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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Fabrina Moreira Silva A trans-historicidade do conhecimento científico na crítica socioepistemológica da ciência, de Pierre Bourdieu DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2017

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    Fabrina Moreira Silva

    A trans-historicidade do conhecimento científico na crítica socioepistemológica da

    ciência, de Pierre Bourdieu

    DOUTORADO EM FILOSOFIA

    SÃO PAULO

    2017

  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    Fabrina Moreira Silva

    A trans-historicidade do conhecimento científico na crítica socioepistemológica da

    ciência, de Pierre Bourdieu

    DOUTORADO EM FILOSOFIA

    Tese apresentada à Banca Examinadora da

    Pontifícia Universidade Católica de São

    Paulo, como exigência parcial para a

    obtenção do título de Doutor em Filosofia,

    sob orientação do Prof. Dr. Antonio José

    Romera Valverde.

  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________

    Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________

    Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________

    Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________

    Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr. ________________________________ Instituição _____________________

    Julgamento _____________________________ Assinatura_____________________

  • Dedico este trabalho a Deus e à minha família, que me impulsionaram a voar mais alto,

    e aos mestres que me orientaram nessa longa jornada, em especial ao meu orientador

    Professor Dr. Antonio Valverde.

  • AGRADECIMENTOS

    À Margarida Adamah, minha filha amada, que em seus dezesseis anos cheios

    de vida e de graça me ensina a ser mãe e se constitui como a maior responsável pelo

    meu aprendizado sobre a vida.

    À minha mãe, Margarida (in memoriam), pela grandeza do seu amor que,

    contraditoriamente, só pôde me acalentar num curto período de minha vida. Mãe, sua

    morte precoce é marca viva. Você sempre esteve presente em minha vida. Sua memória

    é exemplo da vida em Cristo, de dignidade e de perseverança.

    Ao meu pai, Moreira, pela sabedoria em me educar, por seus gestos solidários,

    pelo seu amor e carinho e porque soube me proteger e me ensinar os limites da vida.

    Agradeço-lhe por ter investido e acreditado sempre na educação e por ter me

    incentivado a trilhar os caminhos do conhecimento, para transformar as pessoas sempre

    para melhor. Pai, você é presença marcante em minha vida. Obrigada por me ensinar a

    não desistir dos meus sonhos, por acreditar em mim.

    Ao meu marido Carlos Ronaldo, pela força que nos une e faz do nosso amor o

    mais intenso e o maior. Obrigada por sua dedicação, pela espera paciente nos momentos

    de ausência, por toda a sua capacidade de compreensão, por sua confiança em mim,

    enfim, por sua presença em minha vida. Esta vitória é primeiramente de Deus, e depois,

    nossa!

    Ao meu orientador Professor Doutor Antonio José Romera Valverde, por sua

    competência teórica, pelos seus ricos ensinamentos durante todo o doutorado, pela

    solidariedade que sempre lhe foi peculiar, pelo incentivo e pelo exemplo de

    perseverança, não apenas no campo científico, mas também frente às adversidades da

    vida.

    Aos professores do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-SP, por

    partilharem seus conhecimentos, em especial ao professor Doutor Márcio Fonseca.

  • Aos professores da banca de qualificação, Doutor Edélcio Souza e Doutor

    Marcelo Perine, pelas preciosas considerações ao presente trabalho e pelas generosas

    sugestões para seu aprimoramento.

    À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesquisa de Ensino Superior,

    pela concessão de bolsa parcial do doutorado, bem como pela bolsa doutorado-

    sanduíche concedida, no ano universitário de 2013-2014, que otimizou o

    desenvolvimento desta tese.

    Aos professores Doutor Michel Paty e Doutor Bruno Belhoste, por terem me

    acolhido em Paris, na Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne.

    À Professora Doutora Eda Terezinha de Oliveira Tassara, que se predispôs a

    me ajudar nos momentos mais difíceis desta tese, pela atenção, integridade e amizade

    sincera.

    À amiga Professora Berta Beznosai Hechtman, que esteve sempre disposta a

    revisar minha tese, com muito zelo e competência.

  • Sob a condição de conhecer a história do

    pensamento é que se pode libertar o

    pensamento de sua história.

    (PIERRE BOURDIEU)

  • RESUMO

    Nesta tese, objetiva-se investigar em que medida o conceito de trans-historicidade do

    conhecimento científico, segundo Pierre Bourdieu, reverbera a presença da filosofia da

    ciência, na ocasião do último curso ministrado por ele, intitulado Science de La science

    et reflexivité, no Collège de France no ano universitário 2000-2001. Bourdieu sintetiza,

    nesse último curso, os fundamentos epistemológicos da sociologia e os toma como

    objeto de estudo, fazendo assim uma ciência da ciência. Evitando as pretensões

    totalizantes, propõe os conceitos de habitus e de campo, elaborando um sistema de

    conceitos fechado que lhe permite a autorreflexidade científica, em específico aplicado

    à sociologia. Assumindo a linha teórica epistemológica francesa de tradição

    bachelardiana, Bourdieu afirma que o conhecimento científico é trans-histórico, ou seja,

    um constructo social que conseguiu tornar sua verdade trans-histórica. A trans-

    historicidade implica questionar os modos como se faz ciência, e esse questionamento

    constitui o problema central que a reflexividade crítica de P. Bourdieu toma como ponto

    de partida para a sua investigação acerca da produção do conhecimento científico. A

    vigilância epistemológica é a garantia de cientificidade da sociologia, é certeza do

    método adequado às especificidades do objeto, no caso a produção do conhecimento

    sociológico. A tese que subjaz no problema investigado por Bourdieu em seu último

    curso – De que modo a ciência produz conhecimentos trans-históricos? – evidencia a

    presença de um pensador cujas análises alcançam um espectro amplo de temas;

    entretanto, é no jogo do campo científico, com o habitus científico que, se e somente se,

    torna-se possível falar de trans-historicidade do conhecimento científico. Esse esquema

    conceitual de análise demonstra a reflexividade sempre presente na prática científica.

    Palavras chave: Habitus; Campo científico, Trans-historicidade; Reflexividade crítica;

    Ciência da ciência.

  • RÉSUMÉ

    Cette thèse envisage investiguer dans quelle mesure le concept de transhistoricité de la

    connaissance scientifique selon Pierre Bordieu réverbère la présence de la philosophie

    de la science à l‘occasion de son dernier cours, intitulé Science de la Science et

    réflexivité, au Collège de France à l‘année universitaire 2000-2001. Bordieu synthétise

    dans ce dernier cours les fondements épistémologiques de la sociologie tout en les

    prenant comme objet d‘étude, faisant ainsi une Science de la Science. En évitant les

    prétentions totalisantes, Bordieu propose les concepts d‘habitus et de champ élaborant

    un système de concept fermé auquel lui permet l‘auto-réflexivité scientifique,

    spécifiquement laquelle appliquée à la sociologie. Ayant comme base la ligne théorique

    épistémologique française de tradition bachelardienne, Bordieu affirme que la

    connaissance scientifique est trans-historique, c‘est-à-dire, une construction social qui a

    achevé sa vérité trans-historique. La trans-historicité implique questionner les modes

    sur lequel on fait la Science et tel questionnement constitue le problème central et le

    point de départ de Pierre Bordieu lors de son investigation concernant la production de

    la connaissance scientifique. La vigilance épistémologique est la garantie de la

    scientificité de la sociologie et la certitude de la méthode adéquate aux spécificités de

    l‘objet ,dans ce cas, la production de la connaissance sociologique. La thèse qui est à la

    base du problème investigué par Bordieu lors de son dernier cours – De quel mode la

    science produit les connaissances trainshistoriques? – mets en évidence la présence d‘un

    penseur dont les analyses achèvent un ample éventail de thèmes. Pourtant, il est dans le

    jeu du champ scientifique, avec l‘habitus scientifique qu‘il devient possible parler de la

    trainshistoricité de la connaissance scientifique. Ce schéma conceptuel d‘analyse

    démontre la réflexivité toujours présente dans la pratique scientifique.

    Mots clés: Habitus; Champ scientifique; Transhistoricité; Réflexivité critique, Science

    de la science.

  • ABSTRACT

    This thesis aims to investigate to what extent the concept of transhistoricity of scientific

    knowledge, according to Pierre Bourdieu, reverberates the presence of the philosophy of

    science on the occasion of the last course taught by him, entitled Science de la science

    et reflexivité, at the Collège de France in the university year 2000-2001. Bourdieu

    synthesizes, in this last course, the epistemological foundations of sociology and takes

    them as object of study, thus making a science of science. Avoiding the totalizing

    pretensions, Bourdieu proposes the concepts of habitus and field, elaborating a closed

    system of concepts that allows him the scientific self-reflexivity, specifically applied to

    the sociology. Assuming the French theoretical epistemological line of Bachelardian

    tradition, Bourdieu affirms that the scientific knowledge is transhistorical, that is to say,

    a social construct that has managed to make its transhistorical truth. Transhistoricity

    implies questioning the ways in which science is made, and this questioning is the

    central problem that P. Bourdieu's critical reflexivity takes as his starting point for his

    investigation of the production of scientific knowledge. Epistemological vigilance is the

    guarantee of the scientificity of sociology; it is certainty of the method appropriate to

    the specificities of the object, in this case the production of sociological knowledge. The

    thesis that underlies the problem investigated by Bourdieu in his last course - in what

    way does science produce transhistoric knowledge? – is evidence of the presence of a

    thinker, whose analyses reaches a wide spectrum of themes, however, it is in the game

    of the scientific field with the scientific habitus that is, if and only if, it is possible to

    speak of transhistoricity of scientific knowledge. This scheme Concept of analysis

    demonstrates the always present reflexivity in scientific practice.

    Keywords: Habitus; Scientific field, Transhistoricity; Critical reflexivity; Science of

    science.

