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Dos limites do poder-dever de autotutela da Administração Pública, conforme o caput do art. 54 da Lei nº 9.784/99. O Supremo Tribunal Federal há muito editou as conhecidas Súmulas 346 e 473 que estipulam, respectivamente: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” e “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Como lecionou o mestre Hely Lopes Meirelles, não se trata de um poder no sentido de faculdade, mas de um poder-dever. O mestre José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, leciona que existem dois tipos de prazos que acarretam a prescrição administrativa: os prazos que têm previsão legal e os que não dispõem dessa previsão. Conforme esclarece o referido professor, no que se refere aos prazos cuja fixação se encontra expressamente em lei, inexistem problemas, isto é, decorrido o prazo legal, está consumada de pleno direito a prescrição administrativa – ou decadência, se for o caso. Exemplifica o tema citando o art. 54, da Lei 9.874/99, que regula o processo administrativo na esfera federal. Nesse caso, a lei foi expressa: segundo dispositivo expresso, o direito da Administração de anular atos administrativos que tenham produzido efeitos favoráveis para os administrados decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, ressalvando-se apenas a hipótese de comprovada má-fé. Como esclarece o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, não se trata de um “não-exercício tempestivo de um meio, de uma via, previsto para defesa de um direito que se entenda ameaçado ou violado. Trata-se, pura e simplesmente, da omissão do tempestivo exercício da própria pretensão substantiva (não adjetiva) da Administração, isto é, de seu poder- dever; logo, o que estará em pauta, in casu, é o não-exercício, a bom tempo, do que corresponderia no Direito Privado, ao próprio exercício do direito. Donde, configura-se situação de decadência, antes que de prescrição, como já observara Weida Zancaner.” Cuida-se, na espécie, de limitação ao poder de autotutela da Administração, agora convertida em direito positivo em nome do cada vez mais consolidado princípio da segurança jurídica e de seu corolário, o princípio da proteção à confiança. Como esclarece o citado professor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da segurança jurídica é da própria “essência do Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo”. Esclarece, ainda, que por força deste princípio, firmou-se o entendimento de que “orientações firmadas pela Administração em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situação dos

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Dos limites do poder-dever de autotutela da Administração Pública, conforme o caput do art. 54 da Lei nº 9.784/99.O Supremo Tribunal Federal há muito editou as conhecidas Súmulas 346 e 473 que estipulam, respectivamente: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” e “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Como lecionou o mestre Hely Lopes Meirelles, não se trata de um poder no sentido de faculdade, mas de um poder-dever.

O mestre José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, leciona que existem dois tipos de prazos que acarretam a prescrição administrativa: os prazos que têm previsão legal e os que não dispõem dessa previsão. Conforme esclarece o referido professor, no que se refere aos prazos cuja fixação se encontra expressamente em lei, inexistem problemas, isto é, decorrido o prazo legal, está consumada de pleno direito a prescrição administrativa – ou decadência, se for o caso. Exemplifica o tema citando o art. 54, da Lei 9.874/99, que regula o processo administrativo na esfera federal. Nesse caso, a lei foi expressa: segundo dispositivo expresso, o direito da Administração de anular atos administrativos que tenham produzido efeitos favoráveis para os administrados decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, ressalvando-se apenas a hipótese de comprovada má-fé. Como esclarece o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, não se trata de um “não-exercício tempestivo de um meio, de uma via, previsto para defesa de um direito que se entenda ameaçado ou violado. Trata-se, pura e simplesmente, da omissão do tempestivo exercício da própria pretensão substantiva (não adjetiva) da Administração, isto é, de seu poder-dever; logo, o que estará em pauta, in casu, é o não-exercício, a bom tempo, do que corresponderia no Direito Privado, ao próprio exercício do direito. Donde, configura-se situação de decadência, antes que de prescrição, como já observara Weida Zancaner.”Cuida-se, na espécie, de limitação ao poder de autotutela da Administração, agora convertida em direito positivo em nome do cada vez mais consolidado princípio da segurança jurídica e de seu corolário, o princípio da proteção à confiança. Como esclarece o citado professor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da segurança jurídica é da própria “essência do Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo”.

Esclarece, ainda, que por força deste princípio, firmou-se o entendimento de que “orientações firmadas pela Administração em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situação dos administrados ou denegar-lhes pretensões, de tal sorte que só se aplicam aos casos ocorridos depois de tal notícia”.

A SEGURANÇA JURÍDICA COMO LIMITE À AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A necessidade da segurança jurídica: 2.1 Implicações principiológicas; 2.2 – Requisitos Exegéticos; 2.3 – A função de garantia da segurança. 3. A motivação como elemento da segurança jurídica – 4. O escopo de abrangência do princípio da segurança jurídica – 5. A segurança jurídica como limitador da autotutela administrativa – 6. Conclusões.

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1. Introdução

A importância do princípio da segurança jurídica, antes que passemos a conceituá-lo, remonta aos primórdios da elaboração da idéia do Estado Democrático de Direito e, neste pensar, assinala J.J Gomes Canotilho (1), se constituiria tal princípio em uma das vigas mestras da ordem jurídica, entendimento que é esposado por Hely Lopes Meirelles (2).

Segundo Almiro do Couto e Silva (3) um “dos temas mais fascinantes do Direito Público neste século é o crescimento da importância da segurança jurídica”, que se liga visceralmente à moderna exigência de maior estabilidade das situações jurídicas, aí incluídas aquelas, ainda que na origem, apresentem vícios de ilegalidade. Para esse jurista (4), “a segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de Direito. É ela, ao lado da legalidade, um dos subprincípios integradores do próprio conceito de Estado de Direito”.

Conforme nos ensina Luís Roberto Barroso (5), a segurança encerra valores e bens jurídicos que não se esgotam na mera preservação da integridade física do Estado e das pessoas: açambarca em seu conteúdo conceitos fundamentais para a vida civilizada, como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas. E, no dizer de Elody Nassar (6), “Em nome da segurança jurídica, consolidaram-se institutos desenvolvidos historicamente, com destaque para a preservação dos direitos adquiridos e da coisa julgada. É nessa mesma ordem de idéias que se firmou e se difundiu o conceito prescrição”.

Agregando-se a esse conceito vem a força imperiosa da acomodação fática por via da consolidação dos direitos exercidos e não disputados que se origina no instituto da prescrição, vale dizer, a estabilização das situações jurídicas potencialmente litigiosas por força do decurso do tempo.

Essas respeitáveis posições doutrinárias, entretanto, não são ilações doutrinárias desvencilhadas de conotações práticas, haja vista o monumento legislativo que se erigiu com a promulgação da Lei nº 9.874/99, dispondo sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal.

Mauro Nicolau Junior (7) assim postula: “As pedras fundamentais em que se assenta toda a organização política do Estado Democrático de Direito são a dignidade humana e o respeito aos direitos individuais e sociais dos cidadãos, conforme destacado no preâmbulo e no artigo primeiro de nossa Carta Magna”. A segurança jurídica, espécie do gênero direito fundamental,

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ocupa lugar de destaque no ordenamento jurídico atual, tanto que o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito são postulados máximos de cumprimento inclusive pela legislação infra-constitucional, e cujo reflexo na atuação administrativa vinculada é a imediata consagração do princípio da segurança jurídica que norteia a diuturna conduta dos agentes públicos.

Conforme elucidativa asserção de EGON BOCKMAN MOREIRA (8), “A edição da Lei nº 9.784/99 tem efeitos de extrema relevância. Mas o processo administrativo não se encontra limitado a tal diploma. Ao intérprete do direito público importa sobremaneira o texto constitucional”.

Quem explicita com maestria a dimensão ontológica da segurança nas relações sociais é Eduardo Couture (9): “Em sendo indissociável da ordem jurídica a garantia da coisa julgada, a corrente doutrinária tradicional sempre ensinou que se tratava de um instituto de direito natural, imposto pela essência mesma do direito e sem o qual este seria ilusório; sem ele a incerteza reinaria nas relações sociais e o caos e a desordem seriam o habitual nos fenômenos jurídicos”.

Foi exatamente este quadro, decerto, que se tem pretendido evitar prosperar, isto é, a evolução do pensamento, e da própria ciência jurídica, sempre procuraram afastar a insegurança e o caos nas relações sociais e jurídicas, ora agasalhando institutos como a prescrição, decadência, a coisa julgada, ora desenvolvendo conceitos como o da segurança jurídica e inserindo na legislação ordinária o imperativo de seu atendimento. Outro não é o entendimento do comando insculpido no art. 2º da Lei nº 9.784/99, que determina a obediência ao princípio da segurança jurídica.

