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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Fabrina Moreira Silva
A trans-historicidade do conhecimento científico na crítica socioepistemológica da
ciência, de Pierre Bourdieu
DOUTORADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2017
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Fabrina Moreira Silva
A trans-historicidade do conhecimento científico na crítica socioepistemológica da
ciência, de Pierre Bourdieu
DOUTORADO EM FILOSOFIA
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutor em Filosofia,
sob orientação do Prof. Dr. Antonio José
Romera Valverde.
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________
Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________
Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________
Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________
Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________
Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________
Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________
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Dedico este trabalho a Deus e à minha família, que me impulsionaram a voar mais alto,
e aos mestres que me orientaram nessa longa jornada, em especial ao meu orientador
Professor Dr. Antonio Valverde.
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AGRADECIMENTOS
À Margarida Adamah, minha filha amada, que em seus dezesseis anos cheios
de vida e de graça me ensina a ser mãe e se constitui como a maior responsável pelo
meu aprendizado sobre a vida.
À minha mãe, Margarida (in memoriam), pela grandeza do seu amor que,
contraditoriamente, só pôde me acalentar num curto período de minha vida. Mãe, sua
morte precoce é marca viva. Você sempre esteve presente em minha vida. Sua memória
é exemplo da vida em Cristo, de dignidade e de perseverança.
Ao meu pai, Moreira, pela sabedoria em me educar, por seus gestos solidários,
pelo seu amor e carinho e porque soube me proteger e me ensinar os limites da vida.
Agradeço-lhe por ter investido e acreditado sempre na educação e por ter me
incentivado a trilhar os caminhos do conhecimento, para transformar as pessoas sempre
para melhor. Pai, você é presença marcante em minha vida. Obrigada por me ensinar a
não desistir dos meus sonhos, por acreditar em mim.
Ao meu marido Carlos Ronaldo, pela força que nos une e faz do nosso amor o
mais intenso e o maior. Obrigada por sua dedicação, pela espera paciente nos momentos
de ausência, por toda a sua capacidade de compreensão, por sua confiança em mim,
enfim, por sua presença em minha vida. Esta vitória é primeiramente de Deus, e depois,
nossa!
Ao meu orientador Professor Doutor Antonio José Romera Valverde, por sua
competência teórica, pelos seus ricos ensinamentos durante todo o doutorado, pela
solidariedade que sempre lhe foi peculiar, pelo incentivo e pelo exemplo de
perseverança, não apenas no campo científico, mas também frente às adversidades da
vida.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-SP, por
partilharem seus conhecimentos, em especial ao professor Doutor Márcio Fonseca.
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Aos professores da banca de qualificação, Doutor Edélcio Souza e Doutor
Marcelo Perine, pelas preciosas considerações ao presente trabalho e pelas generosas
sugestões para seu aprimoramento.
À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesquisa de Ensino Superior,
pela concessão de bolsa parcial do doutorado, bem como pela bolsa doutorado-
sanduíche concedida, no ano universitário de 2013-2014, que otimizou o
desenvolvimento desta tese.
Aos professores Doutor Michel Paty e Doutor Bruno Belhoste, por terem me
acolhido em Paris, na Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne.
À Professora Doutora Eda Terezinha de Oliveira Tassara, que se predispôs a
me ajudar nos momentos mais difíceis desta tese, pela atenção, integridade e amizade
sincera.
À amiga Professora Berta Beznosai Hechtman, que esteve sempre disposta a
revisar minha tese, com muito zelo e competência.
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Sob a condição de conhecer a história do
pensamento é que se pode libertar o
pensamento de sua história.
(PIERRE BOURDIEU)
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RESUMO
Nesta tese, objetiva-se investigar em que medida o conceito de trans-historicidade do
conhecimento científico, segundo Pierre Bourdieu, reverbera a presença da filosofia da
ciência, na ocasião do último curso ministrado por ele, intitulado Science de La science
et reflexivité, no Collège de France no ano universitário 2000-2001. Bourdieu sintetiza,
nesse último curso, os fundamentos epistemológicos da sociologia e os toma como
objeto de estudo, fazendo assim uma ciência da ciência. Evitando as pretensões
totalizantes, propõe os conceitos de habitus e de campo, elaborando um sistema de
conceitos fechado que lhe permite a autorreflexidade científica, em específico aplicado
à sociologia. Assumindo a linha teórica epistemológica francesa de tradição
bachelardiana, Bourdieu afirma que o conhecimento científico é trans-histórico, ou seja,
um constructo social que conseguiu tornar sua verdade trans-histórica. A trans-
historicidade implica questionar os modos como se faz ciência, e esse questionamento
constitui o problema central que a reflexividade crítica de P. Bourdieu toma como ponto
de partida para a sua investigação acerca da produção do conhecimento científico. A
vigilância epistemológica é a garantia de cientificidade da sociologia, é certeza do
método adequado às especificidades do objeto, no caso a produção do conhecimento
sociológico. A tese que subjaz no problema investigado por Bourdieu em seu último
curso – De que modo a ciência produz conhecimentos trans-históricos? – evidencia a
presença de um pensador cujas análises alcançam um espectro amplo de temas;
entretanto, é no jogo do campo científico, com o habitus científico que, se e somente se,
torna-se possível falar de trans-historicidade do conhecimento científico. Esse esquema
conceitual de análise demonstra a reflexividade sempre presente na prática científica.
Palavras chave: Habitus; Campo científico, Trans-historicidade; Reflexividade crítica;
Ciência da ciência.
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RÉSUMÉ
Cette thèse envisage investiguer dans quelle mesure le concept de transhistoricité de la
connaissance scientifique selon Pierre Bordieu réverbère la présence de la philosophie
de la science à l‘occasion de son dernier cours, intitulé Science de la Science et
réflexivité, au Collège de France à l‘année universitaire 2000-2001. Bordieu synthétise
dans ce dernier cours les fondements épistémologiques de la sociologie tout en les
prenant comme objet d‘étude, faisant ainsi une Science de la Science. En évitant les
prétentions totalisantes, Bordieu propose les concepts d‘habitus et de champ élaborant
un système de concept fermé auquel lui permet l‘auto-réflexivité scientifique,
spécifiquement laquelle appliquée à la sociologie. Ayant comme base la ligne théorique
épistémologique française de tradition bachelardienne, Bordieu affirme que la
connaissance scientifique est trans-historique, c‘est-à-dire, une construction social qui a
achevé sa vérité trans-historique. La trans-historicité implique questionner les modes
sur lequel on fait la Science et tel questionnement constitue le problème central et le
point de départ de Pierre Bordieu lors de son investigation concernant la production de
la connaissance scientifique. La vigilance épistémologique est la garantie de la
scientificité de la sociologie et la certitude de la méthode adéquate aux spécificités de
l‘objet ,dans ce cas, la production de la connaissance sociologique. La thèse qui est à la
base du problème investigué par Bordieu lors de son dernier cours – De quel mode la
science produit les connaissances trainshistoriques? – mets en évidence la présence d‘un
penseur dont les analyses achèvent un ample éventail de thèmes. Pourtant, il est dans le
jeu du champ scientifique, avec l‘habitus scientifique qu‘il devient possible parler de la
trainshistoricité de la connaissance scientifique. Ce schéma conceptuel d‘analyse
démontre la réflexivité toujours présente dans la pratique scientifique.
Mots clés: Habitus; Champ scientifique; Transhistoricité; Réflexivité critique, Science
de la science.
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ABSTRACT
This thesis aims to investigate to what extent the concept of transhistoricity of scientific
knowledge, according to Pierre Bourdieu, reverberates the presence of the philosophy of
science on the occasion of the last course taught by him, entitled Science de la science
et reflexivité, at the Collège de France in the university year 2000-2001. Bourdieu
synthesizes, in this last course, the epistemological foundations of sociology and takes
them as object of study, thus making a science of science. Avoiding the totalizing
pretensions, Bourdieu proposes the concepts of habitus and field, elaborating a closed
system of concepts that allows him the scientific self-reflexivity, specifically applied to
the sociology. Assuming the French theoretical epistemological line of Bachelardian
tradition, Bourdieu affirms that the scientific knowledge is transhistorical, that is to say,
a social construct that has managed to make its transhistorical truth. Transhistoricity
implies questioning the ways in which science is made, and this questioning is the
central problem that P. Bourdieu's critical reflexivity takes as his starting point for his
investigation of the production of scientific knowledge. Epistemological vigilance is the
guarantee of the scientificity of sociology; it is certainty of the method appropriate to
the specificities of the object, in this case the production of sociological knowledge. The
thesis that underlies the problem investigated by Bourdieu in his last course - in what
way does science produce transhistoric knowledge? – is evidence of the presence of a
thinker, whose analyses reaches a wide spectrum of themes, however, it is in the game
of the scientific field with the scientific habitus that is, if and only if, it is possible to
speak of transhistoricity of scientific knowledge. This scheme Concept of analysis
demonstrates the always present reflexivity in scientific practice.
Keywords: Habitus; Scientific field, Transhistoricity; Critical reflexivity; Science of
science.
