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“A família de Légua tá toda na eira”:
tramas de parentesco nas relações entre pessoas e encantados1
Martina Ahlert (UFMA/ Maranhão/ Brasil)
Palavras chave: encantados, etnografia, parentesco
Na região dos Cocais, no leste do Maranhão (nordeste brasileiro), se localiza um
município chamado Codó. Com cerca de cento e vinte mil habitantes, ele é conhecido
no âmbito da literatura local sobre religiões afro-brasileiras e encantaria como o espaço
de referência dos encantados da mata, do povo de Codó, da família de Légua Boji Buá
(COSTA EDUARDO, 1948; BARROS, 2000; FERRETTI, 2001; ARAÚJO, 2008;
AHLERT, 2013). Essas referências falam sobre um conjunto heterogêneo de seres
comumente denominados como encantados, que são recebidos nos corpos de pessoas
por intermédio da incorporação, mas também notados em diferentes sensações, vistos
em sonhos ou materializados em lugares e objetos que os pertencem.
Encantados são seres mais que humanos que, no passado, foram pessoas. Sua
mudança de estatuto aconteceu diante do seu desaparecimento (sem morte), momento
em que se encantaram, passando a viver em um entre mundo de localização não exata
chamado de Encantaria. É desse contexto que se deslocam para o plano humano de
existência, onde se fazem presentes para trabalhar, aconselhar, dançar e acompanhar
determinadas pessoas. Em Codó, os encantados são recebidos no cotidiano e também
nos rituais de uma religião afro-brasileira denominada Terecô ou Tambor da Mata, que,
por sua vez, se organiza em torno de tendas de pais e mães de santo.
O encantado mais conhecido do Terecô de Codó é Légua Boji Buá da Trindade,
tido por alguns como de origem nobre, mas também como um importante vaqueiro,
aguerrido e apegado à confusão, valente, duro e consumidor de bebida alcoólica. Légua
Boji Buá comanda uma importante e numerosa família de encantados que, segundo
relatos, somam mais de quinhentas entidades2. Família é, segundo Mundicarmo Ferretti
(2000), uma das formas de organização das entidades maranhenses, que ainda podem
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Marcelo Senzala, presidente da Associação de Candomblé e Umbanda de Codó e Região, compartilhou comigo um levantamento pelo qual chegou aos números de 336 filhos homens e 214 filhas mulheres, totalizando 550 filhos de Légua Boji Buá da Trindade.
2
ser definidas por sua referência a linhas – como a linha da mata, onde estariam
classificadas as entidades de Codó - ou por referência a áreas geográficas.
Evidentemente, essas classificações apresentadas pela literatura são menos fixas do que
se sugere, podendo ser combinadas de maneiras diversas nas experiências das pessoas.
Neste texto3 eu pretendo pensar as relações entre pessoas e encantados a partir de
dois casos onde estes seres se cruzam em tramas de parentesco. Na sequência da
apresentação destes dois casos, sugiro que podemos pensar nas modalidades de relação
entre encantados e pessoas dando atenção à ideia de constituição da família, cuidado,
geração e noções de liberdade ou ausência de escolha. Pretendo mostrar como existem
similaridades e contribuições entre famílias de encantados e de pessoas, e não apenas
competição ou obrigações (aspectos bastante destacados na bibliografia sobre a
encantaria maranhense – ver FERRETTI, 2000; BARBOSA e BARROS, 2004;
CUNHA, 2013) – de forma que encantados e pessoas estão unidos em ações para
combater a solidão que ameaça à vida. Para tecer tais considerações, parto de uma
pesquisa etnográfica que realizo na cidade há pouco mais de cinco anos, quando tive
meu primeiro contato com o Terecô de Codó e com seus encantados. Desde o início
peço desculpas pelo caráter ainda experimental do texto.
Constituindo famílias
Pessoas e encantados possuem famílias. As famílias dos terecozeiros e as
famílias dos encantados não são consideradas idênticas. Elas são diferentes,
especialmente porque os encantados tem um poder de agência diverso do dos humanos.
