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O ANIMADOR Dossier Pedagógico

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O ANIMADOR

Dossier

Pedagógico

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O music hall está a morrer, e, com ele,

uma parte importante da Inglaterra.

Perdeu-se um pouco do coração da

Inglaterra: uma coisa que outrora

pertencia a toda a gente, pois que se

tratava de uma arte genuinamente

popular. Ao escrever esta peça não me

servi das técnicas do music hall na mira de

tirar efeitos fáceis, mas sim porque

acredito que essas técnicas podem resolver

alguns dos eternos problemas do tempo e

do espaço com que o dramaturgo se

defronta; e, além disso, porque se mostrou

relevante para a história e montagem da

peça. Esta técnica não só tem as suas

tradições próprias, as suas convenções e

simbologia particulares, a sua mística,

como permite ultrapassar as limitações do

chamado teatro naturalista. O seu impacto

é imediato, vivo, direto.

Nota inicial de John Osborne a The Entertainer, 1957

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Índice

1 Sinopse p.4

2 Ficha artística p.5

3 Gonçalo Amorim: biografia do encenador p.6

4 Perante a humanidade - conversa com Gonçalo Amorim p.8 Teatro despido e Kitchen Sink; a família: o álcool, a guerra, a mesa; a construção dos personagens: corpos e voz; a atualização: deslizes e pontes; a imigração e a quarta parede; “está tudo bem”: Estado Providência, Canal do Suez; niilismo, desesperança, “não”; esperança e essência: cantar; a música e as canções; Archie: números e parábola final (maturidade de Osborne); “O Animador”: tradução e referências

5 Fotografias de cena p.15

6 A propósito de O Animador – notas de Rui Pina Coelho p.17

Notas sobre O Animador e o seu contexto: Kitchen Sink, Beaux Arts Quartet, Free Cinema, Royal Court, Look Back in Anger

7 Acerca da peça p.23

Excertos sobre The Entertainer: sobre a origem da peça, Archie Rice, Laurence Olivier na peça, receção na altura da estreia, política, teatro e ambiguidade

8 As personagens segundo Osborne p.26

Apresentação das personagens através das didascálias: Billy, Jean, Phoebe, Archie, Frank

9 Archie Rice e o músico p.29 Um par de perguntas a João Pedro Vaz e Paulo Furtado

10 O mais belo grito p.30

Excertos e frases sobre a voz, do dizer ao cantar

11 Pistas de reflexão e trabalho p.33

12 Informações e reservas – Escolas p.34

13 Quem somos – Teatro Nacional D. Maria II p.35

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O Animador de John Osborne

encenação de Gonçalo Amorim

Um país a desaparecer

Em O Animador, John Osborne ensaia uma crítica a Inglaterra — que considerava caduca e hipócrita —

referindo-se à decadência do teatro musical e, em particular, dos Rice, uma família de artistas de variedades

liderada pelo extravagante "animador” Archie Rice.

Esta é a segunda peça de Osborne, logo depois de ter tomado de assalto a cena londrina com Look Back in

Anger, em 1956, aquela que viria a ser uma das peças mais impactantes do pós-guerra britânico.

O tom do texto é de uma nostalgia corrosiva por um tempo perdido e por uma ideia de país que se esfumou.

Os ingleses do pós-guerra lamentavam o desaparecimento da noção de Império, de Inglaterra-Mãe, então

perdida num mundo bipolarizado entre as superpotências dos Estados Unidos da América e da União

Soviética. A decadência do musical, as tentativas de sobrevivência e o anacronismo poético da família Rice

aparecem, assim, como um sinal da falência de um país e do seu património cultural.

Por cá, “sabemos bem o que isso é — ver um país a desaparecer”, comenta o encenador Gonçalo Amorim, que

procurou neste espetáculo criar um inquietante momento de reflexão.

© Filipe Ferreira

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Ficha artística

de John Osborne

tradução João Alves Falcato

versão cénica Rui Pina Coelho

encenação Gonçalo Amorim

interpretação António Júlio, Iris Cayatte, João Pedro Vaz, Manuel Nabais, Maria do Céu

Ribeiro, com a participação de Paulo Furtado

cenografia e figurinos Catarina Barros

luz Francisco Tavares Teles

música original e desenho de som Paulo Furtado (The Legendary Tigerman)

assistência de desenho de luz e operação Renato Marinho

assistência de desenho de som e operação Carlos Reis

EQUIPA T.E.P.

coordenação de produção Teresa Leal

assistência técnica João Rosário

assessoria de comunicação e imprensa Vítor Pinto

vídeo Nuno Santiago

costureira Ana Maria Fernandes

secretariado Ana Santos

EQUIPA TNDM II

direção de cena Manuel Guicho

operação de luz Feliciano Branco

operação de som Pedro Costa e Sérgio Henriques

maquinaria Paulo Brito, Rui Carvalheira

produção executiva Manuela Sá Pereira

agradecimentos Casa da Música, Circolando, Filipe Gonçalves, João Guedes

produção Teatro Experimental do Porto

coprodução Teatro Municipal do Porto, TNDM II

M/12

duração 2h10

estreia 26 de novembro de 2015, no Teatro Municipal do Campo Alegre, Porto

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Gonçalo Amorim BIOGRAFIA DO ENCENADOR

Os primeiros anos da vida profissional de Gonçalo Amorim (n. 1976) – depois de uma experiência continuada

em teatro escolar, ainda durante a sua adolescência; depois de vários espetáculos no grupo universitário

no Grupo de Teatro da Nova, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, durante o período em que aí

estudou Antropologia; e depois da sua formação como ator na Escola Superior de Teatro e Cinema – foram

feitos no convívio privilegiado com dois coletivos teatrais muito particulares: o Teatro O Bando, dirigido

por João Brites; e o Útero, de Miguel Moreira. Neste período, Gonçalo Amorim, como ator, participa nos

espetáculos Quantos dias faltam para que ontem faça parte do futuro? (Coletivo de Teatro O Grupo, 1998);

Mil 999...e o pénis voador (Útero, 1998), A porca (Teatro O Bando, 1999), Merlim (Teatro O Bando, 2000),

Agatha Agatha (Útero, 2000), Percival (Teatro O Bando, 2001), O gelo na mesa (Útero, 2001), Auto do Pino

do Verão (Teatro O Bando, 2001), Alma Grande (Teatro O Bando, 2002).

A par desta atividade como ator, Gonçalo Amorim começava também a experimentar-se como encenador,

dirigindo o grupo de teatro universitário GTIST - Grupo de Teatro do Instituto Superior Técnico. São anos

formativos e de estabelecimento de cumplicidades que serão determinantes para a evolução da sua prática

teatral. Para além da colaboração continuada com o Teatro O Bando e o Útero, Gonçalo Amorim participou

também, de maneira mais avulsa, em outros espetáculos. Em 1999, protagoniza Mercedes, de Thomas

Brash, com encenação de Mathias Poppe e apresentado no Centro Cultural de Belém. Em 2001, é Willie em

Dias felizes, de Beckett, numa encenação de Madalena Victorino para os Artistas Unidos. Mas, dentro

destes “espetáculos avulsos”, aquele que talvez tenha sido mais determinante para o futuro seja Divisões,

um espetáculo que mereceu uma Menção Honrosa para Projeto de Encenação do Teatro na Década (1999),

encenado por Bruno Bravo (também ator regular no Teatro O Bando), com um texto assinado pelo

encenador e por Joana Craveiro (a futura diretora do Teatro do Vestido), a partir de Living Quarters de

Brian Friel e interpretado por muitos daqueles que viriam a constituir a espinha dorsal de um dos coletivos

mais relevantes da atual cena portuguesa: os Primeiros Sintomas. Assim, de 2002 a 2007, Gonçalo Amorim

inicia um novo ciclo de vida profissional. Mantém-se como cooperante do Teatro o Bando – em 2004

integrará o elenco de um espetáculos tão determinante como Ensaio sobre a cegueira, a partir do romance

de José Saramago – mas os Primeiros Sintomas – grupo a que pertence desde o primeiro espetáculo – tomar-

-lhe-ão a maior parte das energias criativas, sobretudo como ator. Desta maneira, Gonçalo Amorim

integrará os elencos de Frankenstein (2002), A montanha também quem (2003), O homem do pé direito

(2003), Conto de natal (2004), Endgame revisitado (2005, em coprodução com o Teatro Meridional).

Será também durante este período – de 2002 a 2007 – que Gonçalo Amorim começará a encenar

profissionalmente: em 2005, dirigirá Gururu, um espetáculo desenvolvido no âmbito do projeto Odisseia

Jovem / European Youth Odissey – A Magic Net Encounter for Young People, baseado na Odisseia de

Homero; e Padaria esperança, o espetáculo final dos alunos do 2º ano de Formação de Atores

Profissionalizante do Espaço Evoé. Mas será em 2007 que, decididamente, o ator Gonçalo Amorim se

começará a tornar no encenador. Em março de 2007, encena, para o Teatro O Bando, Rumor Clandestino,

um texto de Fernando Dacosta a partir de escritos do filósofo português Agostinho da Silva. O espetáculo,

parte integrante do Projeto Clandestinos, era uma espécie de audio-walk. Assim, aos espectadores eram

disponibilizados auscultadores onde se podiam escutar o diálogo entre um casal (Susana Branco e Nicolas

Brites) que se reencontrava passados muitos anos, tendo de os perseguir pelas ruas de Lisboa. Um

espetáculo delicado, curto, de ambição cinemática e que tomava a cidade como uma personagem.

Porém, a sua primeira encenação de grande fôlego fará parte do reportório dos Primeiros Sintomas. Será

Foder e ir às compras (Shopping and Fucking), de Mark Ravenhill, estreado no Centro Cultural de Belém,

em 2007. E será uma entrada de rompante. O espetáculo, apresentado durante quatro dias no CCB, por

agrado popular, será reposto quase imediatamente no Teatro da Politécnica (e mais tarde no São Luiz

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Teatro Municipal) e merecerá o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro (ex-

-aequo com A tragédia de Júlio César, do reputadíssimo Teatro da Cornucópia).

De 2007 a 2010, o projeto teatral de Gonçalo Amorim vai-se definindo com contornos mais seguros. Para

além do seu trabalho como ator em coletivos e projetos diversos, tais como Ricardo II (enc. Nuno Cardoso,

TNDMII, 2007), Repartição (enc. Bruno Bravo, Primeiros Sintomas, 2008), A resistível ascensão de Arturo

Ui (dir. Joaquim Horta, Truta, 2008), Lindos Dias e Hedda Gabler (enc. Bruno Bravo, Primeiros Sintomas,

2009), será a encenação que começará a tomar maior preponderância na sua atividade. Desta maneira,

encenará diversos espetáculos, em contextos muito distintos, ora respondendo a convites, ora

desencadeando os processos criativos: Casas e Guarda-Sol Amarelo, para o grupo de teatro de amadores

Teatroàparte (2008 e 2009, respetivamente); Inês Negra, um texto de Miguel Castro Caldas para as

Comédias do Minho, 2009); Cal, de José Luís Peixoto e Meias-irmãs, de Nuno Milagre (Teatro da Terra,

2009 e 2010, respetivamente); Maria Mata-os, um espetáculo que visava recriar uma revista (a partir de

um texto de Miguel Castro Caldas, para os Primeiros Sintomas/Teatro Municipal Maria Matos, 2010); Centro

de Dia, um espetáculo de teatro comunitário que ocupou durante meses um centro de dia para a terceira

idade, um trabalho de uma delicadeza ímpar, cruzando reportagem com ficção, intervenção social com

experimentalismo artístico, vida e arte (Alkantara festival, 2010).

Mas o espetáculo que – decididamente – condensará muitas das linhas de força da sua futura atividade será

A mãe, de Bertolt Brecht, apresentado na Culturgest, em março de 2009.