  • 8

    Sumário

    1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9

    2 CENÁRIO BIOGRÁFICO E TEÓRICO ............................................................... 22 2.1 INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE TRANS-HISTORICIDADE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

    ........................................................................................................................................ 35

    3 AFINIDADES FILOSÓFICAS: GASTON BACHELARD, GEORGES

    CANGUILHEM E JULIES VIULLEMIN ................................................................ 40 3.1 SITUAÇÃO DAS DISCUSSÕES NO CAMPO CIENTÍFICO: POSIÇÕES ONTOLÓGICAS,

    REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO ................................................................................. 46 3.2 GASTON BACHELARD, GEORGES CANGUILHEM E MICHEL FOUCAULT: APROPRIAÇÕES

    FILOSÓFICAS .................................................................................................................... 53 3.3 JULES VUILLEMIN: UM FILÓSOFO DA FILOSOFIA ......................................................... 67

    3.4 ASPECTOS FILOSÓFICOS E EPISTEMOLÓGICOS DO TEOREMA DE GÖDEL SEGUNDO

    DUMMETT ........................................................................................................................ 74 3.5 UMA ANALOGIA WITTGENSTEINIANA DO CONCEITO DE CAMPOS DE P. BOURDIEU ..... 94 3.6 UMA FILOSOFIA MODESTA: SEGUIR A REGRA E O PONTO DE VISTA ―ESCOLÁSTICO‖ ... 99

    4 A TRANS-HISTORICIDADE COMO REFLEXIVIDADE CRÍTICO-

    FILOSÓFICA ............................................................................................................. 107 4.1 TRANS-HISTORICIDADE E O CAMPO CIENTÍFICO ....................................................... 109

    4.2 HABITUS CIENTÍFICO: MEDITAÇÕES PASCALIANAS E REFLEXIVIDADE ...................... 114 4.3 A TRANS-HISTORICIDADE E O HABITUS CIENTÍFICO SOCIOTRANSCENDENTAL ........... 119

    4.4 A TRANS-HISTORICIDADE E OS LIMITES TEÓRICOS DA CIÊNCIA: A QUESTÃO DA LÓGICA

    MATEMÁTICA ................................................................................................................. 129

    5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 139

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 147

  • 9

    1 INTRODUÇÃO

    Apresentar brevemente Pierre Bourdieu é, no mínimo, desafiador, pois ele é

    uma personalidade muito conhecida, Por isso, corre-se o risco de parecer que se repete o

    que todos já sabem sobre ele. Bourdieu é conhecido por ser um grande sociólogo cujas

    obras se circunscrevem por diversas e distintas áreas do conhecimento, com reflexões,

    apontamentos, explicações e críticas. No meio acadêmico filosófico brasileiro, não é

    muito comum estudar Bourdieu. Por isso, a importância de deixar demarcado que o

    escopo desta tese converge às reflexões elaboradas por Bourdieu acerca do

    conhecimento científico, bem como a prática das Ciências Sociais e a questão da

    neutralidade científica. Para tal jornada de investigação, toma-se como obra central

    norteadora de toda a investigação seu último curso ministrado no Collège de France, no

    ano universitário de 2000-2001, intitulado Science de la science et reflexivité.

    Com efeito, esta primeira delimitação possibilita circunscrever o objeto de

    estudo, construindo assim um campo no qual se investigam as questões concernentes

    aos aspectos científico, histórico, filosófico, epistemológico e sociológico da produção

    do conhecimento científico em geral, e nas Ciências Sociais, em específico. É essa a

    direção que o jovem Bourdieu, em 1964, começa a esboçar nos seus primeiros

    trabalhos, juntamente com seu amigo da École Normale Superieur, Jean-Claude

    Passeron, o que se compreende por "vigilância epistemológica"1. Esse conceito está

    diretamente ligado à prática científica do sociólogo, e seu alcance é de longo espectro.

    Os principais argumentos que delimitam a perspectiva socioepistemológica da

    investigação, no campo científico, evocam o caminho teórico construído por Pierre

    Bourdieu na relação entre ciência, história e epistemologia, mediada por reflexões

    filosóficas.

    Inicialmente, para fins de introdução geral, define-se que, nesta tese, busca-se

    refletir sobre o percurso intelectual que Bourdieu construiu, numa trajetória dinâmica,

    em que ele perpassa de um papel para outro continuamente, num processo dialético

    1 Entende-se por vigilância epistemológica "[...] o cuidado permanente com as condições e os limites da

    validade de técnicas e conceitos" (BOURDIEU et al., 1990, p. 14). Como a ambição direcionada pode

    dar conta cientificamente dos mecanismos sociais que orientam a prática científica. BOURDIEU, Pierre

    & PASSERON Jean-Claude Les étudiants et leurs études. La Haye: Mouton, 1964, 149 p.

  • 10

    constante entre a reflexão filosófica, a produção científica e a construção histórica. Essa

    reflexão se desenvolve à luz dos elementos que emergem da biografia intelectual de

    Bourdieu, propondo que existe uma evolução como um espiral em torno desses papéis

    (filósofo, cientista e historiador), numa dialética, pois são muitos temas, objetos e

    relações diferentes, e todos são concomitantes. E é no conceito de trans-historicidade

    que se encontram os elos que permitiram a Bourdieu elaborar uma meta ciência, ou seja,

    uma ciência da ciência.

    Alguns elementos biográficos, teóricos e materiais da vivência acadêmica de

    Bourdieu são comentados e expandidos ao longo deste texto:

    1. A agregação em Filosofia pela École Normale Superieur - ENS e o serviço

    militar, seguido de vivência acadêmica, na Argélia, proporcionaram a Bourdieu

    condições heurísticas para emancipar a Sociologia da Filosofia, com o auxílio das

    reflexões sobre sua prática e seus estudos sobre Etnologia e Antropologia. A transição

    da filosofia à etnologia possibilitou-lhe reaprender a ver o mundo acadêmico, para então

    criticá-lo. Em um de seus primeiros trabalhos Bourdieu chama aborda uma postura

    sempre vigilante do cientista, e cunha o conceito de vigilância epistemológica, para

    chamar a atenção para um problema que ele não tem a pretensão de dar por encerrado,

    mas que aponta como uma necessidade para se praticar uma ciência rigorosa.

    2. O ponto de partida epistemológico implícito da Revista Actes de La

    Recherche tem origem na filosofia de G. Bachelard e G. Canguilhem, com a intenção de

    ser uma revista científica. Bourdieu escreve o primeiro artigo da revista (publicada em

    janeiro de 1975), intitulado "Método científico e hierarquia social dos objetos", fazendo

    referência à obra de Gaston Bachelard intitulada "Materialismo Racional".

    3. A matriz da inteligibilidade racional pela qual Bourdieu constrói seu método

    reflexivo, na Sociologia, é constituída pela relação dos conceitos de campos e habitus.

    Conceitos esses que têm origens as mais diversas, como física e filosofia,

    respectivamente. Bourdieu define-os implicando a existência apenas de um em relação

    ao outro, ou seja, eles não existem ontologicamente separados. É por meio da matriz

    racional desses conceitos que se pode analisar sociologicamente um fato social. Os fatos

    sociais não surgem prontos, na realidade, mas são construídos a partir de uma ruptura e

    de uma vigilância epistemológica.

  • 11

    4. A trans-historicidade é um conceito criado a partir da reflexividade

    científica, cujo objetivo é resguardar os aspectos epistemológicos de uma criação

    científica das condições sociais da sua produção. No último curso ministrado por

    Bourdieu no Collège de France, no ano universitário 2000-2001, intitulado "Ciência da

    Ciência e Reflexividade", esse conceito é definido por ele a partir de um garimpado das

    correntes filosóficas e sociológicas da ciência, que acentuam as forças no campo

    científico. No conceito de trans-historicidade encontram-se os elos da busca de

    Bourdieu, uma vez que ele transita entre várias áreas do conhecimento, desde as teorias

    lógico-matemáticas, até temas da ciência social e política. Os diversos temas estudados

    nesta tese, e que num primeiro momento parecem soltos e desconexos, são elementos

    que permitem perceber que Bourdieu busca compreender o processo histórico da ciência

    com rigor e exigência, no método, para entender o que é essa forma de conhecer que se

    denomina 'científica' e compreender o campo científico. É possível dizer que esse é o

    projeto de Bourdieu, o de compreensão da ciência. Portanto, o conceito de trans-

    historicidade conduz a uma busca, a de compreender a instituição ciência.

    Como uma nota prévia para auxiliar o leitor a compreender a busca de

    Bourdieu e costurar brevemente as relações que ele estabelece, apresentam-se a seguir

    algumas reflexões iniciais, sem a pretensão de serem resolvidas neste momento inicial

    do texto.

    Bourdieu trabalha a ciência como uma instituição, muito embora não use essa

    palavra. Considerando-a como uma instituição, ele questiona: O que ela é? É uma

    instituição específica? Ela define um campo intelectual para aquele que pensa sobre ela?

    E ao pensá-la, ele define dois conceitos materiais: o campo e o habitus.

    Todavia, são três os conceitos centrais que levam ao entendimento do caminho

    que Bourdieu escolheu para trilhar, na sua busca por compreender a ciência. São eles:

    campos, habitus e trans-historicidade. A questão do habitus e do campos são

    absolutamente palpáveis, ao se usar a questão da observação ou não observação. Eles

    permitem o trabalho e vinculação entre o pensamento e o mundo, ainda sob uma ótica

    empírica. No entanto, o conceito de trans-historicidade tem uma referência material

    clara: é uma interpretação sobre uma permanência transformada de ideias.

  • 12

    De fato, o próprio Bourdieu se diz cientista, por que intitula o curso 'a ciência da

    ciência', e isso significa que ele objetiva dizer que o que está fazendo é uma forma

    científica de tratar a instituição denominada ciência.

    Sobre o conceito de campo, sabe-se que não foi Bourdieu quem o inventou, pois

    seu uso ainda está presente na física, e começou a ser utilizado na teoria da Gestalt2.

    Pode-se dizer o mesmo do conceito de habitus, que desde a Grécia antiga já estava

    presente nas reflexões filosóficas sobre o conceito de héxis3, em Aristóteles.

