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VENENOANTIMONOTONIA

Falcatruas, alagamentos, violência urbana.Eu colocaria mais uma coisinha nessa listade pequenas tragédias com que somosbrindados diariamente: o tédio. A cada man-hã, abrimos os jornais e é a mesma indecên-cia política. Nas ruas, perdemos tempo comos mesmos engarrafamentos. Escutamos asmesmas queixas no local de trabalho. Ésempre o mesmo, o mesmo. Como é bomquando algo nos surpreende.

Para quem vive na opressiva e cinzentaSão Paulo, a novidade atende pelo nome deCow Parade, a exposição ao ar livre de 150

esculturas em forma de vaca, em tamanhonatural, feitas de fibra de vidro e decoradascom muita cor e insanidade por artistasplásticos, diretores de arte, designers e car-tunistas. Um nonsense mais que bem-vindo,uma intervenção no nosso olhar acos-tumado. Espalhadas por ruas, praças, noslugares mais inesperados, lá estão elas, vacasenormes, vacas profanas, vacas insólitas.Para quê? Para nada de especial, apenas paraespantar o tédio, inspirar loucuras, lembrarque as coisas não precisam ser sempreiguais. Havia uma vaca no meio do caminho,no meio do caminho havia uma vaca. Époesia também.

Falando em poesia, há sempre umanova e heróica coletânea sendo lançada nomercado editorial, tentando atrair aquelesleitores que evitam qualquer coisa que rime.Desta vez, não é coletânea de mulheres po-etas ou de poetas do terceiro mundo, essascortesias que nos fazem. Finalmente, o

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humor e a leveza baixaram no reino dos ver-sos. O livro chama-se Veneno antimonotoniae traz o subtítulo: Os melhores poemas ecanções contra o tédio. Organizado por Eu-canaã Ferraz, a antologia pretende combatero vazio, o medo, a falta de imaginação. É umconvite para a vida, e um convite feito at-ravés das palavras de Drummond, ChicoBuarque, Antônio Cícero, Ferreira Gullar,Adriana Calcanhotto, Armando Freitas Filho,Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, JoãoCabral de Melo Neto e outros ilustres, semfaltar Cazuza, claro, cuja canção Todo amorque houver nesta vida – uma das minhas le-tras preferidas – inspirou o título da obra.

Até hoje, pergunta-se: para que serve aarte, para que serve a poesia?

Intelectuais se aprumam, pigarreiam ecomeçam a responder dizendo “Veja bem...”e daí em diante é um blablablá teórico quetenta explicar o inexplicável. Poesia serve ex-atamente para a mesma coisa que serve uma

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vaca no meio da calçada de uma agitadametrópole. Para alterar o curso do seu andar,para interromper um hábito, para evitar re-petições, para provocar um estranhamento,para alegrar o seu dia, para fazê-lo pensar,para resgatá-lo do inferno que é viver todosanto dia sem nenhum assombro, sem nen-hum encantamento.

2 de outubro de 2005

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FAXINA GERAL

Há muitas coisas boas em se mudar de casaou apartamento. Em princípio, toda equalquer mudança é um avanço, um passo àfrente, uma ousadia que nos concedemos,nós que tememos tanto o desconhecido.Mudar de endereço, no entanto, traz um be-nefício extra. Você pode estar se mudandoporque agora tem condições de morar mel-hor, ou, ao contrário, porque está sem con-dições de manter o que possui e necessita irpara um lugar menor. Em qualquer dos doiscasos, de uma coisa ninguém escapa: é horade jogar muita tralha fora. E, se avaliarmos asituação sem meter o coração no meio,

chegaremos a um previsível diagnóstico:quase tudo que guardamos é tralha.

Começando pelo segundo caso, o de vo-cê estar indo para um lugar menor. Salve!Considere isso uma simplificação da vida, enão um passo atrás. Não haverá espaço paraguardar todos os seus móveis e badulaques.Se você for muito sentimental, vai doer umpouquinho. Mas não é crime ser racional:olhe que oportunidade de ouro paradesfazer-se daquela estante enorme que ocu-pa todo o corredor, e também daquela salade jantar de oito lugares que você só usa emmeia dúzia de ocasiões especiais, já que fazas refeições do dia-a-dia na copa. Para quetantas poltronas gordas, tanta mobília her-dada, tantos quadros que, pensando bem,nem bonitos são? Xô! Leve com você apenaso que combina e cabe na sua nova etapa devida. O que sobrar, venda, ou melhor ainda:doe. Você vai se sentir como se tivesse feito oregime das nove luas, a dieta do leite azedo,

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ou seja lá o que estiver na moda hoje paraemagrecer.

No caso de você estar indo para umlugar maior, vale o mesmo. Aproveite achance espetacular que a vida está lhe dandopara exercitar o desapego. Para que iniciarvida nova com coisa velha? Ok, você foi afundo de caixa e não sobrou nada para adecoração, compreende-se. Pois leve seu fo-gão, sua geladeira, sua cama, seu sofá e o im-prescindível para não dormir no chão. Pracomeçar, isso basta. Coragem: é hora de pas-sar adiante todas as roupas que você pensaque vai usar um dia, sabendo que não vai.Hora de botar no lixo todas as panelas semcabo, os tapetes desfiados, as almofadas comrombos, os discos arranhados, as plantas se-mimortas, aquela lixeira medonha do ban-heiro, os copos trincados, os guias telefôni-cos de três anos atrás, todas as flores artifici-ais, as revistas empoeiradas que você col-eciona, a máquina de escrever guardada no

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baú, o aquário vazio e o violão com duas cor-das. Tudo isso e mais o que você esconde noarmário da dependência de serviço. Vamoslá, seja homem.

Caso você não esteja de mudança mar-cada, invente outra desculpa qualquer, maslivre-se você também da sua tralha. Poucasexperiências são tão transcendentais comodeixar nossas tranqueiras pra trás.

9 de outubro de 2005

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CASAMENTO ABERTO

Andou circulando pela internet umtexto creditado a Danielle Mitterrand,viúva do ex-presidente francêsFrançois Mitterrand. Pelo teor,acredito que seja mesmo de sua autor-ia. Quando permitiu que a amante e afilha que ele teve fora do casamentocomparecessem aos funerais, Daniellecomprou uma briga com a ala maisconservadora da sociedade francesa.Agora está se defendendo com uma re-flexão que serve para todos nós.

É sabido que a instituiçãocasamento vem se descredibilizandocom o passar do tempo. Hoje, uma

relação que dura vinte anos já é can-didata a entrar para o Guinness. Lioutro dia uma pesquisa sobre os casaismais “divorciáveis” da atualidade. Atal Paris Hilton era a mais cotada parase separar no primeiro ano de mat-rimônio – erraram: nem chegou ahaver casamento. E fora do mundo dascelebridades não é muito diferente. Ospombinhos estão no altar, e os amigos,na igreja, já estão fazendo suas apos-tas para a duração do enlace. Todomundo quer casar, adora a idéia, maspoucos ainda acreditam no felizespara sempre, e não porque sejam cíni-cos, mas porque conhecem bem o con-trato que estão assinando: comexigência de exclusividade vitalícia, ouseja, ninguém entra, ninguém sai. Di-fícil achar que isso possa dar certo nosdias atuais.

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O casamento vai acabar? Nunca,mas vai continuar a fazer muita gentesofrer se não entrarem cláusulasnovas nesse contrato e se as cabeças não searejarem. Danielle Mitterrand diz o seguinte:“Achar que somos feitos para um único e fielamor é hipocrisia, conformismo. É precisoadmitir docemente que um ser humano écapaz de amar apaixonadamente alguém edepois, com o passar dos anos, amar deforma diferente.” E termina citando suaconterrânea, Simone de Beauvoir: “Temosamores necessários e amores contingentes aolongo da vida”.

Estamos falando de casamento aberto,sim, mas não desse casamento escancarado evulgar, em que todos se expõem, se machu-cam e acabam ainda mais frustrados.Casamento aberto é outra coisa, e pode in-clusive ser monogâmico e muito feliz. Aabertura é mental, não precisa ser sexual. Éentender que com possessão não se chegará

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muito longe. É amar o outro nas suas fragil-idades e incertezas. É aceitar que uma uniãoé para trazer alegria e cumplicidade, e nãosufocamento e repressão. É ter noção de quea cada idade estamos um pouquinho trans-formados, com anseios e expectativas bemdiferentes dos que tínhamos quando casam-os, e quem nos ama de verdade vai procurarentender isso, e não lutar contra. Sendoaberto nesse sentido, o casal construirá umarelação que seja plena e feliz para eles mes-mos, e não para a torcida. E o que eles so-frerem, aceitarem, negociarem ou rejeitaremterá como único intento o crescimento deambos como seres individuais que são.

Enquanto não renovarmos nossa idéiade romantismo, continuaremos a bagunçaraquilo que foi feito apenas para dar prazer:duas pessoas vivendo juntas. Eu não conheçonada mais difícil, mas também nada maisbonito. E a beleza nunca está nas

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mesquinharias e infantilidades. A beleza estásempre um degrau acima.

16 de outubro de 2005

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OBRIGADA PORINSISTIR

Até o mais seguro dos homens e a mais con-fiante das mulheres já passaram por um mo-mento de hesitação, por dúvidas enormes etambém dúvidas mirins, que talvez nemmerecessem ser chamadas de dúvidas, de tãopequenas. Vacilos, seria melhor dizer. Devoir a esse jantar, mesmo sabendo que a donada casa não me conhece bem? Será que tiro odinheiro do banco e invisto nessa loucura?Devo mandar um e-mail pedindo desculpaspela minha negligência? Nessa hora, precis-amos de um empurrãozinho. E é aos empur-radores que dedico esta crônica, a todos

aqueles que testemunham os titubeios al-heios e dizem: vá em frente!

“Obrigada por insistir para que eu pin-tasse, escrevesse, atuasse, obrigada por per-ceber em mim um talento que minha auto-crítica jamais permitiria que sedesenvolvesse.”

“Obrigada por insistir para que eu fossevisitar meu pai no hospital, eu não me per-doaria se não o tivesse visto e falado com eleuma última vez, eu não teria ido se continu-asse sendo regido apenas pela minha teimo-sia e pelo meu orgulho.”

“Obrigada por insistir para que eu con-hecesse Veneza, do contrário eu ficaria parasempre fugindo de lugares turísticos e meconsiderando muito esperto e com isso teriadeixado de conhecer a cidade mais surreal eencantadora que meus olhos já viram.”

“Obrigada por insistir para que eufizesse o exame médico, para que eu nãofosse covarde diante das minhas fragilidades,

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só assim pude descobrir o que trago no corpoe tratá-lo a tempo. Não fosse por você, euteria deixado este caroço crescer no meupescoço e me engolir com medo e tudo.”

“Obrigada por insistir para eu voltarpra você, para eu deixar de ser adolescente eaceitar uma vida a dois, uma família, umaserenidade que eu não suspeitava. Eu nãosabia que amava tanto você e que havia lhedado boas pistas sobre isso, como é que vocêsoube antes de mim?”

“Obrigada por insistir para que eudeixasse você, para que eu fosse seguirminha vida, obrigada pela sua confiança deque seríamos melhores amigos do queamantes, eu estava presa a uma condição so-cial que eu pensava que me favorecia, masnada me favorece mais do que esta liberdadepara a qual você, que me conhece melhor doque eu mesma, apresentou-me como saída.”

“Obrigada por insistir para que eu nãofosse àquela festa, eu não teria agüentado ver

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os dois juntos, eu não teria aturado, eu nãoevitaria outro escândalo, obrigada por ter fic-ado segurando minha mão e ter trancadominha porta.”

“Obrigada por insistir para eu cortar ocabelo, obrigada por insistir para eu dançarcom você, obrigada por insistir para eu voltara estudar, obrigada por insistir para eu nãotirar o bebê, obrigada por insistir para eufazer aquele teste, obrigada por insistir paraeu me tratar.”

Em tempos em que quase ninguém seolha nos olhos, em que a maioria das pessoaspouco se interessa pelo que não lhes diz re-speito, só mesmo agradecendo àqueles quepercebem nossas descrenças, indecisões,suspeitas, tudo o que nos paralisa, e gastamum pouco da sua energia conosco, insistindo.

23 de outubro de 2005

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VENDE FRANGO-SE

Alguém encontrou esta pérola escrita numaplaca em frente a um mercadinho de ummorro do Rio: “Vende frango-se”. É poesia?Piada? Apenas mais um erro de português? Éa vida e ela é inventiva. Eu, que estou semprecorrendo atrás de algum assunto paracomentar, pensei: isso dá samba, dá letra, dácrônica. Vende frango-se, compra casa-se,conserta sapato-se.

Prefiro isso aos “q tc cmg?” espalhadospelo mundo virtual, prefiro a ingenuidade deum comerciante se comunicando do jeito quesabe, é o “beija eu” dele.

Vende carne-se, vende carro-se, vendegeléia-se. Não incentivo a ignorância, apenas

concedo um olhar mais adocicado ao que éestranho a tanta gente, o nosso idioma. Tãopoucos estudam, tão poucos lêem, queremoso quê? Ao menos trabalham, negociam, ven-dem frangos, ao menos alguns compram ecomem e os dias seguem, não importa a loc-alização do sujeito indeterminado. Vive-se.

Talvez eu tenha é ficado agradecida poresse senhor ou senhora que se anunciou deforma errônea, porém inocente, já que é domeu feitio também trocar algumas coisas delugar, e nem por isso mereço chicotadas, aocontrário: o comerciante do morro me in-centivou a me perdoar. Esquecer o nome deum conhecido, não reconhecer uma voz aotelefone, chamar Gustavos de Olavos, con-fundir os verbos e embaralhar-se toda parafalar: sou a rainha das gafes, dos tropeços in-voluntários. Tento transformar em folclore,já que falta de educação não é. Consertadestrambelhada-se. Eu me ofereço como cli-ente. Quem não? Sabemos todos como é

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constrangedor não acertar, mas lá do alto doseu boteco, ele nos absolve. Ele, o autor deum absurdo, mas um absurdo muitodelicado.

Vende frango-se, e eu acho graça, eachar graça é uma coisa boa, sinal de queainda não estamos tão secos, rudes e patrul-heiros, ainda temos grandeza para promovero erro alheio a uma inesperada recriação dagramática, fica eleito o dono da placa oGuimarães Rosa do morro, vale o que estáescrito, e do jeito que está escrito, uma vezque entender todos entenderam. Fica aquiminha homenagem à imperfeição.

9 de novembro de 2005

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REGURGITAR

Eu li o livro antes de ver a peça, o que facilit-ou minha compreensão, porque MichelMelamed, no palco, é um epilético verbal,emenda uma frase na outra enquanto levachoques que parecem amenos, mas não de-vem ser, assim como a vida parece amena,mas que nada.

Regurgitofagia é o nome da peça (queesteve duas vezes em cartaz em Porto Alegre,primeiro durante o Em Cena e no último fi-nal de semana no Theatro São Pedro – sehouver uma terceira, não perca) e do livro.Este, aliás, me lembrou um pouco osprimeiros livros do Luciano Alabarse,

justamente o diretor do Em Cena. Pra quemnão sabe, Luciano, no início dos anos 80,lançou por uma tal Editora Proletra (aindaexiste?) Sem essa, Aranha, Aquele um ePobres moços – um mix de idéias, poemas,letras de música, declarações de amor e deódio, uma esquizofrenia pensante e atraentepara os que, como eu, estavam tentando en-tender alguma coisa deste mundo caótico, eque segue caótico, vide Michel Melamed, ano2005.

Deglutimos coisas demais, nos enfiamgoela abaixo toda sorte de informações e ab-errações – chega, impossível assimilar tantacoisa, tanta porcaria, tantos estímulos ve-lozes que nos impedem a reflexão. É o queresume, com um humor sarcástico, Regurgit-ofagia. E eu digo amém, porque acreditomesmo que estamos pirando, todos.

E para enfrentar a piração, só mesmorespondendo com mais loucura.

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Melamed trata de assuntos seríssimoscom o mesmo deboche dos debochados quetentam nos doutrinar, e com uma linguagemrápida como rápida é a vida. É tudo umsusto. Você não anda assustado? Salve você.A maioria das pessoas que eu conheço andacom os cabelos em pé, como se o choquefosse diário e ininterrupto. E é.

Teatro não serve pra nada, pensam al-guns, e literatura é elitismo, pensam outros,e na verdade não pensam, porque é no teatroe na literatura que encontramos a trans-gressão possível e a provocação necessária. Omundo não anda fácil nem digerível. Éhomem-bomba explodindo em festas decasamento, é corrupção pra tudo que é lado,é muito desamor travestido de prazer, é umaurgência de ser feliz que impede a con-strução da felicidade mesma, que é mais vag-arosa. Para onde estão indo todos nesta cor-reria? Não sou a única que ainda vive, em

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certos aspectos, na era da pedra lascada, mascorro igual, porque se parar, me atropelam.

Regurgitar: vomitar. Fagia: comer.Então regurgitofagia é simplesmente expeliro inútil e voltar a se alimentar do que precis-amos. E do que precisamos? Anote aí, é pou-ca coisa: silêncio, arte e amor. Bom dia atodos.

16 de novembro de 2005

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A TRISTEZA PERMITIDA

Se eu disser pra você que hoje acordei triste,que foi difícil sair da cama, mesmo sabendoque o sol estava se exibindo lá fora e o céuconvidava para a farra de viver, mesmosabendo que havia muitas providências a to-mar, acordei triste e tive preguiça de cumpriros rituais que normalmente faço sem nemprestar atenção no que estou sentindo, comotomar banho, colocar uma roupa, ir pro com-putador, sair para compras e reuniões – seeu disser que foi assim, o que você me diz?Se eu lhe disser que hoje não foi um diacomo os outros, que não encontrei energianem para sentir culpa pela minha letargia,

que hoje levantei devagar e tarde e que nãotive vontade de nada, você vai reagir como?

Você vai dizer “te anima” e me re-comendar um antidepressivo, ou vai dizerque tem gente vivendo coisas muito maisgraves do que eu (mesmo desconhecendo arazão da minha tristeza), vai dizer para eucolocar uma roupa leve, ouvir uma músicarevigorante e voltar a ser aquela que semprefui, velha de guerra.

Você vai fazer isso porque gosta demim, mas também porque é mais um quenão tolera a tristeza: nem a minha, nem asua, nem a de ninguém. Tristeza é consid-erada uma anomalia do humor, uma doençacontagiosa, que é melhor eliminar desde oprimeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medica-mento. Sentiu uma vontade de chorar à toa?Gravíssimo, telefone já para o seu psiquiatra.

A verdade é que eu não acordei tristehoje, nem mesmo com uma suave

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melancolia, está tudo normal. Mas quandofico triste, também está tudo normal. Porqueficar triste é comum, é um sentimento tãolegítimo quanto a alegria, é um registro danossa sensibilidade, que ora gargalha emgrupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estartriste não é estar deprimido.

Depressão é coisa muito mais séria,contínua e complexa. Estar triste é estar at-ento a si próprio, é estar desapontado comalguém, com vários ou consigo mesmo, é es-tar um pouco cansado de certas repetições, édescobrir-se frágil num dia qualquer, semuma razão aparente – as razões têm essamania de serem discretas.

“Eu não sei o que meu corpo abriga/nestas noites quentes de verão/ e não im-porta que mil raios partam/ qualquer sen-tido vago de razão/ eu ando tão down...”Lembra da música? Cazuza ainda dizia, lá nomeio dos versos, que pega mal sofrer. Pois é,

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pega mal. Melhor sair pra balada, melhorforçar um sorriso, melhor dizer que está tudobem, melhor desamarrar a cara. “Não querote ver triste assim”, sussurrava Roberto Car-los em meio a outra música. Todos cantam atristeza, mas poucos a enfrentam de fato. Osesforços não são para compreendê-la, e simpara disfarçá-la, sufocá-la, ela que, humilde,só quer usufruir do seu direito de existir, deassegurar o seu espaço nesta sociedade queexalta apenas o oba-oba e a verborragia, eque desconfia de quem está calado demais.Claro que é melhor ser alegre que ser triste(agora é Vinicius), mas melhor mesmo é nin-guém privar você de sentir o que for. Emtempo: na maioria das vezes, é a gentemesmo que não se permite estar alguns de-graus abaixo da euforia.

Tem dias que não estamos pra samba,pra rock, pra hip-hop, e nem por isso deve-mos buscar pílulas mágicas para camuflar

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nossa introspecção, nem aceitar convitespara festas em que nada temos para brindar.Que nos deixem quietos, que quietude éarmazenamento de força e sabedoria, daquia pouco a gente volta, a gente sempre volta,anunciando o fim de mais uma dor – até quevenha a próxima, normais que somos.

20 de novembro de 2005

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THE GUITAR MAN

Eu fui criada ouvindo Beatles, Janis Joplin,Rita Lee, Lou Reed e Tina Turner, era minhatrilha sonora da infância, o que não impediuque uma aguazinha com açúcar entrasse nomeu repertório. Aos onze anos de idade,minha música preferida era “The GuitarMan”, de um grupo chamado Bread, que nãochegou a entrar para a história, a não ser praminha.

Era uma balada bonita, que falava deum músico que estava sempre na estradamexendo com as emoções daqueles comquem cruzava. “Who draws the crowd andplays so loud, baby, it’s the guitar man...” efoi o que bastou para esse personagem virar

meu príncipe encantado, muito mais do queaqueles loiros em cavalos brancos que en-travam mudos e saíam calados dos contos defada, sempre com ar de sonsos.

Adoro bossa nova, sou louca por jazz,este ano curti com alegria Norah Jones,Jorge Drexler, John Pizzarelli, MadeleinePeyroux, mas nada se compara ao poder elet-rizante de um guitarrista clássico, e estoufalando logicamente da lenda que acabou dese apresentar no Brasil, Buddy Guy, que nãotem nada de cool, e sim de incendiário. Nes-sas horas minha sofisticação vai pro ralo e euquero mais é... é... sei lá, devo ter sido umastripper em outra encarnação.

Assisti ao espetáculo do rei do blues emPorto Alegre, onde ele transformou o teatronum estádio de futebol. Foi eletrizante,celebrou-se o lado mais quente da vida. Osintegrantes da banda lidavam com os instru-mentos como se eles fossem extensão dopróprio corpo, e Buddy, do alto dos seus 69

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anos, mostrou que idade é um conceitomuito relativo e que tem muito garoto devinte que precisa de umas liçõezinhas sobreo que é vigor.

A maioria dos gêneros musicais pro-vocam arrepios na alma e no coração, são ab-sorvidos pelos ouvidos e se instalam dentroda gente de forma tranqüila e apaziguadora.O blues e o rock, primos-irmãos, não se as-sentam assim tão facilmente dentro de nós.Eles são assimilados através da pele também,nos reviram, impulsionam, provocamreações físicas mais nervosas, despertam emnós o tarado, o revolucionário, o selvagem, oherege. Já ia esquecendo: a stripper.

Guitarra, bateria, piano, sax, gogó eveneno, tudo misturado, cativam pelo quetêm de vibrante e sexy. Já virou clichê dizerque o rock é mais atitude do que música, e seformos ampliar isso para a vida fora dopalco, podemos dizer que Elis Regina, porexemplo, foi uma grande roqueira, assim

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como o jornalista Paulo Francis, que tambémtinha uma postura muito rock’n’roll, mesmoconsiderando rock música de jeca e sendo orei dos eruditos.

O show de Buddy Guy foi, antes detudo, um workshop: ele saiu do palco váriasvezes, circulou por todos os ambientes,misturou-se à platéia, desarrumou-a,seduziu-a, quebrou o protocolo, divertiu edivertiu-se sem parar um único segundo detocar – e ainda se deu ao luxo de hom-enagear John Lee Hooker, Jimi Hendrix eEric Clapton, sem deixar de ser ele mesmo,dono e senhor do seu blues. Por que tudoisso faz bem? Porque o cotidiano anda muitomonocórdico, as notícias andam muito re-petitivas e a natureza pulsante da gente, pou-co provocada. Bom lembrar que podemos serviscerais sem nos rendermos à vulgaridade,ser lascivos através do blues e suas guitarras,e ficarmos excitados sem perder a classe.

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4 de dezembro de 200536/434

VAI, VAI, VAI... VIVER

Há inúmeras razões para se assistir ao docu-mentário sobre Vinicius de Moraes: para re-cordar suas músicas, seus poemas, suashistórias e, principalmente, lembrar de umaépoca menos tensa, em que ainda havia es-paço para a ingenuidade, a ternura e apoesia. Entre os vários depoimentos dofilme, há um de Chico Buarque dizendo quenão imagina como Vinicius se viraria hoje,nesta sociedade marcada pela ostentação earrogância. E nós?, pergunto eu. Nós que nosemocionamos com o documentário justa-mente por nos identificarmos com aquelaalma leve, com a valorização das alegrias etristezas cotidianas, como conseguimos

sobreviver neste mundo estúpido, nesteninho de cobras, nesta violência invasiva?Assistir ao documentário é uma maneira de agente localizar a si mesmo, trazer à tonanossa versão menos cínica, mais pura, e res-gatar as coisas que prezamos de verdade, quesão diferentes das coisas que a tevê nos em-purra aos berros: compre! pague! queira!tenha!

Vinicius fazia outro tipo de propa-ganda. Se era para persuadir, que fosse emvoz baixa e por uma causa nobre. Num dosmelhores momentos do documentário, ele eBaden Powell cantam entre amigos, numarodinha de violão: “Vai, vai, vai... amar/ vai,vai, vai... chorar/ vai, vai, vai... sofrer”. É o“Canto de Ossanha” lembrando que a genteperde muito tempo se anunciando, dizendoque faz e acontece, quando na verdade tudoo que precisamos, ora, é viver.

Pois é. Mas, detalhe: não vive quem seeconomiza, quem quer felicidade parcelada

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em 24 vezes sem juros. Aliás, ser feliz nemestá em pauta. O que está em pauta é abusca, a caça incessante ao que nos é essen-cial: ter paixões e ter amigos. O grande pat-rimônio de qualquer ser humano, quer eleperceba isso ou não.

Pra acumular esses bens, Viniciusseguia um ritual: zerava-se. Começava e ter-minava um casamento. Começava e ter-minava outro. Começava e terminava umavida em Paris, uma temporada em Salvador.Renovava seus votos a cada dia. Se já não sesentia inteiro num amor ou num projeto,simples: ponto final. Tudo isso, diga-se, a umcusto emocional altíssimo. O simples nuncafoi fácil, muito menos para quem possui umcoração no lugar onde tantos possuem umapedra de gelo. As pedras de gelo de Viniciusestavam onde tinham que estar, no seu ca-chorro engarrafado, e só. O resto era tudoquente.

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Entre sobreviver e viver há um precipí-cio, e poucos encaram o salto. Encerro estacrônica com dois versos que não são de Vini-cius, e sim de uma grande poeta chamadaVera Americano, que em seu novo livro, Ar-remesso livre (editora Relume Dumará), rev-erencia a mudança. Não te acorrentes/ aoque não vai voltar, diz ela, provocando aomesmo tempo nosso desejo e nosso medo.Medo que costuma nos paralisar diante dadecisão crucial: Viver/ ou deixar para maistarde.

O poeta espalmaria sua mão direita nasnossas costas (a outra estaria segurando ocopo) e diria: vai.

11 de dezembro de 2005

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QUEBRA DEPROTOCOLO

Poucas semanas atrás escrevi uma crônicaem que enaltecia o show de Buddy Guy e abeleza de ver alguém celebrar o lado maisquente da vida, aquele que não é rígido,preso a fórmulas. Pegando carona na per-formance irreverente do músico, que circu-lou por todo o Teatro do Sesi fazendo miséri-as com sua guitarra, falei sobre o quanto éestimulante improvisar, mudar de planos efazer umas loucuras inofensivas – não só nopalco, mas também fora dele.

É de novo o palco que me inspira a vol-tar ao assunto. Tudo começou em junho

passado, quando comprei um CD no escuro,sem conhecer uma única música. Era umacoletânea de hits que tocava na Colette,badalada loja de design parisiense. Nessedisco descobri Frontin, de um tal Jamie Cul-lum, que eu não tinha idéia de quem fosse.Logo depois, ganhei de presente o DVD deum show em que grandes nomes prestavamum tributo a Ray Charles, e lá estava o tal doCullum de novo, fazendo bonito ao lado deStevie Wonder, B.B.King e Norah Jones. Umnanico de vinte e poucos anos.

No último mês, vi o nome de Cullumnuma revista, depois num breve comentáriona internet, e resolvi que era hora de sermosformalmente apresentados. Comprei de umasó vez os seus dois CDs, Twentysomething eCatching Tales. Excelentes, ambos. Resolvientão selar nossa união e comprei o DVDgravado ao vivo no Blenheim Palace, na

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Inglaterra. Fiquei com os quatro pneus arria-dos. Gamei.

Para os antenados, não estou contandonenhuma novidade. O cara é considerado asensação do jazz desde 2003, quando estour-ou em Londres. Talvez devesse continuarconhecido apenas entre poucos, pra manter aaura de novidade, mas algo me diz que suafama vai, em poucos dias, se espalhar peloBrasil feito pólvora, o menino já participouaté da trilha sonora do filme Bridget Jones, ea cantora Maria Rita rasgou elogios pra elena entrevista que deu domingo passado praGabi. Agora já era. Que se popularize entrenós Jamie Cullum.

Por que mesmo falei em quebra de pro-tocolo? Porque esse músico com visual desurfista corrompe totalmente a austeridadedo piano que toca. Ele não tem respeito nen-hum pelo instrumento: batuca nele comforça, canta em pé em cima dele. NelsonFreire teria uma síncope se visse. Tudo com

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uma energia contagiante, um entusiasmoraro, e se tudo isso parece recurso para dis-farçar a falta de talento, aí é que está, talentoé o que não falta ao garoto, ao contrário, so-bra. Faz toda essa bagunça porque é insanomesmo. Aquela insanidade que dá gosto dever, aquela loucura inofensiva de que faláva-mos antes: fugir da mesmice em nome daalegria de viver.

Ando me repetindo? Não sou eu, tchê.É o mundo.

18 de dezembro de 2005

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O ESPÍRITO DA COISA

Você sempre pega o espírito da coisa? Geral-mente o espírito da coisa é algo que ficasubentendido, só as almas atentasconseguem captá-lo. A verdade é que, em ummundo cada vez mais pragmático, é difícilpegar o espírito da coisa, seja que coisa foressa.

O que dizer então do espírito do Natal?Antes ele entrava no ar assim que dezembroiniciava. O espírito desse mês, para quem foicriança em outros tempos, era de pura ma-gia. O Natal, que demorava tanto parachegar, estava batendo à porta. “Quantos di-as faltam, mãe?” “Agora falta pouco,

querida.” “Quanto?” “Uns vinte dias.” “Tudoisso!!!”

Mas a gente sabia que era pouco secomparado à longa espera de um ano inteiro.Em maio, junho, julho, o Natal ainda estavaa perder de vista. O Natal era o arremate docalendário, era a compensação por tantoestudo e provas na escola, era o prêmio portermos nos comportado bem, era a hora decolocar uma roupa bonita e ter algum desejoatendido, era hora de comer umas delíciasdiferentes, de rezar, de acreditar em todos ossonhos. O céu ficava mais azul, as estrelasdavam cria e nunca, nunca chovia emdezembro. Então finalmente chegava o dia24. A empregada era liberada logo depois doalmoço, o pai voltava mais cedo pra casa enenhum moleque reclamava de ir pro chu-veiro, até gostava. Já de banho tomado, erahora de esperá-lo. Ele. O verdadeiro deus detoda criança, Papai Noel.

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Hoje mal entra dezembro – e com ele,trovoadas – e os shoppings lotam, o trânsitoentope, os filhos pedem coisas caríssimas eganham antes mesmo da noite feliz. Com-prar, comprar, comprar. Você, meio semgrana, faz o que pode. Os outros, meio semnada, você faz que não vê. Mas eles estãoentre nós: crianças pedindo um lápis depresente, pedindo colchão de presente, son-hando com o primeiro iogurte de suas vidas.E a gente voando de um lado para o outro,sem tempo pra eles.

Isso tudo foi até ontem, quando dezem-bro acabou. Ao menos este dezembro in-sensato, ansioso, consumista, ateu, que dura24 dias febris, em que todos correm, todosestão atrasados, todos têm compromissos in-adiáveis. Uma amiga me escreveu no auge dostress: “Pensar que o próximo será só daqui aum ano é a melhor parte da história”.

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Antes de começar a contagem regres-siva para o próximo, temos hoje. Temos estehiato, o dia 25. Um feriado, um domingo,uma trégua. As lojas estão todas, todinhasfechadas. Sobrou alguma coisa da ceia parabeliscar na geladeira. Você vai sentir sede desuco natural, de água gelada. Vai colocarmúsica pra tocar, vai vestir uma camisetalimpa. Você não tem nada pra fazer, nenhummotivo pra tirar o carro da garagem, nen-huma razão para procurar vaga para esta-cionar. Hoje você vai andar a pé, no máximode bicicleta. Vai falar mais pausadamente.Não vai ligar a tevê, prometa. Nem sei porque abriu o jornal. Hoje é dia de caminhardevagar, de chinelo ou pés descalços. Dia deolhar bem fundo nos olhos do porteiro queestá trabalhando, do motorista de ônibus queestá trabalhando, e desejar a eles um felizNatal pra valer. Com sentimento. Um senti-mento que não seja medo nem angústia.

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Paz.É hoje o dia que nos restou pra isso.

Um dia para sairmos de casa apenas para iraté alguém que nada possui e ofertar umpedaço de bolo, uma barra de chocolate, umtravesseiro, um sabonete, uma bola,qualquer coisa que signifique uma ver-dadeira extravagância diante de tanta mis-éria. Terminou a histeria coletiva, terminou afesta, terminou a semana. É hoje, antes quetudo reinicie, que você poderá encontrar overdadeiro espírito da coisa. Não deixe queele escape.

25 de dezembro de 2005

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A MOÇA DO CARROAZUL

Era a semana que antecedia o Natal. Os car-ros entupiam as ruas, todos querendo apro-veitar um sinal verde, uma vaga para esta-cionar, chegar mais cedo ao shopping. Eu eraapenas mais uma no trânsito, quase sem ol-har para os lados, concentrada em algumatarefa inadiável. Mas de repente o que eramovimento e pressa à minha volta parou.

Estava fazendo o retorno numa grandeavenida quando passou por mim um carroazul com uma moça na direção. O vidro delaestava aberto e ela não parecia ter nada aesconder: chorava. Não um choro à-toa. Ela

chorava por uma dor aguda, uma dor de re-speito, era um transbordamento. Passou retopor mim e eu concluí meu retorno, e quis odestino que a próxima sinaleira fechasse e al-inhasse nossos dois carros, eu ao volante domeu, atônita, ela ao volante do dela,desmoronando.

Eu deveria ter ficado na minha, mas eraquase Natal, e quase todos estão tão sós,quase ninguém se importa com os outros, eantes que trocasse o sinal, abri a janela domeu co-piloto – sem nenhum co-piloto – eperguntei: “Você precisa de ajuda?”.

