamente essa

revalorização da Geografia, que andou, em um certo momento, meio em baixa

no rol das Ciências Humanas. Hoje em dia, ela conhece um momento que

propicia até algumas estultices como a de achar que a Geografia é a coisa

mais importante que existe no mundo, posição também que encontramos em

alguns autores contemporâneos, gerando idéias estapafúrdias como, por

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Page 20: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

exemplo, Edward Soja, sugerindo substituir o materialismo-histórico dialético

por um materialismo-geográfico dialético. Aí já é um exagero, uma certa

soberba da Geografia, mas, sem dúvida nenhuma, a consciência da

centralidade explicativa desta ciência, com relação à totalidade social, é um

fato que hoje está evidente, mesmo quando lemos em autores de outras áreas.

Acredito que, por exemplo, a aceitação do livro de David Harvey sobre a

condição pós-moderna nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia

etc., é um exemplo claro dessa revalorização da dimensão espacial e da

Geografia. Então, quanto mais geógrafos nós conseguirmos ser, maior

contribuição daremos para a interpretação de nossa realidade social.

Uma posição que venho defendendo, já há algum tempo, e da qual estou

plenamente convencido, é a de que nos países de formação colonial essa

centralidade da Geografia adquire ainda maior relevo. Por quê? Porque

exatamente os países que tiveram berço colonial, são países que surgem de

processos de expansão espacial e de conquista de territórios. A própria

colonização é isso: uma apropriação de terras. Então, nesses países, a

Geografia teria um peso explicativo ainda maior do que em outros.

O Brasil é exemplar, nesse sentido. Não dá para compreender o Brasil sem

entender a Geografia do Brasil. E isso, não sou eu que estou falando, isso está

numa das últimas entrevistas dadas pelo Prof. Caio Prado Júnior que, sem

dúvida nenhuma, foi uma das figuras centrais na explicação deste país. Ele

disse, numa entrevista à Folha de São Paulo pouco antes de morrer, que sem

entender a Geografia, não se entende o Brasil. Eu estou plenamente de acordo

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Page 21: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

com ele. Este é um país extremamente complexo. A Geografia é reveladora da

sua essência.

Nós vivemos num país que é, ao mesmo tempo, periférico e moderno. Um país

que é pobre e rico. Está aí, de novo, a dialética. Um país profundamente

desigual. Não é novidade nenhuma para ninguém, mas é mais uma razão para

estarmos atentos contra simplificações e simplismos teóricos. Nenhuma teoria

simples vai dar conta da complexidade da armação social deste país. Um país

que combina traços de pré-modernidade com traços de pós-modernidade. O

Brasil vive desde situações que poderíamos chamar de super-modernidade,

pois estão aí as redes, a informática, o Just-in-time em vários processos, tudo

isso convivendo com traços pré-modernos, a exemplo do desigual acesso à

cidadania. São traços da pré-modernidade que nos marcam profundamente.

Então, esse jogo entre atraso e modernidade vai ser um dos elementos

caracterizadores do país, e eu, particularmente, acho que, se fizermos um

balanço, nós estamos mais para um país pré-moderno do que para um país

pós-moderno. A pós-modernidade é residual, é espacialmente seletiva,

enquanto que os elementos da pré-modernidade são majoritários e estão em

qualquer lado que se olhe o país. Isso coloca, como foco central para a

reflexão (de todas as Ciências Humanas e da Geografia em particular), a

questão da inclusão/exclusão. Esse é o tema central no equacionamento do

país. É uma questão que vale para segmentos sociais e também para lugares.

Há lugares incluídos e há lugares não-incluídos, por exemplo, às redes. E a

não-inclusão nas redes significa atraso, miséria. Eu inclusive tenho uma

posição muito particular a respeito de um conceito, originário da Antropologia,

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Page 22: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

que vem sendo bastante utilizado pelo geógrafo, que é o conceito de não-

lugar. Na concepção original de Marc Augé, que propôs esse conceito, um

não-lugar seria um lugar da super-modernidade, aquele lugar sem identidade: o

aeroporto, o shopping center etc. Porém, acho isso equivocado, acho que o

não-lugar é exatamente o contrário disso. Não-lugar é o lugar não inserido nas

redes. Aquele lugar que o Capitalismo não quer explorar. O Haiti é um bom

exemplo de não-lugar. O problema do Haiti, e aí há outro ponto para

pensarmos, não é a exploração direta do capital, mas sim o desinteresse do

capital em relação a esse país. Esses seriam os verdadeiros não-lugares, os

lugares excluídos das redes que, cada vez mais, conformam e comandam a

vida econômica contemporânea.

Bem, com isso, aponto para aquilo que seria a principal tarefa posta para a

nossa geração de geógrafos, e para a qual o papel dos professores de

Geografia adquire um relevo fantástico: a de articular a Geografia com um

PROJETO NACIONAL nesses tempos de Globalização. Tendo claro, em

primeiro lugar, que não é a Geografia nem o geógrafo que farão isso sozinhos.

Seria uma grande soberba achar que os geógrafos são ungidos para

determinar, decidir e fazer esse projeto. Não! Um Projeto Nacional deve

expressar a vontade nacional, logo não poderia ser obra só de geógrafos, mas

do conjunto dos cidadãos. Porém, o ensino da Geografia atua diretamente na

formação desse cidadão. E isso coloca para nós, como questão-chave, definir

qual é o conteúdo básico dessa disciplina que deve interessar na formação de

todos os cidadãos. Acho que é esta a questão. Ao pensar um currículo, ao

estruturar um livro didático, ao pensar uma reforma educacional, acho que é

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Page 23: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

esta a questão básica, até para fugir daqueles erros, que eu coloquei, de

“pegar” teorias de ponta e sair da Geografia. A questão básica é esta: qual é o

conteúdo básico dessa disciplina que deve estar presente na formação de

todos os cidadãos? A pedra angular é discutirmos o conteúdo geográfico

mínimo. Não é a formação do Geógrafo, mas a formação do cidadão. Quer

dizer, o grande livro deveria ser assim: o que todo o cidadão deve entender de

Geografia? é isso que seria a virtude de um programa de ensino de Geografia

para o ensino fundamental e médio, tendo clareza que apenas uma parcela

diminuta daquelas pessoas se tornarão geógrafos. Os que se encantarem com

a Geografia farão, depois, uma Faculdade de Geografia. Mas o que o

trabalhador, o médico, o técnico, deve saber de Geografia para que ele tenha

capacidade de influir, decidir, opinar nesse Projeto Nacional?

Então, estaríamos discutindo a questão do conteúdo mínimo. Não as

especificidades, mas o básico, o universalizado, aquilo que deveria estar

presente na formação de todo o cidadão. Ou até fazer a pergunta invertida:

quais as informações geográficas que não podem faltar, e o caminho para nós

elaborarmos isso, na formação do cidadão? Acoplada a estas duas, porém

bem mais perigosa e delicada, já que não resolvemos as questões fugindo

delas, mas discutindo-as com seriedade e a fundo, uma questão que emerge é

a seguinte: qual o conteúdo ideológico de tratamento dessa informação

geográfica mínima, que é democraticamente aceitável, para uma formação

pluralista do indivíduo? Acho essa pergunta básica. É chata, mas essencial.

Com isto eu estou balançando o dirigismo ideológico muito presente no ensino

de Geografia.

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Page 24: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Não estou propondo uma Geografia asséptica, apolítica, mas discutindo os

limites até onde uma explicação parcial do mundo pode ser apresentada para

os alunos como uma explicação universal do mesmo. Isso decorre de posições

didático-pedagógicas e volto àquelas questões iniciais: como estimular o juízo

crítico pessoal do aluno, isto é, sua capacidade de julgamento? Ou posto em

outros termos: como estimular o livre arbítrio dos indivíduos?

Vimos que há uma agenda razoável. Realizar isso não é pouca coisa. E a

pergunta básica que se impõe, que nós devemos nos fazer é: o professor de

Geografia está preparado para o exercício dessa tarefa? Os atuais currículos, a

atual formação nos capacita a saber o que é esse conteúdo mínimo? Será que

sabemos qual é esse limite ideológico na sala de aula? E aí, realmente, o

professor é o elemento básico. Não há sistema de ensino adequado que não

seja calcado na figura do professor. Não há boa educação sem um bom

educador. Qualquer iniciativa, nesse setor, deve partir dessas primícias. Não

adianta inovações teóricas, não adianta investimentos em infra-estrutura, não

adianta nada disso, se não tocarmos nesse ponto básico: o professor e sua

formação.

Eu diria que, de um ponto de vista amplo sobre o Brasil, o quadro não é dos

mais alentadores. Movimentos ou campanhas de capacitação aguerridas são

fundamentais. Há um grande número de professores há muito tempo afastados

de qualquer atividade de reciclagem, e aí se abre uma grande tarefa para as

Universidades, especialmente as públicas. Faz-se necessário pressionar as

Secretarias de Educação municipais, estaduais, o MEC, porque não teremos

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Page 25: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

nenhum avanço no ensino se não houver um cuidado na melhoria da

capacitação dos professores.

Buscando chegar a um conhecimento efetivo do país, dentro daquelas

informações mínimas necessárias, precisamos claramente delimitar qual é a

carga empírica essencial para ser passada nos cursos, assim como, por outro

lado, ou conectado a isso, definir uma visão clara do próprio objeto geográfico.

Isto é, combinar a constatação da realidade brasileira com o estímulo a

construção de ideais. Eu acho que esse é o ponto que interessa, ou seja, de

um lado o realismo de avaliação do mundo empírico e, de outro lado, o esforço

pelo desenvolvimento da capacidade crítica do aluno. Aí está o nosso desafio,

que é um desafio coletivo e nele está o grande, talvez o maior, engate que a

Geografia pode ter com a transformação dessa ordem social nacional

profundamente injusta. Se há algo que nos anima na Geografia brasileira,

diante do tamanho dos desafios propostos, é o fato dela ser, majoritariamente,

uma Geografia progressista, uma Geografia preocupada com a problemática

social.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia:

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Page 26: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

o ecletismo a serviço da alienação humana.

Marcos Antônio Campos Couto2.

Gostaria de registrar a importância deste debate sobre o ensino de Geografia,

inserido nessa articulação entre a Universidade e a escola básica. Considero

que, para o enfrentamento das questões políticas e teórico-metodológicas de

nossa carreira, de nossa profissão, no magistério de Geografia, a escola básica

não se basta. Mas a Universidade também não. Assim, temos ainda muitos

frutos a tirar de um relacionamento mais estreito entre ambos. É claro que

quando falo escola básica e Universidade, estou me referindo a essa parcela

que está interessada em fazer essa aproximação. Então, parabéns aos

organizadores pelo evento.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Geografia tem uma estrutura

bem ampla. Eles partem de uma avaliação do ensino-currículo de Geografia,

apresentam definições e propõem objetivos para a Geografia na escola e,

conseqüentemente, o que se quer da escola e com a Geografia dentro dela.

Enfim, apresentam objetivos, metodologias, avaliação, bibliografia; então, é um

documento interessante para estudar e debater. Não quero afirmar, com isso,

que ele resolva todos os problemas dos currículos escolares de Geografia.

Aliás, o que vou tentar demonstrar é que o texto dos PCNs mais nos confunde

do que nos esclarecem.

2 Professor Assistente do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores – FFP UERJ.

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Page 27: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Eu não sei se vocês já leram os PCNs, mas, de qualquer forma, eu trouxe

alguns elementos de análise para estabelecer a nossa conversa. Em função de

sua abrangência, nós podemos analisá-los a partir de diferentes perspectivas,

por vários caminhos. Podemos discuti-lo no interior da política educacional

neoliberal do governo federal. Acho que é um caminho para o debate. Se cabe,

ou não cabe, um Parâmetro Curricular de caráter nacional, a quem cabe

construir um Parâmetro Curricular e como se deve fazê-lo (de maneira

democrática ou antidemocrática). Todos estes aspectos são importantes de

serem debatidos e questionados.

O caminho de análise que escolhi tem a ver, um pouco, com aquilo que eu

estou estudando agora na Faculdade de Formação de Professores – FFP, que

são os conceitos geográficos. Eu vou centrar um pouco a conversa nos

conceitos geográficos que os PCNs trazem, a partir do seu conceito de

Geografia, de sua concepção de Geografia. Então esse é um caminho que eu

estou propondo para, a partir daí, podermos estabelecer o debate e para que

vocês tragam as questões dos caminhos que querem trilhar.