2. A Necessidade da Segurança Jurídica

2.1 – Implicações principiológicas

A segurança que se espera ser propiciada pelo Estado não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também, e principalmente, a segurança jurídica. Eis que, no dizer de Mauro Nicolau Junior (10), “A segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes”.

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A função dos princípios na ótica do constitucionalismo pós-moderno vem a ser, justamente, o reconhecimento da elevação dos princípios constitucionais à categoria de elemento de normatividade, imanente a todo o ordenamento. O assim chamado Constitucionalismo veio a promover uma volta aos valores, uma reaproximação entre Ética e Direito.

Essa tábua axiológica, materializada nos princípios inscritos na Constituição, vêm adquirindo força normativa e passando a ser a síntese dos valores vigentes nos diversos segmentos do ordenamento jurídico. Ao espelhar a ideologia da sociedade refletem seus postulados principais, dos quais se espera irradiarem os efeitos pacificadores e diretores do meio social.

LUIS ROBERTO BARROSO (11) explicita que “Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie”. Portanto, para o jurista, três são as funções dos princípios: (i) condensar valores; (ii) dar unidade ao sistema; (iii) condicionar a atividade do intérprete.

No longo caminho que os conduziu ao epicentro do sistema, os princípios lograram ascender ao status de norma jurídica, após superar a resistência dos que neles reconheciam apenas uma dimensão axiológica, ética, pretensamente sem possuir eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata.

A topologia estratégica, portanto, do essencial princípio da segurança jurídica, que informa vários institutos jurídicos, constitui um dos princípios gerais do direito situando-se na base das normas sobre prescrição e decadência, e das que fixam prazos para a Administração rever os próprios atos. O legislador, ao consagrar objetivamente a incidência do instituto e da decadência no processo administrativo, está assegurando, na verdade, por meio dessas garantias processuais, a altissonante ascendência dos direitos fundamentais indispensáveis à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo da Carta Magna e no caput do art. 5º da Constituição de 1988, tal qual a definitividade da coisa julgada material.

Neste pensar, Maria Sylvia Zanella di Prieto (12) assim propugna: “O princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a conseqüente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança

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jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública”.

A justificativa para o princípio da segurança jurídica é, no douto dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello (13): “O fundamento jurídico mais evidente para a existência da ´coisa julgada administrativa´ reside nos princípios da segurança jurídica e da lealdade e boa-fé na esfera administrativa. Sergio Ferraz e Adílson Dallari aduzem estes e mais outros fundamentos, observando que: ´A Administração não pode ser volúvel, errática em suas opiniões. La donna è móbile – canta a ópera; à Administração não se confere, porém, o atributo da leviandade. A estabilidade da decisão administrativa é uma qualidade do agir administrativo, que os princípios da Administração Pública impõem´”.

Subsidiando tal pensar vem a Lei nº 9.784/99, em seu art. 2º, parágrafo único, inc. XIII, vedar a aplicação retroativa de nova interpretação de matéria administrativa já anteriormente avaliada. A segurança jurídica tem íntima afinidade com a boa-fé. Se a Administração adotou determinada interpretação como a correta para determinado caso concreto vem a lei, por respeito à boa-fé dos administrados, estabilizar tal situação, vedando a anulação de atos anteriores sob pretexto de que os mesmos teriam sido praticados com base em errônea interpretação de norma legal administrativa.

Para José Afonso da Silva (14) “Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”.Como a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, analogamente, por decorrência da aplicação cogente do princípio da segurança jurídica, não se afigura admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo, muitas vezes deflagradas por interesses pretensamente jurídicos, mas que são, em análise mais aprofundada, não raro escusos.

Essa instabilidade institucional não se coaduna com o Estado Democrático de Direito e a necessidade de se preservar a dignidade da pessoa humana, por decorrência direta da norma constitucional. Ao se reconhecer a atuação vinculada da Administração Pública à lei, este princípio ocupa lugar de destaque no panorama normativo lato sensu vinculado da atuação estatal.

É que a dignidade humana restaria seriamente danificada se por ventura fosse cabível uma extemporânea revisão, mesmo ex officio, dos atos administrativos que já deitaram raízes no mundo jurídico, quando praticados de boa-fé e houve produção de efeitos favoráveis ao

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administrado. A nova ótica constitucional que adrede alcançou os fundamentos do Direito Administrativo torna forçoso o reconhecimento da aplicação inescapável da principiologia constitucional na seara administrativa, um campo fértil para violações de direitos praticadas sob a égide do autoritarismo, cuja lembrança recente deixada pelo falecido “período autoritário” a todos alcançou.

O princípio do Estado de Direito, adotado em nosso ordenamento jurídico (CF/88, art. 1º, caput) como princípio fundamental e estruturante da República do Brasil, pressupõe a supremacia da Constituição, a projeção de sua vinculatividade para todos os campos estatais e sociais mediante o princípio da constitucionalidade e da legalidade, bem como da responsabilidade do Estado e de seus agentes, e o inafastável controle jurisdicional do exercício do poder.

CLÈMERSON MERLIN CLÈVE (15) evidencia a relevância jurídica da implantação do princípio do Estado de Direito no ordenamento pátrio ao assinalar que “O Estado de Direito projeta-se também como importante instrumento garantidor de Justiça, racionalidade, proteção contra o arbítrio e as instabilidades. Vincula-se, então, referido princípio fundamental, a uma certa funcionalização material. Não se trata de mero Estado sob regime de leis, mas sim de um Estado sob o direito, com o fim de realização e proteção de certos bens, valores e direitos fundamentais. Assim, ao mesmo tempo que o Estado de Direito afirma-se como princípio estruturante (na perspectiva axiológica) identificador da ordem jurídica, do Estado e da sociedade brasileira, ele também expressa um sentido de normatividade que se plasma e se densifica por alguns conteúdos (direitos fundamentais e bens protegidos) no âmbito do sistema constitucional”.

Não é por outra razão que costuma afirmar-se que o Estado de Direito possui como missão de índole constitucional, dentre outros fins autônomos de proteção, a tutela da confiança e da segurança jurídica. Deflui da própria ontogênese do Estado a garantia da segurança jurídica, significando isto que não pode se resumir da norma meramente declarativa ou programática a implementação, em nível infraconstitucional, do inteiro teor do comando daquela norma. Teleologicamente considerando-se é mister que haja norma ordinária especificadora, ou tradutora, do conceito de segurança jurídica e, em especial para o escopo do presente trabalho, evidenciadora da delimitação da atuação da Administração Pública, tendo em vista a necessidade prática do atendimento ao comando normativo principiológico superior oriundo da Magna Carta.

Esta benfazeja, e esperada, repercussão na esfera administrativa, veio a acontecer precisamente com o advento da Lei Federal nº 9.784/99, embora a jurisprudência já viesse rotineiramente aplicando tal princípio. Aliás, tal diploma legal é, no dizer do ínclito Min. Humberto Gomes de Barros (16), em acurado diagnóstico: “certamente um dos mais

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importantes instrumentos de controle do relacionamento entre Administração e Cidadania. Seus dispositivos trouxeram para nosso Direito Administrativo o devido processo legal. Não é exagero dizer que a Lei nº 9.784/99 instaurou, no Brasil, o verdadeiro Estado de Direito”.

Uma das mais conspícuas expressões da segurança é a segurança jurídica. A frustração da confiança do cidadão na realização do Direito é, na essência, um atentado à liberdade, no seu sentido mais amplo e importante. Assentindo com este pensar, Sérgio d´AndrEa Ferreira (17) bem pontua a importância da preservação da segurança jurídica como manifestação de um direito fundamental cognato à liberdade, ao postular que: “Se, feita uma opção legítima em face do direito posto, interpretado, revelado, executado, cumprido e aplicado, pudesse, futuramente, ser ela tida por ilícita, ou ser desfeita, não mais haveria segurança, nem, conseqüentemente liberdade, mas dependência, sujeição, risco. O cidadão voltaria a ser súdito. Regrediríamos à plenitude da era absolutista. Duas máximas retratam, com efeito, a filosofia e a realidade do poder absoluto: princeps legibum ac magistrastum imperio solutus (o soberano é imune às leis e ao poder dos juízes); quod princeps voluit legis (o desejo do soberano tem força de lei): Nenhuma lei pelo Rei feita o obriga, senão enquanto Ele, fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu real poder (Livro II, Título 35, § 21, Ordenações Filipinas de 1602)”.