Ela estava com a cabeça apoiada no en-costo do banco, olhando em frente pro nada,chorando ainda. Então virou a cabeça lenta-mente para mim – pensei que iria dizer paraeu me preocupar com a minha vida – e disseserenamente: “Já vai passar”. E quase sorriu.

Eu respondi “fica bem”, fechei o vidro eavancei meu carro um pouquinho pra frente,

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para desalinhar com o dela e deixá-la livredos meus olhos e da minha atenção.

Passei o resto do trajeto tentandoadivinhar se ela havia rompido uma relaçãode amor, se havia perdido um filho recente-mente, se havia recebido o diagnóstico deuma doença grave, se havia discutido com omarido, se estava com saudades de alguém,se estava ouvindo uma música que a fazialembrar de uma época terrível – ou sensa-cional. O que a fazia chorar quase ao meio-dia, numa avenida tão movimentada, semnem mesmo colocar uns óculos escuros oufechar o vidro? Que desespero era aquelesem pudor e por isso mesmo tão intenso?

Garota, desculpe invadir com minhavoz a sua tristeza. Era quase Natal e eu nãoagüentei ver você naquele quase deserto,num universo à parte, incompatível com aquase euforia com que recebemos as viradas,as mudanças, a esperança de olhos mais se-cos. Faz uma semana, lembra? E agora falta

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quase nada pra gente abraçar a ilusão de quetudo vai ser novo. Que seja mesmo, especial-mente pra você. Feliz 2006.

28 de dezembro de 2005

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A MULHER INVISÍVEL

Eu estava na sala de embarque esperando achamada do vôo. Havia gente demais e pou-cas cadeiras disponíveis, tive sorte de con-seguir uma. Enquanto lia uma revista, re-parei de soslaio um senhor se aproximandocom duas bagagens de mão. Era um homemgrande. Extra large. Veio se aproximando eao mesmo tempo virando o corpo de costas.Que estranho... Então ele parou bem onde euestava. Continuava de costas. Repare noperigo iminente da situação. Não houvemuito tempo para agir. Antes que eu pudesseraciocinar, o corpo dele começou a se flex-ionar em minha direção, e eu tive que aceitarhumildemente: ele iria sentar em cima de

mim. Uma cena de desenho animado: eu meencolhendo na cadeira enquanto aquelasnádegas gigantescas estavam prestes a meespremer. Com a única mão livre que merestava – a outra segurava a revista – espal-mei seu bundão e disse com um fiapo de voz:senhor, senhor, tem gente.

Ele virou a cabeça e: oh, me desculpe,senhorita (foi perdoado na mesma hora porcausa do “senhorita”) e foi acomodar-se unstrês assentos adiante, que para alegria geral,estava vazio. Escapei por um triz de virarmingau em pleno Galeão.

Você pode não acreditar, mas issoaconteceu de verdade, tenho váriastestemunhas. Aliás, que gente educada: nin-guém riu. Diante da discrição de todos, tran-quei o riso também, o que me requereu certoesforço, pois a vontade que eu tinha era de,às gargalhadas, bater na coxa da mulher aolado e dizer: já viu isso, criatura?

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Rindo apenas por dentro, festejei seruma pessoa com a auto-estima em dia, poisoutra, com menos apego por si mesma,ficaria arrasada ao descobrir-se invisível.Porque foi como me senti: invisível. O sonhode muita gente. E o terror de tantos outros.

Já me senti invisível em algumasocasiões ao longo da vida. Voltando notempo, me pego invisível em festas, invisívelà mesa do jantar, invisível na sala de aula.Uma sensação incômoda de estar ali, masninguém levar em conta sua presença. Vocêfala, ninguém escuta. É vista, mas não perce-bida. E ao ir embora, ninguém dá por suafalta. Com você, nunca?

Em outros momentos da vida, eu dariatudo para estar invisível, mas não tive asorte. Como da vez em que engasguei comrisco de morte no início de um jantar comSilvia Pfeifer, a quem mal conhecia.Inesquecível: eu já meio azul e aquela mulh-er linda de três metros de altura correndo

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atrás de mim pelo restaurante lotado,batendo com força nas minhas costas. E nasvezes – inúmeras – em que não lembrei onome de conhecidos na hora de autografarum livro. Essa é clássica.

Desaparecer em momentos estratégicosdeve ser bom. Creio que descobri como sefaz. Naquele dia, no aeroporto, eu devia estartão entretida com meus pensamentos queacionei algum mecanismo que me invisib-ilizou. Só pode ter sido isso. O senhorgrandão não parecia ter problemas oftal-mológicos ou neurológicos. Devia, ele tam-bém, estar com a cabeça longe, desaparecidopra si mesmo, e resolveu sentar em qualquerlugar. No meu colo, o que o impedia?

Moral da história: preste atenção.Mesmo onde você enxerga um vazio, podeter gente dentro.

8 de janeiro de 2006

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QUANDO O CORPO FALA

Nunca tinha escutado o nome de Louise L.Hay, que, pelo que eu soube, é uma psicólogaamericana com vários livros publicados etraduzidos para diversos idiomas, inclusivepara o português. Me parece que é de auto-ajuda, a julgar pelos títulos: Como curar suavida e outros do gênero. Como se existissefórmula mágica para alguma coisa. Se essesmanuais funcionassem, seríamos todos be-los, ricos, bem-casados, desenvoltos,empreendedores, bambambãs em tudo. Masum dos temas que ela trata é bastante in-teressante e já inspirou vários bate-paposentre amigos. Ela diz que todas as doençasque temos são criadas por nós. Pô, Louise.

Como assim, “criadas”? Fosse simples dessejeito, bastaria a força da mente para evitarque o vírus da gripe infectasse o ser humano.

Porém, se não levarmos tudo o que eladiz ao pé da letra, se abstrairmos certos ex-ageros, vamos chegar a um senso comum:nós realmente facilitamos certas invasões aonosso corpo. É o que se chama somatizar, ouseja, é quando uma dor psíquica pode semanifestar fisicamente. Muitas vezesacontece, sim.

“Todas as doenças têm origem num es-tado de não-perdão”, diz a psicóloga.“Sempre que estamos doentes, necessitamosdescobrir a quem precisamos perdoar.” Maisuma vez, o exagero, já que “sempre” é umamontoado de tempo que não sustenta nen-huma teoria. Mas ela insiste: “Pesar, tristeza,raiva e vingança são sentimentos que vieramde um espaço onde não houve perdão. Per-doar dissolve o ressentimento.”

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Pois é, o perdão. Outro dia estava lendoum verso de uma poeta que já citei em outraoportunidade, a Vera Americano, em que eladiz: “Perdão/ duro rito/ da remoção do es-torvo”. É difícil perdoar, mas que faz bem àsaúde, não tenho a menor dúvida. Quantomais leve a alma, mais forte o organismo.Por que não tentar?

Louise L. Hay acredita tanto, mas tantonisso, que chegou a fazer uma lista dedoenças e suas prováveis causas. Exemplo:apendicite vem do medo. Asma, de chorocontido. Câncer, de mágoas mantidas pormuito tempo. Derrame, da rejeição à vida.Dor de cabeça vem da autocrítica. Gastrite,de incertezas profundas. Hemorróidas vemdo medo de prazos determinados e raiva dopassado. A insônia vem da culpa. Os nódu-los, do ego ferido. Sinusite é irritação compessoa próxima.

Eu sei e os leitores também sabem quenão é bem assim, que isso é uma

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generalização e que há vários outros fatoresem jogo, mas não custa prestarmos atençãona interferência que nossos sentimentos têmsobre nosso corpo, assim poderemos ajudarno tratamento sendo menos tensos eangustiados.

Para quem é 100% cético, tudo isso ébalela. Já fui desse modo. Tempos atrás, nãodaria a mínima para as afirmações de LouiseL. Hay. Hoje me considero 70% cética eainda pretendo reduzir este índice, pois re-conheço que os meus parcos 30% de crençano que não é cientificamente provado é queme salvam de uma úlcera.

22 de janeiro de 2006

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OS BASTIDORES DACRÔNICA

Uma sociedade plural é muito melhor do queuma sociedade em que todos pensam igual.Sem divergências, nada evolui – nem opensamento, nem o país.

Quem escreve em jornal sente na peleessa dinâmica de opiniões conflitantes. Sãotantos os leitores, das mais diversas origens ecrenças, que fica absolutamente impossívelalmejar uma unanimidade, só em santa in-genuidade. Você fala em sexo e desejo, ooutro salta condenando o hedonismo. Vocêclama por mais charme na vida, o outro saltacondenando o elitismo. Quem tem razão?

Cada um tem a sua, e que se atreva alguém adizer quem está certo ou errado. Há tantasverdades quanto seres humanos na terra.

O Brasil, em especial, é dos paísesmenos coesos. Deste tamanhão e com estadesigualdade social que tanto nos choca, écomo se obrigasse vários planetas a con-viverem no mesmo território. E obriga. Erimo: não sei como não sai mais briga.

Uns elogiam Dois filhos de Francisco,outros apontam a rendição do cinemanacional, que não arrisca nada fora dopadrão global. Uns elogiam os shows inter-nacionais, outros questionam: por que nãose dá mais espaço pro regional? Você fala deamor eterno, é piegas. Você fala em seduçãoe liberdade, é a filha preferida do demônio.

Alguns você comove, outros revolve oestômago. Se cita um caso que aconteceucom você, é porque está focada no próprioumbigo. Se cita um caso que aconteceu comalguém, não tem originalidade suficiente. Se

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inventa um caso que não aconteceu mas po-deria, está fazendo ficção onde não devia.

Falou em Nova York, é metida. Falouem Ibiraquera, metida made in Brasil. Colo-cou palavras em inglês no texto? Nenhumproblema, pensam uns; paredón, pedem out-ros, que palavra em espanhol pode.

Falou bem do PT? Rendida, vendida,mal-intencionada. Falou mal do PT? Ren-dida, vendida, mal-intencionada. Não faloude política? Alienada.

Usa uma palavra antiga, entrega a id-ade. Usa uma palavra nova, está inventandomoda. Que palavra está em voga?

Voga?????O mesmo texto tudo provoca: uns te

amam, outros te toleram e alguns não per-dem a chance de te esculachar. Como te lêemos que te odeiam.

Você toca profundamente o coração deuma senhora e com o mesmo texto enoja umestudante. Uma professora te agradece a

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contribuição em sala de aula, outra proíbeque os alunos te convoquem. Você defendeas minorias e alguns vibram com a referên-cia, outros têm certeza que é deboche. E nemouse citar Deus em suas crônicas, apenas emsuas preces.

É uma aventura a cada linha, umasalada mista a cada ponto de vista. Franco-atiradores a serviço da reflexão, todos nós, osdaí e os de cá, sabemos um pouco de tudo emuito do nada, e salve o bom humor diantedesta anarquia, já que de algum jeito há quese ganhar a vida.

25 de janeiro de 2006

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O CARTÃO

Eu tinha dezessete anos e era louca por umcara com quem trocava olhares, não maisque isso. Ele era o legítimo “muita areia promeu caminhão” e jamais acreditei quepudesse vir a se interessar por mim, o queme deixava ainda mais apaixonada, claro.Mulher adora um amor impossível.

Então chegou o dia do meu aniversário.No final da manhã eu estava em casa, cont-ando os minutos para uma festa que daria ànoite, quando a empregada apareceu comum cartão nas mãos, dizendo que o zelador otinha encontrado embaixo da porta do pré-dio. Abri e fiquei azul, verde, laranja: eradele! Corri para o telefone e liguei para a

minha melhor amiga. “Que trote bobo, vocêquase me mata de susto, pensa que não seique foi você que escreveu o cartão?” Ela jur-ou por todos os santos que não. Liguei paraoutra amiga. “A letra é igual a sua, eu sei quefoi você!” Não tinha sido. Liguei para outra:“Você acha que eu vou acreditar que um caralindo que nunca me disse bom dia veio atéaqui largar um cartão amoroso desses?” Elame recomendou terapia. Bom, diante detantas negativas, só me restou pensar:“Outra hora eu descubro quem é que está tir-ando uma comigo”. E esqueci o assunto.

Semanas depois estava caminhando narua quando encontrei o dito cujo. Ele res-mungou um oi, eu devolvi outro oi, e entãoele perguntou se eu havia recebido o cartãode aniversário. Minha pressão caiu, minhaspernas fraquejaram, eu só pensava: mas queidiota eu fui! O que iria responder? “Recebi,mas jamais passaria pela minha cabeça queum homem espetacular como você, que pode

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ter a mulher que escolher, fosse entrar numapapelaria, comprar um cartão, escrever umtexto caprichado, depois descobrir meu en-dereço e então pegar o carro, ir até a minharua, colocar o envelope embaixo da portafeito um ladrão, e aí voltar para casa eaguardar meu telefonema. Olhe bem pramim, eu não mereço tanto empenho.”

Respondi: “Que cartão?”Ele soltou um “deixa pra lá” e foi em-

bora se sentindo o mais esnobado dos ho-mens. E assim terminou uma linda históriade amor que nunca começou. Anos depoisnos encontramos casualmente e tivemos umrapidíssimo affair, mais aí já não éramos osmesmos, não havia clima, ficamos juntosapenas para ver como teria sido se. Vimos. Enão escutamos sinos, não fomos flechadospelo Cupido. Cada um voltou para a sua vidae nunca mais tivemos notícia um do outro.

Contei essa história para um amigooutro dia e ele comentou que conhecia outras

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mulheres assim. Epa, assim como? Ora, as-sim medrosa, desconfiada, temendo pagarmicos diante da vulnerabilidade que todapaixão provoca. Ele estava certo. Era assimmesmo que eu me sentia aos dezessete anos:medrosa e incapaz de levar um grande amoradiante. Quando recebi o tal cartão, deveriater ligado imediatamente para o meu prín-cipe encantado para agradecer e convidá-lopara a festa.

E se ele tivesse dito: “Que cartão?”Eu responderia: “Deixa pra lá, mas

venha à festa assim mesmo”. E então eu as-sumiria as conseqüências, não importa quaisfossem. O nomezinho disso: vida. É sempreuma incógnita, portanto não vale a penatentar fugir das decepções ou dos êxtases,eles nos assaltarão onde estivermos. Se vocêfor uma garota boba como eu fui, acorde.Ninguém é muita areia pra ninguém. Pessoasaparentemente especiais se apaixonam poroutras aparentemente banais e isso não é um

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trote, não é uma pegadinha, não é nada alémdo que é: um inesperado presente da vida,que todos nós merecemos.

5 de fevereiro de 2006

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PARA QUE LADO CAI ABOLINHA

O filme começa com a câmera parada nocentro de uma quadra de tênis, bem na al-tura da rede. Vemos então uma bolinha cruz-ar a tela em câmera lenta. Depois ela cruzade volta, e cruza de novo, mostrando que ojogo está em andamento. De repente, a bol-inha bate na rede e levanta no ar. A imagemcongela. O locutor diz que tudo na vida éuma questão de sorte. Você pode ganhar ouperder. Depende do lado que vai cair abolinha.

É o início de Match Point, o mais re-cente filme de Woody Allen, que concorre

hoje à noite ao Oscar de roteiro original. Éuma versão mais sofisticada, mais sensual emais trágica de um outro filme do cineasta,na minha opinião um de seus melhores:Crimes e pecados, de 1989. Em ambos, aeterna disputa entre a estabilidade e a aven-tura, entre render-se à moral ou desafiá-la, ocerto e o errado flertando um com o outro egerando culpa. Onde, afinal, está afelicidade?

Certa vez li (não lembro a fonte) que fe-licidade é a combinação de sorte com escol-has bem feitas. De todas as definições, essa éa que chegou mais perto do que acredito. Dáo devido crédito às circunstâncias e tambémaos nossos movimentos. Cinqüenta por centopara cada. Um negócio limpo.

Em Crimes e pecados, Woody Alleninclinava-se para o pragmatismo. Dizia tex-tualmente: somos a soma das nossas de-cisões. Tudo envolve o nosso lado racional,até mesmo as escolhas afetivas. Casamentos

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acontecem por vários motivos, entre eles porserem um ótimo arranjo social – e nem porisso desonesto. E até mesmo a paixão podeser intencional. No filme, um certo filósofodiz que nos apaixonamos para corrigir onosso passado. É uma idéia que pode nãopassar pela nossa cabeça quando vemos al-guém e o coração dispara, mas, secreta-mente, a intenção já existe: você está embusca de uma nova chance de acertar, de sereafirmar. Seu coração apenas dá o alertaquando você encontra a pessoa com quemcolocar o plano em prática.

Em Match Point, Woody Allen passa adefender o outro lado da rede: a sorte como odefinidor do rumo da nossa vida. O acasocomo nosso aliado. Se a felicidade dependede nossas escolhas, é da sorte a última palav-ra. Você pode escolher livremente virar àdireita, e não à esquerda, mas é a sorte quedeterminará quem vai cruzar com você pelacalçada, se um assaltante ou o Chico

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Buarque. É a bolinha caindo para um lado,ou para o outro.

Tanto em Crimes e pecados como nesseexcelente e impecável Match Point, fica claroo que todos deveríamos aceitar: nosso con-trole é parcial. Há quem diga até que nãotemos controle de nada. Não existe satis-fação garantida e tampouco frustraçãogarantida, estamos sempre na mira do im-previsível. Treinamos, jogamos bem, jo-gamos mal, escolhemos bons parceiros,torcemos para que não chova, seguimos asregras, às vezes não, brilhamos, decep-cionamos, mas será sempre da sorte o pontofinal.

5 de março de 2006

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BELÍSSIMAS

Já li muitos comentários positivos a respeitode Belíssima. O que ainda não li foicomentários sobre a abertura da novela. Outalvez tenha me escapado.

O tema da abertura: a beleza feminina.A música: Você é linda, de Caetano Veloso.Tinha tudo pra ser um festival de bom gosto,no entanto, há controvérsias. Se não há, olhaeu aqui inaugurando uma.

A modelo que aparece de maiô, sabe-se,tem um rosto perfeito: pena que poucoapareça. Em evidência, apenas aquele amon-toado de ossos. Coxas quase da mesma es-pessura dos tornozelos e braços que mais

parecem gravetos. Entre a pele e as costelas,onde foi parar o recheio?

Pode ter sido apenas um problema deiluminação ou de recorte, mas o resultadoque nos é mostrado há meses, todas asnoites, é o raquitismo como sinônimo deperfeição estética.

Hoje é o Dia Internacional da Mulher,que na prática não ajuda a mudar muitacoisa, mas ao menos serve para reflexões, de-bates e crônicas temáticas. O que valeria apena discutir hoje? Proponho um assuntosem relevância política, mas igualmente im-portante: o recheio. Tudo o que temos re-tirado de nós, tudo o que tem sidolipoaspirado de nossas vidas.

Já fomos mais silenciosas. Mas, ao gan-har o direito à voz, nos tornamos mulheresaflitas, que não se permitem um momento dequietude. Falamos, falamos, falamoscompulsivamente, como se fosse contra-

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indicado guardar-se um pouco, como se osilêncio pudesse nos inchar.

Já sofremos com mais pudor. Hojenossas deprês são extravasadas, distribuídas,ofertadas, viram capa de revista, como se ador fosse uma inimiga a ser despejada, comose o sofrimento fosse algo venenoso e neces-sitasse de expulsão, como se não valesse apena alimentar-se dele e através dele crescer.

Já fomos mães mais atentas, quegeravam por mais tempo, por bem mais doque nove meses. Levávamos os filhos dentrode nossas vidas por longos anos. Hoje temosmais pressa em entregá-los para o mundo, aresponsabilidade pesa, e como peso é tudo oque não queremos, acabamos por nos aliviardos compromissos severos de toda educação.

Já fomos mais românticas. Hoje o sexoé mais importante, queima calorias, melhoraa pele e não duvido que um coração vaziotambém ajude na hora de subir na balança.

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Por um lado, conquistamos tanto, e,por outro, estamos nos esvaziando, querendotudo rápido demais e abrindo mão de apro-veitar o que a vida tem de melhor: o sabor, ogosto. Calma, meninas. Amor não engorda.Discrição não engorda. Reflexão não en-gorda. Não é preciso se agitar tanto, corrertanto, falar tanto, brigar tanto, nada disso éexercício aeróbico, é apenas tensão. Nesseritmo, perderemos a beleza da feminilidade eacabaremos secas não só por fora, mas pordentro também.

8 de março de 2006

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A SEPARAÇÃO COMOUM ATO DE AMOR

É sabida a dor que advém de qualquer sep-aração, ainda mais da separação de duaspessoas que se amaram muito e que acredit-aram um dia na eternidade desse senti-mento. A dor-de-cotovelo corrói milhares decorações de segunda a domingo – principal-mente aos domingos, quando quase nadanos distrai de nós mesmos –, e a maioria daslágrimas que escorrem é de saudade e devontade de rebobinar os dias, viver de novoas alegrias perdidas.

Acostumada com essa visão dramáticada ruptura, foi com surpresa e encantamento

que li uma descrição de separação que veioao encontro do que penso sobre o assunto, eque é uma avaliação mais confortante, aomenos para aqueles que não se contentamem reprisar comportamentos-padrão. Estáno livro Nas tuas mãos, da portuguesa InêsPedrosa.

“Provavelmente só se separam osque levam a infecção do outro atéos limites da autenticidade, os quetêm coragem de se olhar nos olhose descobrir que o amor de ontemmerece mais do que o confortodos hábitos e o conformismo dacomplementaridade.”Ela continua:“A separação pode ser o ato de ab-soluta e radical união, a ligaçãopara a eternidade de dois seresque um dia se amaram demasiadopara poderem amar-se de outra

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maneira, pequena e mansa, quasevegetal.”Calou fundo em mim essa declaração,

porque sempre considerei que a separaçãode duas pessoas precisa acontecer antes doesfacelamento do amor, antes de iniciaremas brigas, antes da falta de respeito assumir ocomando. É tão difícil a decisão de se separarque vamos protelando, protelando, e nessapassagem de tempo se perdem as re-cordações mais belas e intensas. A mágoa vaiganhando espaço, uma mágoa que nem épelo outro, mas por si mesmo, a mágoa dereconhecer-se covarde. E então as discussõesse intensificam e quando a separação vem,não há mais onde se segurar, o casal não temmais vontade de se ver, de conversar, quer-em distância absoluta, e aí configura-se o de-sastre: a sensação de que nada valeu.Esquece-se do que houve de bom entre osdois.

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Se o que foi bom ainda está fresquinhona memória afetiva, é mais fácil transformaro casamento numa outra relação de amor,numa relação de afastamento parcial, nãototal. Se o casal percebe que está camin-hando para o fim, mas ainda não chegou aomomento crítico – o de tornarem-se in-suportavelmente amargos –, talvez seja umaboa alternativa terminar antes de um con-fronto agressivo. Ganha-se tempo parareestruturar a vida e ainda preserva-se aamizade e o carinho daquele que foi tão im-portante. Foi, não. Ainda é.

“Só nós dois sabemos que não setrata de sucesso ou fracasso. Sónós dois sabemos que o que sesente não se trata – e é em nomedesse intratável que um dia nosfez estremecer que agora nos sep-aramos. Para lá da dilaceração dosdias, dos livros, discos e filmesque nos coloriram a vida,

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encontramo-nos agora juntos naviolência do sofrimento, na ausên-cia um do outro como já não noslembrávamos de ter estado empresença. É uma forma de amorinviável, que, por isso mesmo, nãotem fim.”É um livro lindo que fala sobre o amor

eterno em suas mais variadas formas. Umalento para aqueles – poucos – que respeit-am muito mais os sentimentos do que asconvenções.

12 de março de 2006

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AINDA SOBRESEPARAÇÃO

A crônica do domingo passado, A separaçãocomo um ato de amor, resultou em inúmerosdepoimentos de leitores. Muitas pessoas meescreveram dizendo que adorariam ter seseparado de uma maneira cordial, não viol-enta, mas que infelizmente não havia sidoassim com eles. Outros disseram que con-seguiram chegar a um consenso e manter aamizade e o afeto, tal qual foi descrito notexto. Outros ainda disseram que vivem cas-ados e felizes há quarenta anos e esperam ja-mais precisar passar por um divórcio. O queimporta é que em todos os e-mails encontrei

doçura e boa vontade para viver relaçõesmais civilizadas, que possibilitem uma rup-tura menos traumática, no caso de um diaela ser necessária.

Estava tudo assim cor-de-rosa quandoentrou o e-mail de uma mulher de uns trintaanos dizendo que separação amigável é con-versa pra boi dormir. Ex-marido e ex-mulheré sempre uma pedra no sapato. Que o máx-imo que podemos fazer é tolerá-los em situ-ações em que não haja outra saída. Era um e-mail furioso e, por isso mesmo, engraçado, oque me fez lembrar imediatamente de umlivro que acaba de ser lançado e que, em vezda visão poética e afetiva do Nas tuas mãos,de Inês Pedrosa, que me serviu de ganchopara a primeira crônica, traz uma visão maisácida do assunto. Ácida, hilária e tambémmuito verdadeira, porque não existe umaverdade única sobre o tema. O título: O di-abo que te carregue!, da ótima StellaFlorence.

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Stella não esconde de ninguém quenoventa por cento do que relata no livroaconteceu com ela. Então misture um depoi-mento biográfico com pitadas de um humorselvagem e um texto super bem escrito e eisuma obra que será excelente companhia paraquem estiver passando pelo desgaste de umaseparação, ou já passou, ou desconfia de quevai passar. Riso e reflexão: tem dobradinhamelhor para quando se está arrancando oscabelos e vivenciando um apocalipse now?

Em O diabo que te carregue!, o casalnão acaba junto, óbvio. Mas apesar de todosos destemperos, mágoas, acessos de fúria,solidão, discussões sobre grana, sobre filhos,raivas contidas e raivas extrapoladas, nota-seque o ex de Stella sobreviveu muito bem aocataclismo, tanto que é ele quem escreve oprefácio. É ou não é um mundo civilizado?

Só não é mais civilizado porque amaioria das pessoas ainda se rende muito fa-cilmente ao script que nos entregam no

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berço, sem bolar outras formas de ser feliz –e até outras formas de ser infeliz. Se todomundo diz que separação é, obrigatoria-mente, um colapso de conseqüências trá-gicas, lá vamos nós nos comportar como seestivéssemos vivendo as tais conseqüênciastrágicas, quando talvez estejamos apenastemendo a liberdade à qual nos desacostum-amos, mais nada.

Claro que toda separação é um angu,mas há maneiras e maneiras de se lidar comela. Uns aceitam a tristeza como algo inev-itável, temporário e enriquecedor, outrostransformam sua dor em catarse coletivaonde o humor e a inteligência vencem no fi-nal. Qual desses roteiros é mais realista? Eudiria que tudo é real, transitório e reversível.Assim como um casamento pode não darcerto, uma separação também pode não darcerto. Não é uma idéia alentadora? Gente,nossa separação não deu certo! Volta tudocomo era antes.

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Melhor do que se preocupar com umhappy end ou com um unhappy end é desejarque tudo tenha uma continuidade, estejamossós ou acompanhados. O livro da Stella émais ou menos isto: uma caminhada cheiade contratempos até descobrir com alívio, láno fim, que não há fim, a vida segue.

19 de março de 2006

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UMA VIDAINTERESSANTE

“E se eu lhe disser que estou com medo deser feliz pra sempre?” pergunta ao seu an-alista a personagem Mercedes, da peça Divã,que estréia hoje em Porto Alegre.

É uma pergunta que vem ao encontrodo que se debateu dias atrás num programade tevê. O psicanalista Contardo Calligariscomentou que ser feliz não é tão importante,que mais vale uma vida interessante. Comoalgumas pessoas demonstraram certodesconforto com essa citação, acho que valeum mergulhinho no assunto.

“Ser feliz”, no contexto em que foi ex-posto, significa o cumprimento das metastradicionais: ter um bom emprego, ganharalgum dinheiro, ser casado e ter filhos. Issotraz felicidade? Claro que traz. Saber que“chegamos lá” sempre é uma fonte de tran-qüilidade e segurança. Conseguimos nos en-quadrar, como era o esperado. A vida tal qualmanda o figurino. Um delicioso feijão-com-arroz.

E o que se faz com nossas outrasambições?

Não por acaso a biografia de DanuzaLeão estourou. Ali estava a história de umamulher que não correu atrás de uma vida fel-iz, mas de uma vida intensa, com todos ospreços a pagar por ela. A maioria das pessoaslê esse tipo de relato como se fosse ficção.Era uma vez uma mulher charmosa que foimodelo internacional, casou com jornalistasrespeitados, era amiga de intelectuais, viviana noite carioca e, por tudo isso, deu a sorte

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de viver uma vida interessante. Deu sorte?Alguma, mas nada teria acontecido se elanão tivesse tido peito. E ela sempre teve. Aomenos, metaforicamente.

Pessoas com vidas interessantes nãotêm fricote. Elas trocam de cidade. Investemem projetos sem garantia. Interessam-se porgente que é o oposto delas. Pedem demissãosem ter outro emprego em vista. Aceitam umconvite para fazer o que nunca fizeram.Estão dispostas a mudar de cor preferida, deprato predileto. Começam do zero inúmerasvezes. Não se assustam com a passagem dotempo. Sobem no palco, tosam o cabelo,fazem loucuras por amor, compram pas-sagens só de ida.

Para os rotuladores de plantão, umbando de inconseqüentes. Ou artistas, o quedá no mesmo.

Ter uma vida interessante não é prer-rogativa de uma classe. É acessível a médi-cos, donas de casa, operadores de

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telemarketing, professoras, fiscais da Re-ceita, ascensoristas. Gente que assimiloubem as regras do jogo (trabalhar, casar, terfilhos, morrer e ir pro céu), mas que, a exem-plo de Groucho Marx, desconfia dos clubesque lhe aceitam como sócia. Qual é arelevância do que nos é perguntado numaficha de inscrição, num cadastro para avaliarquem somos? Nome, endereço, estado civil,RG, CPF. Aprovado. Bem-vindo ao mundofeliz.

Uma vida interessante é menos buro-crática, mas exige muito mais.

22 de março de 2006

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ELES SÓ PENSAM NISSO

Quarta-feira passada, estréia da peça Divã.Termina o espetáculo, os homens saemapressados e se amontoam uns sobre os out-ros num cantinho do Theatro São Pedro,como se ali estivesse acontecendo uma ex-posição clandestina com fotos de mulheresnuas. Mas não há mulher nua nenhuma. Alihá uma televisão, à frente da qual eles seacotovelam para ver os momentos finais dojogo Inter versus Pumas.

Dia seguinte, a dança de Deborah Colk-er encanta a platéia do Sesi. Assim que osbailarinos encerram a apresentação, as luzesse acendem e os homens arrancam seus

celulares dos bolsos com a ansiedade dequem precisa saber se o filho já chegou damissão no Haiti ou se a irmã sobreviveu àcirurgia no cérebro. Logo descobrem o quequerem descobrir. E começa o troca-troca deinformações entre seres que nunca se viram,mas que agem como se fizessem parte deuma confraria: “Um a zero!”, “Vão pros pên-altis”, “Vai dar”, “Sei não”. Eles ainda nemchegaram ao estacionamento e já não têm amínima lembrança do que assistiram nopalco momentos atrás. O Grêmio perdeu.

Sério, acho comovente essa devoção.Não é que homens gostem de futebol, é

muito mais do que gostar. Eles ampliam seuuniverso através desse esporte. Tudo o quese diz, preconceituosamente, que um homemnão é, ele é, desde que esteja num estádio ouem frente à tevê.

Ele se emociona, chora, festeja, pula,abraça, faz festa, se desespera. Dá um salto

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mortal sem nunca antes ter dado umacambalhota. Extravasa-se. Solta no berro to-das as injustiças acumuladas na semana efica com o semblante abobalhado diante deum drible, como se estivesse assistindo aovivo o jogo de pernas da Juliana Paes. Ele étudo, menos um insensível.

Outra coisa: dizer que homens não têmboa memória para datas e acontecimentosimportantes só pode ser implicância. Per-gunte a qualquer um há quanto tempo nãoacontece um Grenal, em que dia começa aCopa, qual a escalação do time que ganhou amedalha de prata nas Olimpíadas de 2004, eele acertará as duas primeiras perguntas eengasgará na terceira, quando então se daráconta da pegadinha: a seleção masculina nãose classificou para disputar os jogos de Aten-as. Não trucide o coitado.

A meu ver, todos os gols do Fantásticosão iguais entre si e iguais aos que forammostrados em 1979, 1985, 1994, mas quem

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sou eu? Apenas uma mulher. No entanto,não é por ser mulher que vou fazer coro comaquelas que vivem reclamando de seus mar-idos e namorados por causa da segundapaixão deles. Segunda paixão, sim. Aprimeira é a mulherada. Visualize a cena:vários homens dentro de um teatro enquantoseu time está lá fora jogando. Se existe provade amor maior, não conheço.

29 de março de 2006

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FALAR

Já fui de esconder o que sentia, e sofri comisso. Hoje não escondo nada do que sinto epenso, e às vezes também sofro com isso,mas ao menos não compactuo mais com umtipo de silêncio nocivo: o silêncio que torturao outro, que confunde, o silêncio a fim demanter o poder num relacionamento.

Assisti ao filme Mentiras sinceras comuma pontinha de decepção – os comentárioshaviam sido ótimos, porém a contençãoinglesa do filme me irritou um pouco. Nosmomentos finais, no entanto, uma cenaaparentemente simples redimiu minha frus-tração. Embaixo de um guarda-chuva, numanoite fria e molhada, um homem diz para

uma mulher o que ela sempre precisou ouvir.E eu pensei: como é fácil libertar alguém deseus fantasmas e, libertando-o, abrir umapossibilidade de tê-lo de volta, mais inteiro.

Falar o que se sente é considerado umafraqueza. Ao sermos absolutamente sinceros,a vulnerabilidade se instala. Perde-se o mis-tério que nos veste tão bem, ficamos nus. Enão é esse tipo de nudez que nos atrai.

Se a verdade pode parecer perturb-adora para quem fala, é extremamente liber-tadora para quem ouve. É como se uma mãogigantesca varresse num segundo todas asnossas dúvidas. Finalmente, se sabe.

Mas sabe-se o quê? O que todos nós, nofundo, queremos saber: se somos amados.

Tão banal, não?E no entanto essa banalidade é fo-

mentadora das maiores carências, de trau-mas que nos aleijam, nos paralisam e nosafastam das pessoas que nos são mais caras.Por que a dificuldade de dizer para alguém o

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quanto ela é – ou foi – importante? Dizernão como recurso de sedução, mas como umato de generosidade, dizer sem esperar nadaem troca. Dizer, simplesmente.

