Download - 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
1/14
~ ~ ~ ~ ~
\\ \\}
f oGV
~
~ ~ (:; .
6
to
GlLBERTO
FREYRE:
UlviA LEITURA
CRfTICA
Esta exposicao
sed dividida
em tres modules
distintos
e
inter
deperrdentes,
o primeiro
abrangc
os
C?lltCXroS
social, economico e
politico,
nos
quais
surge a
obra
de Cilberro Freyre, datada de
1933.
Nesse
mesmo
perfodo, paralelamente,
surgem
ourras obras
serninais
sobre
a cultura brasileira, como Raizes do Brasil de Sergio Buarque de
Holanda
(I 936), e Formacao do Brasil contempor/ineo de Caio Pra-
do Jt 1nior (1942), trabalhos que registram expressivas mudancas no
pensamento social brasileiro, e que, ao lado de ourras
transforrna
coes sociais,
politicas
e econornicas, conferem enorme riqueza e sig-
niftcado hisrorico
a
decade de 1930.
Quesrionamenro relevante
diz respeito
:IS razoes pelas
quais
surgem, nesse mornenro,
obras
tao substantivas, capirais e din.trni-
cas,
obras
que
deslocam
as visoes e as
interpreracoes
ate enrao vigen-
tes da cultura brasileira.
Ainda no prirneiro
t6pico,
p r o c u r ~ t e m o s caracrerizar os con
textos
cultural,
social e
politico
do
periodo,
rnostrando 0
horizonre
de ideias
ernergentcs
ao
\ongo
das
decadas
de
1920, 1930
e
1940.
Consideraremos essas tres
decadas
em conjunto, rrarando-as
como
uma unica unidade
de analise, em face da
sernelhanca
e
continui
dade presentes
nos
debates
esteticos,
politicos
e hisroricos,
muiros
dos quais surgem nos
an os 20 e se
prolongam ate
mais ou
menos
os
anos
40, so se modiftcando, efetivarnenre, a
partir
da chamada
no
va gera
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
2/14
teo rica de sua obra,
buscando
esclarecer, ao rnenos em pane, sua
postura
episternologica e seus
diilogos
teoricos,
com
vista
a com
prce nsfio do
modo
como
0
aurar elabora e desenvolve inovacoes e,
assirn, consegue organizar mewdolog icamente seu uabalho.
No terceiro modulo, discutirernos
Casa grande & senzala
in
cluindo, nessa fase, cornentarios sobre 0 prefacio do
autor a
pri
meira edicao
(1933), onde Gilbeno
Freyre apresenca
sua
obra
aos
leirores e a sociedade em geral.
Digno
de desraque e 0 faro de 0
autor
escrever urn novo preficio a cada nova edicao, 0 constitui
precioso material de investigacao, inclusive
porque
e e vai modifi
cando algumas de suas posicoes, procedendo a constantes autocrfti
cas de seu trabalho.
Entretanto,
segundo nossa avaliacao, 0 primeiro
preficio continua
sendo
0 mais irnportante, pois e por meio dele
que
0
autor, alern de apresentar sua obra asociedade brasileira, mar
ca
pcsicao
especifica no campo intelectual.
o contexte cultural e historico das decadas de 1920,
1930 e 1940
Esse periodo e
extremamente
rico para 0 pais, na
medida
em
que caracteriza grande efervescencia na culrura brasileirt1tJ.omenro
em que ocorrem importances e significativas transformac;:6es na es
rrutura social e no plano de ideias, No, entanto, pO( ser muito
b r n ~
gente a d i s ~ u s s o das v.irias dirnensoes dos acontecirnentos sociais,
destacaremos apenas algumas questoes, fares e proposicoes discursi
vas,
que
nos
pareceram
mais
irnportantes
acornpreensao
de
Gil
berro
Freyre e de Casa grande &
senzala.
Como supone reorico a cornpreensao do periodo historico,
nos valeremos do conceito de
episteme
'elaborado por Michel
Fou
cault,
exaustivamcnrc
discutido em rqueologia do saber (1972), e
em s p
alauras
e
as
coisas
(1981).
De forma breve, e
possfvel
afirmar
que
tal conceito se refere
ao conjunro de saberes existentes em deterrninado
momenta
his
136
torico demarcado por urn a priori historico
especffico.rque
organiza
e torna possive a existen cia de varies discu rsos e pratica s sociais.