Ainda que não se recorra a fobias exacerbadas do absolutismo, que há muito nos deixou, é inegável o reconhecimento de que no conjunto de direitos e garantias individuais do art. 5º da Constituição está inserido o direito à segurança jurídica, de cuja densidade se pode extrair que os litígios envolvendo bens em sentido amplo (inclusive, pois, os direitos subjetivos de qualquer espécie) hão de a ele se subsumir, podendo esse princípio ser invocado como determinante assecuratória de direitos violados ou na iminência de serem. O que, sob a ótica processual e nos casos mais graves, pode ensejar convite ao uso do remédio constitucional do writ para efetivação de sua defesa.

INGO WOLFGANG SARLET (18) postula a necessidade de se garantir a eficácia do postulado afirmativo da segurança, correlacionando-o com outro princípio: “A dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida em todo o lugar onde as pessoas estejam sendo atingidas por um tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranqüilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas posições jurídicas”. Aquilatando-se a questão, agora, sob o prisma do direito processual, no qual também incide o respeito à segurança, esta deve harmonizar-se com a efetividade da jurisdição e, conforme preceitua o eminente Min. Teori Albino Zavascki (19): “Por se tratar de direitos fundamentais de idêntica matriz constitucional, não há hierarquia alguma, no plano normativo, entre o direito à efetividade da jurisdição e o direito à segurança jurídica, pelo que hão de merecer, ambos, do legislador ordinário e do juiz, a mais estrita e fiel observância”. Todavia, é preciso ter sempre em mente

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que o decurso do tempo é requisito insubstituível da aplicabilidade do princípio em tela, sendo inevitável para a garantia plena do direito à segurança jurídica.

A importância do acatamento ao princípio da segurança jurídica é ampliado na sua adequação à hodierna conjuntura sócio-política brasileira quando percebemos a intranqüilidade transmitida pela atividade massificada do Estado ao âmago da cidadania, que clama por respeito ao ordenamento normativo constitucional como exigência impostergável da sociedade.

Neste diapasão é lição do ilustre Miguel Reale JÚnior (20), que acrescenta com maestria a importância de se viver com segurança: “A politização cívica, que, sob certos aspectos, não deixava de existir nem mesmo na antiga concepção do Estado de Direito - até o ponto de Hans Kelsen admitir a identificação normativa do Direito com o Estado -, se degenerou nos totalitarismos de toda a espécie, quando o cidadão passou a ser mero instrumento de uma transpessoal e desumana vontade política. Neste caso extremo, o Judiciário entrou em eclipse, perdendo sua competência eminente de proteger o indivíduo contra os abusos da Administração Pública divorciada da Constituição e das leis”.

Conceituada como salvaguarda dos cidadãos contra os abusos do príncipe e por isso avultando como baluarte da cidadania, a segurança jurídica é, por assim dizer, um supino meio de defesa social, recebendo também os influxos informadores de outro princípio constitucional de vanguarda no Estado de Direito: o princípio da dignidade da pessoa humana.

Compondo juntamente com o princípio da dignidade um dos pilares da principiologia constitucional que permeia todo o ordenamento infraconstitucional, a qual a Lei nº 9.784/99 bem soube exaltar e sacramentar, é a segurança jurídica considerada por AnTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO (21) um desdobramento da dignidade da pessoa humana: “O pressuposto e as conseqüências do princípio da dignidade (art. 1º, III, da CR) estão expressos pelo cinco substantivos correspondentes aos bens jurídicos tutelados no caput do art. 5º da CR; são eles: vida (é o pressuposto), segurança (primeira conseqüência), propriedade (segunda conseqüência) e liberdade e igualdade (terceira conseqüência), sendo o pressuposto absoluto e as conseqüências quase absolutas”.

2.2 – Requisitos Exegéticos

O Direito pretende e, sobretudo, o Direito Público, a pacificação social, a convivência harmônica entre os elementos do grupo social; no campo do Direito Administrativo, o que se

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visa garantir é o salutar relacionamento entre o administrado e a Administração Pública, assim definido como relação lastreada nos princípios basilares do Estado de Direito.

Ruy Samuel Espíndola (22), com clareza solar, assim expressou o conteúdo do princípio em comento: “O princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput, e seu inciso XXXVI, da CF) impõe que as relações jurídicas, as posições de direito delas decorrente, se já validamente consolidadas, se fruto de coisa julgada, ato jurídico perfeito, ou direito adquirido, não sejam tocadas, bulidas, no sentido de revogá-las ou modificar-lhes os efeitos já consolidados. Reclama também que sejam bem respeitados os institutos da decadência e da prescrição, especialmente no que toca ao direito de punir, de investigar sanções, por parte das autoridades”.

E, para o aperfeiçoamento da tríade assim formada (administrado, Administração, ordenamento jurídico) não só o decurso temporal como também a boa-fé vêm a informar o princípio da segurança jurídica, sendo este o segundo requisito inafastável para a devida aplicação do princípio à garantia, nos casos concretos, das situações fáticas litigiosas. Não basta, portanto, apenas o decurso do prazo decadencial para inibir a invalidação abusiva pela Administração; a boa-fé deve ter sido imanente ao ato impugnado, pois, apesar de o decurso do tempo operar com eficácia avassaladora, a boa-fé é um requisito intrínseco da incidência legal estudada, ex vi o art. 54 daquele diploma legal: “O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.”

Almiro do Couto e Silva, citado por Lúcia Valle Figueiredo (23), adverte-nos, nesse sentido: “A prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido”. Com esta ressalva ficam preservadas a coesão e a integridade do sistema, pois a cavilação, o dolo, a fraude, antagônicos do Direito, não estão a merecer a tão almejada proteção conferida aos atos praticados com boa-fé pelos administrados. Repelindo-se assim a má-fé, e protegendo-se a boa-fé, o sistema legal permanecerá coerente e sua jurisdicidade será mantida.

Convergindo para o raciocínio acima, WEIDA ZANCANER (24) também assente neste pensar, ao afirmar que “O princípio da legalidade é basilar para a atuação administrativa, mas como se disse, encartados no ordenamento jurídico estão outros princípios que devem ser respeitados, ou por se referirem ao Direito como um todo, como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como por exemplo, a boa-fé, princípio que também visa protegê-los quando de suas relações com o Estado”.

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Ressaltando a relativamente escassa produção doutrinária acerca da boa-fé no Direito Público, embora, quanto à temática deste trabalho, expressamente destacada na Lei nº 9.784/99 no art. 2º, parágrafo único, inciso IV, e também no art. 4º, inc. II, o eminente INGO WOLFGANG SARLET (25) aduz: “Convém não olvidar que o princípio da proteção da confiança guarda estreita relação com o princípio da boa-fé (no sentido de que a proteção da confiança constitui um dos elementos materiais da boa-fé), que, apesar de estar sendo intensamente versado na esfera do direito privado, ainda se ressente, no direito pátrio, de um maior desenvolvimento no âmbito do direito público, especialmente no campo do direito constitucional, administrativo e tributário”.

O que se nota dentre essas abalizadas posições doutrinárias, reforçadas pela observação do quotidiano mais comezinho, é a imperiosa necessidade de refrear a atuação administrativa estatal com base em normas suficientemente efetivas para impedir que o gigantismo do Estado venha a oprimir seus administrados tal qual um verdadeiro Leviatã.

A efetividade dessas normas, portanto, passa necessariamente pelo reconhecimento da indispensabilidade da incorporação do basilar princípio da segurança jurídica, adequadamente explicitado na Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/99), como norma norteadora da conduta dos agentes públicos.

2.3 – A função de garantia da segurança

A submissão do Estado, lato sensu, à principiologia e normatividade constitucionais implica na redentora implantação de uma dogmática protetora dos indivíduos no se relacionamento com a Administração, sendo que a segurança jurídica é um primado do Estado de Direito do qual a Administração Pública não pode se afastar. O primado da legalidade, qual norte magnético do sistema, exige, para fins de adequada proteção do indivíduo contra arbítrios de toda ordem, a estrita obediência a seus ditames. Tanto porque o art. 1º da Lei do Processo Administrativo Federal assim preceitua: “Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no Âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração”.

ARRUDA ALVIM (26) bem sintetiza a idéia ao propugnar que “Como elementos constitutivos do Estado de Direito que se refletem na atividade estatal, devemos observar o seguinte: o Estado de Direito implica na primazia absoluta da ordem jurídica que deve sobrepairar na sociedade, definindo-se e impondo-se uma conduta que emerge da ordem jurídica, se, a cuja ordem jurídica submete-se também e igualmente o Estado. Nesse primado absoluto da ordem jurídica

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está naturalmente compreendida, como implicação fundamental, como ponto nodal, a submissão do próprio Estado a esta ordem jurídica”.