A maioria das relações – entreamantes, entre pais e filhos, e mesmo entreamigos – se ampara em mentiras parciais everdades pela metade. Pode-se passar anosao lado de alguém falando coisas inteli-gentes, citando poemas, esbanjandopresença de espírito, sem ter a delicadeza defazer a aguardada declaração que daria aooutro uma certeza e, com a certeza, a liber-dade. Parece que só conseguimos manter aspessoas ao nosso lado se elas não souberemtudo. Ou, ao menos, se não souberem o es-sencial. E assim, através da manipulação, arelação passa a ficar doentia, inquieta, frágil.Em vez de uma vida a dois, passa-se a teruma sobrevida a dois.

Deixar o outro inseguro é uma maneirade prendê-lo a nós – e este “a nós” inspira

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um providencial duplo sentido. Mesmo queele tente se libertar, estará amarrado aospontos de interrogação que colecionou.Somos sádicos e avaros ao economizar nos-sos “eu te perdôo”, “eu te compreendo”, “eute aceito como és” e o nosso mais profundo“eu te amo” – não o “eu te amo” dito às pres-sas no final de uma ligação telefônica, porforça do hábito, e sim o “eu te amo” que sig-nifica: “Seja feliz da maneira que você escol-her, meu sentimento permanecerá omesmo”.

Libertar uma pessoa pode levar menosde um minuto. Oprimi-la é trabalho parauma vida. Mais que as mentiras, o silêncio éque é a verdadeira arma letal das relaçõeshumanas.

2 de abril de 2006

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UM LUGAR PARACHORAR

A dor vinha represada há dias, a mulherdesejava apenas que não vazasse em horaimprópria, mas que controle poderia ter?Estava dirigindo rumo ao supermercado,quando uma música escapou do rádio paradevorá-la inteira, e então, às dez e vinte deuma manhã de sexta-feira, numa ruabastante movimentada, ela começou achorar.

Buscou os óculos na bolsa, mas nãodesligou o rádio, pois já não havia remédio,agora que desaguava. Os pensamentos apro-veitaram a correnteza e invadiram o cérebro,

cristalinos. Todas as verdades emergiramjuntas: já que não havia mais como parar osofrimento, ao menos seria prudente esta-cionar o carro. Procurou uma rua calma, en-costou no meio-fio, mas havia pessoas nacalçada. Arrancou. Em outra rua, estacionoudiante de um prédio, mas logo viu o porteirolevantando do banquinho e se aproximando,quem é essa estranha a esta hora? Foiembora.

Deslizou por avenidas que exigiammais velocidade, mas não conseguia ultra-passar os quarenta quilômetros por hora,impossível ir rápido para lugar nenhum. Elapasseava lentamente pela tristeza que final-mente tinha vindo ao seu encontro, semescolher o momento.

Perto do supermercado, quando jáparecia que estava começando a se controlar,uma nova implosão jogou mais e mais lágri-mas pra fora, precisava parar. Foi para osarredores de um colégio, mas ali não era

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seguro, havia muitos conhecidos. Tentouuma pequena e abandonada alameda resid-encial, mas viu olhos espiando por trás dascortinas. Foi um pouco mais adiante, paroude novo em frente a um terreno baldio, e aífoi o medo que não permitiu que ficasse, erasó o que faltava ser vítima de alguma outraviolência, já lhe bastava o assalto dessaemoção que não cessava.

O ray-ban apoiado no nariz vermelhotentava esconder a pele úmida. Que ninguémalinhe o carro ao lado do meu neste sinalfechado, ela pensava enquanto pensava tam-bém em como estava vivendo a vida errada, avida de outra pessoa que não era ela. Poronde começar a procurar aquela outra quehavia sido um dia? Não se dava conta de queera exatamente o que acontecia, o tumultu-ado encontro dela com ela mesma a lhe atro-pelar por dentro.

Diminuiu o ritmo perto de uma igreja,mas havia uma parada de ônibus, impossível

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deter-se ali. Encostou diante de outro prédio,mas já havia morado naquela rua. Na frentedo parque, não. Alguém viria cumprimentar,sempre há alguém que lembra de você de al-gum lugar.

Não conseguindo estacionar o carro, foiobrigada a estancar o choro. Limpou o rostocom um lenço de papel que encontrou noporta-luvas, olhou pelo retrovisor para ver sea aparência denunciava sua situação, e re-solveu que dava para enfrentar a vida,bastava não tirar o ray-ban da cara.

Chegando ao supermercado, pegou umcarrinho de compras e consultou a lista que aempregada lhe dera. Farinha. Carne de se-gunda. Azeite. Papel higiênico. Cebola. Amulher que ela não era assumira de novo ocomando.

23 de abril de 2006

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O CAFÉ DO PRÓXIMO

Foi em Praga, na República Tcheca, que sur-giu o hábito do “café pendente”. Tudocomeçou com o personagem de um livro. Eleentra num bar, toma um café e, quando vema conta, ele paga dois, explicando pragarçonete: “Pago o meu e deixo umpendente”. Inaugurou-se assim o costume dese deixar pago dois, para o caso de surgir al-guém sem trocado para um cafezinho. A Liv-raria Argumento, do Rio, que tem em suasdependências o charmoso Café Severino, ad-otou esse esquema, rebatizando-o de “cafédo próximo”. Colocou um quadro-negro naentrada e ali vai anotando todos os caféspendentes do dia, aqueles que já foram

pagos. Às vezes tem dois, às vezes três, àsvezes nenhum. Quem chega sem grana e vêali no quadro que há um café pendente, podepedi-lo sem constrangimento. Quando voltaroutro dia, com dinheiro, poderá, se quiser,pagar dois e retribuir a gentileza para o próx-imo desprevenido. E assim mantém-se a cor-rente, e ninguém fica sem café.

Num país como o nosso, com tantagente passando dificuldades e com gov-ernantes tão desinteressados no bem-estarsocial, essa história me pareceu quase umaparábola. Num cantinho do Rio de Janeiro,uns pagam os cafés dos outros, colocando emprática o tal “fazer o bem sem olhar a quem”.Claro que é apenas um charme que a livrariaoferece, sem pretensão de mudar o mundo,mas eu fico pensando que esse tipo de men-talidade poderia ser mais propagado entrenós. Imagine se a moda pega em açougues,mercados, cinemas. Você compra seissalsichões e paga sete, deixando um

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pendente. Você faz as compras no mercado edeixa dois quilos de arroz pendentes. Vai aocinema e, em vez de comprar uma entrada,compra duas. Em todos os estabelecimentoscomerciais do país, haveria um quadro-negroavisando as pendências destinadas ao próx-imo. Não soluciona nada, mas é simpático.

Tá bom, eu sei, posso até ver a con-fusão. Uns não iriam topar deixar pago nemum copo d’água para estes “vagabundos quenão trabalham”. Alguns comerciantes rejeit-ariam a proposta sob o argumento de que“meu estabelecimento vai ficar cheio demendigos”. Realmente, talvez não seja umaboa idéia para ganhar as ruas, ao menos nãonum país onde a carência é tanta, a falta desegurança é tanta, a desordem é tanta e amalandragem, nem se fala. Melhor deixar o“café do próximo” como um charme a maisdentro de uma livraria carioca. Mas de umacoisa não tenho dúvida: esse exemplopequeníssimo de boa vontade terá que um

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dia ser ampliado por todos nós. Vai ter umahora em que a gente vai ter que parar deblablablá e fazer alguma coisa de fato. Ou agente estende a mão pro tal do próximo, ou opróximo vai continuar exigindo o dele comuma faca apontada pra nossa garganta.Esperar alguma atitude vinda de Brasília?Aqueles não são os próximos, aqueles são oscada vez mais distantes. Deles não espere-mos nada. Ou a sociedade se mexe e es-tabelece novas formas de convívio social,com idéias simples, mas operacionais, ou ocafé do próximo vai nos custar cada vez maiscaro.

25 de abril de 2006

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TERAPIA DO AMOR

O filme Terapia do amor conta a história deuma mulher de 37 anos que se envolve comum garotão de 23, e a coisa funciona àsmaravilhas, é claro, porque um homem euma mulher a fim um do outro é sempreuma combinação explosiva, não importa aidade. Mas como em todo conto de fadas quese preze, há a bruxa, no caso a mãe do guri,que não gosta nadinha da idéia, mesmosendo uma psicanalista de cabeça feita –aliás, psicanalista da própria nora, descobreela tarde demais. Desse “triângulo” surgemas tiradas engraçadas (Meryl Streep dando

show, como sempre) e também a partezinhado filme que faz pensar.

Pensei. Mas não na questão da difer-ença de idade, tão comum nas relaçõesatuais. Se antes era natural homens mais vel-hos se relacionarem com ninfetas, agora asmulheres mais maduras (não existe mulhervelha antes dos cem) se relacionam comcaras mais jovens e está tudo certo, atéporque eles também tiram proveito. A trocode que gastar energia com uma garotinhacheia de inseguranças? Mais vale uma quar-entona que perdeu a chatice natural de todamulher e se tornou serena, independente,autoconfiante e bem-humorada. São mais re-laxadas, garantem o próprio sustento e nãoperdem tempo fazendo drama à-toa. Qual ohomem que não vai querer uma mulher as-sim? Se você acha que este parágrafo foi umadefesa em causa própria e a de todo o

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mulherio que não tem mais vinte anos, acer-tou, parabéns, pegue seu brinde na saída.

Sem brincadeira: o mais interessantedo filme, a meu ver, foi mostrar que é difícilviver um relacionamento sabendo que ele vaiterminar ali adiante, mas que, mesmo assim,vale a pena, nunca será um tempo perdido.Fomos todos criados para o “pra sempre”,como se o objetivo de todos os casais aindafosse o de constituir família. Quando é, con-vém pensar a longo prazo. Só que hojemuitas pessoas se relacionam sem nenhumoutro objetivo que não seja o de estar feliznaquele exato momento, mesmo sabendoque as diferenças de religião, idade, condiçãosocial ou ideologia poderão encurtar ahistória (poderão, não quer dizer que irão).Há cada vez menos iludidos. Poucos sãoaqueles que atravessam uma vida tendo umúnico amor, então, vale o que está sendo

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vivido, o momento presente. “Dar certo” nãoestá mais relacionado ao ponto de chegada,mas ao durante.

A personagem de Meryl Streep, depoisde ter todos os chiliques normais de umamãe que acha que o filhote está perdendo emvez de estar ganhando com a experiência, or-ganiza melhor seus pensamentos e diz, ao fi-nal do filme, uma coisa que pode parecer friapara ouvidos mais sensíveis, mas é um con-vite a cair na real: “Podemos amar, aprendermuito com esse amor e partir pra outra”. Ocompromisso com a eternidade é opcional eninguém merece ser chamado de frívolo pornão fazer planos de aposentar-se juntos.

Já escrevi sobre isso em outras ocasiõese sempre acham que estou descrevendo oapocalipse. Ao contrário, triste é passar avida falando mal do casamento – estandocasado – e colecionando casos

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extraconjugais e mentiras dolorosas. Melhorlegitimar os amores mais leves, menos fóbi-cos, comprometidos com os sentimentos enão com as convenções. Esses serão os mel-hores amores, que poderão, quem sabe, atédurar para sempre, o que será uma agradávelsurpresa, jamais uma condenação.

7 de maio de 2006

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OS HONESTOS

Eles não são muitos, mas nada impede queapareçam na sua vida de repente e coloquemtudo a perder. Eu sei que você se protege,que seus advogados estão bem instruídos,que o pessoal do Recursos Humanos sente ocheiro dessa gente de longe, mas descuidosacontecem, e a qualquer hora do dia ou danoite você pode ter a infelicidade de toparcom um deles na sua empresa com crachá etudo, infiltrado dentro desse império que vo-cê construiu com tanto esforço e dedicação, eserá o seu fim. Ele vai jogar seu nome nalama. Ele, o honesto.

O honesto não dá pinta de que é hon-esto, parece um sujeito comum, que você até

apresentaria para sua filha. Você jura que eleganha seu sustento como todo mundo,fazendo uma maracutaiazinha aqui, umasonegaçãozinha ali, tudo nos conformes. Masnão, ele não é como todo mundo. Ele teveuma infância diferente. Teve pais que lhe de-ram valores e princípios. É um produto doseu meio, não tem culpa. De certa forma, asociedade é responsável por ele. Ele é um ex-cluído que só quer encontrar uma forma desobrevivência, de ser alguém na vida. Escol-heu este, o caminho da honestidade.

Veja o que aconteceu nos Estados Un-idos recentemente. Um funcionário de umaempresa de TV a cabo se recusou a mentirpara os clientes. A companhia sempre trein-ou seus técnicos para ligarem o equipamentode TV à linha telefônica dos assinantes com oobjetivo de lucrar mais. Um troço cor-riqueiro. Os técnicos diziam que era um pro-cedimento de praxe, que se o equipamentonão fosse ligado à linha ele não funcionaria

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direito – uma mentirinha inocente –, entãoos clientes topavam e a empresa forrava obolso de dinheiro com o pagamento dastaxas de conexão. Estava tudo correndo bem,até que surgiu esse funcionário que resolveuavisar os clientes de que não era precisofazer a conexão. Pronto. Por causa de umaúnica célula ruim, a empresa perdeu mil-hões, sem falar na desmoralização pública. Osujeito foi demitido, claro.

Assim como ele, há outros honestos at-rapalhando o desenvolvimento da sociedade.São aqueles que se negam a receber umapropinazinha para agilizar uma negociação,que denunciam pequenas armações, que nãosuperfaturam notas, que insistem em dizersempre a verdade e que dão o péssimo exem-plo de devolver o que não é deles, menos-prezando a própria sorte.

São médicos que não prescrevemremédios à-toa, mesmo que o paciente acheque está doente (se ele acha, o que custa

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incentivá-lo a consumir uns comprimidinhose alavancar a indústria farmacêutica?). Sãocomerciantes que não vendem produtos como prazo de validade vencido, servidores quenão vendem carteiras de habilitação paraquem não fez teste de direção, donos de barque não vendem bebida alcoólica paramenores, todos puxando o freio de mão danossa economia. Sem falar nos que jamaisdesviam dinheiro – e assim não distribuemrenda.

Não dá pra acobertar essa gente.Quando se desmascara um, tem mesmo quecolocar na primeira página do jornal.

10 de maio de 2006

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A MELHOR MÃE DOMUNDO

Você é. Sua vizinha também. A Maitê. AMalu. A Cláudia. Eu, naturalmente. Somosas melhores mães do mundo. Aliás, essa é aúnica categoria em que não há segundolugar, todas as mães são campeãs, somos bil-hões de “as melhores” espalhadas pelo plan-eta. Ao menos, as melhores para nossos fil-hos, que nunca tiveram outra.

Não é uma sorte ser considerada a mel-hor, mesmo se atrapalhando tanto? Mãeerra, crianças. E improvisa. Mãe não vemcom manual de instruções: reage apenas aosmandamentos do coração, o que tem um

inestimável valor, mas não substitui um bomplanejamento estratégico. E planejamento étudo o que uma mãe não consegue seguir,por mais que livros, revistas e psicólogos ten-tem nos orientar.

Um dia um exame confirma que vocêestá grávida e a felicidade é imensa e opânico também. Uau, vou ser responsávelpela criação de um ser humano! (Papai tam-bém vai, mas em agosto a gente fala dele.) Apartir daí, nunca mais a vida como era antes.Nunca mais a liberdade de sair pelo mundosem dar explicações a ninguém. Nunca maispensar em si mesma em primeiro lugar. Sódepois que eles fizerem dezoito anos, e issodemora. E às vezes nem adianta.

O primeiro passo é se acostumar a seruma pessoa que já não pode se guiar apenaspelos próprios desejos. Você continuarásendo uma mulher ativa, autêntica, batal-hadora, independente, estupenda, mas cem

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por cento livre, esqueça. De maridos você es-capa, dos próprios pais você escapa, mas daresponsabilidade de ser mãe, jamais. E nemvocê quer. Ou será que gostaria?

De vez em quando, sim, gostaríamos denão ter esse compromisso com vidas alheias,de não precisar monitorar os passos dos fil-hotes, de não ter que se preocupar com a vi-olência que eles terão que enfrentar, de nãosofrer pelas dores-de-cotovelo deles, de nãotemer por suas fragilidades, de não ficaracordadas enquanto eles não chegam e denão perder a paciência quando eles fazemtudo ao contrário do que sonhamos.

Gostaríamos que eles não falassem malde nós nos consultórios dos psiquiatras, queeles não nos culpassem por suas insegur-anças, que não fôssemos a razão de seustraumas, que esquecessem os momentos emque fomos severas demais e que nos per-doassem nas vezes em que fomos severas de

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menos. Há sempre um “demais” e um “demenos” nos perseguindo. Poucas vezes acer-tamos na intensidade dos nossos conselhos ecríticas.

Mas é assim que somos: às vezes ex-ageradamente enérgicas em momentosbobos, às vezes um tantinho condescend-entes na hora de impor limites. A gente im-plica com alguns amigos deles e adora outrose não consegue explicar por quê, mas nossaintuição diz que estamos certas. Mas de queadianta estarmos certas se eles só se darãoconta disso quando tiverem os própriosfilhos?

Erramos em forçá-los a gostar de aipo,erramos em agasalhá-los tanto para as ex-cursões do colégio, erramos em deixar quepassem a tarde no computador em vésperade prova, erramos em não confiar quandoeles dizem que sabem a matéria, erramos emnos escabelar porque eles estão com os olhos

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vermelhos (pode ser resfriado!), erramosquando não os olhamos nos olhos, erramosquando fazemos drama por nada, erramosum pouquinho todo dia por amor e porcansaço.

O que nos torna as melhores mães domundo é que nossos erros serão sempreacertos, desde que estejamos por perto.

14 de maio de 2008

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O QUE MAIS VOCÊQUER?

Era uma festa familiar, dessas que reúnemtios, primos, avós e alguns agregados oca-sionais que ninguém conhece direito. Jogadano sofá, uma garota não estava lá muito so-ciável, a cara era de enterro. Quieta, olhavapara a parede como se ali fosse encontrar aresposta para a pergunta que certamentemartelava em sua cabeça: o que estoufazendo aqui? De soslaio, flagrei a mãe delatambém observando a cena, inconsolável, aomesmo tempo em que comentava com umatia: “Olha pra essa menina. Sempre com essa

cara. Nunca está feliz. Tem emprego, marido,filho. O que ela pode querer mais?”

Nada é tão comum quanto resumirmosa vida de outra pessoa e achar que ela nãopode querer mais. Fulana é linda, jovem etem um corpaço, o que mais ela quer? Si-crana ganha rios de dinheiro, é valorizada notrabalho e vive viajando, o que é que lhefalta?

Imaginei a garota acusando o golpe econfessando: sim, quero mais. Quero não ternenhuma condescendência com o tédio, nãoser forçada a aceitá-lo na minha rotina comoum inquilino inevitável. A cada manhã, exijoao menos a expectativa de uma surpresa,quer ela aconteça ou não. Expectativa, por sisó, já é um entusiasmo.

Quero que o fato de ter uma vida prát-ica e sensata não me roube o direito ao de-satino. Que eu nunca aceite a idéia de que amaturidade exige um certo conformismo.

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Que eu não tenha medo nem vergonha deainda desejar.

Quero uma primeira vez outra vez. Umprimeiro beijo em alguém que ainda nãoconheço, uma primeira caminhada por umanova cidade, uma primeira estréia em algoque nunca fiz, quero seguir desfazendo asvirgindades que ainda carrego, quero tersensações inéditas até o fim dos meus dias.

Quero ventilação, não morrer umpouquinho a cada dia sufocada emobrigações e em exigências de ser a melhormãe do mundo, a melhor esposa do mundo,a melhor qualquer coisa. Gostaria de me re-conciliar com meus defeitos e fraquezas, are-jar minha biografia, deixar que vazem algu-mas idéias minhas que não são muitoabençoáveis.

Queria não me sentir tão responsávelsobre o que acontece ao meu redor. Com-preender e aceitar que não tenho controlenenhum sobre as emoções dos outros, sobre

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suas escolhas, sobre as coisas que dão erradoe também sobre as que dão certo. Me per-mitir ser um pouco insignificante.

E, na minha insignificância, poderacordar um dia mais tarde sem dar ex-plicação, conversar com estranhos, me diver-tir fazendo coisas que nunca imaginei, deixarde ser tão misteriosa pra mim mesma, meconectar com as minhas outras possibilid-ades de existir. O que eu quero mais? Me es-cutar e obedecer ao meu lado mais trans-gressor, menos comportadinho, menos re-fém de reuniões familiares, marido, filhos,bolos de aniversário e despertadores nasegunda-feira de manhã. E também queromais tempo livre. E mais abraços.

Pois é, ninguém está satisfeito. Aindabem.

28 de maio de 2006

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LAÇOS

Se o filme é daqueles que as pessoas acam-pam na frente do cinema um dia antes da es-tréia, de cara já risco da minha lista. Nãovou. Mas se é daqueles que as salas ficamvazias, só uns abnegados enfrentam, tá pramim. Se você fizer parte desse seletíssimogrupo “do contra”, então reserve um tempopara assistir Estrela solitária, que não é nemnunca será um blockbuster (orçamento demirrados onze milhões de dólares) mas com-pensa o preço do ingresso.

Mais uma vez Wim Wenders nos colocana estrada com personagens outsiders embusca de alguma coisa que está faltando. No

caso de Estrela solitária, o que falta é,adivinhe, sentido pra vida. A história: depoisde muito sexo, drogas e fama, um ator agoradecadente abandona um set de filmagenspara buscar sabe-se lá o que no meio daaridez norte-americana. Encontra a mãe,primeiro, que não via há trinta anos. Depoisencontra um ex-amor e um filho que nãosabia que existia. Encontra-se a si mesmo?Tenta, ao menos.

O filme é um on the road de trás prafrente: em vez de ter buscado a liberdade eum futuro mais aventureiro, o personagemgostaria mesmo era de ter tido laços maispermanentes, ter tido bem menos liberdadee mais comprometimento. Cá entre nós,numa época em que ninguém quer ser deninguém, um homem que quer ser de al-guém é um tema revolucionário.

Não que o filme tenha essa pretensão.O diretor Wim Wenders – aliado ao

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roteirista e ator Sam Shepard, sempre cool –é econômico e não pretende fazer carnavalnenhum das emoções. Simplesmente mostrapoesia onde há poesia, e um pouco de músicaboa. Em termos de fotografia, o filme é umapintura. O homenageado é Edward Hopper,o artista que melhor retratou a solidão e oisolamento do ser humano. Não fosse pornada mais, só por certos enquadramentosvaleria o filme.

Mas vale por mais. Vale pela cena emque Sam Shepard passa 24 horas sentadonum sofá abandonado no meio da rua, semter para onde ir. Vale pelo jogo de luz e som-bras. Vale pela economia de diálogos, pelatotal falta de frases feitas. Vale para mostrarque personagens fictícios jamais com-pensarão uma boa vida real.

E vale porque durante duas horas vocêestá dentro de um cinema protegido dessabandidagem que se tornou nossas vidas, emque roubo de carro é notícia, celular em

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presídio é notícia, em que só é notícia omacabro. Cinema te recupera um poucodessa esquizofrenia.

Pode ser que você cochile em algunsmomentos, se for muito ligado em filme deação. Mas vá. Nem que seja pra resgatar obelo e descansar de tanto barulho.

28 de maio de 2006

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DIA MUNDIAL SEMTABACO

Para que serve um “Dia Mundial” dequalquer coisa? Para provocar uma reflexão,e isso não é pouco se levarmos em consider-ação que ninguém anda muito a fim depensar em nada. Pois hoje é o “Dia MundialSem Tabaco”, e é claro que vem aí todo umdiscurso sobre os riscos causados pelo fumo.Uma cantilena necessária, ainda que as pess-oas saibam muito bem o veneno que estãotragando. Seria hoje um bom dia pararomper com esse hábito? É um dia excelente,clássico. Pare, se for capaz. Mas tem umacoisa ainda mais importante e muito mais

fácil para se determinar hoje: não começar afumar!

Os números são alarmantes: cem miljovens começam a fumar todos os dias. Nestaquarta-feira, no mundo todo, tem cem milgarotos e garotas acendendo seu primeiro ci-garro. Amanhã serão outros cem mil. Esexta, mais cem mil. Como é que aspesquisas chegaram neste número eu nãosei, mas a verdade é que tem gente à beça noplaneta e cem mil pode ser um chute bemaproximado.

A gente sabe por que um fumante tentaparar, mas o que faz um não-fumantecomeçar? Até algumas décadas atrás,começava-se a fumar por auto-afirmação.Todo adolescente sonha em crescer de umavez, parecer mais maduro do que é – e maischarmoso. O importante era ter Charm, al-guém lembra? E levar vantagem em tudo. Esentir um raro prazer. “Hollywood, o su-cesso!” Por muito tempo o cigarro foi

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associado à aventura, beleza, classe, virilid-ade, erotismo. Com espinhas na cara não setem nada disso, mas dá pra comprar umacarteira no boteco da esquina e bancar o tal.

Dei minha primeira tragada aos trezeanos e o cigarro me enjoou tremendamente,mas não me deixei abater, eu também queriater charme, então insisti nessa insensatezdurante algum tempo, até que comecei a darvexames públicos, passando mal de verdade.Descobri que era preferível abrir mão docharme e ter minha reputação preservada. Eo meu pulmão também. Foi litigioso: eu e elenos abandonamos para nunca mais.

Com o fim da propaganda e da asso-ciação do cigarro a pessoas vitoriosas, fumarperdeu status, passou a ser considerado umafraqueza humana. Hoje os adolescentes seauto-afirmam de outras maneiras – atravésda roupa, do esporte, da ficação, dos blogs e,tendo a cabeça fraca, através de pichações,bebedeiras e rachas. Observo diariamente

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alunos em portões de escolas e ninguémfuma. Quando eu estudava, bastava colocar opé pra fora do colégio e quase todos os alun-os acendiam um cigarro, se achando muitoespertos. Os espertos, hoje, estão limpos. Emais bem informados. Sabem que, quando anicotina entra na vida de alguém, é pra ficar.Desgrudar-se é uma dificuldade. Morre-sepor ela.

O cigarro dos outros nunca me aborre-ceu, compreendo perfeitamente que é umamor verdadeiro e difícil de largar. Quem es-tiver disposto, hoje é um bom dia para tentarparar, mas se não conseguir, paciência, háhábitos piores nesta vida.

Mas quem nunca fumou não escolhahoje pra começar. Nem amanhã, nem depois.Começar é que é estupidez. Começar é quenão se explica.

31 de maio de 2006

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MÃOS DADAS NOCINEMA

No Dia dos Namorados os restaurantes lot-am, os vinhos são solicitados e as velas emcima da mesa são acendidas, há todo umclima propício para olhos nos olhos e con-firmações verbais do amor. Clichê pra quemvê de fora. Estando dentro, aceita-se as re-gras do jogo, é uma das formas recorrentesde comemoração. Mas, tivesse eu que escolh-er o símbolo máximo do namoro, não me re-stringiria aos prazeres da mesa nem mesmoaos da cama, incluindo entre os da camacolocar sobre a colcha um gigantesco bichode pelúcia, um dos presentes preferidos para

celebrar a data. Namoro que é namoro estárepresentado por algo muito mais simples,sutil, barato e íntimo: os dedos entrelaçadosno escuro do cinema. De mãos dadas se con-strói uma relação.

Do que sentem falta os amantesclandestinos? Luxúria eles têm de sobra. Oque lhes falta é esta forma brejeira deintimidade: dar-se as mãos. Na rua é ar-riscado, há olhos por todos os lados, já nocinema é possível providenciar um encontroàs escuras e ali realizar a mais tórrida aprox-imação de corpos, um ato realmente sub-versivo para adúlteros: unir as mãos comodois namorados.

Se, ao contrário, o casal tem umnamoro oficializado, sem razão para segredo,ainda assim o segredo se manterá entre elespelo simples fato de que as mãos dadas den-tro do cinema não são uma representaçãopública de amor, e sim um carinho privado.Ninguém está testemunhando, ninguém está

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reparando, a platéia está toda de olho natela, e o casal também, porém seguros um nooutro através de um entrelaçamento que, àluz do dia, seria corriqueiro, um simpleshábito sem maior significância, mas quenum espaço compartilhado com estranhos,no escuro, torna-se uma forma particular eirresistível de cumplicidade.

Esse gesto mundano e trivial carregaum significado que muitas vezes nem mesmoum beijo – um beijo! – possui. Pergunte auma viúva do que ela mais sente falta do fa-lecido, e é bem capaz de ela lembrar só dasincomodações que o infeliz causava, mas asmãos agarradas dentro do cinema hão dedespertar sua saudade. Pergunte a mesmacoisa a alguém que está vivendo uma dor-de-cotovelo daquelas. Mesmo sofrendo, éprovável que não se comova com a lem-brança das brigas e nem dos “eu te amo”,mas ter que assistir a uma comédiaromântica de braços cruzados há de feri-la

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de morte. E os casados há vinte, há trinta, hácinqüenta anos? Podem atualmente rugir umpara o outro na sala de jantar, mas dentro docinema ainda tratam-se como se tivessem seconhecido ontem e não perdem o hábito in-staurado no primeiro filme de suas vidas. Senão o fazem mais, é porque o casamentoacabou e não foram avisados. O últimoresquício de amor ainda se confirma com asmãos dadas dentro do cinema. Há salvaçãopara os que as mantêm unidas ao menos ali.

Amanhã será dia de restaurantes lota-dos. Aleluia, abrirão todos nesta segunda-feira, como costumam fazer as cidades civil-izadas. Muitas rolhas de vinho tinto serão es-pocadas, umas tantas outras de champanhe.Quem tem fondue no cardápio servirá fon-due, e mesmo as pizzas serão degustadascomo um prato especial. Pudera, é mesmoum dia especial.

Mas será dentro dos cinemas que a de-claração mais terna e espontânea se dará.

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11 de junho de 2006139/434

PIPOCAS

A cidade estava em quase absoluto silêncio,até parecia quatro da manhã, mas era poucomais do que quatro da tarde. Levantei dosofá um instante, no final do primeirotempo, para ir até a janela observar os prédi-os, as ruas. Todos estavam dentro de suas“panelas”, feito grãos de pipoca que aindanão estouraram, mas faltava pouco para queexplodissem. Foi bem nessa hora que Kakámarcou o primeiro gol do Brasil. A tampa dacidade se abriu e as pipocas finalmente es-touraram. O povo saltou da cadeira comoaquele desenho animado que passa antes dosfilmes, as pipoquinhas todas em polvorosa,

alegres, empolgadas. É isso, pensei: somosmilhões de pipocas em ação.

Não me olhe com essa cara, juro que es-tou em pleno domínio das minhas fac-uldades mentais. É que não é fácil escreveruma coluna um dia após a estréia do Brasilna Copa, e ainda escrever a jato, porque ojornal tem que fechar a edição. Bem que euqueria demonstrar aqui neste espaço minhaperplexidade com o assassinato brutal dasmeninas gaúchas na Grande Florianópolis,ou falar que minha torcida pela Varig é tãogrande quanto a torcida pelos Ronaldos. Masum dia após a nossa primeira e suada vitória,não tenho como fugir de falar sobre algorelacionado a futebol. E já que não soucomentarista, não estou na Alemanha e meconfundo até hoje com a lei do impedimento,pensei em apelar para uma metáfora, algoassim como comparar pessoas a pipocas, le-vando em consideração que a pipoca, ali-mento tão associado ao cinema, troca de

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assento durante a Copa do Mundo e se con-verte no melhor companheiro em frente àtevê.

Pesquisando sobre o tema, descobrique o milho que não estoura se chama piruá.Sabe aquele milho que sobra na panela e serecusa a virar um floquinho branco, macio ealegre? Piruá. E aí tenho que concordar como escritor Rubem Alves, que já escreveusobre o assunto: tem muita gente piruá nesteplaneta. Gente que não reage ao calor, quenão desabrocha. Fica ali, duro, triste e inútilpro resto da vida. Não cumpre sua sina derevelar-se, de transformar-se em algo mel-hor. Não vira pipoca, mantém-se piruá. E umpiruá emburrado, que reclama que nada lheacontece de bom. Pois é. Perdeu a chance deentregar-se ao fogo, tentou se preservar,danou-se.

Domingo vai acontecer outra vez: todomundo enclausurado dentro de suas panelas.Silêncio, tensão. O fogo será acendido assim

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que o juiz apitar o início da partida contra aAustrália. Que a seleção seja quente obastante para nos fazer explodir. E que possamostrar para aqueles que têm vocação parapiruá que o importante na vida é reagir àsemoções, e não manter-se frio, fechado, feitoum grão que não honrou o seu destino.

Eis a crônica de hoje. Aquela história deque estou em pleno domínio das minhas fac-uldades mentais era brincadeira, como se vê.

14 de junho de 2006

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A MORTE É UMA PIADA

Assisti a algumas imagens do velório do Bus-sunda, quando os colegas do Casseta & Plan-eta deram seus depoimentos. Parecia que aqualquer instante iria estourar uma piada.Estava tudo sério demais, faltava a escul-hambação, a zombaria, a desestruturação dacena. Mas nada acontecia ali de risível, era sódor e perplexidade, que é mesmo o que amorte causa em todos os que ficam. A ver-dade é que não havia nada a acrescentar noroteiro: a morte, por si só, é uma piadapronta. Morrer é ridículo.

Você combinou de jantar com a namor-ada, está em pleno tratamento dentário, templanos pra semana que vem, precisa

autenticar um documento em cartório, colo-car gasolina no carro e no meio da tardemorre. Como assim? E os e-mails que vocêainda não abriu, o livro que ficou pela met-ade, o telefonema que você prometeu dar àtardinha para um cliente?

Não sei de onde tiraram esta idéia:morrer. A troco? Você passou mais de dezanos da sua vida dentro de um colégioestudando fórmulas químicas que não ser-viriam pra nada, mas se manteve lá, fez asprovas, foi em frente. Praticou muita edu-cação física, quase perdeu o fôlego, mas nãodesistiu. Passou madrugadas sem dormirpara estudar pro vestibular mesmo sem tercerteza do que gostaria de fazer da vida,cheio de dúvidas quanto à profissão escol-hida, mas era hora de decidir, então decidiu,e mais uma vez foi em frente. De uma horapra outra, tudo isso termina numa colisão nafreeway, numa artéria entupida, num

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disparo feito por um delinqüente que gostoudo seu tênis. Qual é?

Morrer é um chiste. Obriga você a sairno melhor da festa sem se despedir de nin-guém, sem ter dançado com a garota maislinda, sem ter tido tempo de ouvir outra vezsua música preferida. Você deixou em casasuas camisas penduradas nos cabides, suatoalha úmida no varal, e penduradas tam-bém algumas contas. Os outros vão ser obri-gados a arrumar suas tralhas, a mexer nassuas gavetas, a apagar as pistas que vocêdeixou durante uma vida inteira. Logo você,que sempre dizia: das minhas coisas cuidoeu.

Que pegadinha macabra: você sai semtomar café e talvez não almoce, caminha poruma rua e talvez não chegue na próxima es-quina, começa a falar e talvez não conclua oque pretende dizer. Não faz exames médicos,fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curtecostelas gordas e mulheres magras e morre

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num sábado de manhã. Se faz check-up regu-larmente e não possui vícios, morre domesmo jeito. Isso é para ser levado a sério?

