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1 Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi DORIVAL CAYMMI Dorival Caymmi nasceu em Salvador, em 30 de abril de 1914, filho de Durval Henri- que e Aurelina Cândida (Dona Sinhá), sendo ele neto de italianos e portugueses e ela descendente de portugueses e negros. Durval era funcionário da alfândega baiana, trabalhando – de farda e arma! – como fiscal dos navios que aportavam na Baía de Todos os Santos. Era também músico amador, sendo instrumentista de violão, piano e bandolim – instrumento que a dona de casa Sinhá também tocava muito bem. “Pra minha sorte, eram pessoas musicais”, como diria no documentário Um Certo Dorival Caymmi, de Aluísio Didier. Quando Dorival nasceu, o casal já tinha tido três filhos: Hildebrando e Maria de Lour- des (que nasceram mortos, enforcados no cordão umbilical) e Deraldo, de 1912. Assim como o irmão mais velho, Dorival tinha D no nome, seguindo a promessa que Sinhá fizera na terceira gravidez: batizar todos os filhos com a inicial de Deus. Nasceu na casa em que a família morava de aluguel, no número 77 da Rua do Bângala (hoje Luiz Gama), de onde se mudaram pouco depois para uma casinha no Campo da Pólvora, 6, e depois para a Rua Direita da Saúde, 27. Foi lá que a família se completou, com o nascimento das meninas Dinah (1916) e Dinahir (1918). Todos trazidos ao mundo pela mesma parteira, Dona Quinquinha, a mesma que viu nascer Durval, o patriarca. Apesar do ambiente musical e festeiro de sua família (como veremos adiante), o momento que Dorival define como seu “despertar para a músi- ca” se deu fora de casa, quando ele tinha apenas 4 anos. Ele estava perto da casa de vizinhos, os Campos de França, quando ouviu sair pelas janelas um som diferente, que imediatamente captou sua atenção: era a canção erudita Élégie, do francês Jules Massenet, que vinha da vitrola de corda dos meninos Lídia e Augusto. Ficou estático, ouvindo aquele som, como se es- tivesse em estado catatônico. “Foi um despertar violento com Élégie, que me provocava um sentimento pungente, uma melancolia. Parece que chorei, mas eu era tão pequeno, meu Deus...”, relembra nosso personagem no livro Dorival Caymmi – o Mar e o Tempo, de Stella Caymmi. Por Pedro Paulo Malta

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1Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

DORIVAL CAYMMI

Dorival Caymmi nasceu em Salvador, em 30 de abril de 1914, filho de Durval Henri-que e Aurelina Cândida (Dona Sinhá), sendo ele neto de italianos e portugueses e ela descendente de portugueses e negros. Durval era funcionário da alfândega baiana, trabalhando – de farda e arma! – como fiscal dos navios que aportavam na Baía de Todos os Santos. Era também músico amador, sendo instrumentista de violão, piano e bandolim – instrumento que a dona de casa Sinhá também tocava muito bem. “Pra minha sorte, eram pessoas musicais”, como diria no documentário Um Certo Dorival Caymmi, de Aluísio Didier.

Quando Dorival nasceu, o casal já tinha tido três filhos: Hildebrando e Maria de Lour-des (que nasceram mortos, enforcados no cordão umbilical) e Deraldo, de 1912. Assim como o irmão mais velho, Dorival tinha D no nome, seguindo a promessa que Sinhá fizera na terceira gravidez: batizar todos os filhos com a inicial de Deus. Nasceu na casa em que a família morava de aluguel, no número 77 da Rua do Bângala (hoje Luiz Gama), de onde se mudaram pouco depois para uma casinha no Campo da Pólvora, 6, e depois para a Rua Direita da Saúde, 27. Foi lá que a família se completou, com o nascimento das meninas Dinah (1916) e Dinahir (1918). Todos trazidos ao mundo pela mesma parteira, Dona Quinquinha, a mesma que viu nascer Durval, o patriarca.

Apesar do ambiente musical e festeiro de sua família (como veremos adiante), o momento que Dorival define como seu “despertar para a músi-ca” se deu fora de casa, quando ele tinha apenas 4 anos. Ele estava perto da casa de vizinhos, os Campos de França, quando ouviu sair pelas janelas um som diferente, que imediatamente captou sua atenção: era a canção erudita Élégie, do francês Jules Massenet, que vinha da vitrola de corda dos meninos Lídia e Augusto. Ficou estático, ouvindo aquele som, como se es-tivesse em estado catatônico. “Foi um despertar violento com Élégie, que me provocava um sentimento pungente, uma melancolia. Parece que chorei, mas eu era tão pequeno, meu Deus...”, relembra nosso personagem no livro Dorival Caymmi – o Mar e o Tempo, de Stella Caymmi.

Por Pedro Paulo Malta

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2Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

Foi na casa da Rua Direita da Saúde que a família viveu até 1925, quando Dorival completou 11 anos de idade. São de lá as primeiras lembranças que guarda da in-fância, brincando com os irmãos na roça de Seu Queiroz (vizinho), onde jogava bola, caçava com badogue (estilingue), empinava arraia (soltar pipa) e comia fruta no pé. À noite, o silêncio absoluto da vizinhança só era quebrado pelas festas de Seu Brim (outro vizinho) e pelas vendedoras de acarajé, que passavam pela rua cantando seus pregões. Das lembranças guardadas das vendeiras se inspirou para compor A Preta do Acarajé, como deixou registrado no livro Cancioneiro da Bahia, que publicou em 1947:

“Eu era menino ainda e já me impressionava o pregão da negra vendedora de acarajé. Quanto mais distante mais parecia um lamento. O pregão era em nagô, na língua geral dos negros, e enchia-me os ouvidos de música e de nostalgia: ‘Ô acarajé ecó olalai ó’, e continuava em português: ‘Vem benzê-ê-em, tá quentinho’, para logo marcar o abará: ‘Iê abará’. Não havia noite que eu não ouvisse. A negra era pontual com seu tabuleiro pela minha rua: pelas dez horas da noite ela passava. E, além do pregão, ela, ao descansar o tabuleiro para vender o acarajé apimentado e o abará, costumava dizer aquilo que, anos depois, eu tomaria como motivo para a letra da música que fiz sobre esse motivo. Era quase um resmungo: ‘Todo mundo gosta de acarajé, mas o trabalho pra fazê é que é’. O lamento do pregão eu deixei tal qual, palavra e música. Em verda-de, esta canção é muito mais daquela preta que vendia acarajé na minha rua do que mesmo minha...”

Uma particularidade da casa dos Caymmi – e de outras casas baianas naquelas primei-ras décadas do século XX – eram as “mulheres de saia”, ex-escravas que, por opção, continuavam ligadas às famílias para as quais trabalhavam. O compositor relembra essas senhoras num depoimento transcrito no livro Dorival Caymmi – o Mar e o Tem-po, de autoria de sua neta, Stella Caymmi. “Tinha uma sobra de escravos, duas ou três pessoas que se agregaram à família e não saíram mais, e enfeitavam muito a minha in-fância. Eram ‘mulheres de saia’, que fora da Bahia chamam de ‘as baianas’. Andam de saia e torço, que é o turbante, com contas, aqueles correntões, anáguas engomadas, com uma estamparia bonita das roupas, pano da Costa no ombro. Eram senhoras ido-sas quando conheci: Sinhá Inocência e Sinhá Teresa, ligadas a minha bisavó Quirina, mãe de vovó Joaquina, da parte de mamãe.” As lembranças delas nunca se apagaram de sua memória, como conta mais adiante, no mesmo livro. “Tudo isso eu conheci ao vivo na minha casa, na vivência familiar. Eu ouvia histórias infantis contadas por elas em que o linguajar era entre o português e o iorubá, o nagô.”