Nesse contexto, o princípio da segurança jurídica, ao contrapor-se ao absolutismo que permitiria ao Estado rever sua anterior atuação, a qualquer tempo, desprezando-se efeitos consolidados pelo tempo e assim pacificados no seio da sociedade, permite a cristalização da evolução de um caminhar da doutrina jurídico-administrativa iniciada com a Revolução Francesa, ainda que com um perfil um pouco diferente do que nos é dado visualizar nos dias contemporâneos.

A função garantista da segurança jurídica foi muito bem retratada no comento de Eliezer Pereira Martins (27) ao professar que “O Estado de Direito segue a linha do direito, se auto-limitando, protegendo as liberdades individuais, contrapondo-se ao estado de poder, ou totalitário, sendo constitucionalmente organizado. Os dois fundamentos do estado de Direito são a segurança e a certeza jurídica. A segurança e a certeza do direito são indispensáveis para que haja justiça, porque é óbvio que na desordem não é possível reconhecer direitos ou exigir o cumprimento de obrigações”.

Deflui tranqüilamente do anteriormente enunciado que é fator de desordem inaceitável, incompatível com o Estado de Direito, a vulnerabilidade do cidadão perante os caprichos e desfeitas administrativas, às idas e vindas de interpretações mutantes de normas administrativas ou mesmo legais, ferindo direitos adquiridos de boa-fé, e já de longa data exercidos pacificamente. É neste contexto que se deve analisar a extremamente positiva edição da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99), consolidando-se, neste diploma, a dogmática acima explanada, com destaque para o princípio da segurança jurídica.

Embora o foco deste trabalho seja apenas a aplicação do princípio da segurança na seara administrativa, mais tormentoso ainda é o tema quando se enfoca a segurança jurídica sob a ótica da uniformização da jurisprudência, ferramenta processual destinada a combater a incerteza decorrente de interpretações jurisprudenciais divergentes. José Marcelo Menezes Vigliar (28) chega a dedicar em sua obra um capítulo inteiro (Capítulo 9) ao tema, intitulado “Uniformização de Jurisprudência: retorno Necessário ao Quadrinômio Igualdade, Segurança, Economia e Respeitabilidade. Uniformização de Jurisprudência como Garantia do Jurisdicionado”. Isso apenas demonstra que há no direito processual a preocupação, ainda carente no campo administrativo, de se manter a segurança do jurisdicionado pela redução de decisões divergentes.

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Recorrendo-se, ainda, ao ensinamento de um emérito processualista, com o fito de ilustrar a relevância do tema “segurança jurídica”, registramos o esclarecimento de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (29): “O interesse na preservação da res iudicata ultrapassa, contudo, o círculo das pessoas diretamente envolvidas. A estabilidade das decisões é condição essencial para que possamos jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência do funcionamento da máquina judicial”.

Em termos constitucionais a segurança jurídica tem dupla acepção: (i) no sentido amplo, assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de pessoa ou situação fática; (ii) em sentido estrito, consiste na garantia de estabilidade e certeza dos negócios jurídicos realizados pelo indivíduo, envolvendo ou não o Estado, de forma que ele saiba de antemão, quando participa de uma dada relação jurídica, que ela se manterá estável no tempo. JOSÉ AFONSO DA SILVA (30) nos oferece uma singela definição da função protetora da segurança jurídica asseverando que “certo é que um direito inseguro é, por regra, um direito injusto, porque não lhe é dado assegurar o princípio da igualdade. Assim, a segurança legítima do direito é apenas aquela que signifique garantia contra arbitrariedade e contra injustiças”.

Logo a seguir, o brilhante constitucionalista (31) arremata: “A Constituição reconhece quatro tipos de segurança jurídica: a segurança como garantia; a segurança como proteção dos direitos subjetivos; a segurança como direito social e a segurança por meio do direito”.

3. A motivação como elemento da segurança jurídica

Não percamos de vista que o princípio do devido processo legal foi inserido pelo constituinte na Carta Magna de 1988 no seio das normas garantidoras dos direitos individuais e coletivos (art 5º, inciso LIV). É curial ter-se em mente, por ora, que o conceito de legalidade, a que está restrita a Administração Pública, não pode ser resumidamente entendido como uma legalidade estrita, ou seja, aquela oriunda apenas do direito positivado; nele se inclui, com toda a propriedade, a totalidade do ordenamento jurídico, incluindo a Constituição que, com sua carga principiológica, seguirá vinculando a Administração Pública.

O ensinamento de Paulo Magalhães da Costa Coelho (32) reza que: “A cláusula do devido processo legal é, portanto, direito fundamental e absolutamente essencial em nosso ordenamento jurídico. Evidentemente que destinatários do princípio são todos os poderes do Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário.”

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Muito se tem escrito sobre as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, etc. Todavia, não traduz o objetivo desse estudo o aprofundamento nessas questões. Ao contrário, em vista da característica muitas vezes oscilatória, e não raro pusilânime, de atitudes estatais supostamente revestidas de legalidade e finalidade pública, é que se pretende aqui analisar um particular princípio inserido no contexto do devido processo legal: o princípio da motivação, aspecto do devido processo legal que se alicerça com toda certeza, no princípio da segurança jurídica.

O dever de motivar os atos administrativos encontra singela explicação quando se percebe que somente a partir da explicitação dos motivos de fato e de direito do ato é que se torna possível exercer o controle jurisdicional sobre eles, resultando como consectário jurídico de primeira grandeza que ato imotivado é ato nulo, devendo o Poder Judiciário fulminá-lo de forma implacável. A tradicional invocação de formas vagas e genéricas, apesar de costumeiras, v.g., “razões de interesse público´, ou “caráter relevante e urgente”, não têm o condão de afastar a falta de motivação do ato. É neste pensar o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello (33), apregoando que “Dito princípio implica para a Administração, o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existente e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo.”

Não se pode imaginar, contudo, que a cada ato administrativo, independentemente da sua natureza, venha-se a exigir extenso e prolixo arrazoado explicitante dos motivos. Esse cuidado com a motivação é apenas sobremaneira exigido em atos e processos em que haja litígio, em que se esteja revendo situações consolidadas, sancionando condutas, isto é, sempre que à iniciativa oficial da Administração esteja contraposto um interessado, particular ou servidor, com objetivos divergentes daqueles que se pretenda tutelar. Lúcia Valle Figueiredo (34) produza salutar explanação deste aspecto ao observar “Quando estivermos diante de processos (em sentido estrito) que têm contrariedade, ou, por outro lado, diante de processos em que existam ´acusados´ - ainda que entre aspas -, em face de processos sancionatórios; assim também quando estivermos em face de processos ablativos de direito, ainda que a Administração se coloque diante de atos administrativos emanados ilegalmente”.

Pois que o teor do texto constitucional fala em litigância: “aos litigantes em processo administrativo ou judicial, e aos acusados em geral”, denotando contraposição ou contrariedade de interesses, será de capital importância, de molde a propiciar a segurança do controle jurisdicional do ato, a aplicação do devido processo legal com realce da motivação. A título de ilustração, um processo administrativo tramitando perante a competente repartição pública municipal, já completo após análise de todos os seus requisitos legais, e que culmina com a concessão de um alvará de licença para estabelecimento, prescinde de maior profundidade no quesito motivação. Outrossim, a apuração de atitude faltosa do servidor, em

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processo administrativo disciplinar, carece da adequada motivação para configurar um processo condizente com os ditames constitucionais.

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO (35), adentrando na semântica da motivação, esclarece que “Se a lei estabelece sobre quais fundamentos e em face de que circunstâncias deverá ou poderá agir o Poder Público, está-se diante de um motivo vinculado. O motivo vinculado será razão necessária para agir, embora possa não ser suficiente. Qualquer outro motivo, que não o vinculado, acarreta a nulidade do ato, inclusive o insuficiente, o inadequado e, com maior razão, o falso.” A cidadania exige que a estrita legalidade da conduta do agente público possa ser aferida, e corrigida judicialmente se preciso for, sempre que houver desvio ou excesso de poder, vícios estes nada incomuns na nossa realidade. Ao contrário, de tão freqüentes, exige-se do aparelho estatal completa submissão ao devido processo legal para garantia do indivíduo contra arbitrariedades e abusos, inimigos comuns da cidadania e do Estado de Direito consagrado na Constituição.

Em suma, o ato administrativo, exarado pela autoridade competente quando decide situação controvertida no seio de um processo administrativo, precisa estar formalmente motivado, o que significa serem inadmissíveis o enquadramento errado dos fatos aos preceitos legais ou mesmo a inexistência da hipótese legal embasadora. Sob a ótica da segurança jurídica, a motivação, mesmo que presente, se inválida, acoima de nulidade o processo a partir do ato em do qual emanou, pois que uma decisão administrativa proferida com tal eiva de motivação gera uma instabilidade sistêmica no ordenamento, já que mesmo prenhe de nulidade, tal decisão produzirá efeitos – danosos, diga-se – até sua retirada do mundo jurídico, ou por força de recurso administrativo, ou por via do controle jurisdicional a que se sujeita a Administração Pública.