Surgem, naquelas decadas, novas narrativas, em particular dis
cursos, cujos objetos sao a nacao e a identidade nacional.jiercebidas
ern suas realizacoes rnateriais e concretas, nos planes artlstico, his
torico e econornico.
Acrediramos
que esse aspecto seja
0
primeiro para me hor en
tender Gilberto Freyre, isto e,
por
que
0
autor e levado a ter preoeu
pacoes tao incisivas, tao obsessivas com
0
Brasil, ou com os famosos
retratos do pais
que
surgem nesse momento.
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
3/14
sive as do proprio Gilberto Freyre, alern de Sergio Buarque, Alceu
Amoroso Lima, Mario de Andrade e ranros outros. Percebe-se
certa
perplexidade,
certa
nostalgia, e
um
desencantarnento em relacao a
Europa.
Na decada de 1920 ha, portamo, uma nitida ruptura na historia
da culrura brasileira.
Com
0 Movimento Modernists, ha uma ruptura
na criacao estetica, literatura, nas artes plasricas e na musica.
No
plano
politico, a
ruptura
se da
com
a Revolucao de
1930
e
a instauracao da Repu blica Nova. Surge, nesse periodo, uma van
guarda
inrelectual que vai revolucionar as ideias acerca do
papel
do
intelectual e de sua atuacao na sociedade. Chamamos de vanguarda
aquele grupo que promove um estranharnento da norma e que as
sume uma
atitude
de disranciarnenro em face dos codigos em vigor
na criacao esterica, na polltica e em todos os dominios da cultura
(Santiago, 1975).
Esses intelecruais
sentemnecessidade
de agir concretarnente,
no sentido de organizar a cultura, pois eles se seritern responsaveis
por
essa organizacao.
No
Brasil, isso se
torna
caracterlsrico: os in
telecruais assumem a postura de falar em
nome
do povo. 0
povo
sempre, e ate esse
memento,
e consideraJo como Lim infante, ou
seja, aquele que nao fab, por isso
e
preciso que alguem °repre
serite. Dai ;> ideia de rnissao, de organizacao da sociedade e de
nacao que os rnodernistas vao compartilhar, lancando-se em tra
balhos concretes, como
0
da criacao de um
conjunto
enorrne de
instituicoes culrurais.
Quem
sao os inrelectuais mais proerninentes desse periodo?
Evidenrernenre,
Gilberto
Freyre e
um
dos que se
destacam.
Ele
par
ticipa do
Movimento Modernists, mantern
relacoes de arnizade e
troca ideias con; importances representantes dos modernistas que
estao no Rio de Janeiro, e tarnbern em Recife: Sergio Buarque de
Holanda, Manuel Bandeira, Juaquim Inojosa, Sergio Milliet, Ro
drigo de Melo Franco de Andr ade, Paulo Prado, Paulo Duarte, Afonso
r i n o ~
de Mello Franco, Alceu Amoroso Lima, Portinari, Prudente
de Morais
Neto,
Lucio
Costa
e
muitas
outros.
138
Por meio das irleias geradas no interior do
Movimento Mo
dernista, os intelectuais se auto-atribuern 0 papel de demiurgos, de
herois civilizadores da nacao. Naquele momenta, preocupam-se com
todas as dirnensoes da cultura e da politica.
Podemos
afirrnar que se
constirui efetivamente
ali
uma intelligentsi
no Brasil, nurn contexte
de
reriovacao
e aspiracao a reformas econ6micas, sociais e politicas.
Essa intelligentsi revolucioria 05 canones esreticos, coritesta a cul
tura
do
minante,
busca as ralzes da
cultura
brasileira, desespera-se
pelo arraso cultural do pais, interroga-se sobre as esi ruturas da so
ciedade, procura sua identidade social e tenta estabelecer urna ponte
entre a
modernidade
e a modernizacao do pais, porque parecia con
figurar-se
um
abismo
entre
essas duas dimensoes, 0
que
gerava pro
funda inquietacao, ou seja, se
0
pais esta se modernizando, em que
medida podera, ao lado disso, atingir a modernidade? (Martins, 1985).
o inrelectua] s e m p r ~ nutriu um cerro "cornplexo de culpa",
por ser letrado provindo da elite, num pais de analfabetos. Sempre
se deteve em
p r e O C I J p ~ O e S
com as charnadas quesioes sociais. Nas
decadas de 1920 e 1930, como ja co mentarnos, 0 intelectual se
imbui da vocacao, da missao de
organizar
0 Brasil, de organizar a
cultura e, principalrnenre, de identificar e de construir urna identi
clade nacional que
Fosse
autentica, que
Fosse
enraizada na propria
hisroria brasileira.
o
Modernismo, como
movimento cultural, acompanhou 0
processo de rnodernizacao, de modificacao das relacoes sociais, e
tornou
possfvel
a instauracao de uma
modernidade
em nosso pen
sarnento social. Desde
entao,
cornecou-se a considerar a sociedade
brasilei ra a partir das categorias de cuI tura e de hist6ria, baseadas
em criterios universalistas e racicnais, em oposicao as ideias de raca,
de natureza ou geografia e sua inf1uencia sobre a pcpulacao.
