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  • 7/27/2019 Dos manuais e regimentos do Santo Ofcio portugus, a longa durao de uma justia que criminalizava o pecado

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    DOS MANUAIS E REGIMENTOSDO SANTO OFCIO PORTUGUS:

    a longa durao de uma justia que criminalizava o pecado(sc. XIV-XVIII)

    ALCIO NUNES FERNANDES

    BRASLIA2011

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    ALCIO NUNES FERNANDES

    DOS MANUAIS E REGIMENTOS

    DO SANTO OFCIO PORTUGUS:a longa durao de uma justia que criminalizava o pecado(sc. XIV-XVIII)

    Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps Graduao em Histria daUniversidade de Braslia.

    rea de Concentrao: Histria Social.

    Linha de Pesquisa Sociedade, instituiese poder.

    Orientadora: Prof Dr Maria Filomena Pintoda Costa Coelho.

    BRASLIA2011

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    Aos meus filhosJoo Vtor, Juliana

    e Matheus. Camila.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGHIS) da Universidade de

    Braslia, pela oportunidade de realizar a pesquisa histrica apresentada nesta dissertao

    de mestrado.

    Ao Programa de Estudos Medievais (PEM-UnB), pela possibilidade de ouvir e

    ser ouvido nos eventos em que participei, dilogo determinante para a maturao das

    idias aqui discutidas.

    Professora Maria Filomena Pinto da Costa Coelho, minha orientadora mesmo

    antes que eu entrasse no PPGHIS, pelo dilogo acadmico permanente, por me

    incentivar a fazer o mestrado, por ter sugerido o objeto de minha pesquisa, pelos livros

    emprestados, pelos textos indicados, e, sobretudo, por ter lido, relido e discutido

    comigo, pacientemente, cada linha desta dissertao. Enfim, agradeo Profa. Filomena

    por ter, efetivamente, me orientado academicamente, contribuindo de maneira decisiva

    para o resultado do trabalho aqui apresentado.

    Professora Maria Eurydice de Barros Ribeiro e ao Professor Celso SilvaFonseca, pelas valiosas observaes e sugestes feitas poca da defesa do projeto de

    dissertao, que tambm contriburam para o resultado alcanado.

    Aos Professores Dinair Andrade da Silva e Estevo Chaves de Rezende Martins,

    pelas discusses acadmicas que tivemos em sala de aula, que provocaram importantes

    reflexes, algumas delas presentes nesta dissertao.

    Aos colegas de mestrado e aos colegas dos grupos de estudo, em especial ao

    meu amigo Marcelo Tadeu dos Santos, com quem discuti algumas das idias contidasneste trabalho acadmico.

    minha irm Adlia, que me auxiliou nas questes referentes ao Direito

    brasileiro, e discutiu comigo algumas caractersticas da justia criminal de nossa

    contemporaneidade, referencial utilizado para as comparaes que fiz com a justia

    criminal do Santo Ofcio portugus.

    queles que contriburam direta e indiretamente para a realizao da pesquisa

    histrica que culminou nesta dissertao de mestrado. A todos vocs o meu muitssimoobrigado!

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    RESUMO

    Tribunal religioso que devia sua criao mais ao rei portugus que Igreja romana, foi

    como justia criminal do foro externo do pecado que o Tribunal do Santo Ofcio da

    Inquisio portuguesa se afirmou politicamente perante os demais poderes constitudos

    em Portugal, alcanando autonomia relativa frente Igreja e Monarquia. Sem

    desconsiderar a natureza rgia e religiosa da instituio, como tribunal de justia que o

    Santo Ofcio portugus se mostra neste estudo: um tribunal que se dizia santo, mas que

    pragmaticamente processava e julgava seus rus com base em indcios e provas judiciais

    de condutas poca entendidas como crimes; tribunal de uma justia de outros tempos,

    em que o pecado era criminalizado por leis civis e religiosas. Importantes documentos

    jurdicos negligenciados por parte considervel da historiografia, os manuais e

    regimentos da Inquisio portuguesa eram a base do conjunto de normas que orientava

    as prticas de justia do Tribunal. Compreender a cultura jurdica luso-crist presente

    nestes documentos foi o objetivo que conduziu a pesquisa histrica apresentada nesta

    dissertao.

    Palavras-chave: Cultura jurdica luso-crist. Justia. Inquisio portuguesa.

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    ABSTRACT

    Religious tribunal that owed its creation more to the portuguese king than to the roman

    church, it was as criminal justice of the external forum of sin that the Tribunal of the

    Santo Ofcio of the Inquisition established itself before the other powers in Portugal,

    achieving relative autonomy from the church and from the monarchy. Not disregarding

    the royal and religious nature of the institution, it is mainly as a justice tribunal that the

    portuguese Santo Ofcio of the Inquisition appears in this study: a so-called holy

    tribunal, but that pragmatically processed and judged based in evidences and judicial

    proofs of practices deemed as crimes at that time. Justice tribunal of other times, when

    sin was criminalized by civil and religious laws. Important juridical documents

    neglected by a considerable part of the historiography, the handbooks and regiments of

    the portuguese Inquisition were the basis of legislation to guide the Tribunal practices of

    justice. The main goal of this work was to understand in a historical perspective the

    lusitanian-christian juridical culture offered by those documents.

    Key-words: Juridical culture. Justice. Portuguese Inquisition.

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................ 09

    CAPTULO 1Da Historiografia..............................................................................................................

    1. Uma histria moral..................................................................................................2. Uma histria das vtimas, uma histria de silncios................................................3. Uma histria na contramo......................................................................................4. Uma histria social e institucional..........................................................................

    16

    20293946

    CAPTULO 2Do Santo Ofcio portugus

    1. Da natureza do Santo Ofcio....................................................................................2. Da juridicizao e da criminalizao do pecado

    2.1. O legado da Igreja medieval ao Santo Ofcio portugus.................................3. Da justia do Santo Ofcio portugus......................................................................

    3.1. Dos manuais e regimentos do Santo Ofcio portugus3.1.1.Directorium Inquisitorum (sc. XIV-XVI)..............................................3.1.2. Regimento de 1552....................................................................................3.1.3. Regimento de 1613....................................................................................3.1.4. Regimento de 1640....................................................................................3.1.5. Regimento de 1774....................................................................................

    3.2. Dos crimes da alada do Santo Ofcio portugus............................................3.3. Das penas e penitncias do Santo Ofcio portugus........................................

    48

    5460

    61697375798193

    CAPTULO 3

    Do processo inquisitorial do Santo Ofcio portugus

    1. Uma justia justa?....................................................................................................2. Da acusao

    2.1. Do tempo da graa...........................................................................................2.2. Da delao. Das testemunhas de acusao......................................................2.3. Da priso dos acusados....................................................................................2.4. Dos interrogatrios e audincias.....................................................................2.5. Do promotor. Do libelo da justia. Da publicao da prova da justia...........

    3. Da defesa.................................................................................................................3.1. Dos inquisidores como defensores..................................................................

    4. Da sentena..............................................................................................................5. Da verdade jurdica do processo inquisitorial.........................................................

    107

    109113119122125129132

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    CONSIDERAES FINAIS........................................................................................... 139

    REFERNCIAS

    1. Fontes primrias2. Leis3. Bibliografia.............................................................................................................. 143

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    INTRODUO

    Tribunal religioso, mas que cuidava de crimes. Tribunal da Igreja, mas que devia

    sua criao ao Rei. Tribunal de justia, mas que processava e julgava tambm com base

    em lgicas jurdico-religiosas. Tribunal apresentado como monstrum horribilem por

    parte da historiografia, mas que agia dentro das lgicas de justia de sua poca, em

    tempos em que o pecado era criminalizado tanto por leis civis quanto por leis religiosas.

    Enfim, Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio portuguesa, sobre o qual muito j se

    escreveu, mas a respeito do qual muito ainda h a ser dito.

    Um tratamento histrico: esta a maneira mais apropriada para entender a

    justia inquisitorial de outrora. Ao contrrio do inquisidor, o historiador no juiz do

    passado; deve, pois, compreend-lo, no julg-lo. Como se dizia no Regimento do

    Santo Ofcio portugus de 1613, os defuntos [...] por si se no podem defender 1. O

    passado um defunto e, como tal, merece um tratamento adequado, inclusive e

    principalmente, por parte daqueles que se prestam a dissec-lo.

    A pesquisa histrica apresentada nesta dissertao de mestrado seguiu umcaminho diferente daquele tradicionalmente adotado pela historiografia. Ao invs da

    usual vitimizao dos acusados de crimes pelo Santo Ofcio portugus, a via escolhida

    foi aquela que, no sem desdm, alguns historiadores chamam de histria institucional.

    Assim o fizemos por acreditar que para alcanarmos uma viso de conjunto do

    problema inquisitorial necessrio contemplar todas as possibilidades de anlise,

    inclusive aquelas que estudam as instituies com o intuito de entender como os

    modelos jurdico-polticos contidos nos discursos institucionais so concebidos evividos socialmente. A realidade das prticas de qualquer instituio s compreensvel

    quando analisada luz do discurso institucional que fundamenta tais prticas. Por temer

    reproduzir os equvocos cometidos por uma historiografia de vis institucionalista, os

    historiadores preferiram evitar qualquer tipo de pesquisa que objetivasse entender as

    instituies inseridas nas sociedades que as produziram. No raro, em relao ao Santo

    1 Regimento de 1613, Ttulo IV, Do modo de proceder, e ordem que se h de ter, com os culpados no

    crime de heresia e apostasia, Dos defuntos, Captulo XXVII. In: In: SIQUEIRA, Snia Aparecida (ed.).Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro, a. 157, n. 392, jul./set. 1996, p. 636-637.

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    Ofcio portugus essa escolha tem resultado em uma imagem da instituio que no

    corresponde sua realidade histrica. Compreender o discurso do Santo Ofcio

    portugus sob a tica daqueles que o escreveram foi o enquadramento escolhido para

    analisarmos as fontes primrias selecionadas para esta pesquisa, no para tomar o

    discurso institucional em uma perspectiva apologtica, mas sim com o objetivo de

    interpretar historicamente a cultura jurdica luso-crist que expressa nos seus manuais

    e regimentos. Procuramos entender a justia na perspectiva daqueles que processavam e

    julgavam, pensando fazer justia.

    Nesta dissertao no escrevemos um libelo em defesa do Santo Ofcio

    portugus, embora discordemos da chamada lenda negra que ainda hoje ressoa na

    historiografia, como se de um dogma de f historiogrfico se tratasse. Propusemo-nos

    a afirmar o bvio, que a pesquisa histrica deve orientar-se contextualizando

    historicamente o seu objeto. Proposta que parece ingnua, mas no o . No em se

    tratando das prticas de justia do Tribunal da Inquisio, tema sujeito a acaloradas

    discusses historiogrficas e a polmicas interpretaes histricas.