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Sumário
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9
2 CENÁRIO BIOGRÁFICO E TEÓRICO ............................................................... 22 2.1 INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE TRANS-HISTORICIDADE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
........................................................................................................................................ 35
3 AFINIDADES FILOSÓFICAS: GASTON BACHELARD, GEORGES
CANGUILHEM E JULIES VIULLEMIN ................................................................ 40 3.1 SITUAÇÃO DAS DISCUSSÕES NO CAMPO CIENTÍFICO: POSIÇÕES ONTOLÓGICAS,
REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO ................................................................................. 46 3.2 GASTON BACHELARD, GEORGES CANGUILHEM E MICHEL FOUCAULT: APROPRIAÇÕES
FILOSÓFICAS .................................................................................................................... 53 3.3 JULES VUILLEMIN: UM FILÓSOFO DA FILOSOFIA ......................................................... 67
3.4 ASPECTOS FILOSÓFICOS E EPISTEMOLÓGICOS DO TEOREMA DE GÖDEL SEGUNDO
DUMMETT ........................................................................................................................ 74 3.5 UMA ANALOGIA WITTGENSTEINIANA DO CONCEITO DE CAMPOS DE P. BOURDIEU ..... 94 3.6 UMA FILOSOFIA MODESTA: SEGUIR A REGRA E O PONTO DE VISTA ―ESCOLÁSTICO‖ ... 99
4 A TRANS-HISTORICIDADE COMO REFLEXIVIDADE CRÍTICO-
FILOSÓFICA ............................................................................................................. 107 4.1 TRANS-HISTORICIDADE E O CAMPO CIENTÍFICO ....................................................... 109
4.2 HABITUS CIENTÍFICO: MEDITAÇÕES PASCALIANAS E REFLEXIVIDADE ...................... 114 4.3 A TRANS-HISTORICIDADE E O HABITUS CIENTÍFICO SOCIOTRANSCENDENTAL ........... 119
4.4 A TRANS-HISTORICIDADE E OS LIMITES TEÓRICOS DA CIÊNCIA: A QUESTÃO DA LÓGICA
MATEMÁTICA ................................................................................................................. 129
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 147
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1 INTRODUÇÃO
Apresentar brevemente Pierre Bourdieu é, no mínimo, desafiador, pois ele é
uma personalidade muito conhecida, Por isso, corre-se o risco de parecer que se repete o
que todos já sabem sobre ele. Bourdieu é conhecido por ser um grande sociólogo cujas
obras se circunscrevem por diversas e distintas áreas do conhecimento, com reflexões,
apontamentos, explicações e críticas. No meio acadêmico filosófico brasileiro, não é
muito comum estudar Bourdieu. Por isso, a importância de deixar demarcado que o
escopo desta tese converge às reflexões elaboradas por Bourdieu acerca do
conhecimento científico, bem como a prática das Ciências Sociais e a questão da
neutralidade científica. Para tal jornada de investigação, toma-se como obra central
norteadora de toda a investigação seu último curso ministrado no Collège de France, no
ano universitário de 2000-2001, intitulado Science de la science et reflexivité.
Com efeito, esta primeira delimitação possibilita circunscrever o objeto de
estudo, construindo assim um campo no qual se investigam as questões concernentes
aos aspectos científico, histórico, filosófico, epistemológico e sociológico da produção
do conhecimento científico em geral, e nas Ciências Sociais, em específico. É essa a
direção que o jovem Bourdieu, em 1964, começa a esboçar nos seus primeiros
trabalhos, juntamente com seu amigo da École Normale Superieur, Jean-Claude
Passeron, o que se compreende por "vigilância epistemológica"1. Esse conceito está
diretamente ligado à prática científica do sociólogo, e seu alcance é de longo espectro.
Os principais argumentos que delimitam a perspectiva socioepistemológica da
investigação, no campo científico, evocam o caminho teórico construído por Pierre
Bourdieu na relação entre ciência, história e epistemologia, mediada por reflexões
filosóficas.
Inicialmente, para fins de introdução geral, define-se que, nesta tese, busca-se
refletir sobre o percurso intelectual que Bourdieu construiu, numa trajetória dinâmica,
em que ele perpassa de um papel para outro continuamente, num processo dialético
1 Entende-se por vigilância epistemológica "[...] o cuidado permanente com as condições e os limites da
validade de técnicas e conceitos" (BOURDIEU et al., 1990, p. 14). Como a ambição direcionada pode
dar conta cientificamente dos mecanismos sociais que orientam a prática científica. BOURDIEU, Pierre
& PASSERON Jean-Claude Les étudiants et leurs études. La Haye: Mouton, 1964, 149 p.
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constante entre a reflexão filosófica, a produção científica e a construção histórica. Essa
reflexão se desenvolve à luz dos elementos que emergem da biografia intelectual de
Bourdieu, propondo que existe uma evolução como um espiral em torno desses papéis
(filósofo, cientista e historiador), numa dialética, pois são muitos temas, objetos e
relações diferentes, e todos são concomitantes. E é no conceito de trans-historicidade
que se encontram os elos que permitiram a Bourdieu elaborar uma meta ciência, ou seja,
uma ciência da ciência.
Alguns elementos biográficos, teóricos e materiais da vivência acadêmica de
Bourdieu são comentados e expandidos ao longo deste texto:
1. A agregação em Filosofia pela École Normale Superieur - ENS e o serviço
militar, seguido de vivência acadêmica, na Argélia, proporcionaram a Bourdieu
condições heurísticas para emancipar a Sociologia da Filosofia, com o auxílio das
reflexões sobre sua prática e seus estudos sobre Etnologia e Antropologia. A transição
da filosofia à etnologia possibilitou-lhe reaprender a ver o mundo acadêmico, para então
criticá-lo. Em um de seus primeiros trabalhos Bourdieu chama aborda uma postura
sempre vigilante do cientista, e cunha o conceito de vigilância epistemológica, para
chamar a atenção para um problema que ele não tem a pretensão de dar por encerrado,
mas que aponta como uma necessidade para se praticar uma ciência rigorosa.
2. O ponto de partida epistemológico implícito da Revista Actes de La
Recherche tem origem na filosofia de G. Bachelard e G. Canguilhem, com a intenção de
ser uma revista científica. Bourdieu escreve o primeiro artigo da revista (publicada em
janeiro de 1975), intitulado "Método científico e hierarquia social dos objetos", fazendo
referência à obra de Gaston Bachelard intitulada "Materialismo Racional".
3. A matriz da inteligibilidade racional pela qual Bourdieu constrói seu método
reflexivo, na Sociologia, é constituída pela relação dos conceitos de campos e habitus.
Conceitos esses que têm origens as mais diversas, como física e filosofia,
respectivamente. Bourdieu define-os implicando a existência apenas de um em relação
ao outro, ou seja, eles não existem ontologicamente separados. É por meio da matriz
racional desses conceitos que se pode analisar sociologicamente um fato social. Os fatos
sociais não surgem prontos, na realidade, mas são construídos a partir de uma ruptura e
de uma vigilância epistemológica.
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4. A trans-historicidade é um conceito criado a partir da reflexividade
científica, cujo objetivo é resguardar os aspectos epistemológicos de uma criação
científica das condições sociais da sua produção. No último curso ministrado por
Bourdieu no Collège de France, no ano universitário 2000-2001, intitulado "Ciência da
Ciência e Reflexividade", esse conceito é definido por ele a partir de um garimpado das
correntes filosóficas e sociológicas da ciência, que acentuam as forças no campo
científico. No conceito de trans-historicidade encontram-se os elos da busca de
Bourdieu, uma vez que ele transita entre várias áreas do conhecimento, desde as teorias
lógico-matemáticas, até temas da ciência social e política. Os diversos temas estudados
nesta tese, e que num primeiro momento parecem soltos e desconexos, são elementos
que permitem perceber que Bourdieu busca compreender o processo histórico da ciência
com rigor e exigência, no método, para entender o que é essa forma de conhecer que se
denomina 'científica' e compreender o campo científico. É possível dizer que esse é o
projeto de Bourdieu, o de compreensão da ciência. Portanto, o conceito de trans-
historicidade conduz a uma busca, a de compreender a instituição ciência.
Como uma nota prévia para auxiliar o leitor a compreender a busca de
Bourdieu e costurar brevemente as relações que ele estabelece, apresentam-se a seguir
algumas reflexões iniciais, sem a pretensão de serem resolvidas neste momento inicial
do texto.
Bourdieu trabalha a ciência como uma instituição, muito embora não use essa
palavra. Considerando-a como uma instituição, ele questiona: O que ela é? É uma
instituição específica? Ela define um campo intelectual para aquele que pensa sobre ela?
E ao pensá-la, ele define dois conceitos materiais: o campo e o habitus.
Todavia, são três os conceitos centrais que levam ao entendimento do caminho
que Bourdieu escolheu para trilhar, na sua busca por compreender a ciência. São eles:
campos, habitus e trans-historicidade. A questão do habitus e do campos são
absolutamente palpáveis, ao se usar a questão da observação ou não observação. Eles
permitem o trabalho e vinculação entre o pensamento e o mundo, ainda sob uma ótica
empírica. No entanto, o conceito de trans-historicidade tem uma referência material
clara: é uma interpretação sobre uma permanência transformada de ideias.
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De fato, o próprio Bourdieu se diz cientista, por que intitula o curso 'a ciência da
ciência', e isso significa que ele objetiva dizer que o que está fazendo é uma forma
científica de tratar a instituição denominada ciência.
Sobre o conceito de campo, sabe-se que não foi Bourdieu quem o inventou, pois
seu uso ainda está presente na física, e começou a ser utilizado na teoria da Gestalt2.
Pode-se dizer o mesmo do conceito de habitus, que desde a Grécia antiga já estava
presente nas reflexões filosóficas sobre o conceito de héxis3, em Aristóteles.
Bourdieu vê na ciência o fenômeno social, da relação entre o habitus e o campo,
um fenômeno sociológico. No momento em que introduz a questão da trans-
historicidade, está justamente buscando juntar o necessário e o contingente. Está
convencido de que ela é uma instituição, entretanto ela perpassa, acumula, transforma-
se, enfim, tem uma genética. Uma genética no sentido de afirmar que a ciência é
dinâmica, vai crescendo e se transformado, e pode-se interpretar como ruptura, como
fez Thomas Kuhn, por exemplo. Pode-se interpretar como Karl Popper, com o conceito
de falsificacionismo. Enfim, é possível ter todas as posições, como as de Imre Lakatos,
Paul Feyerabend, mas todos eles não são suficientes para resolver o problema do
método e de como a ciência avança. Vale ressaltar que Bourdieu não tem a pretensão de
resolver o problema do avanço da ciência, mas aponta que essas discussões não devem
ser esquecidas e que são importantes, cada uma na sua medida, para a compreensão da
ciência hoje. É por isso que usa o método científico e tenta relacionar a materialidade
que seria quase uma derivação conceitual do empírico (com os conceitos de campo e
habitus), e de outro lado ele constrói um conceito teórico (trans-historicidade).