Delineando 0
horizonte cultural em
que Gilberto
Freyre es
tava inserido,
compreendemos melhor
sua necessidade de se deslo
car da ciiscussao sobre r a ~ a e dizer: nao e
por
l eio da mas sim
da
cultura que
temos
de pensar no Brasil. lsso foi uma enorme
r e v o l u ~ a o
no pemamenta social bras ileir o, di ta naq uele
momen
to.
E
deixar de pensar em
n a ~ a o
por
meio
da ideia de e passar a
39
"
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
4/14
ve-Ia pela ideia de historia, de culrura, de
uma
razao universal,
que
nos, brasileiros, rarnbern deveriamos possuir.
No
livro Casn grande 6 senzala e
nitido
0 gosro que
Cilberro
Freyre tern pela pnlavra civili zacao . E
nao
e l ele, todos
naquele
memento tem essa profunda adrniracao pela ideia de civilizacao.
M:irio de
Andrade
a uriliza, assim como Carlos Drummond, Sergio
Buarquc c Afonso Arinos.
Todos des procuram
elaborar a ideia de
um a civilizacao brasileira . Na verdade, usar 0 conceito de civili
zacao
como
culrura reflete urna sinrese origiml do
pensamento
so
cial brasileiro, j;i que absorve a ideia de ciuilizaiiio da rradicao
fran-
cesa e a ideia de cultura da tradicao alerna (Elias, 1990). Isso nos
parece rnuito rlpico do
pensamento
social brasileiro,
diferentemente
dos
pensamentos
frances, alernao e arnericano.
f
evidente que essa
atitude implicou tambern uma
reavaliacao da relacao
individuo-so
ciedade-Esrado, pois era preciso desvendar e dinarnizar as insrituicoes
exisrentes, e criar novas, que dessem maior consisr encia ao recido so
cial, que requer mecanismos firrnes de mediacao entre os individuos.
Entao,
0
que signiflcava ser moderno, e como aringir a rno
dernidade? Em seu livro
Brasilidade modernista (978),
Eduardo Jar
dim de Moraes afirrna
que
duas vias erarn cogitadas para se atingir a
rnodernidade. A prirneira, irnediatista, muiro ripica do prirneiro
mo
menta
do
Movimento Modernista
(1917 a 1924), em que a rnoder
nidade era tida
como
urna
ordern
universal, aqual se reria acesso de
forma irnediara e
simultfinea,
pela simples
adocao
de procedirnenros
considerados
modernos.
Assim, participariamos do
concerto
das
nacoes cultas . Essa
e uma
frase
que
tarnbern ficou famosa, e diz
respeiro
a
sensacao de
que
0
nosso relogio estava atrasado em re
ao relogio universal; a
s n s ~ o
de que nos ainda nao par
ticipavamos do conjunto das na
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
5/14
ocupados com a quesrao e escrevem obras seminais na busca de
considerada nao rnais
como
"ornamenro" da expressao lircraria, mas
cornpreensfio do Brasil de seu tempo e do passado historico.
como oonsrituinte dessa mesmu expressao. Assim, ser moderno irn
A esse respeito e interessante verificar entre os rnodernistas,
plica disposicao de formular juizos racioriais, enterida-se universals,
inclusive Gilberta Freyre, a
existencja
da ideia cle revelacao, qua ndo
e buscar ideritificar as leis da realidade empirica, ou seja, os proces
em contaro com 0 passado colonial brasileiro. omo exernplo, te
sos concrerarnenre exisrenres, a partir de pesquisas, e nao de conjec
mos Lucio Costa, citado pOl Cilberro Freyre no primeiro prefacio
ruras ou de inrerpretacoes reriradas de modelos europeus.
da edicao de
Casa
grande 6-
senzala.