Nos anos seguintes, em particular de 2010 a 2012, Gonçalo Amorim vai iniciar uma colaboração regular

com o TEP - Teatro Experimental do Porto. Esta companhia histórica, fundada em 1953 e a única

sobrevivente do movimento de teatro experimental em Portugal dos anos cinquenta, vai encontrar em

Gonçalo Amorim o elemento-chave para a revitalização do seu projeto artístico. Deste modo, em 2010 e

2011, respetivamente, Gonçalo Amorim encenará, para o TEP, dois textos do dramaturgo Arthur Miller: A

morte de um caixeiro-viajante e Do alto da ponte. Pelo meio, Gonçalo Amorim, ainda colaborou em Hotel

Lutécia (enc. Tiago Rodrigues, 2010), integrou o elenco de A cacatua verde, de Arthur Schnitzler (enc. Luis

Miguel Cintra, Teatro da Cornucópia / TNDMII, 2011) e encenou O jogador, uma adaptação de Emília Costa

do romance de Dostoiévski, em 2011 (São Luís Teatro Municipal). Mas será no TEP que Gonçalo Amorim

encontrará os meios de produção necessários para desenhar um projeto a longo prazo.

Em 2011, no seguimento das traduções dos textos de Arthur Miller, Amorim desafia Rui Pina Coelho assinar

um texto que colocasse na atualidade, confrontando a corrente situação do país, as inquietações que Miller

levantava nos anos cinquenta. O resultado foi Já passaram quantos anos, perguntou ele, um texto

desencantado que refazia Look Back in Anger, de John Osborne e se dirigia muito diretamente à sua

geração. Recebeu então, em 2011, uma menção honrosa da APCT, pelo seu trabalho como encenador. Em

2012, e continuando a pesquisar a maneira como a dramaturgia realista dos anos cinquenta foi interrogando

o modelo capitalista, Gonçalo Amorim encena O dia do santo (Saint’s Day), um texto de culto do pouco

conhecido dramaturgo John Whiting, construindo um elogio fúnebre à arte. Nesse mesmo ano, também no

TEP, Gonçalo Amorim encena Chove em Barcelona, do catalão Pau Miró, onde se faz a análise à pobreza e

ao que acontece quando a solidariedade entre indivíduos desaparece.

Estes espetáculos, de carácter marcadamente político e interventivo levaram à criação de um espetáculo

que – de alguma forma – também marcará o final de uma fase: Um espetáculo para os meus compatriotas,

com texto de Rui Pina Coelho, apresentado em Lisboa no espaço alternativo Negócio ZDB, reunindo uma

eclética equipa de criadores. Depois disso, 2013 será mais um momento de mudança. Depois de dois anos

de colaboração regular com o TEP, Gonçalo Amorim assumirá finalmente a direção artística da companhia.

Em 2014 assume a direção artística do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica.

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Perante a humanidade CONVERSA COM GONÇALO AMORIM

Teatro despido e Kitchen Sink; a família: o álcool, a guerra, a mesa; a construção dos

personagens: corpos e voz; a atualização: deslizes e pontes; a imigração e a quarta parede;

“está tudo bem”: Estado Providência, Canal do Suez; niilismo, desesperança, “não”; esperança

e essência: cantar; a música e as canções; Archie: números e parábola final (maturidade de

Osborne); “O Animador”: tradução e referências.

Quando o público entra os atores já estão em cena, a

sala está desarrumada e a Phoebe põe-se a aspirar.

Dá a sensação de que aquilo que vamos ver é a

continuação de uma coisa que acontece todas as

noites. Porquê essa escolha?

O Osborne na sua didascália diz-nos logo de início que

estamos no teatro. E num teatro à alemã, um teatro

despido, em que se veem as escadarias do interior de

um palco, a tabela da direção de cena. Nós tentámos

responder a isso: o palco também está despido, e de

alguma maneira ainda não está pronto para a peça

começar. E queríamos dar a entender que estamos

perante os trabalhadores do teatro. Lembrar que o

ator também é um trabalhador do teatro, ou que

contacta com eles, e daí o Frank a recarregar a

máquina de vending, a Phoebe a aspirar.

Esta abertura também quer corresponder –

atualmente não corresponde da mesma maneira, mas

deveria corresponder – àquela sensação que se teve

quando abriu o pano no Look Back in Anger, a

primeira peça do Osborne, anterior a esta, aquele

bruaá que se ouviu quando se viu uma tábua de passar

a ferro em cena. Piscarmos o olho à ideia do Kitchen

Sink, de estar em palco aquilo que não é suposto estar

em palco, logo na abertura. O aspirador, a máquina de

vending também são elementos que, por um lado,

estão relacionados com a sociedade de consumo e com

o pós-guerra e, por outro lado, com o interior, com o

doméstico.

Depois pôr a Phoebe agarrada ao aspirador é também

marcá-la como sendo working class. Daqueles todos, é

a figura que nos liga ao trabalho braçal. Mais uma vez

no Kitchen Sink, principalmente no Beaux Arts

Quartet, o que nós vemos é o inundar das telas de

mulheres com músculo, com mãos calejadas, o dito

ralo da cozinha. No caso da Phoebe é particularmente

importante, coloca a mulher na zona do trabalho

doméstico.

Talvez por já não estarmos nos anos 50, tomei esse

gesto da Phoebe como o de alguém que apesar de

tudo se esforça para que as coisas funcionem. Se o

Archie é o disruptor, a Phoebe é a conciliadora.

Pelo menos tenta, apesar do excesso de álcool...

Sim, normalmente há a ideia da refeição como aquilo

que une a família à volta de uma mesa. Nesta peça

ninguém come, quando se fala em comer há quase

uma crise – esse papel aqui é da bebida.

Tem a ver com sobrevivência. Para aguentar. O álcool

vai chegando mas já lá está, e eles pegam no copo que

estiver mais à mão. E vão saltando da mesa para o

microfone, para o espaço público. Passa-se muito

tempo à volta daquela mesa, a sugestão está no texto,

mas é uma marca de encenação que aquilo esteja

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repleto de garrafas e de copos.

Aliás, eles só se sentam todos à mesa quando o Mick

morre, e fica lá o lugar vazio. Finalmente está a família

toda à mesa, e é porque morreu aquele miúdo. Até aí

está toda a gente em pânico por causa do Mick. É um

motor dramático brutal, a ausência do Mick, e o ele

estar na guerra. Estamos sob o signo da guerra – a

negritude do texto vem da Segunda Guerra Mundial,

do Holocausto, não há hipótese. Eles estão muito bem

distribuídos no tabuleiro: a Jean vem das

manifestações em Trafalgar Square, que são contra o

nuclear, o Mick está na guerra do Suez, o Frank diz

que não à guerra e emigra… A juventude está toda

representada.

A peça tem essa dimensão política, pública, mas o

facto de se passar no ambiente doméstico ou privado,

no mais íntimo, dá-lhe mais força porque enquanto

espectador estás sempre a funcionar nos dois sítios; a

família também é o sítio onde te confrontas com o que

és fora da família.

E a Jean é o rastilho, o botão em que se carrega para

todos começarem a falar. Se ela não chegasse, não

havia peça. Toda a gente começa a mostrar-se e a

“remostrar-se” e a “ressituar-se” e a pensar no que é

fora dali. E a evolução que cada um deles vai ter ao

longo da peça é em função do dentro e do fora, o que

vejo dentro e o que vejo fora. E dessa força centrípeta

que tem aquela mesa e aquele álcool todo.

O modo como cada personagem fala e se move é

muito específico. O Archie que fala sempre como se

estivesse em cena; o avô senta-se muito direito e

canta a mesma canção no mesmo tom; e a Phoebe,

que é quem se preocupa em encontrar um equilíbrio,

é a que está sempre em desequilíbrio do ponto de

vista físico... Em termos do modo de representação e

da dramaturgia, como é que trabalharam para

encontrar essa especificidade?

Eu pedi ao Frank para ir ver o A Leste do Paraíso,

para ir ver o James Dean. Ele é o corpo da British New

Wave, que vem do Free Cinema. É o corpo dos novos

heróis, anti-heróis dos anos 50. São os Sean Connery,

os James Dean, os Marlon Brando, aqueles homens

que choram, os Richard Burton, mas que são working

class, são gajos que podiam pegar num pneu, que

trabalham – já não são aquelas figuras mais Archie,

mais Laurence Olivier, ou John Gielgud, os atores do

texto. São os atores do corpo, da manga cava. E o

Frank, embora seja muito prestável e muito amoroso,

é um gajo que trabalha nas caldeiras. É a conjugação

das contradições, das camadas, que dá verdade. A

verdade vem dessa capacidade de não fazer a coisa

caminhar toda no mesmo sentido. A fragilidade que o

Frank tem – é um miúdo que vive ali na sombra

daquele pai – está superada por uma grande robustez

física, pela pinta que ele tem. É um gajo cheio de

estilo, que toca piano muito bem.

A Jean é uma personagem muito difícil, e a Íris ainda

está à procura – ela queria ser mais Íris, mais velha do

que a Jean na verdade é, e agora está num processo de

rejuvenescimento, eu quero que ela seja um bocadinho

mais nova. A Jean não pode dizer aquele texto como se

fosse uma grande revolucionária. Porque dá vontade,

não é? De ser ela que leva a bandeira… Mas ela é uma

miúda, meteu-se com malta que pensava nestas coisas,

e ainda tem tudo um bocadinho decorado. Acabou de

sair da faculdade, acabou de romper com o namorado,

vai a casa também para ter conforto, o conforto

possível. Não é uma jovem revolucionária, de todo, é

uma miúda e até um bocadinho caprichosa, tem tiques

de menina mimada. E corporalmente ela tem de ser

um bocadinho afetada e peneirenta, traz Londres para

ali.

A fisicalidade do Archie é a do espetáculo, do show

bizz, e ele quer literalmente que a família faça parte do

seu show. O show do Archie Rice é também aquela

família, que ele está a expor, qual reality show antes

do tempo. Está a expor em números a sua vida

familiar. Há esse metadiscurso osborniano, ele vai

apresentado as personagens, vai dirigindo, faz uma

encenação. Não quis marcar demasiado a questão do

encenador, para nós acreditarmos no Archie, para

mantermos a relação psicológica. Nós temos de estar

com eles. O texto e a minha própria maneira de

montar os espetáculos já têm suficiente

distanciamento, ou desconstrução, para ser o ator a

fazer isso constantemente. O ator tem de ter uma

consciência desse metadiscurso mas também tem de

estar lá, tem de estar a ser.

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Para o Billy Rice, mais do que um corpo velho, foi

construir em cena um corpo à antiga. Acreditar-se que

uma pessoa fala assim também em casa. Optámos não

por fazer um velho, mas por ele falar à moda antiga, de

forma muito articulada. E de repente tens aí um

tempo. Ainda lhe falta o casaquinho de malha e a

barba ligeiramente mais branca, e isso vai ajudar, mas

não é uma construção sobre a ideia da velhice – até

porque o Billy é um homem elegantíssimo, está na

didascália (aliás, aquelas descrições são maravilhosas,

estivemos muito tempo a discutir se as iríamos ler ou

não, mas fica para quem ler, o teatro também é para

ler, também serve para isso).

E com a Phoebe foi tentar nem salvá-la nem

paternalizá-la. A principal indicação para a Céu é que a

Phoebe é uma lapa emocional, uma sugadora de

energia que se meteu ali naquela família, eles já

tinham uma filha, ainda por cima… É de uma

fragilidade emocional e de uma carência muito

grandes. Não é uma coitadinha, não é uma vítima, ela

escolheu estar ali, e de alguma maneira é o que ela

conhece e o que tenta proteger. E o estado de

autodestruição em que ela está – e aí o corpo e a voz

podem ir longe – está numa zona em que só berrando

e chorando é que olham para ela. Tem um misto de

verdade e de falsidade, de birra.

Há uma vontade vossa de situar a peça no contexto

em que apareceu, mas também está presente o

movimento inverso, de tentar atualizá-la: nalguns

pormenores, os 20 anos sem pagar impostos que

começam em 1995, a expressão “descontar uns euros

do ordenado”...

Ao mês e não à semana como é em Inglaterra. É um

deslize.

E também nas ligações com a situação política atual,

a emigração, etc. Como é que pensaram isso?