2 Ver Lewin, K. Teoria de campo em ciência social. (Carolina M. Bori, trad.) In Cartwright, D. (Org.) São
Paulo: Pioneira, 1951. 3 Na Ética a Nicômanos Aristóteles trabalha com este conceito que está ligado, ao mesmo tempo, com o
uso das faculdades intelectuais e morais (ARISTÓTELES, 2001, p. 35). Afinal, ser moralmente virtuoso
requer a posse da prática virtuosa. Ter disposição para agir com prudência, justiça, coragem, etc.
Na moral, a educação dos bons valores se dá na prática. Produto de um hábito que deve reger não só as
ações, mas também os sentimentos quanto a esta. ―O prazer ou o sofrimento de nossas ações é um indício
de nossas disposições morais‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 37). ARISTÓTELES, Ética a Nicômanos. Trad.
Mário G. Cury. Brasília: Ed. UNB, 2001
A virtude, para Aristóteles, adquire-se com a repetição de uma série de atos sucessivos, ou seja, com o
hábito. Assim, as virtudes tornam-se como que ―hábitos‖, ―estados‖ ou ―modo de ser‖ que nós mesmos
construímos segundo o modo indicado (REALE, 2003, p. 219). REALE, Giovanni. História da Filosofia
Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2003.
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Bourdieu elaborara uma definição rigorosa e, ao mesmo tempo, abrangente, para
as palavras campo e habitus. Portanto, é essa definição que permite atribuir a esses
termos o estatuto de conceito científico e, nesse sentido, desenvolve um novo recorte,
procurando adequar o rigor do método às atribuições passadas usadas por esses léxicos,
seja na ciência, seja na filosofia, seja na história. E é nesse sentido que ele fala em
'vigilância epistemológica'. De acordo com esse rigor, faz uma definição no sentido
rigoroso, o que dificulta o entendimento, pelos leigos, da teoria do método científico.
Com a palavra campos representam-se muitas coisas, dinâmicas ou duráveis. E
com habitus é a mesma coisa, uma vez que nele é possível perceber que há uma carga
da evolução da própria trans-historicidade, pois ele não parte do zero. Já no campo,
pode pensar que Bourdieu parte quase do zero, aplicando essa ideia à questão da ciência
e, ainda por definir, o campo científico como campo de poder. Vê-se, aqui, que o campo
científico é um campo de luta, é um campo de poder, e Bourdieu atribui esse poder no
nível do símbolo, portanto trabalha na confluência entre a psicologia social, a sociologia
e a antropologia, com esse conceito de habitus. E com a ciência política também, pois a
questão de discutir se a ciência é neutra ou não é uma discussão externa que foi
introduzida no debate interno da ciência, por causa dos usos e dos abusos que se fez da
produção científica, principalmente a partir da segunda guerra mundial.
A presença de Bourdieu nesse debate é importante porque, concomitantemente
com a produção dessas idéias estavam ocorrendo o sequestro do conhecimento e o
sequestro da ciência por um sistema de poder civilizatório4, que é o que se tem hoje,
mas isso, ou não estava claro e evidente, ou havia medo de se falar sobre o assunto.
Bourdieu estava, portanto, buscando compreender esse jogo de poder instalado
no campo científico e, nesse caminho, ele denomina de 'competência' esse poder, seja
ele civilizatório, científico ou econômico. Ao encontrar esse elemento no caminho que
chamou de 'capital de competência', ele conversa com a busca de Michel Foucault.
Aparentemente, compreender a ciência não era a busca de Foucault, mas, por analogia,
pode-se dizer que, no fundo, na Microfísica do poder, ele também estava deparando
4 Dominique Pestre é professor na EHESS e estuda atualmente como se deu o sequestro da ciência por
um sistema de poder civilizatório. Ver "A nova história das ciências: entrevista com Dominique Pestre"
http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v23n3/0104-5970-hcsm-23-3-0899.pdf
http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v23n3/0104-5970-hcsm-23-3-0899.pdf
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certo tipo de trans-historicidade, não no nível conceitual, mas no nível da "ação sobre
ações", o que ele denomina de poder.
Como se dá essa relação entre o poder e a ciência? Como elas se misturam? Não
só o rigor metodológico, mas também a atualidade dos debates, no campo da lógica
matemática, não era pertinente para Bourdieu pensar a ciência. Era preciso ir além das
fronteiras tradicionais das discussões da filosofia e sociologia da ciência. E é nessa
busca de compreender e aperfeiçoar o que já está posto em discussão que a trans-
historicidade permite identificar, ao longo de todos os grandes momentos de revolução,
que sempre é um salto que vai dar uma síntese nova em relação ao que vinha ocorrendo,
inúmeros pressupostos que são ideologias científicas, ideologias de vários níveis.
Portanto, é nos momentos de síntese que se pode identificar o que permanece válido
como pressuposto científico (conceito, teorias, verdades, etc.) e o que caduca.
Nesse ponto, cabe afirmar que Bourdieu é um cientista, e esse rigor dele com
relação ao método era a demonstração disso, pois a separação entre a filosofia e a
ciência é tênue. Considerando todo momento em que há uma ruptura numa ordem
hegemônica do pensamento, e considerando o campo e o poder, não se pode deixar de
perceber que é nesse campo que se gera o instrumental de domínio físico.
Todo momento de crise traz à tona essas dúvidas, pois, do ponto de vista da
lógica, quando se rompe uma ordem hegemônica, ela tem contida consigo as semânticas
sobre as quais se fala. Então, quando se rompe a ordem estabelecida, não há uma
certeza, e passa-se a buscar novas explicações que de novo restituam a verdade. E essa
busca quem a faz é o cientista; entretanto, quem a aponta é o filósofo Bourdieu, na
mesma pessoa, aponta e busca um novo sistema conceitual, o que faz dele, dessa forma,
um filósofo e um cientista.
Existe uma estrutura na formulação da teoria da ciência de Bourdieu, não no
sentido de uma epistemologia, mas no sentido de uma referência de leitura, pois a
epistemologia deve dizer se uma teoria ou um conceito é válido ou não, e não é a
questão da validade que o está preocupando. O que está preocupando Bourdieu é querer
fazer emergir aquilo que ele observa e sobre o que ele reflete. Ele busca, portanto, uma
forma descritiva conceitualmente consistente do que quer dizer, e o que quer dizer é que
a ciência é um campo de poder. Porém, outras questões também o incomodam, como a
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de compreender como o conhecimento científico é transmitido. Então, não estava
buscando compreender apenas o poder, mas também a reprodução do poder no
conhecimento científico, no conceito, no capital de competência, na reprodução do
poder que um conceito vai impor em relação a outro.
Outro filósofo com o qual Bourdieu dialoga é Ludwig Wittgenstein, que trabalha
o problema da linguagem. Wittgenstein discute a respeito do determinismo, e nessa
discussão o filósofo vienense fala da identidade, de saber como um conceito emerge. No
Tratactus, Wittgenstein afirma que "[...] os fundamentos da verdade de um estão
contidos nos outros; p se segue de q" (WITTGENSTEIN, 1961, §5.121). Ou seja, o
conceito emerge quando está contido em outro e não se sabe. No momento em que se
desprega do conceito, como ideia, automaticamente o ser correspondente aparece. O ser
pode ser o ser de um pensamento, mas pode ser também um ser da materialidade. Então,
a questão que emerge é justamente de saber se são os idênticos indiscerníveis ou se os
indiscerníveis são idênticos, quer dizer, enquanto não se distinguem os conceitos, eles
permanecem na identidade.
A relação com Wittgenstein é justamente porque Bourdieu pensa na
matemática, que é a linguagem essencial do método rigoroso e vitorioso na ciência
como domínio histórico. Galileu Galilei, no seu livro "Diálogo sobre os Dois Principais
Sistemas do Mundo", publicado em 1632, em Florença, afirmou que a ciência se abre,
no livro da natureza, mas a sua linguagem é matemática. Portanto, para fazer ciência da
ciência é preciso olhar para as questões da matemática também, bem como tem sentido
olhar para Wittgenstein, pois ele está buscando construir uma teoria da ciência e o que é
conhecimento científico. Compreender o que é o conhecimento científico orienta
Bourdieu a identificar as aparências que mudam, o que lhe possibilita desenvolver
ideias sintéticas e necessárias. O conhecimento necessário parte da descrição, prossegue
na explicação, que é a causal, e depois finaliza na interpretação, que é a teoria. Seguindo
esse raciocínio, percebe-se que Bourdieu busca construir uma teoria, e os conceitos que
ele desenvolve estão no campo do social, portanto muitos dizem que se trata de
sociologia. Entretanto, é no mínimo imprudente intitulá-lo de sociólogo, apenas porque
o habitus, por exemplo, não é um conceito da sociologia, é um conceito empírico
desenvolvido pela filosofia e usado na psicologia social, com as questões da
representação social.
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Bourdieu trabalha, portanto, no campo da interdisciplinaridade, não no sentido
de colocar objetos de várias áreas do conhecimento um ao lado do outro, mas no sentido
de construir um objeto novo. Por isso, o campo no qual atua não é estrito da sociologia;
é um campo que perpassa vários domínios. Nenhum deles estava resolvido, mas o que
ele busca é um novo objeto, e esse objeto, é possível afirmar, é uma teoria da ciência.
Bourdieu tem o rigor do método científico, mas não está buscando saber como a
ciência cresce, nem como o conhecimento cresce, nem o que serve e o que não serve.