    Analisando processos inquisitoriais particulares por uma perspectiva

    assumidamente militante, parte considervel da historiografia ignora o conjunto de

    normas que norteava as prticas judicirias do Tribunal, e apresenta uma instituio que

    agiria arbitrariamente, condenando e levando fogueira milhares de inocentes. O

    resultado no poderia ser outro seno uma imagem distorcida da instituio,

    desconectada de sua realidade histrica, e materializada na escrita de uma histria moral

    de uma historiografia laica que se pretende redentora2. Contudo, luz da pesquisa

    histrica referimo-nos at mesmo pesquisa produzida por estudiosos que preferem

    silenciar o discurso institucional da Inquisio tal imagem no se sustenta, como se

    ver ao longo desta dissertao. Foi justamente historiografia que recorremos para

    escapar de uma viso anacrnica da Inquisio portuguesa construda por historiadoresengajados, que, preocupados com a defesa de valores supostamente universais e

    anistricos, descuidaram do seu compromisso com a verdade histrica.

    2 Como para os tericos da Escola de Frankfurt, creio que uma histria dos homens s tem sentidotornando-se memria dos que sofreram, dos que sucumbiram dominao, lgica da histria. O nicorecurso voltar-se para o passado, para lembrar o mal a fim de que ele no se repita. E lembrandoAdorno: O conhecimento no tem outra luz a no ser aquela que emana da redeno do mundo ..

    NOVINSKY, Anita. A Inquisio: uma reviso histrica. In: ______; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci(Coord.). Inquisio: ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Rio de janeiro: Expresso & Cultura,1992, p. 10, grifo nosso.

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    As fontes primrias que do o fundamento emprico nossa argumentao so

    documentos jurdicos, manuais e regimentos inquisitoriais que foram usados nos

    tribunais do Santo Ofcio portugus, de sua fundao3, no sc. XVI, at a sua extino,

    que se daria apenas no incio do sc. XIX. Trata-se do DirectoriumInquisitorum e dos

    Regimentos do Santo Ofcio portugus.

    Escrito por Nicolau Eymerich, em 1376, e revisto e ampliado por Francisco de

    La Pea, em 1578, o Directorium Inquisitorum foi bastante utilizado tanto pela

    Inquisio medieval quanto pelas Inquisies modernas. Em razo de sua importncia, o

    Directorium ficou conhecido como o Manual dos Inquisidores.

    J os Regimentos da Inquisio portuguesa compunham a base do conjunto de

    normas que orientava as suas prticas judicirias base complementada por outras

    fontes de direito, tanto religiosas quanto civis (bulas, Direito Cannico, Ordenaes do

    Reino, Direito Civil). Elaborados pela prpria instituio, ao todo foram quatro

    regimentos promulgados4, respectivamente, em 1552, 1613, 1640 e em 1774. O

    primeiro deles, o Regimento da Santa Inquisio, foi escrito tendo como modelo o

    DirectoriumInquisitorum, importante manual que, apesar de recolher parte das normas

    inquisitoriais vigentes e de orientar os inquisidores acerca de como atuar nos processos

    penais contra a heresia, no atendia s necessidades prprias da Inquisio portuguesa.

    Entretanto, a utilizao do Directorium para a resoluo das dvidas ainda

    recomendada no Regimento de 1640, razo pela qual o inclumos nas fontes primrias

    analisadas nesta dissertao.

    Os Regimentos da Inquisio portuguesa so a materializao por escrito de um

    discurso que visava a legitimao das prticas judicirias do Santo Ofcio portugus,

    configurando o tribunal religioso como justia criminal do foro externo do pecado.

    Fazem parte de uma cultura jurdica de razes medievais, mas cujo legado foi bastante

    aperfeioado pela Inquisio portuguesa; cultura jurdica da qual os tribunais de justiade nossa contemporaneidade tambm so herdeiros. A despeito de sua importncia,

    3 Mesmo antes de promulgar o Regimento da Santa Inquisio, de 1552, a Inquisio j instrua seusprocessos e se organizava como tribunal de justia criminal, mas de maneira precria, com base legalfornecida por cartas dispersas emitidas pelo Inquisidor-Geral, D. Henrique, e pelo DirectoriumInquisitorum.4 O Regimento do Conselho Geral no se enquadra na mesma definio das fontes primrias aqui

    analisadas, consideradas pelo Santo Ofcio portugus e pela historiografia como Regimentos Maiores.Por este motivo, no nos dedicamos mais diretamente sua anlise. Um quinto Regimento foi elaboradopara substituir o de 1774, mas no chegou a entrar em vigor; deste, tambm no falaremos.

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    historiadores e juristas tm dispensado pouqussima ateno a esses documentos

    histricos5.

    Embora pouco explorados, os manuais e regimentos da Inquisio portuguesa

    so fontes primrias conhecidas da historiografia, com verses disponveis em formato

    impresso de todos os documentos6, e, em meio eletrnico, dos Regimentos de 1613 e de

    16407. Nesta dissertao utilizamos o Directorium Inquisitorum publicado pela Editora

    Rosa dos Ventos, em parceria com a Editora da UnB, e os Regimentos da Inquisio

    publicados na Revista do IHGB8, editados por Snia Siqueira Aparecida.

    O mtodo de anlise aplicado aos documentos selecionados foi a leitura e

    fichamento dos discursos que os compem, comparando-os entre si, e examinando-os

    luz de parte da vasta bibliografia disponvel sobre o tema Inquisio. Tarefa bastante

    trabalhosa, em razo da considervel quantidade de pginas que o conjunto dos

    documentos alcana9, e que no foi facilitada pela consulta historiografia. Isto porque,

    comparativamente produo referente Inquisio espanhola, poucos so os ttulos

    disponveis sobre o Santo Ofcio portugus, e bem menor ainda o nmero de autores

    5 Snia Aparecida Siqueira j alertara sobre a falta de estudos sobre a legislao inquisitorial: apesar detantos juzos que correm sobre o Santo Ofcio, o estudo de sua legislao, de seus procedimentos, de sua

    jurisprudncia ainda est por ser feito por historiadores do direito. SIQUEIRA, Snia Aparecida. Adisciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisio. In: Revista do Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, a. 157, n. 392, jul./set.1996, p. 505.6 Com relao ao Directorium Inquisitorum, citamos, por exemplo, EYMERICH, Nicolau. DirectoriumInquisitorum: Manual dos Inquisidores: Escrito por Nicolau Eymerich em 1376, revisto e ampliado porFrancisco de La Pea em 1578. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, Braslia: Fundao Universidade deBraslia, 1993 e Don J. MARCHENA e EIMERIC, Nicolau. Manual de inquisidores, para uso de lasinquisiciones de Espaa y Portugal, compendio de la obra titulada Directorio de Inquisidores, deNicolao Eymerico. Valladolid: Editorial Maxtor, 2010. As verses mais recentes dos Regimentos daInquisio portuguesa esto disponveis em Os Regimentos da Inquisio. In: SIQUEIRA, SniaAparecida (ed.). Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro, a. 157, n. 392, jul./set. 1996, bem como em Regimentos da InquisioPortuguesa. FRANCO, Jos Eduardo; ASSUNO, Paulo de (ed.). In: As Metamorfoses de um Polvo.Religio e poltica nos Regimentos da Inquisio Portuguesa (Sc. XVI-XIX). Lisboa: Prefcio, 2004.7

    Disponveis no site ius lusitaniae Fontes Histricas de Direito Portugus:http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=95&id_obra=63&pagina=104 ehttp://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=98&id_obra=63&pagina=851 . Acesso em: 03de fev. 2010.8 Nas citaes que fizemos dos Regimentos, foi respeitada a grafia original dos documentos consultados tal como apresentada na verso que utilizamos, que a publicada na Revista do IHGB. Tambmrespeitamos as divises e terminologias adotadas em cada um dos documentos. Explicamo-nos. NoRegimento de 1552, as normas apresentadas dividem-se em captulos, e no Regimento de 1613, em ttulose captulos. J nos Regimentos de 1640 e de 1774, as normas dividem-se em livros, ttulos e pargrafos que, assim como nesses documentos, representamos pelo sinal .9 Ao todo, 680 pginas, somando-se apenas a verso brasileira do Directorium Inquisitorum(desconsiderando o prefcio) e os Regimentos publicados pela Revista do IHGB, cuja responsvel pelaedio foi a historiadora Snia Aparecida Siqueira; isto sem contar as consultas feitas verso eletrnica

    dos Regimentos de 1613 e de 1640, verso espanhola do Directorium, impressa pela Editorial Maxtor eaos Regimentos publicados no livro As Metamorfoses de um Polvo, que, por serem verses bastantesemelhantes, no entraram em nosso clculo.

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    que se dedicam anlise daquilo que podemos chamar de legislao10 inquisitorial

    portuguesa. Questionamos as razes apresentadas por parte da historiografia para

    justificar o seu pouco interesse pelos Regimentos, refletindo sobre at que ponto a

    ideologizao dos estudos inquisitoriais contribui para esse desinteresse e compromete

    os resultados de tais estudos.

    As fontes primrias escolhidas foram analisadas numa perspectiva de longa

    durao, como longo o recorte temporal coberto por elas, de modo a perceber

    continuidades, rupturas e inovaes nas prticas judicirias do Santo Ofcio e no

    discurso institucional que as fundamentava.