Segundo ele, Lucio Costa Bcou
. E irnportante acentuar que, antes de 1930, havia Luna grande
encanrado, como se rivesse tido uma especie de
revela
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
6/14
universal. que derive, no enranro, de siruacces singulares, construi
das pelo povo, enrcndido pela culrura
como
rode concreto, como
fonte de aurenticidade. Ate enrao, era
como
se 0
pOV8
brasileiro nao
cxisrisse,
como se Fosse apenas uma
populacao incapaz
de
produzir
culrura, Sequer era cogitada a ideia de cultura brasileira: a discussao
girava em como da ideia da constituicao de uma raca brasileira. 0
deslocamenro do
conceito
de
raca
para
0
de
cultura
registra urn
ponto
culruinanre
do que
esramos charnando
de modernidade no
pensarnento
social brasileiro.
Como
os demais
modernisras,
Gilberte Freyre procma
idenri
flcar a autenrica cul tura brasileira, desven dando 0
modo
de ser da
sua
hisroria,
mas nao
nurna
atitude nosralgica de simples volta ao
passado,
e sim m oderna, pOlS era preciso
identificar
urn futuro para
essa mesma
culrura
brasileira. Tal
caracrerisrica tarnbern
diferencia
os ruodernistas da geraC;Jo anterior, dos rom.Inricos, dos positivistas,
OIl
ate dos "neocolcniais" nurua tentativa de volta nostalgica, pro
curando irnitar e recoristruir
0
passado
.
Diferenremente, os modernistas querem volrar ao passado pa
ra descobrir um futuro para 0 Brasil: a perspectiva e diferente, des
prerendiarn encoritrar
passado para
encorirr.ir
as ra izes
hisroricas
da
cultura
brasileira, a especificidade
hisrorica
do nosso processo de
coristituicao, para que se pudesse chegar ao universal no futuro. 0
passado nao e considerado como origem a ser reproduzida, mas
como descobrimento de novas possibilidades do
vir
ser Daf a
preocupacfio d'? Giibcrto for eyre com a ideia de urna civilizacao ibe
rica cxrcnsiva a roda a America Latina. Segundo sua conviccao, te
mos
J
possibilidade de ser
uma
civilizacao, tern os trac;os de unive r
salidade, enrao poderemos ter urn futuro; temos viabilidade como
nacao. Essa consrrucao da terr.poralidade brasileira pela reinterpre
tac;:ao do passado e futuro e muito importance naquele mornenro.
o gruflo dos ncocoloni.lis era re,Jrescntad, pel arquitero e cdrico de arte Jose
Mariano Filho, basral1te nuanre na Elcola Nacional de Belas Anes e que de
fendia a p r e s e r v a ~ l o do passadoe 0 retorno :1 arquitetura colonial, como haviasido
outrora.
144
• J
E
interessante observar como se dao os movirnenros das ideias.
Gilberto Freyre vai privilegiar os seculos XVl e XVll, considerados
como 0
tempo
da origem, como 0 germe e 0 lugar de nascirnenro
da
nacao,
Entao, a
nacao
brasileira, segundo de, teria surgido no
Nordeste, nos seculos'XY1 e
XVII.
Ele acredita nesse fato, e vai
pesquisar
situacoes
empiricas que 0
cornprovern.
Ja urn outro grupo
de modernistas, especialmente os niineiros e paulistas, vai idenrifi
car a origem da cultura brasileira no seculo XYII1, no perfcdo Bar
raco, em Minas Gerais, e vai pesquisar rudo sobre
0
barroco rni
neiro. Este grupo pode ser
representado
por Mario de Andrade,
Rodrigo de Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de An
drade
e
Sergio Buarque de Holanda, que, mais tarde, organizam 0
Service do Patrirnonio Hisrorico e Artistico Nacional (1937).
o projeto dos
modernistas,
e igualmeme 0 de Gilberte Frey
re, era rnostrar 0 lado autenrico da nacao,
conferir-lhe
visibilidade,
por meio de suas manifestacoes culturais. Alguns vao destacar, co
mo
trace
de originalidade, a nossa arquirerura barroca. Ja
Gilberte
Freyre (I993) afirmava: E a culinaria; sao os doces; e a forma de
-',
relacionamento; e a Casa Grande e a Semala; e a construcao de urn
sistema autonorno, como eo sistema escravocrata, latifundiario, pa
triarcal, enfirn; sao processos sociais
concretes,
ernpfricos, capazes
de serem idenrificados por qualquer pessoa 0 que constirui a culrura
brasileira" (prefacio
a
1a edicao de
Casa
grande 6-senzala
A valorizacao do passado e da tradicao ocorre a partir da ela
boracao do seu significado, 0 que se rclaciona dirctarnente
a
con
cepcao de hisroria. Epor isso que estamos falando de modernidade.