Ele busca saber como a ciência funciona e por que se reproduz. Nessa dinâmica de
reprodução, saber o que permanece, e para enfrentar essa permanência ele desenvolve a
ideia da trans-historicidade como aquilo que é identificável como permanente e
necessário na ciência. A trans-historicidade seria a contribuição teórica de seu estudo
como cientista. Ele não faz uma epistemologia no sentido de afirmar o que faz aumentar
o conhecimento científico. O que mostra é que, nesse campo, existem as lutas pela
reprodução, a reprodução da hierarquização do poder por manutenção de privilégios
cuja origem ele não estuda (quem faz esse estudo é Foucault); ele apenas mostra que ela
se reproduz.
A busca de Bourdieu é justamente compreender esse paradoxo aparente entre um
campo tão contingente, porém não contingente pela reprodução da força que ele chama
de capital de competência. Ele considera que o capital de competência é uma função de
variáveis e que, no fundo, traduz-se pela palavra poder, segundo a ideia do saber de
Foucault. No entanto, ao mesmo tempo, é uma coisa permanente, é o embrião da
expansão civilizatória greco-romana, porque é no interior desse conhecimento dito
científico que se desenvolve o poder extrínseco da ciência. Para compreender esse
paradoxo, ele precisa trazer elementos da chamada crise da matemática. Essa crise não
começou agora, pois desde Zenão muitos argumentos não eram passíveis de
demonstração. O que ele tentava explicar foi demonstrado como teorema da análise
apenas no século XIX, e considere-se que Zenão viveu duzentos anos antes de
Aristóteles e Euclides.
Assim, como um esboço inicial para compreender a busca de Bourdieu, pode-se
afirmar que o que ele faz é uma arqueologia da escritura do processo de seu
pensamento, em que ele mesmo viu algo que não era compreendido, mas que tinha que
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ser compreendido e que, portanto, impulsionou-o a juntar o contingente e o necessário.
Contingente e necessário, na ideia do quê, no campo científico? Da reprodução. Da
reprodução do quê? Do capital de competência, que é um capital conceitual.
Não é trivial entender como o processo histórico da ciência se deu, visto que é
um processo altamente intelectual, detentor de inter-relações pessoais, um processo de
lutas entre pressupostos, ideologias e privilégios. No entanto, apenas a palavra
privilégio não explica a heurística do conhecimento.
Inicialmente, é possível conjeturar que Bourdieu, por ser agregado em filosofia
na École, conhecia profundamente o método científico, era consciente do jogo e das
lutas inerentes ao campo científico, e isso fazia dele um sujeito mordido pela questão
política, que ele conhecia.
No primeiro capítulo desta tese, apresenta-se uma biografia de Bourdieu, mas
adianta-se aqui que ele nasceu e cresceu no campo, no sul da França. Entretanto, chegou
a Paris ainda jovem, para estudar no colégio parisiense mais renomado, o liceu Luis le
Grand. Portanto, conhecia outra realidade, sabia como eram os caminhos e, assim,
encontra o tema no espaço onde cresce como pensador, mas o tema não poderia ser
resolvido numa penada.
A reflexividade levou Bourdieu a buscar esse novo objeto, pois não há cientista
verdadeiro que não esteja fora do sujeito, visto que o problema é uma prerrogativa do
sujeito do pensamento. Se o sujeito está dentro do problema, ele não está fazendo
ciência; para fazer ciência, precisa ser um meta sujeito do problema, para então ir
buscar. Se não fica clara a separação entre o sujeito e o objeto, a reflexividade tem a
função de mostrar essa separação. A reflexividade aplicada ao método científico vai
auxiliar a reintroduzir essa separação na ciência, portanto Bourdieu vê o objeto separado
do sujeito, uma vez que se mune dessa reflexividade.
Saliente-se que essa questão da clareza metodológica, da separação clara e
distinta entre sujeito e objeto do conhecimento, não foi resolvida por Bourdieu, mas sua
estilística teórica faz dele um pensador que se encontra sempre nesses desequilíbrios.
Um cientista, um pensador verdadeiramente da produção das ideias busca desenvolver o
tempo todo um problema instalado, e depois de uma solução sempre surge um novo
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problema. Percebe que essa solução não estava completa, e assim é a dinâmica da
ciência. Nesse sentido, o teorema de Gödel vem destacar que, ou se considera uma
teoria inconsistente, tendo que ser descartada, ou se considera que uma teoria é
incompleta e precisa ser aperfeiçoada.
Esse é o caminho da grande revolução, no fim do século XIX. Essas questões da
lógica matemática perpassam, mas não são resolvidas por completo. E mais, ela vai
trazer a discussão sobre o que é demonstrar, pois o que antes era demonstrado era o que
se afirmava por necessidade lógica. Afirmar por necessidade lógica era certo e preciso,
portanto era verdade, verdade da afirmação do argumento. Atribui-se verdade a
afirmações e, se elas estão dentro do argumento corretamente colocado, a conclusão
pode ser verdadeira ou pode ser falsa, isso desde Aristóteles.
No século XIX acontece uma grande revolução da compreensão do método. O
método demonstrativo, desde Aristóteles, que era a essência metodológica das ciências
humanas e sociais, vai ser objeto de uma profunda crítica por Hilbert. Essa crítica será
outro tema tangenciado neste trabalho, devido a sua relevância e importância na
compreensão do novo objeto que Bourdieu busca compreender. Apenas na intenção de
tornar claro ao leitor a relação entre a passagem que tratará dessa crítica feita por
Hilbert e a tese colocada é que se contextualizou brevemente essa crítica.
Hilbert desenvolve duas grandes disciplinas lógico-matemáticas, a axiomática
e a teoria da demonstração. Com a teoria da demonstração, afirma quais são as
condições para que se demonstre. Por exemplo, o teorema de Pitágoras, um teorema que
é muito usado desde o século V a.C., foi demonstrado apenas no século XX. Esse fato é
uma incógnita, pois, como se relacionam os fatos comprovados e não demonstráveis, e
afinal, o que é a demonstração? Quando se demonstra, têm-se condições de dizer ―esse é
um conhecimento necessário‖, contudo a comprovação já se apresenta como uma
necessidade, porque os fatos é que levam a aceitar ou não determinadas coisas, embora
não sejam demonstradas.
A análise matemática permitiu verificar as propriedades do pensamento junto
com a expansão das geometrias, e começa-se a se despregar dessa intuição da geometria
espacial vinculada a uma forma de mundo. O mundo não é mais o da intuição, da
percepção, mas é o das ideias, que pode estar nas ideias sobre o mundo da percepção;
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isso é o que a lógica matemática e Hilbert mostraram. Hilbert começa a pôr o rigor ao
questionar o que é demonstrar. A análise é o que sai do pensamento ou do fato, ou é da
relação entre o pensamento e o fato? Sobre o que essa estrutura está definida? Sobre
qual campo? O campo do fenômeno? O campo da mente? Demonstrar é muito mais
exigente do que simplesmente apresentar uma sequência argumentativa que se sustenta
na necessidade até aquele momento. Portanto, é uma quase verdade sempre, na busca de
um aperfeiçoamento sempre inacabado. A questão do Gödel também vai dizer que a
quase verdade é uma quase verdade da solução do pensamento.
A questão da observação também aparece. Hoje é difícil, na ciência, algum
objeto diretamente observável. A Física faz hoje elaborações de elementos que podem
chegar a alguma verdade fatual, portanto há manifestação de uma physis experimental,
sobre ideias que estão construindo e que nunca vão ser vistas. Demonstra-se a existência
de uma partícula que se sabe que jamais será observada, pois o tempo de sua duração
(tempo porque se tem o físico) não é compatível com a percepção.
Existe uma lógica por trás de todos os contatos e manifestações de Bourdieu
com pensadores, inclusive esses aparentemente bastante distantes das ciências humanas.
A crítica da geometria, da expansão da geometria, de Hilbert, no fundo mostra que
Bourdieu está estudando a questão da necessidade e a questão da necessidade
automaticamente entra com os problemas avançados da fronteira da lógica matemática e
das suas implicações sobre que é o conhecimento. A trans-historicidade não explica o
que é o conhecimento científico; ela apresenta, não é apenas um conceito, é a história
materializada.
A formalização também é um ponto tangenciado aqui neste trabalho.
Formalização significa definir univocamente os conceitos. Não se pode ter conceitos
egocêntricos como objeto interno da formalização, como os da sensibilidade. O objeto
interno da formalização pode ser real, pode ser válido, mas para ser formalizado é
preciso uma definição unívoca. Não pode haver divergências sobre o significado,
portanto deve se estruturar em sistemas formais. A formalização é sempre uma condição
que a lógica permite, mesmo que no sistema da física dinâmica o objeto interno da
formalização seja trabalhado com fórmulas matemáticas e cálculos que falam sobre
lógica. Ele é um corpo lógico, e isso tanto é verdade que esse objeto, uma vez
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formalizado, não precisa mais do homem indutivo, pois no momento em que ele é
formalizado obtém-se a dedução pura. A dedução pura é um arcabouço lógico, é um
ente, um ente produto de um processo coletivo, trans-histórico, que tem uma condição
de logicidade que permite a dedução sem a indução e fala sobre o mundo. Fala sobre um
mundo com limites, um mundo sob tais condições de observação, portanto é uma quase
verdade no sentido de qualquer mundo, mas é uma verdade no sentido daquele mundo.
As leis de Kepler, de Galileu e de Newton tornaram a mecânica racional e se tornaram
um instrumento dedutivo que não depende mais da indução. Não é preciso mais recorrer
ao recurso da observação; é possível formular um problema sobre hipótese e resolvê-lo
mecanicamente sem precisar da indução.
Em suma, Bourdieu busca um caminho acima de tudo científico, que a vigilância
epistemológica e o método mostram claramente; mas, sobretudo, ele é um pensador, um
erudito, e pensa acerca de tudo o que existe, no limite entre ciência e não ciência, e
aproveita o que já foi feito. Bourdieu mostra como se faz ciência verdadeiramente e faz
isso entrando por esses núcleos de discussões científicos, filosóficos e epistemológicos.