Foi uma das grandes questões da adaptação, e do

porque é que fazemos esta peça agora. Sempre

achámos que o texto ressoava agora, depois tratava-se

de perceber como o montar. Acabámos por achar que

o imaginário devia ser o dos fifties e do universo

inglês. Achámos que era como funcionaria melhor,

mantermo-nos firmes na bandeira, nas cores da pátria

inglesa, nos traços de época. Obviamente com a

sensibilidade de agora, os figurinos são dos anos 50

mas nós estamos no agora, não temos problemas

nenhuns em assumir isso – aliás a moda dos anos 50

está completamente… na moda. Mas não queríamos

deixar de fazer a peça por vezes deslizar, é o termo,

resvalar. São estranhamentos, para quem perceba que

está a ver uma peça dos anos 50, são como que uns

sinais de alerta. Temos pequenas coisas, mesmo nos

símbolos nacionais, nem todos são ingleses, temos “o

nobre povo levantará o seu esplendor”, que ecoa

versos do nosso hino, embora pudesse ser

perfeitamente patrioteiro inglês, ou quando se diz “na

metrópole ou no ultramar”. De repente aparecem

assim umas palavras que ressoam em Portugal e na

situação política portuguesa, de agora e do último

século. Mais do que a plasticidade do espetáculo,

queríamos que fosse o texto a fazer essa atualização.

Há um momento muito forte em relação a essa ideia

de que a peça, apesar de se passar nos anos 50, tem a

ver com o que está a acontecer agora: quando a

Phoebe descreve a carta da família no Canadá, e o

Frank fala com a Jean, mas em vez de se dirigir a ela

faz um discurso ao microfone – e o lugar da jovem

Jean é ocupado pelos jovens que estarão ali a assistir.

Há um bold enorme nesse discurso. Apesar de o texto

ter uma estrutura realista... Bom, não se pode dizer

isto, porque a estrutura é a do music hall, não é

propriamente do naturalismo, mas tem nas relações

energéticas muito do estilo dramático inglês,

chamemos-lhe assim, vive do diálogo, das relações, de

certos arcos psicológicos. Por causa da estrutura do

music hall, e à Brecht, há muitas oportunidades no

texto de haver estranhamento, interrupção da quarta

parede. E nós fazemos isso muito poucas vezes.

Porque já temos os números do Archie, e algumas

canções, onde há imensas interpelações ao espectador,

e grande parte delas são feitas para dentro e não para

fora. Mas no Frank eu quis mesmo arriscar e achei que

devia ser mesmo discursivo, para fora, e de microfone.

E acho que funciona muito bem, ao ser uma exceção…

E porque bate agora, e em nós, nesta geração e na que

vem a seguir.

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Também porque ele não é uma personagem que fale

muito, então de repente quando fala, diz mesmo.

Sentimos que tem a ver connosco.

E está muito pouco mexido, esse texto. Tirando um ou

outro refrão que vem de outros espetáculos que nós já

fizemos, de peças do Rui Pina Coelho – o “vai correr

tudo bem” é recorrente no Rui, e nesta peça volta a

aparecer.

Esta peça é um bocado isso: está tudo bem. Está tudo

bem com o Estado-providência, com a Segurança

Social, o Mick está bem…

Nem sequer foi preso por uns bandidos duns árabes. A

questão da guerra, de ser no Suez e no Médio Oriente

também é incrível, a forma como nos aparece a

palavra “árabes” na peça, como ressoa agora, com os

medos. Na Europa, em todo o lado. Também me

sacode. E não é muito comum ouvir-se em cena.

Nós até cortámos muito do discurso racista do Billy,

do avô. Havia toda uma história relacionada com os

vizinhos, logo no início, com a relação que o Billy tem

com os vizinhos que são polacos, irlandeses, uma

relação de desconfiança, de medo, de racismo. Muito à

Churchill – o Churchill, contemporâneo do Hitler,

dizia que não pode ser o cão do jardineiro a mandar no

jardim, referindo-se à revolta árabe. É uma frase

conhecida do Churchill. Este era o discurso oficial da

Inglaterra imperial, ou que está a perder o seu

Império.

E nós suavizámos um bocadinho essa carga racista no

Billy. Por uma questão de agilidade do texto e de

duração, não queríamos fazer intervalo, queríamos

mesmo que houvesse um rolo compressor. Que se

sentisse a coisa das portas trancadas, de que o Archie

fala no início. Agora já está, e acho que está muito

bem, mas num mundo ideal, em que as pessoas

estivessem três horas e tal trancadas, acho que o

racismo do Billy fazia falta, porque o texto está muito

bem construído, muito bem escrito, nessa capacidade

que o Osborne tem de nos pôr a gostar de personagens

que são horríveis, ou que dizem coisas horríveis.

Não deixa de ter graça pensar na encenação que foi

feita com o Laurence Olivier, em que ele exigiu que se

cortassem partes que tinham a ver com a Rainha.

Aquilo que é atuante e que é preciso suavizar mudou

completamente em 60 anos. De repente há outras

coisas que…

… que são chocantes.

E a vossa adaptação torna as personagens mais

simpáticas.

É, e “diaboliza” um bocadinho mais o Archie. Entre

aspas porque consegues perceber o ponto de vista de

todos. Mas parece-me que este espetáculo ataca de

forma mais feroz, mais incisiva, a ideia do moderado.

A decadência do moderado, daquele que não intervém,

que deixa que as coisas passem por ele.

A grande vitória do Archie é fugir aos impostos, mas

isso é um ato só de escapar.

Na figura do Archie também ressoa uma espécie de

niilismo, que a Jean acaba por absorver. Há uma

aprendizagem da Jean, a maneira como ela vê o pai no

final é diferente. E isso torna a peça mesmo muito

triste, e sem grandes soluções. Ainda por cima a Jean é

a figura da juventude que está na praça em frente ao

Royal Court... A Jean é essa juventude, que ainda vai a

manifestações, que quer fazer alguma coisa, que se

revolta contra quem não quer fazer nada. E ela acaba a

peça a dizer que Deus não existe, só nos temos a nós…

Num niilismo, num certo cinismo que absorve do

Archie.

A peça é toda muito desesperançada.

Desanimadora!

Não há saída daquele núcleo, daquela classe também.

Mas existe uma espécie de resistência passiva, a

capacidade de dizer “não”: O Frank diz que não vai

para a guerra e é preso, a Jean diz que não casa com

o Graham e volta para casa dos pais, o Archie não

aceita a ajuda do irmão nem vai para o Canadá… É

como se eles recusassem ser integrados num sistema

arrumado.

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E é pelo “não”…

Um “não” que não é construtivo, é até autodestrutivo.

É uma das relações fortes que eu tenho com o texto,

precisamente com o “não”. Há aí esperança. Mesmo

que seja autodestrutivo, tenho esperança. Não sei se é

a palavra certa, porque eu sou mesmo da opinião que a

luz ao fundo do túnel é um comboio na nossa direção,

como diz o Žižek. A força do inimigo é tão grande... A

invasão da Hungria pela União Soviética foi uma

grande machadada nos marxistas ingleses, a malta que

na altura está a fazer realismo social, para não dizer

socialista, perde a referência de Moscovo. E isto é

1956, um ano antes da peça. É mesmo importante. E

há um assumir, muito contemporâneo, de que o

inimigo é de uma violência, dum poderio militar, de

uma capacidade de minar a opinião pública, de

dominar os meios de comunicação, que quem está

numa zona de resistência está também numa zona de

grande vulnerabilidade e desespero. E eu estou neste

sítio. Mesmo com todas as possibilidades. Em Portugal

vive-se uma possibilidade de uma mudança – com este

possível governo de esquerda, ou do PS apoiado pela

maioria de esquerda – e claro que é positiva, e alinho

por ela, mas com as expectativas baixíssimas, que acho

que é onde elas devem estar.

Acho que no texto há a diferença entre expectativa e

esperança. E apesar de tudo há um momento de

enorme esperança, quando o Archie fala da negra

que ouviu cantar. É uma coisa que ultrapassa todo o

tempo, todo o tempo da sua vida, da vida política

também.

Fala do essencial, da essência.

Ele diz que se alguém consegue cantar assim, então

está tudo certo. E não é o “está tudo bem” que aparece

ao longo da peça. É qualquer coisa de diferente.

O interessante é perceber se isso é um gesto político ou

não, o ele dizer isso. Tem a ver com discussões sobre

emoção, amor e política… Não sei se é, pode-se dizer

que é um discurso profundamente apolítico.

Se calhar tem mais a ver com a arte. Na peça há uma

diferença entre o falar e o cantar. Eles estão sempre a

discutir, a tentar expressar-se mas a tropeçar no que

dizem. E há um momento em que se sente um alívio,

que é quando eles cantam. O Frank vai cantar, o

Archie brinca, chama a Phoebe… Depois o avô diz que

se vai deitar é tudo simples, vês o amor e a harmonia

entre as pessoas. Isso só acontece com o cantar, e

rima com a história que o Archie conta sobre a

mulher que canta – sobre Deus, mas nem interessa o

que ela diz, é a voz.

Os versos que o Archie tenta gritar, quando sabe da

notícia da morte do Frank, são do blues que canta essa

velha. Ele está a tentar e não consegue soltar. A

questão não está nas palavras, sim. Ele fala de um

grito. Quase um choro.

Queres falar das escolhas musicais? Pensando que

agora em Portugal estamos muito distantes da

tradição do music hall, isso não é uma referência

para este público. E também no facto de teres ido

buscar o The Legendary Tiger Man.

Chamarmos o Paulo é por ser um colaborador nos

meus trabalhos, e por ser do universo do rock and roll

– que não era propriamente a música cool da altura,

seria o jazz, mas o Archie está supostamente a fazer

um espetáculo de rock and roll, que se chama “Rock’n

Roll New’d Look”, qualquer coisa como “rock and roll

renuvado”, é rock and roll e umas gajas nuas, uma

coisa muito barulhenta. A opção foi travar o lado

superficial que poderia vir de os números serem muito

musicais. Não há a desistência total disto, mas há uma

espécie de equilíbrio entre a sonoplastia que o Paulo

faz ao vivo – ele tenta potenciar uma espécie de arco

psicológico que o texto tem – e o fundi-lo com

números, que têm de ser mais leves e que deveriam

estar alicerçados na palavra.

O Archie Rice faz uns números de stand up com um

humor misógino e badalhoco e, no entanto, nas letras

é completamente a voz do Osborne. As letras são

cínicas, extremamente politizadas… Não parece o

discurso do Archie, a tónica é já o filão da carta que o

Osborne acaba por escrever mais tarde, “Para os meus

queridos compatriotas”, é já a revolta contra o status

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quo, contra a hipocrisia até de democratas e

moderados. Já está lá tudo.

E nós então, olhando para aquelas letras, quisemos...

Há aí outro deslize para Portugal, o Paulo foi buscar as

tonalidades da nossa música de intervenção, são esses

os acordes que estão nos números do Archie. E os

números interiores, caseiros, são mais na linha do

gospel, uma estética mais religiosa.

O que fizemos foi tentar fundir sonoramente esta

circularidade de começos e recomeços em que o texto

todo está imerso. Fazemos uma caminhada mais dark,

saímos daquela zona do music hall britânico e

resvalamos, ainda na mesma época, para o Kurt Weil,

e para o Sprechgesang, para o cantado-dito, e daí para

os anos 70 portugueses, com o José Mário Branco. O

som está-nos a ajudar a estarmos na máquina do

tempo e a criar pontes entre agora e os anos 50.

Em relação aos números do Archie: ele faz aquilo

mal, sabe que faz aquilo mal e insiste. Há uma força

– autodestrutiva – na insistência dele. Não nos deixa

ter pena dele. É como se ele nos conseguisse lançar à

cara o facto de ser mau.

Ele é um rogue. Eu não levo a mal o Archie, ele está a

ganhar a sua vida, é um biscateiro, um aldrabão. O

Archie tem o teatro todo contra ele, anda a fazer ali

uns números para entreter umas velhas que vão de

férias à Figueira da Foz, uma espécie de Fernando

Pereira inglês. Mas ele sabe o que é bom, ele ouviu a

tal velha negra a cantar. Não é tipo Emanuel que diz

“falam aí da arte, eu faço o pimba mas ando de

Ferrari”. O Archie não é isso. E não é inconsciente. E

às vezes até ganha orgulho, ele é tão disfórico, tão

bipolar, sei lá o que é que ele é, tão cáustico, que

despreza quem não percebe. Tem essa capacidade, e

ego, de tratar mal quem não percebe. É uma

personagem do caralho. Tem muitas camadas.