O escólio de VERA SCARPINELLA BUENO (36) nos brinda com a aguçada conceituação: “A realização de um procedimento justo integra, portanto, ainda que não exaustivamente: a) uma dimensão de participação; b) uma dimensão de informação (publicidade e transparência); c) uma dimensão de fundamentação (motivação); d) uma dimensão de eficiência (celeridade e racionalidade); e e) uma dimensão de imparcialidade”.

Também Gerfran Carneiro Moreira (37) acresce a discussão assentindo em que “Está o administrador compelido a motivar todas as suas atuações. Esta imposição – que exterioriza, com magnitude, os princípios republicano e democrático – é mais realçada quando se trata dos atos decorrentes do exercício de competência discricionária, pois, nessas hipóteses, somente o exame da motivação possibilita o controle da legalidade”. Não é exagero concluir que, o procedimento administrativo escorreito, na acepção estritamente condizente com aquela fornecida pela citada Lei do Processo, em especial a contendo uma adequada motivação dos atos decisórios de repercussão extra corporis, é um mecanismo de composição de interesses,

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de pacificação social, de garantia democrática, e sumo mecanismo de tutela de direitos dos administrados, traduzindo-se, portanto, num operador extremamente eficiente na realização dos direitos fundamentais.

4. O escopo de abrangência do princípio da segurança jurídica

Uma vez que o princípio em comento consta expressamente da Lei nº 9.784/99, resta perscrutar o horizonte de aplicação do mesmo, ou seja, quais são as pessoas jurídicas a ele submetidas. Cabe ressaltar que ao referir-se explicitamente à administração direta e indireta, estão abrangidos, no que tange à administração direta os Ministérios e todos os órgãos da União, assim como, no tocante à indireta, ficam abrangidas as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista vinculados aos diversos Ministérios integrantes do Poder Público Federal.

Conforme leciona JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, (38) “Vale a pena sublinhar que a lei se referiu expressamente à administração indireta, que, como é sabido, pode ser desempenhada por entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, como é o caso das sociedades de economia mista e empresas públicas. Conquanto sejam pessoas privadas, não deixam de integrar a Administração Pública federal, de modo que também elas deverão observar o procedimento estatuído na lei, sobretudo quando houver interesse de terceiros, administrados, que devem ser preservados como deseja o diploma regulador.”

Não podemos, tampouco, menosprezar sua incidência normativa nos processos administrativos também em tramitação perante os poderes Judiciário e Legislativo, ressalvado-se que assim ocorrerá apenas naqueles que representem a atuação administrativa desses poderes, ex vi o que dispõe o art. 1º, § 1º, do referido diploma legal.

O festejado administrativista (39) conceitua como plena a aplicação dessas normas também ao Ministério Público e o Tribunal de Contas, por interpretação sistemática dos preceitos legais, pois, partindo-se do princípio de que o sistema se refere à Administração Pública em geral, não há como afastar tais órgãos da incidência dos preceitos regulamentares da citada lei, ao menos no que toca aos processos administrativos relacionados às atividades tipicamente administrativas executadas necessariamente por eles.

Um caso peculiar de subsunção às normas regulamentares do processo administrativo federal se constitui no poder-dever de fiscalizar seus filiados conferido às chamadas autarquias profissionais, tais como o CREA, o CRM, a OAB, etc., por força de leis federais próprias e

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específicas das atividades profissionais. Aquelas autarquias, que além de serem entidades prestadoras de serviço público, são regidas por normas de direito público e, a princípio, não têm como se eximir de nortear seus processos administrativos, disciplinares ou não, às normas processuais já referidas, em que se destaca o necessário respeito ao princípio da segurança jurídica no formato detalhado pela lei em comento. No caso específico da OAB, seu Estatuto, regulado pela Lei nº 8.904/94, impõe, através do art. 68, a aplicação subsidiária a processos não disciplinares das “regras gerais do procedimento administrativo comum e da legislação processual civil, nesta ordem”, em remissão natural e automática aos ditames da Lei do Processo Administrativo Federal. No tocante à Advocacia, portanto, o sistema está coeso e consistente, provavelmente em função da posição de destaque ocupada por esta nobre atividade profissional no cenário jurídico pátrio (40), que não admitiria jamais a deficiência legislativa interna corporis.

É nesse pensar que desponta a lição do ilustre Fábio Medina Osório (41): “Se uma dada entidade é regulada pelo Direito Público, sendo obrigatória a filiação do particular nessa entidade para o exercício profissional, é comum que a legislação estabeleça poderes sancionatórios a esses órgãos fiscalizadores, poderes que se submetem ao Direito Administrativo Sancionador, ainda que a atividade fiscalizada se paute por normas de direito privado, normas deontológicas, de ética institucional. (...) É fundamental ao reconhecimento do caráter público das funções de determinadas Corporações ou Colégios profissionais, que, nessa medida, atuariam praticamente ´em nome´ do Estado na imposição de sanções administrativas a seus membros, em que pese o fato de o órgão sancionador não ser, rigorosamente, uma autoridade administrativa ou judiciária.”

Porém, independentemente do âmbito de aplicação da Lei nº 9784/99, faz-se mister ressaltar a função garantidora do processo administrativo, que é vislumbrada por Odete Medauar (42) no seguinte sentido: “O processo administrativo vem finalizado à garantia jurídica dos administrados (particulares e servidores), pois tutela direitos que o ato administrativo pode afetar. Isso porque a atividade administrativa tem de canalizar-se por parâmetros determinados, como requisito mínimo para ser qualificada como legítima. No esquema processual o cidadão não encontra ante si uma Administração livre, e sim uma Administração disciplinada na sua atuação”.

Isso significa que no âmbito desses Conselhos, em função de serem pessoas jurídicas de direito interno de natureza pública, os filiados estão guarnecidos pela aplicação da Lei em comento aos processos que tratam de seus direitos perante tais órgãos, como fonte de normas processuais gerais subsidiárias às normas legais porventura existentes, ressalvando-se que nos processos disciplinares a especialidade de seus preceitos prevalecerão.

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A respeito da natureza jurídica dessas corporações de profissionais, não é novidade sua concepção como prestadoras de serviços públicos, dotadas de caráter híbrido (de direito público e de direito privado). Paulo Luiz Netto LÔbo (43), um dos mentores do Estatuto da Advocacia e da OAB, assim classifica a Ordem, embora reconhecendo sua natureza pública: “A OAB não é nem autarquia nem entidade genuinamente privada, mas serviço público independente, categoria sui generis, submetida fundamentalmente ao direito público, na realização de atividades administrativas e jurisdicionais, e ao direito privado, no desenvolvimento de suas finalidades institucionais”.

O que transcende a tipologia da Ordem é sua natureza de pessoa jurídica de direito público interno, conjugando-se isto com sua missão de índole constitucional e também o disposto no suso-referido art. 68, impende sua aceitação, ipsis literis, das normas referentes aos processos administrativos.

5. A segurança jurídica como limitador da autotutela administrativa

É sabido que, desde o Direito Romano, prevalece no Direito Privado a regra de que o ato jurídico nulo de pleno direito jamais pode gerar efeitos jurídicos: quod nullum est nullum producit effectum, daí defluindo que a nulidade absoluta é perpétua. A teoria das invalidades do Direito Privado, todavia, não comporta transposição integral para o campo do Direito Público, pois a segurança jurídica na acepção anteriormente explanada vem a atenuar-se, ou mesmo, adaptar-se, quando o âmbito de aplicação é o Direito Administrativo. A ponderação de MIGUEL SEABRA FAGUNDES, acolhida por ALMIRO DO COUTO E SILVA (44), assim preconiza: “Esses traços que compõem o quadro geral de invalidade dos atos jurídicos no direito privado não podem ser deslocados por inteiro para o direito público porque a noção de interesse público ou de utilidade pública, em torno da qual se estrutura e gira todo aquele setor do direito, pode exigir, em certas situações, a permanência no mundo jurídico do ato originariamente inválido, pela incidência do princípio da segurança jurídica”.

ARRUDA Alvim (45), acrescenta: “O poder administrativo, portanto, é sempre submisso à realização desta finalidade pública. Ele é instrumental e deve concretizar no plano jurídico do seu agir, esta finalidade pública. É diferente, inteiramente, do poder do particular, animado pela autonomia privada, cujo poder, vivificado por essa autonomia privada, persegue a sua própria satisfação pessoal ou a satisfação dos seus interesses particulares”. Conhecendo-se serem dotados de conotação, no agir, nitidamente distintas, o público e o privado, fica fácil aceitar a incidência de teorias igualmente distintas no tratamento das invalidades.