Porém, na construção da ciência da ciência, ele não perde de vista, mesmo nas
discussões filosóficas mais internalistas da ciência, a referência da vida social. Na
confluência entre as vicissitudes do campo social e da vida material e a formalização do
conhecimento científico, ele busca compreender, na dinâmica da ciência, a
permanência. E é na trans-historicidade que ele encontra, portanto, a permanência do
processo. É a trans-historicidade que caracteriza ciência como conhecimento necessário,
pois o conhecimento que permanece é exclusivamente matemático, que se impõe pela
lógica. Resta saber qual é a dimensão preponderante em Bourdieu. A científica, a
filosófica ou a epistemológica?
Para fins de apresentação, este relato de pesquisa está dividido em três capítulos.
O primeiro deles, intitulado CENÁRIO BIOGRÁFICO E TEÓRICO, versa sobre os
dados biográficos levantados, construindo-se um contexto no qual se apresenta a
condição que possibilitou a Bourdieu transitar entre a Filosofia e a Sociologia.
O segundo capítulo, intitulado AFINIDADES FILOSÓFICAS: GASTON
BACHELARD, GEORGES CANGUILHEM E JULIES VIULLEMIN, versa sobre as
origens teórico-filosóficas de Bourdieu, bem como sobre seu sistema de conceitos em
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análise social. Dedica-se um fôlego maior a esses três filósofos, devido ao grau de
relevância de suas escolhas e formulações teóricas.
A TRANSHISTORICIDADE COMO REFLEXIVIDADE CRÍTICO-
FILOSÓFICA é o título do terceiro capítulo, no qual se responde à questão: é possível
uma análise sociológica das ciências epistemologicamente orientada?
E, por último, à guisa de conclusão, reflexões filosóficas e aproximações à
dimensão que prepondera em Pierre Bourdieu.
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2 CENÁRIO BIOGRÁFICO E TEÓRICO
Pierre Bourdieu, nascido em 1º de agosto de 1930, em Denguin, comuna
francesa no Departamento dos Pirineus - Atlânticos, sudoeste da França, estudou quase
tudo nas Ciências Humanas. Formou-se em Filosofia, passando pela Antropologia, pela
História, e pela Sociologia. Também versou sobre temas variados, como a escola, a
televisão, a ciência, o artista, o camponês, etc.
Ninguém melhor do que ele para indicar suas próprias motivações e escolhas.
O que de mais próximo se encontra de uma autobiografia é a obra intitulada Esquisse de
auto-análise, 2004 (Esboço de Auto-análise, 2005). Bourdieu deixa claro que não
pretende se "sacrificar ao gênero autobiográfico" (BOURDIEU, 2005, p, 37), no
Esboço, mas deseja adotar o ponto de vista do analista, uma reunião e revelação de
"alguns elementos para uma auto-análise" (Idem). Bourdieu recusa-se a fazer uma
autobiografia, porém se dispõe a se submeter, enquanto objeto de estudo, utilizando o
método reflexivo crítico, fazendo uma análise sociológica das forças que estavam
distribuídas, no campo em que ele mesmo estava inscrito.
De caráter introdutório, ao contrário do Esboço, relatam-se alguns traços da
infância de Bourdieu, em uma sequência cronológica de aspectos biográficos que, de
certa maneira, marcaram suas escolhas acadêmicas. Sempre se destacou duplamente nos
estudos secundários, que lhe rendiam condecorações, como no concurso de Filosofia, no
Lycée Luis-le-Grand, em Paris, e, ao mesmo tempo, no seu estilo campesino que lhe
rendia chateações. Bourdieu levava uma vida dupla, uma elevada consagração escolar e
uma baixa extração social.
Bourdieu estudou dos 11 anos aos 17 anos no internato, em Pau (1941 a 1947).
Sem dúvida, essa vivência desempenhou papel determinante na "formação das
disposições" (BOURDIEU, 2005, p. 115) que ele veio a alcançar no campo intelectual.
A vida, no internato, segundo Bourdieu, ficava fadada à rotina e à repetição, e ele relata:
"[...] aquele que conheceu o internato conheceu, aos 12 anos, quase tudo na vida".
(BOURDIEU, 2005, p. 120). Pode parecer dramática uma afirmação dessa magnitude,
mas, por outro lado, indica a vivência gélida e dura do internato que marcou para
sempre o habitus de Bourdieu e suas inclinações sobre definir a ação pedagógica
sempre como um processo de violência simbólica, explicitado em sua obra La
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reprodution (1970-1975) – tradução "A reprodução (2001)". A escola é o espaço
formador de habitus,
[...] a escola propicia aos que se encontram direta ou indiretamente
submetidos à sua influência, não tanto esquemas de pensamento particulares
e particularizados, mas uma disposição geral geradora de esquemas
particulares capazes de serem aplicados em campos diferentes do pensamento
e da ação aos quais pode-se dar o nome de habitus cultivado (BOURDIEU,
2001, p. 211).
Para Bourdieu, não há ação pedagógica livre, e parece importante refletir sobre
o conceito de ação pedagógica como um exercício de violência simbólica de
internalização de arbítrios culturais.
Assim, desde muito cedo, para Bourdieu, "o mundo intelectual pareceu ser
habitado por conformismos profundos" os quais agiram sobre ele "como forças
repulsivas"5 (BOURDIEU, 2005, p. 128). Desde jovem se inclinou a uma
[...] visão realista (flaubertiana6) e combativa das relações sociais, a qual, já
presente desde a educação de minha infância, [...] contrasta com a visão
moralizante e neutralizada que acaba sendo encorajada, parece-me, pela
experiência protegida da existência burguesa (BOURDIEU, 2005, p. 115).
A experiência burguesa iniciou-se em Paris, quando chegou ao Lyceé Louis-le-
Grand, em 1948, aos 18 anos. Para ele, o Lyceé de Paris era infinitamente mais liberal
do que aquele que ele conhecera em Pau.
Com um estilo próprio, desde jovem posicionou-se contra as tendências
consolidadas, movidas por tensões e contradições. Em seus interesses manifestam-se
5 Bourdieu explica essas suas forças repulsivas: "[...] inclinações de habitus diferentes do meu, mudavam
ao ritmo das transformações que conduziram esse mundo inconstante dos encantamentos pela falsa
revolução aos desencantamentos de uma verdadeira revolução conservadora, fizeram com que eu me
achasse sempre em situação de contra-senso ou de contratendência aos modelos e modos dominantes no
campo" (BOURDIEU, 2005, p.129). E Bourdieu desabafa que essa tensão nunca se revelou nele de
maneira tão dramática como por ocasião da aula inaugural no Collège de France (BOURDIEU, 2005, p.
131). 6 O realismo flaubertiano no sentido de um senso da realidade, de uma lucidez sobre o comportamento
social e força no estilo em grandes romances. Gustave Flaubert é um escritor francês que tenta
harmonizar arte e realidade, engajado no movimento estético de reação ao Romantismo. A análise
literária feita por Bourdieu no prólogo da As regras da Artes ,de Flaubert, em "A Educação Sentimental",
mostra a "[...] ameaça que a ciência faria pesar sobre a liberdade e singularidade da experiência literária"
(BOURDIEU, 1996, p. 13). Flaubert instaura as condições de uma espécie de experimentação sociológica
no campo artístico, segundo Bourdieu. ―A Educação sentimental se constrói na narrativa histórica de um
grupo cujos elementos, [...] estão sujeitos ao conjunto de forças de atração ou de repulsão que exerce
sobre eles. E as mais intensas dessas interações são relações sentimentais‖ (BOURDIEU, 1996, p. 28).
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suas escolhas peculiares, refletindo nos tipos de objetos de estudo por ele abordados.
Bourdieu empenhou-se
[...] em deixar as contribuições teóricas mais importantes em notas de rodapé
ou em engajar minhas preocupações mais abstratas em análises
hiperempíricas de objetos socialmente secundários (BOURDIEU, 2005, p.
126).
Saindo de um vilarejo cujo símbolo era o atraso rural, passando pelo internato
em Pau e pelo Lycée, em Paris, em 1951, aos 21 anos ingressou na École Normale
Superieure, para cursar Filosofia. Durante os três anos de estudos, ele pôde conhecer a
epistemologia histórica de Gaston Bachelard e conviver com Jules Viullemin e Georges
Canguilhem, professores que lhe renderam convivência inspiradora.
Sua formação filosófica inclina-se em direção à epistemologia francesa
bachelardiana, chegando a escrever sob orientação de Canguilhem um texto acerca das
"Estruturas temporais da vida afetiva" segundo B. Husserl e G. Liebniz. Por outro lado,
ele é seduzido pela aceitabilidade do estruturalismo de Claude Levi-Strauss diante da
Filosofia. Bourdieu tentou se despregar do que havia de irreal, até mesmo de ilusório,
no que então se associava à Filosofia, na figura do intelectual total do existencialismo
sartreano. Havia em Bourdieu uma recusa explícita às explicações totalizantes.
Para compreender a trajetória universitária e profissional de Pierre Bourdieu e
particularmente sua conversão da Filosofia para a Sociologia, é preciso, como ele
próprio descreve no Esboço, começar por descrever a configuração do campo filosófico
e sociológico em curso nos seus anos de formação. Nas palavras de Bourdieu,
"compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez" (2005, p. 40).
O estado do campo filosófico no momento em que Bourdieu ingressa na ENS,
no início da década de 50, em Paris, "era dominado pela figura de Jean-Paul Sartre"
(2005, p. 41). Para ingresso na ENS havia cursos preparatórios nos Liceus, chamados de
khâgne, que, para Bourdieu, era o "espaço onde se produzia a ambição intelectual
francesa, [...] em sua forma mais elevada, a filosófica" (Idem, p. 42). Alguém se tornava
filósofo pelo fato de haver sido consagrado pelo grupo que lhes dava o estatuto mais
prestigioso e que lhes garantia o "[...] impedimento ao rebaixamento ao se ligarem às
certas disciplinas ou objetos; em especial objetos com que lidam os especialistas das
ciências sociais" (Ibidem).