Entretanto, há pontos de aproximação e semelhança entre ambas. Em Codó, o
parentesco entre as pessoas é marcado por uma noção de família não substantiva, aberta
e possível de ser continuamente modificada, que pode ser ‘aumentada’ e ‘diminuída’
dependendo do momento e do comportamento dos familiares.
A possibilidade de fazer parentes – de incluir pessoas na família – torna-se
evidente nos filhos de criação, bastante comum nas casas da cidade. A criação de filhos
3 Esse texto retoma aspectos da minha tese de doutorado (AHLERT, 2013), mas, ao mesmo tempo, traça alguns elementos novos, pensados a partir da relação com alunos meus que têm feito campo em Codó (Conceição de Maria Teixeira Lima, Marcos Carvalho Lamy e Luís Alfredo Lima) - com quem tenho débitos nesse e em outros textos.
3
não biológicos e a circulação de crianças (FONSECA, 1995; GODOI, 1999) 4
é
recorrente em Codó, e pode se dar entre membros da família (consanguínea ou afim) ou
ainda entre pessoas conhecidas, mas sem laços de parentesco. A prática é tradicional e
perpassa diferentes gerações, ganhando importância em virtude dos casos de migração
para outros estados do Brasil – quando, normalmente, o adulto que migra não leva seus
filhos, os deixando em Codó, para serem criados por familiares ou por conhecidos. Essa
pretensa maleabilidade (DA MATTA, PRADO E MOURÃO SÁ, 1975) não subtrai a
importância dada à família e aos parentes, aspecto fundamental nas relações cotidianas e
também na atribuição de sentido às experiências da vida (BOURDIEU, 1997).
Espera-se que as pessoas de uma mesma família – estejam ou não vivendo
próximas e sendo ou não consanguíneas – cuidem umas das outras. Isso se torna mais
visível em momentos de doença onde é comum, por exemplo, receber em casa algum
parente que vive distante e precisa de tratamento médico na cidade. Espera-se ainda que
a família sempre se lembre de seus parentes, colocando fotos nas paredes da sala,
colecionando lembranças de nascimento e morte ou ainda cultivando a memória nas
visitas ao cemitério quando do falecimento de alguém da família. Por fim, se espera
ainda de um membro da família faça companhia, visite, ajude na organização de rezas e
festejos. É em nome da família que são legitimadas e justificadas as decisões tomadas
pelos sujeitos, como mudança de local de moradia, transformações no espaço
doméstico, sacrifícios de tempo e dinheiro. Não compreender essas relações pode levar
ao sentimento de uma diminuição da família, pois enquanto coletivo, ela se constitui das
interações (ainda que à distância, ainda que com espaços de tempo consideráveis) entre
seus membros (LATOUR, 2012).
As entidades, por sua vez, também possuem diversas relações de parentesco
entre si5. Os encantados têm família e costumam fazer referência a ela para se
apresentarem, como o ponto cantado que segue, de uma entidade filha de Légua Boji:
4 Filhos de criação aparecem tanto na literatura sobre famílias de trabalhadores rurais no nordeste (Durham, 1984; Godoi, 1999, por exemplo), quanto na bibliografia sobre grupos populares urbanos em outras regiões do Brasil (Fonseca, 1995). 5 No tambor de Mina, religião que predomina na capital do Maranhão, mas que está presente em outras cidades do Brasil, aparece menção aos encantados como organizados em famílias. Segundo Prandi e Souza (2004), “No tambor-de-mina, assim como os voduns da Casa das Minas, os encantados estão reunidos em famílias, cada uma com características próprias, cores, festas, etc. De modo geral as famílias mantêm suas características de terreiro para terreiro, reunindo os mesmos encantados, mas não raro variantes podem ser observadas, tanto no Maranhão como no Pará. Em São Paulo, as famílias dos encantados têm também absorvido caboclos da umbanda e do candomblé” (idem, p. 220).
4
Eu sou filho de Légua
Eu venho do sul carnaubeiro
Eu selo meu cavalo é no tope da ladeira. (LAMY, 2016).