    Referindo-se a outros Tribunais e recomendando uma srie de precaues no

    trato com esse tipo de documento histrico, historiadores como Jean-Pierre Dedieu e

    Carlo Ginzburg destacaram a importncia das linhas de pesquisa baseadas em fontes

    inquisitoriais para compor uma viso de conjunto do que foram as Inquisies. Embora

    jamais tenha escrito mais detidamente sobre o Santo Ofcio portugus, Antnio Manuel

    Hespanha aponta argumentos que do a medida do quo importante a anlise das

    fontes jurdicas para entendermos em que bases se edificou a civilizao ocidental

    crist, e, apesar das crticas que lhe fez Laura de Mello e Souza11, suas colocaes nos

    parecem ainda bastante pertinentes:

    a literatura jurdica constitui, com a teolgica, o maior legado cultural dacivilizao antiga, medieval e moderna da Europa ocidental [...] Nenhumoutro gnero literrio conformou tanto a mentalidade e as instituies. [...] Asrealidades dos discursos dos juristas foram sempre, num momento ounoutro, realidades praticadas, institucionalizadas, vividas, sujeitas prova dos factos. As que passaram esta prova tornaram-se dominantes nostextos; as que falharam, no desapareceram deles, mas tm a um relevomarginal. [...] Os textos jurdicos so, ainda quanto tm autor, textoscolectivos. O autor concreto pouco mais do que o demiurgo de um grandeautor colectivo, constitudo pela tradio textual. Nesta, as singularidadesapagam-se, a opinio isolada reabsorvida; e permanece, por sobre todos os

    10 O Regimento de 1774 o nico dos documentos analisados que utiliza o termo legislao parareferir-se ao conjunto de normas produzido pela Inquisio portuguesa. A expresso legislaoinquisitorial utilizada por diversos historiadores tais como Francisco Bethencourt, Mara PalaciosAlcalde, Luiz Mott, Lana Lage e Snia Aparecida Siqueira, em referncia ao conjunto de normasproduzido pelas inquisies portuguesa e/ou espanhola.11 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: poltica e administrao na Amrica portuguesa dosculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 48-58. Dentre as crticas feitas ao historiadorportugus, uma delas a observao de que Hespanha supervaloriza a importncia dos textos jurdicosem suas anlises. Risco que no corre boa parte da historiografia que versa sobre o Santo Ofcioportugus, inclusive a prpria historiadora. Apesar de afirmar ter se ocupado durante boa parte de uma

    vida de pesquisa [...] com as divertidas Devassas Eclesisticas e com os extraordinrios processos daInquisio (p. 17), em seus textos mais importantes no h qualquer tipo de anlise sobre a legislaoque orientava a conduo dos extraordinrios processos que ela pesquisou.

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    milhares de particularidades, idiosincrasias e idiolectos de cada jurista, oconjunto de traos que marcam a civilizao jurdica europeia12.

    Os regimentos inquisitoriais portugueses constituem literatura jurdica produzida

    por uma instituio religiosa com o objetivo de processar e julgar aqueles que fossemacusados do cometimento de crimes de sua jurisdio, o que faz de tais documentos

    uma fonte de direito riqussima; fonte que, em uma perspectiva histrica, pode ser

    utilizada tanto por historiadores quanto por juristas. A legitimidade e a validade de

    qualquer tipo de justia so garantidas pelo conjunto de normas jurdicas, morais e

    ticas definidas pela ordem social que as produz13. Cumpre, ento, interpretar tais

    normas historicamente, valendo-se inclusive do instrumental terico do Direito, o que

    nos leva a concordar com Juliana Carvalho de Assuno Ribeiro:

    observarmos um enfoque transdisciplinar que trabalhe tambm as relaesentre Direito e Histria possibilita uma esclarecedora viso das prticas

    jurdicas de controle social, de controle da sexualidade, e de sua tentativa demoralizao dos costumes. Possibilita, ainda, entendermos a fora dosefeitos ideolgicos de seu discurso, que no se limita a um seleto grupo dedestinatrios, mas que busca, mesmo decidindo um caso especfico, oregramento de condutas e a determinao de um padro comportamental14.

    Sinal de que o Tribunal procurava se adequar ao tempo de sua prpria histria, a

    inter-relao entre a realidade das prticas judicirias observadas no Tribunal e as

    normas por ele produzida15 expressa nos Regimentos, o que valoriza a importncia de

    se analisar as fontes inquisitoriais, uma vez que por elas se pode chegar dinmica das

    prticas de justia do Santo Ofcio portugus.

    Assuntos pouco discutidos pela historiografia, examinamos a natureza

    institucional da Inquisio lusitana e os traos peculiares do tipo de justia praticada no

    12 HESPANHA, Antnio Manuel. As vsperas do Leviathan. Instituies e Poder Poltico. Portugal sc. XVII. Lisboa: Livraria Almedina, 1994, p. 296, grifo nosso (negrito).13

    No que concordamos com Kelsen: todo sistema de valores, especialmente uma ordem moral com suaidia de justia, um fenmeno social e, conseqentemente, distinto, conforme a natureza da sociedadena qual teve origem. KELSEN, Hans. O que Justia?So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 8.14 RIBEIRO, J. C. A. Idias Jurdicas e relaes de poder: mulheres, discursos jurdicos, controle edisciplina no Brasil 1940/1990, p. 3.Disponvel em:http://www.maismulheresnopoderbrasil.com.br/pdf/Judiciario/Ideias_Juridicas_e_Relacoes_de_Poder_Mulheres_Discursos_Juridicos_Controle_e_Disciplina_no_Brasil_1940_1990.pdf . Acesso em: 12 de dez.2010.15 A inter-relao entre a realidade das prticas e a legislao inquisitorial tambm foi observada porBethencourt, que, referindo-se s primeiras instrues emitidas por D. Henrique para orientar as prticas

    judicirias do Santo Ofcio portugus, bem como ao Regimento de 1552 e ao Regimento do ConselhoGeral, afirmou: esses textos revelam [], do ponto de vista administrativo, uma prtica notvel de

    codificao das experincias judicirias e burocrticas. BETHENCOURT, Francisco. Histria dasInquisies: Portugal, Espanha e Itlia. Sculos XIV-XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.46.

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    Tribunal seus regimentos, seus crimes, suas penas com o fim de entender a

    configurao que fez do Santo Ofcio portugus um tribunal religioso de justia

    criminal. Paradoxalmente, a instituio devia sua criao mais Monarquia lusitana que

    Igreja de Roma, e, ainda assim, alcanou autonomia relativa frente a ambas,

    afirmando-se como poder poltico pela via jurdico-religiosa. Tambm para entender os

    traos que caracterizaram a Inquisio portuguesa, discutimos as estratgias de

    juridicizao e criminalizao do pecado, criadas pela Igreja medieval, e utilizadas pelo

    Santo Ofcio portugus, que, do ponto de vista jurdico, aperfeioou o legado que

    recebera tanto da Inquisio medieval quanto da espanhola.

    Com base nas prescries dos Regimentos sobre as etapas que deveriam ser

    observadas na conduo dos processos judiciais do Tribunal, apresentamos no terceiro

    captulo um processo ideal com o intuito de refletir sobre as lgicas de justia que

    orientavam as prticas judicirias do Santo Ofcio portugus: a cada novo regimento, o

    tribunal que se dizia santo mostrava-se cada vez mais pragmtico e tcnico, bastante

    preocupado em assegurar defesa aos rus e com a produo de indcios e provas

    judiciais, fundamentais para legitimar as sentenas proferidas, e decisivos para garantir

    instituio o manto de legalidade com o qual procurava cobrir-se. Isso no diminua a

    sua caracterstica essencial de justia religiosa, pois a Inquisio portuguesa tambm era

    um tribunal da Igreja, que objetivava muito mais a sujeio dos rus sua autoridade

    que a condenao dos acusados de cometer os crimes de sua alada, o que fazia da

    confisso recurso suficiente para livrar os rus da possibilidade de serem condenados a

    penas mais duras.

    Como se ver nas pginas a seguir, longe de ser o monstrum horribilem

    desenhado por parte da historiografia, a anlise dos manuais e regimentos inquisitoriais

    portugueses apresenta uma instituio coerente com seu discurso de justia e

    misericrdia: justia para julgar, misericrdia para punir. Misericrdia destinada quelesque se sujeitassem autoridade do Tribunal o que no quer dizer que os crimes

    confessados ficassem impunes, mas sim que as penas dispensadas eram tanto mais

    brandas quanto mais satisfatrias fossem as confisses dos acusados contra os quais

    houvesse provas suficientes para conden-los. E por justia a Inquisio portuguesa

    entendia a observncia de suas prprias normas, fundamentada em lgicas de justia de

    sua prpria poca, circunscrita em sua prpria histria.

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    CAPTULO 1DA HISTORIOGRAFIA

    Entre os temas recorrentes da historiografia, a Inquisio , certamente, um dos

    mais revisitados pelos historiadores. Incontvel nmero de pginas j foi escrito sobre o

    assunto ou fazendo referncia ao seu manancial de documentos, do qual boa parte ainda

    est por catalogar. Com os mais variados propsitos, aplicam-se-lhe diferentes

    enquadramentos tericos, distintos mtodos analticos e todo tipo de recortes espao-temporais. Tambm por isso, a Inquisio objeto de acaloradas discusses

    historiogrficas e de polmicas interpretaes histricas.

    A histria do Santo Ofcio portugus confunde-se com a imagem construda pela

    historiografia que escreve a seu respeito. Em no poucas vezes, imagem distorcida,

    carregada de paixes confessas ou mal encobertas, dispersas em um discurso que tende

    a considerar como valores universais e anistricos a justia, os direitos humanos e a

    tolerncia.

    A precauo sugerida por Ginzburg em relao aos cuidados que se deve ter na

    anlise de fontes inquisitoriais, por serem mediatizadas pelo crivo dos inquisidores

    parece-nos aconselhvel estend-la historiografia que versa sobre o Santo Ofcio. O

    resultado do trabalho do historiador tambm mediatizado por sua viso de mundo,

    seus valores ideolgicos, morais e ticos. O prprio Ginzburg acabaria por confessar a

    sua identificao emocional com os rus1 dos processos que ele analisava. Mas no

    apenas ele. Outros historiadores bastante experimentados, como veremos adiante, no

    conseguem escapar necessidade de se posicionar contra as aes do Santo Ofcio e,

    consequentemente, a favor das vtimas da Inquisio. No h textos neutros, diria

    Ginzburg2. Nem mesmo os produzidos pela historiografia, acrescentamos ns3.

    1 GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antroplogo. In:Revista Brasileira de Histria.So Paulo:ANPUH/Marco Zero, 1991, p. 12.2Ibidem, p. 16.3 A crtica parcialidade da historiografia em relao Inquisio tambm feita por Jean-Pierre Dedieu,que defende a importncia de las lneas de investigaciones histricas basadas en fuentes inquisitoriales,

    e aponta as precaues que se deve ter na anlise dos textos produzidos tanto pelos inquisidores quantopela historiografia. DEDIEU, Jean-Pierre. De la inquisicin y su insercin social: nuevas directrices enla historiografa inquisitorial. Universidad de Canarias, 2006, p. 12. Disponvel em:

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    Os historiadores parecem compartilhar o que Paolo Prodi chamou de estranha

    tendncia a um arrependimento histrico absurdo, como se fosse possvel levar ao foro

    penal as culpas histricas de toda uma sociedade ou civilizao, ou como se fosse

    possvel, em sentido contrrio, transformar a Histria em tribunal penal4.