Tendo mais de cem anos de idade, válá, o sono eterno pode ser bem-vindo. Já nãohá mesmo muito a fazer, o corpo não acom-panha a mente, e a mente também já rateia,sem falar que há quase nada guardado nasgavetas. Ok, hora de descansar em paz. Masantes de viver tudo, antes de viver até arapa? Não se faz.

Morrer cedo é uma transgressão, desfaza ordem natural das coisas. Morrer é um ex-agero. E, como se sabe, o exagero é amatéria-prima das piadas. Só que essa nãotem graça nenhuma.

21 de junho de 2006

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OS RICOS POBRES

Anos atrás escrevi sobre um apresentador detelevisão que ganhava um milhão de reaispor mês e que em entrevista vangloriava-sede nunca ter lido um livro na vida.Classifiquei-o imediatamente como um ex-emplo de pessoa pobre. Agora leio uma de-claração do publicitário Washington Olivettoem que ele fala sobre isso de forma exem-plar. Ele diz que há no mundo os ricos-ricos(que têm dinheiro e têm cultura); os pobres-ricos (que não têm dinheiro mas são agita-dores intelectuais, possuem antenas quecaptam boas e novas idéias) e os ricos-pobres, que são a pior espécie: têm dinheiro

mas não gastam um único tostão da sua for-tuna em livrarias, shows ou galerias de arte,apenas torram em futilidades e propagam aignorância e a grosseria.

Os ricos-ricos movimentam a economiagastando em cultura, educação e viagens, ecom isso propagam o que conhecem e divul-gam bons hábitos. Os pobres-ricos não têmsaldo invejável no banco, mas são criativos,efervescentes, abertos. A riqueza desses doisgrupos está na qualidade da informação quepossuem, na sua curiosidade, na inteligênciaque cultivam e passam adiante. São essesdois grupos que fazem com que uma naçãose desenvolva. Infelizmente, são os doisgrupos menos representativos da sociedadebrasileira.

O que temos aqui, em maior número, éum grupo que Olivetto nem mencionou, ospobres-pobres, que devido ao baixíssimopoder aquisitivo e quase inexistente acesso à

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cultura, infelizmente não ganham, nãogastam, não aprendem e não ensinam: ficamà margem, feito zumbis. E temos os ricos-pobres, que têm o bolso cheio e poderiamajudar a fazer deste país um lugar quemereça ser chamado de civilizado, mas nadadisso: eles só propagam atraso, só propagamarrogância, só propagam sua pobreza deespírito.

Exemplos? Vou começar por uma cenaque testemunhei semana passada. Estava di-rigindo quando o sinal fechou. Parei atrás deum Audi do ano. Carrão. Dentro, um sujeitode terno e gravata que, cheio de si, não tevedúvida: abriu o vidro automático, amassouuma embalagem de cigarro vazia e a jogoupela janela no meio da rua, como se o asfaltofosse uma lixeira pública. O Audi é só umdisfarce que ele pôde comprar, no fundo éum pobretão que só tem a oferecer sua mis-éria existencial.

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Os ricos-pobres não têm verniz, nãotêm sensibilidade, não têm alcance para iralém do óbvio. Só têm dinheiro. Os ricos-pobres pedem no restaurante o vinho maiscaro e tratam o garçom com desdém,vestem-se de Prada e sentam com as pernasabertas, viajam para Paris e não sabem quemfoi Degas ou Monet, possuem tevês deplasma em todos os aposentos da casa e sóassistem programas de auditório, mandam ofilho pra Disney e nunca foram numa re-união da escola. E, claro, dirigem um Audi ejogam lixo pela janela. Uma esmolinha praeles, pelo amor de Deus.

O Brasil tem saída se deixar de ser pre-conceituoso com os ricos-ricos (que ganhamdinheiro honestamente e sabem que eleserve não só para proporcionar conforto,mas também para promover o conheci-mento) e se valorizar os pobres-ricos, quesão aqueles inúmeros indivíduos que fazem

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malabarismo para sobreviver mas, por outrolado, são interessados em teatro, música,cinema, literatura, moda, esportes, gastro-nomia, tecnologia e, principalmente, in-teressados nos outros seres humanos,fazendo da sua cidade um lugar desafiante eempolgante. É esse o luxo de que precisam-os, porque luxo é ter recursos para melhoraro mundo que nos coube. E recurso não é sómoney: é atitude e informação.

25 de junho de 2006

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O QUE A DANÇA ENSINA

Reclamar do tédio é fácil, difícil é levantar dacadeira para fazer alguma coisa que nunca sefez. Pois dia desses aceitei um desafio: fizuma aula de dança de salão, roxa de ver-gonha por ter que enfrentar um professor,um espelho enorme, outros alunos e meutotal despreparo. Mas a graça da coisa é esta:reconhecer-se virgem. Com soberba não seaprende nada. Entrei na academia rígidafeito um membro da guarda real e saí de lápraticamente uma mulata globeleza.

Exageros à parte, a dança sempre medespertou fascínio, tanto que me fez assistirao filme que está em cartaz com o AntonioBanderas, Vem dançar, em que ele interpreta

um professor de dança de salão que tentaresgatar a auto-estima de uma turma dealunos rebeldes. Qualquer semelhança comuma dúzia de outros filmes do gênero, in-spirados no clássico Ao mestre com carinho,não é coincidência, é beber da fonteassumidamente.

Excetuando-se os vários momentos-clichê da trama, o filme tem o mérito de es-clarecer qual é a função didática, digamos as-sim, da dança. Na verdade, o simples prazerde dançar bastaria para justificar a prática,mas vivemos num mundo onde todos se per-guntam o tempo todo “para que serve?”.Para que serve um beijo, para que serve ler,para que serve um pôr-do-sol? É a síndromeda utilidade. Pois bem, dançar tem, sim, umaserventia. Nos ensina a ter confiança, se éque alguém ainda lembra o que é isso.

Hoje ninguém confia, é verbo em de-suso. Você não confia em desconhecidos etambém em muitos dos seus conhecidos.

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Não confia que irão lhe ajudar, não confiaque irão chegar na hora marcada, não confiaos seus segredos, não confia seu dinheiro.Dormimos com um olho fechado e o outroaberto, sempre alertas, feito escoteiros. Olobo pode estar a seu lado, vestindo a tal pelede cordeiro.

Então, de repente, o que alguém pede avocê? Que diga sim. Que escute atentamentea música. Que apóie seus braços em outrocorpo. Que se deixe conduzir. Que não tenhavergonha. Que libere seus movimentos. Quese entregue.

Qualquer um pode dançar sozinho.Aliás, deve. Meia hora por dia, quando nin-guém estiver olhando, ocupe a sala, aumenteo som e esqueça os vizinhos. Mas dançarcom outra pessoa, formando um par, é umritual que exige uma espécie diferente de sin-tonia. Olhos nos olhos, acerto de ritmo. Horade confiar no que o parceiro está propondo,confiar que será possível acompanhá-lo,

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confiar que não se está sendo ridículo nemsubmisso, está-se apenas criando uma formadiferente e mágica de convivência. Ouvi umacoisa linda ao sair do cinema: se os casais,hoje, dedicassem um tempinho para dançarjuntos, mesmo em casa – ou principalmenteem casa –, muitas discussões seriam poupa-das. É uma espécie de conexão silenciosa, depacto, um outro jeito de fazer amor.

Dançar é tão bom que nem precisavaservir pra nada. Mas serve.

2 de julho de 2006

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EMOÇÃO XADRENALINA

Ainda não estive com o livro nas mãos, masjá ouvi algo a respeito e me parece que deveser uma leitura não só interessante como ne-cessária. Chama-se O culto da emoção, dofilósofo francês Michel Lacroix, em que eledefende que a busca irrefreável por emoçõesfortes, tendência dos dias de hoje, é, nofundo, um sintoma da nossa insensibilidade.“É de lirismo verdadeiro que precisamos,não de adrenalina”, diz o autor. Ou seja, an-damos muito trepidantes e frenéticos, maspouco contemplativos.

Generalizando, dá pra dizer que todosnós estamos meio robotizados e só consegui-mos nos emocionar se formos estimuladospela velocidade e pelo risco: só se houverperigo, só se for radical, só se for inédito, sóse causar impacto. Não que isso deva sercontra-indicado. Creio que uma dose de en-frentamento com o desconhecido faz bempara qualquer pessoa. Testar os próprioslimites pode ser não só prazeroso como edu-cativo, desde que você se responsabilize peloque faz e não arraste forçosamente aquelesque nada têm a ver com suas ambições aven-tureiras. Vá você e que Deus lhe acompanhe.

O que não dá é para se viciar em novid-ades e perder a capacidade de comover-secom o banal, pela simples razão que emoçãonenhuma é banal se for autêntica. Só asemoções obrigatórias é que são ordinárias.Nascimentos, casamentos e mortes emo-cionam apenas os que estão realmente

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envolvidos, senão é teatro – aquele teatrinhobásico que se pratica em sociedade.

Lembro como se fosse ontem, masaconteceu há exatos vinte anos. Eu estavasozinha – não havia um único rosto con-hecido a menos de um oceano de distância –sentada na beira de um lago. Fiquei um tem-pão olhando pra água, num recanto especial-mente bonito. Foi então que me bateu umafelicidade sem razão e sem tamanho. Deveser o que chamam de plenitude. Não haviaacontecido nada, eu apenas havia atingidouma conexão absoluta comigo mesma. Nãohá como contar isso sem ser piegas. Aliás,não há como contar, ponto. Não foi algopensado, teorizado, arquitetado: foi apenasum sentimento, essa coisa tão rara.

De lá pra cá, nem hino nacional, nemgol, nem parabéns a você me tocam de fato.Isso são alegrias encomendadas e, mesmoquando bem-vindas, ainda assim são apenasalegrias, que é diferente de comoção. O que

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me cala profundamente é perceber uma ver-dade que escapou dos lábios de alguém, umgesto que era pra ser invisível mas eu vi, umolhar que disse tudo, uma demonstração sin-cera de amizade, um cenário esplendoroso,um silêncio que se basta. E tambémsensações íntimas e indivisíveis: você con-quistou, você conseguiu, você superou.Quem, além de você, vai alcançar a dimensãodas suas pequenas vitórias particulares?

Eu disse pequenas? Me corrijo. Con-templar um lago, rever um amigo, rezar paraseu próprio deus, ver um filho crescer, per-doar, gostar de si mesmo: tudo isso é gi-gantesco pra quem ainda sabe sentir.

9 de julho de 2006

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CASA DE VÓ

Eu faço todo o possível para respeitar a opin-ião e o gosto alheios. Ainda não cheguei àtolerância total, mas tenho feito progressos.Hoje consigo aceitar tranqüilamente que al-guém considere água tônica uma delícia ouque seja fã da banda Calypso. Cada um nasua. Mas preciso evoluir mais, muito mais,porque ainda fico perturbada quando alguémdiz que foi passar a lua-de-mel na Disney.Tudo bem, é uma escolha, um direito, o quetenho a ver com isso? Ainda assim, não con-sigo evitar o espanto. Dois adultos apaixon-ados em lua-de-mel na Disney. Jantandocom o Mickey!

Isso não significa que eu seja de-sprovida de espírito lúdico e de apreço àfantasia. Certa vez ouvi a Luana Piovani,num programa de tevê, dizer que a casa dosavós dela foi sua Disney. Bingo. A casa daminha avó também foi, Luana. Tinha umaespécie de morro nos fundos da casa, todogramado, que dava para um outro nível doquintal. Bem no centro desse morro (deveser um morrinho, mas a memória de umacriança não respeita proporções exatas)havia uma pequena escada de pedras, poréma gente subia sempre pela grama, claro.Éramos treze primos fazendo trekkingnaquele latifúndio.

Lá em cima havia a churrasqueira e al-gumas árvores, mas o mais tentador era umquartinho misterioso, um depósito meio semfunção, nosso QG infantil, que às vezes ser-via de casa de bonecas, em outras, deredação de jornal – eu tinha o topete de

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escrever as aventuras da família. Se os fun-dos da casa eram mágicos, a casa propria-mente dita era nossa Neverland. Tinhalareira, tinha adega, tinha sótão. Era comoestar dentro de um cenário de filme, e haviatambém a Lúcia, uma empregada alemã queparecia uma agente da Gestapo, nunca viloira tão séria e retesada, mas preparava umcachorro-quente que jamais os Estados Un-idos viram igual. Sério: a casa da avó dagente desbanca qualquer Epcot Center.

Hoje essas casas antigas estão sendoderrubadas para dar lugar a prédiosimensos, mas mesmo dentro de um aparta-mento é possível existir uma “casa de vó”,porque casa é só uma maneira de chamar, oque vale é o espírito do lugar, e havendo umaavó que entenda seu papel de proprietárianão de um imóvel, mas de um segredo, es-tará garantida a magia. Casa de vó é onde alasanha e o pastelão ganham um sabor

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diferente, onde os ponteiros do relógio corr-em mais lentos, onde os ruídos são maisaudíveis, onde o teto parece mais alto, onde aluz entra mais discreta entre as persianas,onde os armários escondem roupas antigas efundos falsos, e só isso é falso, tudo mais éverdadeiro. Casa de vó é onde os brinquedosnão surgem prontos, são inventados na hora.É onde a gente encontra os restos da infânciados nossos pais. E fotos de bisavós, de tios...epa, este sujeito aqui, quem é? Acalme-se, éo namorado novo da sua avó, você achou queela ficaria viúva para sempre? Ela é sua avó,não um matusalém.

Se as avós não são mais as mesmas deantigamente, em suas casas ainda sobreviveum encanto que não muda. Serão semprelugares secretos onde encontraremos uminstrumento sem uso, alguns recortes de jor-nal, anéis coloridos, um bicho meiopulguento, uma máquina de escrever ou de

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costura, algo que seja estranho aos olhos deuma criança – e espaço, muito espaço parauma imaginação que não é estimulada nemna Disney nem na rotina maluca de hoje, sómesmo lá dentro, no endereço do nosso afetomais profundo, onde tudo é permitido.

16 de julho de 2006

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TARDE DEMAIS,NASCEMOS

Devoro tudo o que o americano Philip Rothescreve, e não foi diferente com seu mais re-cente lançamento, O animal agonizante, queé o relato de um professor de 62 anos que seapaixona por uma aluna de 24. Estimuladopor essa paixão, o personagem reflete sobre atragédia de envelhecer e as obsessões sexuaisde todos nós. E sobre como é inútil tentarmudar a natureza humana. Em dado mo-mento, ele comenta: “É a velha históriaamericana: salvar os jovens do sexo. Só que ésempre tarde demais. Tarde demais, porqueeles já nasceram.”

Sublinho uma, sublinho duas vezes,quase perfuro a página com a caneta, porqueé isso aí: é sempre tarde demais para nos sal-var, já estamos aqui, a vida está em curso, jános apegamos aos nossos privadíssimostraumas, medos, fantasias, estamos irre-mediavelmente condenados a ser quemsomos. Podemos, claro, amadurecer, ficarmais leves, lidar com nossas fraquezas commais bom humor, mas suprimi-las parasempre? Sem chance. No máximo, trocamosalguns problemas por outros.

Quando a questão é sexo, então, salvar-nos do quê? Só mesmo nos impedindo denascer para evitar que tenhamos contatocom o que há de mais fabuloso e enigmáticoem nós: nosso desejo. Uma vez nascidos,tarde demais. Estamos em pleno poder dosnossos cinco sentidos, impossível evitar quenossos olhos vejam outros corpos, nossosnarizes sintam outros cheiros, nossas mãostoquem em outras pessoas, e que sintamos o

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gosto delas, e ouçamos o que elas têm a nosdizer. Tudo isso provoca um curto-circuito.Até pode-se exercer a abstinência comoescolha, mas nunca através de uma im-posição externa, de uma pregação moralista.Tentar nos manter afastados do sexo? Só se aintenção for a de nos transformar empervertidos.

Tarde demais, nascemos.E uma vez nascidos, viramos homens e

mulheres que tentam extrair alegrias deonde só brota dificuldade, que participamdeste carnaval de sensações fartamenteoferecidas dia após dia: paixões e melancoli-as ao nosso dispor, bastando estarmos pre-dispostos à vida. Uma vez nascidos, temosuma cara, um corpo e a nossa alma, princip-almente a alma, nosso DNA espiritual,avesso a manipulações de qualquer espécie.Tentem, mas vai ser difícil nos transformarem pedra, parede, concreto.

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Podem fazer nossa cabeça, mudarnossas idéias, nos arregimentar para o seupartido. Influenciar, podem. Somos maleá-veis. Mas arrancar de nós a humanidade,proibir que tenhamos sono, fome e sede,declarar-nos incapacitados para o amor, exi-gir que nunca mais sonhemos, que não cul-tivemos nosso lado mais secreto e selvagem,impossível, só se não existíssemos.

Tarde demais, nascemos.

23 de julho de 2006

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O CARA DO OUTROLADO DA RUA

Ele sabia onde ela morava, a via freqüente-mente saindo com o carro pela garagem, jáhavia até decorado a placa da atriz. O que elenão sabia é que ela, da janela do seu aparta-mento, reparava nele todo dia também,quando ele chegava no escritório em frente.Um moreno alto, não muito diferente dequalquer outro moreno alto.

Ele acompanhava a novela das oito queela fazia, gostava do jeito que ela atuava,havia uma certa dignidade na escolha dospapéis, e imaginava que ela tinha diversosnamorados. Ela, por sua vez, nada sabia dele,

a não ser que era um homem como outroqualquer.

Um dia se cruzaram, ela saindo do pré-dio, ele chegando ao escritório, e por razãonenhuma se cumprimentaram. Duas vogais:oi.

Passaram semanas e um dia seabanaram, de longe. E longe permanecerampor outros tantos meses. A atriz famosa doprédio em frente. O cara do escritório dooutro lado da rua. Era isso que eram um parao outro.

Não se sabe quem tomou a iniciativa, sefoi ela que sorriu de um jeito mais insinuanteou se ele que acordou de manhã com o ím-peto de sair da rotina, apenas se sabe que umdia pararam na calçada para ir além das duasvogais, e ele teve a audácia de convidá-lapara um café, e ela teve o desplante deaceitar.

Durante o café, ele soube que ela haviase separado recentemente, e ela soube que

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ele estava tentando arranjar coragem paraencerrar uma relação desgastada. Ela tomouuma água mineral sem gás, ele, dois ex-pressos, e ficaram de se falar.

No dia seguinte ele telefonou ecomentou que ela havia dado a ele a coragemque faltava. O recado foi entendido, e elaaceitou prontamente um convite para jantar,e desde então não pararam mais de se tocar ede se conhecer. Ela contou, entre lençóis,que trabalhar na tevê é uma profissão comoas outras, que o estrelato é uma percepção dopúblico e que no fundo ela era uma mulherquase banal. Ele contou, durante umaviagem que fizeram juntos, da relação quetinha com os avós, da importância deles nasua infância e em como seu passado de ga-roto do interior havia definido seu caráter.Ela contou, enquanto cozinhavam um ma-carrão, que havia sido uma menina bemgordinha e que implicavam muito com ela naescola. Ele contou, enquanto procurava uma

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música no rádio, que havia morado em Lis-boa e que seu sonho era ser pai. Ela contou,enquanto penteava o cabelo dele, que àsvezes chorava mais de felicidade do que detristeza e que ainda não sabia o que dar a elede aniversário. Ele contou, num dia em queassistiam a um filme no DVD, que ela ia rirmas era verdade: quando garoto, ele chegoua pensar em ser padre. Ela contou, enquantoretocava o esmalte, que já havia se atrevido aescrever poemas, mas eram horríveis. Ele pe-diu para ler. Um dia ela mostrou. Eram hor-ríveis mesmo. Ele mostrou os versos dele.Não é que o safado escrevia bem?

Não chegaram a viver juntos comovivem todos os casais, mas também nuncamais ficaram separados por uma janela, poruma rua, por um silêncio interrogativo, poruma possibilidade remota. Havia acontecido.Ela para ele, nunca mais uma celebridade.Ele para ela, nunca mais um homem comum.

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6 de agosto de 2006174/434

EU, VOCÊ E TODOS NÓS

Já aconteceu de cinco ou seis leitores re-clamarem dos filmes que comento aqui,principalmente quando são filmes mais al-ternativos, menos comerciais. “Puxa, mas oque você viu naquela chatice?” Hoje vou falarsobre um deles; então, se você não gosta denada meio fora do padrão, nem perca seutempo. Me refiro a Eu, você e todos nós,filme de estréia da artista multimídia Mir-anda July, que tem seus trabalhos expostosno MoMA e no Museu Guggenheim, emNova York. Agora ela se aventurou nocinema e, a meu ver, não se deu mal. Fez umfilme delicado sobre um tema que sempre caicomo um chumbo: a solidão.

O filme mostra fragmentos da vida dealgumas pessoas aparentemente com nadaem comum: uma videomaker (a própria Mir-anda July), um vendedor de sapatos recémseparado, um senhor que se apaixona pelaprimeira vez aos 70 anos, duas adolescentesplanejando sua primeira experiência sexual,um menino de seis anos que entra na inter-net e se envolve numa correspondência pic-ante com uma mulher, uma menininha comum hábito fora de moda – coleciona peçaspara seu enxoval.

Em comum, apenas a errância. Ir emfrente, ir em busca, ir atrás, ir para onde?Somos obrigados a estar em movimento, masninguém nos aponta um caminho seguro.

Eu, você e todos nós estamos à procurade algo que ainda não experimentamos, algoque a gente supõe que exista e que nos farámais felizes ou menos infelizes. Eu, você e to-dos nós tentamos salvar nossas vidas diaria-mente, e qual a melhor maneira para isso?

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Trabalhar e amar, creio eu, mas não é fácil.Os que não conseguem se realizar através dotrabalho e do amor, tentam se salvar dasmaneiras mais estapafúrdias, alguns atécolocando-se em risco, numa atitude tãocontraditória que chega a comover: autofla-gelo, exposição barata, superação de limites,enfim, os meios que estiverem à disposiçãopara que sejam notados.

Eu, você e todos nós somos criançasdas mais diversas idades.

Pedimos pelo amor de Deus que o tele-fone toque e que a partir desse toque umnovo capítulo comece a ser escrito na nossahistória. Fingimos que somos seres alta-mente erotizados e, na hora H, amarelamos.Depositamos todas as nossas fichas amoro-sas em pessoas que não conhecemos senãovirtualmente. Disfarçamos nosso abandonocom frases ousadas e sem verdade alguma. Oque a gente gostaria de dizer, mesmo, é: medê sua mão.

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Eu, você e todos nós queremos intimid-ade, mas evitamos contatos muito íntimos.Não queremos nos machucar, mas usamossapatos que nos machucam. A gente quer enão quer, o tempo todo. Será que duranteuma caminhada de uma esquina a outra, emum único quarteirão, é possível aconteceruma paixão, uma descoberta? Quantos met-ros precisamos percorrer, quantos dias deve-mos esperar, em que momento da nossa vidairá se realizar o nosso maior sonho e, umavez realizado, teremos sensibilidade paraidentificá-lo? O nosso desejo mais secretoquase sempre é secreto até para nós mesmos.

Somos uma imensa turma, somos umaenorme população, somos uma gigantescafamília de solitários, eu, você, todos nós.

20 de agosto de 2006

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DANDO A IMPRESSÃO

Um homem de 29 anos que viajava de aviãocom a mãe para a Turquia foi questionadopelos seguranças sobre um objeto suspeitoque levava na bagagem. Envergonhado dedizer na frente da mãe que se tratava de umaparelho que aumentava o pênis, o engraçad-inho respondeu jocosamente:

– É uma bomba.Vai ser espirituoso assim bem longe do

meu portão. Só um mentecapto pronuncia apalavra bomba dentro de um aeroporto,mesmo que esteja apenas comentando quelevou bomba no vestibular ou que a festabombou ontem à noite. Bomba é palavraproibida. Já fez muitas decolagens serem

abortadas, muitos vôos serem desviados emuitos piadistas serem indiciados, comoaconteceu com o esperto que viajava com amãe. Ele pode pegar três anos de prisão secondenado.

A despeito da patetice do rapaz, umacoisa está clara: a paranóia chegou a um ex-tremo que beira o ridículo. Recentementeum avião que estava indo para a Índia teveque retornar ao aeroporto de Amsterdamporque doze passageiros demonstraramcomportamento “preocupante”: eles sol-taram o cinto de segurança antes do aviso lu-minoso ser apagado. Muito preocupante. Esacaram seus celulares das bolsas, dando aimpressão de que estavam tentando repassá-los para outros passageiros. “Dar a im-pressão”, hoje, é mais do que motivo para in-terromper uma viagem.

Um vôo entre dois estados americanostambém teve sua rota desviada porque umacomissária considerou estranho o cheiro da

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água que estava dentro de uma garrafa. Davaa impressão de que não era água. Ao aterris-sarem, surpresa: era água.

Um homem barbudo dá a impressão deser um terrorista árabe, um jovem pálido dáa impressão de estar com medo, um gago dáa impressão de estar nervoso, uma pessoamuito agasalhada dá a impressão de estarescondendo alguma coisa embaixo docasaco, alguém que olha muito pro relógio dáa impressão de que está controlando um det-onador, alguém comendo vorazmente dá aimpressão de estar fazendo sua última re-feição, uma mulher que não fala com nin-guém dá a impressão de não querer se de-nunciar. E alguém que mente, só de brin-cadeira, que está levando uma bomba na ba-gagem dá a impressão de que não leu jornalnos últimos cinco anos e pode muito bem serlouco o suficiente para estar falando averdade.

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Estamos todos paranóicos. Isso sim épreocupante.

3 de setembro de 2006

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O CONTRÁRIO DAMORTE

Acabei de ler Milagre nos Andes, o relato im-pressionante de Nando Parrado, um dossobreviventes daquele célebre acidente aéreoque aconteceu trinta anos atrás e que deixouvários jovens uruguaios perdidos no meio dacordilheira, sem comida, sem comunicação,sob temperaturas gélidas e tendo que se ali-mentar da carne dos colegas mortos. Agoraum deles conta em detalhes como foramaqueles 72 dias de luta pela vida, num livroque se lê fácil como se fosse uma reportageme que faz a gente se perguntar: do que, afinal,

tanto reclamamos, se temos água, pão,cobertor e afeto?

Afeto, na verdade, é uma palavra soft,amor é mais contundente. Nando Parrado sepropôs a mostrar que, se a morte tem umoponente, não é a vida, é o amor. É a únicacoisa que pode fazer alguma diferença dianteda magnitude da morte, da onipresença damorte, da longevidade da morte: sim, porquea morte, a partir do momento que ocorre,passa a ter um período de duração infinito, eantes de virmos ao mundo ela também já ex-istia nessa mesma infinitude de trás prafrente. Onde estávamos antes de nascer? Decerta forma, mortos também. Nossa vida éapenas uma pequena brecha de tempo entreduas ausências acachapantes. E para justifi-car esse breve intervalo de vida e enfrentar asoberania da morte, só mesmo amando.

Tem se falado pouco de amor, virouuma coisa meio piegas, antiga. Hoje cultua-se muito mais a paixão e demais sentimentos

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vulcânicos, aqueles que fazem barulho, queinspiram loucuras, que causam polêmicas,que atormentam, que dilaceram, que fazemas pessoas se sentirem, ora, vivas. O filósoforomeno Cioran disse que é melhor viver emfrenesi do que na neutralidade, e tem razão,vigor é algo de que não podemos abrir mão.

A questão é que nada é mais vigorosoque o amor, esse sentimento que erronea-mente relacionamos com comodidade emornidão, tudo porque associamos amor aocasamento: esse sim pode vir a se tornar algoacomodado e morno. O amor pega essa car-ona injustamente.

Amor não é apenas o que aproxima umhomem e uma mulher (ou dois homens ouduas mulheres). Amor envolve pais e filhos,envolve amigos, envolve uma predisposiçãoemocional para o trabalho, para o esporte,para a gastronomia, para a arte, para a reli-gião, para a natureza, para o autoconheci-mento. Amor é um estado de espírito que

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nos move constantemente, é uma energiaque não se esgota, é a única coisa que faz agente levantar de manhã todos os dias sementregar-se para o automatismo, é o que dáalgum sentido para este hiato entre duasmortes. Isto não é vulcânico? Ô. Parece ser-mão de padre, parece texto de romancezinhobarato, parece muito piegas, sim, mas e daí?Nando Parrado só conseguiu sair do meio daneve e do nada porque pensava dia e noite nador que seu pai estaria sentindo. Outrossobreviventes só conseguiram suportar ofrio, a fome e o desespero porque tinhamquem esperasse por eles do outro lado dacordilheira. Tiveram sorte, coragem e in-teligência para transpor os obstáculos, e ven-ceram, mas o próprio Nando admite: nãohouvesse um sentimento, pouco adiantaria.

Nós, com nossos obstáculos infinita-mente mais transponíveis do que acordilheira, deveríamos experimentar mais

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deste viagra motivacional chamado amor. Eazar se parecermos cafonas.

3 de setembro de 2006

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DELICADEZA

Já se falou muito do espetáculo de PinaBausch apresentado semana passada emPorto Alegre, mas ainda que eu chova nomolhado, vou escrever sobre o assunto tam-bém e tentar traduzir o que se viu, porque oTeatro do Sesi, ainda que imenso, não com-porta todos os que gostariam e precisariamestar lá para testemunhar algo que tem es-tado tão afastado do nosso cotidiano: asuavidade e o espírito lúdico, próprio dainfância.

A coreógrafa Pina Bausch já havia reve-lado em uma entrevista: “Quando vou assi-stir a uma peça, quero sentir algo. Não quero

só estar lá, ver o que vai ou não acontecer.Quero ver e sentir.” Inspirada nessa sua ne-cessidade como espectadora, Pina cria es-petáculos em que não importa “o que se querdizer” e sim o quanto se pode provocar riso,espanto, angústia, fascínio, alegria. A platéiajamais fica indiferente. Entender? Não hánada para entender. Não é uma obra feita depontos de interrogação, e sim de pontos deexclamação. E, vá lá, algumas reticências...

Desta vez ela trouxe para o Brasil umacoreografia baseada no mundo infantil. Derepente, o palco, praticamente despido decenário, vira um grande playground, onde osdançarinos pulam corda, sentam em balões,imitam pássaros, cospem água uns nos out-ros, brigam, vivem suas fantasias e nãotemem ser julgados. Criancices. Fragmentosde uma época da vida em que a opinião dosoutros não nos interessava em nada, em que

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tudo era permitido, tudo tinha graça, tudoera novo.

Não precisaríamos perder nada dissocom a passagem do tempo, mas perdemos.Ficamos blindados. Tudo o que não for“adulto” passa à categoria do ridículo. E umbelo dia nos damos conta de que não possuí-mos mais a leveza necessária para apreciar oque é simplesmente belo, simplesmenteinusitado, simplesmente espontâneo,simplesmente sem sentido. O“simplesmente” deixa de ser algo aceitável. Épreciso vir uma teoria junto, uma bula, umaexplicação.

Aplausos, então, para a coordenação doEm Cena, que trouxe até nós um pouco dessaexperiência teatral do sentimento pelo senti-mento, através de uma dança muito profis-sional, mas também propositadamenteamadora em seus objetivos – se é que sepode chamar de amador almejar apenas oencantamento – e que veio acompanhada de

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uma trilha sonora impactante, de um fig-urino elegantíssimo e de uma modernidadeespantosa. A modernidade que há no quepara alguns parece tão antigo: o simples-mente sentir.

6 de setembro de 2006

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HOJE E DEPOIS DEHOJE

Não que dia de eleição não seja importante,mas vamos lembrar que, seja quem for quevá tomar decisões políticas daqui por diante,você continuará sendo dono e senhor da suavida íntima, é de você próprio que depende ofuturo: das coisas que você elegeu sozinho.

Nenhum candidato impedirá você deler o que quiser e de dormir na hora que bementender. Da sua liberdade, cuida você.Então, cuide mesmo.

Amanhã os jornais estamparão osnomes dos vitoriosos, e os articulistas irãoespecular sobre formação de ministérios e

sobre as medidas que virão, e você estará sat-isfeito por ter votado no homem certo ou in-satisfeito por terem eleito aquele que vocênão queria, e as coisas vão mudar, mesmo, émuito pouco. As escolhas decisivas da suavida seguirão sendo suas, apenas.

Então deixe a vida continuar aconte-cendo no território que você domina, vá fazersua caminhada como faz todos os dias, queisso nunca será impedido por decreto, eaproveite que está apaixonado para se de-clarar tão insistentemente que chegue aoponto de duvidar que possa amar tanto, e senão estiver amando, trate de se abrir com ur-gência para esse sentimento que, entra gov-erno e sai governo, não muda e não perde aimportância.

A vida segue acontecendo nos detalhes,nos desvios, nas surpresas, nas alterações derota que não são determinadas pelas urnas,mas por um olhar que você ainda não havia

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percebido, por uma palavra que você não es-perava escutar e por fim escutou.

Poderíamos estar aqui conversando –eu daqui, você daí – sobre a calamidade so-cial que o país não consegue conter, sobrecomo está difícil ter esperança, e quantas de-cepções já engolimos, mas hoje não, justa-mente hoje que seria o dia, vamos evitar estadiscussão aborrecida e pegar um atalho,outro caminho, lembrar de quanta coisa jáescolhemos e que deu certo, em quanta gentedepositamos nossa confiança e que não nosfaltou, em como já sofremos por pouca coisae por muita coisa, e por todas elas nos tor-namos mais fortes e preparados, então quevenha o que vier, nada há de nos pegar de-sprevenidos, política nunca é mesmo algomuito original: mesmo sem bola de cristalpodemos visualizar no horizonte o que irárepetir-se.

No entanto, o dia de amanhã poderáser absolutamente inusual, e a política não

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terá nada a ver com isso. Prepare-se parafazer alguma escolha: entrar ou não numnegócio, gastar ou não um dinheiro, aceitarou não um convite, sorrir ou não paraalguém. Sabe-se lá o que esta decisão tãotrivial poderá fazer pela sua vida que o próx-imo governo não poderá.

Você já passou por tantas eleições pess-oais: escolheu sua profissão, a cor do seu ca-belo, o nome que seus filhos têm, o time parao qual torce, a roupa que está usando bemagora. Quem é que está no comando? Ora.Faça o que bem quiser deste seu dia e dos di-as que virão. Votar é obrigatório, mas viver émuito mais.

1º de outubro de 2006, eleição presidencial

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PARAR DE PENSAR

Você encontra uma lâmpada mágica no meiodo deserto, dá uma esfregadinha e de dentrosai um gênio meio afetado, que concede a vo-cê a realização de um desejo. Humm... Vocêpediria um segundinho pra pensar? Eu nãopensaria um segundo. Aliás, o meu desejoseria justamente este: por bem mais que umsegundo, digamos por dois dias, gostaria deparar de pensar. Parar totalmente de pensar.Ué, Saramago escreveu sobre um lugar emque as pessoas paravam de morrer. Salve aficção, a casa de todos os delírios. Que tal,temporariamente, parar de pensar?