Venho dizendo que a família mais conhecida em Codó é de Légua Boji Buá da
Trindade, encantado que tem pai, irmãos, sobrinhos, esposa, além de grande número de
filhos e netos. Seu Zé Preto, um pai de santo da cidade, me disse que Légua é filho de
Pedro Angaço e casado com Rosa Rainha6, hoje não “carregada” por ninguém em
Codó. A grande família de Légua compartilha a relação com a mata, o gosto pela bebida
alcoólica (poucas vezes vi algum encantado da família de Légua não beber), como fica
evidente em alguns pontos cantados no salão, como, por exemplo, o que dá nome ao
título deste texto:
A família de Légua tá toda na eira
A família de Légua tá toda na eira
Bebendo cachaça e quebrando barreira
Bebendo cachaça e fazendo poeira.
Apesar dos membros de uma família compartilharem características, eles não são
uma grande categoria homogênea. Uma diferença entre os membros da família de
Légua, por exemplo, remete ao fato de alguns dos seus encantados saberem ler e
escrever, enquanto outros não dominam estes conhecimentos. A diversidade interna à
família se torna ainda mais evidente quando percebermos que suas origens podem ser
diversas, haja vista a possibilidade de existirem filhos de criação ou adoção entre os
encantados.
A criação de membros que chegam à família foi contada, em campo, por alguns
encantados, que comentaram sobre o parentesco de sangue e o de consideração. Em um
encontro entre Coli Maneiro, Ricardo Légua, Rei de Mina e Caboclo Cearense, Ricardo
Légua nos disse:
Eu, Ricardo Légua Ferreira da Trindade Boji Buá, sou sobrinho de
Coli Maneiro Ferreira da Trindade. Coli Maneiro é irmão de meu
pai. Então é assim, nós é parente como vocês aqui na terra do pecado,
não tem parente de sangue? Pois eu mais Coli Maneiro é parente de
sangue. É assim, não é que eu respeito menos ele ou que ele me
6 Mundicarmo Ferretti (2000) mostra que “Os caboclos da Mina [religião da capital maranhense] têm, geralmente, um ancestral não caboclo, que os aproxima dos gentis, ou foi adotado, como filho, por algum vodum” (ibid., p. 87).
5
respeita menos, é assim, ele é meu tio (Ricardo Légua, agosto de
2011) 7.
Segundo Ricardo Légua, há similaridades entre a forma com que se organiza o
parentesco no “mundo do pecado” e na Encantaria, onde existem tanto os laços de
sangue como laços de consideração - quando não há consanguinidade, mas existe
convivência e cuidado. Nesse mesmo dia, Ricardo Légua contou que Rei de Mina, além
de guia do salão localizado na Morada Nova (local do terreiro aonde vinham dançar) era
filho de Coli Maneiro (irmão de Légua Boji) e com ele aprendeu a consumir bebida
alcoólica. Caboclo Cearense, que também estava presente, segundo Ricardo, “é meu tio,
é primo de Coli Maneiro e de meu pai Légua Boji Buá. Nós somos de uma descendência
só, de uma família”.
A situação de encontro entre esses encantados era também o encontro entre
pessoas de uma mesma família, pois, seus cavalos eram Zé Willan (pai de santo de
Morada Nova que carregava Coli Maneiro), Regina (sua esposa, que recebeu Ricardo
Légua), Alzira (tia de sangue de Regina que estava com Rei de Mina) e a filha mais
velha do casal (com Caboclo Cearense). É diante dessas articulações que eu narro, em
seguida, histórias nas quais a biografia das pessoas se entrelaça com a presença dos
encantados. Os dois casos que apresentarei chamam atenção para a amplitude do
contato com as entidades na vida das pessoas e para a impossibilidade de contar seus
percursos de vida sem lançar mão dessas presenças (CARDOSO, 2007). Demonstram
ainda a insuficiência das narrativas que relacionam o religioso com apenas parte da vida
de um sujeito e destacam as modalidades de relação entre pessoas e entidades
(AHLERT, 2016).