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Existia uma tradição, na École: todos os recém-agregados eram convidados por
seus professores a ministrar aulas nos colégios onde iniciavam. Logo após a agregação,
Canguilhem propôs-lhe um cargo no Liceu de Toulouse, mas Bourdieu recusou.
Preferiu o Liceu de Moulins (1954-55), uma vez que se aproximava de Jules Viullemin,
ao investigar a "Estrutura da experiência temporal segundo Husserl" (BOURDIEU,
2005, p. 71). Tal recusa foi responsável por romper as relações com Canguilhem até
1968, entretanto o ensinamento do médico lavrador sempre se fez presente.
No Lycée de Moulin, Bourdieu deixou seu ensinamento, como testemunha um
seu antigo aluno, Jaques Lefevre, no jornal Le Monde. em 31 de janeiro de 2002:
Em, 1954 P. Bourdieu chegou à Moulin, recém agregado na ENS e sobretudo
cheio de entusiasmo. Ele tinha 24 anos. Com ele os cursos de Filosofia não
acabavam. Quantas vezes nós continuávamos a lição até depois das 12h, com
sanduíches em mãos [...]. Seu ensinamento era muito ortodoxo: havia um
interesse particular por Platão. Ele nos falava também de Sartre, mas sem
idolatria. Os resultados do bac da classe de filosofia foram a altura dessa
comunhão com um jovem professor cheio de carisma. [...] 35 anos depois eu
o revejo. Ele se lembra ainda do nome de seus primeiros alunos (LEFEVRE,
Le Monde, 2002)7.
Após ministrar aulas de Filosofia no Lycée de Moulin, Bourdieu foi chamado
para o serviço militar, na Argélia, servindo durante os três primeiros anos, de 1955 a
1958. A estada de Bourdieu na Argélia estendeu-se além do serviço militar e permeou a
academia, mudando assim os rumos de seus trabalhos. Entre 1958 e 1960, foi professor
assistente na Faculdade de Letras da Argélia e publicou Sociologie de l'Algérie (1958).
A Argélia proporcionou-lhe um terreno privilegiado de estudos antropológicos, e os
campesinos cabilos lhe permitiram lançar a base de sua teoria sociológica.
Escrevendo suas primeiras obras, Sociologia da Argélia (1958), Argélia ano 60
(1977), Le Déracinement [O desenraizamento] (1964), Trabalho e trabalhadores na
Argélia (1963), Bourdieu rompe com sua primeira identificação intelectual, e a questão
que se coloca é: existe uma ruptura que se consome no fio de suas outras obras, ou
habita um filósofo na Sociologia?
7 Tradução livre do autor.
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No momento de uma conversa pública, em Oxford, Jacques Bouveresse, amigo
e colega do Collège de France, afirma que "[...] podemos suspeitar de ele estar se
comportando um pouco como um desertor e de ter finalmente traído a causa da filosofia
para virar sociólogo" (BOUVERESSE, 2003, p. 47).
Com efeito, aos olhos da recepção de Bourdieu, no mundo acadêmico
parisiense o pensamento do normaliano não cessa de engendrar interlocutores, como G.
Bachelard, G. Canguilhem, M. Foucault, J-P Sartre, L. Wittgenstein, J. Vuillemin, entre
outros. Seus comentadores (BRAZ, 2013; CHAMPAGNE, Patrick et CHRISTIN, 2004;
CHARLE, 2003; CORNATON, 2010), falam mesmo da "Filosofia de P. Bourdieu", que
eles designam como um "sociólogo-filósofo".
Bourdieu confessa, em sua obra Choses dites, 1987 (Coisas ditas, 2004), que
Os filósofos estão muito mais presentes em meu trabalho do que sou capaz de
dizer, muitas vezes por medo de parecer que estou pagando tributo ao ritual
filosófico da declaração de fidelidade genealógica. Além disso, eles não estão
presentes no meu trabalho sob as formas normais. A pesquisa sociológica tal
como a concebo é também um bom terreno para fazer o que Austin8 chamava
de fieldwork in philosophy (BORDIEU, 2004, p. 42).
Suas primeiras eleições filosóficas junto aos filósofos racionalistas, fortemente
presentes na epistemologia francesa (a partir dos quais ele chama de "vigilância
epistemológica", servida pelo respeito à empiria), inspiram-no a tomar suas pesquisas
sobre os mercados argelinos. Paralelamente às pesquisas sobre os cabilas, ele também
continua escrevendo a tese sobre a temporalidade em Husserl, sob orientação do
epistemólogo Canguilhem, um provinciano do sudoeste da França, como ele.
O fato de a Etnologia9 ter prestígio junto aos filósofos, graças às obras de Levi-
Strauss, que condensava tão bem a metáfora do "olhar distanciado", ou seja, manter o
8 Bourdieu indica uma afinidade com a filosofia da linguagem de L. Wittgenstein, por intermédio de John
Austin, seguidor de Wittgenstein. Mais adiante essa afinidade será discutida e explicitada. 9Ver especialmente Lévi-Strauss Place de l'anthropologie dans les sciences sociales et problèmes posés
par son enseignement, 1958 [Lugar da antropologia nas ciências sociais e problemas colocados por seu
ensino, 1975]. A respeito da famosa tripartição estabelecida por Claude Lévi-Strauss (1958), há três
níveis de análises: 1º nível é o da etnografia, que deve contentar-se com descrições monográficas,
coletando "fatos" e se recusando a interpretá-los. O 2º nível é o da etnologia, que realiza uma síntese num
primeiro nível (regional, ou respeitante a alguma técnica). E o 3º nível é o da antropologia, ciência
comparativa, entendida como uma segunda síntese e última etapa da síntese, tomada por base as
conclusões da etnografia e da etnologia (1975, cap. XVII).
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mundo a distância para depois submetê-lo à estetização (BOURDIEU, 2005, p. 72), de
certa maneira facilitou sua transição da Filosofia para a Sociologia. Possibilitar ao
cientista a distância das vicissitudes do universo social fez da Etnologia uma condição
de possibilidade para Bourdieu realizar seu projeto racional de análise científica a partir
da relação entre os conceitos de habitus e campos.
O desejo do conhecimento científico, portanto, o respeito a uma racionalidade
apoiada na consideração dos fatos e acompanhada de alguma ambição social, conduz
Bourdieu a permanecer na Filosofia. E esse é, sem dúvida, o mesmo interesse para o
conhecimento, segundo a aceitação que ele denota como investimento no jogo do
campo em que se está, pois a cultura não é uma atividade desinteressada. Notadamente,
ela engendra um "capital simbólico" e "estratégias" para o adquirir e o conservar.
Bourdieu coloca seu saber a serviço da simpatia que ele sente pela Argélia e
seus habitantes. No entanto, ele não planeja renunciar à Filosofia.
O abandono das alturas da Filosofia para a miséria das favelas era também
um tipo de especiação sacrificial dos meus irrealismos adolescentes; o
retorno laborioso para uma língua despojada de tics e de trucs, da retórica
escolar marcou também a purificação de um novo nascimento (BOURDIEU,
2008, p. 35).
A redenção pela Sociologia opera-se por razões íntimas que ele evoca sem as
revelar, tingidas de epistemologia e de moral, que o conduzirão para uma prática
específica da Sociologia sempre aberta a novas eleições filosóficas nas quais ele
desenha seus instrumentos. Brevemente, Bourdieu desviou-se da Filosofia, não a fim de
estudar o habitat urbano, ou as relações humanas na indústria, mas certamente em nome
de uma exigência filosófica, e ele empresta a expressão de Blaise Pascal: "O verdadeiro
filósofo zomba da Filosofia" (BOURDIEU, 2003, p. 10).
Ao fim da guerra da Argélia, continuando na retrospectiva histórica, ao
retornar a Paris, em 1960, torna-se assistente do sociólogo francês Raymond Aron.
Aron, sociólogo com quem manteve relações acadêmicas e profissionais. Ele tornou o
jovem filósofo agregado da École seu assistente, no Centre de Sociologie Européenne
(Centro de Sociologia Europeia) da Faculdade de Letras de Paris, da École des Hauts
Études en Sciences Sociales - EHESS.
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Após ter vivenciado a guerra e, posteriormente, a vida acadêmica na Argélia, a
visão do filósofo recém-agregado à ENS viu-se reforçada pela visão do etnólogo. Para
um filósofo de formação, a Etnologia podia funcionar como um lugar intermediário
entre a Filosofia e a Sociologia.
Nessa direção ainda, Michel Foucault traduzia, nesse período, A Antropologia
de Immanuel Kant, o que impulsionou ainda mais a recusa profunda de Bourdieu ao
princípio da "distância social, do ponto de vista escolástico10". Isso porque sua busca
era justamente entender a confluência entre o mundo social e a produção científica, e
distanciar-se do sujeito significava distanciar-se do campo científico como campo de
luta. Em suma, retornou da Argélia com experiências em pesquisas sobre as sociedades
cabilas11, experiências em Etnologia. Bourdieu deixa claro que "[...] a transformação da
sua visão de mundo é correlata à passagem da Filosofia à Sociologia" (BOURDIEU,
2005, p. 86).
Em 1961, Bourdieu vai para a Universidade de Lille, para atuar junto à
graduação de Sociologia, recém-instituída no programa, cujo título se encontrava na
área de Letras. Os alunos de Sociologia eram integrados às turmas já constituídas em
cada uma das matérias que deveriam cursar, de acordo com os diplomas escolhidos: a
turma dos filósofos (que preparavam o certificado de "Moral e Sociologia"), a turma dos
psicólogos (que preparavam o certificado de "Psicologia Social") e a turma dos
economistas (que preparavam o certificado de "Economia Política e Social").