Na cena final estamos à espera do momento para

(não) rir de mais uma anedota do Archie, e acontece

outra coisa…

É um texto que é dito sob o signo da gadanha. A Jean é

também a morte que vai entrar por ali adentro – e por

isso a capa preta com que ela vem. Acho que isso é

muito claro no texto do Osborne, ela também

simboliza a morte. Embora o Osborne não seja um

autor de grandes simbolismos, é mais bruto, mas

também os tem. Não sei se estou a interpretar mal –

ou nós, porque muitas das coisas que eu digo são fruto

do coletivo –, mas há esta morte que entra por ali

adentro. O próprio Archie diz “pensava que eras o

homem dos impostos”: ele tem um metaconhecimento

de tudo aquilo, porque é a peça dele, é o único que

sabe que a Jean é a morte, a morte dele como artista

também. A Jean representa o fim, existe para nos dizer

que o Archie vai acabar. Há uma reciclagem

geracional, que está a acontecer durante aquele texto

todo. E essa figura do homem dos impostos que vem

para levá-lo também é ao mesmo tempo o sistema que

nos leva a todos, que leva a arte, que leva isto tudo.

É uma parábola à oriental, ou judaico-cristão, sei lá…

universal.

A que falta a punchline.

É muito Royal Court. O Robbie no Shopping and

Fucking do Mark Ravenhill diz que já não há grandes

histórias, é esta questão de como é que se lida com os

textos universais. E o Osborne tem muitas referências

bíblicas… Aqui a gente não sabe bem que referência é,

acho que não é nenhuma, ele está a construir uma

parábola sobre a morte. Não sei o que este homem diz

perante o que o santo lhe mostra, nem sei se interessa,

mas tem a ver com a irrisão, com o apagar da luz ou

com o excesso de luz, não sei, tem a ver com o fim,

com o que se dirá no fim. As pessoas voltam das

experiências de morte e dizem que é uma luz.

Primeiro parece que ele disse a coisa mais errada,

toda a gente se cala, e de repente foi a mais certa. É

um murro no estômago, mas ao mesmo tempo era o

que era preciso. Que é o teatro do Osborne também…

Sim, o Osborne é muito bruto. Eu nunca tinha

trabalhado um texto dele, apesar de o Já Passaram

quantos anos, perguntou ele do Rui Pina Coelho ser

escrito a partir do Look Back in Anger, e portanto há

uma data de ecos e coisas que já tínhamos estudado.

Confesso que o escavar do texto me surpreendeu

muito. Apesar de o Look Back in Anger ter uma

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importância incrível na história do teatro, acho The

Entertainer um texto melhor. Há uma sensibilidade

muito precoce no texto, que uma pessoa vai

descobrindo, e de uma maturidade incrível. Uma vez

que o Osborne escreveu com 27 anos e nós temos 40,

acho que nós partimos para o texto a pensar “nós é

que lhe vamos dar a maturidade de que ele precisa.” E

não. Já lá está, é muito inteligente, muito rico.

E a tradução de The Entertainer como O Animador?

Porque o Archie entretém, mas não anima nada...

Estamos contentes com O Animador por causa do uso

do português, e da ideia de “desanimador”, de

“desanimação”. Além disso há uma tradição a que nós

não somos alheios: a tradução da peça para português

é O Animador, não é a primeira vez que é feita em

Portugal.

Ainda pensámos no intermédio O Entertainer, porque

a palavra está mais ou menos banalizada em

português. The Entertainer nunca seria. Mas

começámos a gostar – e agora gostamos muito – de

quase não se ouvir inglês na peça. Tirando os nomes

dos bares, porque em Portugal a gente põe os nomes

dos bares em inglês, e ele representaria no “The

Queen” e no “The Duke of Edinburgh”. E na cena

anterior repescámos o “God Save the Queen”, porque é

uma frase punk, podia ser o Sid Vicious a dizê-la, da

maneira como a Jean a diz.

Vamos percorrendo várias referências, nós

trabalhámos na peça, em termos de plasticidade, uma

timeline de teatro, música, artes plásticas, políticas,

que percorre o espetáculo no caminho da sua irrisão, à

medida que ele se vai decompondo, à medida que

aquelas paredes vão saindo, as mesas vão saindo…

Temos um bocadinho de Joni Mitchell, temos um

bocadinho de Nouvelle Vague, de vez em quando umas

técnicas à la Godard, e também de punk e glam rock…

O texto lembra muito The Killing of a Chinese Bookie,

do Cassavetes. Se calhar tem a ver com a história do

cantar. Corre tudo muito mal, ele vai morrer, não

tem hipótese nenhuma, e ainda assim vai anunciar

pela última vez o espetáculo, contente por ter salvo

aquela espelunca, mas que é a espelunca dele: faz o

seu papel.

Nós falámos, claro, desse filme. É uma referência do

espetáculo. Não o vimos em conjunto – uma pessoa

chega a uma certa fase em que já não passa os

processos a ver filmes, pode-se ver um aqui e ali, mas

as pessoas já viram os filmes que tinham para ver. É

uma questão económica talvez? (os processos são cada

vez mais curtos), mas não, é uma questão de alguma

maturidade formal. E de alguma resistência ao pós-

dramático também. Uma resistência à referenciação,

embora eu também pertença obviamente, em termos

formais e de construção, ao pós-dramático... Sinto, e

de cada vez de forma mais clara, que as histórias nos

transportam para uma universalidade, e o acreditar,

ou não ironizar sobre a história que estamos a contar,

nos coloca em zonas que nos permitem

compreendermo-nos melhor. O que somos e fazemos.

Como essa negra. O Archie acaba por ser essa negra

para quem vê a peça, e o ator que está a fazer de

Archie tem que transportar essa humanidade.

Estamos perante a humanidade – no negativo, na zona

dark.

CONVERSA COM ANA ELISEU E JOANA FRAZÃO,

A 7 DE NOVEMBRO DE 2015.

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5 FOTOGRAFIAS DE CENA © Filipe Ferreira

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6

A propósito de O Animador

NOTAS DE RUI PINA COELHO

Notas sobre O Animador e o seu contexto: Kitchen Sink, Beaux Arts Quartet, Free Cinema,

Royal Court, Look Back in Anger.

THE ENTERNAINER A 8 de maio de 1956, no palco do Royal Court Theatre, na Sloane Square, em

Londres, estreava Look Back in Anger, de John Osborne. A data serve hoje

como metonímia para nos referirmos a um momento em que o teatro em

Inglaterra se afastava dos dramas de mesa-de-chá de Terrence Rattigan ou

J.B. Priestley para se aproximar da agrura do realismo social. Textos brutos

onde se apresentava uma nova tipologia de herói: jovens filhos da “working

class” às avessas com a tradição e com o poder estabelecido, rebeldes sem

causa, presos a uma nostalgia por um tempo onde ainda havia causas pelas

quais valia a pena lutar e, simultaneamente, desinteressados do futuro e da

modernidade que Auschwitz veio revelar como impossível. O protagonista da

peça de Osborne, o verborreico Jimmy Porter, haverá de ser o mais

paradigmático destes “Angry Young Men”, visto inevitavelmente como uma

espécie de alter-ego do jovem dramaturgo, até aí um discreto ator de

companhias de província.

Um ano depois, transformado numa celebridade e na voz mais tonitruante da

sua geração, Osborne escreve The Entertainer, uma peça onde reinventa a sua

escrita, aventurando-se para fora das fronteiras do teatro naturalista. Estão

lá, claro, as imprecações violentas e confessionais, a tendência irreprimível

para a auto-destruição, o humor corrosivo e o cinismo erudito – refrãos de

Orborne – mas as estratégias de composição narrativa aproximam-se das de

Brecht (figura tutelar para a o teatro político desta geração). É um texto

singularíssimo dentro do Kitchen Sink Drama deste período. Uma alegoria

rebuscada sobre a decadência de Inglaterra, onde se associa a falência do

music hall à falência de um país, na ressaca da humilhação militar e

diplomática resultante da Crise do Suez (1956) e da consequente perda de

importância de Inglaterra na geometria política de um mundo cada vez mais

bipolarizado entre os E.U.A e a U.R.S.S.. Dito isto, The Entertainer é

sobretudo uma das melhores peças sobre família da dramaturgia britânica:

dura, frontal, árida.

The Entertainer, estreou em abril de 1957, pela English Stage Company, no

Royal Court, com encenação de Tony Richardson. Foi protagonizada por

Lawrence Olivier (Archie Rice) que buscava ali rejuvenescer a sua carreira e a

sua imagem pública, interpretanto “uma da melhores personagens de teatro

da nossa época”, no entender do crítico Kenneth Tynan. Em Portugal, O

animador foi apresentado, pela primeira vez, em 1992, em tradução de João

Alves Falcato e encenação de Lawrence Boswell para a Seiva Trupe.

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KITCHEN SINK No “Kitchen Sink Drama” visa retratar-se a vida da classe trabalhadora do

Reino Unido e do homem comum. São textos produzidos por jovens autores (a

maioria com menos de trinta anos) que começaram a merecer a atenção do

público e da crítica após a estreia de Look Back in Anger, de John Osborne, em

maio de 1956. Genericamente apelidados de “Angry Young Men”, vêm

substituir os universos dramáticos mais convencionais (Rattigan, Priestley)

entrando em confronto com (ou recusando) os valores da ordem social vigente,

questionando abertamente as instituições tidas como basilares: o casamento, a

família, a Igreja e as instituições políticas; e visando denunciar os atropelos às

liberdades individuais, a hipocrisia social e o consumismo. Esta atitude de um

profundo ceticismo em relação à prosperidade resulta, claro está, de um

desacordo em relação às políticas que se iam instituindo como inevitáveis.

O termo, contudo, tem uma origem singular – e deve-se a David Sylvester,

aquele que é tido geralmente como o arquiteto do realismo modernista. Em

meados dos anos cinquenta, se por um lado o crítico de arte John Berger

pugnava por uma arte comprometida e que fosse um meio capaz para

denunciar as injustiças e falar ao seu momento social, David Sylvester era

relutante em aceitar a arte como meio capaz de intervenção política,

reservando a sua ação ao campo estético. Ambos figuras proeminentes no

campo da crítica cultural em Inglaterra, Berger e Sylvester confrontavam-se

quer na organização de exposições, quer nas críticas para os jornais: David

Sylvester no Encounter; John Berger no The New Statesmen. Sylvester,

criticando de forma depreciativa uma tela de John Bratby, titula um artigo

dedicado ao Beaux Arts Quartet, “Kitchen Sink”, afirmando: “Patos, coelhos e

peixes mortos – sobretudo raias – podem-se encontrar aqui, tal como no

matadouro expressionista, mas só como parte de um inventário que inclui

todo o tipo de comida e bebida, todo o tipo de utensílios e ferramentas, a

habitual mobília simples e até as fraldas do bebé no estendal. Tudo menos o

ralo da cozinha? O ralo da cozinha também.” E este termo vai acabar por se

colar a várias expressões artísticas que partilhavam os mesmos ideários

artísticos, estéticos ou políticos. Assim, a tela de Bratby via crítica de David

Sylvester servirá de designação à própria atividade do quarteto e seus

sucessores (“Kitchen Sink School”), à dramaturgia realista do pós-guerra

(“Kitchen Sink Drama”) e ao cinema “New Wave” (“Kitchen Sink Cinema”),

realizadores com certa desenvoltura, e uma evidente propensão para o uso da

imagem falada (Cottinelli Teimo, Chianca Garcia, Arthur Duarte, Leitão de

Barros, António Ribeiro, etc.), bons argumentistas (numa tradição de teatro

de “boulevard”, adaptado ao caso português, por exemplo por André Brun ou

Gervásio Lobato e continuada por João Bastos, José Galhardo, António Lopes

Ribeiro, Ribeirinho, Vasco Santana) e músicos de inspiradas partituras, que

ainda hoje sobrevivem no assobio popular (Raul Portela, Raul Ferrão,

Frederico de Freitas, Fernando de Carvalho, etc.).