    Bourdieu vê na ciência o fenômeno social, da relação entre o habitus e o campo,

    um fenômeno sociológico. No momento em que introduz a questão da trans-

    historicidade, está justamente buscando juntar o necessário e o contingente. Está

    convencido de que ela é uma instituição, entretanto ela perpassa, acumula, transforma-

    se, enfim, tem uma genética. Uma genética no sentido de afirmar que a ciência é

    dinâmica, vai crescendo e se transformado, e pode-se interpretar como ruptura, como

    fez Thomas Kuhn, por exemplo. Pode-se interpretar como Karl Popper, com o conceito

    de falsificacionismo. Enfim, é possível ter todas as posições, como as de Imre Lakatos,

    Paul Feyerabend, mas todos eles não são suficientes para resolver o problema do

    método e de como a ciência avança. Vale ressaltar que Bourdieu não tem a pretensão de

    resolver o problema do avanço da ciência, mas aponta que essas discussões não devem

    ser esquecidas e que são importantes, cada uma na sua medida, para a compreensão da

    ciência hoje. É por isso que usa o método científico e tenta relacionar a materialidade

    que seria quase uma derivação conceitual do empírico (com os conceitos de campo e

    habitus), e de outro lado ele constrói um conceito teórico (trans-historicidade).

    2 Ver Lewin, K. Teoria de campo em ciência social. (Carolina M. Bori, trad.) In Cartwright, D. (Org.) São

    Paulo: Pioneira, 1951. 3 Na Ética a Nicômanos Aristóteles trabalha com este conceito que está ligado, ao mesmo tempo, com o

    uso das faculdades intelectuais e morais (ARISTÓTELES, 2001, p. 35). Afinal, ser moralmente virtuoso

    requer a posse da prática virtuosa. Ter disposição para agir com prudência, justiça, coragem, etc.

    Na moral, a educação dos bons valores se dá na prática. Produto de um hábito que deve reger não só as

    ações, mas também os sentimentos quanto a esta. ―O prazer ou o sofrimento de nossas ações é um indício

    de nossas disposições morais‖ (ARISTÓTELES, 2001, p. 37). ARISTÓTELES, Ética a Nicômanos. Trad.

    Mário G. Cury. Brasília: Ed. UNB, 2001

    A virtude, para Aristóteles, adquire-se com a repetição de uma série de atos sucessivos, ou seja, com o

    hábito. Assim, as virtudes tornam-se como que ―hábitos‖, ―estados‖ ou ―modo de ser‖ que nós mesmos

    construímos segundo o modo indicado (REALE, 2003, p. 219). REALE, Giovanni. História da Filosofia

    Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2003.

  • 13

    Bourdieu elaborara uma definição rigorosa e, ao mesmo tempo, abrangente, para

    as palavras campo e habitus. Portanto, é essa definição que permite atribuir a esses

    termos o estatuto de conceito científico e, nesse sentido, desenvolve um novo recorte,

    procurando adequar o rigor do método às atribuições passadas usadas por esses léxicos,

    seja na ciência, seja na filosofia, seja na história. E é nesse sentido que ele fala em

    'vigilância epistemológica'. De acordo com esse rigor, faz uma definição no sentido

    rigoroso, o que dificulta o entendimento, pelos leigos, da teoria do método científico.

    Com a palavra campos representam-se muitas coisas, dinâmicas ou duráveis. E

    com habitus é a mesma coisa, uma vez que nele é possível perceber que há uma carga

    da evolução da própria trans-historicidade, pois ele não parte do zero. Já no campo,

    pode pensar que Bourdieu parte quase do zero, aplicando essa ideia à questão da ciência

    e, ainda por definir, o campo científico como campo de poder. Vê-se, aqui, que o campo

    científico é um campo de luta, é um campo de poder, e Bourdieu atribui esse poder no

    nível do símbolo, portanto trabalha na confluência entre a psicologia social, a sociologia

    e a antropologia, com esse conceito de habitus. E com a ciência política também, pois a

    questão de discutir se a ciência é neutra ou não é uma discussão externa que foi

    introduzida no debate interno da ciência, por causa dos usos e dos abusos que se fez da

    produção científica, principalmente a partir da segunda guerra mundial.

    A presença de Bourdieu nesse debate é importante porque, concomitantemente

    com a produção dessas idéias estavam ocorrendo o sequestro do conhecimento e o

    sequestro da ciência por um sistema de poder civilizatório4, que é o que se tem hoje,

    mas isso, ou não estava claro e evidente, ou havia medo de se falar sobre o assunto.

    Bourdieu estava, portanto, buscando compreender esse jogo de poder instalado

    no campo científico e, nesse caminho, ele denomina de 'competência' esse poder, seja

    ele civilizatório, científico ou econômico. Ao encontrar esse elemento no caminho que

    chamou de 'capital de competência', ele conversa com a busca de Michel Foucault.

    Aparentemente, compreender a ciência não era a busca de Foucault, mas, por analogia,

    pode-se dizer que, no fundo, na Microfísica do poder, ele também estava deparando

    4 Dominique Pestre é professor na EHESS e estuda atualmente como se deu o sequestro da ciência por

    um sistema de poder civilizatório. Ver "A nova história das ciências: entrevista com Dominique Pestre"

    http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v23n3/0104-5970-hcsm-23-3-0899.pdf

    http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v23n3/0104-5970-hcsm-23-3-0899.pdf

  • 14

    certo tipo de trans-historicidade, não no nível conceitual, mas no nível da "ação sobre

    ações", o que ele denomina de poder.

    Como se dá essa relação entre o poder e a ciência? Como elas se misturam? Não

    só o rigor metodológico, mas também a atualidade dos debates, no campo da lógica

    matemática, não era pertinente para Bourdieu pensar a ciência. Era preciso ir além das

    fronteiras tradicionais das discussões da filosofia e sociologia da ciência. E é nessa

    busca de compreender e aperfeiçoar o que já está posto em discussão que a trans-

    historicidade permite identificar, ao longo de todos os grandes momentos de revolução,

    que sempre é um salto que vai dar uma síntese nova em relação ao que vinha ocorrendo,

    inúmeros pressupostos que são ideologias científicas, ideologias de vários níveis.

    Portanto, é nos momentos de síntese que se pode identificar o que permanece válido

    como pressuposto científico (conceito, teorias, verdades, etc.) e o que caduca.

    Nesse ponto, cabe afirmar que Bourdieu é um cientista, e esse rigor dele com

    relação ao método era a demonstração disso, pois a separação entre a filosofia e a

    ciência é tênue. Considerando todo momento em que há uma ruptura numa ordem

    hegemônica do pensamento, e considerando o campo e o poder, não se pode deixar de

    perceber que é nesse campo que se gera o instrumental de domínio físico.

    Todo momento de crise traz à tona essas dúvidas, pois, do ponto de vista da

    lógica, quando se rompe uma ordem hegemônica, ela tem contida consigo as semânticas

    sobre as quais se fala. Então, quando se rompe a ordem estabelecida, não há uma

    certeza, e passa-se a buscar novas explicações que de novo restituam a verdade. E essa

    busca quem a faz é o cientista; entretanto, quem a aponta é o filósofo Bourdieu, na

    mesma pessoa, aponta e busca um novo sistema conceitual, o que faz dele, dessa forma,

    um filósofo e um cientista.

    Existe uma estrutura na formulação da teoria da ciência de Bourdieu, não no

    sentido de uma epistemologia, mas no sentido de uma referência de leitura, pois a

    epistemologia deve dizer se uma teoria ou um conceito é válido ou não, e não é a

    questão da validade que o está preocupando. O que está preocupando Bourdieu é querer

    fazer emergir aquilo que ele observa e sobre o que ele reflete. Ele busca, portanto, uma

    forma descritiva conceitualmente consistente do que quer dizer, e o que quer dizer é que

    a ciência é um campo de poder. Porém, outras questões também o incomodam, como a

  • 15

    de compreender como o conhecimento científico é transmitido. Então, não estava

    buscando compreender apenas o poder, mas também a reprodução do poder no

    conhecimento científico, no conceito, no capital de competência, na reprodução do

    poder que um conceito vai impor em relação a outro.

    Outro filósofo com o qual Bourdieu dialoga é Ludwig Wittgenstein, que trabalha

    o problema da linguagem. Wittgenstein discute a respeito do determinismo, e nessa

    discussão o filósofo vienense fala da identidade, de saber como um conceito emerge. No

    Tratactus, Wittgenstein afirma que "[...] os fundamentos da verdade de um estão

    contidos nos outros; p se segue de q" (WITTGENSTEIN, 1961, §5.121). Ou seja, o

    conceito emerge quando está contido em outro e não se sabe. No momento em que se

    desprega do conceito, como ideia, automaticamente o ser correspondente aparece. O ser

    pode ser o ser de um pensamento, mas pode ser também um ser da materialidade. Então,

    a questão que emerge é justamente de saber se são os idênticos indiscerníveis ou se os

    indiscerníveis são idênticos, quer dizer, enquanto não se distinguem os conceitos, eles

    permanecem na identidade.

    A relação com Wittgenstein é justamente porque Bourdieu pensa na

    matemática, que é a linguagem essencial do método rigoroso e vitorioso na ciência

    como domínio histórico. Galileu Galilei, no seu livro "Diálogo sobre os Dois Principais

    Sistemas do Mundo", publicado em 1632, em Florença, afirmou que a ciência se abre,

    no livro da natureza, mas a sua linguagem é matemática. Portanto, para fazer ciência da

    ciência é preciso olhar para as questões da matemática também, bem como tem sentido

    olhar para Wittgenstein, pois ele está buscando construir uma teoria da ciência e o que é

    conhecimento científico. Compreender o que é o conhecimento científico orienta

    Bourdieu a identificar as aparências que mudam, o que lhe possibilita desenvolver

    ideias sintéticas e necessárias. O conhecimento necessário parte da descrição, prossegue

    na explicação, que é a causal, e depois finaliza na interpretação, que é a teoria. Seguindo

    esse raciocínio, percebe-se que Bourdieu busca construir uma teoria, e os conceitos que

    ele desenvolve estão no campo do social, portanto muitos dizem que se trata de

    sociologia. Entretanto, é no mínimo imprudente intitulá-lo de sociólogo, apenas porque

    o habitus, por exemplo, não é um conceito da sociologia, é um conceito empírico

    desenvolvido pela filosofia e usado na psicologia social, com as questões da

    representação social.

  • 16

    Bourdieu trabalha, portanto, no campo da interdisciplinaridade, não no sentido

    de colocar objetos de várias áreas do conhecimento um ao lado do outro, mas no sentido

    de construir um objeto novo. Por isso, o campo no qual atua não é estrito da sociologia;

    é um campo que perpassa vários domínios. Nenhum deles estava resolvido, mas o que

    ele busca é um novo objeto, e esse objeto, é possível afirmar, é uma teoria da ciência.