Dona Chica Baiana, Pedro e Seu Gili
A primeira história que eu gostaria de contar é a de Pedro. Conheci Pedro no
segundo semestre de 2010, quando fui viver na cidade de Codó para o campo da minha
tese de doutorado. Ele tinha pouco mais de trinta anos e morava na casa de sua mãe,
Dona Janoca. No mesmo espaço, entre seus sobrinhos e outros parentes, havia dois
quartos dedicados às entidades: Dona Chica Baiana e Dona Maria Padilha
respectivamente ocupavam o quarto da entrada da casa e o do fundo do pátio. As duas
7 Posso transcrever literalmente a fala de Ricardo Légua porque tive acesso às imagens registradas em vídeo, por Ananias Caldas, André Sampaio, Taís Nardi e Tiago Mello, em 2011.
6
senhoras constituíam parte do conjunto de entidades que Pedro recebia – tanto ele como
qualquer outro terecozeiro recebe mais do que uma entidade durante sua vida (ou
mesmo durante uma mesma noite).
Os encantados sempre fizeram parte das histórias de Pedro e o acompanham
desde que nasceu. Segundo me contou, o seu parto foi feito por Dona Chica Baiana,
encantada do seu avô, “em cima” dele – ou seja, nele incorporada. Segundo a mãe de
Pedro, Dona Chica acompanhou todo o crescimento do menino, período em que
pregava peças escondendo a criança pela casa para que a mãe não a encontrasse. Ainda
na infância Pedro sentiu os primeiros sinais de mediunidade8, quando via diversas
coisas que o assustavam, o faziam gritar e chorar. Diante dessas manifestações, Pedro
foi acompanhado pelo avô a partir dos sete anos de idade. Nesse momento, junto com
um primo, passou a residir e ser criado na casa de Seu Gili – como era conhecido seu
avô, um afamado brincante do tambor, padrinho de importantes casas de Terecô de
Codó.
Os dois meninos conviveram com a familiaridade com que o avô se relacionava
com as tendas e as brincadeiras e Pedro se lembra de ouvir quando ele, depois de
colocá-los para dormir, saia para dançar Terecô. Recorda-se, ainda, de segui-lo, atrás do
som dos tambores, para assistir os toques e giras. Neste período as crianças não podiam
brincar dentro dos salões (até hoje é raro encontrar alguma criança participando) e
Pedro se lembra de ser reprimido pelos encantados do avô que acreditavam que ele era
muito novo para dançar. Outros encantados, porém, logo percebiam sua mediunidade,
enrolavam-no nas suas saias e o levavam para dentro do salão.
Pouco tempo depois, quando Pedro tinha nove anos de idade, Seu Gili faleceu.
Depois de sua morte, a encantada Chica Baiana passou para a croa de Pedro, ou seja,
passou a ser recebida pelo menino.
Dona Chica Baiana está na vida da minha família há muitos anos.
Acho que mais de cem anos. Desde minha bisavó, mãe do meu avô,
que chamava de Catita e que morreu com noventa e oito anos. Mas,
quando morreu ela já tinha preparado meu avô para cuidar da
missão dela na terra. E quando eu tinha sete anos meu avô me
preparou, mas acho que Dona Chica Baiana me acompanha desde o
ventre da minha mãe, porque quando eu nasci, a parteira que me
pegou foi Dona Chica Baiana, incorporada em meu avô (Pedro, 24 de
setembro de 2011).
8 Palavra que remete ao recebimento de encantados – não utilizada, nesse contexto, no sentido do
espiritismo kardecista.
7
Aos dez anos, Pedro já trabalhava com os encantados, cuidando de pessoas da
família. Ele é um dos casos – existem outros na cidade – de pessoas que não foram
‘feitas’ ou preparadas por nenhum pai de santo (SANSI, 2009). Segundo me contou, ele
foi “zelado” por uma pessoa de mais tempo na religião, mas nunca precisou de pai de
santo “porque já vem toda uma preparação de fundo”. Em virtude disso, se refere à
Dona Chica Baiana, encantada herdada do avô, como sua mãe de santo.
Durante meu campo, a irmã de Pedro, que vivia na mesma casa que ele, teve um
filho. Durante toda a gravidez, Dona Chica Baiana esteve rezando, benzendo e tratando
com remédios a barriga da futura mãe. Segundo a própria Chica me confessou, ela
estava “segurando” a gravidez diante de uma ameaça de eclampse9. As pessoas da
família do pai de santo, que foram para a maternidade no dia do parto, viram a
encantada – vestida de branco, de lenço na cabeça – entrar no espaço hospitalar e
acompanhar todo o nascimento do menino. Ela estava presente em espírito e não
incorporada, como me explicaram.