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BEAUX ARTS QUARTET Beaux Arts Quartet é um grupo de quatro jovens artistas que, nos primeiros

anos da década de cinquenta (de 1952 a 54) expõe regularmente na Beaux Arts

Gallery, em Londres: são eles John Bratby, Derrick Greaves, Edward

Middleditch e Jack Smith. Dirigida pela pintora Helen Lessore (de 1951 a 65),

esta galeria de arte era o palco privilegiado para a moderna pintura realista. E

era esta a ligação entre os quatro jovens artistas. Ainda que se conhecessem

todos do prestigiado Royal College of Art, não se apresentavam como um grupo

que partilhasse um ideal estético ou um manifesto programático: a constituição

deste “quarteto” fazia-se somente pela constatação de uma prática artística e

pela partilha de interesses comuns: uma atração pelo quotidiano e por cenas da

vida doméstica, onde são intervenientes personagens banais, que vivem vidas

normais, revelando assim um lúcido comentário à sociedade inglesa do pós-

guerra, marcada por um desencanto, por políticas de austeridade, por

crescentes assimetrias sociais e conflitos de classe. Com efeito, os artistas do

Beaux Arts Quartet apresentam-se juntos somente uma única vez (na Heffer

Gallery, Cambridge, em 1955. Contudo, e ainda que fossem todos portadores de

uma voz artística singular e individualizada, o seu trabalho dá conta de uma

insatisfação comum. Colocavam-se todos do lado da oposição ao pensamento

dominante e batiam-se todos, ativamente, pela representação das verdadeiras

condições de vida das classes mais baixas e de uma geração trilhada pelo

esforço de guerra e pelos constrangimentos do pós-guerra. Mesmo apesar da

sua atitude “contra-corrente”, vão ser os escolhidos para representar Inglaterra

na Bienal de Veneza de 1956 (juntamente com Ivon Hitchens e Lynn

Chadwick).

FREE CINEMA

“Free Cinema” corresponde ao título genérico dado a uma série de seis

programas onde se mostravam pequenos documentários, no National Film

Theatre (NFT), em Londres, de fevereiro de 1956 a março de 1959, organizado

por Lindsay Anderson, Tony Richardson, Karel Reisz e Lorenza Mazzeti. Nas

seis séries de apresentações incluíam-se não só cineastas britânicos (nos

ciclos “Free Cinema”; “Free Cinema 3: Look at Britain”; e “Free Cinema 6: The

Last Free Cinema”), mas também alguns estrangeiros: Lionel Rogosin,

Georges Franju e Norman McLaren (“Free Cinema 2”); Roman Polanski,

Walerian Borowcyzk e outros realizadores polacos (“Free Cinema 4: Polish

Voices”); e também Claude Chabrol e François Truffaut (“Free Cinema 5:

French Renewal”). O “Free Cinema” é criado por razões essencialmente

pragmáticas: Anderson, Richardson, Reisz e Mazzetti uniram esforços para

conseguir mostrar os seus trabalhos. Mas rápido terão percebido que, não

obstante serem trabalhos diferentes, partilhavam uma atitude comum em

relação ao cinema. O termo “free” indica que os filmes são feitos sem

constrangimentos impostos pelas bilheteiras ou por políticas de propaganda.

Esta liberdade estendia-se também a uma nova atitude perante a realização,

oposta quer ao cinema de cariz mais comercial, quer à tradição

documentarista dos anos trinta, na linha de John Grierson. Formalmente, os

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filmes “Free Cinema” partilhavam também várias características: eram

(quase) todos de curtas dimensões, filmados a preto-e-branco, de câmara na

mão e na rua; de parcos recursos financeiros; com uma utilização discreta de

voz-off ou de comentários; sem grande interesse pela continuidade narrativa

e com um uso impressionista de som e edição. Os filmes “Free Cinema”

apresentados no National Film Theatre, por cineastas britânicos, integraram

títulos como: O Dreamland (real. Lindsay Anderson, 1953) – um olhar

altamente crítico e agressivo sobre o parque temático Dreamland, em

Margate, Londres; Momma Dont’t Allow (real. Karel Reisz e Tony

Richardson, 1956) – um documentário sobre um típico sábado à noite num

clube de jazz, em Wood Green, North London, desde o chegar a casa de

rapazes e raparigas, vindos do trabalho, o preparar das roupas e

maquilhagens, até ao sôfrego fim de festa; Together (real. Lorenza Mazzetti,

1956) – uma abordagem lírica (e, ao contrário dos outros filmes, ficcionada)

à vida da classe trabalhadora do East End londrino, através de dois

estivadores surdos-mudos, que servem como pivots para perscrutar labirintos

de ruas bombardeadas e estreitas, os pubs e as casas, as comidas e os hábitos,

em suma, toda a atmosfera do dia a dia da vida da classe trabalhadora;

Wakefield Express (real. Lindsay Anderson, 1952) – documentário sobre um

jornal de província; Nice Time (real. Claude Goretta e Alain Tanner, 1957) –

sobre a vida noturna em Picadilly Circus, entendida como a alegoria

necessária para comentar as disfóricas aspirações dos jovens; The Singing

Street (real. N. Mclsaac e J.T.R. Ritchie, 1952) – onde se mostra a cidade de

Edimburgo, acompanhando uma série de jogos, lenga-lengas e cantigas

infantis, interpretadas por um grupo de sessenta crianças; Every Day Except

Christmas (real. Lindsay Anderson, 1957) – centrado nos trabalhadores do

mercado de flores de Covent Garden, tentando dar conta da dimensão poética

do dia a dia, celebrando a dignidade do trabalho das classes mais baixas;

Refuge England (real. Robery Vas, 1959) – filme sobre o périplo de um

refugiado húngaro em Londres; Enginemen (real. Michael Gribsby, 1959) –

onde se acompanha, durante dezoito meses, a vida de maquinistas em Newton

Heath, perto de Manchester, captando o sentimento de perda e perplexidade

perante as rápidas transformações na rede ferroviária britânica; We Are the

Lambeth Boys (real. Karel Reisz, 1959) – documentário sobre a cultura

juvenil, mostrando desabridamente a vida de um grupo de jovens no trabalho

e no lazer, sublinhando as suas frustrações, anseios, sonhos e, sobretudo,

modos de vida; ou Food for a Blush (real. Elizabeth Russell, 1959) – um

documentário atípico, de tom surrealista, com sequências narrativas

ficcionadas, sobre as desavenças de um casal, mas visando atingir o

sentimento de vazio da geração que estaria na casa dos vinte anos em 1955

(data de rodagem do filme). Este movimento (ou, pelo menos, atitude em

relação ao cinema) irá desembocar em “New Wave Cinema”, ou “Kitchen Sink

Cinema”, do final dos anos cinquenta.

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ROYAL COURT Uma das medidas que terá tido uma repercussão mais importante na vida

cultural britânica do pós-guerra foi o “Education Act” de 1944. Muito

sumariamente, esta medida permitirá a uma geração de filhos de classes

mais baixas o acesso a uma educação que tradicionalmente lhes seria

vedado. Será esta geração de jovens que escreverá e criará em meados da

década de cinquenta / início de sessenta as obras mais representativas. Tão

importante quanto isso, será esta geração que lerá os romances, comprará os

bilhetes para as exposições, para o cinema, para os espetáculos. George

Devine e a companhia que dirigia – a English Stage Company sediada no

Royal Court de Londres – em Sloane Square –, transformar-se-á num dos

mais excitantes epicentros culturais de Londres, empreendendo uma política

de apresentar “[u]ma dramaturgia nova e arrojada, internacional e local, que

procurava tratar assuntos relacionados com a maneira como o indivíduo se

relaciona ou como é formado pela sociedade em que está inscrito/a” (Batty

2005). A EST foi formada com o intuito de dotar o teatro britânico de “um

local para o dramaturgo contemporâneo e, em especial, para o dramaturgo

britânico” (Devine). Os métodos de trabalho dentro da ESC insurgiam-se

pela recusa dos ditames do teatro comercial, sujeito à ditadura da bilheteira

e das convenções. Para isso, contavam com um elenco permanente, com um

treino comum e em que o autor dramático teria um papel preponderante. A

crença na renovação do teatro pela mão do dramaturgo é notória desde o

início da atividade da ESC. A sensação generalizada é a de que seria preciso

renovar os processos de trabalho para mudar a paisagem teatral em

Inglaterra, entendendo-se que o apoio a novos dramaturgos seria de

importância vital.Os autores dramáticos são assim tidos como o elemento

pivot para a renovação do reportório teatral em Inglaterra, dominado até

essa data por peças oriundas de França, de timbre farsesco ou cómico e,

também, de matriz absurdista; ou então da tradição britânica de cultura

high-brow de que Terence Rattigan e J.B. Priestley seriam os mais insignes

representantes. A estes novos autores é pedido um reportório que interpele

os novos tempos e as novas gerações. Para isso, eram-lhes oferecidas

condições singulares de trabalho: intervinham nos ensaios, circulavam

livremente por todas as etapas do processo de criação, traduziam, reuniam e

discutiam com os encenadores – em suma, estavam presentes em todos os

momentos da montagem do espetáculo.

LOOK BACK IN ANGER

Há um ano em particular que no pós guerra britânico se revela como um

marco determinante, imprimindo uma espécie de aura mítica sobre o seu

momento histórico: 1956. É, na verdade, um ano que condensa muitas das

tensões dos anos transatos e dos que se lhe seguiriam. É o ano da Crise do

Suez; da invasão da Hungria pelas Tropas do Pacto de Varsóvia; das

denúncias dos crimes de Estaline por Khrushchev no XX Congresso do

Partido Comunista; da morte de Bertolt Brecht e da temporada do Berliner

Ensemble em Londres; da estreia de Look Back in Anger, de John Osborne,

com encenação de Tony Richardson, pela English Stage Company, no Royal

Court Theatre, a 8 de maio; do destaque dado a Francis Bacon na exposição

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Masters of the British Painting 1890-1950, no Museum of Modern Art, em

Nova Iorque; em que o Beaux Arts Quartet representa a Inglaterra na Bienal

de Veneza e é atribuído o Prémio John Moore a Jack Smith; da estreia de

The Quare Fellow, de Brendan Behan; da publicação de The Outsider, de

Colin Wilson, um romance peculiar, onde se figura um anti-herói

existencialista, num discurso literário-filosófico, com imediato êxito crítico;

é o ano em que há distúrbios durante as projeções de Rock Around The

Clock, com Bill Haley e da estreia de Heartbreak Hotel, de Elvis Presley, de

Howl!, de Allen Ginsberg e da colagem de Richard Hamilton, “Just What it

is that Makes Today’s Homes so Different, so Appealing”, um trabalho onde

denuncia em tons paródicos os tiques de um consumismo fácil: a cultura de

massas, o culto do corpo e do desporto, os inúmeros eletrodomésticos. É

também o ano em que milhares de britânicos têm em suas casas um

“eletrodoméstico” novo, mais concretamente 1.110.439 televisores, nas

contas de Stephen Lacey (1995) comprados três anos antes para assistirem à

coroação de Isabel II, abrindo assim caminho à emergente cultura de

massas.

Mas, no meio de todos estes acontecimentos, um momento se destaca: a

estreia em palco do texto de John Osborne: “retrospetivamente, 1956

tornou-se um annus mirabilis… grosseiramente, Suez e Look Back in Anger

parecem fazer parte do mesmo acontecimento”, escrevia Robert Hewison.