No começo do ano letivo de 1961, Bourdieu ministrava as aulas magnas de
"Moral e Sociologia" na Universidade de Lille.
Bourdieu, normalien e agregé em Filosofia, apresentava características mais
prestigiadas para um jovem intelectual (vinha da Sorbonne, onde, no ano
anterior, havia sido assistente de Raymond Aron), com uma particularidade
suplementar: ter feito trabalho de campo como etnólogo na Argélia, em um
momento em que a etnologia, por muito tempo uma disciplina menor, se vê
de alguma forma valorizada pela emergência do estruturalismo e da
notoriedade do Lévi-Strauss (DELSAUT, 2005, p. 213).
10 O princípio da distância social, na tradição escolástica, capacita-nos a conhecer o mundo enquanto o
mutila, na medida em que requer que nos retiremos do mundo e nos inclinemos para vê-lo como algo
diferente do que é por ele mesmo [...] mais que tarefas urgentes a serem realizadas praticamente hic et
nunc (WACQUANT, 2002, p.104). 11 Ver Sociologie de l'Algerie (1958).
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Aron comentava que Bourdieu "[...] sempre teve um sistema de conceitos
fechados desde muito cedo" (BOURDIEU, 2005, p. 64). Um sistema que, na verdade, já
havia se formado nas primeiras pesquisas etnológicas e sociológicas, na Argélia.
Com efeito, a sociologia era desvalorizada perante os filósofos agregados na
École, por sua feição de vulgaridade científica, uma vez que possuía uma ambição de
dar conta cientificamente das condutas humanas. Mesmo assim, Bourdieu não hesitou.
Esse era, na verdade, o seu desafio. Ele se definia como "líder de um movimento de
libertação das Ciências Sociais contra o imperialismo da Filosofia" (Idem, p. 71). E
ninguém melhor do que o epistemólogo francês Canguilhem, conterrâneo, professor e
orientador, para inspirar a consagração de tal projeto de libertação.
A diversidade dos trabalhos de Bourdieu, por um lado, e a recorrente
continuidade de suas interrogações, por outro, demonstram sua vontade de provar seus
conceitos no fio da sua história. Essa observação permite constatar, no conjunto,
algumas obras maiores de Bourdieu, uma lógica recorrente.
Os primeiros escritos de Bourdieu são trabalhos em equipe, fundados ao redor
dos anos 60, centralizados na cultura, em especial na escolar e na vontade de fundar
uma sociologia científica original. Constata-se que Os herdeiros (1964), A reprodução
(1970) e Ofício de sociólogo (1968) são obras iniciais que já apresentam profundidade
filosófica e justificação epistemológica.
A obra intitulada A reprodução, que foi publicada em colaboração com o
filósofo e colega de ENS, J-C Passeron, é na verdade o prolongamento do texto
publicado inicialmente, em 1964, com o mesmo autor, intitulado Os herdeiros, os
estudantes e a cultura. Na ocasião, os autores partem da constatação da desigual
representação das diferentes classes sociais no ensino superior e se interrogam sobre os
fatores de diferenciação do êxito escolar. A reprodução aparece como a síntese teórica
de Os herdeiros, na qual é revelada a função reprodutora da Escola.
Nessa obra está presente um esquema conceitual oriundo de uma reflexão
essencialmente filosófica, refinada por Bourdieu ao longo de sua vida acadêmica, cujo
esboço já se encontrava nos seus primeiros escritos. Ele elaborou um esquema
conceitual que se chama aqui "matriz conceitual racional" de análise do universo social.
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Essa matriz é formada por dois conceitos operantes e relacionais, que existem apenas
um em função do outro. São eles ―campo‖ e ―habitus‖.
Para Bourdieu (2009), o mundo social é o lugar de processo de diferenciação
progressiva, um macrocosmo. O campo, por sua vez, é um microcosmo dentro do
espaço social global. Não são espaços com fronteiras definidas; é o lugar de relações de
forças. Uma análise em termos de campo implica três momentos necessários e
conectados entre si. São eles:
1º Deve analisar a posição do campo em relação ao campo de poder, donde
ocupa uma posição dominada;
2º Deve estabelecer a estrutura objetiva das relações entre as posições ocupadas
pelos agentes ou as instituições que estão em competência nesse campo; e
3º Deve utilizar hábitos dos agentes, os diferentes sistemas de disposições que
são adquiridos com a interiorização de um tipo determinado de condições sociais e
econômicas.
Em uma de suas primeiras obras, A reprodução, Bourdieu analisa o sistema
escolar sob a ótica do campo e do habitus e conclui que a escola serve como
instrumento de legitimação das desigualdades sociais. Longe de ser libertadora, ela é
conservadora e mantém a dominação das classes populares. Contrariamente à afirmação
de que a escola é uma instituição neutra, a serviço de um saber universal e racional que
permite a promoção individual, a sociologia bourdieusiana tem mostrado que ela está na
fonte da reprodução dos privilégios culturais. O conceito de habitus provoca a
eliminação das categorias desfavorecidas, pois, com a sociologia de Bourdieu, os
indivíduos aprendem a antecipar seu futuro conforme a sua experiência do presente;
logo, aprendem a não desejar o que, no seu grupo social, aparece como eminentemente
provável. Para Bourdieu, apenas "[...] sob a condição de conhecer a história do
pensamento é que se pode libertar o pensamento de sua história" (BOURDIEU, 1983, p.
32).
Na obra intitulada Ofício de sociólogo (1968), Bourdieu descreve a
importância de filósofos como G. Bachelard e G. Canguilhem para definição de um
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método para a prática da Sociologia. Logo no prefácio ele enfatiza como a
epistemologia de Gaston Bachelard se diferencia de uma
[...] metodologia abstrata em seu esforço para capturar a lógica do erro para
construir a lógica da descoberta da verdade como polêmica contra o erro e
como esforço para submeter as verdades próximas à ciência e os métodos que
utilizam para uma retificação metódica e permanente (BOURDIEU, 2004, p.
23).
São várias as indicações de Bachelard ao longo do Ofício, e pode-se verificar a
presença do filósofo nos títulos escolhidos por Bourdieu dentre os capítulos dessa
mesma obra. São eles: "Os três graus da vigilância"; "Razão arquitetônica e razão
polêmica"; "A filosofia dialogada" e "As mundanalidades da ciência". Esse tema é
desenvolvido, com mais argumentação, no primeiro capítulo desta tese.
Ainda no prefácio do Ofício, Bourdieu afirma que o sociólogo pode encontrar
um instrumento privilegiado de vigilância epistemológica na sociologia do
conhecimento como um meio para enriquecer e esclarecer o conhecimento do erro e das
condições que o tornam possíveis e, às vezes, inevitáveis.
Pode-se constatar que a maneira pela qual foi anunciada a morte de Bourdieu,
em 23 de janeiro de 2002, e comentada nos meios de comunicação, revelou e instruiu
muito. Bourdieu suscitou reações apaixonadas, reações de rejeição e até mesmo de ódio,
mas também de testemunhos emotivos e julgamentos que se esforçam para estar à altura
do grande legado. As homenagens, pode-se ver, são animadas pela paixão de
compreendê-lo.
Louis Pinto, com a obra Bourdieu e a teoria do mundo social, apresenta o
trabalho do sociólogo como uma "revolução simbólica", uma nova maneira de ver o
mundo social, dando "uma função maior às estruturas simbólicas" (tais como a
educação, a cultura, a literatura). No campo da produção simbólica, as relações de
forças entre os agentes apresentam-se na forma transfigurada e eufemizada da relação
de sentido. A violência simbólica, tema central dos trabalhos de Bourdieu, não seria
mais que um instrumento a serviço da classe dominante, mas se exercita igualmente nos
jogos dos atores sociais (Le Monde, 25.01.2002).
Thomas Ferenczi, no Liberation (25.01.2002), para medir a inovação apontada
por Bourdieu, citou que o CNRS lhe deu, em 1993, a medalha de ouro, estimando que
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ele "[...] regenerou a sociologia francesa, associando em permanência o rigor
experimental com a teoria fundada sob uma grande cultura em Filosofia, em
Antropologia e em Sociologia". Ferenczi afirma que a questão central de Bourdieu é
saber como as condutas podem ser reguladas sem ser o produto da obediência às regras.
Não se pode jamais partir de tal projeto, que conduziria a instalar a sociologia no centro
das Ciências Sociais, para fazer uma economia geral das práticas.
Didier Eribon tentou, ao seu modo, inserir no texto publicado no jornal Le
Nouvel Observateur a questão chave da Sociologia de Bourdieu: o que é um indivíduo?
E como ele pode conquistar sua liberdade contra os mecanismos sociais que o fabrica e
não param de enterrá-lo? Pode-se, portanto, obter esclarecimento à luz de dois conceitos
fundamentais: a teoria do habitus, para apreender como o indivíduo incorporou os
determinismos sociais que guiam, como um sistema de disposições adquiridas, suas
ações, suas escolas, seus gostos; e a teoria do campo, para mostrar que, na medida em
que há em todos os espaços sociais forças que se opõem, há também lutas e, portanto, o
jogo. Existe sempre o lugar no qual nasce alguma coisa que parece esta que é chamada
de liberdade (ERIBON, Le Nouvel Observateur, 31.01.2002, p. 44). [ERIBON, Didier.
(2002, 31 jan.). «Pierre par Bourdieu». Le Nouvel Observateur , p. 44.]
Jacques Bouverresse lembra também sobre essa questão central da relação
entre determinismo e liberdade no pensamento de Bourdieu. Para Bouverresse,
Bourdieu teria pesquisado sempre para explicar por que as coisas são difíceis de mudar
e para mostrar como elas poderiam mudar. Bourdieu não tem, aos olhos de Bouverresse,
nenhuma intenção de persuadir os intelectuais de outra coisa: sua liberdade tem limites,
provavelmente muito mais estritos, e eles são naturalmente inclinados a acreditar neles.