Coli Maneiro, Dona Regina e Seu Zé Willan
A segunda história que eu gostaria de contar é de Dona Regina e Seu Zé Willan.
Dona Regina e o pai de santo Zé Willan são casados e vivem em um povoado do
município de Lima Campos, chamado Morada Nova. Ambos possuem, em suas famílias
de origem, pessoas com “mediunidade”, que dançavam terecô em Codó, município
onde viviam anteriormente. A família de seu Zé Willan é do povoado de Santo Antônio
dos Pretos, zona rural de Codó, mesmo local de onde vem o avô de Pedro, espaço
considerado de encantaria forte.
A história do casal tem os encantados e os festejos de santo como elementos
centrais. Na gravidez de Regina sua mãe teve problemas com a gestação e o médico
antecipou os riscos de morte da mãe e da criança. A avó materna, chorando por causa do
prognóstico, encontrou o encantado Coli Maneiro, irmão de Légua Boji (em cima de um
9 A irmã de Pedro conversou comigo sobre a gestação e a presença de Chica Baiana, quando me disse: “Durante a gravidez eu sempre via ela. À noite, eu dormindo, eu sentia ela, eu via ela. Eu perguntava para mamãe porque Dona Chica me visitava tanto à noite (...) eu não sabia o porquê. Era porque eu estava correndo risco de vida e o meu nenê também. Quando eu entrei na sala de parto eu não estava tendo força, eu chamei em primeiro lugar por Deus e chamava por ela também...” (Eliane, 24 de setembro de 2011).
8
cavalo antigo e muito conhecido, hoje falecido), em uma festa de tambor na casa de
Antoninha (casa onde o avô de Pedro era padrinho). Segundo conta Regina, Coli
conversou com sua avó:
Aí Seu Coli disse pra ela [a avó], que ela [a mãe] não ia morrer, que
eu ia nascer e que eu ia ser dele. Assim a mamãe conta que eu ia ser
dele. Aí eu acredito que eu ia ser mesmo, porque o mundo dá muitas
voltas, que hoje eu estou aqui, cuidando dele (...) Mas quem ajeitou
tudo, quem fez todo o processo para que eu nascesse, foi ele (Regina,
25 de setembro de 2011).
Correu tudo bem no parto da mãe de Regina e ela cresceu sem apresentar sinais
de “mediunidade”, participando dos festejos de tambor apenas nos dias em que havia
‘baile dançante’, para se divertir com os amigos e namorar. Seu pai e sua mãe, contudo,
dançavam Terecô e cozinhavam em uma tenda que tinha um tamborzeiro muito
afamado, conhecido como Zé Willan. Em 1992, impressionada com as falas sobre a
notoriedade do tamborzeiro, Regina acompanhou os pais no festejo de santo, para ver de
quem se tratava. Quatro anos depois os dois estavam casados.
Seu Zé Willan, por sua vez, nasceu, segundo conta, no período de um festejo de
santo, em um parto acompanhado por algumas entidades. Ele recebeu um encantado de
herança do seu pai, Coli Maneiro – o mesmo encantado que cuidara do nascimento de
Regina e que havia dito para sua avó que a criança da gestação de sua filha viveria e
“seria dele”, pois estava destinada a lhe cuidar no futuro. Como se casou com um pai
de santo que recebe o encantado, Regina acredita que seu casamento é resultado desta
trama entre pessoas e encantados. Anos depois, Regina também manifestou
“mediunidade” e passou a receber o encantado de sua mãe, Ricardo Légua. Ricardo é
filho de Légua Boji e, portanto, sobrinho de Coli Maneiro.
Tramando cuidados, referências e heranças
As histórias, brevemente apresentadas acima, sobre o percurso de vida de alguns
terecozeiros, mostram a família como central na definição de como essas pessoas vão se
constituindo e dos caminhos que suas vidas vão tomando. A partir delas, eu gostaria de
destacar cinco pontos que me parecem interessantes para falar sobre a importância da
constituição das relações sociais nas quais os encantados se integram, não apenas como
participantes, mas como figuras ativas.