Há, no teatro britânico, uma narrativa convincente que toma a data de

estreia de Look Back in Anger como um momento inaugural. David Edgar,

reconhecendo igualmente a relevância da data: “Oito de maio de 1956, foi a

última grande viragem no teatro britânico… Certamente, quer Osborne goste

ou não (e ele provavelmente não gostará), todas as subsequentes ondas do

teatro britânico contemporâneo seguiram a agenda que ele estabeleceu”

(Edgar). Assim, a estreia deste texto surge na história do teatro em

Inglaterra com uma importância superlativa e como o início de uma

“revolução do dia para a noite” (Taylor), central para a expressão dos

sentimentos mais característicos da época e para a cartografia emocional de

uma geração em revolta. Na crítica e na história do teatro em Inglaterra é

frequente este momento ser referido como algo que surge de rompante e que

tudo transforma: “The phrase ‘breakthrough’ is common [Williams;

Hinchliffe]; one critic says the play ‘breached the dam’ [Tynan], another that

it ‘breached the barrier’ [Watt]; more prosaically, Tynan compares Look

Back in Anger to a burp in public [...]. Hobson calls a chapter on the period

‘The Great Uprising’ [1984]; Elsom calls his ‘Breaking Out’ (1979). According

to Kitchin, ‘something was banking up under the stodgy surface of life in

mid-century England’ (1962)”. (Rabellato)

A ideia generalizada na construção histórica deste momento é que se tratou

de uma explosão que tudo transfiguraria: “a 8 de maio de 1956, a ESC deixou

cair uma bomba atómica no palco do RCT”, escrevia-se no Streatham News.

Para Alecz Sierz, autor da obra In-Yer-face Theatre (2001), 1956 trata-se do

“ano zero” – expressões que dão conta do carácter revolucionário desta

estreia.

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7

Acerca a peça EXCERTOS SOBRE THE ENTERTAINER: SOBRE A ORIGEM DA PEÇA, ARCHIE RICE, LAURENCE OLIVIER NA PEÇA,

A RECEÇÃO NA ALTURA DA ESTREIA, POLÍTICA, TEATRO E AMBIGUIDADE

A origem da peça, pelo próprio Osborne

Uma noite no outono de 1956, fui sozinho ao Chelsea Palace. Max Milller estava em cartaz. Enquanto esperava

que ele entrasse em cena, vi um número cujo ponto alto era uma imitação de Charles Laughton a fazer de

Quasimodo. Já o tinha visto. Uma luz verde e fumarenta rodopiou sobre o palco e uma incrível banalidade

prevaleceu durante alguns teatrais segundos, o drama e a poesia, sustentáculos do music hall, a aguentarem-se

epicamente. Esta, dir-me-iam os críticos mais tarde, foi a influência brechtiana na peça.

O music hall estava a dar os últimos suspiros, mas ainda havia algumas casas de espetáculos dentro e à volta de

Londres que eu podia visitar, ainda não completamente derrotadas pela cinzenta televisão da sala de estar. Tomei

notas para a peça. Sabia que tinha encontrado o problema – lembrando-me do dictum de George Devine segundo

o qual todos os problemas são técnicos – e até já estava suficientemente confiante para lhe dar um título. Andava

a ouvir um disco de um trompetista chamado Bunk Johnson. Ele era uma espécie de lenda, cuja reputação tinha

sido relançada por uns entusiastas que o encontraram a trabalhar no Sul profundo como camionista, velho e

esquecido. Compraram-lhe uma dentadura nova e ele fez um breve regresso. Uma das músicas que gravou foi um

velho número do Scott Joplin, “The Entertainer”. Era gracioso e tocante e pareceu-me apropriado para a peça.

No início de fevereiro de 1957, o George telefonou-me. Ele tinha muito cuidado para não pressionar os autores,

por isso fiquei surpreendido quando me perguntou: “Como vai a peça, meu caro rapaz?” “Vai bem.” “Quanto é que

já tens?” Isto era muito incaracterístico. Ele conhecia os meus poderes de evasão. “Ah, acabei o segundo ato.

Quase.” “Estou a ver. Custa-me perguntar, mas surgiu uma coisa. Não poderás dizer-me se há um papel para o

Laurence?” “Laurence quem?” “Olivier.”

O George convenceu-me, contra o que era a sua prática. “Importavas-te muito se eu te pedisse para me dares

os dois primeiros atos?” Acreditando que estávamos ambos enganados, concordei. A resposta de Oliver foi

imediata e espantosa. Ele queria fazer o papel de Billy Rice, o pai de Archie. O facto de ele ter só lido dois atos

confundiu toda a gente. Uma semana mais tarde liguei ao Tony Richardson, o encenador, e disse-lhe que tinha

acabado. “Lê-me a última página”, disse ele, e eu murmurei o discurso final do Archie ao telefone, até à última

frase, que Oliver achou incompreensível e tornou devastadora. “Digam-me onde vão estar a trabalhar amanhã à

noite... que eu irei ver-VOS.” Seria o rosto de Oliver mas, esperava eu, a minha voz – e possivelmente o meu

próprio epitáfio.

John Osborne, Almost a Gentleman, 1991

Sobre Archie Rice

Com Archie, Osborne criou uma das suas personagens envelhecidas mais bem-sucedidas e dolorosamente

patéticas. Archie não tem nada para oferecer a não ser o seu próprio medo e irrisão, vendendo o último farrapo de

dignidade frente a um público indiferente e hostil. Prostituindo o seu ofício, parece mais obscenamente exposto

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do que as mulheres nuas no seu espetáculo. Sozinho na ribalta, a cara escondida debaixo de camadas de

maquilhagem, as suas incertezas, ressentimento e medo estão mais à vista do que em casa. O “eu” privado de

Archie tem uma armadura teatral, enquanto a sua persona pública está nua e vulnerável. A sua estratégia em casa

é a mesma que no palco: convida à irrisão de que espera ser alvo e prefere dramatizar a sua abjeção do que sofrê-

la. […]

Em Archie, a exibição consciente do ser ganha precedência sobre o ser em si. É difícil saber o que ele

verdadeiramente pensa ou sente. […] Tendo perdido o idealismo da juventude, este Archie de meia-idade

representa todos aqueles que não tem escolha senão agarrarem-se às ruínas de uma Inglaterra transformada. É

por causa de Archie que The Entertainer é agora recordado como uma peça sobre o estado da nação, uma

representação elegíaca do declínio da Grã-Bretanha do pós-guerra. […]

No entanto, a peça consegue dirigir a empatia do público não para Jean, que age de acordo com os seus

princípios, mas para Archie, que vai para a prisão por causa da sua determinação inabalável em travar a sua

batalha com o homem dos impostos, no fim.

David Pattie, Modern British Playwriting: The 1950s. Voices. Documents. New Interpretations, 2012

Sobre Laurence Olivier na peça

O empenho de Olivier na peça de Osborne foi um momento decisivo no teatro britânico do pós-guerra: que

teve enormes implicações tanto para o Royal Court como para o próprio Oliver. Assinalou o reconhecimento por

parte da ordem estabelecida de que o centro de gravidade teatral se estava gradualmente a deslocar do West End

para Sloane Square [onde está o Royal Court Theatre]. Seguindo a liderança audaz de Oliver, os seus pares

acabaram por segui-lo, incluindo Gielgud, Richardson e Guiness. The Entertainer não mostrou apenas o maior

ator da Grã-Bretanha a aliar-se ao jovem escritor mais vibrante do país: também levou a uma renovação pessoal

em Oliver […].

Michael Billington, State of the Nation: British Theatre since 1945, 2007

Obrigado. Obrigado pela emocionante e encantadora peça que estará sem dúvida na mesma gaveta de Teatro

de Repertório que O Cerejal e The School for Scandal antes do final do século. Obrigado pelo papel mais

profundamente cativante, com exceção talvez Macbeth e Lear, de que me lembre – certamente o mais divertido.

Agradeço a peça de todo o coração, pelo orgulho que me dá entrar nela, e pela alegria que me dá fazer este papel.

Espero não fazer merda hoje à noite.

Carta de Laurence Olivier para John Osborne, 10/04/1957

Receção da peça na altura da estreia

O Sr. Osborne teve a grande e brilhante ideia de colocar toda a Inglaterra contemporânea num só e único

palco. The Entertainer (Royal Court) é o diagnóstico da doença que aflige atualmente a nossa raça despreocupada.

Escolhe, como microcosmos nacional, uma família de vaudevillianos em decadência. O avô, digno e reformado,

representa a graciosidade eduardiana, pela qual o Sr. Osborne tem uma nostalgia profundamente submersa. Mas

a figura-chave é o pai: Archie Rice, um homem de canto e dança na casa dos cinquenta reduzido a aparecer duas

vezes por noite numa revista de nus. Foi este o papel que tentou Sir Laurence Olivier a voltar ao Royal Court

passados vinte e cinco anos […].

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Para mostrar a disparidade irónica entre a inteligência de Archie e o uso que ele faz dela, o Sr. Osborne

encontrou um dipositivo espantosamente original. Dispõe o programa como uma sequência de números de

variedades, e salta abruptamente de Archie em casa, envolto em gin, para Archie em palco, a fazer olhinhos e

trejeitos e a provocar o maestro […]. Quando Archie está fora de cena, a ação decai. O pai dele é um chato e os

filhos uns zeros à esquerda: a coisa mais inquietante na peça é a incapacidade do autor em defender a juventude.

Há o filho pacifista que canta uma elegia ao irmão morto, mas pouco mais faz de momento. E há Jean, a filha de

Archie, produto do Suez, que atinge a maturidade na manifestação de Trafalgar Square, mas parece ter perdido o

ardor político logo que passou o velho brilho da adrenalina. […] Esta personagem, juntamente com a mulher de

Archie […], reforça a sensação de que o Sr. Osborne ainda não consegue escrever diálogos convincentes para

mulheres. Com este novo tema, tão amplo, parece que teve mais olhos que barriga. Apesar de os membros da

família de Archie discutirem incessantemente, é raro construírem uma ligação humana: e para convencer um

público de que são da mesma família não basta pô-los a chamarem-se desgraçados uns aos outros. […]

Em suma: o Sr. Osborne planeou um mural social gigante e executou-o numa paleta de cores demasiado

restrita. Dentro dessa gama, escreveu um dos grandes papéis da nossa era. Archie é um homem verdadeiramente

desesperado, e apresentar o desespero é uma difícil realização dramática.

Kenneth Tynan, “A Whale of a Week”, Observer, 14/04/1957

Política, teatro e ambiguidade

Aquilo que Osborne percebeu instintivamente foi a teatralidade inerente ao Suez: uma crise caracterizada por

mentiras e evasões que levou à queda do seu protagonista, [o Primeiro-Ministro] Anthony Eden, que se demitiu

em janeiro de 1957. Nas suas memórias, Osborne fala das reações exageradas e “teatrais” à crise do Suez. […] Mas

Osborne, como um verdadeiro artista, também viu que havia algum laço simbiótico entre o último gesto fútil do

imperialismo e o music hall em declínio. Todas estas salas de espetáculo tinham sido construídas no apogeu do

expansionismo vitoriano e eduardiano, como os seus nomes triunfalistas apontavam: o Chiswick Empire, o

Hackney Empire, o Liverpool Empire. E na peça o próprio teatro torna-se o símbolo de um país que vive à custa

das memórias de uma grandeza passada, e é forçado a confrontar a sua atual impotência global. Como diz o herói

cómico de Osborne, Archie Rice, no seu último número: “Cautela com esses aplausos, isto é um edifício

velhíssimo.” Mas o teatro não é só uma metáfora em The Entertainer: impregna o texto todo. […]

Mas o que faz de The Entertainer uma grande peça é o modo como capta com precisão aquilo a que Osborne,

nas suas memórias, chama “a confusão de emoções em relação ao Suez e à Hungria”. É como se as batalhas que

estava a ser travadas, na altura, nas ruas inglesas, nos bares e nos editoriais dos jornais encontrassem eco no

interior da alma dividida do próprio Osborne. Lamenta o declínio do music hall e da cultura comum que ele

representava: ao mesmo tempo, está consternado como o inútil desperdício de vidas numa aventura imperialista.

Respeita a dignidade e elegância do avô Billy Rice: também compreende o imperativo político que leva a filha de

Archie, Jean, a protestar em Trafalgar Square. A ambivalência de Osborne manifesta-se ainda mais claramente no

retrato de Archie Rice. Archie é o cómico de terceira categoria que conta piadas péssimas com um enfado morto-

por-detrás-dos-olhos e que joga lascivamente com sua ambiguidade sexual. Em privado, é também uma criatura

desprezível; está preparado para abandonar a mulher triste e bêbada para manter viva a sua revistazinha de nus, e

pronto a dar cabo do pai para evitar a falência e prisão. Mas […] Osborne mostra uma compaixão complexa para

com o seu herói. Osborne reconhece o estoicismo que permite a Archie morrer duas vezes por noite frente a um

público insensível: também compreende o instinto animal que, em casa, leva Archie a alimentar a festa de modo a

camuflar as notícias sobre o filho, Mick, ter sido feito refém no Suez.