t
interessante que
0 Modernismo
no Brasil. diferememente de al
gumas rendencias das vanguardas europeias que valorizam 0 futuro,
o progresso, especialmente 0 futurismo de Marinetti, vat se voltar
para
0
passado, buscando recupera-lo.:Segundo acrediravarn, ser rno
derno nao era
romper
definirivamence com 0 passado e com a tra
dicao, muito pelo contrario, era incorporar a t r a d i ~ a o Mas, como
dissemos, nao em uma atitude passadista, nostalgica, e sim pen
sando em construir 0 futuro. Eles tinham
uma
concepc;ao muito
propria de tradi
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
7/14
no prefacioa reuistn I 925). Emartigo sobre
0
rema,preconizava
nao uma tradi
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
8/14
o
bra
rnais signiflcltivo que ocorre nas decadas em analise,
como
ja charnarn os a aren cao , e volrarnos a repetir, e 0 debate em
torno das nocoes de raca e culrura.
E
urn debate renso, cujas
con
rroversias serao exrrcruarnenre fecundas para a culrura brasileira. Ra
c a
dcixa de ser urna categoria exp1icativa da realidade nacional, e
cultura passa a ser considerada a categoria capaz de revelar nossa
multiplicidade.
Decorre
dai a irnporrancia da ideia de
cultura
por
que, corn ral categoria analftica,
tornou-se
possivel emender as dife
rcncas cllit urais c socia is, a partir de urn redo. Esse todo
compona
a
difcrcl1ciaC;JO que af se acornoda, p0rque a ideia de raca separa, nao
congrcga: ra
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
9/14
areas do saber, durante a
ultima
merade do seculo
XIX
e as prirnei
ras decadas do sec ulo XX.
Essa nova perspectiva
adotada
por
Gilberto
Freyre, que esra
mos chamando de perspectivismo, e a nao-elirninacao do expedi
enre subjetivo fazem
com que 0
autor rente
penetrar
no
mundo
que
descreve,
partindo
da ernpatia, por meio da qual
procura
aperceber
se da
mesma
realidade, uma realidade total, contornando-a e
con
siderando-a sob varios pontos de vista complernentares. Segundo.
palavras de
Gilberto
Freyre, ele se coloca no
ponto
de vista
do
hornern, do adulro, do branco, masrambern do me nino, da rnulher,
do indigena, do negro, do afeminado e do escravo". 0 auror
pro
cura se colocar do ponto de vista de cada urn desses p e r s o n a g e n ~
sociais, para tenrar, por urn processo de empatia, cornpreende-los
na sua mteireza.
Gilberto Freyre rent a organizar e co nstruir 0 que se pode cha
mar, e
outros
autores tern
chamado,
de urn
merodo relaciopaL Do
ponto
de vista da episcemologia, Gilberto Freyre compartilha a ideia
segundo
a qual a existencia de uma
natureza hurnana
significava
0.
exisrencia de urna cultura. Enrao, nao exisre
uma
natureza
humana
que possa ser esrudada pelas ciencias narurais,
porque
a natureza
hurnana
significa cultu ra, 0 que
e proprio
do
hornem
e
0
que
e
tipico de sua natureza 0 faro de ele rer cultura. A dirnensao
cultural e revelada, de forma contundenre, pelos atos do trabalho e
da fala, pois
des
supoern necessariarnente a interacao social e a exis
rencia de urn c6digo
compartilhado.
Esta e a base da cultura: a
exisrencia da linguagem, a
construcao
de regras e
normas
sociais e
de urn processo produtivo, a capacidade de modificacao
de
meio
ambience, a capacidade de comunica
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
10/14
Nesse senrido, Gi oerto Freyre vai promover em seu tempo
urna profunda inovacao merodologica. Segundo 0 historiador Asa
Briggs (J 981), tal inovacao se deve ao faro de Freyre ter assimilado
ramo a Ancropologia quanro a Psicologia, arriculando, desse modo,
a Hisroria com as Ciencias Sociais.
No arrigo "Ciiberro Freyre e
0
escudo da hisroria social", Asa
Briggs afirma
0
modo peculiar de Freyre em seu fazer cientifico:
Viu as configuraer6es da hisroria como urn He nry James viu a es
rrurura da novels: urn ser vivo, uno e continuo. Em cada uma das
panes ha Jlgo de cada urna das ourras partes".