Mas eles são encontrados geralmente mais convenientes para se apoiar, de modo
inaceitável por sua dignidade, e não se tem nenhuma liberdade real (BOUVERRESSE,
Le Monde, 31.01.2002). [ BOUVERRESSE, Jacques. (2002, 31 jan.). «Pierre Bourdieu,
Blaise Pascal et les demi-savants de la philosophie». Le Monde.]
Alain Touraine anunciou que Bourdieu é, de um lado, determinista social. Já
Touraine é do lado da liberdade, porém as duas faces da sociologia não podem viver
uma sem a outra (Liberation, 25.01.2002)[ TOURAINE, Alain. (2002, 25 jan.).
«BOURDIEU, les champs du partisan». Liberation, p.2.]. Para Touraine, a tese mais
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forte de Bourdieu porta, com efeito, uma das grandes questões da filosofia e da
sociologia: como um indivíduo pode ter da liberdade tudo o que inclui múltiplos
contrários e determinismos? A teoria do habitus, para Touraine, não prende Bourdieu
em uma cela de ferro. A interiorização habitua, e [...] os programas de comportamentos
dão ao indivíduo uma liberdade em um determinado ambiente. Do mesmo modo, ele
retoma e desenvolve a sua maneira clássica, segundo a qual o conhecimento
determinista ajuda a liberdade (TOURAINE, Sciences Humaines, "La ouvre de P.
Bourdieu", 2002, p. 103).
A dimensão transcendental da teoria de Bourdieu ultrapassa as fronteiras da
sociologia, escreve Jean Lojkine no jornal La Humanité em 25.01.2002. A sociologia de
Bourdieu é às vezes histórica, política, antropológica [...] e filosófica. Há em sua teoria
uma dimensão transversal que não é evidentemente limitada a uma análise empírica,
nem a uma disciplina estreitamente definida (LOJKINE, La Humanité, em 25.01.2002)[
LOJKINE, Jean. (2002, 25 jan.). «Il n'a jamais plie». La Humanité. ].
Loïc Wacquant, professor de sociologia em Berkley e colaborador próximo de
Bourdieu, ressalta a universalidade dos domínios aos quais a aproximação de Bourdieu
é aplicável. Para os pesquisadores, que são milhões ao redor do mundo, para trabalhar
com esses conceitos são necessárias muitas décadas para obter a plena medida e tirar
todas as implicações de um pensamento fundamentalmente relutante à quantificação.
Bourdieu aliou o rigor do método científico à inventividade do artista, uma cultura
teórica incomparável a uma prática incessante da pesquisa na qual ela investiga, uma
Libido Science sem fim ou infinita (WACQUANT, Le Nouvel Observateur, 31.02.2002,
p. 44)[ WACQUANT, Loïc. (2002, 31 fév.) «Un disciple se souvient: Blues, boxe et
sociologie». Le Nouvel Observateur, p. 44].
Pierre Bourdieu tem assim cruzado as barreiras arbitrárias das disciplinas
estabelecidas. Se ele se converteu da Filosofia para a Sociologia, foi para integrar a
Filosofia na sua aproximação, como tinha afirmado Jacques Derrida no seu propósito da
entrevista no Le Monde. Derrida conheceu Bourdieu no khâgne, em Louis-le-Grand, em
1949, e esteve com ele na ENS. Segundo Derrida, as trocas entre eles foram
verdadeiramente realizadas nos últimos anos da década de 60, quando Bourdieu
apresentou o seu projeto de reforma da Sociologia, inaugurando um trabalho que integra
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a Filosofia para produzir uma "Sociologia da Sociologia". Bourdieu tinha a ambição de
dar conta de todos os campos intelectuais e compreender inclusive o próprio campo.
Essa construção hipercrítica, autor das palavras preferidas de Derrida, 'objetivar', ou
seja, analisar, fazer objetivo para toda prática espontânea, é o centro da demarcação de
Bourdieu (DERRIDA, Le Monde, 24.01.2002)[ DERRIDA, Jacques. (2002, 24 jan.). «La
réaction de Jacques Derrida». Le Monde.].
Jacques Bouverresse, professor da cadeira de Filosofia no Collége de France e
grande amigo de Bourdieu, diz dividir a desconfiança de Bourdieu com as grandes
teorias filosóficas, sua admiração por Wittgenstein e seu gosto pela precisão e pela
exatidão. Bouverresse pergunta-se por que Bourdieu tinha sempre, em sua demarcação
intelectual, um ―pé atrás‖. Bouverresse estima que é porque ele tinha sempre, ao menos
um pé muito mais atrás que os outros e, em particular, que os filósofos (L'Humanité,
04.02.2002). Bouverresse opõe-se à legenda de um Bourdieu antifilósofo. Para seu
colega, todos os livros de Bourdieu são também livros de Filosofia, salvo, bem
entendido, para os que acreditam na ideia de uma filosofia pura e que, do mesmo modo,
tendem a considerar Bourdieu como um sociólogo 'puro' ou um puro sociólogo (Les
Inrockuptibles, 29.01-04.02.2002).
Christophe Charle e Daniel Roche sublinharam, no Le Monde, em 06.02.2002,
a relação de Bourdieu e de sua escola, nas ciências históricas, notadamente nos
domínios da História Social, da História das práticas culturais, da História do Estado. A
História foi se formando por meio das contribuições da revista de Bourdieu ASLRSS,
um ramo da sociologia crítica.
Oliver Christin, também historiador, comenta que Bourdieu, nos últimos 30
anos, marcou profundamente a historiografia na França, e mais ainda no estrangeiro
(Les Inrockuptibles, 29.01-05.02.2002, p.13)[ CHRISTIN, Oliver. (2002, 29 jan.).
«Hommage à Pierre Bourdieu». Les Inrockuptibles, p.13.].
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2.1 Introdução ao conceito de trans-historicidade do conhecimento científico
Em seu último curso, Bourdieu dispôs-se a descrever alguns discursos na
Filosofia das ciências que circunscrevem a problemática da neutralidade ou não na
produção do conhecimento científico. Responder a essa questão da neutralidade fez
Bourdieu se lançar em um campo filosófico que seria o gerador do conceito de trans-
historicidade do conhecimento científico.
Uma vez indicado esse caminho filosófico de Bourdieu, é possível avançar,
neste texto, em direção ao objetivo específico desta tese, que é investigar o conceito de
trans-historicidade do conhecimento científico para demonstrar a essencialidade
filosófica da reflexão de Bourdieu. Partindo da perspectiva bourdieusiana, o sistema de
conceitos que ele constrói, em uma perspectiva inicial, epistemologicamente orientada
pela filosofia da ciência, é o cerne da pesquisa. Esse é o escopo deste trabalho:
reconstruir a reflexão sobre a neutralidade científica apresentada em seu último curso,
ministrado no Collège de France no ano universitário 2000-2001.
O primeiro passo a ser dado nessa direção é admitir que tomar a ciência como
objeto de estudo significa aceitar que existe uma linha tênue que separa a Filosofia e a
Sociologia no campo científico. Para compreender a produção do conhecimento
científico, Bourdieu elabora uma análise filosófica e epistemológica desse processo.
Nessa busca de compreender a produção do conhecimento científico, Bourdieu
depara o problema do relativismo social12
na produção da ciência. E aqui, uma segunda
questão: o conceito de trans-historicidade resguarda a ciência do relativismo social?
A solução para o problema do relativismo foi justamente a noção de campo
científico. Essa noção, proposta por Bourdieu, rompeu com alguns pressupostos
tacitamente aceitos por muitos dos que se interessam pela produção da ciência.
Falar de campo é romper com a ideia de que sábios formam um grupo
unificado e praticamente homogêneo (BOURDIEU, 2001, p. 84). Os investigadores,
12
O problema do relativismo social na produção da ciência foi palco de discussões das mais variadas.
Sintetizando, a questão resume-se em: a ciência é neutra? A produção do conhecimento científico
depende ou não das condições sociais de sua produção?
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como outros artistas ou escritores, estão unidos pelas lutas que enfrentam, inclusive
pelas alianças que podem uni-los e pela posição que ocupam nessas lutas.
Porém, a diferença dos campos (artístico, jurídico, literário, científico, etc.) é o
grau de autonomia, ou seja, a autonomia de um campo está diretamente relacionada com
as forças que se exercem sobre ele. Dessa forma, em especial com relação ao campo
científico, é possível afirmar que ele é relativamente autônomo, pois o conhecimento
científico possui uma característica "trans-histórica"13
que lhe dá certa autonomia em
relação às forças que existem no campo científico. A trans-historicidade do
conhecimento científico possibilita a produção de conhecimentos que transcendem a
condição inicial de sua produção.
Assim, a questão é saber: a trans-historicidade resguarda o conhecimento
científico do relativismo social? A resposta não é simples, pois, por um lado, não o
resguarda do relativismo social, mas, por outro lado, dá-lhe um estatuto de saber
formalizado e, portanto, de um saber científico segundo as normas epistemológicas.
Não resguarda porque pensar no campo científico como um campo totalmente
autônomo e neutro é, para Bourdieu, uma visão ingênua da produção do conhecimento
científico. Todo conhecimento científico é produzido em circunstâncias sociais e
históricas, com lutas de poder e interesses gerados pelas forças que atuam no interior do
campo.
Um exemplo dessa visão está na obra do historiador da ciência Thomas Kuhn,
intitulada "A estrutura das revoluções científicas", que introduz a noção contraditória de
autonomia da ciência em relação ao mundo social. Para Bourdieu, "[...] a autonomia de
um campo somente existe perante um mundo social" (BOURDIEU, 2001, p. 21). Ou
seja, o mundo social é condição para existência da autonomia, assim como a noção de
espaço externo existe somente em referência à noção de espaço interno subjetivo, o qual
Kant denomina ser a priori. Em suma, não haveria autonomia se não houvesse um
mundo social que tornasse possível a condição de autônomo.