    Bourdieu tem o rigor do método científico, mas não está buscando saber como a

    ciência cresce, nem como o conhecimento cresce, nem o que serve e o que não serve.

    Ele busca saber como a ciência funciona e por que se reproduz. Nessa dinâmica de

    reprodução, saber o que permanece, e para enfrentar essa permanência ele desenvolve a

    ideia da trans-historicidade como aquilo que é identificável como permanente e

    necessário na ciência. A trans-historicidade seria a contribuição teórica de seu estudo

    como cientista. Ele não faz uma epistemologia no sentido de afirmar o que faz aumentar

    o conhecimento científico. O que mostra é que, nesse campo, existem as lutas pela

    reprodução, a reprodução da hierarquização do poder por manutenção de privilégios

    cuja origem ele não estuda (quem faz esse estudo é Foucault); ele apenas mostra que ela

    se reproduz.

    A busca de Bourdieu é justamente compreender esse paradoxo aparente entre um

    campo tão contingente, porém não contingente pela reprodução da força que ele chama

    de capital de competência. Ele considera que o capital de competência é uma função de

    variáveis e que, no fundo, traduz-se pela palavra poder, segundo a ideia do saber de

    Foucault. No entanto, ao mesmo tempo, é uma coisa permanente, é o embrião da

    expansão civilizatória greco-romana, porque é no interior desse conhecimento dito

    científico que se desenvolve o poder extrínseco da ciência. Para compreender esse

    paradoxo, ele precisa trazer elementos da chamada crise da matemática. Essa crise não

    começou agora, pois desde Zenão muitos argumentos não eram passíveis de

    demonstração. O que ele tentava explicar foi demonstrado como teorema da análise

    apenas no século XIX, e considere-se que Zenão viveu duzentos anos antes de

    Aristóteles e Euclides.

    Assim, como um esboço inicial para compreender a busca de Bourdieu, pode-se

    afirmar que o que ele faz é uma arqueologia da escritura do processo de seu

    pensamento, em que ele mesmo viu algo que não era compreendido, mas que tinha que

  • 17

    ser compreendido e que, portanto, impulsionou-o a juntar o contingente e o necessário.

    Contingente e necessário, na ideia do quê, no campo científico? Da reprodução. Da

    reprodução do quê? Do capital de competência, que é um capital conceitual.

    Não é trivial entender como o processo histórico da ciência se deu, visto que é

    um processo altamente intelectual, detentor de inter-relações pessoais, um processo de

    lutas entre pressupostos, ideologias e privilégios. No entanto, apenas a palavra

    privilégio não explica a heurística do conhecimento.

    Inicialmente, é possível conjeturar que Bourdieu, por ser agregado em filosofia

    na École, conhecia profundamente o método científico, era consciente do jogo e das

    lutas inerentes ao campo científico, e isso fazia dele um sujeito mordido pela questão

    política, que ele conhecia.

    No primeiro capítulo desta tese, apresenta-se uma biografia de Bourdieu, mas

    adianta-se aqui que ele nasceu e cresceu no campo, no sul da França. Entretanto, chegou

    a Paris ainda jovem, para estudar no colégio parisiense mais renomado, o liceu Luis le

    Grand. Portanto, conhecia outra realidade, sabia como eram os caminhos e, assim,

    encontra o tema no espaço onde cresce como pensador, mas o tema não poderia ser

    resolvido numa penada.

    A reflexividade levou Bourdieu a buscar esse novo objeto, pois não há cientista

    verdadeiro que não esteja fora do sujeito, visto que o problema é uma prerrogativa do

    sujeito do pensamento. Se o sujeito está dentro do problema, ele não está fazendo

    ciência; para fazer ciência, precisa ser um meta sujeito do problema, para então ir

    buscar. Se não fica clara a separação entre o sujeito e o objeto, a reflexividade tem a

    função de mostrar essa separação. A reflexividade aplicada ao método científico vai

    auxiliar a reintroduzir essa separação na ciência, portanto Bourdieu vê o objeto separado

    do sujeito, uma vez que se mune dessa reflexividade.

    Saliente-se que essa questão da clareza metodológica, da separação clara e

    distinta entre sujeito e objeto do conhecimento, não foi resolvida por Bourdieu, mas sua

    estilística teórica faz dele um pensador que se encontra sempre nesses desequilíbrios.

    Um cientista, um pensador verdadeiramente da produção das ideias busca desenvolver o

    tempo todo um problema instalado, e depois de uma solução sempre surge um novo

  • 18

    problema. Percebe que essa solução não estava completa, e assim é a dinâmica da

    ciência. Nesse sentido, o teorema de Gödel vem destacar que, ou se considera uma

    teoria inconsistente, tendo que ser descartada, ou se considera que uma teoria é

    incompleta e precisa ser aperfeiçoada.

    Esse é o caminho da grande revolução, no fim do século XIX. Essas questões da

    lógica matemática perpassam, mas não são resolvidas por completo. E mais, ela vai

    trazer a discussão sobre o que é demonstrar, pois o que antes era demonstrado era o que

    se afirmava por necessidade lógica. Afirmar por necessidade lógica era certo e preciso,

    portanto era verdade, verdade da afirmação do argumento. Atribui-se verdade a

    afirmações e, se elas estão dentro do argumento corretamente colocado, a conclusão

    pode ser verdadeira ou pode ser falsa, isso desde Aristóteles.

    No século XIX acontece uma grande revolução da compreensão do método. O

    método demonstrativo, desde Aristóteles, que era a essência metodológica das ciências

    humanas e sociais, vai ser objeto de uma profunda crítica por Hilbert. Essa crítica será

    outro tema tangenciado neste trabalho, devido a sua relevância e importância na

    compreensão do novo objeto que Bourdieu busca compreender. Apenas na intenção de

    tornar claro ao leitor a relação entre a passagem que tratará dessa crítica feita por

    Hilbert e a tese colocada é que se contextualizou brevemente essa crítica.

    Hilbert desenvolve duas grandes disciplinas lógico-matemáticas, a axiomática

    e a teoria da demonstração. Com a teoria da demonstração, afirma quais são as

    condições para que se demonstre. Por exemplo, o teorema de Pitágoras, um teorema que

    é muito usado desde o século V a.C., foi demonstrado apenas no século XX. Esse fato é

    uma incógnita, pois, como se relacionam os fatos comprovados e não demonstráveis, e

    afinal, o que é a demonstração? Quando se demonstra, têm-se condições de dizer ―esse é

    um conhecimento necessário‖, contudo a comprovação já se apresenta como uma

    necessidade, porque os fatos é que levam a aceitar ou não determinadas coisas, embora

    não sejam demonstradas.

    A análise matemática permitiu verificar as propriedades do pensamento junto

    com a expansão das geometrias, e começa-se a se despregar dessa intuição da geometria

    espacial vinculada a uma forma de mundo. O mundo não é mais o da intuição, da

    percepção, mas é o das ideias, que pode estar nas ideias sobre o mundo da percepção;

  • 19

    isso é o que a lógica matemática e Hilbert mostraram. Hilbert começa a pôr o rigor ao

    questionar o que é demonstrar. A análise é o que sai do pensamento ou do fato, ou é da

    relação entre o pensamento e o fato? Sobre o que essa estrutura está definida? Sobre

    qual campo? O campo do fenômeno? O campo da mente? Demonstrar é muito mais

    exigente do que simplesmente apresentar uma sequência argumentativa que se sustenta

    na necessidade até aquele momento. Portanto, é uma quase verdade sempre, na busca de

    um aperfeiçoamento sempre inacabado. A questão do Gödel também vai dizer que a

    quase verdade é uma quase verdade da solução do pensamento.

    A questão da observação também aparece. Hoje é difícil, na ciência, algum

    objeto diretamente observável. A Física faz hoje elaborações de elementos que podem

    chegar a alguma verdade fatual, portanto há manifestação de uma physis experimental,

    sobre ideias que estão construindo e que nunca vão ser vistas. Demonstra-se a existência

    de uma partícula que se sabe que jamais será observada, pois o tempo de sua duração

    (tempo porque se tem o físico) não é compatível com a percepção.

    Existe uma lógica por trás de todos os contatos e manifestações de Bourdieu

    com pensadores, inclusive esses aparentemente bastante distantes das ciências humanas.

    A crítica da geometria, da expansão da geometria, de Hilbert, no fundo mostra que

    Bourdieu está estudando a questão da necessidade e a questão da necessidade

    automaticamente entra com os problemas avançados da fronteira da lógica matemática e

    das suas implicações sobre que é o conhecimento. A trans-historicidade não explica o

    que é o conhecimento científico; ela apresenta, não é apenas um conceito, é a história

    materializada.

    A formalização também é um ponto tangenciado aqui neste trabalho.

    Formalização significa definir univocamente os conceitos. Não se pode ter conceitos

    egocêntricos como objeto interno da formalização, como os da sensibilidade. O objeto

    interno da formalização pode ser real, pode ser válido, mas para ser formalizado é

    preciso uma definição unívoca. Não pode haver divergências sobre o significado,

    portanto deve se estruturar em sistemas formais. A formalização é sempre uma condição

    que a lógica permite, mesmo que no sistema da física dinâmica o objeto interno da

    formalização seja trabalhado com fórmulas matemáticas e cálculos que falam sobre

    lógica. Ele é um corpo lógico, e isso tanto é verdade que esse objeto, uma vez

  • 20

    formalizado, não precisa mais do homem indutivo, pois no momento em que ele é

    formalizado obtém-se a dedução pura. A dedução pura é um arcabouço lógico, é um

    ente, um ente produto de um processo coletivo, trans-histórico, que tem uma condição

    de logicidade que permite a dedução sem a indução e fala sobre o mundo. Fala sobre um

    mundo com limites, um mundo sob tais condições de observação, portanto é uma quase

    verdade no sentido de qualquer mundo, mas é uma verdade no sentido daquele mundo.

    As leis de Kepler, de Galileu e de Newton tornaram a mecânica racional e se tornaram

    um instrumento dedutivo que não depende mais da indução. Não é preciso mais recorrer

    ao recurso da observação; é possível formular um problema sobre hipótese e resolvê-lo

    mecanicamente sem precisar da indução.