    Consciente ou inconscientemente, os historiadores constroem as suas narrativas

    estabelecendo a identidade do eu ao qual pertencem e definindo a alteridade do

    outro, o antagnico. Aqui concordamos com Rsen, para quem a constituio da

    identidade efetiva-se [...] numa luta contnua por reconhecimento entre indivduos,

    grupos, sociedades, culturas, que no podem dizer quem ou o que so, sem ter de dizer,

    ao mesmo tempo, quem ou o que so os outros com os quais tm a ver5. Entretanto,

    sem desconsiderar a legitimidade de tal processo, corre-se o risco de, na luta pela

    construo da identidade dos grupos, partidarizar-se a narrativa histrica. Vitimiza-se o

    eu ou demoniza-se o outro.

    Parte da historiografia a respeito da Inquisio adota essa postura ao fazer coro a

    um discurso politicamente correto, ideologicamente inclinado a criminalizar o Santo

    Ofcio portugus (a este em particular, e Inquisio em geral), desconsiderando o

    contexto no qual o Tribunal se estabeleceu e perdurou por quase trezentos anos.

    Na viso de parte da historiografia, grave pecado do historiador procurar

    entender a logicidade do funcionamento do Tribunal do Santo Ofcio6. Perguntamo-

    nos, ento: como possvel ter uma viso de conjunto do problema inquisitorial sem

    levar em conta as lgicas jurdico-religiosas empregadas ou defendidas

    institucionalmente, em nvel discursivo, pelo Santo Ofcio?

    De maneira explcita, admite-se querer sugerir alguns bons argumentos para

    explicar as razes pelas quais os homens mais prximos daquela poca sentiram a

    necessidade de demonizar o tribunal. A afirmao taxativa: quando se estuda uma

    instituio por dentro, atravs de seus documentos, esposando assim a lgica daquelesque os produziram e evitando interrogar sobre as diferenas entre perseguir delitos e

    opinies, esses papis do uma imagem de respeito das regras e de probidade. A

    conseqncia de se estudar o Santo Ofcio com base em seu discurso institucional seria

    http://halshs.archives-ouvertes.fr/docs/00/03/65/99/PDF/Dd_inquisicion_directrices.pdf . Acesso em: 18dez. 2010.4 PRODI, Paolo. Uma Histria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 532.5 RSEN, Jrn. Razo histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: Editora

    Universidade de Braslia, 2001, p. 87.6 NOVINSKY, Anita apud GORENSTEIN, Lina. A Inquisio contra as mulheres. So Paulo:Associao Editorial Humanitas, 2005, p. 30.

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    correr o risco de formatar uma lenda rosa, que traaria um perfil menos negativo do

    Santo Ofcio, um tribunal que algumas vezes se reavalia de modo to sereno7.

    Por este prisma, no apenas a serenidade um trao condenvel no trabalho dos

    historiadores que se propem a fazer uma anlise desapaixonada sobre o Santo Ofcio.

    Chamados de revisionistas, esses historiadores tambm so criticados por pensar

    historicamente (!): os autores revisionistas assumiram os critrios do Santo Ofcio para

    analisar a questo do criptojudasmo. Enfatizando que analisam o Tribunal em seu

    tempo, consideram que foi um Tribunal justo8.

    Ainda com relao ao tempo e histria, bastante comum em parte da

    historiografia sobre a Inquisio a despreocupao quanto a um evidente anacronismo:

    compara-se Santo Ofcio e Nazismo como sendo instituies com agentes, fins e

    prticas semelhantes. A justificativa seria a perseguio perpetrada por ambas contra

    judeus, mesmo que, sabida e incontestavelmente, a Inquisio tivesse jurisdio para

    processar apenas os que fossem cristos batizados, ainda que fora9.

    Mesmo a atualizao dos dados relativos ao nmero de processados pelo Santo

    Ofcio, e, sobretudo, dos condenados pena capital dados estes que apontam para

    nmeros bem menos expressivos do que os que at h bem pouco tempo eram

    aventados como provas do rigor inquisitorial10 no suficiente para conduzir as

    discusses a um tom menos passional. Na formatao de uma historiografia

    pretensamente humanista, fatores objetivos so desvalorizados, porque levar em

    considerao os dados estatsticos e quantitativos seria minimizar a ao e o papel da

    Inquisio, desaparecendo o homem e seu sofrimento11.

    De maneira geral, os historiadores que escrevem sobre o Santo Ofcio ou com

    base em sua documentao podem ser divididos em trs grupos: os apologticos, os

    herdeiros de uma lenda negra historiogrfica, e os que procuram adotar uma postura

    7 FEITLER, Bruno. Nas malhas da conscincia. Igreja e Inquisio no Brasil. So Paulo: Alameda:Phoebus, 2007, p. 18.8 GORENSTEIN, Lina, op. cit., p. 37-78, grifo nosso.9 Embora no poucas tenham sido as tentativas do Santo Ofcio de alargar seu raio de ao para oschamados infiis, mouros e judeus.10 Ronaldo Vainfas afirma que, examinado o universo das sentenas, constatamos que a Inquisioportuguesa, ao contrrio do que se supe, condenou poucas pessoas morte relativamente ao nmero deprocessados. Levados fogueira pelo Tribunal foram 8,2% dos processados nos sculo XVI, 9% no XVIIe 7,3% no XVIII, incluindo os que, ausentes ou mortos no crcere, foram queimados em efgie [ou seja,que, efetivamente, no foram queimados]. Portanto, de um total de 7.666 indivduos processados naqueleTribunal, cerca de 8,3%, em mdia, ou 642 pessoas, sofreram a pena capital. VAINFAS, Ronaldo.Justia e Misericrdia: reflexes sobre o sistema punitivo da Inquisio portuguesa. In: NOVINSKY,

    Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Coord.). Inquisio: ensaios sobre mentalidade, heresias e arte.Rio de janeiro: Expresso & Cultura, 1992, p. 146-147.11 NOVINSKY apudGORENSTEIN, Lina, op. cit., p. 37.

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    mais sbria e desapaixonada. Entretanto, nos trs grupos raro encontrar aqueles que

    se preocupem em analisar a legislao inquisitorial ou o discurso institucional que d

    sustentao terica s prticas do Santo Ofcio; na maioria das vezes, os processos so o

    ponto de partida das anlises. Menor ainda o nmero de historiadores que procuram

    compreender o carter jurdico-criminal do Tribunal; em geral, ressalta-se o aspecto

    religioso da Inquisio. E mesmo alguns assuntos exaustivamente discutidos, como os

    motivos para a instalao e manuteno do Santo Ofcio em contextos espao-temporais

    to distintos, no resultaram em consenso historiogrfico. Justamente as razes para o

    surgimento e to longa durao no tempo do Tribunal so o ponto central dos embates

    entre as correntes historiogrficas.

    Uma barreira ideolgica ainda paira sobre os autores que se dedicam a pensar

    historicamente o Tribunal. H uma espcie de temor de que o trabalho historiogrfico

    possa ser usado em desfavor de conquistas de nossa contemporaneidade, como os

    direitos humanos, a democracia e a liberdade de pensamento. Esse temor provoca um

    descompasso: a pesquisa de qualidade nem sempre recebe consideraes compatveis

    com os resultados obtidos. No momento de analisar os dados coletados, no raro, o

    historiador acaba por transpor para a sua escrita no apenas o resultado de sua pesquisa,

    mas, sobretudo, a sua viso de mundo, os seus valores morais e ticos.

    O j velho chavo a histria filha do seu tempo no justificativa suficiente

    para eximir de responsabilidade geraes de historiadores que, pensando prestar um

    servio humanidade defendendo a democracia, a tolerncia, os direitos humanos ,

    descuidaram de seu compromisso com a verdade histrica. No que discordemos de

    Duby, para quem toda histria inevitavelmente subjetiva, todo discurso sobre o

    passado obra de um homem que vive num presente e que interpreta os vestgios do

    passado em funo desse presente12. Apenas, como Le Goff, reafirmamos o

    compromisso com o dilogo entre o presente e o passado, mas sem cair na armadilhade buscar nesse passado o comeo de hoje13. Todavia, a par de uma justificada

    subjetividade, deve existir uma condio primeira e imprescindvel no trabalho do

    historiador: esta sine qua non o compromisso com a verdade. E no nos referimos a

    uma verdade filosfica abstrata, difcil de mensurar. Mas sim quela bem mais objetiva,

    que na definio dos dicionrios tem como sinnimo a franqueza.

    12 DUBY apudGORENSTEIN, Lina, op. cit., p. 42.13

    COELHO, Maria Filomena Pinto da Costa. A longa Idade Mdia: reflexes e problemas. In: Poruma longa durao: perspectivas dos estudos medievais no Brasil. VII Semana de Estudos Medievais.Braslia: PEM-UnB, 2010, p. 64.

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    1. UMA HISTRIA MORAL

    No final do sculo passado, o lanamento do livroLos orgenes de la Inquisicin

    en la Espaa del siglo XV, de Benzin Netanyahu, provocou um acirrado debate que

    envolveu nomes consagrados no cenrio historiogrfico espanhol14. Palcos dessa

    disputa intelectual foram a Revista de la Inquisicin e o jornal El Pas. O debate

    reacendeu uma polmica na historiografia: a ideologizao dos estudos inquisitoriais.

    Contudo, a polmica antiga e no se restringe historiografia espanhola.