Foi numa dessas “mulheres de saia” que se inspirou para escrever a canção História pro Sinhozinho, como escreveu no livro Cancioneiro da Bahia: “Era uma preta velha, vinha do tempo da minha avó, chamada Sinhá Inocência. Embalava a gente nos seus braços trêmulos, contava histórias, e que histórias! Uma das mais belas possuía um refrão do qual jamais me esqueci. Sobre ele, e em lembrança de Inocência, escrevi essa canção. Lá está o estribilho da história da negra, meio em português, meio em nagô, enchendo os versos de um mistério que conquistava a imaginação das crianças... Posteriormente, essa canção adaptada, foi um dos temas do seriado de televisão O Sítio do Picapau Amarelo, baseado na obra famosa de Monteiro Lobato”. Além das “mulheres de saia”, também agregavam-se às famílias os meninos de recado. Entre os meninos de recado que passaram por sua família, Dorival se lembra de José Comprido, Reginaldo e José de Sinhá Maria.

Outra característica da família em que cresceu Dorival Caymmi (aí incluídas as oito tias por parte de pai e os seis tios por parte de mãe) era o gosto pela festa – na biografia escrita sobre o avô, a escritora Stella Caymmi conta que havia quatro pianos espalha-dos pela família. O repertório dos saraus era feito de valsas, operetas, árias de ópera e

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3Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

modinhas de compositores muito queridos pelos seresteiros, como Cândido das Neves e Catullo da Paixão Cearense. Nesses saraus, Sinhá costumava cantar – tinha fama de boa voz na família – e Durval se alternava entre o piano, o violão e o bandolim, sendo muito solicitado para entoar uma velha modinha chamada Marta. O pai de Dorival Caymmi aproveitava esses saraus para também declamar poesia – geralmente com alguém tocando piano, como fundo musical. Seus números preferidos eram os poemas Palavras Cínicas (Albino Forjaz de Sampaio) e A Velhice do Padre Eterno (Guerra Junqueiro), além de versos da autoria de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e do baia-no Castro Alves.

Da mesma maneira com que observava, atento, esses encontros familiares, gostava de acompanhar as festas tradicionais de Salvador. Tinha uma queda especial pelas festas de janeiro, como a de Nosso Senhor dos Navegantes (no dia primeiro, que inspirou a canção Festa de Rua), o Dia de Reis (dia 6) e a Festa do Bonfim (segundo domingo após o Dia de Reis). Mais ainda ele gostava das festas de junho, que também eram as preferidas de seu pai. Durval passava o ano guardando enfeites e fogos de artifício para celebrar Santo Antônio (dia 13), São João (24) e São Pedro (29). Nessas datas, era ajudado pelos quatro filhos na confecção de balões coloridos, que soltava no céu de Salvador. Na casa deles, as festas dedicadas aos santos tinham comidas e bebidas típicas preparadas por Sinhá: canjica, bolo, licor de jenipapo e outras guloseimas.

Em 1925, Durval, Sinhá e os quatro filhos trocaram o bairro da Saúde por um sobra-do na Ladeira do Carmo, 35, perto do Pelourinho – com seus “sobrados da velha São Salvador”, como Dorival cantaria no samba Você Já Foi à Bahia?. A própria casa dos Caymmi era um desses sobradões, com quintal com galinheiro, dois quartos grandes e uma ampla sala de estar com três janelões dando para a rua. Através dessas janelas Dorival via construções coloniais de estilo barroco, que inspiraram os primeiros dese-nhos de sua autoria que chamaram a atenção da família – o talento para o desenho e para a pintura, aflorado antes da música, acompanharia Caymmi por toda a vida e seria demonstrado em diversas telas a óleo e capas de disco. Os primeiros desenhos marcantes foram da Igreja das Caridades e do Convento do Carmo, que Dorival via dos fundos da residência. Sua parte preferida da casa, no entanto, era o sótão, de onde podia ver o mar. Mais tarde, aos 15 anos, aprimoraria o traço na Escola de Belas Artes da Bahia, onde estudou por um ano e impressionou a todos com um desenho a carvão reproduzindo a cabeça do Davi de Michelangelo.

Ele e o irmão, Deraldo, foram matriculados no Colégio Olímpio Cruz, perto de onde moravam. Era a quarta instituição de ensino que frequentavam em sua curta vida aca-dêmica – primeiro estudaram na escola caseira de Adalgisa (parente da família), depois no Colégio Batista e, por fim, no colégio anexo à Escola de Belas Artes. Ele e o irmão foram matriculados na mesma turma do Olímpio Cruz, sendo que Dorival era chamado de “Caymmi 8” e Deraldo, de “Caymmi 9”. Nosso personagem gostava especialmente das aulas de História Natural, que uma vez por semana eram dadas no jardim da esco-la. Tomou gosto por olhar o chão, prestando atenção às miudezas e pondo no bolso tudo que era possível: pedrinhas, minhocas, flores, caquinhos de louça, gravetos... Era o terror das lavadeiras.

Por sua caligrafia irretocável, era solicitado pelos colegas para copiar em seus cadernos as letras do Hino Nacional e do Hino da Bandeira. Em troca, ofereciam-lhe ingressos para o cinema. “Eu ia às matinês do Cinema Jandaia por conta da minha caligra-fia”, conta Dorival em depoimento transcrito por Stella Caymmi em sua biografia. Já à missa Dorival e os três irmãos iam mesmo com o pai, que frequentava as igrejas do Bonfim e do Carmo nos domingos de manhã. Após a missa, o patriarca levava as crianças à casa dos avós, para que tomassem a bênção – quando passavam pela praia de Amaralina, no caminho até a casa dos avós paternos, Dorival contemplava o mar.

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4Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

Mansidão e traquinagensA primeira lembrança que Caymmi guardava do mar era também uma lembrança de dor: estava na casa de sua madrinha, Tia Pipi (Maria da Piedade, irmã de Sinhá), no Rio Vermelho, quando decidiu subir no muro para ver o que estava do outro lado. Mal teve tempo de ver o mar, pois escorregou e caiu com o pé direito em cima de um caco de vidro que lhe abriu um talho no dedão. Diferentemente de Deraldo, que era levado e adorava jogar bola e soltar pipa, Dorival era mais sossegado. “Ele era mais de livros, recortes de cantores americanos, aquele negócio de orquestra, sem-pre foi muito chegado à música, ao desenho”, conta a irmã Dinahir em depoimento a Stella Caymmi, publicado na biografia de Dorival. “Ele ficava em casa, não dava trabalho. Saía, passeava, ia visitar os parentes.” Segundo a irmã, Durval achava o temperamento do filho engraçado, enquanto Sinhá não tinha tanta paciência para o sossego do menino: “É muito preguiçoso, um pamonha”. Certa vez, ela cismou que a batina cairia bem no filho, pelo temperamento bom do menino, mas Durval foi taxativo: “Na minha família não entra padre nem soldado!”.