    Em suma, Bourdieu busca um caminho acima de tudo científico, que a vigilância

    epistemológica e o método mostram claramente; mas, sobretudo, ele é um pensador, um

    erudito, e pensa acerca de tudo o que existe, no limite entre ciência e não ciência, e

    aproveita o que já foi feito. Bourdieu mostra como se faz ciência verdadeiramente e faz

    isso entrando por esses núcleos de discussões científicos, filosóficos e epistemológicos.

    Porém, na construção da ciência da ciência, ele não perde de vista, mesmo nas

    discussões filosóficas mais internalistas da ciência, a referência da vida social. Na

    confluência entre as vicissitudes do campo social e da vida material e a formalização do

    conhecimento científico, ele busca compreender, na dinâmica da ciência, a

    permanência. E é na trans-historicidade que ele encontra, portanto, a permanência do

    processo. É a trans-historicidade que caracteriza ciência como conhecimento necessário,

    pois o conhecimento que permanece é exclusivamente matemático, que se impõe pela

    lógica. Resta saber qual é a dimensão preponderante em Bourdieu. A científica, a

    filosófica ou a epistemológica?

    Para fins de apresentação, este relato de pesquisa está dividido em três capítulos.

    O primeiro deles, intitulado CENÁRIO BIOGRÁFICO E TEÓRICO, versa sobre os

    dados biográficos levantados, construindo-se um contexto no qual se apresenta a

    condição que possibilitou a Bourdieu transitar entre a Filosofia e a Sociologia.

    O segundo capítulo, intitulado AFINIDADES FILOSÓFICAS: GASTON

    BACHELARD, GEORGES CANGUILHEM E JULIES VIULLEMIN, versa sobre as

    origens teórico-filosóficas de Bourdieu, bem como sobre seu sistema de conceitos em

  • 21

    análise social. Dedica-se um fôlego maior a esses três filósofos, devido ao grau de

    relevância de suas escolhas e formulações teóricas.

    A TRANSHISTORICIDADE COMO REFLEXIVIDADE CRÍTICO-

    FILOSÓFICA é o título do terceiro capítulo, no qual se responde à questão: é possível

    uma análise sociológica das ciências epistemologicamente orientada?

    E, por último, à guisa de conclusão, reflexões filosóficas e aproximações à

    dimensão que prepondera em Pierre Bourdieu.

  • 22

    2 CENÁRIO BIOGRÁFICO E TEÓRICO

    Pierre Bourdieu, nascido em 1º de agosto de 1930, em Denguin, comuna

    francesa no Departamento dos Pirineus - Atlânticos, sudoeste da França, estudou quase

    tudo nas Ciências Humanas. Formou-se em Filosofia, passando pela Antropologia, pela

    História, e pela Sociologia. Também versou sobre temas variados, como a escola, a

    televisão, a ciência, o artista, o camponês, etc.

    Ninguém melhor do que ele para indicar suas próprias motivações e escolhas.

    O que de mais próximo se encontra de uma autobiografia é a obra intitulada Esquisse de

    auto-análise, 2004 (Esboço de Auto-análise, 2005). Bourdieu deixa claro que não

    pretende se "sacrificar ao gênero autobiográfico" (BOURDIEU, 2005, p, 37), no

    Esboço, mas deseja adotar o ponto de vista do analista, uma reunião e revelação de

    "alguns elementos para uma auto-análise" (Idem). Bourdieu recusa-se a fazer uma

    autobiografia, porém se dispõe a se submeter, enquanto objeto de estudo, utilizando o

    método reflexivo crítico, fazendo uma análise sociológica das forças que estavam

    distribuídas, no campo em que ele mesmo estava inscrito.

    De caráter introdutório, ao contrário do Esboço, relatam-se alguns traços da

    infância de Bourdieu, em uma sequência cronológica de aspectos biográficos que, de

    certa maneira, marcaram suas escolhas acadêmicas. Sempre se destacou duplamente nos

    estudos secundários, que lhe rendiam condecorações, como no concurso de Filosofia, no

    Lycée Luis-le-Grand, em Paris, e, ao mesmo tempo, no seu estilo campesino que lhe

    rendia chateações. Bourdieu levava uma vida dupla, uma elevada consagração escolar e

    uma baixa extração social.

    Bourdieu estudou dos 11 anos aos 17 anos no internato, em Pau (1941 a 1947).

    Sem dúvida, essa vivência desempenhou papel determinante na "formação das

    disposições" (BOURDIEU, 2005, p. 115) que ele veio a alcançar no campo intelectual.

    A vida, no internato, segundo Bourdieu, ficava fadada à rotina e à repetição, e ele relata:

    "[...] aquele que conheceu o internato conheceu, aos 12 anos, quase tudo na vida".

    (BOURDIEU, 2005, p. 120). Pode parecer dramática uma afirmação dessa magnitude,

    mas, por outro lado, indica a vivência gélida e dura do internato que marcou para

    sempre o habitus de Bourdieu e suas inclinações sobre definir a ação pedagógica

    sempre como um processo de violência simbólica, explicitado em sua obra La

  • 23

    reprodution (1970-1975) – tradução "A reprodução (2001)". A escola é o espaço

    formador de habitus,

    [...] a escola propicia aos que se encontram direta ou indiretamente

    submetidos à sua influência, não tanto esquemas de pensamento particulares

    e particularizados, mas uma disposição geral geradora de esquemas

    particulares capazes de serem aplicados em campos diferentes do pensamento

    e da ação aos quais pode-se dar o nome de habitus cultivado (BOURDIEU,

    2001, p. 211).

    Para Bourdieu, não há ação pedagógica livre, e parece importante refletir sobre

    o conceito de ação pedagógica como um exercício de violência simbólica de

    internalização de arbítrios culturais.

    Assim, desde muito cedo, para Bourdieu, "o mundo intelectual pareceu ser

    habitado por conformismos profundos" os quais agiram sobre ele "como forças

    repulsivas"5 (BOURDIEU, 2005, p. 128). Desde jovem se inclinou a uma

    [...] visão realista (flaubertiana6) e combativa das relações sociais, a qual, já

    presente desde a educação de minha infância, [...] contrasta com a visão

    moralizante e neutralizada que acaba sendo encorajada, parece-me, pela

    experiência protegida da existência burguesa (BOURDIEU, 2005, p. 115).

    A experiência burguesa iniciou-se em Paris, quando chegou ao Lyceé Louis-le-

    Grand, em 1948, aos 18 anos. Para ele, o Lyceé de Paris era infinitamente mais liberal

    do que aquele que ele conhecera em Pau.

    Com um estilo próprio, desde jovem posicionou-se contra as tendências

    consolidadas, movidas por tensões e contradições. Em seus interesses manifestam-se

    5 Bourdieu explica essas suas forças repulsivas: "[...] inclinações de habitus diferentes do meu, mudavam

    ao ritmo das transformações que conduziram esse mundo inconstante dos encantamentos pela falsa

    revolução aos desencantamentos de uma verdadeira revolução conservadora, fizeram com que eu me

    achasse sempre em situação de contra-senso ou de contratendência aos modelos e modos dominantes no

    campo" (BOURDIEU, 2005, p.129). E Bourdieu desabafa que essa tensão nunca se revelou nele de

    maneira tão dramática como por ocasião da aula inaugural no Collège de France (BOURDIEU, 2005, p.

    131). 6 O realismo flaubertiano no sentido de um senso da realidade, de uma lucidez sobre o comportamento

    social e força no estilo em grandes romances. Gustave Flaubert é um escritor francês que tenta

    harmonizar arte e realidade, engajado no movimento estético de reação ao Romantismo. A análise

    literária feita por Bourdieu no prólogo da As regras da Artes ,de Flaubert, em "A Educação Sentimental",

    mostra a "[...] ameaça que a ciência faria pesar sobre a liberdade e singularidade da experiência literária"

    (BOURDIEU, 1996, p. 13). Flaubert instaura as condições de uma espécie de experimentação sociológica

    no campo artístico, segundo Bourdieu. ―A Educação sentimental se constrói na narrativa histórica de um

    grupo cujos elementos, [...] estão sujeitos ao conjunto de forças de atração ou de repulsão que exerce

    sobre eles. E as mais intensas dessas interações são relações sentimentais‖ (BOURDIEU, 1996, p. 28).

  • 24

    suas escolhas peculiares, refletindo nos tipos de objetos de estudo por ele abordados.

    Bourdieu empenhou-se

    [...] em deixar as contribuições teóricas mais importantes em notas de rodapé

    ou em engajar minhas preocupações mais abstratas em análises

    hiperempíricas de objetos socialmente secundários (BOURDIEU, 2005, p.

    126).

    Saindo de um vilarejo cujo símbolo era o atraso rural, passando pelo internato

    em Pau e pelo Lycée, em Paris, em 1951, aos 21 anos ingressou na École Normale

    Superieure, para cursar Filosofia. Durante os três anos de estudos, ele pôde conhecer a

    epistemologia histórica de Gaston Bachelard e conviver com Jules Viullemin e Georges

    Canguilhem, professores que lhe renderam convivência inspiradora.

    Sua formação filosófica inclina-se em direção à epistemologia francesa

    bachelardiana, chegando a escrever sob orientação de Canguilhem um texto acerca das

    "Estruturas temporais da vida afetiva" segundo B. Husserl e G. Liebniz. Por outro lado,

    ele é seduzido pela aceitabilidade do estruturalismo de Claude Levi-Strauss diante da

    Filosofia. Bourdieu tentou se despregar do que havia de irreal, até mesmo de ilusório,

    no que então se associava à Filosofia, na figura do intelectual total do existencialismo

    sartreano. Havia em Bourdieu uma recusa explícita às explicações totalizantes.

    Para compreender a trajetória universitária e profissional de Pierre Bourdieu e

    particularmente sua conversão da Filosofia para a Sociologia, é preciso, como ele

    próprio descreve no Esboço, começar por descrever a configuração do campo filosófico

    e sociológico em curso nos seus anos de formação. Nas palavras de Bourdieu,

    "compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez" (2005, p. 40).