    A ideologizao abarca contextos espao-temporais diversos. Tem seus pontos

    altos a partir da Reforma Protestante, com o aparecimento da chamada lenda negra e,

    em contrapartida, do discurso apologtico originado em resposta s acusaes feitas

    pelos detratores do Tribunal. Ir receber novo flego com as crticas dos ilustrados em

    14Respectivamente, os autores e artigos a que nos referimos so: ESCUDERO, Jos Antonio. Netanyahuy los orgenes de la Inquisicin espaola. In: Revista de la Inquisicin: (intolerancia y derechoshumanos), N 7. Madrid: Universidad Complutense, 1998, p. 9-46.; MARTNEZ BARRIOS, Elena.Tolerancia e Inquisicin. In: Revista de la Inquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid:Universidad Complutense, 1999, p. 101-111.; LPEZ MARTNEZ, Nicols. Nueva teora sobre el origende la inquisicin espaola. In: Revista de la Inquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8.Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 279-285.; ESCUDERO, Jos Antonio. Netanyahu y laInquisicin. In: Revista de la Inquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: UniversidadComplutense, 1999, p. 329-333.; GARCA CARCEL, Ricardo. La Inquisicin y los judos: ecos de la

    obra de Netanyahu. In: Revista de la Inquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid:Universidad Complutense, 1999, p. 295-299.; OBERLANDER, Beatriz. Entrevista con Netanyahu. In:Revista de la Inquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense,1999, p. 301-306.; PARDOS MARTNES. Julio A. Un problema de orgenes. In: Revista de laInquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 307-310.; DOMNGUEZ ORTIZ, Antonio. Los orgenes de la Inquisicin. In: Revista de la Inquisicin:(intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 311-315.;NETANHYAHU, Benzion. Respuesta al profesor Domnguez Ortiz. In: Revista de la Inquisicin:(intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 317-322.;DOMNGUEZ ORTIZ, Antonio. Rplica amistosa a Benzion Netanyahu. In: Revista de la Inquisicin:(intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 323-327.;JACKSON, Gabriel. De Benzion Netanyahu y sus detrarctores. In: Revista de la Inquisicin:(intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 335-339.;

    NETANHYAHU, Benzion. Sobre Inquisicin y lectura: fin de un debate. In: Revista de la Inquisicin:(intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 341-346. Algunsdos artigos foram publicados anteriormente no jornalEl Pas e reproduzidos naRevista de la Inquisicin.Para Dedieu o debate suscitado pelo livro de Netanyahu foi o indcio da falta de rumos, poca, dahistoriografia espanhola: lo extrao no es que Netanyahu hable como lo hace, sino que sus palabrashayan suscitado tantas reacciones en la comunidad histrica espaola y que todo lo que cuenta entre losmodernistas espaoles haya insistido para tomar parte en el debate, claro indicio de su dificultad enencontrar su rumbo. DEDIEU, Jean-Pierre, op. cit., p. 12. Discordando do historiador francs, mais nosparece que o debate decorrente do livro de Netanyahu tenha sido um aprofundamento de um caminho quehavia sido iniciado no final dos anos setenta do sculo passado. Para Ricardo Garca Crcel, tres hansido los objetivos perseguidos por la historiografa en estos aos: la desideologizacin, la superacin de laabstraccin y la explicacin racional del Santo Oficio. GARCA CRCEL, Ricardo. Veinte aos dehistoriografa de la Inquisicin. In: Anales 1995-1996. Publicaciones de la Real Sociedad Econmica de

    Amigos del Pas, Valencia, 1996, p. 233. Disponvel em:http://www.uv.es/rseapv/Anales/95_96/A_229_254_Veinte_anyos_de_historiografia.pdf . Acesso em: 08de out. 2010.

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    Portugal, tais crticas ao Santo Ofcio sero registradas e endossadas at mesmo no

    Regimento inquisitorial de 1774. Em razo dos movimentos totalitrios na Europa

    sobretudo o Nazismo , a ideologizao manter seu vigor, por exemplo, por meio de

    comparaes entre agentes da ss com os familiares do Santo Ofcio, e entre o

    extermnio de judeus perpetrado por nazistas com a perseguio aos cristos-novos

    levada a cabo pelas inquisies ibricas e romana.

    Em geral, o uso do termo inquisio no se restringe apenas a uma instituio,

    abrange a Inquisio espanhola, o Santo Ofcio portugus, a Inquisio romana

    restabelecida em meados do sc. XVI e a Inquisio medieval, precursora de todas as

    outras. Essa impreciso sobre a qual inquisio, afinal, se refere o historiador contribui

    para a construo de uma imagem negativa e distorcida do Tribunal, seja ele o

    medieval, o espanhol, o romano ou o portugus. Isso porque aos nmeros produzidos

    por uma inquisio somam-se os dos outros tribunais. Prtica nem sempre to flagrante

    em textos acadmicos, mas perceptvel em revistas dirigidas ao leitor no-

    especializado15.

    Em comparao com a produo historiogrfica relativa Inquisio espanhola,

    o nmero de trabalhos sobre o Santo Ofcio portugus bem menor. O que no quer

    dizer que o tribunal lusitano receba uma ateno menos passional por parte de alguns

    historiadores que se dedicam a estud-lo. A histria do Santo Ofcio, suas motivaes,

    seus mtodos; a histria dos rus do famigerado tribunal [...] um assunto que

    apaixona a muitos16. H entre estes os que so francamente militantes na defesa das

    vtimas do Tribunal. Em vista do estilo adotado, desenvolvem o que poderia ser

    denominado de histria dos indivduos ou histria moral. Para Bruno Feitler, entretanto,

    alguns pesquisadores tais como Elias Lipiner, Anita Novinsky, Laura de Mello e

    Souza, Luiz Mott, Ronaldo Vainfas e Lana Lage da G. Lima podem ser classificados

    como pertencentes histria cultural ou histria das idias, pois estes pesquisadores

    [...] se interessaram sobretudo pelos delitos de jurisdio inquisitorial, oumelhor, pela histria daqueles grupos ou indivduos perseguidos pelainstituio e assim paradoxalmente por ela perpetuados em suadocumentao: cristos-novos (judaizantes ou no), mas tambm, feiticeiros,bgamos, sodomitas, padres solicitadores etc., contribuindo de modo

    15 A ttulo de exemplo, citamos oDossi Inquisio,publicado na Revista Histria Viva, Ano I, N. 10,de agosto de 2004.16 VAINFAS, Ronaldo. Deixai a lei de Moiss!: notas sobre o espelho de cristos-novos (1541), de Frei

    Francisco Machado. In: GORENSTEIN, Lina; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (orgs.). Ensaios sobre aIntolerncia: Inquisio, Marranismo e Anti-semitismo. So Paulo: Humanitas/LEI, 2005, p. 243, grifonosso.

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    inestimvel para a compreenso das diferentes formas sociais e desociabilidade do mundo luso-americano da poca moderna [...]impulsionados pela riqueza das fontes e pelas correntes historiogrficasligadas histria cultural e histria das idias17.

    Exemplo de estudiosos que escrevem uma histria moral so os que advogam a

    causa de critos-novos e/ou de sodomitas portugueses, tomando como fundamento de

    suas reflexes os processos de seus acusados. Na maioria das vezes, o conjunto de

    normas que orientava a conduo de tais processos desconsiderado como critrio de

    anlise, e, em vrios casos, sequer citado.

    Nessas anlises, em que o historiador se coloca como promotor e, ao mesmo

    tempo, juiz do passado, o acusado o prprio Santo Ofcio portugus. Sem direito a

    defesa, visto que sua fala a legislao inquisitorial que contm o discurso institucional

    que orientava as suas prticas judicirias no ouvida, o mesmo tribunal que outrora

    processava seus rus por meio de processos judiciais com base em normas de sua poca

    e de outra maneira no poderia ser, tratando-se, evidentemente, de um tribunal de

    justia inserido em um tempo e espao definidos sumariamente condenado. Seus

    cmplices? Sociedades inteiras que, no caso portugus, permitiram a sua existncia por

    quase trs sculos. As culpas so vrias: intolerncia, violao dos direitos humanos,

    injustias... mesmo que tais conceitos sejam historicamente construdos. Nessa

    perspectiva, a maior culpa do Santo Ofcio portugus seria a de estar inserido na histriade seu prprio tempo.

    A condenao pura e simples do Tribunal no elucida importantes questes

    atinentes sua longa existncia, mas encobre-as. No importa chorar nem rir. Importa

    compreender, diria at mesmo o telogo e filsofo Leonardo Boff, crtico ferrenho das

    inquisies catlicas, responsvel pelo inflamado prefcio edio brasileira do

    Directorium Inquisitorum18. O discurso historiogrfico militante dificulta e posterga o

    entendimento de complexas tramas interpretativas, por si s j dificultadas peladistncia que separa o historiador de sociedades que no so a sua, ao criar uma imagem

    da Inquisio distanciada de sua realidade histrica. A responsabilidade dos

    historiadores pela construo dessa imagem ideolgica foi observada por Doris Moreno:

    la Inquisicin, en la mirada de los historiadores, se convierte en caballo debatalla de posicionamientos ideolgicos o polticos. Escribir sobre la

    17 FEITLER, Bruno, op. cit., p. 11.18

    BOFF, Leonardo. Prefcio. Inquisio: Um esprito que continua a existir. In: EYMERICH, Nicolau.Directorium Inquisitorum. Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, Braslia:Fundao Universidade de Braslia, 1993, p. 9.

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    Inquisicin en los siglos XIX y XX ha sido, en buena parte, un ejercicio dedefinicin ideolgica, la exhibicin de progresismo o conservadurismo quelastra cualquier empeo de objetividad. Las ltimas generaciones dehistoriadores de la Inquisicin han realizado un notable esfuerzo paradesnudar el mito y recuperar la memoria histrica19.

    Bruno Feitler endossa as observaes feitas por Doris Moreno:

    os reflexos historiogrficos, polticos, literrios, e pictricos da lenda [oautor se refere lenda negra] sobreviveram em muito os prprios tribunaisibricos [...], dando finalmente uma imagem cada vez mais imprecisa doque foram os tribunais da Inquisio, sobretudo em obras de cunhopolmico, poltico ou artstico e por isso de maior impacto no pblico emgeral. Mitificou-se assim a instituio, tomando-se como pressuposto umfuncionamento sanguinrio, vindicativo, sem regras e, finalmente,monstruoso do Santo Ofcio20.

    Alguns historiadores defendem com fervoroso ardor as suas posies acerca do

    Santo Ofcio portugus. Com uma lucidez que parece no ser compartilhada por aqueles

    que discordam de suas concluses, estes historiadores podem falar com propriedade

    sobre o Tribunal, pois acreditam compreender o seu sentido profundo:

    as numerosas controvrsias que o fenmeno Inquisio tem suscitado, com aminimizao de seus efeitos e a incompreenso de seu sentido profundo,em um momento em que a prpria sobrevivncia da humanidade estameaada, so um sintoma da insanidade de nosso tempo quanto a valoresticos e humanos21.