Mas, na verdade, eu queria dividir a nossa conversa em três partes. O primeiro

momento, que considero importante, é a apresentação de algumas idéias,

antecedentes dos PCNs, através de um texto escrito pelo professor Antônio

Carlos Robert Moraes (1995) do Departamento de Geografia da Universidade

de São Paulo, onde realiza uma avaliação de 18 currículos oficiais de

Geografia de vários estados e municípios do Brasil. O texto resultante dessa

avaliação é muito interessante e importante para entendermos muitas das

idéias que estão nos PCNs. Há uma continuidade clara entre o texto do

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Page 28: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

professor Robert Moraes, que está nesse documento da Fundação Carlos

Chagas, e muitas concepções que estão dentro dos PCNs. Então, eu

começaria por ele. Depois, partiríamos para alguns elementos dos PCNs e,

finalmente, para o terceiro momento, que estou chamando de debate, que

talvez seja o momento mais interessante.

A avaliação dos currículos oficiais brasileiros.

Retiramos do texto apenas aqueles comentários mais genéricos, que marcam,

não esta ou aquela proposta curricular, mas o conjunto das propostas

analisadas.

Há dois elementos que o professor Moraes considera fundamentais na

avaliação dos currículos de Geografia do Brasil. O primeiro problema é que os

programas e currículos padecem do

“desejo militante de fazer do próprio currículo um instrumento de conscientização política, o que redunda num elevado grau de dirigismo ideológico na maioria das propostas analisadas”. (MORAES, 1995).

Segundo Robert Moraes, isso ocorreu em função dessas propostas curriculares

terem nascido após a redemocratização do Brasil, pós-regime militar, e que,

portanto, se inseriam na redemocratização da sociedade, na crítica ao regime

autoritário, na crítica da Geografia, enfim, já é resultado de um processo mais

amplo de crítica.

Este é o primeiro elemento de sua avaliação. Nós concordamos com a idéia da

presença de dirigismo ideológico nos currículos de Geografia? O que significa

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Page 29: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

propostas curriculares com forte dirigismo ideológico? Vamos pensando sobre

isso para o debate.

E combinado com isso, ao par disso, afirma o autor que a “sobrevivência de

posturas tradicionais e um elevado grau de incoerência epistemológica”

marcam as propostas curriculares.

Então, vejamos: em primeiro lugar, o que pode significar dirigismo ideológico,

inserido no debate ideológico do Capitalismo e do socialismo, da sociedade de

classes? Consideramos que o autor se referiu ao debate da relação da

Geografia com o Marxismo. Combinado com o dirigismo, há incoerência

epistemológica. Ao perguntar aos nossos alunos – e costumo fazer isso na

graduação – a razão da escolha da carreira de professor de Geografia, muitos

respondem que foi porque um professor do terceiro ou do segundo ano do

ensino médio, muito crítico, o despertou para o pensar a sociedade. Então, de

certa forma, esta Geografia ensinada na década de 80 e 90, tem dentro de si

um grande teor de crítica social, de crítica ideológica, que o professor Robert

Moraes acha exagerado no sentido militante do termo.

A minha opinião é que o currículo – a sua construção – é, por essência, uma

relação de poder, de escolha, de estabelecimento de prioridades, vale dizer, de

reprodução de visões de mundo. Portanto, aquilo que faz parte dele não pode

constituir-se, digamos assim, em seu maior problema; sobretudo quando se

considera, como o próprio Moraes, a conjuntura de combate com outras

concepções ideológicas naquele momento da história brasileira.

Por outro lado, concordamos com o autor quanto às estranhas carências

epistemológicas da Geografia e sua permanência no que denominamos de

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Page 30: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

“Geografia Crítica”; ou seja, nós ainda patinamos em termos de conceitos. Ora,

nós confundimos paisagem com espaço, espaço com região, região com

território, território com lugar, lugar com paisagem, de forma que a crítica social

não foi acompanhada de uma crítica aos fundamentos teórico-metodológicos.

Então, considero que é a isso que ele está se referindo e concordo com ele, em

parte. Em parte porque a crítica da Geografia não foi levada às últimas

conseqüências – a crítica da alienação burguesa – transformando-se a

Geografia Crítica em um rótulo, em uma nova oficialidade curricular e didática.

Depois, o professor Moraes apresenta suas concepções e pressupostos de

análise, os pontos de vista, a partir dos quais, fez a avaliação dos currículos. O

autor confronta dirigismo ideológico com pluralismo de idéias. O que nos leva a

entender que dirigismo ideológico significa, na verdade, que as propostas

curriculares assumem apenas uma metodologia ou uma concepção teórica

exclusiva, ao contrário de concepções teóricas mais variadas. Então há um

confronto entre uma proposta de dirigismo ideológico e outra de pluralismo de

idéias. E, conseqüentemente, a partir disso, o autor estabelece a sua critica ao

dogmatismo. Ou seja, se tem uma proposta que é o Marxismo, ou que não

seja, mas que se assume como única, ela acaba por assumir fóruns de

verdade, de verdade absoluta inquestionável. Segundo ele, é importante

colocar no mesmo estatuto, valorizar da mesma forma, os aspectos sociais,

valores do mesmo calibre, utopias igualitárias do pensamento crítico social e

respeito às individualidades, respeito às diferenças. Ou seja, o dogmatismo e o

dirigismo ideológico, a que ele se referia antes, nessa avaliação, não estariam

respeitando a diferença e as individualidades. Por isso, então, que, acrescido à

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Page 31: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

luta por igualdade social, há uma revalorização da idéia de Democracia. Ou

seja, se a crítica social da pobreza e da exploração é importante, ela torna-se

limitada se não alcançar a crítica da política, do poder e da democratização,

segundo a avaliação do autor.

Para Moraes (1995) a posse dos conhecimentos englobados no ensino

fundamental formal “aparece, cada vez mais, como o qualificativo essencial

para a alocação dos indivíduos na sociedade e no mercado”. Desta forma,

considera o autor, que em um...

"sistema democrático espera-se que o conteúdo deste aprendizado apresente um perfil crítico e pluralista, onde o aluno não apenas receba uma carga adequada de informações factuais e técnicas, mas também todo um instrumental teórico que lhe ajude a interpretar o mundo e a se posicionar face aos fenômenos." (MORAES, 1995).

Assim, a escola – e a Geografia dentro dela – tem o papel de contribuir para

esse acesso gratuito de conhecimentos que qualificam as pessoas para o

mercado, vale dizer, para a sociedade de mercado capitalista. Voltamos aqui

ao significado do termo dirigismo ideológico, da manipulação das consciências.

Formar para o mercado burguês, de forma crítica e pluralista, não significa dar

uma direção, uma intencionalidade a nossa prática e, conseqüentemente, à

história humana? Por outro lado, considero que tudo que fazemos na escola

forma consciência, constitui direções, desde os óculos que nós usamos ou os

sapatos, a maneira como nos vestimos, a maneira como falamos, até os

conteúdos que porventura desenvolvemos com nossos alunos; tudo isso vai

produzindo/reproduzindo formas de sociabilidade. Então, em qualquer das

hipóteses, nós estamos dando uma direção às consciências.

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Page 32: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Bom, mas o que é a Geografia para o autor? Como ele analisou a Geografia

nos currículos oficiais brasileiros? Moraes identificou três denominações para

os conteúdos geográficos: Estudos Sociais, Integração Social ou Geografia;

embora, para ele, as três denominações não apresentem diferenças

substanciais quanto aos conteúdos propostos. Entretanto, esta ambigüidade,

na interpretação do autor, não constitui um problema menor. Por quê? Porque

diz respeito ao papel da Geografia nas Ciências Sociais e na interpretação da

realidade e, por conseguinte, na escola. Ou seja, é preciso verificar claramente

o papel da Geografia no conjunto das Ciências Sociais. Então, falar Estudos

Sociais ou Geografia não é uma questão pequena para o autor. Eu também

concordo. Veremos, mais adiante, que os textos que compõem os PCNs

reproduzem outras ambigüidades ao conceituar a Geografia.

Para Moraes, então, a Geografia faz parte de uma tradição discursiva sobre o

mundo, que conforma um campo de saber, um campo disciplinar circunscrito

aos estudos que tematizam o espaço, ou melhor, nas letras do autor,

tematizam a relação sociedade-espaço.

O autor afirma que, embora haja concordância entre os geógrafos sobre sua

temática de análise – o espaço – a “totalidade das propostas de currículo

analisadas encaixam-se na [resistente e não abandonada] busca de nexos

entre fenômenos naturais e fenômenos sociais”. Portanto, são duas

concepções de Geografia. Nós vamos ver que os PCNs oscilam entre ambas.

Segundo o professor, “as propostas curriculares analisadas apresentam

razoável similaridade de concepções e propósitos”. Além do dirigismo

ideológico, já comentado, há ainda similaridade nas concepções e objetivos da

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Page 33: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Geografia. O autor dividiu a sua síntese crítica em dois grandes grupos: “de um

lado as propostas que apresentam coerência interna e, de outro, as que podem

ser qualificadas como incoerentes”.

Enquanto as primeiras apresentam articulação entre objetivos, fundamentação

metodológica e conteúdos, o segundo grupo, mesmo assumindo proposições

críticas – discurso da crítica ao Capitalismo, à sociedade – reproduz programas

de corte bem tradicional, o que ele chama de Geografia Tradicional.

Segundo o autor, há um modelo que preside a organização dos conteúdos,

sobretudo nas séries iniciais (1ª a 4ª séries) que é a visão de círculos

concêntricos, de progressiva apreensão do espaço, seguindo a seguinte

seqüência de abordagem: “o indivíduo (unidade corpórea), a casa, a escola, a

rua, o bairro, o município e o estado”. Parte-se do espaço mais próximo e,

progressivamente, aumenta-se a escala de análise.

O autor afirma, entretanto, que, embora os programas tomem o espaço de

vivência mais próximo como um ponto de partida, eles não apresentam a

fundamentação teórico-metodológica da Fenomenologia e da chamada

Geografia Humanista que, para ele, “constituem orientação metodológica que

mais diretamente trabalha tal concepção na Geografia”.

Assim, para ele, a Fenomenologia é o suporte teórico metodológico

fundamental para pensar o próximo e o vivido. Nós concordamos com isso?

Avalio que, fundamentalmente, os PCNs constituam uma tentativa de construir

uma proposta curricular baseada na Fenomenologia. Tenho dúvidas se

conseguiram. Mas considero este aspecto lapidar, porque os PCNs estão todos

costurados por aí. É por isso, então, que os PCNs realçam muito o subjetivo, o

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Page 34: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

indivíduo, a experiência, o vivido, a valorização do imaginário, a experiência

das pessoas. E aí eu quero reforçar a pergunta: o Marxismo tem contribuições

para pensar o indivíduo e seu espaço vivido, produzido e concebido? E outras

correntes do pensamento? Ou será apenas a Fenomenologia? A resposta dos

PCNs me parece que é, sobretudo, a Fenomenologia.

O autor afirma que esta ausência da Fenomenologia

“contraria certa tendência mundial de tratar a questão do ensino fundamental de Geografia dentro de bases fenomenológicas, realçando os temas da consciência e representação do espaço como experiência de vida”. (MORAES, 1995).

Mas os temas da representação e da consciência não são, também, temas do

Marxismo? Entretanto, os temas da consciência e da subjetividade estão, nos

textos dos PCNs, vinculados às percepções individuais.

Outra questão apontada é a do lugar e do local, onde Moraes (1995) avalia,

negativamente, a idéia de uma proposta de círculos concêntricos, que parta do

local, da casa e depois vá ampliando os espaços até chegar ao espaço

brasileiro, na quarta série, ou ao espaço mundial, entre a quinta e a oitava

séries; pois o autor indaga sobre o “estatuto da realidade local num mundo

globalizado, ou em rápido processo de globalização”. Isso porque, segundo o

autor, o “mundo é bem mais do que a sua rua”. Conseqüentemente, é

necessário contemplar as escalas simultaneamente, combinando “os níveis

local/nacional/global”, através da idéia de um “espaço relacional” e da

“moderna noção de rede”.

Para o autor, as propostas possuem uma “grande confusão conceitual”, pois

juntam ou combinam conceitos provenientes de diferentes concepções

metodológicas como, por exemplo, espaço geográfico e produção do espaço

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Page 35: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

ou modo de produção e gênero de vida, sem o aprofundamento teórico-

metodológico que esta articulação exige.