    O estado do campo filosófico no momento em que Bourdieu ingressa na ENS,

    no início da década de 50, em Paris, "era dominado pela figura de Jean-Paul Sartre"

    (2005, p. 41). Para ingresso na ENS havia cursos preparatórios nos Liceus, chamados de

    khâgne, que, para Bourdieu, era o "espaço onde se produzia a ambição intelectual

    francesa, [...] em sua forma mais elevada, a filosófica" (Idem, p. 42). Alguém se tornava

    filósofo pelo fato de haver sido consagrado pelo grupo que lhes dava o estatuto mais

    prestigioso e que lhes garantia o "[...] impedimento ao rebaixamento ao se ligarem às

    certas disciplinas ou objetos; em especial objetos com que lidam os especialistas das

    ciências sociais" (Ibidem).

  • 25

    Existia uma tradição, na École: todos os recém-agregados eram convidados por

    seus professores a ministrar aulas nos colégios onde iniciavam. Logo após a agregação,

    Canguilhem propôs-lhe um cargo no Liceu de Toulouse, mas Bourdieu recusou.

    Preferiu o Liceu de Moulins (1954-55), uma vez que se aproximava de Jules Viullemin,

    ao investigar a "Estrutura da experiência temporal segundo Husserl" (BOURDIEU,

    2005, p. 71). Tal recusa foi responsável por romper as relações com Canguilhem até

    1968, entretanto o ensinamento do médico lavrador sempre se fez presente.

    No Lycée de Moulin, Bourdieu deixou seu ensinamento, como testemunha um

    seu antigo aluno, Jaques Lefevre, no jornal Le Monde. em 31 de janeiro de 2002:

    Em, 1954 P. Bourdieu chegou à Moulin, recém agregado na ENS e sobretudo

    cheio de entusiasmo. Ele tinha 24 anos. Com ele os cursos de Filosofia não

    acabavam. Quantas vezes nós continuávamos a lição até depois das 12h, com

    sanduíches em mãos [...]. Seu ensinamento era muito ortodoxo: havia um

    interesse particular por Platão. Ele nos falava também de Sartre, mas sem

    idolatria. Os resultados do bac da classe de filosofia foram a altura dessa

    comunhão com um jovem professor cheio de carisma. [...] 35 anos depois eu

    o revejo. Ele se lembra ainda do nome de seus primeiros alunos (LEFEVRE,

    Le Monde, 2002)7.

    Após ministrar aulas de Filosofia no Lycée de Moulin, Bourdieu foi chamado

    para o serviço militar, na Argélia, servindo durante os três primeiros anos, de 1955 a

    1958. A estada de Bourdieu na Argélia estendeu-se além do serviço militar e permeou a

    academia, mudando assim os rumos de seus trabalhos. Entre 1958 e 1960, foi professor

    assistente na Faculdade de Letras da Argélia e publicou Sociologie de l'Algérie (1958).

    A Argélia proporcionou-lhe um terreno privilegiado de estudos antropológicos, e os

    campesinos cabilos lhe permitiram lançar a base de sua teoria sociológica.

    Escrevendo suas primeiras obras, Sociologia da Argélia (1958), Argélia ano 60

    (1977), Le Déracinement [O desenraizamento] (1964), Trabalho e trabalhadores na

    Argélia (1963), Bourdieu rompe com sua primeira identificação intelectual, e a questão

    que se coloca é: existe uma ruptura que se consome no fio de suas outras obras, ou

    habita um filósofo na Sociologia?

    7 Tradução livre do autor.

  • 26

    No momento de uma conversa pública, em Oxford, Jacques Bouveresse, amigo

    e colega do Collège de France, afirma que "[...] podemos suspeitar de ele estar se

    comportando um pouco como um desertor e de ter finalmente traído a causa da filosofia

    para virar sociólogo" (BOUVERESSE, 2003, p. 47).

    Com efeito, aos olhos da recepção de Bourdieu, no mundo acadêmico

    parisiense o pensamento do normaliano não cessa de engendrar interlocutores, como G.

    Bachelard, G. Canguilhem, M. Foucault, J-P Sartre, L. Wittgenstein, J. Vuillemin, entre

    outros. Seus comentadores (BRAZ, 2013; CHAMPAGNE, Patrick et CHRISTIN, 2004;

    CHARLE, 2003; CORNATON, 2010), falam mesmo da "Filosofia de P. Bourdieu", que

    eles designam como um "sociólogo-filósofo".

    Bourdieu confessa, em sua obra Choses dites, 1987 (Coisas ditas, 2004), que

    Os filósofos estão muito mais presentes em meu trabalho do que sou capaz de

    dizer, muitas vezes por medo de parecer que estou pagando tributo ao ritual

    filosófico da declaração de fidelidade genealógica. Além disso, eles não estão

    presentes no meu trabalho sob as formas normais. A pesquisa sociológica tal

    como a concebo é também um bom terreno para fazer o que Austin8 chamava

    de fieldwork in philosophy (BORDIEU, 2004, p. 42).

    Suas primeiras eleições filosóficas junto aos filósofos racionalistas, fortemente

    presentes na epistemologia francesa (a partir dos quais ele chama de "vigilância

    epistemológica", servida pelo respeito à empiria), inspiram-no a tomar suas pesquisas

    sobre os mercados argelinos. Paralelamente às pesquisas sobre os cabilas, ele também

    continua escrevendo a tese sobre a temporalidade em Husserl, sob orientação do

    epistemólogo Canguilhem, um provinciano do sudoeste da França, como ele.

    O fato de a Etnologia9 ter prestígio junto aos filósofos, graças às obras de Levi-

    Strauss, que condensava tão bem a metáfora do "olhar distanciado", ou seja, manter o

    8 Bourdieu indica uma afinidade com a filosofia da linguagem de L. Wittgenstein, por intermédio de John

    Austin, seguidor de Wittgenstein. Mais adiante essa afinidade será discutida e explicitada. 9Ver especialmente Lévi-Strauss Place de l'anthropologie dans les sciences sociales et problèmes posés

    par son enseignement, 1958 [Lugar da antropologia nas ciências sociais e problemas colocados por seu

    ensino, 1975]. A respeito da famosa tripartição estabelecida por Claude Lévi-Strauss (1958), há três

    níveis de análises: 1º nível é o da etnografia, que deve contentar-se com descrições monográficas,

    coletando "fatos" e se recusando a interpretá-los. O 2º nível é o da etnologia, que realiza uma síntese num

    primeiro nível (regional, ou respeitante a alguma técnica). E o 3º nível é o da antropologia, ciência

    comparativa, entendida como uma segunda síntese e última etapa da síntese, tomada por base as

    conclusões da etnografia e da etnologia (1975, cap. XVII).

  • 27

    mundo a distância para depois submetê-lo à estetização (BOURDIEU, 2005, p. 72), de

    certa maneira facilitou sua transição da Filosofia para a Sociologia. Possibilitar ao

    cientista a distância das vicissitudes do universo social fez da Etnologia uma condição

    de possibilidade para Bourdieu realizar seu projeto racional de análise científica a partir

    da relação entre os conceitos de habitus e campos.

    O desejo do conhecimento científico, portanto, o respeito a uma racionalidade

    apoiada na consideração dos fatos e acompanhada de alguma ambição social, conduz

    Bourdieu a permanecer na Filosofia. E esse é, sem dúvida, o mesmo interesse para o

    conhecimento, segundo a aceitação que ele denota como investimento no jogo do

    campo em que se está, pois a cultura não é uma atividade desinteressada. Notadamente,

    ela engendra um "capital simbólico" e "estratégias" para o adquirir e o conservar.

    Bourdieu coloca seu saber a serviço da simpatia que ele sente pela Argélia e

    seus habitantes. No entanto, ele não planeja renunciar à Filosofia.

    O abandono das alturas da Filosofia para a miséria das favelas era também

    um tipo de especiação sacrificial dos meus irrealismos adolescentes; o

    retorno laborioso para uma língua despojada de tics e de trucs, da retórica

    escolar marcou também a purificação de um novo nascimento (BOURDIEU,

    2008, p. 35).

    A redenção pela Sociologia opera-se por razões íntimas que ele evoca sem as

    revelar, tingidas de epistemologia e de moral, que o conduzirão para uma prática

    específica da Sociologia sempre aberta a novas eleições filosóficas nas quais ele

    desenha seus instrumentos. Brevemente, Bourdieu desviou-se da Filosofia, não a fim de

    estudar o habitat urbano, ou as relações humanas na indústria, mas certamente em nome

    de uma exigência filosófica, e ele empresta a expressão de Blaise Pascal: "O verdadeiro

    filósofo zomba da Filosofia" (BOURDIEU, 2003, p. 10).

    Ao fim da guerra da Argélia, continuando na retrospectiva histórica, ao

    retornar a Paris, em 1960, torna-se assistente do sociólogo francês Raymond Aron.

    Aron, sociólogo com quem manteve relações acadêmicas e profissionais. Ele tornou o

    jovem filósofo agregado da École seu assistente, no Centre de Sociologie Européenne

    (Centro de Sociologia Europeia) da Faculdade de Letras de Paris, da École des Hauts

    Études en Sciences Sociales - EHESS.

  • 28

    Após ter vivenciado a guerra e, posteriormente, a vida acadêmica na Argélia, a

    visão do filósofo recém-agregado à ENS viu-se reforçada pela visão do etnólogo. Para

    um filósofo de formação, a Etnologia podia funcionar como um lugar intermediário

    entre a Filosofia e a Sociologia.

    Nessa direção ainda, Michel Foucault traduzia, nesse período, A Antropologia

    de Immanuel Kant, o que impulsionou ainda mais a recusa profunda de Bourdieu ao

    princípio da "distância social, do ponto de vista escolástico10". Isso porque sua busca

    era justamente entender a confluência entre o mundo social e a produção científica, e

    distanciar-se do sujeito significava distanciar-se do campo científico como campo de

    luta. Em suma, retornou da Argélia com experiências em pesquisas sobre as sociedades

    cabilas11, experiências em Etnologia. Bourdieu deixa claro que "[...] a transformação da

    sua visão de mundo é correlata à passagem da Filosofia à Sociologia" (BOURDIEU,

    2005, p. 86).

    Em 1961, Bourdieu vai para a Universidade de Lille, para atuar junto à

    graduação de Sociologia, recém-instituída no programa, cujo título se encontrava na

    área de Letras. Os alunos de Sociologia eram integrados às turmas já constituídas em

    cada uma das matérias que deveriam cursar, de acordo com os diplomas escolhidos: a

    turma dos filósofos (que preparavam o certificado de "Moral e Sociologia"), a turma dos

    psicólogos (que preparavam o certificado de "Psicologia Social") e a turma dos

    economistas (que preparavam o certificado de "Economia Política e Social").