    Evitar que se tenha uma imagem aparente da realidade, j que dessa forma

    conheceremos apenas como o dominador se apresentava mas nunca os verdadeiros

    motivos que o impulsionavam, uma das justificativas para que a perspectiva

    escolhida por parte considervel dos historiadores seja uma anlise a partir da tica das

    vtimas. Anita Novinsky , reconhecidamente, um dos nomes mais lembrados da

    historiografia brasileira sobre o Santo Ofcio portugus e, segundo Ronaldo Vainfas,

    mestra de tantos historiadores brasileiros e dona de uma proposta explicitamente

    engajada22. Novinsky afirma que para entendermos o que foi o Tribunal do Santo

    Ofcio da Inquisio em Portugal, como funcionou e a ideologia sobre a qual se apoiou,

    importante que busquemos conhecer o que pensavam dele os homens de seu tempo e

    19 MORENO, Doris. La invencin de la Inquisicin. Madrid, Marcial Pons, 2004, p. 09-10.20 FEITLER, Bruno, op. cit., p. 9-10, grifo nosso. No por acaso, Feitler, emNas malhas da conscincia,sugere o livro La invencin de la Inquisicin, de Doris Moreno, como bibliografia sobre as vertentesnegra e branca da produo historiogrfica.21

    NOVINSKY, Anita. Em Portugal, delaes e resistncia. Dossi Inquisio. In: Histria Viva. SoPaulo, n. 10, 2004, p. 48.22 VAINFAS, Ronaldo. Intolerncia em perspectiva. In: Rev. USP. So Paulo, 2006, p. 190.

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    as prprias vtimas23. Contudo, ressaltamos que importante recordar que os

    inquisidores tambm eram homens de seu tempo.

    Ao privilegiar apenasa fala das vtimas, em detrimento do discurso institucional,

    que inaudvel em considervel parte dos estudos sobre a Inquisio, temos tambm

    uma imagem aparente da realidade. A legislao inquisitorial portuguesa, que, por

    vezes, sequer analisada, no recebe o mesmo peso que dado fala dos processados

    pelo Santo Ofcio portugus, pois considera-se que os manuscritos que circulavam nos

    subterrneos da sociedade espelhavam as opinies dos excludos, suas carncias e seus

    sentimentos e constituem a base mais slida sobre a qual podemos nos apoiar para

    reconstruir o passado histrico e a cultura portuguesa24.

    Um trao bastante comum em parte dos estudos sobre o Santo Ofcio portugus

    o emprego de adjetivao, invariavelmente, negativa para caracterizar o Tribunal.

    Tenebroso, monstrum horribilem, Casa Negra do Rossio, so os termos usados

    pelo historiador e antroplogo Luiz Mott, no prefcio do livro Agentes da F, para

    qualificar a Inquisio portuguesa. Para Mott, o Tribunal fazia parte de um

    mundo espantoso de autoritarismo e intolerncia, mundo lastimavelmenteainda no completamente desaparecido, j que descendentes dessesfamigerados prepostos [o autor se refere aos familiares da Inquisio]continuam no topo da pirmide social em muitas regies do pas,

    notadamente nas mais antigas capitanias, onde muitas dessas famliasperpetuam sua hegemonia pelo mesmo mandonismo estamental de outrora25.poca em que as pessoas valiam no por seus mritos e capacidade, mas porsua nobreza e origens raciais. No ser cristo-velho, isto , brancodescendente de imemoriveis cepas catlicas, implicava ipso-facto um tristedestino sufocado pelo preconceito, discriminao social e profissional,incluindo, s vezes, perseguio, violncia fsica e at morte. E eramexatamente os Familiares do Santo Ofcio as pontas de lana dessa ordemcruel, autoritria e incendiria26.

    Apontada por Mott, a percepo de continuidade entre o mundo espantoso de

    autoritarismo e intolerncia e os dias de hoje compartilhada por outros historiadores.

    Destes destacamos Anita Novinsky. Segundo a historiadora, na Espanha e em

    23 NOVINSKY, Anita. A Inquisio portuguesa luz de novos estudos. In: Revista de la Inquisicin:(intolerancia y derechos humanos), N 7. Madrid: Universidad Complutense, 1998, p. 298.24Ibidem, idem.25 Esta surpreendente afirmao seria repetida no Programa do J, da TV Globo, exibido em 24/04/2010.A entrevista completa pode ser vista no YouTube, no link

    http://www.youtube.com/watch?v=v8LvDghc30k (link da parte 1/5).26 MOTT, Luiz. Prefcio. In: CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da f: familiares da Inquisioportuguesa no Brasil colonial. Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 17-19.

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    Portugal, na poca Moderna, reuniram-se Estado e Igreja para destruir o judasmo. No

    sculo XX, repetiu-se o modelo e milhares de judeus foram assassinados27.

    Tal afirmao remete comparao, feita por alguns historiadores como

    Novinsky e Netanyahu, em relao s inquisies portuguesa e espanhola,

    respectivamente , entre Santo Ofcio e Nazismo. Daniela Buono Calainho, ao fazer um

    balano da historiografia que contempla os familiares do Tribunal, destaca:

    quanto aos Familiares que atuaram no Brasil, so raros os estudos especficossobre o tema. Anita Novinsky menciona alguns em meio aos processos contra

    judaizantes na Bahia do sculo 17, comparando-os Gestapo da Alemanhanazista, ressaltou seu papel de informantes, investigadores e policiais28.

    Novinsky chamaria de genocdio de milhares de portugueses29 os processos movidos

    pelo Santo Ofcio que resultaram na morte dos rus entregues ao brao secular, numapossvel aluso, ao empregar o termo genocdio, ao nmero de judeus mortos pelos

    nazistas.

    A impropriedade de tal comparao foi exposta por Jos Antonio Escudero:

    la comparacin con el exterminio nazi resulta inadmisible. Y ello no solo porrazones cuantitativas (el nmero de vctimas, escandalosamente dismil), opor mezclar en el mismo saco fenmenos represivos de siglos ycircunstancias harto distintas (en el siglo XV la hereja era consideradadelito), sino adems por razones de carcter penal. En un sitio se trata de

    condenas en virtud de procesos individuales; con una lamentable presuncinde culpabilidad y dudosas garantas, si se quiere, pero procesos individualesal fin. En otro, de masacres colectivas e indiscriminadas, realizadas sin juicioalguno.Significa esto una indirecta defensa de la Inquisicin? En absoluto.Ahora bien, rechazando cualquier forma de represin, y repudiando cualquierforma de intolerancia, resulta obvio que no todo ha sido lo mismo30.

    Voltando questo quantitativa, pelo menos em relao ao Brasil, at mesmo os

    nmeros apresentados pela historiografia mais contundente parecem no se encaixar na

    expresso milhares, empregada anteriormente:

    durante 230 anos a Inquisio portuguesa manteve seus agentes no Brasil,com a finalidade de vigiarem o comportamento dos colonos. Mais de milbrasileiros e portugueses residentes no Brasil foram presos entre 1731 e 1748,

    27 NOVINSKY, Anita. A sobrevivncia dos judeus na viso de Baruch Spinoza: o exemplo da Paraba. In:VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno, LIMA, L. L. G., (orgs.). A Inquisio em Xeque: temas,controvrsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Editora Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2006, p.158, grifo nosso.28 CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da f: familiares da Inquisio portuguesa no Brasil colonial.Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 37, grifo nosso.29 NOVINSKY, Anita, op. cit. (A sobrevivncia dos judeus na viso de Baruch Spinoza: o exemplo da

    Paraba), p. 153.30 ESCUDERO, Jos Antonio. Netanyahu y la Inquisicin. In: Revista de la Inquisicin (intolerancia yderechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p. 32.

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    e foram condenados morte 21 brasileiros, dos quais 2 foram queimadossimbolicamente, em efgie31.

    Se em relao aos cristos-novos os nmeros so pouco expressivos, menos

    ainda o so no que se refere aos sodomitas processados por cometer o crime nefando.

    Segundo os clculos apresentados por Luiz Mott,

    nos quase 300 anos de funcionamento da Inquisio portuguesa (1536-1821),consegui localizar, at o presente, um total de 68 homens e uma mulher,referidos, denunciados ou confessados como sendo descendentesconsangneos de famlias judaicas e que, ao mesmo tempo, praticavam ohomossexualismo, dos quais dez moradores do Brasil. Deste total de 69pessoas, 28 foram rs de processos formais, das quais seis foram condenadas morte na fogueira; as 41 restantes aparecem apenas citadas como cmplicesem outros processos de sodomia ou suas denncias no redundaram emprocesso formal e priso. [...] Principais vtimas do preconceito: [...] Maior

    rigor inquisitorial: judeus32

    e sodomitas foram as principais vtimas da sanhainquisitorial, tanto em nmero de prises quanto em execues. Nossaamostra sugere que quando o mesmo ru concentrava os dois crimes,sodomia e judasmo, o rigor inquisitorial redobrava. Eis a prova: se tomarmosa totalidade dos processados por sodomia, independentemente de sua origemtnica ou religiosa, encontramos durante todo o perodo inquisitorial, para oconjunto dos rus do Santo Ofcio, 6% das condenaes morte na fogueira(30 em um total de 450 processos); se reunirmos agora as duas variveis,

    judeu e sodomita, este nmero sobe para 21% (seis num total de 28processos)33.

    31 NOVINSKY, Anita, op. cit. (A Inquisio portuguesa luz de novos estudos), p. 303, grifo nosso. Omesmo nmero apresentado por Luiz Mott, o qual afirma que, apesar de ter uma bem estruturada redede informantes e prepostos, o Tribunal da Santa Inquisio de Lisboa31, que vigiou cuidadosamente aColnia por quase trs sculos, enviou para os crceres secretos da Casa Negra do Rossio 1076colonos luso-brasileiros, 21 dos quais terminaram seus dias na fogueira. MOTT, Luiz, op. cit. (Prefciode Agentes da f), p. 17.32 Efetivamente, a Inquisio no possua competncia para processar e julgar judeus. A primeiracondio para ser um possvel acusado pelo Tribunal era ter recebido o batismo cristo. Certamente, aoreferir-se aos judeus convertidos ao cristianismo, Mott prefere usar a expresso judeus por uma opoideolgica, e no por desconhecimento. Segundo Ronaldo Vainfas, de maneira geral, quase todos queescreveram sobre o assunto tendem a concordar que, para ser herege, o indivduo devia ser batizado, isto, pertencer comunidade crist, para dela poder se apartar ou questionar suas regras e mandamentos.

    VAINFAS, Ronaldo. Inquisio como fbrica de hereges: os sodomitas foram uma exceo? In: ______;FEITLER, Bruno; LIMA, L. L. G. (orgs.). A Inquisio em Xeque: temas, controvrsias, estudos decaso. Rio de Janeiro: Editora Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2006, p. 268.33 MOTT, Luiz. Filhos de Abrao & de Sodoma: cristos-novos homossexuais no tempo da Inquisio.In: GORENSTEIN, Lina; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (orgs.). Ensaios sobre a Intolerncia:Inquisio, Marranismo e Anti-semitismo. So Paulo: Humanitas/LEI, 2005. Os nmeros apresentadospor Mott no artigo citado referem-se apenas queles que eram, ao mesmo tempo, cristos-novos esodomitas ou tidos como tais. Em outro texto, Mott apresenta o nmero total de sodomitas sentenciados pena capital pelo Santo Ofcio portugus: os sodomitas, culpados pelo abominvel pecado nefando,depois dos cristos-novos, foram os que mais duramente penaram ns garras deste mostrum terribilem: das4.419 denncias registradas nos Repertrios do Nefando, na Torre do Tombo de Lisboa,aproximadamente 400 redundaram no encarceramento dos homossexuais acusados, e destes, trintaterminaram seus dias na fogueia. MOTT, Luiz. Justitia et misericordia: a Inquisio portuguesa e a

    represso ao nefando pecado de sodomia. In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci(Coord.). Inquisio: ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Rio de janeiro: Expresso & Cultura,1992, p. 704.