Para Moraes, as propostas curriculares padecem de uma revisão bibliográfica;

característica que os PCNs buscaram resolver. Apesar de falarem da

interdisciplinaridade, os documentos analisados acabam não transformando

isso em proposta curricular. Para ele,

“os trabalhos interdisciplinares se alimentam de conhecimentos que lhes são prévios, gerados nos campos disciplinares, e, nesse sentido, não eliminam a especificidade de cada abordagem. Antes, têm o resultado destas como matéria-prima”. (MORAES, 1995).

Ou seja, na verdade, apostar na interdisciplinaridade não significa diluir a

Geografia, ou desfazê-la, ou fragmentá-la no processo de aproximação com as

outras ciências. Pelo contrário, nós vamos nos integrar com outras ciências

sabendo exatamente quem nós somos e o que queremos, ou seja, qual é o

aspecto da realidade que queremos avaliar, que como disse anteriormente,

para o autor, significa o estudo da relação sociedade-espaço. A partir daí, ele

indica três interfaces para a interdisciplinaridade: uma com a História, através

da formação dos territórios; outra com a questão ambiental, articulada com as

Ciências, a Biologia e, também, as representações do espaço com a Língua e

com a Literatura Portuguesa.

Em minha avaliação, estes aspectos anteriormente apresentados estão muito

presentes nos PCNs de Geografia – tanto nos da 1ª a 4ª , quanto nos da 5ª a

8ª séries – isto é, estão muito coerentes com essas avaliações e,

fundamentalmente, buscam respondê-la.

Então, o primeiro ponto de partida para nossa conversa é se nós concordamos

com essa avaliação? Concordamos em parte? Concordamos com o seu núcleo

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Page 36: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

fundamental de argumentação? Esse é o primeiro ponto de partida para o

debate.

Eu queria antecipar a minha opinião. Considero que, ao se referir à questão do

dirigismo ideológico, o professor Moraes está se referindo, sobretudo, a

proposta curricular do estado de São Paulo; que também teve participação, em

sua elaboração, de professores da Universidade de São Paulo. Então, me

parece (eu queria ter estado aqui no debate com o professor Robert Moraes,

mas não pude) que, na verdade, trata-se de um debate entre duas partes, ou

dois grupos, do Departamento de Geografia da USP. Embora considere o

economicismo que marca a proposta curricular do estado de São Paulo e,

assim, esta qualidade de dirigismo ideológico, não concordo que isto tenha

ocorrido de forma generalizada, como o autor está afirmando. E mesmo, o que

significa isso? Se pensarmos no título do livro do professor Moraes, em que ele

rotula, na minha avaliação, de Geografia Tradicional tudo o que passou, e de

Geografia Crítica o que é atual, considero, isso sim, o supra-sumo do dirigismo

ideológico. De qualquer forma, foi aquele o momento histórico em que o livro

estava sendo escrito, no combate com a Geografia mais clássica, no combate

dentro da AGB, dentro dos Departamentos; então é compreensível relacionar

àquele combate, tudo que estava se passando. Assim, eu acho que o

fundamental da crítica das propostas curriculares não cabe aí. O lugar da

crítica não é esse.

Mas vamos então agora aos PCNs.

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Page 37: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

PCNs de Geografia: ecletismo ou confusão teórico-metodológica

Queria começar pelo conceito de Geografia. Eu fui peneirando os PCNs para

achar este conceito, que é o ponto de partida. E aí, considero que os PCNs não

respondem a uma questão que o Robert Moraes colocou em seu texto, que

considero fundamental: o de definir, claramente, de que se trata a Geografia.

Então, para os PCNs:

"A Geografia estuda as relações entre o processo histórico que regula a formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza, por meio da leitura do espaço geográfico e da paisagem.A divisão da Geografia em campos de conhecimento da sociedade e da natureza tem propiciado um aprofundamento temático de seus objetos de estudo. Essa divisão é necessária, como um recurso didático, para distinguir os elementos sociais ou naturais, mas é artificial, na medida em que o objetivo da Geografia é explicar e compreender as relações entre a sociedade e a natureza, e como ocorre a apropriação desta por aquela.(...)Identificar e relacionar aquilo que na paisagem representa as heranças das sucessivas relações no tempo entre a sociedade e a natureza é um de seus objetivos.(...)A preocupação básica é abranger os modos de produzir, de existir e de perceber os diferentes espaços geográficos; como os fenômenos que constituem as paisagens se relacionam com a vida que as anima." (PCNs: 1997, 109)

"A Geografia estaria, então, identificada como a ciência que busca decodificar as imagens presentes no cotidiano, impressas e expressas nas paisagens e em suas representações, numa reflexão direta e imediata sobre o espaço geográfico e o lugar." (PCNs, 1997: 112/113)

Nos PCNs (1999) de Geografia para o terceiro e quarto ciclo do ensino

fundamental (5ª à 8ª séries), os autores assim definem a Geografia:

"Área de conhecimento comprometida em tornar o mundo compreensível para os alunos, explicável e passível de transformações (...) em sua meta de buscar um ensino para a conquista da cidadania brasileira e (...) em prol da democratização da escola. (...) Seu estudo proporciona aos

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Page 38: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

alunos a possibilidade de compreenderem sua própria posição no conjunto de interações entre sociedade e natureza.A Geografia tem por objetivo estudar as relações entre o processo histórico na formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza por meio da leitura do lugar, do território, a partir de sua paisagem." (PCNs, 1999: 26)

Não vou fazer comentários sobre a vinculação escola-cidadania, dos limites

políticos do conceito de cidadania. Não vou me referir a isso neste momento.

Identificamos, pelo menos, três conceitos de Geografia, provenientes de

diferentes matrizes teórico-metodológicas: o que define a Geografia como o

estudo da relação homem-meio (homem-natureza, sociedade-natureza), o que

a define como o estudo da paisagem, e, finalmente, o conceito que define a

Geografia como o estudo da produção do espaço.

Qual é o problema? Na falta de articulação clara e explícita das contribuições

das diferentes concepções de Geografia, o que se reproduz é a imprecisão e a

ambigüidade. Como selecionar/hierarquizar os conceitos e conteúdos de forma

coerente, se não sabemos onde queremos chegar, sem ter certeza da pergunta

que queremos responder?

Por outro lado, a definição da Geografia como o estudo da relação

sociedade/natureza nos parece muito abrangente, pois, a rigor, esta temática é

comum ao conjunto das ciências, além de outras formas de conhecimento. A

Economia, a História, a Biologia, também estudam a relação sociedade-

natureza, mas cada uma por um viés particular. Então, na verdade, este

conceito não nos ajuda em várias coisas: uma é na identificação do nosso

papel dentro do conjunto das ciências e, outro, é no melhor entendimento dos

conceitos geográficos. Ou seja, os textos dos PCNs não conseguiram

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Page 39: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

responder a uma indicação, proposta pelo professor Moraes (1995): a de nos

identificar enquanto um campo do conhecimento.

Por outro lado, fragmentar sociedade e natureza, mesmo apresentando o álibi

didático, tem sido a tradição do discurso clássico da Geografia que,

contraditoriamente, se reivindica como o estudo da relação sociedade-

natureza.

A identificação de nosso objeto de estudo, não podemos esquecer, só será útil

se o utilizarmos para a interpretação do seu sujeito. Entretanto, se o objeto de

estudo se perde na dispersão e empiricidade dos conteúdos, o sujeito – o ser

humano – não passará de mais um dos seus conteúdos.

Mas os autores dos PCNs apresentam as idéias de espaço e de espacialização

dos fenômenos, articulados aos conceitos geográficos de paisagem, território e

lugar. Para eles:

"o estudo da paisagem local, global não deve se restringir à mera constatação e descrição dos fenômenos que a constituem. Será de grande valia pedagógica explicar e compreender os processos de interação entre a sociedade e a natureza, situando-as em diferentes escalas espaciais e temporais, comparando-as, conferindo-lhes significados. O ensino da Geografia, nesses ciclos, pode intensificar ainda mais a compreensão, por parte dos alunos, dos processos envolvidos na construção das paisagens, territórios e lugares. A preocupação da Geografia é com o espaço terrestre." (PCNs, 1999)

Como estamos “acostumados” com a ambigüidade conceitual, utilizamos, com

o mesmo sentido, conceitos que não correspondem à mesma coisa: espaço

terrestre, espaço geográfico, relação sociedade/natureza não são a mesma

coisa.

Para os autores, é “na construção do território, como parte integrante da

sociedade humana e suas interações dinâmicas, que se fundamenta o conceito

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Page 40: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

de espaço geográfico, como uma categoria no interior das ciências humanas e

sociais”. Assim, ficamos em dúvida se a Geografia é o estudo da relação

sociedade/natureza, do espaço ou do território. Gostaria de conversar com

vocês sobre isso. Mas os autores voltam a afirmar que é essencial que não se

perca de vista que o seu objeto de estudo, e de ensino, é o espaço geográfico

(voltou ao espaço), seu território, paisagens e lugares. Procuram trabalhar com

a busca da compreensão, da diversidade das paisagens e lugares onde o

modo de vida, a cultura e a natureza interagem.

Então, na minha avaliação, eu vou voltar mais uma vez, os PCNs não resolvem

um problema que é chave: o que se quer com esse campo do saber, com esse

campo disciplinar que é a Geografia. E, me parece, também, que nós já temos

elementos bastante interessantes para pensar a questão da sociedade e do

seu espaço, que o próprio professor Moraes (1995) fez referência. Temos a

obra do Milton Santos e outras que nos dão elementos importantes para pensar

a Geografia como um discurso sobre o homem, sobre o ser humano

produzindo o seu espaço. Porque é isso que nos diz respeito. A Geografia é

um discurso sobre a condição humana, através de um dos caminhos da

produção da condição humana, que são as práticas espaciais da sociedade.

Isso é relação homem/natureza? É também. Mas, a nossa questão, acho que é

pensar o homem e a sociedade através da produção do espaço e, a partir daí,

pensar as categorias geográficas.

Agora, o problema dessa imprecisão, eu queria adiantar, é que na verdade nós

carecemos de discutir e entender o que é o espaço. Quando falamos espaço

terrestre, espaço natural ou espaço geográfico, estes termos não significam a

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Page 41: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

mesma coisa. Se pensarmos espaço natural, nós podemos pensar o espaço

anterior à existência humana, não é isso? O espaço natural, o espaço da

natureza. Mas se eu estou chamando de Geografia o que diz respeito à

sociedade humana, cria-se uma confusão teórica que é preciso esclarecer.

Bom, de que se trata, então? É um espaço como existência humana ou não é,

afinal de contas? É o espaço terrestre que parece esse espaço natural anterior

ao próprio homem? Ou seja, do que se trata?

Em função dessa imprecisão conceitual da Geografia, e conseqüentemente do

espaço, o que vem depois piora, ou seja, os conceitos que os PCNs nos

trazem. O que considero como um ponto positivo, a recuperação dos conceitos

geográficos, que nos ajudam a focalizar o olhar geográfico sobre a realidade,

acaba por nos confundir. Os conceitos centrais da Geografia, eleitos pelos

autores dos PCNs, são: paisagem, território/territorialidade e lugar (Quadro 1).

Em primeiro lugar, cabe uma pergunta: são estes os conceitos centrais da

Geografia? São os conceitos fundamentais? Não caberia discuti-los? Não

poderiam ser outros? Mas estes foram eleitos. Estou me referindo também,

neste momento, aos critérios de construção dos PCNs e a maneira de elaborá-

los. Embora não possamos creditar ao professor Moraes os problemas teórico-

metodológicos dos PCNs, o ponto de partida para sua elaboração foi a

avaliação dos currículos brasileiros de Geografia produzida por apenas um

intelectual. E o texto dos PCNs foi construído por outros dois professores,

sendo que os três são membros do Departamento de Geografia da

Universidade de São Paulo.

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Page 42: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Esses conceitos realmente permitem pensar a experiência concreta de vida?

Mas a experiência concreta de vida dos nossos alunos, o vivido, não é o vivido

do espaço do Capitalismo? E aí o Marxismo não tem contribuições para a

analise da experiência de vida do Capitalismo? Embora os autores façam

referência a importância do Marxismo para a Geografia, a sua contribuição

para tal análise é descartada. Enfim, essas são perguntas para alimentar o

nosso debate.

A Geografia é considerada como um discurso sobre o espaço – dentro dos

PCNs está essa idéia, mesmo que vagamente – sem que este conceito esteja

incluído como um dos fundamentais. Onde está o conceito de espaço? Por que

essa fuga do conceito de espaço? Em minha avaliação da “Geografia Crítica”,

ou qualquer nome que se queira dar, ou avaliando a Geografia que se ensina

nessa renovação, considero que está aí um dos problemas fundamentais: nós

fugimos da discussão do conceito de espaço. E aí vamos discutir o território, a

paisagem, o lugar, sem ter resolvido esse problema que, para mim, é anterior.