Michael Billington, State of the Nation: British Theatre since 1945, 2007

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8

As personagens segundo Osborne APRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENS ATRAVÉS DAS DIDASCÁLIAS: BILLY, JEAN, PHOEBE, ARCHIE, FRANK

NÚMERO UM

Ao fundo, uma cortina transparente. Atrás dela, uma parte da cidade. À frente, uma plataforma elevada à

qual conduzem uns degraus. Andares atarracados e os alizares duma porta servirão de parede. O rompimento é

limitado lateralmente por bastidores. Diferentes cortinas podem descer nas várias cenas, para delimitar as

áreas de representação. Além disso, um telão e bambolinas vulgares. Há duas portas, à Esquerda e à Direita da

boca de palco. A iluminação é a que se esperaria encontrar num tal local — tudo bem batido, brilhante e duro,

ou um simples projetor. As cenas e os interlúdios devem ser iluminados como se constituíssem uma simples

sequência de quadros. O mobiliário e os adereços são os basicamente indispensáveis para um curto sketch. De

ambos os lados do proscénio há uma moldura onde aparecem os números de ordem dos quadros. Os problemas

decorrentes são essencialmente os mesmos com que, na sua ronda das duas sessões, se defronta, o diretor de

cena de qualquer teatro, em todas as manhas de segunda-feira, da sua vida de trabalho.

Música. A mais recente, a mais barulhenta, a pior. Cortina transparente à boca de cena. Nela estão pintadas

enormes raparigas nuas; abanando leques de cores berrantes e em alegre debandada. A todo o comprimento lê-

se em grandes letras: ROCK’N ROLL NEW’D LOOK

BILLY RICE é um donairoso homem nos seus setenta anos. Tem grande orgulho no seu físico, resultado de

toda a vida ter sido considerado uma “esplêndida figura de homem” É magro, aprumado, atlético. Toda a sua

pessoa resplandece, evidenciando um meticuloso tratamento. O cabelo está completamente grisalho e é farto e

sedoso, pelo emprego diário e vigoroso da escova. A indumentária terá provavelmente uns vinte e cinco anos —

incluindo os sapatos de verniz e biqueira— mas é elegante e está bem passada. O bracelete do relógio brilha, o

colarinho está preso com um alfinete de gravata por baixo do laço preto muito justo, o feltro castanho é usado

ligeiramente de banda. Fala com uma dicção cuidada, distinta, mas que não é senhorial nem parece gasta pelos

anos). Na verdade, não se trata de um sotaque de classe, mas de época. É raro ouvi-lo hoje em dia.

Sobe a cortina transparente da boca de cena.

Ele desce pelo Centro, depondo sobre a mesa um jornal dobrado, duas garrafas de litro de cerveja e um

telegrama, ao qual deita uma rápida olhadela. Cruza em direção à porta da Direita Baixa e atravessa-a,

cantando harmoniosa e alegremente:

BILLY

Jesus Cristo, estende-me os braços

Deixa-me acolher em ti!

Reaparece em mangas de camisa, a enfiar um pesado casaco de lã por cima do colete. Sem interromper o

canto, senta-se, enche um copo de cerveja e põe-se a desapertar os sapatos. Vai metê-los ao Centro Alto, numa

caixa forrada com papel de seda. Bebe pelo copo de cerveja. Puxa de uma lima de unhas e fica de pé a limpar as

unhas como um perito no assunto. É como que o sacudir de uma velha e imaginária mancha de poeira.

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Ele liberta o capacho e abre a porta, mostrando JEAN RICE. É uma rapariga de cerca de vinte e dois anos,

morena, de dentes ligeiramente salientes e com falta de vista. É do tipo a que a maioria das pessoas chamaria

«simples», mas o génio e a ternura já começaram a cravar os seus pequenos sulcos em volta do nariz e dos

olhos. A boca é grande, generosa.

NÚMERO TRÊS

A música extingue-se. A cortina sobe, mostrando BILLY, JEAN e PHOEBE. PHOEBE tem cerca de sessenta

anos e uma cabeleira loura, outrora atraente, que ainda recebe uma boa dose de cuidado. O rosto está pintado,

não com grande perícia. Ela nunca dá atenção aos outros— tal como a maioria das pessoas nesta casa. Ou

então, se é obrigada a estar sentada a escutar alguém, em regra fica abstrata e abatida, sentada na ponta da

cadeira, enrolando os dedos no cabelo. Precisamente neste instante, ela encontra-se toda afogueada — como

uma criança — prestes a entusiasmar-se.

NÚMERO CINCO

ARCHIE entra apressado, de braços carregados com um cartuxo de compras e garrafas, alegremente

despreocupado. ARCHIE RICE anda por volta dos cinquenta. O seu. cabelo é liso, escovado, quase grisalho. Usa

óculos e caminha ligeiramente inclinado para a frente, jeito que lhe vem de uma espécie de afetação

improvisada que ele inicialmente assumiu há trinta anos, ao deixar um desses externatos londrinos que em

regra conseguiram produzir uns aventureiros da classe média, bem como gerentes de banco e poetas. As

patroas adoram-no e mimam-no, por ele ser tão afável e tão cavalheiresco como imediatamente se vê. Alguns

dos artistas seus camaradas às vezes até lhe chamam «professor», tal como poderiam chamar «coronel» a um

capitão do exército reformado. Ele sorri bondosamente perante esta simplicidade, muito consciente de não

pertencer a qualquer classe, e vai representando o seu papel o melhor que pode. Dispensa uma certa

benevolência, a seu pai, que venera profundamente. Trata complacentemente a sua mulher, PHOEBE, por quem

tem uma sincera compaixão. Foi isto que evitou que a abandonasse há vinte anos. Ou será simplesmente, como

muitos insinuariam, porque lhe falta a coragem? De qualquer modo, não faz segredo das suas eternas

aventuras com outras mulheres — reais e imaginárias. Faz parte da sua compaixão, da sua condescendência

um tanto sobranceira, do seu mito pessoal. Concede a sua proteção ao filho mais velho, Frank, que carece de um

cunho próprio de indulgência, estoicismo e brilho e por quem ele exibe uma adoração pantomímica, quase

irreal. Pelo contrário, o carinho pela sua filha JEAN é mais cauteloso, velado, inseguro. Desconfia da sua

inteligência, consciente de que ela pode ser mais forte do que os outros. Tudo o que ele diz é quase sempre muito

cuidadosamente «atirado». Aparentemente distraído — é uma técnica de ator, isso livra-o de parecer

comprometido com alguém ou com alguma coisa.)

NÚMERO SEIS

Entra ARCHIE, acompanhado de FRANK. FRANK é um rapaz pálido e tímido, de cerca de dezanove anos.

Ele deixou-se acomodar ao papel de quem «dá as deixas» ao Archie, pois que este convívio parece ser um

cordial e razoável sucedâneo das relações de pai e filho, do agrado de ambos. É impulsivo e senhor de uma

enorme sensibilidade que facilmente transborda. É jovem e provavelmente assim permanecerá sempre.

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NÚMERO DOZE

À Esquerda Baixa, ARCHIE e o MANO BILL são fortemente batidos pela luz dum projetor. À Direita Baixa,

foco de projetor sobre JEAN e GRAHAM DODD. O MANO BILL tem todo o aspeto de um distinto advogado,

guindado ao mais alto escalão do sucesso; tem o aspeto e é. GRAHAM DODD tem muitíssimas probabilidades

de vir a ser como ele daqui a uns trinta anos, desde que triunfe. Há por aí pessoas como estas em abundância -

bem vestidos, muito senhores de si, bem educados, de capacidade emotiva e criadora praticamente desprezível,

tão limitada ela é. São de uma inaptidão a toda a prova para se associarem ao, seu semelhante, em

circunstâncias mesmo ligeiramente diferentes daquelas que lhes são próprias. GRAHAM DODD não necessita

muita descrição. Se não forem capazes de o reconhecer, a razão é só uma. Estes dois diálogos são independentes

um do outro, mas decorrem entrecruzados.

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Archie Rice e o músico

Um par de perguntas a João Pedro Vaz

1. Quem é Archie Rice?

É um artista falhado de music hall (ou um artista

de music hall falhado). É um ‘looser’; uma pessoa

de grande genuinidade; um niilista que parece

acreditar na redenção pela arte; um preguiçoso

cheio de esquemas que critica ferozmente as

‘pessoas normais’ – é um poço de contradições,

mas, ao mesmo tempo tem ‘tanta piada’.

2. O estado da arte é tão desanimador como esta

peça deixa entrever?

É do estado de um tipo de espetáculo muito

específico que se fala nesta peça. Não é

generalizável – o chamado mundo do espetáculo

com três gerações de comediantes de musical a

discutirem o ‘métier’: ‘that’s entertainment!’

Um par de perguntas a Paulo Furtado

1. Não é a primeira vez que compões

musicalmente para um espetáculo de teatro.

Como têm sido estas colaborações?

Todas as colaborações que tenho tido em teatro

têm sido fundamentais para o meu crescimento

como artista. A compreensão do papel da música

que tens de ter quando se trabalha em teatro é

muito delicada, ao mesmo tempo que as variáveis

com que se tem que lidar em tempo real são

muito mais do que, por exemplo, no cinema. É

muito entusiasmante, porque permite-me usar e

experimentar linguagens completamente

diferentes de espetáculo para espetáculo, ao

mesmo que a influência que a música pode ter

em todas as camadas do objeto final é muito

grande.

2. Porque decidiste, neste espetáculo, interpretar

ao vivo?

Creio que era quase incontornável. Por um lado,

pela relação musical entre o Archie e o Charlie e,

por outro, porque senti que era necessário criar

uma espécie de panela de pressão sonora, muito

forte e tensa, para apoiar a viagem emocional

desta família.

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O mais belo grito EXCERTOS E FRASES SOBRE A VOZ, DO DIZER AO CANTAR

Jonathan Swift Tendo em conta que o ar é um corpo com peso, e que por consequência

(segundo o sistema de Epicuro) desce continuamente, ele descerá

forçosamente ainda mais depressa se for arrastado pelo peso das palavras,

pois estas são também corpos com muito peso e densidade, se formos a

julgar pela profunda impressão que nos causam e com que nos deixam.

Devem portanto ser lançadas de uma certa altitude, senão não podem nem

seguir na direção certa, nem cair com força suficiente.

John Osborne

Tudo o que ele [Archie Rice] diz é quase sempre muito cuidadosamente

“atirado”. Aparentemente distraído – é uma técnica de ator, isso livra-o de

parecer comprometido com alguém ou com alguma coisa.

André Moulonguet e Georges

Portmann

As cordas vocais podem vibrar na ausência de qualquer corrente de ar

e sob o efeito apenas de estímulos nervosos.

Djalâl-od-Dîn Rûmî

Existe uma voz que não utiliza palavras. Ouve!

William Faulkner

Acredito que quando a última badalada do juízo final tiver soado e

desaparecido da última rocha inútil, pendendo sem maré no último

anoitecer rubro, que mesmo nessa altura haverá ainda um som: o da voz

do homem, débil e incansável, ainda a falar!... não só porque apenas o

homem, entre todas as criaturas, tem uma voz incansável, mas porque o

homem tem alma, um espírito capaz de compaixão, sacrifício, e

perseverança.

Joni Mitchell

A mágoa é tão fácil de expressar mas tão difícil de dizer.

Carl Jung

Quando uma pessoa não é entendida deve, como regra, baixar o tom de

voz, porque quando uma pessoa fala suficientemente alto e não é ouvida é

porque os outros não querem ouvir. Mais vale começar a murmurar com

os seus botões, aí os outros ficam curiosos.