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    Curiosamente, na historiografia h tambm casos de historiadores que parecem

    indecisos quanto a criticar o Santo Ofcio portugus de maneira mais despreocupada,

    no tocante fundamentao terica ou anlise de dados objetivos ou defender uma

    postura mais sbria, que tenha base em argumentos verossmeis e em dados confiveis.

    Tal o caso de Jos Eduardo Franco, co-autor, com Paulo de Assuno, de As

    Metamorfoses de um Polvo. Ao analisar o Regimento de 1640, os autores adotam tom

    apaixonado:

    alm da auto-suficincia jurdica, um dos aspectos que mais desperta aateno no Regimento de 1640 a intolerncia, a crueldade e o rigor daspenas previstas para a aplicao, assim como os meios a usar para detectar ospresumveis culpados, a hegemonia do poder inquisitorial frente a todos ospoderes e a quase inexistncia de direitos de defesa dos acusados, a no sermediante a irnica possibilidade de confessarem os crimes34, praticados ouno, com um esforado arrependimento para terem alguma escapatriapossvel. um Regimento que, aos olhos de hoje, envergonha a Igreja e oReino de Portugal pela sua imoral desumanidade em nome da instauraode uma unanimidade de pensamento, de f e de aco, da consecuo de finsxenfobos e de exaltao, pelo medo, do poder de dominao religiosa sobretodos os outros poderes. [...] Os crimes sentenciados pelo Regimento doSanto Ofcio35 aos condenados eram efectivamente severos e desumanosaos olhos da nossa poca e, na nossa ptica, aos olhos de outras pocas,dado que o respeito e a dignidade da pessoa humana so valorespatrimoniais da Cultura Ocidental desde muito cedo, embora tivessemsofrido desvios de ndole vria, com a gravidade acrescida de taisdeturpaes terem sido protagonizadas por instituies que pregavam essamesma dignidade36.

    Embora as epgrafes escolhidas para as pginas iniciais de As Metamorfoses de

    um Polvo critiquem tal postura37, na concluso do livro, o tom apaixonado e a

    inclinao ideolgico-moralizante dos autores afloram com vigor, como se v pelo

    trecho a seguir:

    longe de ter contribudo para o incremento de uma vivncia crist autntica,este Tribunal poltico-religioso contribuiu para uma prtica de f a ferros,

    34 O grifo no termo crimes explicita bem a discordncia dos autores quanto ao uso de tal terminologiaquando aplicada s condutas tidas como delituosas pelo Santo Ofcio portugus.35 Os autores fazem uma pequena confuso: na verdade, os crimes no eram sentenciados pelosRegimentos. As sentenas eram emitidas por um conselho composto por inquisidores, pelo juiz ordinrio(o bispo, ou seu representante) e por deputados do Santo Ofcio. Os Regimentos fazem parte do conjuntode normas inquisitoriais que estabelece, dentre outras prescries, as regras processuais relativas aoscrimes de competncia do Santo Ofcio portugus.36 FRANCO, Jos Eduardo; ASSUNO, Paulo de. As Metamorfoses de um Polvo. Religio e polticanos Regimentos da Inquisio Portuguesa (Sc. XVI-XIX). Lisboa: Prefcio, 2004, p. 79-80 e p. 82,grifos nossos.37 ... restaurar a verdade, destrinando-a das arguies apaixonadas que enrazam no terreno apaixonadoda poltica. Camilo Castelo Branco. Na escrita da Histria trepam erros, verdades que envelhecem,

    ordenam-se ou amontoam-se disseminando os documentos, os valores, os smbolos, as ferramentasconceptuais, o conhecimento alargado, as explicaes tericas, as utopias, os mitos. Uns de corpo inteiro,outros esfacelados: uns horrendos, outros de olhos anglicos. Antnio Borges Coelho.

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    tornando-se um grande responsvel pela desvalorizao e desacreditao daimagem da Igreja em sectores mais avanados da cultura e para o incrementodo atesmo e do agnosticismo contemporneos38.

    Em outro texto, um dos autores de As Metamorfoses de um Polvo parece

    irreconhecvel justamente porque a crtica que se segue aplicvel ao livro que elemesmo assina:

    em torno da complexa problemtica da Inquisio moderna no quadro dahistria crist ocidental paira um amontoado de noes, vises, imagens,umas distorcidas, outras ambguas, a maioria delas hipertrofiadas. Estaspercepes resultam de ilaes simplistas, de associaes temticas einstitucionais imprecisas, e ainda de muitos juzos que desconsideram ocontexto mental do tempo histrico em que emergiu e vigorou o Santo Ofciocomo mquina judicial poderosa ao servio da Igreja e dos poderes polticosque exigiram e subvencionaram a sua ereco39.

    Segundo Daniela Buono Calainho, a tendncia atual da historiografia de

    constante renovao. J vai longe o tempo em que estes estudos privilegiavam o mero

    relato indignado de seus mtodos punitivos, a contabilidade dos rus sentenciados a

    arderem na fogueira dos espetaculares Autos-de-f40. A despeito do tom otimista da

    afirmao, visto que o tempo de tais estudos parece ainda no ter passado, o abandono

    da contabilidade dos rus sentenciados deve muito objetividade dos nmeros aos quais

    chegou a historiografia que no condizem com o alarde promovido em torno da

    questo inquisitorial e tendncia de renovao apontada pela autora41. No sopoucos os que defendem uma postura menos passional e menos tendenciosa da parte

    dos historiadores. Esses autores concordam que a tarefa do historiador debe consistir

    principalmente en analizar los acontecimientos y proponer las claves de comprehensin

    necesarias, ms bien que la de formular un juicio de valor sobre los acontecimientos

    estudiados42.

    Na mesma linha, Nicols Lpez Martnez pondera que

    38Ibidem, p. 93.39 FRANCO, Jos Eduardo. Clia Tavares: jesutas e inquisidores em Goa. In: Rev. Bras. Hist.. SoPaulo, 2006, p. 283. Disponvel em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000100014 Acesso em: 14 deout. 2010.40 CALAINHO, Daniela, op. cit., p. 24.41 Com relao tendncia de renovao observada por Calainho, concordamos com Doris Moreno, paraquem una de las mayores aportaciones de la historiografa de la Inquisicin en su esfuerzo por valoraradecuadamente la represin inquisitorial ha venido de los historiadores del derecho. MORENO, Doris .Representacin y realidad de la Inquisicin en Catalua. El conflicto de 1568. Tesis Doctoral dirigidapor el Dr. Ricardo Garca Crcel. Barcelona: Departamento de Historia Moderna y Contempornea.

    Facultad de Letras. Universidad Autnoma de Barcelona, 2002, p. 192.42 JIMNEZ SNCHEZ, Pilar. La Inquisicin contra los Albigenses en Languedoc. In: Clo & Crimen,N 02. Durango: Centro de Historia del Crimen de Durango, 2005, p. 56.

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    el historiador, al exponer e interpretar los hechos documentados, deberadesistir de hacer un discurso de buenos y malos, en el que, desde laprimera pgina, se sabe, por ejemplo, que los buenos han sido los de razahebrea y los malos todos los dems, especialmente la Iglesia catlica.Independientemente de que no podemos incidir en el anacronismo de

    enjuiciar el pasado con criterios, actualmente generalizados entre loscatlicos, de la libertad religiosa, habra que hacer un esfuerzo mayor paraliberarnos, por fin, de la dialctica decimonnica, que tan nefastos resultadosha dado y sigue dando [...], al presentar todava la historia desde la trastiendadel resentimiento43.

    Acreditamos que a anlise dos documentos inquisitoriais sejam eles os

    processos judiciais ou a legislao do Santo Ofcio portugus, seus manuais e

    regimentos, para o combate heresia e demais crimes de sua jurisdio , precisa ser

    cercada de cuidados para que o historiador evite transpor os seus valores morais e

    ticos, a sua ideologia, para a escrita da histria. As concluses do historiador tm deser compatveis com os resultados apontados pela pesquisa, cujo nico a priori aceitvel

    to somente a certeza de que as hipteses formuladas podem e, se for o caso, devem

    ser revistas. A premissa de que a histria deve ter uma utilidade moralizante to cara

    aos defensores do discurso politicamente correto, uma espcie de neo-maniquesmo

    ateu uma falcia. Feitas por alguns historiadores, as acusaes de que o Tribunal do

    Santo Ofcio da Inquisio cometia injustias sob o pretexto de defender objetivos

    elevados como a pureza da f crist e a defesa do bem comum da RespublicaChristiana voltam-se contra os prprios historiadores. Estes estudiosos adotam as

    mesmas estratgias que atribuem, negativamente, ao Tribunal. E assim o fazem em

    nome de uma verdade, a sua verdade.

    2. UMA HISTRIA DAS VTIMAS, UMA HISTRIA DESILNCIOS

    Foi sobre silncios que se construiu boa parte do discurso historiogrfico a

    respeito do Santo Ofcio. Discurso este que, por vezes, destoa da pesquisa histrica,

    desconsidera dados objetivos, adota uma postura militante, passionaliza o debate

    acadmico, analisa documentos com parcialidade manifesta e declarada, e escreve uma

    43

    LPEZ MARTNEZ, Nicols. Nueva teora sobre el origen de la Inquisicin espaola. In: Revista dela Inquisicin: (intolerancia y derechos humanos), N 8. Madrid: Universidad Complutense, 1999, p.283-284.

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    histria que silencia alguns pontos importantes para a compreenso da instituio

    Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio portuguesa. Fernando Catroga assim se

    posicionou a respeito dos silncios historiogrficos:

    cair num [...] tipo de ingenuidade epistemolgica pensar que a dialcticaentre a memria e o esquecimento um pecado exclusivo da anamnese.Tambm a historiografia, apesar de falar em nome da razo, se edifica,voluntria ou involuntariamente, sobre silncios e recalcamentos, como ahistria da histria tem sobejamente demonstrado. Esta inevitabilidadeaconselha a ter-se cautelas em relao ao discurso manifesto dos textoshistoriogrficos44.