9
O primeiro ponto que eu gostaria de destacar são as relações intergeracionais que
são operadas por intermédio do contato entre pessoas e entidades (RABELO, 2014)10
.
Chica Baiana relaciona Pedro diretamente ao seu avô, seu Gili, na medida em que,
depois do falecimento dele, passa a ser recebida pelo neto. Coli Maneiro, encantado de
Seu Zé Willan, era recebido pelo seu avô e pelo seu pai, até chegar à sua croa. Regina,
por sua vez, recebe um encantado que passava em sua mãe. Os encantados, nesse
âmbito, transitam entre gerações familiares, trazendo consigo conhecimentos (pois são
ancestrais) e ao mesmo tempo aprendendo coisas novas (pois suas histórias não estão
fechadas). Se levarmos a sério a compreensão de que eles participam na constituição das
pessoas (AHLERT, 2016), podemos sugerir que eles conectam substâncias e energias
entre mortos (cujos corpos já compartilharam) e vivos.
O segundo ponto que proponho pensar está relacionado com o primeiro, pois, a
partir dessas relações intergeracionais e da movimentação dos encantados, podemos
falar sobre a constituição das pessoas e da forma como se entendem e se posicionam.
Seu Zé Willan e Pedro, desta forma, não apenas recebem os mesmos encantados que
seus antecessores familiares, eles também retomam seus pais e avôs para falar de sua
presença no Terecô. É neste sentido que acionam a relação de suas famílias com locais
conhecidos como de encantaria forte e costumeiramente trazidos, em Codó, para falar
do início da religião no local – como Santo Antônio dos Pretos. Os encantados e os
lugares a eles relacionados fazem parte de narrativas que constroem um lugar no mundo
e os espaços de referência para a constituição do que Pedro e Zé Willan são – eles que
nascem pela mão dos encantados e são por eles acompanhados durante a vida.
O terceiro ponto desencadeado pelos casos acima descritos remete ao papel de
cuidado desempenhado pelas entidades. Normalmente, mesmo em conversas nos rituais,
as pessoas destacam o aspecto ‘duro’ da relação entre pessoas e encantados, apontando
para as diversas obrigações que são necessárias e para os castigos presentes no
descumprimento dessas mesmas obrigações. Já nos dois casos aqui mencionados, os
encantados aparecem em momentos de cuidado - é desta forma que vemos Chica Baiana
e sua relação com a irmã de Pedro diante dos riscos de sua gestação, assim como no
momento do parto no hospital. Também há cuidado na preocupação de Coli Maneiro
10 Miriam Rabelo chama atenção para o papel das entidades nas relações de parentesco. Para a autora, “as entidades não apenas adensam relações que já são fortes, como marcam positivamente vínculos cuja importância cambia ao longo da história de vida ou que estão em tensão com outros laços igualmente significativos para os sujeitos”. Elas também consolidam preferências nas redes de aliança. (Rabelo, 2008, p. 193).
10
com a gravidez da mãe de Regina – momento em que a vida da gestante e da criança
estavam em risco. Isso não acontece apenas nessas duas narrativas, pois, em Codó, os
encantados são presenças constantes nos momentos de nascimento (alguns são
conhecidos como parteiros) e também de falecimento – quando vêm para se despedir e
chorar a morte, antes de, eventualmente, serem recebidos como herança por outro
membro da família ou pessoa próxima.
Em quarto lugar, para indicar o papel ativo dos encantados na constituição das
famílias, sugiro que eles são propulsores da inclusão de novas pessoas entre os parentes.
Pedro, em uma conversa que tivemos, proferiu um agradecimento aos encantados que
recebia, não apenas por cuidarem dele, mas de todos “aqueles que fazem parte da casa,
que chegam como clientes, mas terminam fazendo parte da família”. Sua irmã tinha me
dito algo semelhante havia pouco tempo, ao me contar que Dona Chica Baiana, através
dos atendimentos, possibilitava a convivência intensa de alguns clientes com a família
do pai de santo – convivência que os fazia continuar frequentando a casa depois de
encerrarem seus tratamentos.