    No começo do ano letivo de 1961, Bourdieu ministrava as aulas magnas de

    "Moral e Sociologia" na Universidade de Lille.

    Bourdieu, normalien e agregé em Filosofia, apresentava características mais

    prestigiadas para um jovem intelectual (vinha da Sorbonne, onde, no ano

    anterior, havia sido assistente de Raymond Aron), com uma particularidade

    suplementar: ter feito trabalho de campo como etnólogo na Argélia, em um

    momento em que a etnologia, por muito tempo uma disciplina menor, se vê

    de alguma forma valorizada pela emergência do estruturalismo e da

    notoriedade do Lévi-Strauss (DELSAUT, 2005, p. 213).

    10 O princípio da distância social, na tradição escolástica, capacita-nos a conhecer o mundo enquanto o

    mutila, na medida em que requer que nos retiremos do mundo e nos inclinemos para vê-lo como algo

    diferente do que é por ele mesmo [...] mais que tarefas urgentes a serem realizadas praticamente hic et

    nunc (WACQUANT, 2002, p.104). 11 Ver Sociologie de l'Algerie (1958).

  • 29

    Aron comentava que Bourdieu "[...] sempre teve um sistema de conceitos

    fechados desde muito cedo" (BOURDIEU, 2005, p. 64). Um sistema que, na verdade, já

    havia se formado nas primeiras pesquisas etnológicas e sociológicas, na Argélia.

    Com efeito, a sociologia era desvalorizada perante os filósofos agregados na

    École, por sua feição de vulgaridade científica, uma vez que possuía uma ambição de

    dar conta cientificamente das condutas humanas. Mesmo assim, Bourdieu não hesitou.

    Esse era, na verdade, o seu desafio. Ele se definia como "líder de um movimento de

    libertação das Ciências Sociais contra o imperialismo da Filosofia" (Idem, p. 71). E

    ninguém melhor do que o epistemólogo francês Canguilhem, conterrâneo, professor e

    orientador, para inspirar a consagração de tal projeto de libertação.

    A diversidade dos trabalhos de Bourdieu, por um lado, e a recorrente

    continuidade de suas interrogações, por outro, demonstram sua vontade de provar seus

    conceitos no fio da sua história. Essa observação permite constatar, no conjunto,

    algumas obras maiores de Bourdieu, uma lógica recorrente.

    Os primeiros escritos de Bourdieu são trabalhos em equipe, fundados ao redor

    dos anos 60, centralizados na cultura, em especial na escolar e na vontade de fundar

    uma sociologia científica original. Constata-se que Os herdeiros (1964), A reprodução

    (1970) e Ofício de sociólogo (1968) são obras iniciais que já apresentam profundidade

    filosófica e justificação epistemológica.

    A obra intitulada A reprodução, que foi publicada em colaboração com o

    filósofo e colega de ENS, J-C Passeron, é na verdade o prolongamento do texto

    publicado inicialmente, em 1964, com o mesmo autor, intitulado Os herdeiros, os

    estudantes e a cultura. Na ocasião, os autores partem da constatação da desigual

    representação das diferentes classes sociais no ensino superior e se interrogam sobre os

    fatores de diferenciação do êxito escolar. A reprodução aparece como a síntese teórica

    de Os herdeiros, na qual é revelada a função reprodutora da Escola.

    Nessa obra está presente um esquema conceitual oriundo de uma reflexão

    essencialmente filosófica, refinada por Bourdieu ao longo de sua vida acadêmica, cujo

    esboço já se encontrava nos seus primeiros escritos. Ele elaborou um esquema

    conceitual que se chama aqui "matriz conceitual racional" de análise do universo social.

  • 30

    Essa matriz é formada por dois conceitos operantes e relacionais, que existem apenas

    um em função do outro. São eles ―campo‖ e ―habitus‖.

    Para Bourdieu (2009), o mundo social é o lugar de processo de diferenciação

    progressiva, um macrocosmo. O campo, por sua vez, é um microcosmo dentro do

    espaço social global. Não são espaços com fronteiras definidas; é o lugar de relações de

    forças. Uma análise em termos de campo implica três momentos necessários e

    conectados entre si. São eles:

    1º Deve analisar a posição do campo em relação ao campo de poder, donde

    ocupa uma posição dominada;

    2º Deve estabelecer a estrutura objetiva das relações entre as posições ocupadas

    pelos agentes ou as instituições que estão em competência nesse campo; e

    3º Deve utilizar hábitos dos agentes, os diferentes sistemas de disposições que

    são adquiridos com a interiorização de um tipo determinado de condições sociais e

    econômicas.

    Em uma de suas primeiras obras, A reprodução, Bourdieu analisa o sistema

    escolar sob a ótica do campo e do habitus e conclui que a escola serve como

    instrumento de legitimação das desigualdades sociais. Longe de ser libertadora, ela é

    conservadora e mantém a dominação das classes populares. Contrariamente à afirmação

    de que a escola é uma instituição neutra, a serviço de um saber universal e racional que

    permite a promoção individual, a sociologia bourdieusiana tem mostrado que ela está na

    fonte da reprodução dos privilégios culturais. O conceito de habitus provoca a

    eliminação das categorias desfavorecidas, pois, com a sociologia de Bourdieu, os

    indivíduos aprendem a antecipar seu futuro conforme a sua experiência do presente;

    logo, aprendem a não desejar o que, no seu grupo social, aparece como eminentemente

    provável. Para Bourdieu, apenas "[...] sob a condição de conhecer a história do

    pensamento é que se pode libertar o pensamento de sua história" (BOURDIEU, 1983, p.

    32).

    Na obra intitulada Ofício de sociólogo (1968), Bourdieu descreve a

    importância de filósofos como G. Bachelard e G. Canguilhem para definição de um

  • 31

    método para a prática da Sociologia. Logo no prefácio ele enfatiza como a

    epistemologia de Gaston Bachelard se diferencia de uma

    [...] metodologia abstrata em seu esforço para capturar a lógica do erro para

    construir a lógica da descoberta da verdade como polêmica contra o erro e

    como esforço para submeter as verdades próximas à ciência e os métodos que

    utilizam para uma retificação metódica e permanente (BOURDIEU, 2004, p.

    23).

    São várias as indicações de Bachelard ao longo do Ofício, e pode-se verificar a

    presença do filósofo nos títulos escolhidos por Bourdieu dentre os capítulos dessa

    mesma obra. São eles: "Os três graus da vigilância"; "Razão arquitetônica e razão

    polêmica"; "A filosofia dialogada" e "As mundanalidades da ciência". Esse tema é

    desenvolvido, com mais argumentação, no primeiro capítulo desta tese.

    Ainda no prefácio do Ofício, Bourdieu afirma que o sociólogo pode encontrar

    um instrumento privilegiado de vigilância epistemológica na sociologia do

    conhecimento como um meio para enriquecer e esclarecer o conhecimento do erro e das

    condições que o tornam possíveis e, às vezes, inevitáveis.

    Pode-se constatar que a maneira pela qual foi anunciada a morte de Bourdieu,

    em 23 de janeiro de 2002, e comentada nos meios de comunicação, revelou e instruiu

    muito. Bourdieu suscitou reações apaixonadas, reações de rejeição e até mesmo de ódio,

    mas também de testemunhos emotivos e julgamentos que se esforçam para estar à altura

    do grande legado. As homenagens, pode-se ver, são animadas pela paixão de

    compreendê-lo.

    Louis Pinto, com a obra Bourdieu e a teoria do mundo social, apresenta o

    trabalho do sociólogo como uma "revolução simbólica", uma nova maneira de ver o

    mundo social, dando "uma função maior às estruturas simbólicas" (tais como a

    educação, a cultura, a literatura). No campo da produção simbólica, as relações de

    forças entre os agentes apresentam-se na forma transfigurada e eufemizada da relação

    de sentido. A violência simbólica, tema central dos trabalhos de Bourdieu, não seria

    mais que um instrumento a serviço da classe dominante, mas se exercita igualmente nos

    jogos dos atores sociais (Le Monde, 25.01.2002).

    Thomas Ferenczi, no Liberation (25.01.2002), para medir a inovação apontada

    por Bourdieu, citou que o CNRS lhe deu, em 1993, a medalha de ouro, estimando que

  • 32

    ele "[...] regenerou a sociologia francesa, associando em permanência o rigor

    experimental com a teoria fundada sob uma grande cultura em Filosofia, em

    Antropologia e em Sociologia". Ferenczi afirma que a questão central de Bourdieu é

    saber como as condutas podem ser reguladas sem ser o produto da obediência às regras.

    Não se pode jamais partir de tal projeto, que conduziria a instalar a sociologia no centro

    das Ciências Sociais, para fazer uma economia geral das práticas.

    Didier Eribon tentou, ao seu modo, inserir no texto publicado no jornal Le

    Nouvel Observateur a questão chave da Sociologia de Bourdieu: o que é um indivíduo?

    E como ele pode conquistar sua liberdade contra os mecanismos sociais que o fabrica e

    não param de enterrá-lo? Pode-se, portanto, obter esclarecimento à luz de dois conceitos

    fundamentais: a teoria do habitus, para apreender como o indivíduo incorporou os

    determinismos sociais que guiam, como um sistema de disposições adquiridas, suas

    ações, suas escolas, seus gostos; e a teoria do campo, para mostrar que, na medida em

    que há em todos os espaços sociais forças que se opõem, há também lutas e, portanto, o

    jogo. Existe sempre o lugar no qual nasce alguma coisa que parece esta que é chamada

    de liberdade (ERIBON, Le Nouvel Observateur, 31.01.2002, p. 44). [ERIBON, Didier.

    (2002, 31 jan.). «Pierre par Bourdieu». Le Nouvel Observateur , p. 44.]

    Jacques Bouverresse lembra também sobre essa questão central da relação

    entre determinismo e liberdade no pensamento de Bourdieu. Para Bouverresse,

    Bourdieu teria pesquisado sempre para explicar por que as coisas são difíceis de mudar

    e para mostrar como elas poderiam mudar. Bourdieu não tem, aos olhos de Bouverresse,

    nenhuma intenção de persuadir os intelectuais de outra coisa: sua liberdade tem limites,

    provavelmente muito mais estritos, e eles são naturalmente inclinados a acreditar neles.