Porque, se nós chamamos esses conceitos – território, territorialidade,

paisagem, lugar – de geográficos, e são conceitos geográficos, tem que

haver, entre eles, algo de comum, para que eu afirme que eles são

geográficos. O que há de comum entre território, territorialidade, paisagem e

lugar? Porque no fundo, no fundo, o que há de comum entre eles, o que deve

haver de comum entre eles, é justamente a idéia de espaço, ou o conceito de

Geografia. E, aí, os PCNs não nos ajudam nesta reflexão. Aliás, pelo contrário,

nos confundem mais do que nos esclarecem. Eu estou dizendo eles nos

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Page 43: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

confundem aqui no Rio de Janeiro, diria também que em São Paulo, então eu

acho que a confusão, aí, pode ser muito pior em outros lugares do Brasil.

A confusão e a imprecisão conceituais, apontados pelo professor Moraes

(1995), também se reproduz nos conceitos de paisagem, lugar e território que

ora se diferenciam, ora se confundem. O território parece ser a relação

sociedade/natureza e, por outro lado, o conjunto das paisagens; parece, às

vezes, que território é espaço e, ainda, lugar. Ainda incorpora as idéias de

Milton Santos (1996) e apresenta o conceito de território como o sistema de

objetos e, assim, a Geografia ora é compreendida como o estudo do território,

ora como o estudo do espaço. O mesmo acontecendo com os conceitos de

paisagem e lugar.

A paisagem, para os autores, é “algo criado pelos homens, é uma forma de

apropriação da natureza”. Se, em lugar de paisagem, afirma-se que o espaço é

algo criado pelos homens e é uma forma de apropriação da natureza, os dois

conceitos teriam o mesmo sentido.

E finalmente o conceito de lugar. Para os autores, o “sentimento de pertencer a

um território, e à sua paisagem, significa fazer deles o seu lugar de vida e

estabelecer uma identidade com eles”.

Os conceitos são permeados pela idéia de subjetividade, imaginário,

concedendo um peso muito forte ao espaço vivido, ao espaço da experiência

imediata, que, embora possa se transformar em uma contribuição, não deve se

limitar a isso. O espaço é vivido, é experienciado, mas é também concebido, é

também produzido. E produzido e concebido de acordo com o que é a

sociedade e construindo-se enquanto sociedade. E aí não dá para fugir da

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Page 44: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

escala global, se refugiar na escala local, sem fazer análise do Capitalismo

enquanto tal. Em função do Marxismo, que influenciou o pensamento

geográfico, não ter realçado os aspectos da subjetividade humana, e ter

privilegiado as categorias da luta de classes ou as categorias econômicas, o

que se propõe agora é jogar a água suja fora com o bebê.

Eu vou encerrando por aqui, queria só fazer algumas considerações finais. Do

meu ponto de vista, os PCNs nos confundem mais do que nos ajudam.

Considero que os aspectos da consciência, do vivido, da experiência de vida,

que a Fenomenologia nos traz como uma reflexão, são importantes e não

devem ser desprezados, pois dizem respeito à condição humana. Mas, de

certa forma, os PCNs não nos ajudam nessa reflexão. Porque se nós ainda

entendemos que o homem é essa síntese da objetividade/subjetividade, as

duas dimensões são fundamentais para entendê-lo e, portanto, a produção do

seu espaço e vice-versa. Então, talvez seja interessante começarmos a

debater a relação entre a Fenomenologia e o Marxismo, que considero um

caminho interessante. Não é jogar as duas coisas no mesmo saco, mas

conversar sobre a relação entre essas coisas. Mas, o peso dado aos PCNs é o

peso do indivíduo e da individualidade e, aí, me parece que cai, sobretudo, na

concepção liberal de homem, de sociedade, de indivíduo e que perde de vista

vários aspectos que também são importantes. Porque se nós somos sexo,

etnia, gênero, nós ainda continuamos sendo classe, porque o Capitalismo

ainda continua sendo a luta de classes. Talvez aí seja o nosso ponto de

conversa com os PCNs e com as propostas curriculares. Pensar a condição

humana e, sobretudo, pensar a crítica à sociedade capitalista – aliás é assim

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Page 45: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

que eu entendo a crítica: a crítica para mim deve se confundir com a crítica à

sociedade capitalista – a partir destas contribuições do vivido, do concebido, do

produzido, como, de certa forma, uma parcela de geógrafos vem buscando

apresentar nestes anos de renovação.

Para finalizar, apenas um comentário sobre a estrutura temática dos PCNs.

Quando analiso os conteúdos (página 40 do documento), percebo problemas

maiores. Por quê? Nos eixos temáticos, colocados para o terceiro ciclo, estão:

“a Geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do mundo”; “o

estudo da natureza e a sua importância para o homem”; “o campo e a cidade

como formações sócio-espaciais”; “a cartografia como instrumento de

aproximação dos lugares e do mundo”. (PCNs, 1999: 40).

Mais uma vez se reproduz a questão teórica do “lugar” da natureza nos

estudos geográficos que, nos PCNs, aparece apartada das questões

relacionadas ao lugar, a paisagem, ao território, ao espaço e,

fundamentalmente, ao próprio homem.

Embora considere a cartografia como instrumento da análise geográfica da

realidade, tenho dúvidas, como apontado por Sposito (1999), se ela deva se

transformar em uma temática do programa, ou deva permear todo o currículo

de Geografia.

De qualquer forma, essa distribuição dos eixos temáticos nos faz pensar nas

velhas fragmentações homem/natureza, sociedade/espaço, que conhecemos e

criticamos bastante, mas que, ainda, são nossos fantasmas.

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Page 46: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Conclusão

Para finalizar, diria que os PCNs, do ponto de vista de seu conteúdo teórico,

constituem um documento a mais para o debate. Não é o principal, não é o

único, mas é um documento para o debate, para a reflexão. Observando as

propostas de Geografia do Colégio Pedro II, dos municípios do Rio de Janeiro

e de Niterói, os PCNs não trazem muitas novidades. Quando observo os livros

didáticos de primeira à quarta série – e os currículos que lhes são apenas

cópias – verdadeiros amontoados de conteúdos geográficos, considero que os

PCNs podem significar algum avanço. Porque em muitas obras didáticas não

há perguntas, questões a responder, a problematizar, mas apenas conteúdos

com pouca ou nenhuma articulação.

É lamentável que os autores dos PCNs, utilizando-se, mesmo que

confusamente, dos temas e debates que vinham sendo travados, desde o final

da década de 1970, nos Departamentos, nos Congressos da AGB, não nos

permitiram o papel de interlocutores.

Do ponto de vista da política educacional, os PCNs assumem um caráter

perverso, dado que o próprio MEC explicita que a política de currículo lança

luzes para as políticas do livro didático, de formação de professores, de

avaliação externa. Então, todos os problemas que possamos identificar nos

PCNs, com certeza, trarão conseqüências para esses outros campos de nossa

atuação política e profissional.

A Geografia deveria ser um discurso sobre a condição humana, pelo viés de

sua espacialidade. Quando Milton Santos insiste nisso, eu acho que não é por

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Page 47: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

capricho, mas porque cada vez mais a nossa experiência de vida é o espaço,

não é mais aquela natureza pretérita, passada, natural. Cada vez mais o

espaço é a sociedade. O espaço cada vez mais denso de História, de

sociedade e de técnica. E mais, o mundo hoje tem a cara da escala, que é um

conceito que nos é muito próximo. Então, analisar a condição humana, nessa

virada de século, pelo instrumental da Geografia, é uma coisa que não

podemos perder de vista. Mas nós temos que aprofundar o debate sobre o que

é espaço, sobretudo porque ainda vigora entre nós a idéia do espaço absoluto,

aquele espaço eterno, que existe independente da ação humana, anterior a ela

e que, portanto, impõem-se ao homem como condição eterna, Ou seja, nós

ainda não conseguimos visualizar o homem em nossas análises do espaço.

Para finalizar, diria o seguinte: eu vinha para cá ouvindo o Cartola, o que me

despertou para o debate sobre a condição humana, sobre tudo isso de que

tratamos, sobre a Fenomenologia. Assim, gostaria de construir, numa mesa, a

crítica da sociedade, que fosse a síntese das idéias de Marx e Rosa

Luxemburgo - crítica à sociedade capitalista - do Guevara - um homem que

viveu, construiu a revolução - do Cartola - biscateiro e poeta da Mangueira - e

do Noel Rosa - poeta da Vila Isabel. De maneira que ela seja construída, de

onde viesse - do gênero, da raça, do lugar, da crítica política, da crítica

ideológica, da cultura - como, fundamentalmente, crítica à alienação humana

na sociedade capitalista, que ainda precisa ser transformada.

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Page 48: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Quadro 1

Os Conceitos Geográficos nos PCNs

Território

Área de vida em que a espécie desempenha todas as suas funções vitais ao longo do seu

desenvolvimento. Território é o domínio que os animais e as plantas têm sobre porções da

superfície terrestre (Biologia, séc. XVIII. Augusto Comte incorporou aos estudos da

sociedade).

Apropriação do espaço, ou seja, o território, para as sociedades humanas, representa

uma parcela do espaço identificada pela posse. É dominado por uma comunidade ou por

um Estado (Geografia, Ratzel). Na geopolítica, o território é o espaço nacional ou a área

controlada por um Estado-nacional: é um conceito político que serve como ponto de

partida para explicar muitos fenômenos geográficos relacionados à organização da

sociedade e suas interações com as paisagens. (p. 27).

O território é uma categoria fundamental quando se estuda a sua conceitualização ligada

à formação econômica e social de uma nação. Nesse sentido, é o trabalho que qualifica o

território como produto do trabalho social.

Além disso, compreender o que é território implica também compreender a complexidade

da convivência, nem sempre harmônica, em um mesmo espaço, da diversidade de

tendências, idéias, crenças, sistemas de pensamento e tradições de diferentes povos e

etnias.

O território refere-se a um campo específico do estudo da Geografia. Ele é representado

por um sistema de objetos fixos e móveis, como, por exemplo, o sistema viário urbano

representando o fixo e o conjunto dos transportes como os móveis. (p. 28)

Pode até mesmo ser considerado o território como o conjunto de paisagens.

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Page 49: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Territorialidade

É fundamental reconhecer a diferenciação entre a categoria território e o conceito de

territorialidade. Enquanto a categoria território representa para a Geografia um sistema de

objetos, sendo básica para a análise geográfica, o conceito de territorialidade representa a

condição necessária para a própria existência da sociedade como um todo.

Paisagem

Compreensão subjetiva da paisagem como lugar, o que significa dizer: a paisagem

ganhando significados para aqueles que a constroem e nela vivem; as percepções que os

indivíduos, grupos ou sociedades têm da paisagem em que se encontram e as relações

singulares que com ela estabelecem. (p. 27). Pode até mesmo ser considerado o território

como o conjunto de paisagens. A paisagem é algo criado pelos homens, é uma forma de

apropriação da natureza.

A paisagem é definida como sendo uma unidade visível do território, que possui

identidade visual, caracterizada por fatores de ordem social, cultural e natural, contendo

espaços e tempos distintos; o passado e o presente. A paisagem é o velho no novo e o

novo no velho!

Quando se fala da paisagem de uma cidade, dela fazem parte seu relevo, a orientação

dos rios e córregos da região, sobre o quais se implantaram suas vias expressas, o

conjunto de construções humanas, a distribuição de sua população, o registro das

tensões, sucessos e fracassos da história dos indivíduos que nela se encontram. É nela

que estão expressas as marcas da história de uma sociedade, fazendo assim da

paisagem um acúmulo de tempos desiguais. (p. 28)

Lugar

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Page 50: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

A categoria paisagem, por sua vez, também está relacionada à categoria lugar, tanto na visão

da Geografia Tradicional quanto nas novas abordagens. O sentimento de pertencer a um

território e a sua paisagem significa fazer deles o seu lugar de vida e estabelecer uma

identidade com eles. Nesse contexto, a categoria lugar traduz os espaços com os quais as

pessoas têm vínculos afetivos: uma praça onde se brinca desde criança, a janela de onde se

vê a rua, o alto de uma colina de onde se avista a cidade. O lugar é onde estão as referências

pessoais e o sistema de valores que direcionam as diferentes formas de perceber e constituir a

paisagem e o espaço geográfico. É por intermédio dos lugares que se dá a comunicação entre

o homem e o mundo.