Por fim, o quinto ponto remete ao entrelaçamento de noções de liberdade e/ou
ausência de agência (JOHNSON, 2014) – questões interessantes se pensadas em relação
ao parentesco, muitas vezes tomado como ‘natural’ e não como escolha (STRATHERN,
1991). Quando o encantado Coli Maneiro afirmou à avó de Regina que a gravidez de
sua filha seria levada a cabo e que a criança seria dele – o que para Regina havia se
concretizado, pois ela se casou e era ajudante de um cavalo que o recebia – ele fazia
uma previsão sobre seu futuro. No Terecô se compreende que a mediunidade é algo que
vem com o nascimento, como uma espécie de destino ou mesmo sina. As intervenções
das entidades, normalmente, não podem ser previstas ou controladas pelas pessoas que
precisam se submeter à negociação com os encantados. Uma participação importante de
alguém da família diante da manifestação de mediunidade é segurar os encantados para
que uma criança não precise se preocupar com eles muito cedo. Os familiares são, nesse
sentido, mediadores da relação entre determinadas pessoas (especialmente as crianças) e
as entidades – e assim, buscam construir estratégias diante do chamado e da necessidade
do brincar Terecô.
Nos casos aqui contados, portanto, os encantados não são seres distantes. Eles
são uma forma utilizada pelas pessoas para falar sobre si, dada sua presença constante
(uma forma de falar sobre a identidade, sobre o casamento, sobre as escolhas). Como
durante a vida de um terecozeiro ele se relaciona com muitas entidades, elas constituem
11
parte importante dos seres com os quais uma pessoa se relaciona em sua trajetória.
Além disso, elas também podem ser percebidas como agentes no adensamento das
relações sociais entre as pessoas. Entre meus interlocutores, era comum ouvir que a pior
coisa que poderia acontecer com uma pessoa era a solidão. Uma pessoa que estivesse
viajando sozinha, morando em outra cidade a trabalho ou que vivesse longe da família,
era fator de preocupação e mesmo de pena. Quem não tem família, não tem parentes e
não tem encantados que o acompanham, não tem quem cuide ou dele se lembre. Para
evitar a solidão, pessoas e encantados trabalham ativamente.
Considerações finais
Neste artigo, de forma ainda muito inicial, busquei apresentar elementos para
pensar, através do parentesco, as relações entre pessoas e encantados. Nesse sentido,
utilizar no título o termo ‘tramas’ remete tanto ao entrelaçamento dos fios que
constituem as histórias (como um trançado entre pessoas e entidades diversas que se
cruzam e necessitam umas das outras para se constituírem) quanto remete às tramas de
um enredo que, tal como em um filme ou novela, se compõe de narrativas que dão
sentido aquilo que vivem os brincantes do Terecô.
Busquei pensar as relações entre pessoas e entidades sob a chave da família e não
da constituição da pessoa11
, o que me fez acionar casos onde os encantados
desempenham funções importantes, como parteiros e cuidadores, como aqueles que
contribuem para o aumento das famílias e fornecem características a partir das quais os
sujeitos de definem e falam sobre si. Os encantados contribuem, nesse sentido, para
manutenção de relações sociais já existentes dentro das famílias – destacando elos,
reforçando ligações – mas, também permitem o aumento das famílias, a constituição de
novas relações e o incremento do número de pessoas nos contatos cotidianos.
Ao fazer isso, eles ajudam a evitar a solidão, sentimento temido e indesejado na
vida das pessoas. As famílias (em seus múltiplos formatos), portanto, são instrumento
ou laço importante que precisa ser sempre reafirmado nas ações dos sujeitos, pois a
solidão é sempre uma possibilidade nas suas vidas. Para combater essa ameaça, é
11 Em outro texto escrito recentemente, chamei atenção para a constituição da pessoa e para as possibilidades de ruptura instauradas no afastamento entre pessoas e entidades (AHLERT, 2016).
12
preciso cuidar, fazer companhia, lembrar-se das pessoas e, para tanto, vivos, mortos e
encantados são mobilizados.
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