Essa ideia concern a perspecriva da roralidade. Assim, 0 tra
balho cienrifico evisro como se fosse uma novela, urn romance em
que as parres sc inrer-relacionarn. Freyre assinalou
0
elernento prous
t iario na sua obra, como ja foi diro, no preficio da edicao inglesa de
Casa grande &
scnzala ern que argumenta que procura entender
0
cararer e a formacao do brasileiro a partir da retina dornestica da
casa grande. Isso
e
totalmenre inovador. Segundo
0
proprio Gil
berra Freyre, "csrudando a vida domesrica dos antepassados, sen
rime-nos aos poucos a nos corirernplar,
e
outro rneio de procurar 0
rempo perdido".
Ourro
rraero
muiro imporranre do rrabalho de Gilberto Freyre
refere-se ao faro de
0
auror introduzir, na pesquisa historica, novas
fonres de dad os empiricos. Dessa forma, ele pesquisa jornais, foro
grafias, diaries inrimos, iivros de etiqueras rcceiras culinarias, res
tamenros, enfirn, regisrros do coridiano da vida social.
Casa grande 6-senzala eurn livre que possui ritrno proprio, pes
SOJ]
e intirno, dado pelo rempo singular daquela experiencia de vida. E
Cilberro Freyree antes de rude, um escriror criativo, senslvel ao ruido,
ao cheiro, a
o r ~
e
cor, ao alllor e ao odio, ao riso e ao choro,
sobrerudo JOS ecos c as premonier6es. Ele gOSta muito de falar nos
fJnrasmas, que aindJ hoje sobrevivem nas casasgrandes e nas senzalas.
o
auror faz uma hoa descrierao do imaginario magica, ainda hoje pre
sence no Nordeste. Especifica deralhes que nunca ninguem havia pen
sado em rerratar a discurir na historia so;:;ial, como a fato de enter
152
rar as escravos nas casas gran des e a formacao de urn imaginario
fantasmatico, condicionador de praticas sociais espedficas.
Em
Sobrados e moc mbos 1936),
Gilberto Freyre escreve algo
que nos parece rambern apropriado para
Casa
gr nde
senzala 0
que nos leva a discutir
uma
coisa irnporrante. que e a ideia de de
mocracia racial. Ele diz:
o objetivo principal deste trabalho eestudar os processos de
subordinac;:ao
e ao mesmo tempo de
acornodacao
e concilia
ao
de uma racr
a
com outra, da fusao
de
varias
religioes e tra
dicoes culturais numa unica, que caracteriza a transtcao do
patrjarcado
rural brasileiro para
0
urbane.
Em
Sobrados
e
mocambos 0
autor fala explicitamente na exis
tencia de urna democracia racial, quando afirma: 0 Brasil, em 1936,
talvez estivesse se transform ando numa cada vez maior democracia
racial, caracterizada
pOI
uma quase unica cornbinacao de diversi
dade e unidade".
t 0
conceito de cultura que the perrnite pensar
sobre a diversidade e a unidade
combinadas
Segundo nossa interpreta
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
11/14
portancia ao cornplexo produtivo e econornico, 0 que nao e ver
dade. Em realidade, ele
tenta complernentar
esse ponto de vista com
outras dimens6es sociais, e arenas nao compartilha do pressuposro
segundo 0
qual os processos
econornicos determinam
os demais
2.S
pectos da sociedade.
£ evidente que Gilberto Freyre da enorme imporrancia aos
fatores
econornicos e
dernograficos. Alias, ele parte dessa explicacao
para entender
Casa
grande
senzala quando
;dlrma:
No
Brasil as
relacoes entre os brnncos e
ra
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
12/14
CHICO, esracionado, JO cont rario,
acredita
que ha urn processo de
continuidade, que gJrJT1te a possibilidade de mudanca na sociedade
brasileira.
Assim, 0 auto r vi conrinuidade, C O ~ a rnudanca, nurna
ourra perspcctiva, nio como ruptura, como 0
marxismo prcpunha,
IlUS como movimenro
de
rransformacocs graduJis.
Essa especie de
:11lL11gJ111J rrazida
COI11
;1 miscigenacao e a
forma
de organizacao das
G SaS
,grandes e
scnz.ilas
garanrem
conrinuidade que
vai
gerando mu
danca. Por esse
motive,
podc-se ler em sua obra a mcdulacao de urn
parriarcado
rural
;1
urn
parriarcado urbane
c,
ainda,
a urn
patriar
cado industrial.