Bibliografia

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História, Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, 1ª à 4ª séries, 1997.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, 5ª à 8ª séries, 1999.

CARLOS, A. F. A. & OLIVEIRA, A. U. Org. Reformas no mundo da Educação – parâmetros curriculares e Geografia. São Paulo: Contexto, 1999.

LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988.

MARX, K. Manuscritos económicos-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.

MORAES, A. C. R. "Propostas Curriculares de Geografia". In "As Propostas curriculares oficiais – análise das propostas curriculares dos estados e de alguns municípios das capitais para o ensino fundamental". São Paulo: Fundação Carlos Chagas, Departamento de Pesquisas Educacionais, Projeto MEC/UNESCO/FCC: Subsídios à elaboração dos PCNs, 1995.

MOREIRA, R. O discurso do avesso (para a crítica da Geografia que se ensina). Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987.

SANTOS, M. A natureza do espaço - técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

SPOSITO, M. E. B. "Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Geografia: pontos e contrapontos para uma análise". In Reformas no mundo da Educação – parâmetros curriculares e Geografia. São Paulo: Contexto, 1999.

O livro didático e a construção do conhecimento no ensino de Geografia

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Page 51: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

nas séries iniciais do Ensino Fundamental

Irene de Barcelos Alves3

Nossa história com o livro didático para as primeiras séries do Ensino

Fundamental, em parceria com a professora Marília Bacellar, teve início

quando participamos do trabalho de reformulação curricular do ensino de

Geografia na rede pública municipal do Rio de Janeiro, no final da década de

1980. Trabalho este realizado em duas fases, do qual participei apenas da

primeira. Foi a partir do contato com professores de todo o Ensino

Fundamental, que identificamos as dificuldades que encontram no trabalho

com as disciplinas de História e Geografia, uma vez que, em geral, são

carentes de uma formação especifica nessas áreas. Faltavam-lhes os

conceitos básicos das disciplinas. Por outro lado, são professores que têm uma

maior disponibilidade de tempo, um maior contato com as crianças e uma

formação que lhes confere um domínio didático que o professor de 5a a 8a

séries, muitas vezes, não dispõe. Esta carência na formação dos professores a

partir da 5a série, decorre do modelo adotado pelas Universidades que não os

prepara para este convívio com a criança, nem para a criação de trabalhos

adequados à faixa etária dos menores, tão pouco para o trabalho lúdico na sala

de aula etc.

Surgiu, daí, a necessidade de elaborar um livro que contemplasse a base

teórico-conceitual, através dos conceitos fundamentais de História e Geografia,

adequando-os à prática didática do professor das primeiras séries do Ensino

3 Professora do Centro Federal de Ensino Tecnológico – CEFET.

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Page 52: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Fundamental. Em nossa concepção, o professor de 1a a 4a séries não vai

desenvolver a História e a Geografia, mas construir os alicerces fundamentais

para a aprendizagem dessas disciplinas. Na realidade, ele vai apresentar os

conceitos e desenvolver as habilidades que, mais tarde, os professores do

segundo segmento irão ampliar. Considerando que as duas disciplinas ainda

são trabalhadas em conjunto, mesmo que já se discuta no MEC a separação,

priorizamos os seguintes conceitos na construção da coleção de livros:

trabalho, natureza, espaço, grupos sociais/sociedade, tempo e cultura.

Estes conceitos são apresentados através de uma série de atividades

propostas que possibilitam sua compreensão pela criança. O conceito de

espaço, por exemplo, tão importante para a Geografia, é apresentado e

trabalhado a partir das vivências espaciais dos próprios alunos, partindo-se

sempre do mais próximo e conhecido para, depois, trazer realidades mais

distantes.

E quanto às habilidades: quais são aquelas fundamentais para serem

desenvolvidas nessa faixa etária? Em termos gerais, trabalhamos com

classificação, ordenação, orientação e localização, levando o aluno a observar

mudanças e permanências, bem como estabelecer relações que possibilitem

algum grau de análise e posicionamento crítico perante fatos e situações.

Contudo, ao longo do trabalho com os conceitos geográficos, há uma

habilidade que se torna fundamental: é a capacidade de leitura e confecção de

mapas. É transformar o aluno em um sujeito mapeador, capaz de elaborar e ler

mapas. Também é importante o resgate da história dos mapas e seu papel

fundamental na conquista e domínio do território.

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Page 53: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

O desenvolvimento da habilidade de leitura de mapas é um dos grandes eixos

de introdução ao saber geográfico nos primeiros anos do Ensino Fundamental.

As dificuldades que depois surgirão, para a leitura e interpretação dos mesmos,

decorrem da não realização/efetivação destes procedimentos. O aluno deve,

primeiro, se tornar um mapeador para, depois, ser capaz de compreender o

código formal que compõe o mapa. Para alcançar este objetivo, propomos a

elaboração de maquetes, confecção de plantas baixas, exercícios de

interpretação e localização, para que o aluno entenda a construção/

composição dos mapas através do uso da legenda e da escala. De início, o

aluno não domina todos esses elementos e a escala aparece como um

problema específico. O aluno não consegue realizar as operações matemáticas

de conversão. Isto acaba induzindo-o a decorar as relações métricas que a

escala representa, sem entender o que aquilo quer dizer. Se começarmos

medindo a sala de aula, utilizando objetos concretos como barbante e cabo de

vassoura, e depois relacionarmos as medidas encontradas com objetos

menores, como pedaços de pau, fósforo ou borracha, a criança será capaz de

perceber as relações de proporção, independente da operação numérica. Este

processo é gradual e, por vezes, o professor, na ansiedade de que o aluno

aprenda, acaba atropelando o tempo de aprendizado da criança. É necessário

sinalizar ao professor que a criança muitas vezes ainda não está madura para

a execução do raciocínio matemático formal, o que não impede a compreensão

do conceito.

Inicialmente os alunos se encantam pelo estudo da História e da Geografia,

depois afirmam que ambas são disciplinas para decorar. O que acontece?

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Page 54: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Percebemos que a resposta está nas estratégias e nos instrumentos que nós

passamos a utilizar. Deixamos de observar o cotidiano e supervalorizamos o

texto formal, como se o texto em si encerrasse toda a percepção da Geografia.

A partir desta constatação, procuramos resgatar outras linguagens. A presença

do lúdico, dos trabalhos de campo e do estudo das artes procura tornar o livro

um veículo de informação e descobertas prazerosas. A inclusão do manual

procura dar ao professor um embasamento teórico para o desenvolvimento dos

conteúdos e atividades. É essencial que tanto o aluno quanto o professor se

sintam atraídos pelo livro.

Enfim, elaborar material didático é um trabalho de Penélope. É um processo de

construção ininterrupto e longo, num contínuo fazer e refazer para que haja a

possibilidade do aprender e de progredir. Esperamos que o livro didático,

especificamente a coleção de nossa responsabilidade, seja uma contribuição

para o professor, dando-lhe a oportunidade de ampliar ainda mais o seu

trabalho em sala de aula.

A importância do ensino de Geografia no Ensino Fundamental e Médio

Marília Gomes de Oliveira Bacellar 4

4 Professora do Centro Universitário Augusto Motta e do Colégio Pedro II.

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Page 55: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

O objetivo de nossa presença neste encontro é de tentar trazer uma

contribuição ao ensino de Geografia, a partir de nossa experiência, acumulada

ao longo de muitos anos, como professora de Geografia no segundo segmento

do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior em instituições

privadas.

Porque, e para que, fazer ou estudar Geografia?

As pessoas ainda não perceberam que a Geografia faz parte de nossas vidas,

de nosso cotidiano.

Há pouco tempo, um aluno de 7a série virou-se em sala e disse:

“Professora! A senhora poderia falar um pouco sobre aquele ‘cara’ que tem um mapa na cabeça? Meu pai estava conversando com alguns amigos e ele não sabia quem era. Eu disse que iria perguntar para a minha professora que sabe tudo!”

O conteúdo que estávamos trabalhando no momento era justamente Europa e

aproveitei para falar de Gorbatchev e de sua importância política, para que o

aluno pudesse “dar aula” ao pai.

Então, ele me disse: “Isto é muito importante! Vou ganhar pontos ‘à beça’ com

meu pai, se eu lhe ensinar tudo isso sobre aquele tal ‘homem com o mapa na

cabeça’.”

Outro exemplo, para mostrar como as pessoas, indiretamente, estão fazendo

Geografia, é o interesse nos conflitos do Oriente Médio. As lutas constantes

naquela região provocam curiosidade. Onde ficam Israel, Cisjordânia,

Palestina? Quem é Yasser Arafat?

Se pensarmos nos trajetos que percorremos todos os dias, circulando pela

cidade e observando as mudanças que a paisagem sofre, estamos fazendo

Geografia; quando analisamos notícias de jornais ou acompanhamos em

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Page 56: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

tempo real, pela mídia, ações que estão acontecendo do outro lado do mundo,

estamos fazendo Geografia; quando saímos para trabalhar ou passear e

observamos o tempo, isso também é fazer Geografia, só que as pessoas não

percebem.

Então vejam! Para a escola, ensinar Geografia dessa forma é muito importante.

Ela não deve ignorar os conceitos espontâneos que o aluno possui, ou seja,

uma bagagem de conhecimentos adquiridos gradativamente ao longo da vida e

que não podem ser substituídos de uma hora para outra por conteúdos formais,

que para esse aluno não têm nenhum significado. Mesmo porque, o tempo de

permanência na escola é muito pequeno para que nossas “verdades

acadêmicas” tornem-se oficiais.

O papel da escola é transformar esses conceitos (geográficos) espontâneos,

principalmente no Ensino Fundamental, em conceitos científicos e habilidades,

tais como mapear o seu espaço na escola ou seu espaço de vida, incentivando

a sua transposição para o papel, com a criação de símbolos para os

“acidentes” que ele encontrar em seus trajetos e achar mais relevantes. Assim,

estará criando habilidades para, no futuro, perceber e ler legendas, interpretar

mapas etc.

Uma atividade muito utilizada para o ensino fundamental é fazer a criança

contar os componentes da turma, separando-os por sexo, idade, altura ou outro

parâmetro que o professor indicar e depois construir um gráfico bem simples e

colorido. Isso nada mais é do que a base para a leitura posterior de gráficos,

tabelas, ou seja, a construção de habilidades que serão úteis nas séries mais

avançadas.

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Page 57: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Outro aspecto do ensino de Geografia a se discutir, é a interdisciplinaridade.

De um modo geral, o professor é muito solitário no trabalho que realiza em sala

de aula. Por uma série de fatores, ele tem pouca oportunidade de trocar idéias

com os colegas da sua própria disciplina e muito menos aprofundar o contato

com colegas de disciplinas diferentes, se a escola não promover e até forçar

esses encontros.

A Geografia, dentro desta perspectiva, pode se relacionar com várias

disciplinas, como, por exemplo, Ciências, no estudo dos problemas ambientais,

de saneamento, de saúde, do solo etc; com Língua Portuguesa, na leitura,

interpretação e construção dos textos; com Matemática, para a construção de

gráficos, escalas etc.

Enfatizamos sempre o cuidado, mesmo nas séries mais altas, de se partir para

a construção de habilidades e conceitos da realidade próxima ao aluno.

Quando se trabalha Brasil, por exemplo, numa 6a série, devemos iniciar a

construção do conhecimento pelo lugar onde o aluno vive e convive, analisar

seus problemas com o auxílio de outras disciplinas, para depois, então, partir

para a análise de outros espaços que ele não conhece, mas que, a partir da

base conceitual e de conteúdos apreendida, possa compreender. A partir da

observação de diferenças sociais que estão ao seu lado, aqui no Rio de

Janeiro, podemos, depois, extrapolar para outras regiões. Mais tarde, quando

precisarmos trabalhar com a regionalização do mundo, os conceitos já estarão

consolidados. Não se pode esquecer da importância da utilização de mapas

em todos os segmentos de ensino de Geografia.

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Page 58: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Essa visão que norteia o ensino de Geografia, mais centrada na atuação do

homem sobre o meio físico, leva muitos professores a se perguntar: onde

vamos colocar o relevo, o clima, a vegetação, a hidrografia? Lógico que os

aspectos físicos estão presentes, não mais em compartimentos estanques,

como se fazia há algum tempo, mas inseridos nas relações do homem com a

natureza, nas modificações que o homem faz no espaço para transformá-lo em

seu espaço de vida e nas conseqüências dessa ação.