O jeitão manso do filho de Sinhá e Durval começou a ser temperado com toques de traquinagem quando ele conheceu “o primeiro amigo, o amigo certo”, pouco depois da mudança da família para a Ladeira do Carmo. Foi lá que conheceu José Rodrigues de Oliveira, o Zezinho, que morava do outro lado da rua, com o pai – o motorneiro de bonde André, viúvo – e seis irmãos. Viviam na loja (como na época se chamava o térreo) do número 32, uma casa mais humilde, quase em frente ao número 35, onde moravam os Caymmi. Explorando ladeiras e becos de Salvador, enfurnando-se horas na Biblioteca do Estado (ambos eram loucos por livros) e metendo-se em aventuras improváveis, Dorival e Zezinho tornaram-se amigos inseparáveis. “Zezinho era assim na minha vida: o indispensável. Porque o que eu tinha de tímido Zezinho tinha de atrevido, de ousado, de malandro. Muito bem educado, mas muito traquinas”, defi-niu Dorival Caymmi no programa Ensaio, da TV Cultura (1972). “Zezinho, de espírito muito engraçado, que teve grande influência na minha vida. Sobretudo essa vida que eu levo. A vida do compositor, do músico, do cantor. Zezinho gostava de música, da piada, da coisa engraçada.” Uma amizade que durou até a partida de Dorival para o Rio, em 1938: “E vou dizer: quando eu deixei a terra, que a gente sente aquela sauda-de ferrada, eu senti as saudades mais naturais que um homem sente: de meus pais, da terra e daquele amigo”.

Entre os passatempos de infância dos dois amigos estava escrever folhetins em ver-sos. Num deles, descreviam a chegada de um certo Arrolho, o Perdido – personagem fictício criado pela dupla – numa tal cidade dos Pés Juntos. Segundo Stella Caymmi, criaram mais de cem folhetins (que chamavam de gazetilhas), todos perdidos no tem-po. Outra brincadeira da dupla era se juntar a outros três – Antonio Maltês, Eduardo Peres e Maurílio – para cantar os sucessos da época, que chegavam a Salvador pelas ondas do rádio e pelas revistas. Assim que chegavam à capital baiana, as revistas eram devidamente compradas e guardadas por Dorival – a quem cabia o acompanhamen-to musical do grupo, tocando o violão do pai. O repertório deles era formado pelos sucessos dos principais nomes dos anos 20 e 30, entre cantores (Francisco Alves, Mário Reis, Sylvio Caldas, Aurora e Carmen Miranda, Gastão Formenti e o Bando da Lua) e compositores (Ary Barroso, Noel Rosa, Ismael Silva, João de Barro e Orestes Barbosa).

Dorival Caymmi aprendeu a tocar violão sozinho, praticando às escondidas no pinho do qual o velho Durval morria de ciúme (afinal, tinha importado o instrumento da loja A Guitarra de Prata, no Centro do Rio, por 18 mil-réis). Certo dia, Dorival tentava se acompanhar no samba Tatu Subiu no Pau – maior sucesso do carnaval de 1923, de autoria de Eduardo Souto – quando foi flagrado pelo pai. “Quem mandou você pegar

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5Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

o violão? Aliás, você está tocando errado, você tá tirando pitada, não está tocando violão”, disse Durval, que foi lhe ensinando as posições corretas no braço do violão, como o dó maior, que Dorival estava fazendo errado. Terminada a descompostura, estava completa a harmonização de Tatu Subiu no Pau. Outras aulas complementares foram dadas por tio Cici (Alcides Soares, irmão de Sinhá), que era boêmio e exímio chorão no violão solo. Foi ele quem ensinou ao menino os truques que Durval dei-xou passar e sugeriu a compra de um método. Dorival juntou dinheiro e comprou o método de Canhoto (apelido do paulistano Américo Jacomino,1889-1928). “Meu pai teve que aturar as pitadas um bocado de tempo, até eu aprender a tirar o arpejo”, contou o compositor à neta Stella, conforme publicado em Dorival Caymmi – o Mar e o Tempo.

O mesmo livro conta que Durval estranhava o modo nada convencional com que o filho tocava violão – modo que o acompanharia pela carreira e que viraria uma de suas marcas registradas: “Acontece que eu preferia sempre a harmonia alterada, porque descobri, depois que fiz muita coisa de orelhada, que a harmonia realmente pode ser exótica, com as sétimas, as nonas, a inversão de acordes. Deve ser instintivo, porque desde pequeno acho que o som deve ter outra beleza, além do acorde perfeito. Foi assim que tive sorte na música. Papai dizia que não estava certo, porque o meu arpejo, a maneira com que eu puxava as cordas do violão, não levava os dedos certos. Eu puxava as cordas de uma raspada só, com um dedo, o que tecnicamente era conside-rado errado. Mas, nesse sistema, embora errado, consegui tirar os acordes que sentia instintivamente”.

Ia para o porão da casa com Zezinho, que pegava o bandolim (também proibido!) de Durval para fazer dueto com o amigo. Mas Zezinho não fazia harmonia, só ritmo, acompanhando a levada de samba feita por Dorival, que num desses duos de subso-lo mostrou sua primeira composição ao amigo: era a toada No Sertão. A data desta primeira música de Dorival Caymmi não é informada no livro de Stella Caymmi, mas é provável que tenha sido entre 1925 (Dorival aos 11 anos) e 27 (13 anos). Desta mesma época é um foxtrote (ainda inédito) em que Dorival Caymmi canta outra paixão de in-fância e adolescência: o cinema, que fazia com que fosse colecionador compulsivo de recortes de revistas e fotogramas – especialmente os do galã italiano Rodolfo Valenti-no, seu ídolo. Mesmo assim, o primeiro símbolo sexual da sétima arte não entrou na letra de No Cinema, em que Dorival citava Ramon Novarro e John Gilbert.

Quando Sinhá pede o divórcio e se separa de Durval, em 1927 (um escândalo para a época!), Dorival e os irmãos continuam vivendo com o pai, na Ladeira do Carmo – onde são visitados diariamente por Sinhá, sempre no horário de trabalho do ex-ma-rido. Cansada da boemia de Durval, ela tirou Caymmi do nome e se mudou para a casa de sua irmã Fredesvinda (a Vivi), onde passou a costurar para fora. Nesta época, a tristeza das crianças foi amenizada pela presença constante de seu tio mais festei-ro, Nonô (apelido de Álvaro Benvindo, irmão de Sinhá), que quase sempre levava os pequenos para sua casa, um sobradão na Rua Maciel de Cima (ali perto, no Pelou-rinho), de onde viam o vaivém do carnaval soteropolitano, entre corsos, cordões e outros tipos de festejos. Eram fantasiados por Sinhá. Autorizado por Durval, o adolescente Dorival (então aos 13 anos) gostava de correr a cidade, ver as festas de perto e conhecer os sucessos do carnaval. Entre as músicas que ficaram na lembran-ça das folias de antigamente estava a marcha Eu Fui no Mato, Crioula (J. Gomes Júnior), grande sucesso carnavalesco de 1928, muito cantado pelos quatro filhos de Sinhá e Durval.

Balangandãs e Itapuã

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6Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

Na casa do tio, Dorival gostava de frequentar a oficina do andar térreo, onde Nonô fazia trabalhos de ourivesaria e restauração de antiguidades. Um dia, o garoto ficou vidrado em uma joia de prata sofisticadíssima, que viu em cima da bancada do tio. Era uma peça cheia de penduricalhos: figa, cachinho de uva, pinha, caju, boneco... Achou aquilo sublime, tantos eram os detalhes. “Isso é o chamado balangandã”, ensinou tio Nonô, que pouco depois tirou da gaveta outro cacho daqueles, mas todo de ouro. “Quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim”, dizia o tio, rindo, reproduzindo um ditado da época. “Eu escrevi a palavra balangandãs e saboreei”, relata Dorival em de-poimento à neta, publicado em sua biografia, sobre o início da composição de O Que É Que a Baiana Tem?.