Enflm, urna
leirura
conrernporanea
pode
rriostrar
como a
sociedade
brasileira continua presa aos
marcos
historicos do
personalismo
familiar patriarcal e privatista
que
a
formaram.
o ponro
central de sua reflexao e a familia,
unidade
social
concrera,
que
de descreve em detalhes,
sempre
focalizando as cir
cunsrancias objerivas da sobrevivcncia da comunidade
portuguesa
no Brasil. 0 auro r se
propoc
a
compreender
a familia em uma perspec
riva relacional. A partir dos rclacionamenros hornem-rnulher,
rnarido
esposa, pai-filhos, mae-filhas, ele descreve tudo em terrnos de
inter
relacao,
0 que descor
tina
urna interessante narrativa sobre 0
Brasil,
do ponto de vista da familia. Nao
constroi
uma
tipologia
da familia
brasileira, senao de urn caso hisroricamente concreto, a familia por
tuguesa, vivendo em isolamento,
dentro
de
uma ordem
social patriar
cal, com visiveis traces feudais,
com
urn
modo
de
producao
agraria
tradicional e ja incorporado ao sistema capiralista inrernacicnal, 0 que
genva
conrradicocs espccificas, relacionadas ao
modo
de vida.
A famili a ql \e ele des creve vive
nurna socicdade
colonial, mui
to distanre do
habitat
socio-hisrorico de sua
origem.
Ela vive,
por
tanto,
urria siruac.io de rensao e pressao,
juntamer.re com
a
subrnis
sao a
pad
roes
autoritarios
e parriarcais,
e
isso explica a necessidade
da
solidariedade, que
se tornou um valor importante na
organi
zac;ao do
complexo
casa
grande
e semd.la. Por
que
paniu da famflia?
rorque no estagio inicial da sociedade brasileil'a, a familia era a pri
meira
e
ll11ica unidade
social estave!,
segundo
palavras do
proprio
Gilbeno
Freyre.
156
Freyre vai
rentar
rnostrar a 'import:l!1cia da familia como
uni
dade
social
capaz
de
organizar
a scciabilidade da
enrao
nascenre
sociedade
brasileira. Ele
procura mostrar que
a
sociedade
brasileira e
unica
e indivisfvel, e
que
essa unidade e essa
indivisibilidade
foram
garantidas grac;as ao sistema patriarcal, grac;as
a
familia,
a
religiao.
Ou
seja,
procura
descrever valores e instituicoes sociais em seu
pro
cesso de
fundaruenracao.
os quais van
garanr:ndo organicidade
aos
processos sociais
que permitiram
dois seculos de
estabilidade
aos
regimes
patriarcal
e escravocrata no Brasil.
Na
verdade, ernbora Gilberto Freyre adrnirasse
Joaquim Nabuco
profundamenre, segundo
inrerpretacao de Jose
Guilherme Merquior
(1981), ele
foi
0
mais
complete anri-Rui
Barbosa, ou antigerac;ao
~ 8 7
porque
ele desejava
construir uma
Ciencia Social e urna forma
de literarura
modernas,
contra 0 jurisdicismo parnasiano. Queria
imaginar urna regiao e uma tradicao, contra 0 abstracionismo historico
e social do nosso progressismo republicano, e revoltava-se contra 0
liberalismo classico em politica. Entao, 0 seu dialogo mais assiduo e
essencial
tinha sempre
sido
com
a tradicao, inflnitamente mais literaria
do
que
cientitica, do ensaisrno verde-amarelo, de
UlT
Joaquim Nabuco
e Oliveira Lima, de urn Euclides da Cunha, de Craca Aranha, de [oao
Ribeiro, e ate do
historiador
Sergio Bu arque de
Holanda.
Porranto,
a sua reinregracao do Brasil
procurava
ser erninenre
mente
universalista,
ancorada
no
conceito
de rradicao,
como
algo
move! e ativo, como j:i
discutimos
anteriormente.
Nao
se podem
ignoral as criticas feitas a Gilberto Freyre,
sendo
a mais
comum
a
que diz respeito
ao seu
narcisismo,
em perpetua identificacao com
seus
pr6prios antepassados,
alern de urn cerro
ufanismo
idealizador
do Brasil como uma sociedade
harmoniosa.