Esses processos serão mais desenvolvidos no Ensino Médio, quando

passamos a trabalhar com grandes temas. Por grandes temas nos referimos,

por exemplo, aos grandes problemas rurais e urbanos, ao processo industrial,

aos problemas da energia e do transporte, às questões demográficas e suas

conseqüências, até chegarmos na regionalização do mundo em grandes blocos

econômicos, no processo de globalização e seus efeitos.

A idéia que algumas instituições de Ensino Médio têm, principalmente as

particulares, de preparar seus alunos para o vestibular, faz com que, às vezes,

aceleremos os programas, o que torna as informações muito superficiais,

servindo apenas para “passar” nas provas. Na nossa opinião, a escola de

Ensino Médio não tem essa função, mas sim a de terminalidade de um ciclo de

estudos. Isso não quer dizer que não ofereçamos ao aluno a oportunidade de

ascender a um outro nível de ensino, apesar desse processo não espelhar a

realidade brasileira em termos educacionais. Os que conseguem a

terminalidade no Ensino Médio e, com ela, um lugar no mercado de trabalho, já

deram um grande passo.

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Page 59: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Para concluir nossa participação, gostaríamos de falar um pouco sobre a

utilização do livro didático. Para muitos professores ele se torna o único

instrumento em sala de aula, o que é um perigo, pois algumas obras

apresentam erros conceituais, opiniões fechadas sobre determinados assuntos.

O livro didático deve ser mais um instrumento de trabalho em sala; pode e deve

ser um sintetizador de conteúdos, mas não o único. Ao aluno, deve ser

permitido expressar sua opinião sobre os temas levantados em classe. Ao

professor, cabe orientar sobre fontes de pesquisa, promover discussões e

debates, mostrar aos alunos que fazer Geografia é criar uma consciência

crítica, é estar antenado com o que está acontecendo em sua comunidade, no

Brasil e no mundo, e perceber que as ações locais vão ter repercussões

globais.

É assim que entendemos o ensino de Geografia.

O exame vestibular e suas relações com o ensino de Geografia

Ana Regina Vasconcelos Ribeiro Bastos5

5 Professora Assistente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Colégio Pedro II.

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Page 60: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Relembrando o que colocávamos no dia da abertura deste seminário, em que

tive a incumbência de apresentar o professor Antonio Carlos Robert de Moraes,

a motivação maior para essa série de encontros foi se repensar o planejamento

curricular no ensino da Geografia diante das reformas que estão sendo

implementadas pelo MEC no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

Na verdade, o título do tema a mim endereçado para este ciclo de debates, se

definiu a partir da contraproposta que fiz à sugestão inicial dos colegas do CAp-

UERJ, que seria falar sobre: “o Ensino Médio, a Geografia a e o vestibular”.

Considerando que a sugestão dos colegas é mais adequada aos propósitos

deste seminário, resolvo enfrentar o desafio de retomar o tema original, até

porque avaliei que não é possível pensar em reformulação no Ensino Médio

centrado na questão do vestibular.

Sem dúvida, há muito que se discutir sobre o Ensino Médio no contexto da

reforma educacional que está sendo estabelecida a partir das Diretrizes

Curriculares Nacionais e dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino

Médio. Dessa forma, partindo de uma escala mais abrangente, dividirei minha

exposição em três partes. Em primeiro lugar, farei considerações sobre a

reformulação do Ensino Médio, apontando para as questões de fundo que

precisam ser enfrentadas para se pensar em reformulação curricular. Num

segundo momento, tentarei abordar criticamente como a Geografia é

apresentada nesses documentos oficiais. Em terceiro lugar, então, eu tratarei

do novo modelo do vestibular da UERJ e como a Universidade está

enfrentando estas transformações, destacando, principalmente, o que concerne

à Geografia.

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Page 61: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Com relação à reforma do Ensino Médio, entendo que a palavra de ordem é

“cuidado”, muito cuidado, todo cuidado é pouco! Vivencia-se uma reforma de

ensino que apresenta um discurso extremamente sedutor do ponto de vista

pedagógico. Este, vem sendo assimilado por pessoas, colegas nossos,

bastante progressistas que, inclusive, no passado, sempre foram contestadores

de uma ordem política que leva à exclusão. Na verdade, isto se dá porque o

governo tem o apoio dos meios de comunicação; esse discurso penetra no

senso comum e sem um olhar atento para o que está por trás dele, podemos

embarcar numa “canoa furada” no encaminhamento de uma proposta

curricular, obedecendo às Diretrizes e aos Parâmetros Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio.

Não vou optar por uma discussão filosófica a respeito desses documentos

porque não me sinto preparada para tal. No entanto, tenho uma intuição de que

os textos que constituem as bases legais desses documentos, especialmente

os escritos no volume 1 dos PCNs, são objeto de análise extremamente fértil

para uma discussão filosófica, sociológica e psicológica, na medida que eles

estão a serviço da adequação social do indivíduo diante da inquietação

provocada por um momento social marcado pela insegurança, pela

instabilidade e pela própria exclusão.

Tratando dos aspectos mais objetivos dessa reforma, é preciso entender que

ela se dá num contexto em que há, na América Latina, uma homogeneidade no

discurso sobre o tema, ligado à urgência de reformas educacionais orientadas

para a melhoria de qualidade dos sistemas de ensino. Há uniformidade ainda

nos eixos norteadores. Esses eixos são a descentralização, a qualidade, a

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Page 62: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

flexibilização, a modernização e as novas tecnologias. Os mesmos são

tratados dentro de uma perspectiva em que seriam a base de um poder

redentor no campo social, no qual a Educação sozinha, orientada para atender

ao modelo produtivo atual, iria levar à superação de todos os problemas

nacionais dos países da América Latina.

É preciso refletir sobre em que circunstâncias políticas e sociais esse discurso

aparece. Como foi construído o consenso sobre a urgência das reformas

educacionais? Quais são os atores sociais dessas reformas que têm tanta

uniformidade?

O argumento dos que estão à frente da construção dessa reforma é bastante

sedutor; o argumento é a qualidade, justificando o discurso.

Embora o senso comum associe sempre a palavra reforma à situação de

avanço, de progresso, é preciso entendê-la através de uma associação às

relações de poder. A educação não é uma prática social autônoma e essa

reforma vem servindo para legitimar um determinado projeto político social, que

se tornou hegemônico a partir de um dado momento histórico.

No caso da América Latina, foram realizados por organismos internacionais,

especialmente o Banco Mundial, e por técnicos locais, diagnósticos sobre os

sistemas educacionais. Inspirados em enfoques economicistas, esses

diagnósticos apontaram para a necessidade de reformas educacionais que

viessem favorecer a inserção desses países na lógica da competitividade de

um mundo globalizado. Na perspectiva neoliberal, observou-se uma crise de

eficiência, uma crise de eficácia e uma crise de produtividade no campo

educacional, manifestadas por uma série de variáveis, tais como: os sistemas

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Page 63: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

escolares são pesados e ineficazes, as despesas são excessivas, as práticas

pedagógicas são desatualizadas, há uma qualidade insatisfatória –

desvinculada das exigências postas pela transformação produtiva – e os

recursos didáticos são anacrônicos em face do avanço das novas tecnologias.

Chama a atenção, o enfoque economicista comum à reforma implementada

aqui pelo MEC e às reformas de outros países da América Latina, que vão

subordiná-las à lógica produtiva. Isto está bastante comprovado pelos

documentos do PREAL – Programa de Reforma Educacional para a

América Latina, que propõem um currículo moderno, sintonizado com as

necessidades do mundo do trabalho, que vem a exigir a formação de

indivíduos mais flexíveis, com mais autonomia, com maior capacidade de

comunicação. É evidente que esses atributos devem ser construídos nos

educandos, mas não podem estar associados a uma lógica empresarial,

definindo as competências a serem alcançadas no ensino de um país. A

Educação é mais do que isso.

Quanto aos atores sociais dessa reforma, não tenho dúvida que os grandes

protagonistas são os organismos internacionais. O Banco Mundial vem

assumindo um papel importantíssimo, com uma proposta ideológica orgânica,

no sentido de oferecer estratégias para a melhoria da qualidade do sistema

educacional. Prestando assistência técnica, o referido Banco vem operando

como um banco de idéias para essas políticas uniformes, investindo em

determinados aspectos que são até procedentes, como o aumento do tempo

de instrução, flexibilização dos horários, oferta de livros didáticos, capacitação

docente, mas, ao mesmo tempo, vem desestimulando os investimentos em

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Page 64: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

laboratórios, aumento dos salários dos professores, quantidade de alunos por

turma etc.

Há uma proposta clara para os países da América Latina, com algum processo

de modernização produtiva. As propostas embutidas nessas pesquisas,

seguem orientações que vão nortear as reformas educacionais desses países,

com indicação para o sistema nacional de avaliação e para reformas

curriculares. Neste ponto, considero que devemos tomar muito cuidado, porque

podemos correr o risco de aproximação com o trivial, com o superficial, ao

implementar essa proposta de reformulação como uma camisa de força para

amarrar o nosso planejamento curricular. Além disso, há uma proposta de

centralização que é descentralizadora, uma estratégia que evidentemente tem

uma lógica paradoxal: ao mesmo tempo em que promove a municipalização e

a estadualização da educação básica vai promover uma centralização através

do sistema nacional de avaliação e através de um currículo nacional único,

norteado aí por algumas competências em que o norte é a preocupação com

as novas tecnologias.

Vejamos como os PCNs do Ensino Médio confirmam que a reforma atual se dá

nas circunstâncias retratadas acima. Escolhi alguns trechos do documento para

mostrar e eles foram selecionados de forma aleatória. A minha impressão, ao

ler esses textos, é de que em qualquer página que se abra, há como encontrar

algo para confirmar as colocações que fiz.

Logo na apresentação, no primeiro parágrafo do volume 1 (Brasil, 1998), está o

seguinte:

“a consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudanças na produção de bens, serviços e conhecimentos

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Page 65: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

exigem que a escola possibilite aos alunos integrarem-se ao mundo contemporâneo nas dimensões fundamentais da cidadania e do trabalho.” (BRASIL, 1998)

Então, logo no primeiro parágrafo, há evidência de preparação para o trabalho,

há referência às novas tecnologias, à produção de bens e serviços etc.

Na página 14, um pouco mais adiante, está escrito o seguinte:

“a formação do aluno deve ter como alvo principal à aquisição de conhecimentos, a preparação científica e a capacidade de utilizar as diferentes tecnologias relativas às áreas de atuação.” (BRASIL, 1998: 14)

Mais a seguir, na página 102, no relatório que acompanha a resolução da

Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, está escrito

o seguinte: “o esforço de reforma teve como forte motivação inicial às

mudanças econômicas e tecnológicas”.

Observando esses documentos, podemos concluir o seguinte: o mesmo

governo que insiste na inserção desenfreada do país na economia globalizada,

reconhece a instabilidade provocada por tal opção e, ao mesmo tempo, propõe

uma reforma educacional que servirá para a adaptação do homem àquilo que é

a opção firmada.

Para nós de Geografia, por exemplo, é muito interessante observar o que está

na página 93, quando o texto faz referência ao fenômeno que eles chamam de

“a onda dos adolescentes”:

"A expectativa de crescimento do ensino médio é ainda reforçada pelo fenômeno chamado a onda de adolescentes, identificado em recentes estudos demográficos (...). Finalmente, como mostra o mencionado estudo, a onda de adolescentes acontece num momento de escassas oportunidades de trabalho e crescente competitividade pelos postos existentes. Na verdade, os dois fenômenos somados – escassez de emprego e aumento geracional de jovens – respondem pela expressiva diminuição (...) da porcentagem dos que já fazem parte da população economicamente ativa." (BRASIL, 1998: 93)

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Page 66: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Isto não é novidade nenhuma para nós, pois se trata de um fenômeno

demográfico: com a queda da taxa de natalidade, vai se dando uma mudança

na estrutura etária, que apontará para um maior contingente de pessoas numa

faixa de idade que está a exigir sua inserção no mercado de trabalho.

É impressionante como é possível perceber no texto que o governo reconhece

a exclusão. Propõe um messianismo pedagógico através da reforma

educacional e não propõe, por outro lado, uma política de geração de

empregos para atender às necessidades de absorção pelo mercado de

trabalho dessa população que precisa de trabalho, para vislumbrar melhoria

nas suas condições sociais.

Quanto às três áreas do conhecimento estabelecidas pelas Diretrizes

Curriculares Nacionais do Ensino Médio (área de Linguagens, códigos e suas

tecnologias; área das Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias;

área das Ciências Humanas e suas tecnologias), somente gostaria de salientar

que, na nomeação delas, as palavras que finalizam cada uma são: “e suas

tecnologias”. Deixaremos isto para daqui a pouco, quando falaremos da nossa

área, das Ciências Humanas.