Em 1930, justamente quando se deu a revolução comandada por Getúlio Vargas, a família Caymmi deixou temporariamente a casa da Ladeira do Carmo para passar um tempo na casa de um colega de Durval – chamado Isaías –, no bairro do Rio Vermelho. Naquele ano, o Colégio Olímpio Cruz teve seu curso ginasial cancelado. Sem escola, Dorival foi matriculado no curso de inglês do professor Maxwell, nas aulas de Extra-ção Mercantil (Matemática) e num curso de datilografia da Remington. Nesta mesma época, Durval arranjou-lhe, por meio de um amigo, um emprego no jornal O Imparcial, onde cuidava inicialmente da remessa de assinaturas. O salário ele levava para o pai, que o mandava ao alfaiate para que tivesse boas roupas. Depois, trabalhou em outras atividades no jornal, como funcionário do arquivo e copidesque. Em 1931, Durval e os quatro filhos se mudaram da Ladeira do Carmo para uma boa casa na Rua Nova do Silva, bairro do Barbalho, onde – mais uma vez – morariam de aluguel.

Foi também por essa época (1931) que Dorival enfim se apaixonou pelo mar, quando conheceu Itapuã – bairro de Salvador localizado a pouco mais de 20 km do Barbalho. Hoje totalmente integrado à zona urbana, naquela época Itapuã era apenas um areal longínquo, repleto de coqueiros e com alguns casebres, habitados por pescadores. Entre os poucos veranistas que costumavam se aventurar em Itapuã estava Antoninho, irmão mais velho de Zezinho, que todo ano alugava uma casa de pescadores e enchia de parentes e amigos – entre eles Dorival e Deraldo. Para se chegar lá, um dos poucos meios de transporte era o caminhão do Seu Lisboa, um português que abastecia as duas únicas vendas que havia no bairro. Foi neste caminhão que, pela primeira vez, Dorival foi a Itapuã, aos 17 anos. Vendo de perto os cardumes, andando de canoa e bebendo coco à vontade, o garoto logo se sentiu em casa: “Eu passei a amar o mar”, contou Dorival a Stella Caymmi, como lemos em sua biografia. “Via a gente de lá com roupas simples, chapéu de palha, aquelas agulhas de tecer rede, tudo feito por eles mesmos. Fui me acostumando e vendo a poesia do mar, aquele processo de puxar rede, comer o peixe na hora, muito xaréu.”

Naqueles habitantes, em suas histórias e nas lendas que corriam Itapuã se inspiraria para escrever boa parte das composições que, mais adiante, classificaria como can-ções praieiras. Do trabalho ritmado e repetitivo dos pescadores que Dorival costumava acompanhar veio o compasso de Pescaria (Canoeiro): “Cerca o peixe, bate o remo / Puxa a corda, colhe a rede / Ô canoeiro puxa a rede do mar...”. Do ronco do mar numa pedra que ele contemplava noites a fio nasceria Itapoã (feita em 1937), primeira das praieiras a ser gravada. Já o Bento de A Jangada Voltou Só era um dos heróis daque-le areal – especialmente depois que, mergulhando como nenhum escafandrista tinha conseguido fazer, desencalhou o navio do Lloyd Brasileiro que estava preso em frente à praia. E foi do pescador Carapeba (de cujo filho, Aurelino, Dorival era amigo) que nasceu João Valentão, samba-canção que começou a fazer em 1936 e só terminou em 1945, quando já morava no Rio de Janeiro.

E havia inúmeras lendas, como a da criança que estava sentada à beira da praia e desapareceu, tornando a aparecer no mesmo lugar, como descreve a letra da ciranda A

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7Pequenos Notáveis - Dorival Caymmi

Mãe d’Água e a Menina. E tantas histórias de assombração que se passavam na Lagoa do Abaeté, ali pertinho da praia de Itapuã, com sua areia fina e branca contrastando com a água escura da lagoa serena. As lavadeiras que frequentavam o local (já que a água, doce, era usada para lavar roupas) contavam muitas histórias sobre o Abaeté, especialmente sobre as batucadas misteriosas que eram ouvidas de madrugada. “As la-vadeiras diziam que havia um baticum que se ouvia de noite, uma batida, que tinha lá um candomblé mal-assombrado debaixo da lagoa”, relata Dorival Caymmi na biografia escrita por Stella. “E tinha bichos, fantasmas e coisas assim de histórias fantásticas para assustar crianças e passou para nós, veranistas, também.” A atmosfera soturna virou música em A Lenda do Abaeté, na qual o veranista Dorival recorda o medo da lagoa, que corria entre os moradores de Itapuã.

Para Dorival Caymmi, a mais representativa de suas canções praieiras é O Mar, que começou a fazer em 1937, em Itapuã, inspirada nas histórias – estas não eram lendas! – que eram recorrentes na vida daqueles moradores: o pescador que sai à tardinha e só volta de manhã, a apreensão de quem fica, o medo de perder o marido ou filho... Na le-tra de O Mar, Dorival conta a história do pescador Pedro, que não volta, para o desespe-ro de Rosinha de Chica. Um certo ambiente de mistério e melancolia é sugerido na bela melodia de Caymmi, com modulações pouco convencionais na primeira parte da canção. Já na segunda parte, a morte de Pedro vem junto com uma quebra rítmica, interrom-pendo o ritmo ponteado que descrevia a rotina do pescador.

Primeiras experiências no rádioNa Rádio Clube da Bahia, que ficava na Avenida Sete, fez naquela primeira metade dos anos 30 sua primeira apresentação no rádio, testemunhada por Zezinho, que lhe disse: “Sua voz parece a do Francisco Alves!”. Passou a frequentar a pequena emissora aos domingos, quando se apresentava, com audiência garantida – e orgulhosa – da família. Não costumava cantar suas primeiras músicas. Preferia os sucessos da época, como Inquietação (1935), de Ary Barroso, que certa vez cantou em dueto com Di-nahir. Cantou na emissora por três anos (acompanhando as mudanças de endereço, primeiro para a Ladeira da Palma, depois para a Mangueira), até meados da década de 1930. Também participava de programas das rádios Comercial e Sociedade da Bahia. Enquanto sonhava virar artista, não perdeu a oportunidade de assistir a um recital de Carmen Miranda no Cine Jandaia, em 1932. Foi aplaudir a Pequena Notável, que sem microfone apresentava sucessos iniciais de sua carreira, como as marchas Tahy (Pra Você Gostar de Mim), de Joubert de Carvalho, e Good-bye, de Assis Valente – baiano que começava a ser conhecido no Rio. Outra estrela do rádio que viu em Salvador por esta época foi Sylvio Caldas, que passava pela cidade com a companhia teatral de Jar-del Jércolis e fez uma apresentação – Dorival presente! – na mesma Rádio Comercial em que cantava de vez em quando.