Eu acordaria e não pensaria em nada.Sendo assim, voltaria a dormir, sem maisdespertar todo dia às seis da manhã, comosempre faço, pensando em mil tranqueiras ecoisas a providenciar. Mas parar de pensarnão impede a fome, então uma hora eu teriaque levantar da cama e ir pra mesa – quemdecidiu o cardápio? Aleluia, eu é que não fui.Não penso mais nessas coisas.

Abro o jornal, leio todas as matérias enão me ocorre nenhum pensamento tipo: “Épro bolso destes malandros que vai meu im-posto”, “Não acredito que fizeram isso comuma criança” ou “Caramba, como fui perdereste show?”. Eu não penso, portanto, nãosofro.

Passo por um espelho e não dou a mín-ima para o que vejo. Espinhas, olheiras, ca-belo fora de moda, danem-se. Moda, falei emmoda? Era só o que me faltava ocupar meucérebro com essas trivialidades.

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Tudo vazio lá dentro, um descampado,um silêncio, o paraíso.

Você não pensa mais em como aument-ar sua renda mensal, em como fazer seus fil-hos comerem melhor, em como arranjartempo para deixar o carro na revisão, emcomo encontrar um lugar barato para passaras férias, em como ajudar seus pais a at-ravessarem a velhice, em como não ser indel-icada ao recusar um convite, em como tercoragem para chutar o balde, em como re-sponder um e-mail irritante, em como escon-der dos outros suas dores, em como arranjartempo para ir ao médico, em como você temmedo de que as coisas nunca mudem e, semudarem, em como enfrentar. Você não pre-cisa pensar em mais nada, você pediu aogênio e ele, camarada, atendeu. Aproveite,são apenas dois dias.

Não precisa ter opinião sobre o Lula,sobre o Alckmin, sobre a segurança do es-paço aéreo, sobre a reviravolta do clima no

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planeta, sobre o último disco do Caetano,sobre o vídeo da Cicarelli, sobre os resulta-dos do Brasileirão. Você está de férias de vo-cê. Não tem nem motivo para chorar. Seuamor se foi? Tudo bem. Você não pensa emrejeição, não pensa que ele tem outra, nãopensa que vai surtar. Jogue fora os antide-pressivos, não precisa nem mesmo passarcreme anti-rugas. Por dois dias, seu humorestá neutro e suas rugas se foram. Esse seuolhar sereno, essa sua fala pausada... Nossa,sabia que você ficou até mais sexy?

Tudo isso é uma viagem sem sentido.Concordo. Mas vai dizer que, às vezes, acion-ar o pause no cérebro não lhe passa pelacabeça?

11 de outubro de 2006

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VOLTANDO A PENSAR

No último domingo publiquei no cadernoDonna ZH uma crônica fantasiosa em que euimaginava como seria bom parar de pensarpor uns dias, para dar um descanso procérebro. Os leitores aprovaram a idéia, masos dias passaram e é hora de voltar a pensar.Proponho dois assuntos para dar umaacordada nos nossos neurônios. Primeiro:soube que dois desempregados arrancaram,anteontem, dezenove placas de sinalizaçãoda RS 331, que liga Viadutos a Gaurama, nonorte do Estado. O objetivo? “Só para ver oque acontece”, responderam eles. Vou dizer aeles o que acontece, dando o exemplo de umfato ocorrido na Flórida em 1997. Dois

adolescentes e uma garota não tinham nadapara fazer e resolveram arrancar algumasplacas de PARE dos cruzamentos. No diaseguinte, três jovens transitavam por umadessas avenidas desfalcadas de sinalização e,sem saber que estavam cruzando uma pref-erencial, bateram num caminhão. Morreram.É isso que acontece. E aconteceu mais: osque arrancaram as placas foram condenados,cada um, a quinze anos de prisão, e o juizainda disse que eles deveriam agradecer,porque assassinos não costumam pegarmenos de trinta anos. A verdade é quesomos, todos, homicidas em potencial. Não épreciso sair pra rua com uma arma na mãopara colocar a vida dos outros em risco.Pequenas sandices como danificar placas detrânsito ou fazer rachas em vias públicastambém podem provocar tragédias.

Segundo assunto: o adesivo que mostrauma mão sem o dedo mínimo com a fraseMais 4 não! Fora Lula, aludindo à deficiência

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do presidente, que teve um dedo decepadona época em que trabalhava como metalúrgi-co. A polêmica surgiu porque algumas pess-oas consideraram o adesivo preconceituoso eilícito. Olha, ilícito me parece que não é, masque é de um tremendo mau gosto nem sediscute. Todos têm o direito de externar suaopinião, de fazer propaganda de seu partidoou contra o partido oponente, mas usar umadeficiência que nada tem a ver com o caráterou o currículo do candidato é preconceito,sim. O fato de o Lula não ter um dos dedosda mão é absolutamente irrelevante para odestino do país. Usar isso como uma“sacada” de marketing é fazer piada tosca egrosseira, e creio que já basta de deselegân-cias nesta vida. Depois reclamamos quandocrianças discriminam na escola os colegasnegros, gordos, mancos, gagos, sem dedo,sem braço, sem perna. Estão seguindo exem-plos, apenas isso.

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Parar de pensar é um convite à medit-ação, não à estupidez.

18 de outubro de 2006

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QUALQUER UM

A reclamação é antiga, mas continua vigente:mulheres se queixam de que não há homem“no mercado”. Acabo de receber um e-mailde uma delas, contando que faz parte de umgrupo de mulheres na faixa dos 35 anos quesão independentes, moram sozinhas, trabal-ham, falam idiomas, são vaidosas, têm cul-tura, fazem ginástica e, mesmo com tantosatributos, seguem solteiras e temem nãohaver tempo para formar a própria família.No finalzinho da mensagem, descubro umapista para a solução do problema: “Apesar deo relógio biológico estar nos pressionando,não queremos procriar com qualquer um.Queremos um cara bacana para ir ao cinema,

almoçar no domingo, viajar nos finais desemana.”

Claro. Quem não quer?Não há problema nenhum em ser exi-

gente, em querer uma pessoa que seja espe-cial. O que me deixa intrigada é que há maisprobabilidade de você encontrar “qualquerum” do que um deus grego com um cracháescrito “Príncipe Encantado”. Então me per-gunto: as mulheres estarão dando chancepara que este “qualquer um” demonstre queestá longe de ser um qualquer?

Sou capaz de apostar que a maioria dasmulheres, no primeiro papo, já elimina ocandidato, e quase sempre por razões frí-volas. Ou porque o sapato dele é medonho,ou porque ele não sabe quem é RomanPolanski, ou porque ele gosta de pizza de es-trogonofe com banana, ou porque ele sógosta de comédia, ou porque ele misturasteinheger com cerveja, ou porque o carrodele é um carro do ano. Do ano de 1991.

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Imagina se você, proveniente de umafamília estruturada, criada dentro depadrões de bom gosto, com qualidades en-cantadoras, vai se envolver com esse... comesse... com esse sei-lá-quem.

Pois o “sei-lá-quem” pode ser, sim,aquele cara bacana que levará você para al-moçar no domingo, mas você tem que daruma mãozinha, minha linda. Recolha seusprejulgamentos, dê umas férias para seuspreconceitos, deixe seu orgulho de lado esaia com ele três, quatro vezes, até ter cer-teza absoluta de que o sapato medonho vemacompanhado de um caráter medonho, deum mau humor medonho, de uma burricemedonha. Porque se o problema for só o sap-ato e a pizza de estrogonofe, isso dá-se umjeito depois, ele não há de ser tão inflexível.

Aliás, e você? Garanto que também nãosai pela rua com uma camiseta anunciando“Mulher Maravilha”. Ele também vai ter quedescobrir o que há por trás da sua ficha

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estupenda, e vá que ele implique com as trêsdezenas de comprimidos que você ingere pordia, com sua recusa em molhar o cabelo nomar, com sua fixação por telefone ou com osseus sutiãs do ano. Do ano de 1991 também.

Essa coisa chamada “história de amor”requer um certo tempo para ser construída, eas que dão certo são aquelas vividas com pa-ciência, com o espírito aberto, e geralmentecom qualquer um que consiga romper nossasdefesas e nos fazer feliz.

22 de outubro de 2006

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TRAVESSURAS

O novo livro de Mario Vargas Llosa é umahistória de amor que dura uma vida inteira.Tudo começa no verão de 1950, no Peru,quando Ricardo, um rapazote de quinze anosque sonhava em morar em Paris, conheceLily, uma adolescente com uma personalid-ade mais do que marcante. Ele se apaixonafeito um bezerro, como ele mesmo define.

O livro conta a trajetória desse amorora feliz e quase sempre infeliz. Lily some doPeru sem deixar rastros, Ricardo vai morarem Paris e só a reencontra anos depois. Elasome de novo e, passado um tempo, ele areencontra em Londres. Ela desapareceoutra vez e ele mais tarde a descobre em

Tóquio, onde ela apronta todas e evapora,claro. E ainda mais uma vez se cruzam emMadri, ambos já cinqüentões. Lily, essa mul-her misteriosa que vai trocando de nome ede marido a cada aparição, é uma peste. Temuma índole suspeita, hábitos condenáveis e éfria como uma manhã de inverno em SãoJosé dos Ausentes. Nem muito bonita é. Fazde Ricardo gato e sapato. Ele resiste? Nemtenta, pois sabe que não há como. O amorverdadeiro tem destas coisas: não se explica,não se controla, não se racionaliza, simples-mente toma conta. É uma droga, um vício,uma viagem entre o céu e o inferno, ida evolta, sem parar.

Vargas Llosa escreveu um livro en-cantador sob vários aspectos, não só pela ori-ginal seqüência de encontros e desencontrosdesse casal instável, mas também por re-tratar períodos significativos das principaiscidades do mundo. E por escrever com mãode pluma, tratando com leveza a angústia

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humana e com isso dando ao livro um tomnovo, sem o dramalhão que costuma carac-terizar as histórias de amor não resolvidas.

Outra coisa que me chamou a atençãofoi o título, Travessuras da menina má.“Menina má” é como Ricardo chamavacarinhosamente a jararaca, mas o uso dotermo “travessuras” é curioso. A mulher queele ama não é travessa, caramba: é uma bis-ca. Mentirosa, falsa, sem escrúpulos – e fas-cinante, óbvio. Ricardo sabe que ela está amil léguas da decência, mas seu amor im-pede que a julgue com a severidade dos adul-tos. Prefere resumir as sacanagens da amadacomo pequenas travessuras infantis. Só as-sim poderá perdoá-la a cada reencontro.

Travessuras. Quantas mulheres consid-eram assim as artimanhas dos maridos,quantos pais encaram como travessuras asmentiras e os furtos dos filhos, quantos denós evitam o confronto com a verdade e, emvez de dar o nome certo às coisas, chamam

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erros graves de “travessuras” para poder per-doar? Aliás, diante do resultado das últimaseleições, ficou confirmado que o eleitoradobrasileiro considerou como apenas umatravessura o que andou acontecendo nosbastidores do governo. Enxergar a verdade,quando se está apaixonado, nunca foi bomnegócio, quem não sabe? Pois parece que an-da servindo para a política também. Numcaso ou no outro, só resta seguir em frente etorcer para que nossa condescendência sejarecompensada.

29 de outubro de 2006

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TESTES

Dia desses resolvi fazer um teste propostopor um site da internet. O nome do teste eratentador: “O que Freud diria de você”. Uau.Eu me interesso em saber até o que o ven-dedor de picolé pensa sobre mim, imaginaFreud. Respondi corretamente a todas asperguntas e o resultado foi o seguinte: “Osacontecimentos da sua infância a marcaramaté os doze anos, depois disso você buscouconhecimento intelectual para seu amadure-cimento”. Perfeito! Foi exatamente o queaconteceu comigo. Fiquei radiante: eu haviarealizado uma consulta paranormal com opai da psicanálise, e ele acertou na mosca.

Só que eu estava com tempo sobrando,e curiosidade é algo que não me falta, entãoresolvi voltar ao teste e responder tudo difer-ente do que havia respondido antes. Marqueiumas alternativas esdrúxulas, que nada tin-ham a ver com minha personalidade. E fuiconferir o resultado, que dizia o seguinte:“Os acontecimentos da sua infância a mar-caram até os 12 anos, depois disso vocêbuscou conhecimento intelectual para seuamadurecimento”.

Muito engraçado.De que adianta tanto “amadurecimento

intelectual” se a gente se deixa empolgar portestezinhos muquiranas da internet? Des-liguei o computador me sentindo a otária doséculo e fui fazer qualquer outra coisa paraesquecer o pequeno incidente. Mas não es-queci. E, juntando um neurônio com o outro,me veio a luz. É isso! Não importa como vivimeus primeiros anos, quais foram as minhasreações diante do sucesso e do fracasso,

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quanto de carinho recebi ou não recebi demeus pais, se era popular ou se só colecioneifrustrações na escola. A verdade estava grit-ando na minha frente: os acontecimentos dainfância marcam A TODOS até os doze anosde idade (ou treze, ou quatorze) e depoisdisso TODOS buscam conhecimento intelec-tual para amadurecer.

Ou seja, o teste estava corretíssimo. Asrespostas podiam variar de pessoa para pess-oa que pouco importava. A vida não é origin-al, ela é repetitiva, e até Sartre, que não erapsicanalista, matou a charada quando disse“não importa o que fizeram com você, im-porta é o que você fez do que fizeram comvocê”. Em outras palavras: depois dos doze,chega de se lamentar. Vá buscar conheci-mento para estruturar sua felicidade.

Ou os caras que bolaram o teste sãomesmo um bando de gozadores ou sãogênios. Tendo mais de doze anos de idade,

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escolha você o resultado que mais lheconvém.

8 de novembro de 2006

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NENHUMA MULHER ÉFANTASMA

Almodóvar está de novo em cartaz noscinemas, portanto, hora de sair de casa:Volver é obrigatório.

A cena de abertura nos prepara para oque virá pela frente. Num cemitério, váriasmulheres limpam e cuidam dos túmulos deseus maridos: todas sobreviveram a eles. Edaí por diante é só o que vemos no filme:mulheres. Os poucos homens que aparecemnão podem nem ao menos ser chamados decoadjuvantes, são meros figurantes, quasemortos-vivos: se há algum fantasma nessefilme, não se deixe enganar pelas resenhas,

ele é masculino. Mulher é sempre real, co-moventemente real.

Já me perguntaram uma centena devezes quais as diferenças entre homens emulheres, as diferenças entre a literaturafeita por nós e a feita por eles, a velha la-dainha: diferença, diferença. Nunca deicorda para essa questão, prefiro exaltarnossas afinidades. Não me interessa incre-mentar essa guerrinha antiga, que faz pare-cer que as conquistas femininas são res-ultado de uma revanche. Sem essa, não con-tem comigo para ser mais uma a colocarcada sexo num canto oposto do ringue.

Pois bem. Mesmo não sendo afeita aimunizar toda mulher só pelo fato de sermulher, e tampouco afeita a propagar a pre-tensa superioridade masculina – está todomundo no mesmo barco, é no que acredito –,este filme de Almodóvar conseguiu mexercom minhas convicções, já que ele parececonhecer mais sobre nós do que nós

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mesmas. Ok, uma mulher é apenas uma mul-her, mas uma mãe é um vulcão, um furacão,uma enchente, uma tempestade, um terre-moto. Uma mãe é invencível. Não há perdaque ela não transforme em força. Não hápassado que ela não emoldure e coloque naparede. Não há medo que a mantenha quietapor muito tempo.

Volver é mais um tributo que Almod-óvar presta a este gênero humano que veioequipado com cromossomos XX, a mulherque não é híbrida, mas é plural; não é bemcerta, mas é íntegra, e que ele homenageia deuma forma peculiar: colocando-a emsituações-limite. Nesse filme, mais uma vez,o tema abuso sexual volta à tona. E então elenos vinga, coloca-se a nosso serviço, nosempresta uma força de estivador para enter-rar nossos algozes. Ele é o juiz invisível dessaluta em que a mulher sai sempre um poucomachucada, mas invariavelmente vitoriosa.

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Almodóvar está do nosso lado, e a genteacaba acreditando mesmo que há dois lados.Filmando com delicadeza e explorando bema solidariedade e o afeto das latinas, ele nosfaz voltar – atenção, volver – à nossanatureza de leoa e à nossa corajosa hu-mildade, aquela que nos faz perdoar e pedirperdão para desobstruir nossos caminhos.Mulheres vão em frente e voltam, mulheresprosseguem e retornam, dois passos prafrente e um passo pra trás, cautela e cor-agem. As virtudes e pecados sempre dentroda bolsa, inseparáveis, nada se perde. Eis avisão pessoal, passional e parcial dessediretor puro-sangue, que é exagerada, masinstigante: os homens passam, mas as mul-heres não morrem.

19 de novembro de 2006

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ESPÍRITO ABERTO

Sabemos da quantidade de pessoas que pas-sam necessidades reais, que estãodesempregadas, que não têm como aliment-ar os filhos, que têm uma doença séria, en-fim, ninguém ignora as mazelas do mundo.No entanto, muitas dessas pessoas que hab-itam as estatísticas não fazem parte do nossocírculo íntimo. Na maioria das vezes, nossosamigos e familiares estão bem, trabalham,possuem uma vida afetiva. Ok, eles têm láseus problemas, mas não são exatamente oretrato da desgraça. Ainda assim, me espantaque muitos deles, mesmo sem motivo paracortar os pulsos, vivam como se fossem unsinfelizes, lidando com o dia-a-dia de uma

forma pesada, obstruindo o próprio caminhoem vez de viver com mais leveza. São o queeu chamo de pessoas com o espírito fechado.

Eu respeito quem traz uma grande dore não sai espalhando sorrisos à-toa, mas meenervo com quem fecha a cara por simplesfalta de humor. Palavrinha mágica, esta: hu-mor. Não me refiro a quem faz piadinhas atodo instante, e sim a quem possui inteligên-cia suficiente para saber que é preciso relevaras incomodações, curtir as diferenças e sergeneroso com o que acontece à nossa volta.Humor significa ter um espírito aberto.

Esta é a resposta para quem perguntaqual é a “fórmula da felicidade” – alguémainda pergunta isso? Eu responderia: ter oespírito aberto, só. O resto vem. Amigos,amores, oportunidades, até saúde: a farturadisso tudo depende muito da sua postura devida. Não é evidente?

Eu já fui um caramujo ambulante,daquelas criaturinhas desconfiadas, que

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torcia o nariz para tudo o que não fosse xer-ox do meu pensamento. Desprezava os difer-entes de mim e com isso, claro, custava paraencontrar meu lugar no mundo. Era pratica-mente um autoboicote. Me trancava noquarto e achava que ninguém me compreen-dia. Ora, nem podiam mesmo. Aliás, nemqueriam.

Um dia – e ainda bem que esse diachegou cedo, no final da adolescência – eupensei: calma aí, quem vai me salvar? Jesus?John Lennon? Percebi que o mundo eramaior do que o meu quarto e que eu tinhaapenas duas escolhas: absorvê-lo ou brigarcontra ele. Contrariando minha natureza re-belde, optei por absorvê-lo. Abracei tudo oque me foi oferecido, deixei de me considerarimportante, comecei a achar graça da vida e,com a passagem dos anos, só melhorei, nãoparei mais de me desobstruir, de lipoaspirarmágoas e ranzinzices – a não ser que dese-jasse posar de poeta maldita, o que não era o

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caso. Me salvei eu mesma e fui tratar deaproveitar cada minuto, que é o que venhofazendo até hoje.

Quando alguém me diz “como você temsorte”, penso que tenho mesmo. Mas não asorte de receber tudo caído no colo, e sim asorte de ter percebido a tempo que nossomaior inimigo é a falta de humor. Sem hu-mor, brota preconceito para tudo que é lado.A gente começa a ter mania de perseguição,qualquer coisa parece difícil e umadiscussãozinha à-toa vira um dramalhão.Prefiro escalar uma montanha a viver dessaforma cansativa.

Espírito aberto. Caso você não tenha re-cebido gratuitamente na sua herança genét-ica, dá pra desenvolver por si próprio.

7 de janeiro de 2007

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100 COISAS

É febre. Livros listando as cem coisas que vo-cê deve fazer antes de morrer, os cem lugaresque você deve conhecer antes de morrer, oscem pratos que você deve provar antes demorrer. Primeiramente, me espanta o fato detodos terem certeza absoluta de que você vaimorrer. Eu prefiro encarar a morte comouma hipótese. Mas, no caso de acontecer,serei obrigada mesmo a cumprir todas estasmetas antes? Não dá pra fechar por cin-qüenta em vez de cem?

Outro dia estava assistindo a um DVDpromocional do Discovery Channel que tam-bém mostra, com imagens e depoimentos, as

cem coisas que a gente precisa porque pre-cisa fazer antes de morrer. Me deu uma an-gústia, pois das cem, eu fiz apenas onze atéagora. Falta muito ainda. Falta dirigir umaFerrari, fazer um safári, freqüentar umapraia de nudismo, comer algo exótico (umbaiacu venenoso, por exemplo), visitar umvulcão ativo, correr uma maratona, perderuma fortuna nos cassinos de Las Vegas, foto-grafar a aurora boreal no Alasca, assistir aum desfile do Armani em Milão, atravessar aRota 66 numa Harley Davidson, nadar comgolfinhos, andar de camelo, escalar umamontanha e outras coisas que eu estou cont-ando os minutos para fazer, só não sei se vaidar tempo.

Se dependesse apenas da minha vont-ade, eu já teria um plano de ação esquemat-izado, mas quem fica com as crianças? Con-seguirei cinco férias por ano? E quem patro-cina essa brincadeira?

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Hoje é dia de mais um sorteio da Mega-Sena. O prêmio está acumulado em cin-qüenta milhões de reais. A maioria das pess-oas, quando perguntadas sobre o que fariamcom a bolada, responde: pagar as dívidas,comprar um apartamento, um carro, umacasa na serra, outra na praia, garantir a se-gurança dos filhos e guardar o resto para avelhice.

Normal. São desejos universais. Masfica aqui o convite para sonhar com mais cri-atividade. Arranje uma dessas listas de cemcoisas para fazer antes de morrer e divirta-secom as opções. Dá para fazer quase tudo commuito dinheiro, e algo me diz que hoje é seudia de sorte. Embolse a grana, doe uma partepara quem necessita e depois vá assistir à fi-nal de Wimbledon, surfar na Indonésia, verBarishnikov dançar, a Julianne Moore atuarna Broadway, alugue um balão e sobrevoeum deserto, visite uma aldeia indígena, passeo aniversário ao lado de um amigo que mora

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longe. Não pense tanto em comprar, mas emviver.

Eu, que não apostei na Mega-Sena, porenquanto sigo com minha lista de cem coisasa evitar antes de morrer. É divertido tam-bém, e bem mais fácil de realizar, nem pre-cisa de dinheiro.

10 de janeiro de 2007

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ELA

Se você não tem problemas com a sua, le-vante as mãos para o céu e pare agoramesmo de reclamar da vida. O que são algu-mas dívidas para pagar, um celular sempresem bateria, um final de semana chuvoso?Chatices, mas dá-se um jeito. Nela não. Nelanão dá-se um jeito. Para eliminá-la, promet-emos cortar bebidas alcoólicas, prometemosfazer mil abdominais por dia, mas ela nãoacusa o golpe, segue com sua saliência irrit-ante. A gente caminha, corre, sobe escada,desce escada, vibra quando nosso intestinoestá bem regulado, cumprindo suas funçõesà perfeição, mas ela não se faz de rogada,mantém-se firme onde está. “Mantém-se

firme” é força de expressão. Ela é tudo,menos firme. Você sabe de quem estoufalando.

Ela é uma praga masculina e feminina.Os homens também sofrem, mas aprendem aconviver com ela: entregam os pontos e vãoem frente, encarando a situação como umacontingência do destino. As mulheres, não.Mulheres são guerreiras, lutam com todas asarmas que têm. Algumas ficam sem respirarpara encolhê-la, chegam a ficar azuis. Outrasvão para a mesa de cirurgia e ordenam que omédico sugue a desgraçada com umbigo etudo. Mas passa-se um tempo e ela volta, adesaforada sempre volta.

Quem não tem a sua? Eu conto quem:umas poucas sortudas com menos de quinzeanos. Umas poucas malucas que acordam,almoçam e jantam na academia. Algumasmais malucas ainda que não almoçam nemjantam. As que nasceram com crédito pré-

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aprovado com Deus. E aquelas que nuncaengravidaram, lógico.

As que ignoram totalmente sobre o queestou falando são poucas, não lotariam umasala de cinema. Já as que sabem muito bemquem é a protagonista desta crônica (poisalojam a infeliz no próprio corpo) povoam oresto da cidade, estão por toda parte. Batasdisfarçam, vestidinhos disfarçam, biquíniscolocam tudo a perder.

Nem todas a possuem enorme. Cruzes,não. Às vezes é apenas uma protuberância,uma coisinha de nada, na horizontal nem serepara. Aliás, mulheres acordam mais bem-humoradas do que os homens porque demanhã cedo somos todas magras. Todastábuas. Todas retas. Passam-se as primeirashoras, no entanto, e a lei da gravidade surgepara dar bom dia. Lá se vai nosso humor.

Falam muito de celulite. Falam deseios, de traseiros, de rugas, de pés grandes,de falta de cintura, de caspa, de tornozelos

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grossos, de orelhas de abano, de narizes de-sproporcionais, de ombros caídos, de muitacoisa caída. Temos uma possibilidade infin-ita de defeitos. Mas ela é que nos tira doprumo. Ela é que compromete nossa sil-hueta. Ela é que arrasa com a nossa elegân-cia. Ela. Nem ouso pronunciar seu nome.Você sabe bem quem. Se não sabe, sorte sua:é porque não tem.

21 de janeiro de 2007

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PEQUENAS CRIANÇAS

O problema de sair de férias é que podemosretornar com um assunto já comentado poroutros colunistas, mas vou correr o risco edizer, eu também, que achei uma pena que ofilme Pecados íntimos tenha merecido umtítulo tão nada a ver. O filme não faz pré-jul-gamentos, e a palavra pecado já caducou. Émuito provincianismo atrair bilheteria comtítulos apelativos. Melhor seria dar um votode confiança ao público, que é capaz de com-preender títulos mais sutis, como o originalLittle Children. “Criancinhas” resume comperfeição o que vemos na tela.

Um homem e uma mulher se conhecemnum parquinho, onde levam os respectivos

filhos para brincar. Cada um está acomodadonum casamento protocolar, sem alegria, semtesão. Papo vai, papo vem, o romance entreeles começa. Além desse affair, o filmemostra também uma relação entre mãe efilho – sendo que o filho é um pedófilo recémsaído da prisão e que apavora o bairro ondevive – e o desalento de um falso moralistaque tem acessos de carência dignos de umgarotinho de cinco anos.

Só que os personagens do filme nãotêm cinco anos. São adultos precisando lidarcom seus medos e desejos, adultos cedendo apequenas e grandes tentações, adultosfazendo escolhas sem garantia de nada.

Mais: adultos que olham por baixo damesa para ver se o marido está acariciandoas pernas da convidada do jantar. Adultosque sonham em fazer manobras radicais noskate. Adultos que tramam uma fugaromântica e deixam bilhetinhos de

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despedida. Adultos que acham muito naturalser monitorados pela sogra. Adultos quechoram sentados no meio-fio da calçadaporque se sentem traídos pelo melhor amigo.

Adultos?Sim, adultos. Pelo menos é esse o termo

usado para identificar aqueles que trabal-ham, que dirigem, que votam, que são re-sponsáveis pelos seus atos e que, aparente-mente, têm a cabeça no lugar.

O filme me despertou uma certa com-paixão. Por mais que eu aplauda o que con-vencionamos chamar de “maturidade”, nofundo acredito que somos, todos nós, cri-anças que cresceram mais em estatura doque emocionalmente, crianças que foramempurradas para o meio do palco e que pre-cisam ter suas falas na ponta da língua, con-forme foram ensaiadas desde a primeira in-fância. Somos homens e mulheres na se-gunda, terceira, quarta, quinta infância, nos

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apegando aos nossos parcos conhecimentose às nossas inúteis experiências para tentarnão errar demais. Somos crianças quechoram escondidas no banheiro, que tomamatitudes insensatas, que dizem o que nãodeveriam ter dito e que, nos momentos dedesespero, gostariam de chamar um “adulto”para resolver a encrenca em nosso lugar.Mas que adulto? Deus? Ele tem mais do quese ocupar. Resta-nos chorar no meio-fio dacalçada mesmo, caso não fosse um vexame.

Os maduros têm certezas. Os madurosnão vacilam. Os maduros são pragmáticos.Os maduros ganham dinheiro. Os madurosassumem seus atos. Os maduros sabem oque dizer e como se comportar. Os madurossó fraquejam diante da orfandade – perderpai e mãe é perturbador em qualquer fase davida –, mas logo reassumem o controle eseguem em frente. Não se espera outra coisadeles. Se tentarem fugir de suas

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responsabilidades, serão considerados pess-oas instáveis e infantis. E quem tolera serconsiderado infantil a esta altura?

Então a gente presta atenção em volta,imita nossos pais e amigos, se apega a um ro-teiro conhecido, faz um certo teatro, tudopara que não percebam que, em silêncio e nasolidão, somos apenas crianças grandes.

4 de março de 2007

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PRISIONEIROS DOAMOR LIVRE

Gosto de ler biografias, ter acesso aosbastidores da vida de alguém que admiro,contada de forma literária, sem o veneno dafofoca: é a investigação longa e precisa sobreum ser humano que, a despeito das virtudesque o tornaram uma celebridade, tambémpossui fraquezas e às vezes escorrega comotodos nós. A última que li foi a do casalSartre e Simone de Beauvoir. Em Tête-à-Tête(mais de 450 páginas, editora Objetiva),ficamos sabendo dos pormenores de como seconheceram e como administraram as

diversas outras relações amorosas quetiveram até o cerrar das cortinas.

Sempre fui uma entusiasta da produçãointelectual dos dois, mas admito que, anosatrás, ao ler as 304 cartas que Simone deBeauvoir escreveu para seu amante amer-icano (Cartas a Nelson Algren, editora NovaFronteira), fiquei desconcertada com achatice da autora. Que mulherzinhamaçante. Em estado de paixão, ela me pare-ceu sufocante, manipuladora e por vezes atéindelicada. Só quando se desapaixonava éque voltava a ser a feminista brilhante quetanta contribuição deu ao mundo.

Agora, lendo Tête-à-Tête, tive umasensação parecida. Foi com o entusiasmo desempre que mergulhei no pano de fundo dolivro: as discussões em salas de aula da Sor-bonne, as idéias que nasceram nos cafés deSaint-Germain e principalmente a fascinanteteoria defendida por Sartre a respeito da

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liberdade: para ele, cada ser humano deveriaassumir 100% as rédeas da sua vida. Tudo éfruto da nossa escolha, até mesmo quem ire-mos amar e que tipo de qualidades e defeitosiremos desenvolver em nós. Em sua opinião,não existe isso que chamamos de “a ordemnatural das coisas”, e por isso ser livre parecetão assustador. Sartre optou por não fugir dasua liberdade como muitas pessoas fazem,não admitiu ser regido por códigospreestabelecidos e construiu uma vida à suamaneira.

Teoricamente, acho instigante e excit-ante. Na prática, porém, é preciso ter cuid-ado para que isso não vire uma neura. Sartre,conforme a leitura de Tête-à-Tête avançava,me pareceu um prisioneiro da sua própriaideologia, relacionando-se “livremente” maispara comprovar sua tese do que por afetosreais. Por outro lado, Simone me pareceuuma mulher mais sinceramente envolvida

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com suas paixões, mas era outra prisioneiradestas experiências libertadoras: arranjavamulheres para Sartre e depois caía de camade tanto ciúme e desconcerto. São mentescintilantes, escritores fundamentais para en-tender nosso século, mas quanto ao amorlivre, não me pareceram tão livres assim. Suaprofunda dedicação ao movimento existen-cialista, aos estudos e às pesquisas lhes de-ram a projeção merecida, mas lhes roubarama chance de desenvolver uma vida amorosamais espontânea. Mais hippie, se me per-mitem uma comparação incomum.

No final das contas, fiquei com a im-pressão de que liberdade é um conceito relat-ivo: quem escolhe ser “mulher de um homemsó” não é menos livre do que a mulher queintenciona ter o máximo de relações pos-sível. Todas as teorias são claustrofóbicas,pois a tendência é sermos engolidos por elase nos vermos obrigados a seguir um rumo

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que talvez não seja condizente com nossaverdadeira inclinação emocional. Seguirnosso desejo é o que nos torna livres, e odesejo é variável, mutante, inclassificável –não pode ser considerado moderno ou anti-go, é o que é.

E mesmo que consigamos obedecerapenas aos nossos instintos mais naturais,com toda a liberdade que isso implica, aindaassim pagaremos um tributo ao sofrimento,simplesmente porque viver, seja da maneiraque for, nunca é fácil.

1º de abril de 2007

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DO TEMPO DAVERGONHA

A gente costuma dar referências do “nossotempo”, como se o nosso tempo não fossehoje. Sou do tempo do tênis Conga, daFamília Dó-Ré-Mi, da Farrah Fawcett, doMinuano Limão, e essa listagem alonga a es-trada atrás de nós, faz parecer que a gente éde outro século. E somos.

Eu sou do tempo de tanta coisa, inclus-ive do tempo em que as pessoas sentiam ver-gonha. Você já deve ter reparado que ver-gonha caiu em desuso, a nova geração nãodeve nem saber do que se trata. Mas a tiaaqui vai explicar.

Vergonha é o que você sente quandocoloca em risco sua dignidade. Por exemplo,quando pegam você mentindo. Ou quandoflagram você fazendo uma coisa que haviajurado não fazer. Às vezes a vergonha vem deatos corriqueiros, como um tropeção nomeio de uma passarela ou uma gafecometida num jantar. Isso não tem nada degrave, porém, se fez você sentir vergonha,sinal de que você planejava acertar, o que ésempre bom.

Vergonha de ser apresentada a alguém?De falar em público? Também é bobagem,ninguém espera de nós perfeição. Isso éapenas timidez. Será que quem nasceu de-pois dos anos 80 sabe o que é timidez? Bom,timidez é um certo recato, é quando umapessoa não faz questão nenhuma de apare-cer. Não ria, isso existe.

Mas voltando ao que nos trouxe aqui.Vergonha é o que você deveria sentir quandofaz algo errado. É o que deveria sentir

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quando se desresponsabiliza pelo que estádesmoronando à sua volta. Vergonha équando você se habilita para uma tarefa im-portante e descobre que não tem competên-cia para executá-la. Vergonha é o que sesente quando interferimos na vida dos out-ros de forma desastrosa. Vergonha é o quedeveria nos impedir de praticar hábitos apar-entemente inocentes, como chegar atrasadono teatro quando a peça já começou, e nosimpedir de coisas bastante mais sérias, comoroubar.