    O silncio de boa parte da historiografia em relao ao conjunto de normas

    produzidos ou utilizados pelo Tribunal e a falta de estudos que procurem contemplar a

    viso que os juzes inquisitoriais tinham a respeito de seu ofcio ou mesmo que

    objetivem examinar o discurso institucional da Inquisio portuguesa tambm por sua

    prpria perspectiva so, para dizer o mnimo, intrigantes.

    Em meio a tantas pginas escritas sobre o Santo Ofcio portugus, por to

    renomados autores, ao longo de tantos anos de pesquisas, consultando-se uma extensa

    documentao, em arquivos dentro e fora do Brasil, o que mais chama a ateno quando

    se faz uma anlise do conjunto da historiografia sobre o Santo Ofcio a ausncia de

    trabalhos que contemplem o que se poderia chamar de viso institucional do Tribunal.

    No so poucos os autores que tm predileo por um enquadramento a partir da

    perspectiva das vtimas, com base em processos inquisitoriais particularizados. Ainda

    que estes processos tivessem sua conduo orientada pelos Regimentos, boa parte dos

    historiadores parece no acreditar ser importante analisar a legislao inquisitorial

    produzida pelo Tribunal para entender o fundamento dos processos que analisam45.

    44 CATROGA, Fernando. Memria, Histria e Historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001, p. 45.45 Tal o caso de historiadores como Laura de Mello e Souza, que afirma ter utilizado, no livro O Diabo e

    a Terra de Santa Cruz, os processos do Santo Ofcio para estudar as prticas mgico-religiosas nos trsprimeiros sculos de nossa histria, apud VAINFAS, Ronaldo. Histria cultural e historiografiabrasileira. In: Histria: Questes & Debates, n. 50. Curitiba: Editora UFPR, 2009, p. 219. Disponvel em:http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/download/15676/10417 Acesso em: 09 de mar. 2010.J em O Sol e a sombra: poltica e administrao na Amrica portuguesa do sculo XVIII, a autora diz terse ocupado durante boa parte de uma vida de pesquisa [...] com as divertidas Devassas Eclesisticas ecom os extraordinrios processos da Inquisio. SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: polticae administrao na Amrica portuguesa do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 17.Em tantos anos de pesquisa, e em dois de seus mais importantes trabalhos, Laura de Mello e Souza, aoque parece, no acreditou ser necessrio fazer uma anlise mais detalhada da legislao que disciplinava aprtica dos extraordinrios processos que analisou. Opo compartilhada por vrios outroshistoriadores. Dentre estes, destacamos Luiz Mott, historiador e antroplogo, que tambm tem apreferncia por escrever sobre o Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio com base em seus processos.

    Embora demonstre conhecer a legislao inquisitorial pois, em alguns de seus textos, cita osRegimentos sua anlise, em geral, restrita aos assuntos que tocam ao crime de sodomia. No parecehaver na extensa bibliografia de Mott textos que procurem entender as lgicas jurdico-religiosas

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    Todavia, as anlises feitas pela historiografia podem ser bastante fecundas para se

    perceber a importncia que tinham os Regimentos para o desenrolar dos processos do

    Tribunal, ainda que tais textos no se refiram mais diretamente legislao inquisitorial.

    o caso de um dos mais recentes trabalhos de Ronaldo Vainfas.

    No livro Traio: um jesuta a servio do Brasil holands processado pela

    Inquisio, Ronaldo Vainfas examina o processo de um religioso sentenciado como

    herege em meados do sculo XVII. Assim o faz por acreditar que o processo de

    Manoel de Moraes [o protagonista de seu livro] oferece dados impressionantes sobre o

    funcionamento dos julgamentos46, embora o autor no se detenha no exame da

    configurao jurdica de tais julgamentos, parecendo mais preocupado em dar detalhes

    da vida do seu personagem histrico. Vainfas acaba por reconhecer a legalidade do

    processo inquisitorial examinado repetidas vezes usa a expresso na forma do

    regimento47, ou seja, de acordo com o previsto pela legislao inquisitorial. Legislao

    que Vainfas conhece, ainda que no se disponha a analis-la mais detidamente, pelo

    menos no em Traio. Ao ler o livro, a impresso que se tem muito mais a de estar

    diante de uma narrativa biogrfica do que de uma reflexo histrica sobre o Santo

    Ofcio portugus48. Contudo, embora menos famosos que Traio, h outros textos em

    que o historiador demonstra conhecer os regimentos, articulando-os a problematizaes

    decorrentes de sua leitura49.

    To ao gosto de boa parte da historiografia, falemos sobre as vtimas dos

    processos inquisitoriais, mais exatamente sobre as acusaes que se lhes imputavam. Os

    processados pelo Santo Ofcio eram acusados de condutas entendidas, poca, como

    crimes. Crimes de natureza poltico-religiosa visto que, no mesmo passo, as heresias

    eram tidas como ameaas unidade do tecido social e pureza da f crist , crimes de

    presentes na legislao inquisitorial portuguesa, mesmo aquelas referentes ao crime de sodomia. Na vasta

    produo de Mott, a tica predominante sempre a do perseguido. Tambm dona de uma vasta produo,Anita Novinsky o nome mais representativo do que aqui chamamos de histria das vtimas, cujotrabalho a mais eloqente demonstrao do silncio em relao ao discurso inquisitorial.46 VAINFAS, Ronaldo. Traio: um jesuta a servio do Brasil holands processado pela Inquisio. SoPaulo: Companhia das Letras, 2008, 393.47 Traio..., p. 183, 284, 295, dentre outras. O Regimento a que Vainfas se refere o de 1640.48 Impresso com a qual no concorda Mary Del Priore, para quem, em Traio, Vainfas [...] reconstitui,graas a toda sorte de indcios, o comportamento de um indivduo. O resultado? Aprendemos mais com asperipcias de Manoel de Moraes do que nos ensinam as grandes, e por vezes maantes, snteseshistricas. DEL PRIORE, MARY. As aventuras do traidor Manoel de Moraes. In: Revista Veja, n2065, 2008. Disponvel em: http://veja.abril.com.br/180608/p_156.shtml Acesso em: 30 set. 2010.49 Dentre outros, o caso de VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofcio. In: DELPRIORE, M. (org.) Histria das mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto/Editora UNESP, 1997; bem

    como de VAINFAS, Ronaldo. Justia e Misericrdia: reflexes sobre o sistema punitivo da Inquisioportuguesa. In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Coord.). Inquisio: ensaios sobrementalidade, heresias e arte. Rio de janeiro: Expresso & Cultura, 1992.

  • 7/27/2019 Dos manuais e regimentos do Santo Ofcio portugus, a longa durao de uma justia que criminalizava o pecado

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    ordem moral-religiosa como a bigamia, a sodomia e a solicitao , e crimes menores

    como as proposies herticas, a feitiaria50, o apoio dado aos supostos hereges, falar

    mal do Santo Ofcio, dentre outros. Tambm to ao gosto de boa parte da historiografia,

    faamos uma comparao entre passado e presente, com base na anlise da natureza

    criminal das condutas perseguidas pela Inquisio portuguesa.

    Tomemos dois casos concretos de sodomia analisados pela historiografia, para

    nos inteirarmos das condutas praticadas por alguns dos sodomitas cuja perseguio,

    segundo Luiz Mott, foi uma estratgia [do Santo Ofcio] para reprimir a ameaa

    representada pelos filhos da dissidncia, portadores de uma contracultura temida como

    imoral e revolucionria51.

    O primeiro caso refere-se ao processo do sodomita Martim Leite, analisado pelo

    historiador Luiz Mott. Apesar de longa, a transcrio deste caso nos interessa tanto para

    conhecer melhor algumas das principais vtimas do preconceito52 como para ilustrar o

    que chamamos, anteriormente, de histria moral, mas que tambm uma histria de

    silncios:

    dentre os descendentes de Abrao de maior destaque nobilirquicoenvolvidos com o nefando pecado, h de se referir a Martim Leite [...]. Erameio cristo-novo pelo lado de seu pai [...] Martim era bissexual, tendo sidoacusado e assumido dezenas de cpulas anais heterossexuais, uma delas

    cometida com grande violncia contra Maria, uma adolescente de 13 anos.Segundo testemunhas, a me da moa encontrava-se na feira quando foichamada para ver sua filha que estava muito maltratada:[...] achou a menina estirada na cama, sem fala e quase morta, toda alagadaem sangue, assim como a cama em que estava e trs camisas e trs lenisque j se tinham ensopado. E todo aquele dia esteve a correr o dito sangue[enquanto] a me metia uns trapinhos de pano dentro do vaso traseiro de suafilha para lhe estancar o sangue e logo como lhos tirava, corria em bica outrosangue, de sorte que era uma lstima v-la e lhe pareceu que ela morriadaquele sucesso [...] porque at os sapatos que trazia se mostraram cheios desangue. Esteve mais de oito dias sem poder assentar com razo das dores53.Ao todo, consta em seu processo ter sodomizado nove homens e 14 mulheres.Na hora de ser julgado, os inquisidores ponderaram que, tendo se confessado

    sem denncia prvia e pelo fato de ser cavaleiro, fidalgo de gerao eparente de filhados nos livros del rey, por ter uma filha religiosa a quem

    50 Concordamos com Pedro Marcelo Pasche de Campos, o qual afirma que a Pennsula Ibrica [...]apresentou singulares peculiaridades, no que tange insero no movimento maior, europeu, de represso bruxaria. Comparando com outros pases europeus, o nmero de execues por bruxaria em Portugal eEspanha mnimo, para no dizer insignificante. Muito poucas bruxas foram comparativamente falando queimadas na Pennsula Ibrica. CAMPOS, Pedro Marcelo Pasche de, Inquisio, Magia eSociedade: Belm do Par, 1763-1769. Dissertao de mestrado sob a orientao da Profa. Dra. LanaLage da Gama Filho. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, p. 41.51 MOTT, Luiz. Sodomia no heresia: dissidncia moral e contracultura. In: VAINFAS, Ronaldo,FEITLER, Bruno, LIMA, L. L. G., (orgs.). A Inquisio em Xeque: temas, controvrsias, estudos de

    caso. Rio de Janeiro: Editora Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2006, p. 253.52 MOTT, Luiz, op. cit. (Filhos de Abrao & de Sodoma), p. 63.53 Trecho transcrito por Mott, cuja referncia IAN/TT, Inquisio de Coimbra, Proc. N. 2.775, 1661.

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