Foi inspirado em nomes badalados que chegavam do Rio de Janeiro pelas ondas do rá-dio e discos de 78 rotações – como o grupo Bando da Lua – que Dorival e os amigos formaram o conjunto Três e Meio, para percorrer as rádios soteropolitanas e participar de programas dominicais, cantando sucessos de Carmen Miranda, Francisco Alves, Noel Rosa, Moreira da Silva e outros. “Zezinho no cavaquinho, Deraldo no tambor e eu no violão”, conta Dorival na biografia escrita por Stella Caymmi, explicando o nome do conjunto. “O Meio era Luiz, irmão menor de Zezinho, que fazia o ritmo no pandeiro.” Conhecendo os últimos sucessos cariocas em casas de música de Salvador, como a Guarani e a Milano, o grupo formou um vasto repertório e virou atração do carnaval local, com direito a figurino: calças e sapatos brancos, camisa azul marinho e chapéu metálico. O repertório de sucessos só era quebrado muito raramente, quando Dorival

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se arriscava em suas composições iniciais, como a marchinha Lucila e o samba-canção Adeus. Sobre este segundo, vale destacar que foi feito em 1932 (Dorival aos 18 anos), antecipando em quase duas décadas as letras dilacerantes e as harmonias modernas com que faria sucesso na virada da década de 40 para a de 50, com alguns clássicos do samba-canção, como Marina, Sábado em Copacabana, Nem Eu, Não Tem Solução e Só Louco. O próprio Adeus só seria gravado em 1948, por Ivon Cury.

Foi com o conjunto Três e Meio que Dorival Caymmi recebeu seu primeiro cachê, após uma apresentação na Rádio Sociedade da Bahia, em 1935: dividiram uma bolada de 40 mil-réis! Não deve ter ficado muito para cada um, pois o conjunto muitas vezes ia além dos quatro integrantes já citados, aceitando participantes esporádicos como o amigo Adolfo Nascimento, que tinha o apelido de Dodô e propunha uma inovação para amplificar o som dos instrumentos (“Tinha uma mania, assim... A gente pode furar o violão. Deus me livre!”, relembra Dorival no documentário Um Certo Dorival Caymmi, de Aluísio Didier). Dorival já vivia no Rio quando, algum tempo depois, ouviu notícias sobre um tal de trio elétrico, inventado por Dodô. Numa dessas apresentações no rádio com o Três e Meio, Caymmi foi ouvido pela professora de canto Amanda Costa Pinto, que gostou tanto de sua voz (classificada como “barítono cantante”) que o convidou para atuar como solista nas festividades da Igreja da Conceição da Praia. Dorival cantou a oração Kyrie em três missas e, em seguida, fez dois meses de aulas de canto com a professora Amanda.

Aprovado em segundo lugar no concurso que prestou para escrivão em Irecê, no inte-rior da Bahia, outra disputa lhe empolgou muito mais naquele ano de 1936: o concur-so Ouça e Julgue, que seguia os moldes do certame anual de marchas e sambas que era organizado no Rio de Janeiro desde 1930. Naquele, promovido pelo jornal O Im-parcial e pela Rádio Comercial, Dorival Caymmi saiu vencedor, com o samba A Bahia Também Dá, que obteve 2.667 votos e lhe rendeu um abajur de cetim lilás. De quebra, levou também o terceiro lugar, com a marcha Lucila, votada por 882 leitores de O Imparcial – depois de ouvir as músicas na Rádio Comercial, a votação era realizada por cupons que vinham impressos no jornal e eram recortados, preenchidos e enviados à redação. Como se respondesse ao maior sucesso do carioca Noel Rosa naquele carnaval de 1936 (o samba Palpite Infeliz, que dizia que “São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba”), A Bahia Também Dá enumera bairros soteropolitanos que contam os dias para a folia.

Rumo ao RioParalelamente à vida de compositor popular (já fazendo ou começando a fazer mú-sicas que se tornariam sucessos nacionais dali a um ou dois anos), em 1937 Dorival tentou ganhar a vida como ambulante, acompanhando o amigo Zezinho na ardilosa tarefa de caminhar por Salvador vendendo primeiro bugigangas (fios, cordões, bar-bantes...) e depois bebidas de gosto duvidoso, quase todas imitações das estrangeiras, de baixa qualidade, fabricadas pela firma Bandeira Duarte. Bebericando as garrafas e aliviando o peso do mostruário pesado que carregava para cima e para baixo, aban-donou a vida de vendedor de bebidas. Ainda tentou se manter no comércio pintando tabuletas, mas também não vingou. Sem perspectivas em Salvador ou em Irecê (já que a nomeação custava a sair, pois era grande o número de apadrinhados que furavam a fila), Dorival decidiu que seu futuro estava mesmo no Rio de Janeiro.

Comunicou a decisão ao pai, que primeiro foi contra, mas depois lhe ofereceu 500 mil-réis para ajudar no início da empreitada – dinheiro emprestado pelo sogro de um colega de trabalho na alfândega. No dia do embarque, Dorival ganhou de presente um

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embrulho do pai, para ser aberto durante a viagem (uma caixa de charutos! Dorival não imaginava que o pai soubesse que ele fumava...) e o livro Três Poetas de Sua Vida (Stefan Zweig), dado por Zezinho, único amigo que compareceu ao cais naquele 1º de abril de 1938 – os outros não levavam fé que a viagem fosse verdadeira. Foi de terceira classe, levando, além de uma mala de tamanho médio, um violão Gianinni (presente do melhor amigo) embrulhado em papel. Na chegada ao Rio, em 4 de abril de 1938, foi recebido por José Brito Pitanga, sobrinho de sua tia Fredesvinda (vulgo Vivi).

Foi levado por Pitanga para sua primeira residência no Rio: um quarto no segundo andar da pensão da Dona Julieta (Rua São José, 35, Centro, onde hoje fica o Terminal Rodoviário Menezes Cortes). Pagava 175 mil-réis por mês, com direito às três refeições do dia. Começou a conhecer (e apreciar) o Rio em caminhadas pelas redondezas, du-rante o dia ou mesmo à noite, quando gostava de andar pela Avenida Rio Branco até a Praça Mauá. “Sentia uma solidão distraída, vislumbrando de longe a Cinelândia, vazia, perdida na noite”, relembra Caymmi na biografia escrita pela neta. Ela conta ainda que, nessas caminhadas solitárias e noturnas pelas ruas do Centro do Rio, ele terminou algumas canções que trouxe incompletas de Salvador, como O Que É Que a Baiana Tem?, A Preta do Acarajé, O Mar e A Lenda do Abaeté.

Apesar da timidez, foi fazendo amigos na capital federal, a começar pelos vizinhos de quarto na pensão, como o cearense Edgar de Carvalho e o paraense José Lago da Rocha – este foi seu primeiro grande amigo no Rio. Foi ele que demoveu da cabeça de Dorival a última nesga do sonho de estudar Direito, argumentando que o Rio era “terra de futebol e rádio”. Rocha foi também o primeiro a perguntar a Caymmi so-bre aquele embrulho grande que trouxera de Salvador e que permanecia fechado há alguns dias. “É um violão, não é?”, perguntou, para espanto do baiano. Pediu licença para pegar o instrumento e tocou divinamente, deixando Dorival boquiaberto. Os dois se aproximaram e passaram a conversar bastante sobre música, até que um dia Rocha desapareceu sem deixar explicação. Só algum tempo depois Caymmi foi saber que o amigo tinha se internado num convento beneditino.