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Sabe-se que o Egrégio Supremo Tribunal Federal já sumulou a possibilidade da Administração rever e invalidar seus próprios atos. Contudo, a convergência, na Lei do Processo Administrativo, dos aclamados preceitos constitucionais antes descritos veio a mitigar a literalidade de seus enunciados. Por esta razão é que nos avisa o célebre SERGIO FERRAZ (46): “O poder-dever de revisão do ato ilegal, tratando inclusive nas célebres Súmulas 346 e 473 do STF, há de ser, atualmente, meditado à luz da processualização da atividade administrativa, com seu escudo de garantias, tudo com fundamento nos incisos LIV e LV, do art. 5º, da Constituição Federal. Em nossa visão, o tema hoje comporta novas balizas. De regra, deve-se evitar, até em homenagem à segurança jurídica, a invalidação de ofício do ato administrativo viciado ou irregular”.

Há um motivo até muito simples para tal raciocínio: quem garante que a decisão superveniente, em processo revisional autônomo ou não, por suposição unilateral, de ilegalidade do ato, é mais acertada que a precedentemente obtida, no sentido de sua validade, após o embate do contraditório ?

Há que se considerar, também a aplicabilidade suplementar do inciso XIII, do parágrafo único, do art. 2º da Lei nº 9784/99, onde se veda a aplicação retroativa de nova interpretação da norma administrativa. SERGIO FERRAZ (47) considera ainda, neste diapasão, que as decisões administrativas, por gozarem de presunção de legalidade e tendo sido produzidas em um contexto de boa-fé e necessidade de estabilidade das relações sociais, estariam irremediavelmente vulneradas se admitida revisão de ofício.

E, por derradeiro, registra o autor (48), “à decisão administrativa há de ser atribuída uma sólida consideração de segurança e consistência, sob pena de se tornar inútil a própria idéia de processo administrativo”. Naturalmente que a já mitigada Súmula nº 473 do STF vem a contrapor-se a este entendimento. Há que se sopesar, contudo, o contexto em que se produziu tal súmula (editada em 3.10.1969) com a novel dogmática jusconstitucional garantidora de direitos e afirmativa do indivíduo, surgida na esteira da Constituição Cidadã de 1988.

No entender do insigne Min. do STJ, Luiz Fux (49): “Se é assente que a Administração pode cancelar seus atos, também o é que por força do princípio da segurança jurídica obedece aos direitos adquiridos e reembolsa eventuais prejuízos pelos seus atos ilícitos ou originariamente lícitos, como consectário do controle jurisdicional e das responsabilidades dos atos da Administração. (...) Em conseqüência, não é absoluto o poder do administrador, conforma insinua a Súmula 473”.

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Ainda na jurisprudência do stj, é supinamente salutar à compreensão do texto ter-se em mente um excerto do voto da Exma. Min. Laurita Vaz (50), “Não pode o administrado ficar sujeito indefinidamente ao poder de autotutela do Estado, sob pena de desestabilizar um dos pilares mestres do Estado Democrático de Direito, qual seja, o princípio da segurança das relações jurídicas”.

Retornando à função garantista do processo administrativo, sob a ótica do administrado, o magistrado Flávio Roberto de Souza (51) estatue serem dois os impedimentos à invalidação: (a) o decurso de tempo (prazo decadencial de cinco anos); e (b) situação consolidada (boa-fé e segurança jurídica).

Inteiramente congruente com esses superiores pronunciamentos é de se ressaltar o seguinte aresto, da lavra do eminente Desembargador Sérgio Pitombo (52): “De fato o ordenamento jurídico impõe limites à prerrogativa da Administração Pública rever e modificar ou invalidar seus atos. Um desses limites, fundado no princípio da boa-fé e da segurança jurídica, reside na mudança da orientação normativa interna ou jurisprudencial. Assim é que a alteração da orientação da Administração, no âmbito interno ou em decorrência de jurisprudência, não autoriza a revisão e invalidação dos atos que, de boa-fé, tenham sido praticados sob a égide de orientação então vigente, os quais, por assim dizer, geram direitos adquiridos.”

Para ressaltar a importância do princípio na ordem jurídica nacional, é de se notar um certo paralelismo no processo civil, com o processo administrativo, no que tange à preponderância da segurança jurídica sobre outros institutos, e este se verifica no campo da ação rescisória. Por essa razão é interessante o que relatou o Min. FRANCIULLI NETO (53) sobre o tema: “O Estado tem interesse em proteger a coisa julgada em nome da segurança jurídica dos cidadãos, mesmo em prejuízo à busca pela justiça. Por esse motivo, as hipóteses de cabimento da ação rescisória são taxativas.” Em fundamentação análoga, mas em outra ação, o Min Luiz Fux (54) relatou da seguinte forma: Um dos pilares da segurança jurídica é exatamente o respeito à coisa julgada. Deveras a eliminação da Lei inconstitucional, em geral, deve obedecer aos princípios que regulam a vigência das Leis, impedindo-a de retroagir”.

O paralelismo que se deve extrair desses arestos, embora referentes à coisa julgada e ação rescisória, institutos próprios do processo civil, é que a segurança jurídica é deveras uma restrição à livre flutuação das decisões, em especial aquelas que visam a cassar decisões anteriores que, contudo, na seara administrativa, adquirem contornos mais simples e facilmente identificáveis.

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carlos pinto coelho Motta (55) observa que antes da entrada em vigor da Lei nº 9.784/99 havia uma corrente defendendo a imprescritibilidade do direito de a Administração anular seus próprios atos com base na Súmula nº 473 do STF, sob alegação de que os atos nulos geram nulidade perpétua, não se convalidando jamais, e tendo como ponto de partida a teoria das nulidades do Direito Privado que, como vimos, não se prestam a prosperar no Direito Administrativo. A partir, entretanto, da edição daquela Lei, que deixou claro, em seu art. 54, haver um prazo (decadencial) de cinco anos para ocorrência de tal façanha, encerrou-se o debate sobre o tema. Este autor, portanto, lança uma pá de cal sobre a polêmica, conceituando com brilhantismo (56): “Daí que não se pode deslocar por inteiro para o Direito Público o quadro geral da invalidade dos atos jurídicos no Direito Privado, posto que, em certas situações, a permanência no mundo jurídico do ato administrativo inválido se impõe, em prol do interesse público e em face do princípio da segurança jurídica”.

A jurisprudência, todavia, mesmo antes da edição da citada Lei, já vinha agasalhando a tese com firmeza, conforme menciona o autor um julgado do aclamado Min. Humberto Gomes de Barros (57): “Os atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois, se não gerassem não haveria qualquer razão para nos preocuparmos com eles. Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra específica seja porque estarão abrigadas por algum princípio do direito”.

Aglutinado-se à corrente mencionada, também o ínclito Min. Gilson Dipp (58) assim já se pronunciou: “Nos termos do art. 54 da Lei nº 9.784/99, o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

JOSÉ DO SANTOS CARVALHO FILHO (59) apresenta, com sua tradicional didática e clareza solar, a justificativa para o instituto: “A correção do ato administrativo através da anulação não fica sempre a critério da Administração. Há certas situações fáticas que produzem obstáculos ou barreiras obstáculos ou barreiras à anulação. Uma delas consiste na consolidação de determinada situação decorrente do ato viciado: se os efeitos desse ato já acarretaram muitas alterações no mundo jurídico, consolidando certa situação de fato, a subsistência do ato, mesmo inquinado de irregularidades, atende mais ao interesse público do que seu desfazimento pela anulação”.

Adquirindo novos contornos, o Direito Público, à semelhança do que sucedeu com a edição do Novo Código Civil de 2002, em especial por força da cláusula geral inserida no art. 422, vem prestigiar a boa-fé na relação com os administrados, explicitando esta axiologia objetivamente nos art. 2º, inc. IV, e 54, da Lei nº 9.784/99. Não é por outra razão o comento de Patrícia Baptista (60): “No que se refere à Lei federal seu exame revela a influência das mais recentes

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regulações européias (notadamente da lei italiana de 1990 e da espanhola de 1992), assim como a incorporação das modernas concepções doutrinárias acerca do tema. De pronto, registram-se no art. 1º, como objetivos da lei, a proteção dos direitos do administrados e o melhor cumprimento dos fins da Administração”.