E há a vergonha sem culpa, a vergonhapelo que representamos coletivamente. Eu,ao menos, senti muita vergonha quando umaturista estrangeira, depois de ficar dois diasconfinada num aeroporto brasileiro, semconseguir embarcar, perguntou a umrepórter o que significava o lema “ordem eprogresso” na nossa bandeira.

Muitos políticos (pra citar uma classetrabalhadora aleatória) não possuem

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vergonha. Possuem contas no exterior, as-sessores de marketing, mas vergonha, nen-huma. Posam para fotografias ao ladodaqueles cuja mãe já xingaram e aceitamapoio de adversários que já lhes puxaram otapete. Quando se trata de fazer alianças, apolítica, de um modo geral, revela-se umbordel, e perdão se estou ofendendo asprofissionais do ramo. É bem verdade querestam dois ou três que possuem a decênciade dizer: prefiro não me eleger a jogar no lixomeus princípios. Mas para se posicionar as-sim, é preciso ser do tempo da bala azedinhavendida em lata, do tempo do “Boa noite,John Boy”, do tempo dos Novos Baianos, dotempo em que Páscoa significava ressur-reição e do tempo em que existia vergonha,coisa que quase ninguém mais sente, poucoslembram o que é e ninguém se esforça parareavivar.

8 de abril de 2007

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NUNCA JAMAIS

A gente sabe direitinho o que ainda gostariade fazer na vida. Os sonhos são variados: unsnão querem morrer antes de conhecer Paris,outros desejam um dia montar sua própriapousadinha, há aqueles que prometeram a simesmos correr uma maratona até o final e osque humildemente gostariam de ter umaLouis Vuitton que não fosse de camelô. É aturma do “hei de conseguir”, “vou lutarpara”, “chegarei lá”.

Eu, que já fui mais longe do que esper-ava, tenho o costume inverso: listar as coisasque não farei nem sob decreto. Nunquinha.Meu top ten de não-desejos inclui, entre out-ros, tudo o que envolve altura: saltar de

pára-quedas, bungee jump, parapente. Nemamarrada, ainda que solta é que não iriamesmo. Nem sedada. Fora de cogitação.

Até aí, imagino que eu tenha compan-hia, não é um medo vergonhoso. O que meenvergonhava era outra coisa que haviajurado jamais fazer em vida. Para umagaúcha, um acinte: prometi a mim mesmaque ninguém me veria montar num cavalo.Tudo porque aos oito anos eu subi num an-imal que disparou feito um míssil e por pou-co não me deu o mesmo destino do atorChristopher Reeve. Trauma insolúvel. Estavadecidido: cavalgada não iria entrar na minhabiografia de jeito nenhum. Era no que acred-itava até sábado passado.

Tenho fotos para provar. Testemunhas.Até um diploma de cavaleira ganhei. Estiveem São Francisco de Paula, na char-mosíssima Pousada do Engenho (os que son-ham em ter uma pousada um dia, inspirem-se nessa) e acabei sendo convencida a fazer

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um passeio ali perto, numa fazenda onde umsimpático casal de alemães promove cavalga-das para amadores e profissionais. Um em-polgante passeio de três horinhas.

Três horas???Não me pergunte como, mas quando

percebi, estava em cima do lombo do bicho,numa altura que para mim era semelhante ade uma montanha. Vou cair, Jesus Cristo. Oeqüino deu um passo, e depois outro, e maisoutro, e quando vi eu estava trotando lépidae faceira feito criança com brinquedo novo.Tão à vontade que por pouco não empinei obicho, como faz o Beto Carrero. Eu, quejurava que nunca, jamais, nem morta, sópassando por cima do meu cadáver, descobrique nasci para andar a cavalo.

Exageros à parte, uma coisa aprendicom essa brincadeira. Isso de dizer quenunca-jamais é uma negação à vida. Até queeu experimente, não posso ter certeza denada, nem mesmo sobre esta criatura que

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me parece tão familar, que sou eu mesma.Meu top ten de não-desejos virou top nine, equem sabe eu consiga eliminar outros medoscom o tempo.

Mas pára-quedas, nunca, jamais, nemnessa vida, nem na outra.

8 de abril de 2007

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OH, LORD!

Liguei o rádio do carro e santa nostalgia: es-tava tocando uma música da Janis Joplinque marcou minha infância, mesmo quenaquela época eu não entendesse quase nadade inglês – não que entenda muito hoje.Você deve lembrar, é um clássico, começadizendo: “Oh, Lord, won’t you buy me a Mer-cedes Benz? My friends all drive Porsches, Imust make amends”, que significa mais oumenos: “Oh, Senhor, não quer me comprarum Mercedes Benz? Todos os meus amigosdirigem Porsches, eu preciso compensar.” Eseguia nessa irônica e provocativa precepedindo nem paz, nem amor, e sim uma tevê

a cores e noitadas. Se Ele a amasse mesmo,não a deixaria na mão.

Oh, Lord, quantas pessoas, hoje, nãoestão por aí também rezando por uma LouisVuitton original de fábrica e por uma poder-osa tevê de plasma? Elas abrem as revistas eestão todos tão melhores de vida do que elas,como ser feliz sem igualdade de condições?Dê a essas pessoas o que elas pedem, Senhor,é só fazê-las ganhar um sorteio, uma rifa.Imagine a dificuldade que o Senhor teriapara atendê-las caso elas pedissem ummundo mais acolhedor, menos agressivo,mais sensato, o trabalhão que iria dar.

Oh, Lord, reconheça a inocência dequem lhe pede uma casa na praia, umchalezinho na montanha, ou mesmo um beloapartamento em bairro nobre, o Senhor sabeque essas pessoas não foram treinadas parase satisfazerem com o que têm, mesmo quetenham tanta coisa, como família, paz de

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espírito, um emprego decente, mas isso nãoconta, isso não enche barriga de ninguém.

Oh, Lord, ninguém anda rezando porfé, pela saúde do vizinho, para resistir aosapelos consumistas, nem mesmo parasimplesmente dizer “Obrigada, Senhor”. Nãose faz mais esse tipo de concessão: afinal,obrigada por quê? Eles querem ser convida-dos para as festas. Eles querem melhorar.Compense-os com um relógio de grife, umacorrente de ouro, um celular bem fininho euma câmera digital, eles não podem com-prar, mas o Senhor pode, o Senhor temcrédito em qualquer loja, o Senhor só precisafazer abracadabra e tudo se resolve.

Janis Joplin gravou essa música em1970. Nos últimos 37 anos, o número desúplicas estapafúrdias segue aumentando equase ninguém mais lembra de agradecer omistério da existência, o poder transform-ador dos afetos, a liberdade de escolha, ocontato com o que ainda nos resta de

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natureza, o encanto dos encontros, a poesiaque há numa vida serena, a alma nossa decada dia, essas coisas que parecem tão obsol-etas, e pelo visto são. Oh, Lord, desça daí,faça alguma coisa, que aqui embaixo tro-caram o abstrato pelo concreto e não demoraestarão pedindo a parte deles em dinheiro.

15 de abril de 2007

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O VIOLINISTA NOMETRÔ

Aconteceu em janeiro. O jornal WashingtonPost convidou um dos maiores violinistas domundo, Joshua Bell, para tocar numa es-tação de metrô da capital americana a fim detestar a reação dos transeuntes. Desafioaceito, lá foi Bell, de jeans e camiseta, às 8 damanhã, o horário mais movimentado da es-tação, para tocar no seu Stradivarius de 1713(avaliado em mais de três milhões dedólares) melodias de Bach e Schubert.

Passaram por ele 1.097 pessoas. Setepararam alguns minutos para ouvi-lo. Vintee sete largaram algumas moedas. E uma

única mulher o reconheceu, porque havia es-tado em um de seus concertos, cujo valormédio do ingresso é cem dólares. Todos osoutros usuários do metrô estavam compressa demais para perceber que ali, a doismetros de distância, tocava um instru-mentista clássico respeitadointernacionalmente.

Não me surpreende. Vasos da dinastiaChing, de valor incalculável, seriam consid-erados quinquilharias se misturados aquaisquer outros numa feira de artesanatoao ar livre. Uma jóia do Antônio Bernardocorreria o risco de ser ignorada se fosse ex-posta numa lojinha de bijuterias, umagravura de Roy Lichtenstein seria consid-erada amadora se exposta numa mostra uni-versitária de cartoons, e ninguém pagariamais de quarenta reais por uma escultura domestre Aleijadinho que estivesse misturada aanjos de gesso vendidos em beira de estrada.

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Desinformados, raramente conseguimosdestacar o raro do medíocre.

Só é possível valorizar aquilo que foiestudado e percebido em sua grandeza. Se eunão me informo sobre o valor histórico deuma moeda que circulava na época dos oto-manos, ela passa a ser apenas uma pequenaesfera enferrujada que eu não juntaria dochão. Se eu não conheço o significado queteve uma muralha para a defesa dos grandesimpérios, ela vira apenas um muro passívelde pichação. Se não reconheço certos traçosartísticos, um vitral de Chagall passará tãodespercebido quanto o vitral de um banheirode restaurante. Podemos viver muito bemsem cultura, mas a vida perde emencantamento.

Essa história do violinista demonstraque não estamos preparados para a belezapura: é preciso um mínimo de conhecimentopara valorizá-la. E demonstra também quetemos sido treinados para gostar do que todo

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mundo conhece. Se uma atriz é muitocomentada, se uma peça é muito badalada,se uma música é muito tocada no rádio,estabelece-se que elas são um sucesso e nin-guém questiona. São consumidas mais pelainsistência do que pela competência, en-quanto que competentes sem holofotes pas-sam despercebidos.

Gostaria muito de ter circulado pela es-tação de metrô em que tocava Joshua Bell.Não por admirá-lo: pra ser franca, nuncaouvi falar desse cara. O que eu queria era te-star minha capacidade de ficar extasiada semestímulo prévio. Descobrir se ainda consigodestacar o raro sem que ninguém o anuncie.Tenho a impressão de que eu pararia paraescutá-lo, mas talvez eu esteja sendootimista. Vai ver eu também passaria apres-sada, sem me dar conta do tamanho do meuatraso.

22 de abril de 2007

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MATO, LOGO EXISTO

Não é um bom assunto para domingo, recon-heço. Mas estamos sempre tão ocupados nosdias da semana que não custa reservar dezminutinhos do nosso dia de folga pra refletirum pouco sobre que espécie de adultos estásendo formada aqui e no mundo. O sul-coreano que no dia 16 de abril matou 32pessoas dentro de uma universidade americ-ana é um exemplo – a esta altura, já antigo,mas serve. Era um doente, e qual a doençadele? Solidão, depressão. Não se podechamar de um caso raro.

Um dia depois da tragédia, entrei numasala de bate-papo da internet para ler os

comentários sobre esse episódio. Até então,não estava tão perplexa – é um crime recor-rente nos Estados Unidos. Mas ao me de-parar com a reação de alguns brasileiros damesma faixa etária do assassino, aí sim, es-tarreci. Nunca vi um conjunto de idéias tãopreconceituosas, agressivas e mal escritas.Era o festival da ignorância. Uma amostra damiséria cultural, miséria intelectual e misériaafetiva que caracteriza os novos tempos. Nin-guém discutia com civilidade, os comentári-os eram belicosos e ferozes, e quando discor-davam uns dos outros aí é que a baixaria ro-lava solta. Pensei: eles estão protegidos pelovirtualismo, mas estivessem frente a frente ecom uma arma ao alcance da mão, quemgarante que não teriam seu dia de ChoSeung-Hui?

Esses garotos e garotas possuem a re-beldia natural da idade, mas é uma rebeldiasem argumento, uma rebeldia vinda do

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desespero. Eles cresceram assistindo a umaquantidade exagerada de violência na tevê eno cinema, idolatram músicos que cantamcoisas como “eu escrevo minhas próprias leiscom a morte”, têm pouco contato com o pai ea mãe, mantém amizades de faz-de-conta esão soterrados por uma avalanche de inform-ações que mal conseguem filtrar. Tudo issonuma sociedade cada vez mais competitiva,em que a ordem é aparecer a qualquer custo.A felicidade há muito que deixou de se con-centrar na trinca amor-saúde-e-dinheiro:agora é sexo-popularidade-e-muito-muito-muito-dinheiro. Quem tem uma vida mod-esta, se frustra: conclui que é uma pessoaque não existe, que não conta, que não vale.E resolve dar o seu recado na marra.

Impossível este relato não soardramático, mas irreal não é. A vida mudou. Etemos alguma responsabilidade nisso, nãosomos apenas vítimas, mas cúmplices. Está

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mais do que na hora de ficarmos mais pertode nossos filhos. De oferecermos a eles livrose música boa, darmos muito carinho e elogio,ficarmos de olho nos lugares onde eles vão ecom quem saem – um pouco de controle nãofaz mal a ninguém. É recomendável tambémnão cultuar revistas que vivem de fofoca, ri-dicularizar a fixação pela estética e mostrar aeles que os super-heróis de verdade costum-am ser mais discretos.

Porém, discrição é uma coisa, fuga éoutra. É preciso chamar essa garotada propapo quando estiverem silenciosos demais,ajudá-los a compreender essa loucura aí fora(que nem nós compreendemos direito), levá-los pra viajar quando der, colocá-los em con-tato com hábitos mais simples e escutá-losmuito, não importa sobre que assunto.

É guerra: a agressividade e a misériaexistencial que caracterizam a nossa épocaprecisam ser enfrentadas não só com Prozac,

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mas com cultura e afeto. A grande maioriados adolescentes que aí estão não conseguiráganhar fortunas, não vai virar artista nemdoutor, não vai casar com homens com bar-riga de tanquinho nem com mulheres queautografam a Playboy: eles vão ter uma vidanormal. E se o normal seguir não servindopra eles, pobres de todos nós.

29 de abril de 2007

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NOTÍCIAS DE TUDO

Alguém de um site me ligou outro dia prafazer uma pesquisa: perguntou se eu achavaque o namoro da Íris e do Diego iria durar.De quem?? São parentes meus? Pra não serdo contra, respondi que sim, que eles vão en-velhecer juntos, ai deles se não.

O Brasil tem um sem-número de revis-tas que circulam por semana. Revistas de in-formação, de variedades, de fofoca, de moda,de comportamento, sem contar as especializ-adas, como as náuticas, gastronômicas,científicas ou esotéricas. Quantos são os pro-gramas de tevê, contando os canais porassinatura? Também não é pouca a quan-tidade de colunistas que, como eu, tentam

tirar da cartola algum assunto que preste. Nomundo estão acontecendo, neste instante,epidemias, tragédias, assaltos, provas esport-ivas, fenômenos climáticos, pré-estréias, re-formas políticas, e eles não serão suficientespara manter os veículos de comunicaçãoocupados: sobrarão páginas para serempreenchidas. Espaço é o que não falta para asnotícias relevantes e também para as irrelev-antes, e são essas que estão nosendoidecendo.

Impossível assimilar a avalanche de in-formações que recebemos todo dia. A gentenão armazena nem dez por cento. O ataque émaciço e constante, não tem para onde fugir.Eu, que faço parte da artilharia, nem por issodeixo de me questionar: será que não es-tamos indo além do limite aceitável? Inform-ação é fundamental, mas sem overdose.

A impressão que tenho é que a inform-ação que recebemos é tanta, mas tanta, quenos imobiliza. Só de ler as repetitivas

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matérias sobre os benefícios do exercíciofísico me dá cansaço, é como se eu tivessecaminhado quilômetros. Somos informadossobre todas as bandas de rock do mundo eno instante seguinte já não lembramos quemé quem. Gastamos horas nos atualizando, aomesmo tempo em que geramos muito poucanotícia sobre nós mesmos. O que você temfeito?

A população do planeta está em plenaatividade, todos trabalhando, planejando,comemorando, matando, sobrevivendo, ummundo no gerúndio, sem interrupções, e agente consumindo tudo isso, soterrados portanta notícia, por tanto apelo, por tantaexigência de opinar, concordar, discordar.Você poderia estar ouvindo uma músicaagora, olhando pro céu. Você poderia estarregando suas plantas, poderia estar observ-ando o barulho da chuva, poderia estar pre-parando um chá ou lendo um belo poema emvez desses meus lamentos. Não, não me

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abandone, mas deixo aqui uma perguntinha:você tem recebido notícias de si mesmo?

6 de maio de 2007

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SIMPATIA PELO DIABO

“Sympathy” é uma daquelas palavras ingle-sas que nos traem, parece significar simpa-tia, mas é mais do que isso, significa com-paixão, solidariedade e, em alguns casos,condolências. Os Rolling Stones botaram apalavra na roda quando gravaram “Sym-pathy for the Devil”, em contraponto aosBeatles, que se julgavam mais famosos queJesus Cristo. Os Stones queriam justamenteo contrário: fincar pé no lado oposto do céu.Eu, beatlemaníaca devota, nesse aspecto rezocom a turma do Mick Jagger: também acho odiabo mais quente.

Assim como não há paraíso que nãoseja um pouco monótono, não há inferno que

não seja um pouco excitante. Ou muito excit-ante. O diabo tenta, o diabo incomoda, o di-abo perturba, o diabo veste Prada. Osbonzinhos são ótimos, mas têm um guarda-roupa neutro demais.

Oh, santa imprudência. O papa quasechegando aqui e eu soltando charme paraLúcifer. Eu sei, eu sei, sou a primeira apraguejar contra os tempos diabólicos queestamos vivendo e agora me saio com esseendeusamento de Satanás, mas hoje querobrincar, e para brincar é preciso humor,coisa que o diabo tem mais do que o seuoponente.

O demônio é criativo, é sexy, é sur-preendente e pode ser um doce, quando bemtratado. Ao menos aqui em casa é assim.Quando meu namorado se atrasa, eu não orecebo com um “Por onde andaste, SantoDeus?”. Muito dramático. Eu pergunto:“Onde é que tu tava, diabo?”. Não fica maisinformal e carinhoso?

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Basta de provocações, tem gente queleva isso a sério. E se é pra falar sério, vamoslá: não é uma bobagem colossal tentaremtrocar o nome de uma queda d’água, nasCataratas do Iguaçu, só porque ela se chamaGarganta do Diabo? Há seis anos que algunsreligiosos tentam rebatizá-la com o nome an-terior, Salto da União, que é insosso, não temapelo turístico e nem provoca calafrios. Onome Garganta do Diabo é disparado mel-hor. Surgiu por causa de uma antiga lendaindígena que contava sobre uma cobra gi-gante que perseguia um casal de namorados.Não sei o que isso tem a ver com quedad’água, mas já é uma história. Maliciosa,aliás, a cara do você-sabe-quem.

Se abolirem o nome Garganta do Di-abo, daqui a pouco vão querer trocar tam-bém o nome da Praia do Diabo, aquelapequeninha que fica à esquerda do Ar-poador, e da impactante Caverna do Diabo, a280 quilômetros de São Paulo. A troco de

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que essa perseguição? Deixem o diabo empaz.

O demo não é de todo mau. Sempre foichegado às artes. Fazia visitas periódicas aPicasso, bebia com Bukowski e freqüentava ocorpo de algumas beldades como MarylinMonroe e Brigitte Bardot, nos áureos temposem que ter o diabo no corpo não era apenasforça de expressão. O diabo nos deu o blues,o diabo toca guitarra. Ter inspirado JamesBrown, por exemplo, deveria atenuar umpouco sua culpa. Eu, admito, simpatizomuito com ele. É verdade que já me deumaus conselhos, nem todos segui. Nem to-dos. Mas hoje não consegui evitar. Ele mepossuiu e me assoprou: “A Garganta do Di-abo, em Foz do Iguaçu, é um dos maiores es-petáculos da natureza e não vai perder o en-canto se trocar de nome, mas que vai seruma babaquice, vai”. Cartas diretamentepara o próprio.

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AS SUPERMÃES E ASMÃES NORMAIS

Minha mãe me emprestou um livro mesesatrás. Chama-se O que aprendi com minhamãe, organizado por Cristina Ramalho, quetraz 52 depoimentos de personalidades a re-speito de suas gloriosas genitoras. Gloriosasmesmo. Há aquelas que criaram os filhossem ter o que dar de comer, as que criaramsem a presença do pai, as que criaram à dis-tância, as que criaram filhos que não nas-ceram do corpo delas. Mães sortidas, de tudoque é tipo e jeito. Todas heróicas, todas fas-cinantes, todas possuidoras de garra eternura, todas conhecedoras de truques

infalíveis para fazer seus filhos se tornarempessoas bacanas. E eles se tornaram. Os de-poimentos são de Arnaldo Jabor, ContardoCalligaris, Maria Adelaide Amaral, MartaGoes, Soninha Francine, Supla, Cleyde Yá-conis e outros vitoriosos.

Ainda que não seja um livro de humor,dei algumas gargalhadas por causa dele. Nãodurante a leitura, que é realmente tocante,há relatos que comovem. Ri muito foi ao de-volver o livro para minha mãe. Ela me per-guntou: “E então, o que você achou?”.Respondi: “Maravilhoso. Só que estoupensando em me atirar do décimo andar.Descobri que sou uma droga de mãe.” E ela:“Me espera que vou saltar junto”.

Já escrevi mais de uma crônica sobreminha mãe. Ela sabe que não tem motivospara se julgar severamente, é uma mulhersingular, não há quem não a admire e adore,incluindo seus dois filhos: meu irmão e eu.

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Mas se um dia minhas filhas tiverem que es-crever sobre mim, pobre delas. Não que euseja uma mãe relapsa, tirana, fria e des-apegada. Longe disso. Só que sou uma mãe...oh, dor... uma mãe comum.

Há quase dezesseis anos no ramo damaternidade, com duas experiências bem su-cedidas até aqui, me pergunto: o que fiz quemerecesse ficar como exemplo para a poster-idade? Ok, passei noites em claro, troqueimuitas fraldas, levei e busquei do colégioumas três mil vezes – e ainda sigo na função.Fui a festinhas de aniversário barulhentas,passei fins de semana em pracinhas, ensineia andar de bicicleta, levei em livrarias ecinemas, fiz vários curativos, impus limites,disse não quando era preciso e até quandonão era preciso. Nada que uma mãe médiatambém não faça.

O que elas aprenderam comigo? A de-volver o que não é seu, a dizer a verdade, a

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ser gentil, a não depender demais dos outros,a aceitar que as pessoas não são todas iguaise que isso é bom. Nem mesmo as mães sãotodas iguais, contrariando o famoso ditado.Há as que se sacrificaram, as que abrirammão de sua felicidade em troca da felicidadedos filhos, as que mantiveram casamentoshorrorosos para não fazê-los sofrer com umlar desfacelado, as que trabalharam insana-mente para não faltar nada em casa, as quesangraram por dentro e por fora para mantera família de pé.

Eu não fiz nada disso. Por sorte, a vidanão me exigiu nenhuma atitude sobre-hu-mana. Fui e sigo sendo uma mãe bem nor-malzinha. Que acerta, que erra, que faz omelhor que pode. Em comum com as super-mães, apenas o amor, que é sempre ines-gotável. Mas medalha de honra ao mérito,não sei se mereço. Não me julgo sacrificada etampouco sublime. Sou uma mulher que teve

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a sorte de ter a Julia e a Laura, uma mulherque se equilibra entre dúvidas e certezas eque consegue tirar um saldo positivo dessaadorável bagunça.

Então, deixo aqui registrado para todasas mães: feliz dia. Tanto pra você que é superquanto pra você que não é cem por cento,mas também faz o melhor que pode, já que onosso melhor, por menor que seja, sempre émuito.

13 de maio de 2007

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A PIOR VONTADE DEVIVER

Todos são tão compreensivos, aceitam tãobem suas escolhas, torcem por tudo o quevocê faz, não é mesmo? Desde que você façao que está no script. Que siga o que foi de-terminado no roteiro, aquele que foi escritosabe-se lá por quem e homologado no in-stante mesmo em que você nasceu. Mas equem não quiser seguir esse script?

Em dezembro próximo, serão com-pletados trinta anos da morte da escritoraClarice Lispector, que entendia de subver-sões emocionais. Fui convidada a participarde um evento que a homenageia, em Porto

Alegre, e em função disso andei relendo al-gumas de suas obras e encontrei no contoAmor, do livro Laços de família, uma de min-has frases prediletas. Assim ela descreve osentimento da personagem Ana: “Seucoração enchera-se com a pior vontade deviver”.

Ela é complexa, angustiante, subjetiva eintensa. Ela, a pior vontade de viver. A quenão está disposta a negociar com a vontadedos outros.

No entanto, essa que foi chamada de a“pior” vontade pode ser também uma vont-ade genuína e inocente. É a vontade da cri-ança que ainda levamos dentro, entranhada.É o desejo de açúcar, de traquinagem, defazer algo escondido, de quebrar algumas re-gras, de imitar os adultos. A “pior” vontade écuriosa, quer observar pelo buraco dafechadura e depois, mais ousadamente, abrira porta e entrar no quarto proibido. A “pior”vontade é a de não se enraizar, não assinar

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contrato de exclusividade, não firmar com-promisso, não render-se às vontades fixas,apenas às vontades momentâneas, porque asfixas correm o risco de deixar de serem vont-ade para se transformarem em vaidade –como se sabe, há sempre aqueles que se en-vaidecem da própria persistência.

A “pior” vontade não quer ganharmedalha de honra ao mérito, não quer posarpara fotografias, não quer completar bodasde ouro nem ser jubilada. A “pior” vontadenão faz a menor questão de ser percebida, elaquer ser realizada. É quando você sabe quenão deveria, mas vai. Sabe que não será fácil,mas enfrenta. Sabe que tomarão comoagressão, mas arrisca. Aqui, cabe lembrar:apenas se sentem agredidos aqueles que teinvejam.

A vontade oficial, a vontade santinha, aque não causa incômodo é a outra, aaprovada pela sociedade, a que não leva emconta o que vai no seu íntimo, e sim a

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opinião pública. É a vontade que todos nós,de certa forma, temos de mostrar para osoutros que somos felizes, sem saber que paraconseguir isso é preciso, antes, ter a “pior”vontade, aquela que faz você descobrir queser feliz é ter consciência do efêmero, ésaber-se capaz de agarrar o instante, é lidarbem com o que não é definitivo – ou seja,tudo.

É com essa “pior” vontade de viver quevocê atrai os outros, que seu magnetismocresce, que seu rosto rejuvenesce e que vocêfica mais interessante. É uma pena que nemtodos tenham a sorte de deixar vir à tona es-ta que Clarice Lispector chamou de a piorvontade de viver, que, secretamente, é amelhor.

27 de maio de 2007

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AS VERDADEIRASMULHERES FELIZES

Acabo de ler um livro de Eliette Abecassis,uma francesa, que eu não conhecia. O nomeda obra, no original, é Un heureux événe-ment, que pode ser traduzido para “Um felizacontecimento”, mas é um título irônico,pois o livro trata do fator que, segundo aautora, destrói as relações amorosas: o nasci-mento de um filho. Num tom exagerada-mente desesperado, a personagem narra ofim do seu casamento depois que dá à luz.Concordo que a chegada de uma criançamuda muita coisa entre o casal, mas a escrit-ora carrega nas tintas e cria um quadro de

terror para as mães de primeira viagem. Se onascimento de um filho é sempre desconcer-tante, é preciso lembrar que é, ao mesmotempo, uma emoção sem tamanho. Deminha parte, só tenho bons momentos a re-cordar, nada foi dramático. Mas mesmo que,por experiência própria, eu não compartilhecom a desolação da autora, ainda assim eladiz no livro uma frase muito interessante. Aoenumerar as diversas mazelas por que pas-sam as criaturas do sexo feminino, ela meveio com esta: “Os homens são as verdadeir-as mulheres felizes”.

Atente para a sutileza da frase. O queela quis dizer? Que os homens saem pelaporta de manhã e vão trabalhar sem pensarse os filhos estão bem agasalhados ou sefizeram o dever da escola. Os homens nãomenstruam, não têm celulite, não passampor alterações hormonais que detonam o hu-mor. Os homens não se preocupam tanto

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com o cabelo e não morrem de culpa quandonão telefonam para suas mães. Os homenscomem qualquer coisa na rua e o cardápio dojantar não é da sua conta, a não ser quandodecidem cozinhar eles próprios, e isso ésempre um momento de lazer, nunca um de-ver. Os homens não encasquetam tanto, sãomais práticos. Eu, que estou longe de seruma feminista e mais longe ainda de ser ran-zinza, tenho que reconhecer o brilhantismoda frase: os homens são mulheres felizes.Eles fazem tudo o que a gente gostaria defazer: não se preocupam em demasia comnada.

Porque nosso mal é este: pensar de-mais. Nós, as reconhecidas como sensíveis eafetivas, somos, na verdade, máquinas cereb-rais. Alucinadamente cerebrais. Capazes desurtar com qualquer coisa, desde as mínimasaté as muito mínimas. Somos mulheres quenunca estão à toa na vida, vendo a banda

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passar, e sim atoladas em indagações, tent-ando solucionar questões intrincadas, deolho sempre na hora seguinte, no diaseguinte, planejando, estruturando, tentandose desfazer dos problemas, sempre na ativa,sempre atentas, sempre alertas, escoteiras 24horas.

Os homens, mesmo quando muito ocu-pados, são mais relax. Focam no que têm quefazer e deixam o resto pra depois, quandochegar a hora, se chegar. Não tentam salvar omundo de uma tacada só. E a chegada de umfilho, ainda que assuste a eles, como assustaa todos, é algo para se lidar com calma, é umaprendizado, uma curtição, nada de muitocaótico. Eles não precisam dar de mamar deduas em duas horas, não ficam fora deforma, não enlouquecem. Isso é uma dádiva:os homens raramente enlouquecem.

Nós, nem preciso dizer. Nascemosdoidas. Por isso somos tão interessantes, é

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verdade. Mas felicíssimas, só de vez emquando, nas horas em que não nos exigimosdesumanamente. Homens, portanto, sãorealmente as verdadeiras mulheres felizes.Que isso sirva de homenagem aos queridos, esirva pra rir um pouco de nós mesmas, asque se agarram com unhas e dentes ao papelde vítimas porque ainda não aprenderam aser desencanadas como eles.

27 de maio de 2007

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BABACAS PERIGOSOS

Alpha Dog é o nome do filme. Mostra ahistória verídica de um garoto de quinzeanos que foi seqüestrado na Califórnia poruma gangue, como garantia de pagamentode uma dívida que seu irmão traficante nãohonrou. Poderia ser apenas mais umahistória banal sobre a brutalidade dos diasde hoje, mas é tão mais que isso que a gentesai do cinema num desânimo paralisante.

O filme inicia com imagens de criançasem pracinhas, na beira de praia, brincandono pátio, todas esbanjando inocência esingeleza: registro de uma infância sem nen-hum dever além do de se divertir. Tanto no

filme como na vida real, um dia essas cri-anças crescem e as famílias, por preguiça deeducar, resolvem que a vida deve seguir as-sim: sem nenhum dever além do de se diver-tir. O resultado: filhos e pais sem diálogo,compartilhando baseados, bebidas e parceir-os sexuais, todos muito “amigos”, sem hier-arquia nem autoridade. Jovens com facilid-ade de acesso a todos os prazeres, legais ouilegais, sem restrições, sem vigilância. Fes-tas, orgias, doses cavalares de entorpecentes.O vazio preenchendo as 24 horas do dia. Odinheiro e o poder (ilusório) como blo-queadores da consciência. A absoluta falta desentido de estar aqui ou lá ou em qualquerlugar. A única identidade possível é formadaatravés da violência, que eles nem con-seguem dimensionar e entender o que rep-resenta. Violência é só um esporte, uma lin-guagem, um programa, um meio de se auto-afirmar. Matar, trepar, roubar, depredar, dána mesma. É nada.

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De vez em quando, um ou outro mem-bro da gangue é acometido de um ligeiro in-sight. É como se um grilo-falante assoprasseno seu ouvido que a coisa não é por aí. Mascomo buscar um caminho diferente, quem éque se atreve a parar esse trem? Eles nãosabem como. E seguem todos profunda-mente sós, mergulhados no absurdo de umavida à-toa.

O seqüestro, sobre o qual o filme trata,é uma piada. O garoto seqüestrado idolatraos caras que o pegaram e, totalmentedeslumbrado, acha que está vivendo um ex-citante rito de passagem. Cativeiro, para ele,é o lar de onde veio, e algozes são o pai e amãe. Capturado, prova pela primeira vez ogostinho da liberdade.

Ao contrário do que possa sugerir esserelato soturno, achei o filme excelente. Bemdirigido, com um elenco afiado e sem res-valar para a caricatura. E é isso que dói. Nãoé o retrato da vida em outro planeta. O

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planeta do filme é este mesmo, a cidade po-deria ser a nossa, nada me pareceu ex-agerado. Temos sido vítimas não apenas demarginais profissionais, com PhD emmaldade, mas também de garotos mimadosque aceleram seus carrões sem medir con-seqüências, que tomam decisões estúpidaspor pura falta de orientação, que se metemem encrencas pesadas porque, se saltaremfora, temem ser considerados molóides, fra-cos, babacas. Nem percebem que não hábabaquice maior do que fazer pose de ban-dido. Tem muito pirralho aí cometendo as-neiras, como os garotos do filme, atraídospela “estética” das gangues: sua música,vocabulário, roupas. Ninguém mais quer serda turma dos mocinhos, por quê? O pessoaldo bem anda precisando urgentemente deuma boa assessoria de marketing.

3 de junho de 2007

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MANIA DEPERSEGUIÇÃO

Tenho uma amiga que, como boa taurina, édesconfiada à beça. Não importa sua in-teligência, vivência, maturidade – tem umahora em que ela encasqueta que estão lhepuxando o tapete. “Vivian, isso é paranóia”,digo a ela. “Pode até ser, mas aí tem”, ela meresponde.

Se alguém não telefonou como pro-metido, ela nunca cogita que foi um esqueci-mento. É porque, provavelmente, a pessoaestá desapontada com ela, ou indignada comela, ou querendo evitar de lhe contar algoimportante.

Se ela foi a única a não receber o e-mailde alguém da nossa turma, pronto: foi ex-cluída. A remetente explica: “Jurava que vo-cê estava viajando, foi só isso”. Vivian sorri efinge que perdoa, mas por dentro: “Achouque eu estava viajando, sei”.

Se o porteiro esqueceu de entregar acorrespondência, se o garçom trouxe o refri-gerante errado, se o jornal veio sem o ca-derno de classificados, se a cabeleireira pas-sou mal no horário em que Vivian seria aten-dida, ela não pensa que é perseguição: elatem certeza.

Casualidade, fatalidade, coincidência,nada disso faz parte do vocabulário dela. Oacaso, em sua vida, não existe. Tudo temuma explicação, e a explicação é que as pess-oas estão aprontando com ela, ou fugindodela, ou deixando de confiar nela, ouprovocando-a. “Vivian, isso é paranóia”,repito. Ela não me dá ouvidos.