As primeiras experiências no rádio não deram em muita coisa. Na primeira, foi à Rádio Mayrink Veiga com um cartão de recomendação assinado por Assis Valente (baiano como Dorival, além de amigo de José Brito Pitanga) e endereçado a Cesar Ladeira, que alegou dificuldades financeiras e o dispensou, causando grande decepção. Na segunda, foi indicado pelo compositor Ubirajara Nesdan (que conhecera numa de suas primeiras idas ao Café Nice) para o compositor e radialista Lamartine Babo, que o escalou para cantar no programa Clube dos Fantasmas, que comandava à meia-noite na Rádio Nacional. Foi buscá-lo de carro na pensão de Dona Julieta e levou-o direto para o imponente Edifício A Noite, onde funcionava a Nacional. Acompanhando-se no violão-presente de Zezinho, Caymmi cantou Noite de Temporal, causando espanto em Lamartine, que comentou no ar, sem deixar claro o que achou da música: “Isso é meia-noite!”. Provavelmente, o compositor das marchinhas O Teu Cabelo Não Nega e Hino do Carnaval Brasileiro estranhou a letra dramática, a melodia impressionista e os acordes incomuns trazidos por aquele novo baiano. “Em Noite de Temporal, minha primeira canção praieira, procurei tocar acompanhado pelo toque de berimbau de capoeira. Sempre pus esses elementos, por isso meu violão era diferente”, conta nosso personagem em Dorival Caymmi. Ficou só naquela apresentação, mas foi ouvido na Bahia pelos parentes, que escreveram dando os parabéns pelo début.

Profissionalização

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Depois das duas primeiras tentativas no rádio, resolveu mudar a mira: quis tentar a sorte como cartunista na revista mais popular da época, O Cruzeiro, à qual foi encaminhado também por José Brito Pitanga. Logo no primeiro dia, após conhe-cer o diretor da publicação, Acioly Netto, conversou com o repórter Edgar Pereira, que – combinado com Pitanga, sem Dorival saber – sugeriu que o baiano desse mais uma chance ao rádio. Encaminhou-o para aquele que seria seu último teste numa emissora: a Rádio Tupi, no bairro do Santo Cristo, onde foi recebido por Theófilo de Barros Filho. Para não chegar com o violão desencapado, que pegava mal naqueles anos 30 (violão ainda era associado a vadiagem!), pediu uma capa emprestada ao conterrâneo Assis Valente. Era curta para o violão, mas era melhor do que nada. O acanhamento de Caymmi se desfez logo que viu a cara de Theófilo se transformar após ouvir sua interpretação de No Sertão e Noite de Temporal. Gostou tanto que saiu correndo da sala para chamar o patrão, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados – grupo a que pertencia a Rádio Tupi. “Seu Theófilo, o senhor é um gênio, este homem é um telúrico, um homem da terra, um poeta”, exultou o em-presário após ouvir o cantor, que impressionava também pelo fato de ser compositor das músicas que interpretava. “Ele tem que ficar na taba!”, decretou, para alívio do baiano, garantindo o pagamento do mês de junho na pensão de Dona Julieta.

Estreou em 24 de junho de 1938, como uma das atrações da festa junina da Rádio Tupi, além de Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e outras estrelas. Cantou, é claro, Noite de Temporal – sua primeira música de trabalho. No contrato, ficou acerta-do que faria duas apresentações por semana, ganhando 30 mil-réis por cada uma – mais tarde descobriria que teria que repartir o valor com alguns funcionários da Tupi, Theófilo entre eles. Nem deu tempo de se abater com a decepção, pois em agosto já estaria deixando a empresa de Chateaubriand pela Rádio Transmissora, que lhe oferecia por três apresentações semanais um salário mensal de 400 mil-réis (sem ter que dividir com ninguém!). Quando procurou Dona Julieta para pagar a mensali-dade, descobriu que o primo já tinha deixado seis meses pagos em seu nome. Passou a frequentar também as páginas de jornais do Rio e de Salvador, para o orgulho de seus parentes, que escreviam festejando o sucesso na capital federal. Numa dessas cartas da Bahia, no entanto, teve que chorar sozinho a morte do irmão Deraldo, vítima de malária, em agosto de 1938 (aos 26 anos). Pouco depois, veio uma nova troca de emissora, desta vez para a mais popular do Brasil: a Rádio Nacional, que trouxe Dorival Caymmi para seu cast por um salário de 700 mil-réis mensais, mais publicidade nas publicações do grupo, como A Noite, Noite Ilustrada e Carioca. O convite irrecusável foi feito por Almirante, e o contrato, assinado em 13 de novem-bro de 1938. Estreou dali a dois dias, com acompanhamento e arranjos de Radamés Gnattali.

Sucesso e Carmen MirandaTambém foi Almirante – cantor, compositor, pesquisador e radialista (anunciado como “A Maior Patente do Rádio!”) – o responsável por levar Dorival Caymmi até a casa da cantora Carmen Miranda, na Urca, para mostrar uma música a ser incluída no filme Banana da Terra, do americano Wallace Downey, que vinha sendo feito na produtora Sonofilms naquela virada de 1938 para 39. Os produtores do filme precisavam de uma música para ilustrar uma passada na Bahia, pois o samba No Tabuleiro da Baiana tinha sido retirado da trilha sonora depois que seu compositor, Ary Barroso, dobrou o valor combinado com a produção pela inclusão de suas músicas no filme (outra previs-ta era Boneca de Piche). Quem resolveu o problema foi o compositor Alberto Ribeiro, que se lembrou de um samba que tinha ouvido Dorival cantar na Rádio Transmissora, também descrevendo uma baiana em detalhes. Conseguiram que Caymmi gravasse um

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registro informal daquele samba para levar a Carmen, mas a cantora não gostou. No dia seguinte, um domingo, Dorival Caymmi foi pessoalmente – levado por Almirante – cantar O Que É Que a Baiana Tem? para a Pequena Notável, que adorou aquele sam-ba de roda estilizado. Estava resolvido não só o filme, como as carreiras de Caymmi – que tinha ali seu primeiro sucesso – e de Carmen Miranda, que, colada para sempre à figura da baiana exótica, partiria em seguida para os EUA (primeiro Broadway, depois Hollywood), onde moraria até morrer, em 1955.

O fato curioso foi a assessoria dupla que Dorival prestou à cantora: primeiro acompa-nhando-a ao ateliê do figurinista J. Luiz e à Casa Turuna (que vendia fantasias e figu-rinos para teatro), para ajudar na compra dos adereços da baiana – rosários, brincos de argola, gargantilha dourada e balangandãs (foi um alvoroço danado quando Carmen parou o carro conversível na porta da pensão de Dona Julieta para buscar Dorival). Depois, durante a gravação do filme, o baiano ainda ficou atrás da câmera dirigindo a cantora no gestual com as mãos e no jeito de revirar os olhos. Caymmi ainda parti-cipou da gravação do áudio e, embora não aparecesse em Banana da Terra, sua voz está registrada no número de Carmen. Tudo isso por cem mil-réis, bem menos do que os dez contos que tinham sido pedidos por Ary, que ainda por cima adorava a Bahia, mas não era baiano (era mineiro, de Ubá).

O Que É Que a Baiana Tem? fez muito sucesso, e logo o compositor foi convoca-do por Carmen para dividir com ela a interpretação daquele “samba typico bahiano” (assim impresso no selo) num disco de 78 rotações da Odeon, tendo no lado B outra composição de Caymmi que retratava a Bahia: A Preta do Acarajé, também gravada pelos dois naquele 27 de fevereiro de 1939. Carmen e Dorival também fizeram due-to para outro disco da cantora naquele ano, dividindo a interpretação de Roda Pião (composição de Caymmi baseado em tema folclórico) no lado A da bolacha de 78 rotações. Também na Odeon, nosso personagem gravaria em seguida seu primeiro dis-co solo, lançado em setembro daquele ano, com os registros de Rainha do Mar (lado A) e Promessa de Pescador (lado B), esta segunda identificada no selo do disco como “canção praieira” (primeira aparição pública do termo que viraria a principal marca da obra de Dorival Caymmi).