É, então, aqui, que se coloca a vexata quaestio: qual o mal maior, para o interesse público e, em última análise, para a sociedade ? (a) a preservação da segurança jurídica, e a conseqüente estabilização das relações sociais ou, (b) ao contrário, a negativa de vigência de decisão anteriormente já tomada pela Administração, sob pretexto de que uma melhor a está substituindo, via a anulação da anterior, sabedores que somos todos da volatilidade de interpretações, com freqüência dissonantes da lei, que se originam do seio do Poder Público ?

Lúcia Valle Figueiredo (61), despertando nossa consciência para a sempre atual questão da necessidade de frear o ímpeto opressor do Estado todo poderoso, subsidia a melhor opção que, a nosso ver, é evidentemente a do item (a) [aliás, esta opção já foi feita pelo legislador]: “Faz-se modernamente, também a correção de algumas distorções do princípio da legalidade da Administração Pública, resultantes do esquecimento de que sua origem se radica na proteção dos indivíduos contra o Estado, dentro do círculo das conquistas liberais obtidas no final do século XVIII e início do século XX, e decorrentes, igualmente, de ênfase excessiva no interesse do Estado em manter íntegro e sem lesões, seu ordenamento jurídico”.

Ou seja, melhor razão há na preservação do ordenamento jurídico do que nos precípuos interesses do Estado, pois que apenas a integridade do ordenamento jurídico pode garantir o interesse maior na manutenção do Estado de Direito.

6. Conclusões

Em resumo, se por um lado a Administração, entendida sem seu sentido lato, para o devido atendimento a suas finalidades precípuas, é revestida de poderes e prerrogativas próprias e se relaciona com o administrado em posição de exercer seu ius imperium, por outro lado é igualmente verdade que tal acromegalia de poderes é mitigada pelos direitos fundamentais dos indivíduos, que ela não pode desrespeitar, sob pena de eivar de nulidade insanável sua atuação. Dentre os princípios garantidores do Estado Democrático de Direito que necessariamente informam a conduta estatal, o princípio da segurança jurídica ocupa lugar destacado como consectário da dignidade da pessoa humana e da secular necessidade de estabilidade nas relações sociais. Assim, mormente no decurso de um processo administrativo, a decadência, que atua como freio ao poder de autotutela da Administração, tem aplicação obrigatória. Exige-se, porém, a presença simultânea da boa-fé do administrado e o suficiente

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lapso temporal, pois assim os efeitos favoráveis emanados da decisão vulnerada serão equiparados a direitos adquiridos dignos de serem preservados.

Notas:

1. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p.384.

2. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo, Malheiros, 2002, p.94.

3. COUTO E SILVA, Almiro do. A prescrição qüinqüenária da pretensão anulatória da Administração Pública com relação a seus atos administrativos. Rio de Janeiro: Renovar, Revista de Direito Administrativo, vol. 204, 1996, p.24.

4. COUTO E SILVA, Almiro do. idem.

5. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.49.

6. NASSAR, Elody. Prescrição na Administração Pública. São Paulo: Saraiva, 2004, p.18.

7. NICOLAU JUNIOR, Mauro. Segurança Jurídica e certeza do Direito: realidade ou utopia num Estado Democrático de Direito. Inwww.jurid.com.br, disponível em 10/03/05, acessado em 25/03/05, p.21.

8. Moreira, Egon Bockman. Processo Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.64.

9. COUTURE, Eduardo. Fundamentos del Derecho Processal Civil. Buenos Aires: Depalma, 1974, nº 263, p.405, apud Mauro Nicolau Junior, op.cit., p.21.

10. NICOLAU JUNIOR, Mauro, op.cit., p.24.

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11. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. In Cadernos de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros, vol. 1, 2003, p.171.

12. DI PRIETO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.85.

13. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.427.

14. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.433.

15. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Crédito prêmio do IPI. Eventual mudança de orientação jurisprudencial e princípio constitucional da segurança jurídica. São Paulo: RT, Revista dos Tribunais, ano 94, vol. 831, janeiro-2005, p.169.

16. STJ: MS nº 8946-DF, Rel. Min. Humberto Gomes Barros, jul. 22.10.03, publ. DJU 17.11.03, p.197.

17. Ferreira, Sérgio de Andréa. O princípio da segurança jurídica em face das reformas constitucionais. Rio de Janeiro: Forense, Revista Forense, vol. 334, abr-jun/1996, p.191.

18. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no Direito Constitucional Brasileiro. InROCHA, Carmem Lúcia Antunes ( org.), Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.94.

19. Zavascki, Teori Albino. Antecipação de tutela e colisão de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, Revista Forense, vol. 339, jul-set/1997, p.178.

20. REALE JUNIOR, Miguel. Questões de Direito Público. São Paulo: Saraiva, 1997, p.47.

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21. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. São Paulo: RT, Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 797, março/2002.

22. Espíndola, Ruy Samuel. Princípios Constitucionais e atividade jurídico-administrativa: anotações em torno de questões contemporâneas. In LEITE, George Salomão (org.). Dos Princípios Constitucionais: Considerações em torno das Normas Principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p.273.

23. COUTO E SILVA, Almiro. Princípios da legalidade da Administração Pública e a segurança jurídica, apud FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.245.

24. ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p.60.

25. SARLET, Ingo Wolfgang, op.cit., p.97.

26. ALVIM, Arruda. Os limites existentes ao controle jurisdicional dos atos administrativos. In REPRO, São Paulo: RT, ano 25, vol. 99, jul-set/2000, p.151.

27. MARTINS, Eliezer Pereira. Segurança jurídica e certeza do direito em matéria disciplinar; aspectos atuais. Rio de Janeiro: Renovar, Revista de Direito Administrativo, vol 230, out-dez/2002, p.142.

28. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de Jurisprudência: Segurança Jurídica e Dever de Uniformizar. São Paulo: Atlas, 2003.

29. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Porto Alegra: Síntese, Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, vol. 1, nº 1, jul/1999, p.13.

Page 25: Dos limites do poder

30. SILVA, José Afonso da. Constituição e segurança jurídica. InROCHA, Carmem Lúcia Antunes (org.), Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.16.

31. SILVA, José Afonso da, op.cit., p.17.

32. COELHO, Paulo Magalhães da Costa. Controle Jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Saraiva, 2002, p36.

33. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op.cit., p.102.

34. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estado de Direito e devido processo legal. In Caderno de Soluções Constitucionais, São Paulo: Malheiros, vol. 1, 2003, p.146

35. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.195.

36. BUENO, Vera Scarpinella. As leis de procedimento administrativo: uma leitura operacional do princípio constitucional da eficiência. In Sundfeld, Carlos Ari (org.), As Leis do Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p.362.

37. MOREIRA, Gerfran Carneiro. Os princípios constitucionais da administração e sua interpretação: reflexões sobre a função administrativa no Estado Democrático de Direito. In Figueiredo, Lúcia Valle (org.), Devido Processo Legal na Administração Pública. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.112.

38. carvalho filho, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.41.

39. carvalho filho, José dos Santos, op.cit., p.45.

Page 26: Dos limites do poder

40. CF/88, Art. 133. “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações, no exercício da profissão, nos limites da lei”.

41. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT. 2000, p.64.

42. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 9ª ed. São Paulo: RT, 2005, p.190.

43. Lôbo, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.235.

44. COUTO E SILVA, Almiro do. A prescrição qüinqüenária da pretensão anulatória da Administração Pública com relação a seus atos administrativos. Rio de Janeiro: Renovar, Revista de Direito Administrativo, vol. 204, 1996,p.25.

45. ALVIM, Arruda. op.cit., p.156.

46. FERRAZ, Sérgio. Processo administrativo: prazos e preclusões. In SUNDFELD, Carlos Ari. As Leis do Processo Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2000, p.301.

47. FERRAZ, Sérgio. Ibidem.

48. FERRAZ, Sérgio. Ibidem.

49. STJ: REsp. nº 402.638/DF, j. 03.04.03, pub. DJU 02.06.03, p.187; in São Paulo: Dialética, RDDP, vol. 5, ago/2003, p.237.

50. STJ: REsp. nº 645.856/RS, j. 24.08.04, pub. DJU 13.09.04, p.291.

51. SOUZA, Flávio Roberto de. Coletânea de Textos CEPAD: Direito Administrativo na Doutrina e na Jurisprudência. Rio de Janeiro: Espaço Jurídico, 2003, p.124.

Page 27: Dos limites do poder

52. TJSP: 7ª Câmara, Apel. Cív. nº 27.127.5/5-00, jul. 11.08.97; in São Paulo: RT, Revista dos Tribunais, vol. 746, dez/1997, p.224.

53. STJ: AgRg na Ação Rescisória nº 2.410/PR (2002/0071294-3), j. 23/04/03, in São Paulo: Dialética, RDDP, vol. 7, out/2003, p.159.