    Mas eles são encontrados geralmente mais convenientes para se apoiar, de modo

    inaceitável por sua dignidade, e não se tem nenhuma liberdade real (BOUVERRESSE,

    Le Monde, 31.01.2002). [ BOUVERRESSE, Jacques. (2002, 31 jan.). «Pierre Bourdieu,

    Blaise Pascal et les demi-savants de la philosophie». Le Monde.]

    Alain Touraine anunciou que Bourdieu é, de um lado, determinista social. Já

    Touraine é do lado da liberdade, porém as duas faces da sociologia não podem viver

    uma sem a outra (Liberation, 25.01.2002)[ TOURAINE, Alain. (2002, 25 jan.).

    «BOURDIEU, les champs du partisan». Liberation, p.2.]. Para Touraine, a tese mais

  • 33

    forte de Bourdieu porta, com efeito, uma das grandes questões da filosofia e da

    sociologia: como um indivíduo pode ter da liberdade tudo o que inclui múltiplos

    contrários e determinismos? A teoria do habitus, para Touraine, não prende Bourdieu

    em uma cela de ferro. A interiorização habitua, e [...] os programas de comportamentos

    dão ao indivíduo uma liberdade em um determinado ambiente. Do mesmo modo, ele

    retoma e desenvolve a sua maneira clássica, segundo a qual o conhecimento

    determinista ajuda a liberdade (TOURAINE, Sciences Humaines, "La ouvre de P.

    Bourdieu", 2002, p. 103).

    A dimensão transcendental da teoria de Bourdieu ultrapassa as fronteiras da

    sociologia, escreve Jean Lojkine no jornal La Humanité em 25.01.2002. A sociologia de

    Bourdieu é às vezes histórica, política, antropológica [...] e filosófica. Há em sua teoria

    uma dimensão transversal que não é evidentemente limitada a uma análise empírica,

    nem a uma disciplina estreitamente definida (LOJKINE, La Humanité, em 25.01.2002)[

    LOJKINE, Jean. (2002, 25 jan.). «Il n'a jamais plie». La Humanité. ].

    Loïc Wacquant, professor de sociologia em Berkley e colaborador próximo de

    Bourdieu, ressalta a universalidade dos domínios aos quais a aproximação de Bourdieu

    é aplicável. Para os pesquisadores, que são milhões ao redor do mundo, para trabalhar

    com esses conceitos são necessárias muitas décadas para obter a plena medida e tirar

    todas as implicações de um pensamento fundamentalmente relutante à quantificação.

    Bourdieu aliou o rigor do método científico à inventividade do artista, uma cultura

    teórica incomparável a uma prática incessante da pesquisa na qual ela investiga, uma

    Libido Science sem fim ou infinita (WACQUANT, Le Nouvel Observateur, 31.02.2002,

    p. 44)[ WACQUANT, Loïc. (2002, 31 fév.) «Un disciple se souvient: Blues, boxe et

    sociologie». Le Nouvel Observateur, p. 44].

    Pierre Bourdieu tem assim cruzado as barreiras arbitrárias das disciplinas

    estabelecidas. Se ele se converteu da Filosofia para a Sociologia, foi para integrar a

    Filosofia na sua aproximação, como tinha afirmado Jacques Derrida no seu propósito da

    entrevista no Le Monde. Derrida conheceu Bourdieu no khâgne, em Louis-le-Grand, em

    1949, e esteve com ele na ENS. Segundo Derrida, as trocas entre eles foram

    verdadeiramente realizadas nos últimos anos da década de 60, quando Bourdieu

    apresentou o seu projeto de reforma da Sociologia, inaugurando um trabalho que integra

  • 34

    a Filosofia para produzir uma "Sociologia da Sociologia". Bourdieu tinha a ambição de

    dar conta de todos os campos intelectuais e compreender inclusive o próprio campo.

    Essa construção hipercrítica, autor das palavras preferidas de Derrida, 'objetivar', ou

    seja, analisar, fazer objetivo para toda prática espontânea, é o centro da demarcação de

    Bourdieu (DERRIDA, Le Monde, 24.01.2002)[ DERRIDA, Jacques. (2002, 24 jan.). «La

    réaction de Jacques Derrida». Le Monde.].

    Jacques Bouverresse, professor da cadeira de Filosofia no Collége de France e

    grande amigo de Bourdieu, diz dividir a desconfiança de Bourdieu com as grandes

    teorias filosóficas, sua admiração por Wittgenstein e seu gosto pela precisão e pela

    exatidão. Bouverresse pergunta-se por que Bourdieu tinha sempre, em sua demarcação

    intelectual, um ―pé atrás‖. Bouverresse estima que é porque ele tinha sempre, ao menos

    um pé muito mais atrás que os outros e, em particular, que os filósofos (L'Humanité,

    04.02.2002). Bouverresse opõe-se à legenda de um Bourdieu antifilósofo. Para seu

    colega, todos os livros de Bourdieu são também livros de Filosofia, salvo, bem

    entendido, para os que acreditam na ideia de uma filosofia pura e que, do mesmo modo,

    tendem a considerar Bourdieu como um sociólogo 'puro' ou um puro sociólogo (Les

    Inrockuptibles, 29.01-04.02.2002).

    Christophe Charle e Daniel Roche sublinharam, no Le Monde, em 06.02.2002,

    a relação de Bourdieu e de sua escola, nas ciências históricas, notadamente nos

    domínios da História Social, da História das práticas culturais, da História do Estado. A

    História foi se formando por meio das contribuições da revista de Bourdieu ASLRSS,

    um ramo da sociologia crítica.

    Oliver Christin, também historiador, comenta que Bourdieu, nos últimos 30

    anos, marcou profundamente a historiografia na França, e mais ainda no estrangeiro

    (Les Inrockuptibles, 29.01-05.02.2002, p.13)[ CHRISTIN, Oliver. (2002, 29 jan.).

    «Hommage à Pierre Bourdieu». Les Inrockuptibles, p.13.].

  • 35

    2.1 Introdução ao conceito de trans-historicidade do conhecimento científico

    Em seu último curso, Bourdieu dispôs-se a descrever alguns discursos na

    Filosofia das ciências que circunscrevem a problemática da neutralidade ou não na

    produção do conhecimento científico. Responder a essa questão da neutralidade fez

    Bourdieu se lançar em um campo filosófico que seria o gerador do conceito de trans-

    historicidade do conhecimento científico.

    Uma vez indicado esse caminho filosófico de Bourdieu, é possível avançar,

    neste texto, em direção ao objetivo específico desta tese, que é investigar o conceito de

    trans-historicidade do conhecimento científico para demonstrar a essencialidade

    filosófica da reflexão de Bourdieu. Partindo da perspectiva bourdieusiana, o sistema de

    conceitos que ele constrói, em uma perspectiva inicial, epistemologicamente orientada

    pela filosofia da ciência, é o cerne da pesquisa. Esse é o escopo deste trabalho:

    reconstruir a reflexão sobre a neutralidade científica apresentada em seu último curso,

    ministrado no Collège de France no ano universitário 2000-2001.

    O primeiro passo a ser dado nessa direção é admitir que tomar a ciência como

    objeto de estudo significa aceitar que existe uma linha tênue que separa a Filosofia e a

    Sociologia no campo científico. Para compreender a produção do conhecimento

    científico, Bourdieu elabora uma análise filosófica e epistemológica desse processo.

    Nessa busca de compreender a produção do conhecimento científico, Bourdieu

    depara o problema do relativismo social12

    na produção da ciência. E aqui, uma segunda

    questão: o conceito de trans-historicidade resguarda a ciência do relativismo social?

    A solução para o problema do relativismo foi justamente a noção de campo

    científico. Essa noção, proposta por Bourdieu, rompeu com alguns pressupostos

    tacitamente aceitos por muitos dos que se interessam pela produção da ciência.

    Falar de campo é romper com a ideia de que sábios formam um grupo

    unificado e praticamente homogêneo (BOURDIEU, 2001, p. 84). Os investigadores,

    12

    O problema do relativismo social na produção da ciência foi palco de discussões das mais variadas.

    Sintetizando, a questão resume-se em: a ciência é neutra? A produção do conhecimento científico

    depende ou não das condições sociais de sua produção?

  • 36

    como outros artistas ou escritores, estão unidos pelas lutas que enfrentam, inclusive

    pelas alianças que podem uni-los e pela posição que ocupam nessas lutas.

    Porém, a diferença dos campos (artístico, jurídico, literário, científico, etc.) é o

    grau de autonomia, ou seja, a autonomia de um campo está diretamente relacionada com

    as forças que se exercem sobre ele. Dessa forma, em especial com relação ao campo

    científico, é possível afirmar que ele é relativamente autônomo, pois o conhecimento

    científico possui uma característica "trans-histórica"13

    que lhe dá certa autonomia em

    relação às forças que existem no campo científico. A trans-historicidade do

    conhecimento científico possibilita a produção de conhecimentos que transcendem a

    condição inicial de sua produção.

    Assim, a questão é saber: a trans-historicidade resguarda o conhecimento

    científico do relativismo social? A resposta não é simples, pois, por um lado, não o

    resguarda do relativismo social, mas, por outro lado, dá-lhe um estatuto de saber

    formalizado e, portanto, de um saber científico segundo as normas epistemológicas.

    Não resguarda porque pensar no campo científico como um campo totalmente

    autônomo e neutro é, para Bourdieu, uma visão ingênua da produção do conhecimento

    científico. Todo conhecimento científico é produzido em circunstâncias sociais e

    históricas, com lutas de poder e interesses gerados pelas forças que atuam no interior do

    campo.

    Um exemplo dessa visão está na obra do historiador da ciência Thomas Kuhn,

    intitulada "A estrutura das revoluções científicas", que introduz a noção contraditória de

    autonomia da ciência em relação ao mundo social. Para Bourdieu, "[...] a autonomia de

    um campo somente existe perante um mundo social" (BOURDIEU, 2001, p. 21). Ou

    seja, o mundo social é condição para existência da autonomia, assim como a noção de

    espaço externo existe somente em referência à noção de espaço interno subjetivo, o qual

    Kant denomina ser a priori. Em suma, não haveria autonomia se não houvesse um

    mundo social que tornasse possível a condição de autônomo.