O ano de 1939 trouxe mais algumas novidades importantes para o compositor baiano: deixou a pensão de Dona Julieta para dividir um apartamento com o amigo Theófilo de Barros Filho no Edifício Souza (Rua do Passeio, também no Centro); mudou de emissora mais uma vez (agora para a Rádio Mayrink Veiga, estreando em abril); partici-pou do espetáculo beneficente Joujoux e Balangandãs (palavra que tinha acabado de ressuscitar para a língua portuguesa); e conheceu o conterrâneo e amigo eterno Jorge Amado (“no meio do caminho entre o Café Belas Artes e o Café Nice”, como conta Stella Caymmi na biografia do avô). O grande escritor de Mar Morto, Capitães de Areia e Jubiabá foi um dos amigos de primeira hora que Caymmi fez no Rio de Ja-neiro, num grupo que se tornaria inseparável e do qual participavam também Antônio Maria, Fernando Lobo, Samuel Wainer, Otávio Malta e Carlos Lacerda, entre outros. Todos jornalistas e/ou compositores, além de boêmios convictos.

Casamento e consolidação da carreiraMas foi também na virada da década de 30 para a de 40 que o baiano Dorival se apai-xonou pela cantora mineira Adelaide Tostes, que no rádio era conhecida como Stella Maris. O encanto se deu numa ida de Dorival à Rádio Nacional, onde a ouviu interpre-tar Último Desejo, de Noel Rosa. Noivaram em 1º de março de 1940 (num vatapá na casa de Jorge Amado, na Urca) e casaram-se em 30 de abril de 1940, quando Caymmi

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completava 26 anos e Stella tinha 18. Foram morar no Grajaú. Da união nasceram três filhos, que nos anos 60 se tornariam nomes importantes da música popular brasileira: a cantora Nana (nascida Dinahir Tostes Caymmi, em 1941); o compositor, arranjador e violonista Dori (nascido Dorival Tostes Caymmi, em 1943); e o cantor, compositor e flautista Danilo (Tostes) Caymmi, de 1948. Do Grajaú a família se mudou para o Leblon e, depois, para o Jardim Botânico. Só nos anos 50 se daria a mudança para Co-pacabana, que seria para sempre o bairro de Dorival e Stella no Rio (eles viveram ainda em São Paulo e Salvador).

Além do casamento e da paternidade, os anos 40 representaram para Dorival Caymmi a consolidação de sua atuação como compositor de sucessos – gravados em sua pró-pria voz ou de outros artistas. Em 1940, saíram O Dengo Que a Nega Tem (lançado por Carmen Miranda), O Samba da Minha Terra (pelo Bando da Lua) e O Mar, gravado por Caymmi nos dois lados do mesmo 78 rotações. Em 41, foi a vez de Requebre Que Eu Dou um Doce, Você Já Foi à Bahia?, A Jangada Voltou Só e É Doce Morrer no Mar (parceria com Jorge Amado), ambos gravados no vozeirão de Dorival, que na mesma década lançaria também 365 Igrejas, A Vizinha do Lado, Saudade de Itapoã e A Lenda do Abaeté. Outros sambas de Caymmi lançados na década de 40 foram Vatapá, Rosa Morena, Acontece Que Eu Sou Baiano, Vestido de Bolero e Doralice. Já o Trio de Ouro, conjunto vocal liderado por Herivelto Martins, lançou História pro Sinhozinho. E houve grandes cantores que lançaram músicas de Dorival, como Orlando Silva (Saudade), Lúcio Alves (Nunca Mais) e Ivon Cury (Adeus).

No entanto, seu maior sucesso nos anos 40 foi o samba-canção Marina, lançado em 1947 por nada menos do que quatro gravações: Francisco Alves, Dick Farney, Nel-son Gonçalves e o próprio compositor. Dorival contava que o ponto de partida para compor Marina veio do filho Dori, que, quando se emburrava, costumava dizer: “Tô de mal com você!”. Uma das canções mais regravadas da obra de Caymmi (relançada 150 vezes), Marina abriu uma série de sambas-canção que, compostos até o início da década seguinte, foram também uma marca de sua obra. Já para a filha Nana ele com-pôs a canção de ninar Acalanto, que virou sucesso nacional ao ser gravada em 1943 por Dorival e Stella Maris, como prefixo de encerramento da programação das emis-soras dos Diários Associados. Quando o empresário Assis Chateaubriand, dono dos Diá-rios e amigo de Dorival, fundou a primeira emissora de televisão brasileira – a TV Tupi, em 18 de setembro de 1951 (com participação do compositor no primeiro programa) –, Acalanto permaneceu sendo a trilha sonora do boa-noite dos brasileiros, mas agora pelas ondas de TV.

Entre sambas, sambas-canção e canções praieiras, Dorival Caymmi chegou ao fim da década de 40 com uma obra consistente, repleta de sucessos e respeitada pela crítica. Tanto que, em 1947 (apenas oito anos após seu primeiro samba gravado), já tinha reunido um número suficiente de composições para fazer um Cancioneiro da Bahia – livro que publicou pela Martins Editora, no qual entremeava letras de suas compo-sições (que já eram 62, mais da metade das 120 que deixou em sua obra) com ilus-trações de Clóvis Graciano e pequenos verbetes contextualizando algumas músicas. E, dali a seis anos (27 de junho de 1953), Dorival ainda não tinha nem chegado aos 40 anos quando virou nome de praça em Salvador: a Praça Dorival Caymmi, localizada – claro! – no bairro de Itapuã.

Mas só em 1954 ele lançaria seu primeiro LP, pela gravadora Odeon: o disco de dez polegadas Canções Praieiras, apresentando as inéditas Quem Vem pra Beira do Mar e O Bem do Mar, além de outras músicas que já tinha gravado em discos de 78 rota-ções, como O Mar, Pescaria (Canoeiro), É Doce Morrer no Mar, A Jangada Voltou Só e Saudade de Itapoã. Só o repertório – pela qualidade e pela originalidade – já seria suficiente para fazer deste disco um dos melhores da música brasileira. Mas Canções

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Praieiras trouxe mais algumas novidades que não são desprezíveis: 1) um compositor que cantava, ainda por cima com uma voz daquelas (antes da bossa nova, ainda eram raros os artistas brasileiros que acumulavam as duas funções); 2) um disco inteiro de violão e voz, contrariando o padrão das gravadoras, que determinavam que os solistas deviam ser acompanhados por orquestra; 3) além de compor belas canções, cantá-las com vozeirão e se acompanhar com um violão peculiar, Dorival Caymmi fez ainda a capa do disco: uma pintura, também original, de uma cena de pescadores. Segundo o jornalista e crítico musical Tárik de Souza, o disco Canções Praieiras “deve ser um dos mais perfeitos da MPB”.

Dorival Caymmi ainda faria outras duas compilações de suas canções praieiras na mesma década: primeiro, no LP Caymmi e o Mar (1957), com acompanhamento da orquestra do maestro Leo Peracchi; depois, em Caymmi e Seu Violão (1959), cujo repertório é formado por regravações das músicas do LP Canções Praieiras e outras da mesma praia, como Dois de Fevereiro, O Vento, A Lenda do Abaeté, Promessa de Pescador e Noite de Temporal. “Simples, solares, literais, nítidas, concretas, reais” são os adjetivos com que Francisco Bosco define as canções praieiras em seu livro Folha Explica: Dorival Caymmi.