54. STJ: EDcl no AgRg na Ação Rescisória nº 2.344/SP (2002/0055987-1), j. 11/06/03, in São Paulo: Dialética, RDDP, vol. 7, out/2003, p.144.

55. MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Curso Prático de Direito Administrativo. 2ª ed. Belo Horizonte: DelRey, 2004, p.701-702.

56. MOTTA, Carlos Pinto Coelho. op.cit., p.702.

57. STJ: REsp nº 63.451, j.07.06.95 – RDA 201/210.

58. STJ: Ag no REsp nº 415.228/PR (2002/0018022-0), DJ 10/02/03, p.225.

59. carvalho filho, José dos Santos. op.cit., p.255.

60. BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Biblioteca de Teses. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.257.

61. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.245.

Dos limites do Poder-Dever de Autotutela da Administração Pública, conforme c caput co artigo 54 da Lei nº 9.784/99

A Administração Pública tem o poder-dever de rever seus atos, principalmente

quando estes vão de encontro ao interesse público, ou melhor, quando aqueles

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atinjam o interesse da res publica. Porém, ante o principio da segurança jurídica,

essa atitude do Agente Publico de rever seus atos, deve ser pautada pelo principio

da legalidade e das estabilidade das relações de direito. Conquanto, primando

sempre por não contrariar os direitos adquiridos de seus administrados. Quando há

um lapso temporal excessivo, as situações fáticas se concretizam em definitivo,

isso, especialmente no que se refere a seara do direito, caso contrario, não existira

o instituto da Ação Rescisória, limitada até dois anos após o transito em julgado da

sentença.

Assim, com o advento da Lei nº 9.784, de 1999, houve uma mudança de atitudes

do Administrador Público, perante seus administrados, com relação a possibilidade

de revisão dos atos administrativos, encontrado no seu artigo 54, caput, conforme

se observa nos julgados do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

"ADMINISTRATIVO – ATO ADMINISTRATIVO: REVOGAÇÃO – DECADÊNCIA – LEI

9.784/99 – VANTAGEM FUNCIONAL – DIREITO ADQUIRIDO – DEVOLUÇÃO DE

VALORES.

Até o advento da Lei 9.784/99, a Administração podia revogar a qualquer tempo os

seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das Súmulas 346 e 473/STF.

A Lei 9.784/99, ao disciplinar o processo administrativo, estabeleceu o prazo de

cinco anos para que pudesse a Administração revogar os seus atos (art. 54). A

vigência do dispositivo, dentro da lógica interpretativa, tem início a partir da

publicação da lei, não sendo possível retroagir a norma para limitar a Administração

em relação ao passado.

Ilegalidade do ato administrativo que contemplou a impetrante com vantagem

funcional derivada de transformação do cargo efetivo em comissão, após a

aposentadoria da servidora. Dispensada a restituição dos valores em razão da boa-

fé da servidora no recebimento das parcelas. Segurança concedida em parte." (MS

9112-DF, Corte Especial, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU de 14/11/05).

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO

ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. QUINTOS INCORPORADOS. PORTARIA N.º 474/87 DO

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. REVISÃO DO ATO. PARECER AGU N.º GQ 203/99. ART.

54 DA LEI N.º 9.784/99. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. NÃO-OCORRÊNCIA.

PRECEDENTES.

1. A teor do art. 54 da Lei n.º 9.784/99, o "direito da Administração de anular os

Page 29: Dos limites do poder

atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai

em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-

fé".

2. Consoante a orientação desta Corte, o art. 54 da Lei nº 9.784/99 deve ter

aplicação a partir de sua vigência, e não a contar da prática dos atos eivados de

ilegalidade, realizados antes do advento do referido diploma legal (MS 9.112/DF,

Corte Especial, Rel. Min. Eliana Calmon).

3. Embargos acolhidos." (EREsp 441103/PR, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU de

5/6/2006)

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 535 DO

CPC. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS. PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA. ART. 54 DA

LEI Nº 9784/99. IMPOSSIBILIDADE DE SE CONCEDER EFEITO RETROATIVO

APLICAÇÃO DA SÚMULA 168/STJ. EMBARGOS REJEITADOS.

I - Os embargos de declaração devem atender aos seus requisitos, quais sejam,

suprir omissão, contradição ou obscuridade, não havendo qualquer um desses

pressupostos, rejeitam-se os mesmos.

II - Em recente julgamento, a Eg. Corte Especial deste Tribunal pacificou

entendimento no sentido de que, anteriormente ao advento da Lei nº 9.784/99, a

administração podia rever, a qualquer tempo, seus próprios atos quando eivados de

nulidade, nos moldes como disposto no art. 114 da Lei nº 8.112/90 e nas Súmulas

346 e 473 do Supremo Tribunal Federal. Restou ainda consignado, que o prazo

previsto na Lei nº 9.784/99 somente poderia ser contado a partir de janeiro de

1999, sob pena de se conceder efeito retroativo à referida Lei.

III - Nos termos da Súmula 168 desta Corte, "Não cabem embargos de divergência,

quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão

embargado".

IV - Os embargos de divergência não se prestam para nova discussão da matéria

tratada no especial, mas apenas para dirimir eventual divergência entre as Turmas,

Seções ou Órgão Especial deste Tribunal, não havendo, portanto, qualquer omissão

no aresto embargado.

V - O julgador não está obrigado a responder a todos os questionamentos

formulados pelas partes, competindo-lhe, apenas, indicar a fundamentação

adequada ao deslinde da controvérsia, observadas as peculiaridades do caso

concreto, como ocorreu in casu, não havendo qualquer omissão ou obscuridade no

julgado embargado, já que houve a

Page 30: Dos limites do poder

efetiva análise das matérias anteriormente expostas.

VI - Embargos de declaração rejeitados." (EDcl no AgRg nos EREsp 571/450/RS, 3ª

Seção, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 17/10/2005).

Essa limitação ao poder-dever de revisar os atos administrativos garantiu maior

segurança àquele que de alguma forma logre posição favorável perante o Poder

público, porém, não de maneira aleatória, mas quando o beneficiário esteja agindo

de boa-fé, como se preceitua aludido artigo, e como entende a doutrina atual:

Há uma outra possibilidade de convalidação prevista na Lei nº 9.784 de 1999, mas

nada tem ela a ver com o controle da legalidade, ou melhor, ela impede que esse

controle seja feito. Trata-se do disposto no art. 54 dessa lei, segundo o qual, quando

os efeitos do ato viciado forem favoráveis ao administrado (qualquer que seja o

vício), a Administração dispõe de cinco anos para anulá-lo. É um prazo decadencial.

Esse prazo decadencial, no caso de efeitos patrimoniais contínuos, deverá ser

contado a partir da percepção do primeiro pagamento. Findo esse prazo sem

manifestação da Administração, a decadência do direito de anulá-lo importará

convalidação do ato, tornando-se definitivos os efeitos dele decorrentes, salvo

comprovada má-fé do beneficiário (o ônus da prova é da Administração). Trata-se

de hipótese de convalidação por decurso de prazo, decorrente de omissão da

Administração, ou seja, de situação em que a Administração não efetuou o controle

de legalidade e não mais poderá fazê-lo, em razão da decadência do direito de

anular o ato viciado.[1] (destaque nosso)

Porém, quando observamos o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal

Federal, o mesmo não era unanime quanto ao poder-dever infinito da

Administração Publica, posto, ante o principio da segurança jurídica, deveria haver

uma limitação aquela em seus atos revisionais, assim colaciona-se a doutrina atual

de Lucas Furtado, que com ousadia leciona:

A bem da verdade, a Lei nº 9.784/99 não criou ou inovou no ordenamento jurídico,

e quando inovou, fez em caráter extremamente limitado. Em quase todos os temas

ou aspectos enfrentados pela Lei do processo Administrativo, o legislador

simplesmente adotou uma tese já defendida pela doutrina. Tomemos, aqui, a

fixação de prazo dentro do qual a Administração Pública deve anular seus atos.

Dispõe o art. 54 da referida lei que “o direito da Administração de anular os atos

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administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em

cinco anos, contados da data em que fora praticados, salvo comprovada má-fé”.

Ora, parte significativa da doutrina, antes mesmo do advento da mencionada lei e

como decorrência necessária do principio da segurança jurídica, já defendia a

impossibilidade de a Administração pública poder anular seus atos a qualquer

tempo. Quando a Lei nº 9.784/99 fixa prazo de cinco anos para a adoção dessa

providencia, ela simplesmente fez opção por solução que já era defendida pela

doutrina e pela jurisprudência.[2] (destaque nosso)