Casa
grande &
senzaLa leirura
conrernporanea
de uma
obra da.ssica
Enderec;ando nossa discussao ao
ultimo
t6pico,
procuraremos
abordar 0 primeiro prefacio de 1933, para propor
uma leitura con
157
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
13/14
ternporanea da obra classica de Gilberto Freyre. Nesse senrido, gos
tariamos de fazer alguns cornentarios sabre 0 prefacio ja aludido.
o primeiro ponto para
0
qual pretendemos
chamar
a arencao
e que ali aparece rnuiro clararnente a angusria dos intelectuais da
quele rnornenro, traduzida pelo sentido de missao que eles se aut o
atribuiam. Gilberto Freyre expressa essa preocupacfio quando afirma:
Era como se tudo dependesse de mim e dos da minha gera
-
8/20/2019 6800838 Gilberto Freyre Uma Leitura Critica
14/14
sobre a sociedade brasileira que, da casa grande, cria-se 0 Esrado.
Uma releirura conrernporanea da obra de Freyre perrnite perceber
urn modo especlfico de irnbricamenro, r o Brasil,
entre
a
ordem
publica e a ordem privada.
Na sociedade brasileira, sempre Ioi pred.ria a existencia de
instituicoes
inrerrnedidrias,
capazes de fomenrar a organizac;:ao da
sociedade civil. Alern disso, observa-se ainda hoje a privatizacao do
poder pelas familias parriarcais. E essa ordem privada da casa gran-
de que se esrende para a ordem publica.
Urn
imponanre carninho
de invesrigacao, suscirado
por uma
leitura atualizada de Gilberro Freyre, refere-se ae relacionamenro
entre a ordem da familia e a ordem do Estado. Nossa hip6tese e a
de
que
deve haver muira proximidade na l6gica dessas duas ordens,
no que se refere :10 modo de ccnduta familiar-patriarcal e ao modo
de aruacao polirica no interior do Estado. 0 modo de ser de rais
condutas e informado por uma moral privada.
A riqucza de sugestoes conridas em asa grande
6-
senzala leva
nos a considerar pertinente analisar hoje a cultura brasileira
por
meio das rnanifestacoes de uma moral escravista, que sup6e relacoes
sociais hierarquizadas,
dan
icas. Essa dimer.sao revela
0
carater fa
miliar e privado, ainda presenre na
culrura
brasileira.
Como uma
conseqiiencia da nossa formacao historica, indica
que
os grupCls so
ciais criam nor mas paniculares de inreracao e relacoes com outros
grupos e
dao como
urn suposto a lcgitimidade
publica
e universal
de riorrnas co nstru idas de forma particular e privada. Oaf a difi
culdade de a culrura brasileira norrnatizar e universalizar as normas
juridico-legais.
Urn ultimo ponro refere-se a certas crfticas enderecadas a Gil-
berto Freyre, especialmenre aquelas que.o consideram conservador
por ter
proposro
urna visao de conrinuidade da scciedade brasileira,
represenrada pela familia parriarcal que rnantern a capacidade de
deter m udancas mais esrrururais, Oevemos proceder a urna leitura crf
rica e
conremporanea
da obra de Cilberro Freyre e buscar urn afas
tarnento dos preconceiros mais recoirentes, A aritude mais adequada,
160
dianre de uma obra classica
como
essa, e problematizar, reconstruir
e desconstruir os percursos teoricos e ernpiricos ali presentes.
Para concluir, rerneremo-nos as ideias sugeridas' por Ferreira
Costa
(I992), no artigo "Vertentes democratio.s em Gilberto Freyre
e Sergio Buarque".
A argurnenracao do auror mC,stra a existencia de duas verten- '
,
res no
pensamenro
social brasileiro: a primeira apresenta urn carater
.J
autoritario e sugere que a organizac;:ao da sociedade brasileira
cleve'
passar pela organizacao do Estado. A segunda, representada por Gil
berto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, prop6e conhecer a reali
dade brasileira, nao a partir do Estado, mas a partir da pr6pria so
ciedade., .'
A segunda verrenre implica uma perspectiva dernocratica, pois
parte do pressuposco de que a sociedade e constitulda de forcas
vivas, de processos dinamicos de sociabilidade, de formas de repre
;'
senracao sirnbolica, constiruidas historicamente, e que deposi.taram
1,\:
r,
~ ~ ~ r ~ ~ r ~ s
por
sua vez transfiguradas em traces da
identidade
cul
1\.)
.I
rural brasileira,
apontando igualmente
a sua possibilidade cie con
'dnua
transformacao.
161