Se o primeiro LP foi dedicado às canções praieiras, o segundo era todo formado por sambas-canção e sambas sacudidos. Com o título autoexplicativo de Sambas (1955), o disco começa com a dor de cotovelo de Sábado em Copacabana, Não Tem So-lução, Só Louco e Nunca Mais, para, no outro lado, ficar buliçoso com a malemo-lência de Requebre Que Eu Dou um Doce, Vestido de Bolero, A Vizinha do Lado e Rosa Morena. Compostos na mesma época das canções praieiras (anos 30 e 40), os sambas sacudidos são mais parecidos com o telecoteco carioca que chegava aos ouvi-dos do menino Dorival pelas estações de rádio de Salvador. Mas há uma clara diferen-ça entre este samba baiano e o samba carioca da década de 1930.

Sobre as fontes para compor seus sambas sacudidos, Caymmi disse a Tárik de Souza, em entrevista realizada em 1972: “Nos contatos com a vida musical do povo baiano, nos festejos, consegui tirar, por instinto, uma fórmula pessoal, em torno do samba de rua. Esse tipo corridinho, mexidinho, de ‘quando você se requebrar caia por cima de mim’, sabe? Aquele jogo de palavras com música, uma maneira muito local, condicio-nada naquele ambiente negro, mestiçado, do azeite de dendê, das festas da Conceição da Praia, da Ribeira. Isso aliado à voz do povo, sem alto-falante, aquele tipo de som puro, solto, era uma música em estado puro”.

Bossa NovaA outra vertente da obra de Dorival Caymmi que estourou nos anos 50 – os sambas-canção – pode não ter a originalidade das canções praieiras e dos sam-bas sacudidos, mas nem por isso é menos importante ou menos expressiva. Na época, houve quem o acusasse de americanizado, houve quem pedisse a ele que não perdesse sua “brasilidade”, compondo “música de boate”. Mas Caymmi fez samba-canção à sua moda, com melodias e harmonias pouco convencionais, que dali a algum tempo seriam definidas como pré-bossa-novistas. O próprio compositor diria, bem-humorado: “Quem faz Só Louco já faz bossa nova”. Várias composições de Caymmi neste gênero musical eram coassinadas por Carlos Guinle, numa parceria que era assim definida pelo cronista Sérgio Porto: “Caymmi entra com a música e o Guinle, com o uísque”. Dorival nunca desmentiu a acusação jocosa, até pelo carinho que tinha pelo coautor de Não Tem Solução, Tão Só, Você Não Sabe Amar e Sábado em Copacabana, entre outras. Os dois se tornaram grandes amigos durante a tem-

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porada de sucesso que o baiano fez, em 1944, no Copacabana Cassino Teatro, do hotel Copacabana Palace – de propriedade da família Guinle (Carlos era filho do dono). Data desta época a aproximação de Caymmi do bairro de Copacabana, em cujas boates se apresentaria com frequência nos anos 50 e 60.

“Caymmi passou a empregar notas de sexta e sétima maiores nos acordes menores, imprevisíveis modulações de meio tom, coisas que ninguém usava na época”, contou um dos influenciados por ele, Tom Jobim, em entrevista ao jornalista Tárik de Souza, conforme citado no texto de apresentação do Songbook Dorival Caymmi. Neste tex-to, Tárik destaca a canção praieira O Mar como maior exemplar do violão-orquestra de Caymmi e recorre ao músico Tuzé de Abreu para destrinchar a introdução repleta de modulações cromáticas, típicas do baiano, que “em vez de ir da dominante para a tônica, ele usa a tônica alterada, meio tom abaixo, como dominante”.

Além das melodias e harmonias que antecipavam a modernidade da bossa nova (o time de pré-bossa-novistas dos anos 50 tinha outros craques como Johnny Alf, João Donato, Dick Farney e Tito Madi, entre outros), os sambas-canção de Caymmi eram originais também na letra. Mas foram do gênero sacudido os lançamentos de maior sucesso na segunda metade da década de 50, ambos gravados pelo próprio Dorival Caymmi: primeiro, Maracangalha (1956); depois, Saudade da Bahia (1957), sendo que este segundo estava engavetado há dez anos, desde a noite de 1947 em que foi feito, no Bar Bibi, no Leblon. Dorival escondeu-o por achar muito melancólico. Uma vez gravado, fez sucesso instantâneo, tendo outras 18 gravações já no ano de lança-mento, por artistas diversos, como as cantoras Marlene e Nora Ney e alguns conjun-tos dançantes, como o de Walter Wanderley e a Turma da Gafieira.

No primeiro disco de João Gilberto (Chega de Saudade, lançado em 1958), conside-rado revolucionário, o marco inicial da bossa nova, o baiano João tratou de trazer Caymmi para o repertório, incluindo o samba Rosa Morena. Era o primeiro de mui-tos sambas caymmianos que ainda seriam regravados por João, como O Samba da Minha Terra, Saudade da Bahia, Doralice, Lá Vem a Baiana, Milagre, Você Já Foi à Bahia?, Acontece Que Eu Sou Baiano e Você Não Sabe Amar. Os outros dois pilares do tripé original da bossa nova também incluíram o velho baiano em sua discogra-fia: Tom Jobim dividiu com ele o disco Caymmi Visita Tom, lançado em 1964 pela gravadora Elenco, com a inédita Das Rosas. Já Vinicius de Moraes participou, no ano seguinte, do disco Vinicius e Caymmi no Zum Zum, da mesma gravadora, com participação do Quarteto em Cy.

A partir daí, foi reduzindo gradativamente o ritmo de trabalho e vivendo mais no seu tempo, um tempo sem pressa, cada vez mais propício à contemplação. Seguiu com-pondo e gravando, mas com menor intensidade do que nos anos 40 e 50 – desta fase destacam-se a belíssima Oração de Mãe Menininha (1972) e Modinha para Gabriela (1975). Em seu refúgio dengoso, dedicou-se à pintura e recebeu comendas e incon-táveis homenagens – como o Prêmio Shell de 1983. Passou temporadas na cidade fluminense de Rio das Ostras (onde teve uma casa) e em São Pedro do Pequeri (MG), cidade natal de Stella Maris. Virou enredo campeão da Estação Primeira de Mangueira em 1986 e ganhou título honorífico no candomblé: nomeado Obá Onikoyi, um dos 12 ministros de Xangô, ainda no fim dos anos 60. Foi cantado por muitos colegas admiradores, como Vinicius e Toquinho (Tarde em Itapoã), Gilberto Gil (Buda Nagô), Chico Buarque (Paratodos) e Joyce (Caymmi Visita Tom), entre outros.

Em 16 de agosto de 2008, faleceu aos 94 anos, depois de uma década de luta contra um câncer renal. Morreu em casa, no bairro de Copacabana, 11 dias antes do faleci-mento de Stella Maris, que estava em coma, internada no Hospital Pró-Cardíaco, na ocasião da morte de Dorival.

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* Pedro Paulo Malta é músico, jornalista e pesquisador de música popular brasileira. Foi consultor da série Pequenos Notáveis, produzida pela MultiRio, que mostra a vida e a obra de grandes compositores brasileiros a fim de inspirar crianças de 9 a 14 anos a descobrir suas aptidões.