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Como a gente se quer muito bem, elasabe que estou apenas tentando ajudá-la.Procuro, com minha psicologia dealmanaque, fazê-la entender que é muitodesgastante viver assim na defensiva, ar-mada contra o mundo, sempre exigindo queos outros correspondam à sua competência egentileza. Porque tem isto: minha amiga éextremamente competente e gentil, e ai dequem não for, no mínimo, igual ou melhordo que ela. Como a maioria das pessoas sãonormais, ou seja, são lentas, desligadas,apressadas, desatentas, Vivian se exaspera. Éuma obsessiva pela perfeição.

Assim como ela, conheço outras tantaspessoas que acreditam na tese da conspir-ação. É como se o mundo inteiro estivesseempenhado em não deixar a vida dessestaurinos – que também podem ser leoninos,arianos, geminianos e demais nativos dozodíaco – deslanchar. Eu arranco os cabelosquando me deparo com uma criatura assim,

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e pergunto: você acredita mesmo que estãotodos ocupados em passá-la para trás, queeles têm tempo sobrando para isso? Per-gunta besta a minha.

A frase que deveria ser dita soa antipát-ica, mas é o que nossos amigos e parentesque sofrem desse complexo precisariamouvir: você não é tão importante. Ninguémestá tão preocupado assim com você, a nãoser a meia dúzia que lhe ama de verdade.Não há conspiração nenhuma. Se as coisasparecem dar mais errado pra você do quepara os outros, não é porque você atrai gentefalsa ou encrenqueira. Sua desconfiança éque atrapalha o bom andamento da vida.Libere-se dessas neuras e olhe em volta: to-dos têm mais o que fazer do que lhe daratenção o tempo inteiro.

Você teria coragem de dizer isso a umaamiga? Eu já disse, mas cheia de dedos. Vivi-an, por sorte, é bem-humorada e acaba rindodisso tudo. Mas não muda. Vai me matar por

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estar falando dela nesta crônica, ela que nãose chama Vivian coisíssima nenhuma.

24 de junho de 2007

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O VALOR DE UMAHUMILHAÇÃO

Pergunte para minhas amigas do colégio: eufui a Miss Certinha. Sempre justa, pontual,atenta para não fazer nada errado. Meus paisnão tiveram muito trabalho comigo. Aliás, eudiria que nenhum. Um dia cresci e, natural-mente, cometi alguns erros contra mimmesma, mas jamais contra a sociedade. Atéontem, me orgulhava de ser uma exemplarrespeitadora das leis. Mas danou-se: minhareputação foi por água abaixo.

Existe um danado de um sinal detrânsito que sempre me tenta ao pecado. Elediz que é proibido dobrar, mas eu olho e não

vejo o risco que há em dobrar ali, e a verdadeé que me facilitaria muito o caminho paracasa. Mantenho com esse sinal de trânsitouma relação provocativa: quando eu o obed-eço, me sinto uma boa menina, e quando euo desobedeço, me sinto melhor ainda, ao es-tilo Mae West. Não vejo muito sentido naproibição. Bastando que eu respeite a faixade pedestre ali situada – e eu respeito –,aquele sinal torna-se praticamente inútil.Mas eu não sou engenheira de trânsito e osinal permanece fixado naquela esquina,avisando que não se pode fazer o que eu,quando com muita pressa, às vezes faço.

Pois satanás veio ao meu encontrovestindo terno, camisa, sapato e com umfilho na mão. Estava bem ali, esperando eucometer a falta maldita para me apontar ocaminho do inferno. E assim o fez. Me viuagindo errado e se plantou na frente do meucarro aos berros, invocando a fúria de todosos diabos reunidos em confraria. Eu ali,

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sozinha, flagrada em delito indefensável, eele esbravejando sua raiva, fazendo juntargente e me humilhando mais e mais e mais.Pedi desculpas, mas é claro que ele não ouviue muito menos adiantaria. Eu havia colocadoa vida de toda uma comunidade escolar emrisco, foi mais ou menos o que ele alegou.Um vexame para constar da minha biografianão autorizada. A menininha correta que euhavia sido já era, babaus, foi pro espaço.

Aconteceu de verdade. E estou re-latando não para acusar o pai que me humil-hou no meio da rua, e sim para homenageá-lo, porque ele teve razão. Foi explosivo alémda conta, mas teve razão. Ao mesmo tempoem que eu queria sumir de vergonha,pensava: uma bronca bem dada em público émais producente do que uma multa. Nuncafui de implicar com pardais e azuizinhos, eagora muito menos: tudo o que eles fazem éregistrar nossas placas na maior elegância ediscrição. Já um grito bem dado no nosso

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ouvido tem outro efeito. Jamais repetireimeu único e amado ato ilícito, adeus à minhabreve carreira de transgressora. Sentireisaudades.

4 de julho de 2007

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A JANELA DOS OUTROS

Gosto dos livros de ficção do psiquiatra IrvinYalom (Quando Nietzsche chorou, A cura deSchopenhauer) e por isso acabei comprandotambém seu Os desafios da terapia, em queele discute alguns relacionamentos-padrãoentre terapeuta e paciente, dando exemplosreais. Eu devo ter sido psicanalista em outraencarnação, tanto o assunto me fascina.

Ainda no início do livro, ele conta ahistória de uma paciente que tinha um rela-cionamento difícil com o pai. Quase nuncaconversavam, mas surgiu a oportunidade deviajarem juntos de carro e ela imaginou queseria um bom momento para se aproximar-em. Durante o trajeto, o pai, que estava na

direção, comentou sobre a sujeira e a de-gradação de um córrego que acompanhava aestrada. A garota olhou para o córrego a seulado e viu águas límpidas, um cenário deWalt Disney. E teve a certeza de que ela e opai realmente não tinham a mesma visão davida. Seguiram a viagem sem trocar maispalavra.

Muitos anos depois essa mulher fez amesma viagem, pela mesma estrada, dessavez com uma amiga. Estando agora aovolante, ela surpreendeu-se: do lado es-querdo, o córrego era realmente feio epoluído, como seu pai havia descrito, ao con-trário do belo córrego que ficava do ladodireito da pista. E uma tristeza profunda seabateu sobre ela por não ter levado em con-sideração o comentário de seu pai, que a essaaltura já havia falecido.

Parece uma parábola, mas acontece to-do dia: a gente só tem olhos para o quemostra a nossa janela, nunca a janela do

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outro. O que a gente vê é o que vale, não im-porta que alguém bem perto esteja vendoalgo diferente.

A mesma estrada, para uns, é infinita, epara outros, curta. Para uns, o pedágio saicaro; para outros, não pesa no bolso. Boaparte dos brasileiros acredita que o país estámelhorando, enquanto que a outra perdeutotalmente a esperança. Alguns celebram atecnologia como um fator evolutivo da so-ciedade, outros lamentam que as relaçõeshumanas estejam tão frias. Uns enxergamnossa cultura estagnada, outros aplaudem acrescente diversidade. Cada um gruda o nar-iz na sua janela, na sua própria paisagem.

Eu costumo dar uma espiada no ângulode visão do vizinho. Me deixa menos en-clausurada nos meus próprios pontos de vis-tas, mas, em contrapartida, me tira a certezade tudo. Dependendo de onde se esteja posi-cionado, a razão pode estar do nosso lado,mas a perderemos assim que trocarmos de

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lugar. Só possuindo uma visão de 360 grauspara nos declararmos sábios. E a sabedoriarecomenda que falemos menos, que batamosmenos o martelo e que sejamos menos en-fáticos, pois todos estão certos e todos estãoerrados em algum aspecto da análise. É o tri-unfo da dúvida.

15 de julho de 2007

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SHOW FALADO

Li a respeito de um recente show do GilbertoGil em que, depois de muito cantar, elecomeçou a discorrer sobre a vida antes deencerrar a noite com o bis. Mas parece que aplatéia não gostou muito. “Pára de falar ecanta!” alguns gritaram lá de trás. Gil se ir-ritou, lógico. Quem atura grosseria?

Eu estranho é quando o artista não dáum pio. Entra no palco, canta, canta, canta,dá boa noite e vira as costas. Não que sejaobrigatório falar: Chico Buarque, por exem-plo, fez um show fantástico aqui no Sesi e sóo que se ouviu dele foi um obrigado e duasou três frases rápidas e tímidas. Nada de umpapo com o público. Está no seu direito. Mas

prefiro quando o artista abre a guarda e nosseduz com a lábia também. Em geral, sãopessoas inteligentes e espirituosas, que compoucas palavras conseguem tornar o ambi-ente mais aconchegante. Lembro que no úl-timo show do Jorge Drexler, em PortoAlegre, ele apresentava cada nova cançãofazendo observações deliciosas e com issogarantiu a empatia com os gaúchos. Kleiton eKledir costumam desfiar um rosário decausos e fazem a platéia gargalhar. AnaCarolina, mais engajada, costuma ler textosdos escritores que admira. Lobão, no Bour-bon Country, mostrou que sua rebeldia não oimpede de ser engraçado. Semana passadafoi a vez de Olivia Byington, no Studio Clio,provar que tudo fica mais simpático quandohá proximidade. Seu espetáculo “Cada um,Cada um” é um pocket show intimista, ap-resentado como se fosse na sala da casa dela,num espaço para pouca gente. Como boa an-fitriã, ela recebe seus convidados com

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delicadeza e boas histórias. Chega até a com-partilhar pequenos tesouros, como uma letrade música escrita a mão pelo poeta Cacasoou um cartão-postal com a assinatura deTom Jobim encontrado num mercado depulgas, relíquias pessoais que ela permiteque passem de mão em mão durante o show.Impossível não ficar encantado ouvindo elanarrar a origem de certas parcerias, a razãoda escolha de uma determinada música paraconstar do repertório, como é conciliar filhose arte, casamentos e turnês. É quase como sefosse uma entrevista ao vivo, com o artista alina nossa frente se despindo e enriquecendouma relação que geralmente é cultivada nomistério e na distância.

Só que há uma condição para isso sedar de forma agradável para todos: nem oartista, nem o público podem ser chatos.Quem está no palco tem que ter consciênciade que o motivo principal do encontro sãosuas canções: o papinho é só um charme

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extra. Não é hora de contar piada infame,fazer discursos intermináveis, se estenderem assuntos desinteressantes. Quanto aopúblico, que saiba sorrir, aplaudir e usufruir.Nada de pedir “toca Raul” e coisas do gênero.

Gil talvez tenha castigado a platéia comalguma ladainha esotérica, a gente sabe doque o baiano é capaz. Ainda assim, quem fazmúsica de qualidade geralmente tem umaconversa de qualidade, e nada como quebraro roteiro burocrático de um show com algumafeto verbal.

22 de agosto de 2007

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DIVAS ABANDONADAS

Ainda não tive tempo de ler o livro, mas o as-sunto já entrou no meu dia-a-dia através deconversas e solicitações de opinião para pro-gramas de tevê. Divas abandonadas, da jor-nalista Teté Ribeiro, traz o perfil de seteícones do século XX: Marylin Monroe, JackieKennedy, Maria Callas, Tina Turner, IngridBergman, Sylvia Plath e Princesa Diana,mulheres que, em comum, tinham projeção,charme e amores tumultuados. A perguntaque tem sido feita é: por que mulheres bemsucedidas em suas atividades públicas cos-tumam amargar o insucesso em suas vidasprivadas?

Bom, há muita coisa para se debater arespeito. Pra começar, o que é insucesso noamor? Tina Turner levava uns tabefes do seumarido e parceiro musical Ike Turner.Marylin casou três vezes e teve algunsamantes antes de cometer suicídio aos 36anos. Diana casou com um príncipe queamava outra e depois se meteu com unssujeitinhos que vendiam para os tablóides osdetalhes de sua intimidade. Quem está livrede cruzar com um cafajeste e, pior, se apaix-onar por ele?

Ainda assim, resisto em embarcar nahistória de que mulheres poderosas possuemmais chances de serem infelizes no amor. Vaidepender do quanto o amor é realmente pri-oritário em suas vidas.

E mais: ser feliz no amor não significa,obrigatoriamente, casar, ter filhos ecomemorar bodas de ouro. Talvez todas asdivas do livro tenham sonhado com isso em

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algum momento, mas, tivessem concretizadoesse sonho, não há garantia nenhuma de queseriam mulheres mais realizadas. Todas elastinham uma rotina dinâmica, eram cercadasde muitas pessoas e de muito estímulo so-cial, artístico e intelectual: fugiam à regradas mulheres comuns. Um casamento con-vencional talvez amortecesse sua naturezainquieta.

Quando analisamos a vida de celebrid-ades, incorremos numa série de especulaçõese fantasias. Por um lado, acreditamos quepor elas serem pessoas lindas e ricas têm odever de ser igualmente bem sucedidas emsuas relações amorosas, para fechar o círculoda perfeição absoluta. Elas personificam umideal. Quando não cumprem com a expect-ativa que depositamos nelas, ficamos inse-guros. Se pessoas tão especiais não con-seguem ser amadas, o que dirá nós, que

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temos celulite, barriga, pouca grana e umdente torto?

E há os que, numa análise diametral-mente oposta, vibram com a instabilidadeemocional dessa gente. É como se eles pa-gassem um preço pela fama. O sujeito temuma Ferrari, mas não consegue uma mulherque o adore pelo que ele é, só pelo que eletem. A mulher é a gostosa do século, mas nãoemplaca uma relação que dure mais de seismeses. Nós, ao menos, somos felizes noamor, né bem?

Não há nada de errado com a vida dosoutros. Nem nada de muito certo. Não háuma regra que valha para todos os artistas,ou para todos os dentistas, ou para todos osfrentistas. Marylin nunca ficou casada maisdo que quatro anos, já Sophia Loren ficoucinqüenta anos com o produtor Carlo Ponti.Diana não se adaptou à monarquia, já GraceKelly viveu como Princesa de Mônaco por 27

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anos, até falecer num acidente. Se eram fel-izes essas que mantiveram seus casamentospor mais tempo? Vá saber.

Em suma, não deve ser fácil construiruma relação perene tendo um cotidiano tãofrenético: o amor necessita de dedicação.Aliás, não anda fácil construir uma relaçãoperene tendo qualquer cotidiano. A diferençaentre as divas e nós é que a vida delas está navitrine, para nosso julgamento. Nossas doresficam entre quatro paredes.

2 de setembro de 2007

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LA GOZADERA

Eu já havia gostado muito dos pensamentose poemas publicados no livro Da amizade, deFrancisco Bosco, lançado em 2003. Poisagora, quatro anos depois, Chico lança Bana-logias, um livro de ensaios que transforma obanal em filosofia da boa. Daqueles livrosque nos mantém grudados até a última pá-gina e que abandonamos sob protestos.

Chico não se contenta com o aspectoperiférico de nada e vai fundo buscar o quenão se enxerga a olho nu: o maquiavelismode algumas críticas contra Caetano Veloso, adesimportância das dedicatórias de livros, oreducionismo das sinopses de filmes, o que

diferencia um golaço de um gol bonito, a ne-cessidade da tristeza, a insistência em com-parar letra de música com poesia e outros as-suntos que ele aprofunda como um astutoarqueólogo do cotidiano. Entre os temas,destaco o delicioso “A ética da gafieira em 15passos”, de onde tirei o assunto para minhacrônica de hoje, ou para o que resta dela.Chico Bosco fala que a exigência de o caval-heiro conduzir a dama, de ela ser conduzida,a obrigação de pensar na seqüência de pas-sos e tudo mais conferem uma certa rigidez etensão aos bailarinos iniciantes, quando naverdade a dança de gafieira pede justamenteo contrário. “É a conquista de uma liberdade– isto é, a conquista do erro – que possibilitao sorriso, a soltura, o improviso. Numa pa-lavra, como dizem os cubanos, la gozadera.”

Agora me diga você, que vive contraídopor causa das pressões sociais, das expect-ativas alheias, das idéias absurdas de

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perfeição que foram colocadas na sua cabeça,como é que ainda não se permitiu a con-quista do erro? Está aí a chave para umavida, senão mais feliz, ao menos mais diver-tida. Porque é do erro que surgem novassoluções. Os desacertos nos movimentam,nos humanizam, nos aproximam dos outros,enquanto que o sujeito nota 10 nem con-segue olhar para o lado, não pode se descon-centrar um minuto sob pena de ver seumundo cair.

O mundo já caiu, baby. Só nos restadançar sobre os destroços.

A escritora e filósofa francesa ChantalThomas certa vez disse que na sociedademoderna há muito lazer e pouco prazer. Ofato de você estar passeando, nadando oucomendo não significa que está tendo prazer,talvez esteja apenas obedecendo as leis sev-eras do “tempo livre”. O que há de divertidoem reservar uma mesa num restaurante damoda para daqui a três meses, em enfrentar

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filas intermináveis para ver uma exposiçãode um artista que você nem sabe quem é, emcomprar uma bolsa caríssima que logo serávendida a dez reais no camelô e em praticar aginástica do momento para não ficar desatu-alizada? Tudo isso são solicitações culturais,imposições de fora. O prazer está na in-venção da própria alegria.

O pai de Chico, João Bosco, há muitosanos sussurrou belamente em nossosouvidos: são dois pra lá, dois pra cá. Vemagora o filho e gentilmente retira a ponta dotorturante band-aid do calcanhar. Soltemosnossos passos e gozemos a vida.

9 de setembro de 2007

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EM CASO DEDESPRESSURIZAÇÃO

Eu estava dentro de um avião, prestes a de-colar, e pela milionésima vez na vida escut-ava a orientação da comissária: “Em caso dedespressurização da cabine, máscaras cairãoautomaticamente à sua frente. Coloqueprimeiro a sua e só então auxilie quem est-iver a seu lado.” E a imagem no monitormostrava justamente isso, uma mãecolocando a máscara no filho pequeno, est-ando ela já com a sua.

É uma imagem um pouco aflitiva,porque a tendência de todas as mães éprimeiro salvar o filho e depois pensar em si

mesma. Um instinto natural da fêmea que háem nós. Mas a orientação dentro dos aviõestem lógica: como poderíamos ajudar quemquer que seja estando desmaiadas, sufoca-das, despressurizadas?

Isso vem ao encontro de algo quesempre defendi, por mais que pareçaegoísmo: se quer colaborar com o mundo,comece por você.

Tem gente à beça fazendo discurso pelaordem e reclamando em nome dos outros,mas mantém a própria vida desarrumada.Trabalham naquilo que não gostam, não seesforçam para conservar uma relação deamor, não cuidam da própria saúde, não seinteressam por cultura e informação e estãomais propensos a rosnar do que a aprender.Com a cabeça assim minada, vão passar quetipo de tranqüilidade adiante? Que espéciede exemplo? E vão reivindicar o quê?

Quer uma cidade mais limpa, comecepelo seu quarto, seu banheiro e seu jardim.

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Quer mais justiça social, respeite os direitosda empregada que trabalha na sua casa. Umtrânsito menos violento, é simples: avaliecomo você mesmo dirige. E uma vida melhorpara todos? Pô, ajudaria bastante colocar umsorriso nesse rosto, encontrar soluções viá-veis para seus problemas, dar uma mel-horada em você mesmo.

Parece simplório, mas é apenassimples. Não sei se esse é o tal “segredo” queandou circulando pelos cinemas e sendopublicado em livro, mas o fato é que dar umjeito em si mesmo já é uma boa contribuiçãopara salvar o mundo, essa missão tão heróicae tão utópica.

Claro que não é preciso estar com avida ganha para ser solidário. A experiênciamostra que as pessoas que mais se sensibil-izam com os dilemas alheios são aquelas queainda têm muito a resolver na sua vida pess-oal. Mas elas não praguejam, não gastam seu

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latim à-toa: agem. A generosidade é seuoxigênio.

Tudo o que nos acontece é responsabil-idade nossa, tanto a parte boa como a parteruim da nossa história, salvo fatalidades dodestino e abandonos sociais. E, mesmo entreos menos afortunados, há os que viram ojogo, ao contrário daqueles que apenas viramuns chatos. Portanto, fazer nossa parte é omínimo que se espera.

Antes de falar mal da Caras, pense sevocê mesmo não anda fazendo muita fofoca.Coloque sua camiseta pró-ecologia, masantes lembre-se de não jogar lixo na rua e denão usar o carro desnecessariamente. Re-duza o desperdício na sua casa. Uma coisaestá relacionada com a outra: você e o uni-verso. Quer mesmo salvá-lo? Analise seupróprio comportamento. Não se sintaculpado por pensar em si mesmo. Cuide doseu espírito, do seu humor. Arrume seu co-tidiano. Agora, sim, estando quite consigo

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mesmo, vá em frente e mostre aos outroscomo se faz.

23 de setembro de 2007

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AMO VOCÊ QUANDONÃO É VOCÊ

Parece aquelas notícias de jornal popular,mas merece uma página inteira na imprensanobre. Escute só: um casal em crise estava,cada um, em segredo, trocando e-mails comum pretendente virtual. Ela querendo ver omarido pelas costas e totalmente envolvidapelo cara com quem teclava todos os dias. Eo marido querendo que a bruaca evaporassepara poder curtir a gata que conheceu numchat. Você certamente já matou a charada:cada um marcou um encontro às ganhas comseu amor clandestino e shazam: descobriram

que estavam teclando um com o outro semsaber.

Ou seja, marido e mulher não seamavam mais, porém se apaixonaram umpelo outro pela internet, usando pseudônim-os. Imagine a cena: você se arruma para umprimeiro encontro com alta carga erótica edá de cara com seu cônjuge. Eu iria rir dasituação e tentaria reinvestir no casamentodesgastado, dessa vez estabelecendo novoscódigos, mas o casal em questão não tevesenso de humor e pediu o divórcio, alegandoque estavam sendo “traídos”. Moralismonessa hora?

Não é preciso teses nem seminários:esse fato, isoladamente, consegue explicar eexemplificar o ponto frágil dos casamentosde longa duração. Todo ser humano évaidoso – uns mais, outros menos –, e essavaidade se estende ao campo da sedução. Por

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mais que a gente ame a pessoa com quemcasamos, a passagem do tempo reduz o feed-back sexual. As transas podem até continuarprazerosas e relativamente assíduas, mas jánão temos certeza se seríamos capazes dechamar a atenção de alguém que nadasoubesse sobre nós, e essa é uma necessid-ade que não esmorece nunca: seguimos in-teressantes? Seguimos atraentes? E a per-gunta mais séria entre todas: depois de tantotempo fundidos com um parceiro, sabemosainda quem somos nós?

Sendo assim, ficamos suscetíveis a umapaquera. Pela internet, parece seguro, semconseqüências, mas não impede que nosapaixonemos – nem tanto pelo outro, masprincipalmente por nós mesmos. Recuper-amos a adolescência perdida: nos tornamosnovamente audazes, sedutores e jovens –paixão rejuvenesce mais que botox. É a

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chance para a gente se reinventar e ganharuma sobrevida neste mausoléu de sentimen-tos chamado “estabilidade afetiva”. Não, vo-cê não, que é de outra estirpe. Estou falandode gente comum.

Esse casal pagou um mico, mas fez umalerta à humanidade: somos capazes de nosapaixonar por quem já fomos apaixonados,desde que esta pessoa se apresente a nóscomo uma novidade e nos dê também achance de sermos quem a gente ainda nãofoi. Esse marido, que em casa talvez fossecarrancudo e desleixado, revelou-se bem-humorado e empreendedor para sua nova“namorada”. A esposa, que em casa talvezbocejasse pelos cantos, mostrou-se alegre eentusiasmada para o novo “namorado”.Estavam o tempo inteiro conversando comquem conheciam há anos, mas, da forma quese apresentaram, desconheciam-se.

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Já escrevi uma vez sobre este tema: agente se apaixona para corrigir nosso pas-sado. Agora fica claro que podemos corrigirnosso passado com os próprios protagonistasdo nosso passado, desde que eles nosenxerguem com olhos mais curiosos, comum coração mais disposto e que acenem comum novo futuro.

30 de setembro de 2007

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LÚCIFER E OS LÚCIDOS

“Lúcido deve ser parente de Lúcifera faculdade de ver deve ser coisa do

demôniolucidez custa os olhos da cara.”Estou embriagada pelos novos poemas

de Viviane Mosé. Esta é só uma palhinha dePensamento chão, um livro essencial nessestempos em que já sabemos que não convémcircular de Rolex por aí, já sabemos que cer-tos políticos nunca ouviram falar em honra,já sabemos que o verão vai ser sufocante e sónos resta olhar um pouco para dentro de nós,o único lugar onde ainda encontramos al-guma novidade.

Essa visão inusitada que Viviane nosoferece sobre lucidez, por exemplo, é umconvite para a reflexão. Em tempos insanos,de tanta gente maluca por vaidade, malucapor juventude, maluca por dinheiro, malucapor poder, os lúcidos destacam-se pela rarid-ade. São aqueles que não inventam persona-gens de si mesmos, não se trapaceiam, nãocriam fantasias, ao contrário: se compromet-em com a verdade. E se envolver assim coma transparência dos fatos requer uma integ-ridade diabólica. Para olhar o bicho nos ol-hos é preciso ser bicho também. Enfrentar averdade é quase um ato de selvageria.

Mas que verdade é essa, afinal? É aí queo demônio apresenta sua conta, pois o lúcidotem que se confrontar com uma verdade des-estabilizadora: a de que não existe verdadeabsoluta. Nossos pensamentos não esta-cionam, nossos desejos variam, o certo e oerrado flertam um com o outro, não há per-manência, tudo é provisório, e buscar um

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porto seguro é antecipar o fim: a única se-gurança está na morte, será ela nosso únicoendereço definitivo. Durante o percurso davida, tudo é movimento, surpresa e sorte.

O lúcido faz parte do time – cada vezmais desfalcado – dos que se desesperamcomo todo mundo, porém de um modo maisíntimo e refinado. O lúcido organiza sualoucura, acondiciona o que está solto no ar,interliga várias idéias independentes paraque, agarradas umas nas outras, não se dis-persem, estejam ao alcance da mente.Quanto mais o lúcido pensa, mais percebeque lucidez plena não existe, o que existe sãosuposições, algumas até coerentes, e que nosmantêm no eixo. Lúcido é aquele que sabeque lucidez é uma falácia, e não pira comisso. Recebe a conta das mãos do demônio,calcula os ganhos e os prejuízos, e paga.Custa sim, Viviane, os olhos da cara, esse ví-cio de pensar e repensar, pensar e com-pensar, pensar, pensar, pensar e morrer do

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mesmo jeito. Por isso achei tão interessanteseu poema. Você matou a charada: Lúcifer éuma espécie de padroeiro dos lúcidos – e lú-cido é só um outro nome para louco. O loucoque tem a cabeça no lugar demais.

14 de outubro de 2007

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MATANDO A SAUDADEEM SONHO

A saudade não tem nada de trivial. Interfereem nossa vida de um modo às vezes sereno,às vezes não. É um sentimento bem-vindo,pois confirma o valor de quem é ou foi im-portante para nós, e é ao mesmo tempo umsentimento incômodo, porque acusa a ausên-cia, e os ausentes sempre nos doem.

Por sorte, é relativamente fácil exterm-inar a saudade de quase tudo e de quase to-dos, simplesmente pegando o telefone e ou-vindo a voz de quem nos faz falta, ou indo aoencontro dessa pessoa. Ou daquele lugar queficou na memória: uma cidade, uma antiga

casa. Podemos eliminar muitas saudades,enquanto outras vão surgindo. A saudade dosabor de uma comida, de um cheiro do pas-sado, de um abraço. Há muitas saudadespossíveis de se conviver e possíveis de matar.A única saudade que não se mata é a dequem morreu. Matar, morrer. Que verbosmacabros para se falar de nostalgia.

Já ouvi vários relatos sobre a saudadeque se sente de um pai, de um avô, de umfilho, de uma amiga, dos afetos que nos deix-aram cedo demais – sempre é cedo parapartir, não importa a idade de quem se foi.Ficam as cenas guardadas na lembrança,mas elas se esvanecem, recordações sãosempre abstratas. De concreto, palpável,tem-se as fotos e as imagens de gravações ca-seiras, mas de tanto vê-las, já não vemos. Jáa sabemos de cor. Não há o rosto com umaexpressão nova, a surpresa de um gestoinusitado.

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Como, então, vencer a saudade comalgo que seja mais parecido com presença?

Através do sonho.Uma mãe que perdeu seu filho quatro

anos atrás me conta que todos em casa son-ham com ele, menos ela. Para sua infelicid-ade, ela não tem controle sobre isso, simples-mente não recebe essa benção, e queriatanto. E eu a entendo, porque através dosonho a pessoa que se foi nos faz uma visita.Pode até ser uma visita aflitiva, mas a pessoaestá de novo ali, ela está interagindo, ela estásorrindo, ou está calada, ou está dançando,ou escapando de nossas mãos, mas ela estáacontecendo em tempo real, que é o períodoem que estamos dormindo, e que faz parteda vida, e não da morte.

De vez em quando sonho com minhaavó e sempre acordo animada por ela ter en-contrado esse meio de me dar um alô, de mefazer recordá-la. Observo seu jeito, ouço suavoz e penso: quem roteirizou esse sonho? De

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onde vieram suas palavras para mim? A res-posta lógica: meu inconsciente falou atravésdela, só que isso tira todo o encanto da cena.Prefiro acreditar que ela é que esteve nocomando da sua aparição, me dizendo o quetinha para dizer, nem que fosse umafrasezinha à-toa.

Um colega de trabalho falecido há vinteanos num acidente de carro também já meapareceu em sonhos algumas vezes, equando isso acontece acordo com a sensaçãode que morte, mesmo, é esquecimento: en-quanto eu abrir as portas do sonho para eleentrar, meu amigo seguirá existindo.

Neste feriado de Finados, o que se podedesejar para os inúmeros saudosos de mães,de maridos, de netos? Que os sonhos ab-racem a todos.

2 de novembro de 2007

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BALANÇANDOESTRUTURAS

Uma amiga minha vive dizendo que odeiaamarelo, que prefere tomar cianureto a usaruma roupa amarela. Quem a conhece já aouviu dizer isso mil vezes, inclusive seunamorado. Pois uns dias atrás ela me contouque esse seu namorado chegou em sua casae, mesmo os dois estando a uma semana semse ver, brigaram nos primeiros cinco minutosde conversa e ele foi embora. “Mas o queaconteceu?”, perguntei. “Eu sei lá”, me re-spondeu ela. “Estávamos morrendo desaudades um do outro, mas começamos adiscutir por causa de uma bobagem”. Eu:

“Que bobagem?”. Então ela me disse: “Vocênão vai acreditar, mas ele ficou desconcer-tado por eu estar usando uma camisetaamarela”.

Ora, ora. Era a oportunidade para euutilizar meus dons de psicóloga de fundo dequintal. Perguntei para minha amiga: “Quersaber o que eu acho?”. A irresponsável re-spondeu: “Quero”. Mal sabia ela que eurecém havia assistido a uma palestra sobreas armadilhas da tão prestigiada estabilid-ade. Arregacei as mangas e mandei ver.

Você está namorando o cara há poucotempo. Sabemos como funcionam essesprimeiros encontros. Cada um vai forne-cendo informações para o outro: eu adororock, eu tenho alergia a frutos do mar, tenhoum irmão com quem não me dou bem, pre-firo campo em vez de praia, não gosto deteatro, jamais vou ter uma moto, não usoroupa amarela. A gente então vai guardandocada uma dessas frases num baú imaginário,

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como se fosse um pequeno tesouro. São osdados secretos de um novo alguém que acabade entrar em nossa vida. Assim vamos con-struindo a relação com certa intimidade e se-gurança, até que um belo dia nosso amorpropaga as maravilhas de uma peça de teatroque acabou de assistir, ou sugere vinte diasde férias numa praia deserta, ou usa umaroupa amarela. Pô, como é que dá pra confi-ar numa criatura dessas?

Pois dá. Aliás, é mais confiável uma cri-atura dessas do que aquela que se algemouem meia dúzia de “verdades” inabaláveis,que não muda jamais de opinião, que regis-trou em cartório sua lista de aversões. Valepara essas bobagens de roupa amarela epraia deserta, e vale também para coisasmais sérias, como posicionamentos sobre oamor e o trabalho. Mudanças não significamfragilidade de caráter. É preciso ter umacerta flexibilidade para evoluir e se divertircom a vida. Mas ainda: essa flexibilidade é

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fundamental para manter nossa integridade,por mais contraditório que pareça. Me vi-eram agora à mente os altos edifícios que sãoconstruídos em cidades propensas a terre-motos, que mantêm em sua estrutura umcomponente que permite que se movam dur-ante o abalo. Um edifício que balança! Comque propósito? Justamente para não virabaixo. Se ele não se flexibilizar, a estruturapode ruir.

O fato de transgredirmos nossas pró-prias regras só demonstra que estamos con-scientes de que a cada dia aprendemos umpouco mais, ou desaprendemos um poucomais, o que também é amadurecer. Não es-tamos congelados em vida. Podemos mudarde idéia, podemos nos reapresentar aomundo, podemos nos olhar no espelho demanhã e dizer: bom dia, muito prazer. Nin-guém precisa ficar desconcertado diante dealguém que se desconstrói às vezes.

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Eu também não gosto de roupa am-arela. Quem abrir meu armário vai encontrarbasicamente peças brancas, pretas, cinzas eem algumas tonalidades de verde. No ent-anto, hoje de manhã saí com um casaco am-arelo canário! Tenho há mais de dez anos equase nunca usei. Pois hoje saí com ele paradar uma volta e retornei para casa sendo amesmíssima pessoa, apenas um pouco maisalegre por ter me sentido diferente de mimmesma, o que é vital uma vez ao dia.

11 de novembro de 2007

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POVOAR A SOLIDÃO

A sua é de que tamanho? Difícil encontrar al-guém que tenha uma solidão pequena,ajustada, do tipo baby look. Geralmente asolidão é larga, esgarçada, como uma camis-eta que poderia vestir outros corpos além donosso. E costuma ser com outros corpos quese tenta combatê-la, mas combatê-la porquê?

Se nossa solidão pudesse ser visualiz-ada, ela seria um vasto campo abandonado,um estádio de futebol numa segunda-feira demanhã. Dói, mas tem poesia. Talvez seja poraí que devamos reavaliá-la: no reconheci-mento do que há de belo na sua amplitude.

A solidão não precisa ser aniquilada,ela só precisa de um sentido. Eu não saberiadizer que outra coisa mais benéfica para issodo que livros. Uma biblioteca com milvolumes é um exército que não combate asolidão, mas a ela se alia.

A solidão costuma ser tratada comoalgo deslocado da realidade, como um tumorque invade um órgão vital. Ah, se todos ostumores pudessem ser curados com amigos.Uma pessoa que não fez amigos não tevepela sua vida nenhum respeito. Nossasolidão é nossa casa e necessita abrir horári-os de visita, hospedar, convidar para o al-moço, cozinhar com afeto, revelar-se umasolidão anfitriã, que gosta de ouvir as históri-as das solidões dos outros, já que todos pos-suem seus descampados.