Para finalizar essa parte, queria enfatizar novamente o cuidado que devemos

ter na reformulação curricular, tendo como guia os “Parâmetros Curriculares”.

Na verdade, a expressão já tem uma conotação de medida: para – ao lado de;

metro – medida.

Não podemos cair na armadilha de um pensamento único que venha reforçar

um processo de modernização conservadora.

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Page 67: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

No meu entendimento, uma reforma educacional não poderia ter como

pressuposto a melhoria da qualidade de ensino, com o objetivo claro e único de

formar bons produtores e bons consumidores; quer dizer, um objetivo ligado à

lógica de mercado. Na minha perspectiva, a qualidade não pode estar reduzida

a esses aspectos técnicos.

Considero que as reformas educacionais adequadas deveriam, em primeiro

lugar, ser apoiadas nas pessoas; quer dizer, os sujeitos da comunidade

educacional que tivessem a preocupação com a valorização da pesquisa, da

produção teórica, sensibilidade para a qualidade social e cultural das escolas,

que vislumbrassem uma luta pela defesa do ensino público; isto sim é que

deveria estar norteando uma reforma educacional em geral. Na minha

perspectiva, haveria necessidade de se respeitar os processos históricos

diferenciados e a pluralidade cultural. Entendo que se deveria rejeitar a

subordinação do sistema educacional ao processo produtivo e à formação de

consumidores competentes. Haveria necessidade de se propor uma reforma

educacional em que a formação do indivíduo crítico e criativo não servisse

apenas para a adaptação à situação estabelecida, mas que fosse formado para

ser gestor da transformação, que pudesse reinventar a sociedade. E

finalmente, seria necessário enfatizar a defesa da Educação pública como

direito de todos. Entendo que um processo pedagógico coerente não pode

deixar de estabelecer a relação entre Educação e igualdade de oportunidades,

Educação e Justiça, Educação e solidariedade, Educação e diferença, também.

Quanto à Geografia nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, é

preciso dizer que essa reforma do MEC, sem dúvida, tem um caráter de

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Page 68: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

flexibilidade, e isto não é nenhuma novidade porque a palavra é norteadora do

novo modelo produtivo.

Mas, a partir disso, é possível encontrar algumas brechas para termos saídas

na reformulação curricular na nossa disciplina.

Entendo, sem dúvida, que a reforma, na verdade, é tudo e é nada, por permitir

essa flexibilidade. Nela, apenas duas coisas estão fechadas: uma, é que as

disciplinas estejam agrupadas nas três áreas do conhecimento; outra, que se

respeite, na terminalidade do ensino, os princípios da interdisciplinaridade e de

contextualização. Isto está colocado, posto para as escolas que têm de fazê-lo.

O resto, creio, devemos fazer “ouvido de mercador”, porque se adotarmos a

postura de realizar a reformulação curricular obedecendo a esses Parâmetros,

de forma cega e ao pé da letra, nós teremos uma situação de desmonte do

ensino neste país.

Com relação às palavras finais de cada uma das áreas, quando entrei em

contato com a nossa – Ciências Humanas e suas tecnologias – de imediato,

me pairou uma dúvida crucial: o que são “Ciências Humanas e suas

tecnologias”? Ficou o seguinte: isto está pressupondo que as Ciências

Humanas têm as suas próprias tecnologias? Ou este título serve para que se

utilize as Ciências Humanas como um instrumento da decodificação da

realidade da Revolução Técnico-científica e que venha propor uma adequação

do indivíduo a esta realidade?

Nos documentos, as duas situações são levadas em conta. Na página 164 do

volume 1, está escrito assim:

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Page 69: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

“...não se trata apenas de apreciar ou dar significado ao uso da tecnologia, mas de conectar os inúmeros conhecimentos e suas aplicações tecnológicas." (BRASIL, 1998: 164)

Mais adiante, diz o seguinte:

“dessa maneira, a presença da tecnologia no ensino médio remete diretamente às atividades relacionadas à aplicação dos conhecimentos e habilidades constituídos ao longo da educação básica, dando expressão concreta à preparação para o trabalho, prevista na LDB." (BRASIL, 1998: 164)

Podemos observar que a valorização tecnológica está presente no elenco das

competências gerais da área das Ciências Humanas. Li atentamente essas

competências e contei: de nove competências cinco fazem referência às novas

tecnologias e ao modelo produtivo. Vale lembrar que o discurso é que temos de

fazer um ensino em cima das competências. Também acho, devemos trabalhar

em cima de competências, mas não essas.

Há um entendimento das tecnologias acima, sob a ótica da organização

produtiva, e, ao mesmo tempo, concebe-se a idéia das tecnologias próprias

das Ciências Humanas, que vão envolver os processos de gestão e seleção e

tratamento das informações, ou tecnologias desenvolvidas a partir das Ciências

Humanas.

Consideram, nos documentos, que as Ciências Humanas têm importante papel

na compreensão do significado das tecnologias, no sentido do impacto que

elas podem promover na organização social: nisto estamos concordando.

Ressaltam a importância das Ciências Humanas para o entendimento de que

as modernas estratégias de planejamento e ação coletiva vêem requerendo,

cada vez mais, o emprego de tecnologias de comunicação e informação. Isto é

fato, mas nós temos que ter cuidado com a medida disso numa organização

curricular.

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Page 70: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

É muito interessante observar o que se diz no volume 4, página 36,:

"No aspecto social a difusão no domínio dessas tecnologias (...) propicia aos indivíduos meios para amenizarem as conseqüências negativas que o próprio processo de Educação provoca.” (BRASIL, 1998: 36)

E aí eu me pergunto: como é que o governo tem coragem de propor uma

reforma educacional para amenizar conseqüências negativas de um processo

de transformação que é adoçado e incentivado por ele próprio?

Quanto ao aspecto da interdisciplinaridade e da contextualização, vejamos o

que está nesses documentos. Na página 44 do volume 1 (Brasil, 1998), está

assim:

"a tendência atual, em todos os níveis de ensino, é analisar a realidade segmentada, sem desenvolver a compreensão dos múltiplos conhecimentos que se interpenetram e conformam determinados fenômenos. Para esta visão segmentada contribui o enfoque meramente disciplinar que na nova proposta de reforma curricular pretendemos pela perspectiva interdisciplinar e pela contextualização dos conhecimentos." (BRASIL, 1998: 44)

Aí, estamos diante do aspecto mais sedutor dessa reforma; o mais sedutor e o

mais perigoso, por conta do frisson que as escolas estão na busca da

interdisciplinaridade. É evidente que não podemos ser contra a

interdisciplinaridade. Ela é salutar, mas não pode ser vista como um ponto de

partida: é um ponto de chegada. Somente com o aprofundamento no campo

disciplinar é possível chegar à interdisciplinaridade. Não podemos dispensar a

observação de que a realidade é decodificada através do olhar interdisciplinar,

mas sem o aprofundamento no campo disciplinar, não se chega lá. Na minha

perspectiva, entendo que é necessário, sim, ter sensibilidade para o diálogo

entre as disciplinas. No entanto, quando uma disciplina, na escola, é o discurso

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Page 71: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

de uma ciência, não se pode perder de vista os limites do seu objeto, sob o

risco de cair no trivial, no superficial.

Passamos, no caso da Geografia, anos a fio, discutindo e tentando fazer o

convencimento de alguns professores mais conservadores de que teríamos

que fazer um trabalho apoiado na clareza do objeto, que teríamos que fazer

estudos sobre a Teoria da Geografia para construir um bom ensino.

Deveríamos fazer uma opção metodológica diante do nosso objeto definido e

estávamos sempre com uma preocupação marcada no sentido de desenvolver

a postura crítica.

Esta posição, para mim, não é fragmentadora, de jeito algum, ela é a base da

construção do conhecimento e é a base da apreensão da totalidade. E, neste

processo, a realidade vai se mostrar interdisciplinar, na medida em que o

diálogo seja salutar e permanente.

Vejamos, agora, como especificamente a Geografia aparece nos Parâmetros

Curriculares Nacionais do Ensino Médio.

O texto se inicia com uma discussão sobre a, já antiga, crise da Geografia,

relacionada à dicotomia entre “ciência da sociedade" e "ciência dos lugares", e

faz uma referência à renovação da Geografia a partir dos anos 70, levantando,

aí, que essa discussão ficou no âmbito da Academia, que houve um atraso na

assimilação disso pelas escolas de Ensino Fundamental e Médio e que havia

uma dificuldade de inserção da Geografia Crítica nas escolas.

Neste aspecto, o texto vai indo muito bem até que ele faz uma confusão

relacionada à história do pensamento geográfico. Por intenção, omissão, ou

interferência dos técnicos do MEC, há uma confusão na contextualização da

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Page 72: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Geografia Crítica, tornando ausente da discussão teórica a sua característica

fundamental, que é a perspectiva da denúncia. Na verdade, a Geografia Crítica

é vista, no documento, como uma forma de pensar a ciência que abandona a

dimensão do descritivo e se afirma como uma Ciência Social. Para o

documento, a Geografia Crítica é só isso. A sensação que tenho, lendo o texto,

é que houve convites a pessoas da nossa comunidade geográfica no sentido

de elaborá-lo, mas que se constituíram em consultoria e não em autoria, dando

a impressão de que houve interferências no texto original entregue.

Revelando essa oposição entre Geografia Crítica e Geografia Tradicional, há

uma opção pela Geografia Crítica. Há, no entanto, um encaminhamento para o

abandono, na formação do educando, da visão simplesmente apoiada na

memorização e na descrição, com informações sobrepostas de relevo, clima,

vegetação, população, agricultura, indústria etc, contrastando com uma

proposta de superação do modelo de "denúncia". Como ser crítico sem

denúncia, se isso está no contexto dessa corrente de pensamento geográfico?

Sobre os Parâmetros do Ensino Fundamental, sei que há uma situação de

rejeição a uma opção doutrinária pela via marxista. Mas a Geografia Crítica não

é somente doutrinada pela via marxista; a denúncia está embutida nesta

corrente de pensamento e ela não pode ser abandonada.

A proposta indica que o trabalho de Geografia no Ensino Médio deve estar

associado à construção de competências que permitam a análise do real e

ampliação das possibilidades de conhecimento estruturado e mediado pela

escola, que conduza à autonomia necessária para o cidadão do próximo

milênio. Aí eu pergunto: que autonomia? Autonomia para quê? Autonomia para

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Page 73: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

a adaptação ou autonomia para serem cidadãos que venham estabelecer uma

interferência na transformação? Não me parece que a transformação esteja

evidenciada no texto dos Parâmetros.

Cabe destacar o que aparece na página 62 do volume 4:

"entendemos que ao se identificar com o seu lugar no mundo, ou seja, o espaço de sua vida cotidiana, o aluno pode estabelecer comparações, perceber impasses, contradições e desafios do nível local ao global." (BRASIL, 1998: 62)

Será que é só para perceber os impasses? Nós não temos uma função de

motivar a inquietação para transformar?

Com relação a esse texto específico da Geografia, devo fazer um destaque

louvável no que diz respeito ao tratamento da interdisciplinaridade. No texto,

está colocada a ênfase à interatividade com outras disciplinas, sem que se

perca a especificidade e identidade. Mas isto está claro no texto da Geografia;

não está claro, para mim, em outros momentos desses textos.

A proposta da Geografia, para o Ensino Médio, ressalta que a construção do

ensino da disciplina pressupõe a escolha de um corpo conceitual que venha

atender aos objetivos anteriormente traçados. Agora, esses objetivos são

anteriormente traçados pelo MEC. Há sim, um rol de conceitos-chave, bem

colocados, inclusive indicando que não se utilize esses conceitos como um

receituário nos programas, e sim que eles venham a ser elementos

norteadores da organização curricular. Mas não está clara, para mim, a opção

metodológica dessa proposta. Na verdade, pelo que eu li, em relação aos

Parâmetros do segundo segmento do Ensino Fundamental, há uma crítica ao

ecletismo metodológico proposto. Mas, nesses Parâmetros para o Ensino

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Page 74: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Médio, eu não percebo ecletismo; simplesmente, não vejo a proposta

metodológica.

Na grade das competências e habilidades a serem desenvolvidas pela

Geografia, observa-se que qualquer conteúdo programático pode servir ao

atendimento do que propõem os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio,

desde que sejam valorizadas: a leitura e a interpretação de mapas, gráficos e

tabelas; o reconhecimento das escalas cartográficas e geográficas; a

observação dos processos de transformação dos territórios, ressaltando-se a

importância das novas tecnologias e o estabelecimento das redes sociais; a

análise das questões de degradação e preservação ambiental, dentro da

perspectiva interdisciplinar, identificando e avaliando o impacto das

transformações naturais, sociais, econômicas e culturais.