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Mário Andrade

A voz cantada quer a pureza e a imediata intensidade fisiológica do som

musical. A voz falada quer a inteligibilidade e a imediata intensidade

psicológica da palavra oral. Não haverá talvez conflito mais insolúvel.

Johnny Cash

Tens uma canção que estás a cantar das entranhas, queres que o

público a sinta nas entranhas também. E tens de os fazer pensar que és

um deles, sentado lá com eles também. Eles têm de se conseguir ligar com

o que tu estás a fazer.

Óscar Mascarenhas

A nova Cena do Ódio com muito amor para dar — aconteceu no sábado:

Zé Mário, quase sem voz, agradece os aplausos de um público de pé, que

saúda o que lhe parece ser o final do espetáculo. Pela enésima vez, pede

desculpas pela rouquidão e afiança que, “sem ironia”, o Teatro do Mundo

reembolsará os descontentes. Ninguém o leva a sério, por mais que ele

insista. Com um dedo, chama o sobrinho Tó e coloca-o à direita, junto da

estante com textos, para que lhe vire as folhas. Apeteceu-lhe oferecer algo

de muito de dentro ao pessoal ali reunido. Pega na viola e diz que escreveu

há dois anos o que vai apresentar a seguir. Vai sair tal como lhe brotou na

noite em que o compôs. Sem retoques e “desartistizado”. Chama-se F.M.I.

e, “é claro, é de intervenção”. Em aparte: “Pudera! Com um título destes...”

Meio declamado, meio cantado, arranca com versos sarcásticos ao

momento político dos tempos de Mota Pinto. Quando parecia já cansado

de “bater no ceguinho”, eis que Zé Mário se vê apoderado pelas palavras e

um enorme vulcão interior começa a romper. Empolga-se. Vai desfiando

monólogos em série, modulando a voz e compondo máscaras adequadas

a cada tipo que satiriza e que são, aqui e ali, algumas frações dele próprio.

Desfilam discursos derrotistas — mas tão naturais — em todos os tons: os

que “mandam vir” para não estarem calados; os que procuram justificar a

sua cobardia querendo nela comprometer toda a gente; os que embarcam

de bom grado na conversa do mais forte; os que farejam os tempos que

hão de vir e se vão adaptando; os que leem vitórias na derrota; os que

trocam o protesto pelo resmungo. Quase patético. Até ele, Zé Mário, não

resiste. Grita para que o deixem em paz. Quer estar só. Entra em crise.

Rejeita tudo. O que de melhor se pintou do 25 de abril, agora que o vê

tão perdido. Goza amargamente com tudo aquilo.

O crescendo atinge o grito. Explode em palavrões. É o transe do

desespero. Segue-se a quebra. Chama pela mãe. Quer morrer. Mas de um

modo diferente. Quer “desnascer”. E, a pouco e pouco, suavemente, o seu

próprio discurso tropeça em “Grândola, Vila Morena” e faz-lhe renascer a

esperança. Devagarinho. Intimamente. Recupera-se. Uma flauta sublinha

o renascimento. Entrega-se de novo. Apresenta-se: José Mário Branco,

português, de 37 anos, filho de professores primários. Do Porto. Faltam-

lhe alguns dentes. Mas está pronto. “Para cantar. E para o resto”. Todo o

público de pé (não um a um como cogumelos – tudo numa leva só) ferve

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as mãos em palmas arrebatadas. Zé Mário está extenuado. Mas vê bem

que deixou a plateia sem fôlego, depois da longuíssima canção-poema-

desabafo que arrancou das entranhas. De muito fundo. É já com o pessoal

arfante, ainda a digerir o “presente” do artista, que acontece a canção de

apoteose, com todo o palco iluminado e instrumentos e vozes em aplicação

total: “Ser Solidário”.

Bob Dylan

Eu nunca escrevi uma canção política. As canções não podem salvar o

mundo. Já passei por isso tudo.

John Osborne

ARCHIE – Se alguma vez eu vi um vislumbre de esperança e de força

na raça humana, foi no rosto daquela velha e anafada negra, esganiçando-

se a cantar acerca de Jesus ou lá o que era! Miserável e só e espezinhada,

era-o ela como ninguém que tu possas ter conhecido! Ou eu, tanto faz...

Nunca gostei daquele género de música, mas ao ver aquela negra

portentosa, abrindo em canção o seu coração a todo o mundo, alguma

coisa cá dentro me dizia que, por mais que pisemos as pessoas, as pessoas

autênticas, por mais que as humilhemos – não importa!... Se elas podem

erguer-se e lançar um som, puro e tão natural como aquele, nada está

errado nelas, mas sim em todos os outros!

Desde então, não voltei a ouvir uma coisa assim. Aqui nunca ouvi. O

Billy ouviu. Ouviu-os cantar, há muitos anos... coitado do velhote. Mas

hoje já não se ouve em lado nenhum. E desconfio que nunca mais

voltaremos a ouvir. Já ninguém é capaz de sentir daquela maneira.

Quisera Deus que eu fosse capaz, quisera Deus que eu fosse capaz de sentir

como aquela negra, de bochechas gordalhufas, e cantar! Se tivesse feito,

em toda a minha vida, uma coisa tão boa como aquela – podia morrer

descansado! Muito melhor que isso de aguentar o emprego sem tugir nem

mugir e lá o que quiserem, ou que participar num trabalho construtivo e

todas essas lérias, e todas as tuas manifestações em Trafalgar Square.

Quisera Deus que eu fosse o saco de batatas daquela velha! Punha-me em

pé, enchia o meu peito farfalhudo, erguia a cabeça e lançava o mais belo

grito do mundo. Isso é que eu lançava, Meu Deus! Mas jamais farei uma

coisa daquelas. Estou-me nas tintas para tudo, até mesmo para mulheres

e cerveja. E tu... achas que serás capaz de o fazer? Achas?

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Pistas de reflexão e trabalho

- Discutir em que é que este texto é atual e em

que é que é datado. Listar as questões políticas e

económicas (guerra, imigração, Estado social,

etc.) e questões de família (o papel da mulher,

conflito de gerações, figuras de autoridade, etc.)

que são fundamentais no texto e perceber o que é

que ecoa – ou não – nos dias de hoje. Pensando

nas pontes que se estabelecem entre a década de

50 e o ano de 2015, em que consistiria uma

adaptação deste texto para os dias de hoje? Que

acontecimentos e situações faria sentido estarem

presentes?

- Como é que nesta encenação se delimita o

espaço público (teatro/ palco do music hall) do

espaço privado (casa). Quais os elementos

cénicos que marcam cada um desses espaços?

Lembrar as cenas em que esta delimitação se

dilui e pensar porquê (conversa de Archie e Jean

à boca de cena; discurso de Frank sobre a

imigração feito ao microfone).

- Investigar o conceito de distanciação de Brecht

e discutir em que medida ele está presente nesta

encenação.

- Discutir qual o papel do músico em cena

(personagem Charlie, orquestrador de ambientes

sonoros). Como descreveriam o ambiente sonoro

da peça? O que é que resulta dos samples? Quais

as variações introduzidas pelas várias

musicalidades?

- Ler as didascálias de Osborne e pensar como o

encenador e os atores as interpretaram, perceber

em que é que se concretizaram. Falar sobre a

fisicalidade dos atores e figurinos. Experimentar,

a partir das didascálias, outras possíveis

interpretações.

- Pensar nas consequências que tem a tradução

de The Entertainer por O Animador para a nossa

relação com a peça – especialmente no que diz

respeito à visão com que ficamos da personagem

de Archie Rice. Discutir neste contexto as noções

de ironia, paradoxo e ambiguidade.

- Analisar os números de Archie, tendo atenção

ao contraste entre o que ele diz – comentários e

piadas – e aquilo que canta. Em que consiste este

contraste? Quais as consequências disso para a

nossa relação com a personagem?

- Discutir como na peça (texto e encenação) são

estabelecidas as diferenças entre cantar e falar.

Fazer levantamento dos diferentes géneros de

canções (canção religiosa de Billy, canção de

amor de Phoebe, canção de luto de Frank - o

blues da negra, canção sobre o charuto de Frank

e Archie, canções políticas de Archie) e modos de

as cantar que atravessam a peça. Propor à turma

a partilha de canções: cada aluno cantar ou dar a

ouvir uma canção de que goste, que ache

importante ou que o comova particularmente e

tentar compreender porquê.

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Informações e reservas

Escolas

O Animador

Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa

Sala Garrett

10 – 20 dez 2015

qua, 19h00

qui - sáb, 21h00

dom, 16h00

13 dez 2015

Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa

16 dez 2015

Conversa com os artistas após o espetáculo

Informações e reservas para Escolas

Deolinda Mendes

+ 351 213 250 828

[email protected]

www.teatro-dmaria.pt/pt/escolas

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Quem somos

Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E.

Direção Artística

Tiago Rodrigues

Conselho de Administração

Miguel Honrado, Cláudia Belchior, Sofia Campos

Fiscal Único

Vítor Almeida & Associados, SROC*

Assessoria Artística

Magda Bizarro*

Consultor Jurídico

Rui Costa Ferreira*

Advogada

Joana Moedas Morgado*

Secretariado

Conceição Lucas

Motorista

David Fernandes

Atores

João Grosso, José Neves, Lúcia Maria, Manuel Coelho, Maria Amélia Matta, Paula Mora

Ana Água, Ana Tang, Ana Valente, Marco Mendonça, Sandra Pereira, Victor Yovani (estagiários ESTC 2015-16)

Direção de Produção

Carla Ruiz, Manuela Sá Pereira, Pedro Pires*, Rita Forjaz

Direção de Cena

André Pato, Carlos Freitas, Isabel Inácio, Manuel Guicho, Paula Martins, Pedro Leite

Auxiliar de Camarim Paula Miranda

Pontos Cristina Vidal, João Coelho

Guarda-roupa Aldina Jesus, Graça Cunha, Lurdes Antunes

Direção Técnica

José Carlos Nascimento, Eric da Costa, Vera Azevedo

Maquinaria e Mecânica de Cena Vítor Gameiro, Jorge Aguiar, Marco Ribeiro, Paulo Brito, Nuno Costa, Rui Carvalheira

Iluminação João de Almeida, Daniel Varela, Feliciano Branco, Luís Lopes, Pedro Alves

Som/Audiovisual Rui Dâmaso, Pedro Costa, Sérgio Henriques

Manutenção Técnica Manuel Beito, Miguel Carreto

Motorista Carlos Luís

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Direção de Comunicação e Imagem

Raquel Guimarães, João Pedro Amaral, Rita Conduto*, Tiago Mansilha

Fotografia Filipe Ferreira*

Vídeo Pedro Macedo/Framed Films*

Design Gráfico R2*

Direção Administrativa e Financeira

Margarida Guerreiro, Eulália Ribeiro, Rute Presado, Susana Cerqueira

Controlo de gestão

Diogo Pinto

Tesouraria

Ivone Paiva e Pona

Recursos Humanos

António Monteiro, Madalena Domingues

Técnico Oficial de Contas

Fluxactivo*

Direção de Manutenção

Susana Dias, Albertina Patrício

Assessoria em Arquitetura

Pedro Fidalgo*

Manutenção Geral

Carlos Henriques, Raul Rebelo

Assessoria em Sistemas Elétricos

Manuel Alexandre*

Informática

Nuno Viana

Técnicas de Limpeza

Ana Paula Costa, Carla Torres, Luzia Mesquita, Socorro Silva e Astrolimpa*

Vigilância

Grupo 8*

Direção de Relações Externas e Frente de Casa

Ana Ascensão, Carlos Martins, Deolinda Mendes, Fernanda Lima

Bilheteira Rui Jorge, Carla Cerejo, Sandra Madeira

Receção Delfina Pinto, Isabel Campos, Lurdes Fonseca, Paula Leal

Assistência de Sala Complet’arte*

Direção de Documentação e Património

Cristina Faria, Rita Carpinha

Livraria Maria Sousa

Biblioteca|Arquivo Ana Catarina Pereira, Ricardo Cabaça

* prestação de serviços

Teatro Nacional D. Maria II

Praça D. Pedro IV

1100-201 Lisboa

T.: +351 213 250 800

[email protected]

www.teatro-dmaria.pt