Resumindo, há flexibilidade; mas, os Parâmetros, embora com propostas, às

vezes, pertinentes, não contemplam, a meu ver, as possibilidades de

construção do conhecimento geográfico no Ensino Médio, mesmo que elas

também tenham que estar.

Esse caráter de flexibilidade, na verdade, é o grande escape dessa

reformulação. Ela permite uma mudança radical, mas conservadora. Fazer uma

leitura radical disso, levaria a uma subordinação do ensino da Geografia a ter,

como parâmetro, uma lógica comprometida com interesses do modelo

produtivo. Fazendo uma leitura com vista grossa, há saídas, desde que se

venha refutar a proposta de abandonar a perspectiva da transformação no

trabalho com o Ensino Médio.

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Page 75: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Com relação ao vestibular da UERJ, diante das transformações impostas pela

reforma do MEC, cabe fazer algumas considerações iniciais.

Na verdade, a equipe que compõe o DSEA – Departamento de Seleção

Acadêmica que planeja, coordena e executa o vestibular da UERJ – está junta

desde o vestibular 97, sob a direção do professor Paulo Fábio Salgueiro, que

trouxe, ao assumir, o propósito firmado de fazer alterações no modelo do

vestibular. Isto aconteceu justamente no momento em que estavam se dando

as transformações ligadas à reforma do MEC. Esse modelo novo foi construído

com um diálogo permanente com as escolas do Ensino Médio do Rio de

Janeiro, com uma preocupação na melhoria da qualidade do alunado que

chega à Universidade e com a busca permanente de formas de acesso que

fossem mais democráticas.

Havia necessidade de interagir com as escolas para que se pudesse avaliar

essas políticas educacionais que o MEC estava colocando, ajustar os pontos

essenciais de cobrança e avaliar o modelo que estava sendo construído.

De imediato, diante do dispositivo da LDB que confere autonomia didático-

científica às universidades para escolher seu processo seletivo, enfrenta-se a

questão, mediada pelo poder da mídia, de que o vestibular pode acabar.

Evidentemente que o vestibular não vai acabar, pelo menos para as

Universidades de maior prestígio social, onde se observa um descompasso

entre o número de candidatos e o número de vagas oferecidas pelo poder

público.

No caso da UERJ, este ano, no Exame de Qualificação, primeira etapa do

vestibular, houve mais de 130 mil pessoas inscritas, para um conjunto de 4.457

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Page 76: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

vagas. Quer dizer, é evidente que temos reconhecimento do caráter de

exclusão que este evento encerra e que não se tem condições de resolver.

Podemos lutar, enquanto cidadãos, no sentido de buscar junto ao poder

público, que este venha a oferecer maior número de vagas para as

Universidades públicas, mas é sabido que o trabalho desenvolvido nos

Departamentos que organizam os vestibulares não vai resolver essa questão

social.

Mas, de qualquer maneira, isso não pode nos inibir no sentido de buscar

formas de acesso que, pelo menos, promovam menor tensão e que venham

permitir maior leveza em um evento que, pelo seu caráter de exclusão, tem um

peso tão grande.

Começou-se a pensar em formas alternativas, entendendo que era preciso

avaliar o modelo até então vigente. O antigo modelo causava desconforto em

alguns aspectos. O primeiro deles, era o vestibular acontecer num único

momento; quer dizer, num único momento se definia quem entrava e quem não

entrava na Universidade. Além disso, havia um outro impasse, que era a

passagem da 1ª para a 2ª fase que se dava, através de um critério

administrativo, levando em conta a relação candidato/vaga por carreira. Então,

todo o trabalho que vinha se desenvolvendo na elaboração das provas ficava

parcialmente comprometido, na medida em que o parâmetro era administrativo

e não pedagógico.

Sem dúvida, o DSEA, que é o Departamento que realiza o vestibular da UERJ,

faz a interface entre a Universidade e o Ensino Médio e não pode deixar de

considerar as políticas educacionais que o MEC vem implementando. O

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Page 77: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

modelo foi construído levando em conta que, por mais que se possa ter críticas

de fundo, ou críticas sobre determinados aspectos dessa reforma, e como

vocês viram, eu, particularmente, tenho várias, é obrigação do Departamento

respeitá-la, aproveitando o seu caráter de flexibilidade, visto que as Diretrizes

para o Ensino Médio foram instituídas por uma resolução da Câmara de

Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. A construção do modelo

respeita o que está estabelecido pela resolução do MEC, mas aponta para a

possibilidade de se fazer uma leitura não literal dos Parâmetros.

Assim, neste novo modelo de vestibular, em sua primeira fase, que nós

denominamos de Exame de Qualificação, considerou-se o que está fechado

nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio: o agrupamento das

disciplinas nas três áreas do conhecimento; o respeito aos princípios da

interdisciplinaridade e da contextualização. A interdisciplinaridade é vista como

o final do processo, como ponto de chegada através do diálogo permanente

entre as disciplinas da área. A contextualização já era um princípio que vinha

norteando a elaboração das provas, antes mesmo da mudança do modelo,

porque sempre houve a preocupação da direção do Departamento em

encaminhar, como orientação às bancas elaboradoras de prova, o

estabelecimento de pontes entre o aprendido e as situações do real. Inclusive,

sempre chamamos essa prova, mesmo quando ainda não tinha acontecido a

mudança do modelo, de prova do direito do cidadão, no sentido de que sempre

se entendeu que todo o indivíduo que terminasse o Ensino Médio deveria ter o

direito, e não o dever, de ser bem sucedido nesta fase.

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Neste modelo, o Exame de Qualificação cria duas oportunidades, durante o

ano, para os candidatos. Em cada uma, esses candidatos são alocados em

quatro faixas de desempenho e o que estará valendo, é o melhor desempenho

dele numa ou noutra das chances dessa primeira etapa.

Há o encaminhamento, nesta cobrança dos conhecimentos nas três áreas

estabelecidas pelo MEC, para a aferição de determinadas habilidades e

competências. Só que essas competências aparecem de uma forma diferente

do que está nos Parâmetros. A coordenadora acadêmica do DSEA, a

professora Elisabeth Murad, foi muito feliz no sentido de elaborar uma grade de

competências estabelecidas em quatro categorias: observar, interpretar,

analisar e avaliar. Na categoria observar, as bancas são orientadas a fazer

questões que venham estabelecer o cruzamento entre os conteúdos propostos

para o Exame de Qualificação – que não são todos os conteúdos do Ensino

Médio, e sim, uma fração dos mesmos – no sentido de identificar, apontar etc.

Na categoria interpretar, se busca o cruzamento daqueles conteúdos para o

exame de qualificação, para aferir competências e habilidades de descrever,

discriminar, compor, explicar e classificar. Na categoria analisar, se faz a

proposta do cruzamento dos conteúdos, para aferir a habilidade de transferir

conhecimentos e levantar hipóteses. E na categoria avaliar, o cruzamento

daqueles conteúdos para aferir habilidades de crítica com base em critérios

internos e externos.

Com relação a este exame, no momento, a Geografia faz parte da área das

Ciências Humanas junto com a disciplina de História. Está se pensando na

inclusão de Filosofia e Sociologia. Estas disciplinas, que estão juntas no

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Page 79: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

momento, se prestam de forma exemplar à interdisciplinaridade. Há uma

convivência acadêmica, já de longa data, com relação à aproximação dessas

Ciências, havendo, também, uma convivência bastante próxima dos

professores da área das Ciências Humanas.

Na perspectiva de que a sociedade seja vista dentro da sua organização ao

longo do tempo e da sua expressão espacial, há grandes possibilidades para a

elaboração de programas e questões interdisciplinares.

Com relação à contextualização, se entende que há uma facilidade para

provocar o aluno a estabelecer a ponte entre o aprendido e as situações do

cotidiano.

O programa do exame de qualificação se apresentou com uma orientação

geral, com uma proposta de conteúdos básicos interdisciplinares e com uma

parte para os aprofundamentos disciplinares, no caso dessa área, da Geografia

e da História.

Após o exame, menos de um mês atrás [setembro de 2000], o DSEA promoveu

um grande seminário de avaliação do Exame de Qualificação do vestibular da

UERJ, onde foram convidados representantes de todas as escolas do

município do Rio de Janeiro. Em momentos diferenciados, foi feita a avaliação

deste modelo novo, nesta primeira fase: primeiro, a avaliação de sua

estruturação e, depois, um momento de avaliação para cada uma das áreas. A

direção do Departamento convidou professores da UERJ para avaliarem a área

que lhes competia. No caso da área das Ciências Humanas foram convidados

a professora Lúcia Bastos, representando a História, e o professor Helion

Póvoa, representando a Geografia.

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Page 80: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

Tentarei pontuar alguns aspectos levantados somente em relação à Geografia.

Com relação à orientação geral, foi colocado pelo professor Helion, que a

interdisciplinaridade não deve se dar apenas através dos conteúdos, que a

integração se dá através do objeto tratado na dimensão temporal e espacial.

Com relação aos conteúdos básicos interdisciplinares, do programa do Exame

de Qualificação, houve algumas críticas do professor. Quando se está tratando

do processo de globalização, faltaria uma periodização mais clara, para servir

de balizamento para os professores e para os alunos. Quanto à formação

espacial, territorial e regional questionou-se a restrição ao Século XIX,

levantando a omissão do programa em relação ao Brasil Colônia. Quanto à

questão da relação natureza-sociedade se enfatizou que a natureza só é

tratada na dimensão ambiental, embora tenha se reconhecido que a opção

facilita a interdisciplinaridade.

Em relação ao aprofundamento disciplinar, foi levantado que há uma ausência

da Geografia Física, também se reconhecendo que, isto deve ter acontecido,

para facilitar a elaboração de questões de caráter interdisciplinar. O professor

aponta para o fato de que a dinâmica da mobilidade da força de trabalho é

uma expressão que não cobre todos os processos relativos à Geografia, às

migrações e que os processos de crescimento da população não se encontram

contemplados no programa. Salientou o professor que houve uma preocupação

marcada com a atualização na elaboração do programa.

Em relação às provas, foi colocado que algumas omissões do programa vão

estabelecer alguns limites na formulação das questões, mas que as provas, no

geral, foram bem elaboradas e houve o uso criativo de materiais alternativos –

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Page 81: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

charges, ilustrações de época, músicas – e que esses materiais foram vistos

como fontes de informação e discurso sobre as sociedades em vários

contextos históricos e geográficos. Valorizou-se ainda a aferição da

competência de leitura – através das categorias interpretar, analisar e criticar –

e o destaque para os temas da atualidade. Considerou o professor que as

provas foram felizes na busca da interdisciplinaridade, não se limitando ao

conteúdo onde há a exploração rica dos recursos e, o que eu gostei mais, foi

colocado que está patente o posicionamento crítico frente às posições e

discursos pouco generosos do ponto de vista social; quer dizer, houve uma

preocupação com a construção da cidadania.

Com relação à segunda fase deste novo modelo – Exame Discursivo – a

Geografia aparece como uma disciplina para algumas carreiras, porque a

proposta, para esta etapa, é que todos os candidatos façam prova de Língua

Portuguesa Instrumental com Redação e mais três disciplinas específicas. Os

candidatos que fazem prova discursiva de Geografia, são submetidos a uma

cobrança com maior aprofundamento de conteúdo, devendo demonstrar

capacidade maior de organização das idéias, de estabelecimento de relações,

de interpretação dos fenômenos e dos processos, no campo da disciplina.

Para finalizar, entendo que, com todos esses problemas levantados, a

experiência nova do vestibular da UERJ pode apontar para a perspectiva de

que é possível fazer uma mudança, sem se apoiar nos elementos norteadores

da reforma que venham causar um esquema de “camisa de força”, por conta

do maior mérito desta reforma: sua flexibilidade.

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Page 82: Anais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulação Curricular e Ensino de Geografia

No caso do encaminhamento de uma reformulação curricular, a minha proposta

é que se venha a levar em conta que a Geografia, transformada em disciplina

escolar, deve contribuir para a formação do educando, no sentido de que ele

seja capaz de resistir e intervir na sociedade da qual é participante.

Bibliografia

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História, Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, ensino de 1ª à 4ª séries, 1997.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental – MEC/SEF, ensino de 5ª à 8ª séries, 1998.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio: Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica – MEC/SEMT, 1999.

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