A solidão não precisa se valer apenasdo monólogo. Pode aprender a dialogar, edeve exercitar isso também através da arte.Há sempre uma conversa silenciosa entre o

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ator no palco e o sujeito no escuro da platéia,entre o pintor em seu ateliê e o visitante domuseu, entre o escritor e o seu leitor descon-hecido. Ah, os livros, de novo. De todos osque preenchem nossa solidão, são os livrosos mais anárquicos, os mais instigantes.Leia, e seu silêncio ganhará voz.

Às vezes tratamos nosso isolamentocom certa afetação. Acendemos um cigarrona penumbra da sala, botamos um discodilacerante e aguardamos pelas lágrimas. Jáfizemos essa cena num final de domingo –tem dia mais solitário? É comum que a genteentre na fantasia de que nossa solidão dariaum filme noir, mas sem esquecer que elacontinuará conosco amanhã e depois deamanhã, deixando de ser charmosa e nosacompanhando até o supermercado.Suporte-a com bom humor ou com mau hu-mor, mas não a despreze.

Permita que sua solidão seja bem apro-veitada, que ela não seja inútil. Não a cultive

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como uma doença, e sim como uma circun-stância. Em vez de tentar expulsá-la, habite-a com espiritualidade, estética, memória, in-spiração, percepções. Não será menossolidão, apenas uma solidão mais povoada.Quem não sabe povoar sua solidão, tambémnão saberá ficar sozinho em meio a umamultidão, escreveu Baudelaire.

Ah, os livros, outra vez.

11 de novembro de 2007

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O CAPRICHO DASIMPLICIDADE

Eu estava numa grande loja, naquele es-quema “só estou dando uma olhada”,quando vi uma senhora se apossar de umabolsa como se tivesse encontrado o SantoGraal. Chamou a filha e mostrou: não élinda?? Agarrada à bolsa em frente ao es-pelho, ela virava de um lado, de outro, extas-iada com a própria imagem carregandoaquela bolsa de couro azul-turquesa comumas 357 tachas pretas. Eu já vi bolsa feianesta vida, mas como aquela, nem nos meuspesadelos mais tiranos.

Mas a tal senhora estava apaixonadapela bolsa. Mostrava a etiqueta com o preçopara a filha e dizia: “E nem é tão cara!”.

Nem é tão cara??? A loja deveria es-tender um tapete vermelho e chamar bandade música para quem levasse aquele troçopor cinco reais.

E a senhora voltava ao espelho, experi-mentava a bolsa, levo ou não levo? Eu tivevontade de cutucar o ombro dela e dizerpelamordedeus não faça essa loucura, olheem volta, tem bolsa muito mais bonita, commais classe, mais usável, deixe essa coisamedonha pra lá.

Claro que não me meti e saí da lojaantes de ver a tragédia consumada.

E então fiquei pensando nessa históriade bom gosto e mau gosto, classificação queos politicamente corretos rejeitam, dizendoque gosto cada um tem o seu e fim de papo.Não é bem assim: a diferenciação existe. O

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que não impede que pessoas de bom gostoerrem e pessoas de mau gosto acertem – devez em quando.

Cheguei em casa e fui reler um texto es-crito por Celso Sagastume, em que ele de-fende que bom gosto se aprende. Que umapessoa começa a gostar do que é bomquando adquire bagagem cultural (através deviagens e do acesso à arte) e quando tem hu-mildade para observar pessoas e lugares re-conhecidamente sofisticados e extrair deles ainformação necessária para compor o seupróprio bom gosto.

Sofisticação, no entanto, tem variadasinterpretações. Eu não troco uma charmosabolsa de palha por uma Louis Vuitton, e podeme chamar de maluca. Nunca duvidei de quemenos é mais, e acho que estou me saindorazoavelmente bem, com uma porcentagemaceitável de deslizes.

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Bom gosto e mau gosto custam amesma coisa, me disseram certa vez. Adoteia frase como minha, tanto concordo com ela.Aliás, o mau gosto às vezes custa até maiscaro. Ninguém precisa de muito dinheiroquando tem capricho e noção.

Capricho para tornar sua casa con-fortável, alegre e preparada não para umafoto, mas para ter história. Capricho para es-crever um e-mail mantendo certa dia-gramação e um português correto. Caprichoao se vestir, deixando de se monitorar porgrifes e valorizando mais o estilo.

Capricho é cuidado e antenação. Floresfrescas nos vasos, unhas limpas, música emvolume adequado, educação ao falar,abajures em vez de luz direta, um toque per-sonalizado e uma pitada de bom humor emtudo: nas atitudes, no visual, até na bagunça

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do escritório, que uma baguncinha tambémtem seu charme.

Onde eu quero chegar com isso? Nabolsa azul-turquesa com 357 tachas pretasque a gente carrega desnecessariamente porfalta de treinar o olho para as coisas maissimples.

18 de novembro de 2007

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PRECISAMOS FALARSOBRE TUDO

Li alguns livros muito bons este ano (desdeos brilhantes Homem comum, de PhilipRoth, e Na praia, de Ian McEwan, até a es-tréia promissora da carioca Maria HelenaNascimento em Olhos baixos), mas o que medeixou com os quatro pneus arriados foi Pre-cisamos falar sobre o Kevin, de LionelShriver. Um livro obrigatório por inúmerasrazões, mas vou tentar salientar duas ou três.

Pra começar, o tema é macabramenteatual: a rotina de massacres em escolas(principalmente nos Estados Unidos) em queadolescentes matam colegas e professores

sem motivo aparente. Aliás, nada é maispreguiçoso do que procurar um motivoaparente.

Talvez aí resida o melhor do livro: elerejeita as versões oficiais, aquelas que engoli-mos fácil, que nos descem sem esforço.Quem narra a história é a mãe do assassino,um garoto de dezesseis anos que nasceu per-verso por natureza, mas que chegou às raiasda insanidade ao atirar premeditadamenteem onze colegas escolhidos a dedo para mor-rer. Se fosse um livro como os outros, a mãefaria um mea-culpa choroso, dizendo queprecisou trabalhar fora e com isso a edu-cação do filho ficou descuidada. Ou iria falarsobre más influências. Ou então defenderque ele foi excluído pela sociedade por serasiático, ou negro, ou gay ou simplesmentepor ser mais um deprimido, mas isso seriatão rasteiro quanto sonolento. E o livro é ooposto: é uma bofetada a cada página. Nuncagostei de apanhar, mas esse livro me

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nocauteou e ainda terminei dizendo “queromais”.

O relato não é condescendente comnada nem com ninguém. A mãe do garoto re-lembra passagens da sua alegre vida derecém-casada, da sua relutância em en-gravidar, do susto com o nascimento daquelacriança que ela não identificava como umpresente dos céus, da enorme dificuldade emcontornar conflitos, da distância que surgiuentre ela e o pai do bebê e do incômodo re-conhecimento de que formar uma família fel-iz não é tão simples como anunciam por aí.Só que a autora vai além da desconstruçãodo sublime. Ela desconstrói a todos nós,fazendo vir à tona nossa incompetênciacomo controladores de vôo de nossos filhos.Nossas orientações são bem-intencionadas,mas não onipotentes. Nosso amor é ne-cessário, mas nem sempre é bem compreen-dido ou bem transmitido. Nossos cuidadospodem vir a ser infrutíferos, nossas palavras

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podem não adiantar, nossas atitudes talveznão sirvam como exemplo. Existe algo tãoinfluente quanto tudo isso: a nossa dor in-terna. Ela contamina, ela comunica, ela des-graçadamente também educa – ou deseduca.

E tem ainda esta nossa sociedade doen-tia, que transforma qualquer ato estapafúr-dio em espetáculo, que não dá chance aos in-visíveis, que derruba antigos valores éticos emorais sem substituí-los por algo que valha apena. Hoje a inversão é total: um pequenogesto de bondade passa a ser assombroso,enquanto que a violência é de casa,cotidiana.

O livro é violento não pela transcriçãode cenas sanguinárias – quase não há –, maspela brutalidade dos pensamentos e diálo-gos. Bruto no sentido de honesto, de trazer àtona uma verdade nua, selvagem, sem re-toques. O livro é brutal porque implode asfachadas. Nada fica de pé.

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O leitor que for igualmente honestoconsigo mesmo, que tiver o mínimo de con-hecimento psicológico, que estiver disposto aenfrentar sua fragilidade da mesma maneiraque se vangloria de suas virtudes, vai acusaro golpe. Óbvio que não estamos criando as-sassinos em série, eles ainda são casos isola-dos, mas fazemos parte de uma única so-ciedade que precisa, sim, falar sobre o Kevin,falar sobre o João, falar sobre nossos filhos esobre nós mesmos, entendendo por “nós”aquela parte da gente que fica ent-rincheirada, se recusando a fazer parte do to-do. Mas que, querendo ou não, faz.

9 de dezembro de 2007

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ONDE É QUE EU IAMESMO?

Uma vez escrevi uma crônica que sechamava “Coisa com coisa”. Era sobre aminha vexamosa tendência de trocar o nomedas pessoas. Não apenas nomes de pessoasque mal conheço, mas também nomes deparentes. Parentes próximos, como filhos.Com o tempo, comecei a trocar tambémnomes de objetos, a me embaralhar com osverbos e a perder palavras que estavam naboca da língua. Desculpe, quis dizer na pontada língua. Ou seja, passei a não dizer maiscoisa com coisa.

Pois tenho novidades: piorei muito.

Às vezes estou no meu quarto e penso:vou na sala buscar meus óculos. Quando es-tou no corredor, já esqueci o que ia fazer nasala. Quando chego na sala, olho em volta etento descobrir o que fui fazer ali. Não re-cordo. Fico feito uma barata tonta: “O queera mesmo?” Volto pro quarto de ré, pra verse a memória é resgatada no rewind, feitofita rebobinada, mas não adianta. Dali a doisminutos, lembro: “Ah, eu ia pegar os óculos!Onde mesmo?”

Tenho comentado isto com alguns ami-gos, na esperança de que me olhem compiedade e me recomendem um bom médico,mas o que mais escuto é: “Comigo tem sido amesma coisa”. Pesquisei com conhecidos dosdezenove aos noventa anos. Com todos temsido assim. Alzheimer geral. Tem algumacoisa errada, e não é só comigo.

Li recentemente uma matéria que asso-cia a falta de memória com a falta de sono. É

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uma teoria. Os especialistas entrevistadospara a matéria recomendam que a gente nãoabra mão de dormir oito horas seguidas.Dizem que isso não é balela, que ajudamesmo o cérebro a descansar e a retomar astarefas do dia seguinte com funcionamentopleno. Maravilha. Oito horas de sono. Me ex-plique como.

Eu apago a luz cedo. Antes da meia-noite. Às vezes às dez e meia. Tenho perdidoo Saia Justa por causa disso. O ManhattanConnection. A minissérie Queridos Amigos.Meu sono está me emburrecendo, mas,quando os olhos pesam, não há outra saída anão ser capitular. Desligo o abajur e apagojunto. Só que às quatro da matina minhacabeça acorda sozinha! A cabeça, essamaldita. Ela então faz um apanhado geraldos problemas a serem resolvidos no diaseguinte. Na verdade, nem problemas são,mas durante a madrugada qualquer unha

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encravada vira um câncer terminal. Sabecomo é, a noite potencializa o drama. Entãofico eu ali fritando nos lençóis, pensando,pensando. Verbo desgraçado: pensar.

Quando consigo pegar no sono de novo,o despertador faz o seu serviço: me desperta.Cedíssimo: hora de levar os filhos (o nomedeles, mesmo?) ao colégio. Há quem tenhareunião no escritório. Outros, massagem.Outros precisam ir para a parada de ônibus.Quem consegue hoje em dia dormir oito hor-as de sono cravado? Os milionários, e nemeles, eu acho.

Tampouco tenho sonhado. Não há sonosuficiente para criar uma historinha comcomeço, meio e fim. Freud teria dificuldadeem trabalhar hoje em dia: dorme-se pouco. Elembra-se menos ainda. Fim de era para odescanso e a memória. Do que eu estavafalando mesmo?

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A solução é mudar a rotina. Ver menostelevisão. Ter menos obrigações. Morar emlugares mais silenciosos. Ter menos vidanoturna. Menos compromissos. Menosagenda. Menos e-mails. Menos contatosprofissionais, mais amigos. Menos trabalho,mais férias. Menos filhos: é difícil decorardois nomes. Filho único é mais fácil. E deixarde frescura e pendurar logo aquele troçomedonho que prende as hastes dos óculos aonosso pescoço.

9 de dezembro de 2007

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GRISALHA? NÃO,OBRIGADA

Certa vez, por ocasião do Dia dos Pais, es-crevi uma crônica chamada “A dignidade dogrisalho”, defendendo que os homens deveri-am pensar muito antes de pintar o cabelo, jáque o grisalho lhes dava muito mais credibil-idade, charme e juventude – isso mesmo, ju-ventude. Citei Giorgio Armani como umdesses garotos.

Em contraponto, disse que entendiaperfeitamente que mulheres pintassem o ca-belo, já que em nós o grisalho passa umaidéia de relaxamento e raramente nos caibem.

Pois descubro que um dos livros maiscomentados por aí tem sido Meus cabelos es-tão ficando brancos, mas eu me sinto cadavez mais poderosa, da americana AnneKreamer, que, depois de extensa pesquisa decampo, defende que as mulheres não perdemnada em manterem suas melenas ao natural.

Anne defende que ficar grisalha é umato político, de afirmação. Uma outra espéciede vaidade, muito mais honesta. Com suasmechas acinzentadas, as mulheres, como oshomens, também ganham mais credibilid-ade, charme e, por que não, até juventude.Todos sabem: cabelos escuros, depois deuma certa idade, endurecem o semblante – eeu, que sou praticamente uma índia, nãoquero escutar mais nada: vou terminar de es-crever esta crônica e ir pra cama chorar.

Ou seja, aquele truque de ficar loira pranão ficar velha estaria com os dias contados.Nem loira, nem ruiva, nem castanha, nem

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índia Sioux. Grisalha. É essa a verdadeiramulher moderna, de atitude.

Conceitualmente, concordo com tudo.Menos com a generalização. Que mulher éessa que só tem a ganhar? Qualquer uma denós? Tá bom.

Recentemente estive no teatro e vi umamulher com os cabelos curtos e grisalhos. Orosto dela era igual ao da Jacqueline Bissetnos áureos tempos. Tinha quase dois metrosde altura, era magérrima e superestilosa. Elanão precisava de cabelo nenhum, podia terum balde em cima da cabeça e continuariaum deslumbre. Mas para a mulher comum,que não chega a medir 1 metro e 65, que nãotem corpo de modelo nem um guarda-roupaestiloso e ainda por cima quer manter os ca-belos compridinhos, assumir a grisalhice éum homicídio qualificado contra si mesma.

A autora do livro condena a busca poruma aparência mais jovem. Concordo que

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não devemos entrar nessa neura: cada umade nós pode ser atraente na idade que tiver.Mas o livro trata todas as pró-tinturas comomulheres patéticas que querem ter dezoitoanos para sempre. Nunca é levantada ahipótese de desejarmos apenas ter uma re-lação cordial com nosso espelho, nos mirarsem ter vontade de gritar.

O assunto não é sério, mas totalmentetrivial também não. Que mulher, em plenogozo das suas faculdades mentais, diria quenão dá a mínima pro cabelo? Eu, por en-quanto, nem penso em cirurgias, botox oupreenchimentos, tenho pânico só de pensarem escarafunchar meu rosto – não que eunão precisasse –, mas me acusar de não teratitude porque passo um tonalizantezinho denada já é querer humilhar. Tenho atitude,sim, principalmente a atitude de pegar otelefone e marcar hora no cabeleireiro. Quemfala que isso é perder tempo não sabe que

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bela companhia é um livro enquanto a tin-tura age. Leve um bom livro pro salão eganhe cultura enquanto “perde tempo”.

Um cabelo branco, todinho branco, ebem curtinho, acho um charme total. Fun-ciona porque branco é cor. Grisalho é o quê?Cansaço.

6 de janeiro de 2008

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O DIREITO AO SUMIÇO

São poucos os adolescentes que não sonham,um dia, em passar uma temporada fora dopaís. Nem todos realizam, obviamente – nãoé um sonho barato. Mas juntando umas eco-nomias aqui, um fundo de garantia ali, se in-screvendo num programa de intercâmbio ousimplesmente munindo-se de coragem euma mochila, muitos conseguem embarcarnum avião: hora de dar um tempo, aprenderoutro idioma, meter a cara lá fora.

Eu tive essa oportunidade aos vinte epoucos anos. Poupei dinheiro, acumuleiférias não-vencidas na empresa onde trabal-hava e saí para o mundo sozinha, interessadaem conhecer vários lugares mas,

principalmente, interessada em entender oque significava, afinal, esse “sozinha”. Quedelícia. Ninguém saber onde estou, o quecomi no almoço, quais os meus medos, quemeram as pessoas com quem eu cruzava. Olharpara os lados e não reconhecer nenhumrosto, direcionar meus passos para onde euquisesse, sem um guia, sem um acordo pré-vio, liberdade total. Desaparecida no mundo.Isso me conferia uma certa bravura, fortale-cia minha auto-estima. Claro que eu tele-fonava para casa de vez em quando e escre-via cartas, fazendo os relatos necessários etranqüilizando o pessoal, mas eu estava soz-inha da silva com meus pensamentos eemoções novas.

Aí veio a tecnologia, com seus mil ol-hos, e acabou com essa história de sozinhada silva. Hoje ninguém mais consegue tirarférias da família, dos amigos e da vida queconhece tão bem. Antigamente era umaaventura fazer um auto-exílio, sumir por uns

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tempos. Mas isso foi antes do Skype. DoMSN. Do e-mail. Hoje, nem que você vá paraoutro planeta consegue desaparecer.

Claro que só usa essa parafernáliatecnológica quem quer. Você pode encontraruma dúzia de cibercafés em cada quarteirãoda cidade onde está e passar reto por cadaum deles, fazer que não viu. Mas sua mãe,seu pai, sua namorada, sua irmã, seu melhoramigo, todos eles sabem que você estávivendo coisas incríveis e querem que vocêconte tudinho, em detalhes. Não custa nadamandar um sinal de vida, pô. Todos os dias,claro! Dois boletins diários: às onze da man-hã e no fim da noite, combinado.

Sei que quando chegar a hora de min-has filhas sumirem no mundo vou rezar umanovena pela sagrada internet, mas não queroesquecer jamais da importância de se re-speitar o distanciamento e o prazer que oviajante sente ao estar momentaneamentefora de alcance, sem rastreamento, sem

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monitoração. Para os que ficam, é um alíviopoder ter notícias daquele que está longe,mas aquele que está longe tem o direito aosumiço – e o dever até. Quem não desfrutado privilégio de deixar uma saudade atrás desi e curtir o “não ser”, “não estar” e “não servisto” perde uma das sensações mais excit-antes da vida, que é se sentir um estrangeirouniversal.

20 de janeiro de 2008

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GUERREIRAS E HERÓIS

Não estou assistindo ao Big Brother, mas vi achamada para o programa dia desses.Mostrava uma moça, uma das participantes,olhando pra câmera e dizendo com ardramático: “Eu sou uma guerreira!!”. É dedar nos nervos. Guerreira por quê? Porqueestá participando de um programa de tele-visão que vai levá-la, no mínimo, à capa daPlayboy? Guerreira porque foi escolhidaentre milhões de candidatos para ficarcomendo do bom e do melhor e jogando con-versa fora com um monte de desocupados?As pessoas não têm culpa de serem burras,mas mereciam uma surra por se levarem tãoa sério.

O Big Brother é um programa de tevêcomo outro qualquer e não defendo sua ex-tinção, mas é preciso ficar atento a certos ex-ageros. Por exemplo, é um exagero condenaro jornalista Pedro Bial por apresentá-lo, ocara está trabalhando, só isso. Por outrolado, ele perde a noção quando chama aquelepessoal de “nossos heróis”. É o mesmo casodo “guerreira”: a troco de que usar essas ex-pressões graves e superlativas para falar deuma brincadeira televisiva em que todossairão ganhando?

O que irrita no Big Brother, mais doque sua inutilidade, é o fato de os parti-cipantes serem tratados como vítimas. Qualé? Circula pela internet um PPS que, pelaprimeira vez na história dos PPS, me tocou.Ele mostra heróis de verdade: homens emulheres que abrem mão do conforto desuas casas para fazerem trabalho voluntárioem aldeias na África e em clínicas móveis noLíbano. São pessoas que oferecem ajuda

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humanitária internacional através do pro-grama Médicos sem Fronteiras e que nãomedem esforços para dar amparo e assistên-cia a moradores de rua e demais necessita-dos, seja no fim do mundo ou aqui mesmonas ruas do Brasil. Isso é heróico, isso é serguerreiro. Quantos de nós, bem nascidos ebem criados, abrem mão de seus pequenosluxos para ajudar quem precisa?

Por isso, se você é da turma que liga proBig Brother pra votar em paredões, pensemelhor antes de erguer o telefone. Direcionesua ligação para um programa assistencial,gaste seu dinheiro com algo que realmenteseja útil. Assista ao BBB, divirta-se e dêaudiência, não há nada de errado com isso,mas, cada vez que tiver o impulso de ligarpra tirar fulano ou sicrana do programa, setoque: tem gente mais necessitada precis-ando da sua ligação. O site da Unicef trazuma lista de entidades que você pode col-aborar dando apenas um telefonema. Quer

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dar uma espiadinha? Então espie o que estáacontecendo à nossa volta.

5 de fevereiro de 2008

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ANTES DE PARTIR

Um filme cujos protagonistas são Jack Nich-olson e Morgan Freeman, com diálogos bemconstruídos e um humor inteligente (mesmotratando de um assunto difícil como a fi-nitude da vida) já entra em cartaz com vant-agem, mesmo que o roteiro não seja lá muitosurpreendente.

Antes de partir não é mesmo sur-preendente, mas isso também pode ser umacoisa boa. Ficamos sempre correndo atrás defórmulas novas quando deveríamos nos ded-icar mais a reforçar certas verdades. E a ver-dade do filme, se pudesse ser resumidanuma frase, seria: aproveite o tempo que lhe

resta. Nada que você já não tenha escutadomil vezes.

Nicholson e Freeman interpretam doissessentões que descobrem estar com umadoença terminal. Os prognósticos apontamseis meses de vida para cada um, no máximoum ano. E agora? Esperar a extrema-unçãonuma cama de hospital ou buscar a extremaexcitação?

Sem piscar, eles aventuram-se pelomundo praticando esportes radicais, con-hecendo lugares exóticos, desfrutando todosos prazeres de uma vida bem vivida – claroque um deles é milionário e banca tudo, de-talhe que nos falta na hora de pensar emfazer o mesmo. Você não pensa em fazer omesmo?

Você, eu e mais seis bilhões de homense mulheres também estamos com a sentençadecretada, só não sabemos o dia e a hora.Está certo que é morbidez pensar sobre issoquando se é muito moço, mas alcançando

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uma certa maturidade, já dá pra parar de seiludir com a vida eterna, amém. Com din-heiro ou sem dinheiro, faça valer a sua pas-sagem por aqui. Não sei se você percebeu,mas viver é nossa única opção real. Antes denascermos, era o nada. Depois, virá maisuma infinidade de nada. Essa merrequinhade tempo entre dois nadas é um presentaço.Não seja maluco de desperdiçar.

Ok, quantos de nós podem sair amanhãpara um safári na África, para um tour pelaspirâmides do Egito, para um jantar num res-taurante cinco estrelas na França? Ou teriamcoragem de saltar de pára-quedas e pisarfundo num carro de corrida numa pista emIndianápolis? Se não temos grana nemdublês, então que a gente se divirta comoutro tipo de emoção, que o filme, aliás, tam-bém recomenda.

Reconheçamos o básico: uma vida semamigos é uma vida vazia. O mundo é muitomaior que a sala e a cozinha do nosso

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apartamento. A arte proporciona um sem-número de viagens essenciais para o espírito.Amar é disparado a coisa mais importanteque existe.

Que mais? Desmediocrize sua vida.Procure seus “desaparecidos”, resgate seusafetos. Aprenda com quem tiver algo a ensin-ar, e ensine algo àqueles que estão engessad-os em suas teses de certo e errado. Troqueexperiências, troque risadas, troque carícias.Não é preciso chegar num momento-limitepara se dar conta disso. O enfrentamento daspequenas mortes que nos acontecem em vidajá é o empurrão necessário. Morremos umpouco todos os dias, e todos os dias devemosprocurar um final bonito antes de partir.

5 de março de 2008

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OS QUATROFANTASMAS

Leiga, totalmente leiga em psicanálise, é oque sou. Mas interessada como se dela de-pendesse minha sobrevivência. Para saciaressa minha curiosidade, costumo ler algunslivros sobre o assunto, e acabei descobrindo,através do escritor Irvin Yalom, as quatroprincipais questões que assombram nossasvidas e que determinam nossa sanidademental.

São elas:1) sabemos que vamos morrer;2) somos livres para viver como

desejamos;

3) nossa solidão é intrínseca;4) a vida não tem sentido.Basicamente, isso. Nossas maiores an-

gústias e dificuldades advêm da maneiracomo lidamos com nossa finitude, com nossaliberdade, com nossa solidão e com a gratu-idade da vida. Sábio é aquele que, diante des-sas quatro verdades, não se desespera.

Realmente, não são questões fáceis. Aconsciência de que vamos morrer talvez sejaa mais desestabilizadora, mas costumamospensar nisso apenas quando há uma ameaçaconcreta: o diagnóstico de uma doença ou oavanço da idade. As outras perturbações sãomais corriqueiras. Somos livres para escolh-er o que fazer de nossas vidas, e isso é amed-rontador, pois coloca a responsabilidade emnossas mãos. A solidão assusta também, massabemos que há como conviver com ela:basta que a gente dê conteúdo à nossa ex-istência, que tenhamos uma vontade incess-ante de aprender, de saber, de se

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autoconhecer. Quanto à gratuidade da vida,alguns resolvem com religião, outros combom humor e humildade. O que estamosfazendo aqui? Estamos todos de passagem.Portanto, não aborreça os outros nem a sipróprio, trate de fazer o bem e de se divertir,que já é um grande projeto pessoal.

Volto a destacar: bom humor e hu-mildade são essenciais para ficarmos em paz.Os arrogantes são os que menos conseguemconviver com a finitude, com a liberdade,com a solidão e com a falta de sentido davida. Eles se julgam imortais, eles queremditar as regras para os outros, eles recusam osilêncio e não vivem sem aplausos e holo-fotes, dos quais são patéticos dependentes. Aarrogância e a falta de humor conduzemmuita gente a um sofrimento que poderia serbastante minimizado: bastaria que elestivessem mais tolerância diante dasincertezas.

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Tudo é incerto, a começar pela data danossa morte. Incerto é nosso destino, pois,por mais que façamos escolhas, elas só semostrarão acertadas ou desastrosas lá adi-ante, na hora do balanço final. Incertos sãonossos amores, e por isso é tão importantesentir-se bem mesmo estando só. Enfim, in-certa é a vida e tudo o que ela comporta.Somos aprendizes, somos novatos, mas be-neficiários de uma dádiva: nascemos. Tive-mos a chance de existir. De nos relacionar.De fazer tentativas. O sentido disso tudo?Fazer parte. Simplesmente fazer parte.

Muitos têm uma dificuldade tremendaem aceitar essa transitoriedade. Por isso apsicoterapia é tão benéfica. Ela estende amão e ajuda a domar nosso medo. Só con-vivendo amigavelmente com estes quatrofantasmas – finitude, liberdade, solidão efalta de sentido da vida – é que conseguire-mos atravessar os dias de forma mais alegree desassombrada.

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16 de março de 2008379/434

UM CARA DIFÍCIL

Prezada leitora: se um dia você sair com umcara pela primeira vez, motivada a iniciar umrelacionamento amoroso, e ele adverti-ladizendo “sou um cara difícil”, acione a luzamarela. Ok, pode ser que seja apenascharminho dele, uma maneira de se valorizaraos seus olhos – usou o adjetivo “difícil”como oposto de “tedioso”. Sim, talvez ele sóqueira deixá-la ainda mais a fim, dizendouma frase desafiadora que pode ser traduz-ida como: será que você consegue dar contado meu temperamento explosivo, terá atrib-utos suficientes para me amansar e me fazervirar um cordeiro na sua mão? Mulheres ad-oram esse joguinho perigoso.

Só que pode não ser jogo algum, e eleestar sendo absolutamente modesto na suaprópria descrição: talvez ele não seja difícil, esim impossível.

Nenhum de nós é muito fácil, nem ho-mens, nem mulheres. Só o fato de termossido criados em cativeiro numa família comsuas próprias regras, valores e manias já fazde cada um de nós uma aposta arriscada nahora de ter que negociar com uma espécienascida em um cativeiro diferente. Mas,como relações entre irmãos são veemente-mente desaconselhadas, o jeito é procuraruma alma gêmea na praia, no bar, na rave, etorcer para que ele não dê o fatídico aviso“sou um cara difícil”, porque se ele for maisdifícil do que todos naturalmente são, aídanou-se.

O cara difícil vai estar superentusias-mado quando falar com você ao telefone pelamanhã e, à tardinha, ligará de novo para

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desmarcar o cinema porque precisa ficar soz-inho. E o mais grave: ele vai mesmo ficarsozinho, com a luz apagada, em embate si-lencioso com seus demônios internos.

Quando vocês estiverem na platéia deum show com três mil pessoas, ele vai encas-quetar que um homem de camiseta verde es-tá olhando com insistência pra você, e vai tercerteza de que você está retribuindo o olhar,e você vai perder a voz tentando explicar, nomeio daquela barulheira, que tem pelomenos oitocentos marmanjos de camisetaverde em volta, todos olhando pro palco.

Aliás, se estivessem olhando pra você,qual o problema, ele não se garante?

Que audácia, você peitou o cara difícil.Ele vai deixá-la sozinha no show e desligaráo celular por três dias. Se você não amá-lo, oprejuízo será apenas a bandeirada do táxique você terá que pegar para voltar sozinhapra casa, mas se você o ama, prepare-se para

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esvair-se em explicações e declarações, a fimde trazê-lo de volta à realidade. Um cara difí-cil exige uma paciência oceânica.

Ele vai ser romântico e muito bruto. Elevai ser generoso e muito casca-grossa. Ele vaidizer a verdade e vai mentir às vezes. Ele vaifazê-la se sentir uma eleita entre todas, e de-pois vai dar mole pra muitas. Ele vai implicarcom as mínimas coisas, e com as grandestambém. Ele vai exibir qualidades que vocênem sabia que um homem poderia ter e, emtroca, vai abusar de todos os defeitos que vo-cê sabia que todo homem tinha. Ele vai serótimo na cama. Vai ser um perigo dirigindoum carro. Vai ser gentil com sua mãe. Vai serum brucutu com a mãe dele. Ele mudará dehumor a cada vinte minutos, ele vai brigarpor nada, vai beijá-la demoradamente porhoras e, com essa bipolaridade bem ou maldisfarçada, ele a deixará tão tonta e exaustaque você pensará que foi atropelada por um

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trem descarrilhado. “Quem sou eu?” será suaprimeira pergunta ao acordar sobre ostrilhos.

No primeiro encontro, pergunte: você éum homem difícil? Se ele responder que é,procure imediatamente um psicanalista. Pravocê, santa.

23 de março de 2008

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JOGO DE CENA

O novo documentário de Eduardo Coutinho,Jogo de cena, merece ser visto por inúmerosmotivos.

Primeiro, é um show de humanidade.Na tela, uma seqüência de depoimentos demulheres anônimas de todas as gerações eclasses sociais. Elas contam seus dramasparticulares como se estivessem numa sessãode psicanálise. São dramas parecidos com osde todo mundo: relações complicadas comfilhos, separações conjugais, sonhos que fo-ram adiados, superações, o enfrentamentoda morte. Mas cada uma dessas históriastorna-se única pelo foco, pelo close, pelaatenção que somos convidados a dar para

cada uma dessas desconhecidas: atenção quequase não damos a mais ninguém aqui fora.

O pulo-do-gato da obra é que esses de-poimentos são intercalados pela aparição deatrizes famosas que interpretam essas mul-heres anônimas, repetindo o mesmo texto.Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Bel-trão aceitaram o desafio, e aí vem o in-stigante do filme: não chegaram lá, apesar detoda a tarimba que possuem. Os depoimen-tos verdadeiros dão um baile nos depoimen-tos encenados. Fica evidente que ninguémconsegue reproduzir uma emoção ver-dadeira, a não ser que não seja confrontadocom a referência que lhe inspirou, ou seja:essas atrizes dão vida a personagens fictíciosem novelas e peças de teatro com total com-petência, a gente até acredita que seus per-sonagens existam, mas quando eles existemmesmo e são confrontados com a inter-pretação que recebem, a interpretação é des-mascarada como tal. É incrível ver a reação

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das atrizes diante do resultado, elas ficamdesestabilizadas por não conseguiremdramatizar com naturalidade aquilo que nãoé arte roteirizada, e sim vida real. E é nessadesestabilização que as atrizes tambémmostram sua faceta mais humana – eacabam por participar do documentário comdepoimentos delas mesmas. Aí funciona.

Enfim, é um jogo de espelhosfascinante.

Por fim, mas não menos importante,todas as mulheres que aparecem no filme,por mais que tenham vidas sofridas – e comotêm! – não perdem sua graça. No auge deseus depoimentos dilacerantes, surge umaou outra frase que faz a platéia gargalhar,porque todas elas conseguem, em algum mo-mento de sua narrativa, buscar algo queatenua o drama, que alivia a pressão, que re-lativiza o que está sendo contado. Não im-porta que elas não sejam grandes intelec-tuais: são inteligentes em sua postura de

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vida, sabem que até do sofrimento é possívelarrancar um sorriso. Fiquei orgulhosa delase de todas as mulheres que, mesmo mergul-hadas em dor, não perdem a noção de que avida é apenas uma breve passagem e mereceser curtida com esperança e sem reverênciaextrema. No final das contas, ficou claro quea tal alegria brasileira é mesmo redentora.

26 de março de 2008

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MUITO BARULHO PORTUDO

Tem uns aí que acabaram de completartrinta anos de idade e já começam a falarcoisas como: “no meu tempo” isso, “no meutempo” aquilo. Imagina então quem estáfazendo quarenta. Ou cinqüenta. Ou mais.Está todo mundo em pânico, com medo deenvelhecer. O que, de certa forma, é ummedo mais razoável do que ter medo damorte: essa virá a qualquer hora e crau. Comsorte, a gente não vai nem perceber o que es-tá acontecendo. Já envelhecer é um processolento e com muitos dissabores. A perda da

energia. A perda do pique. A perda docharme. A perda da saúde física.

Por essas e outras, recomendo aos“idosos” que amam bossa nova, chorinho,jazz, música clássica, música barroca, músicainstrumental, pagode, samba e bolero quevão assistir imediatamente ao documentárioRolling Stones – Shine a Light. Você podeodiar rock’n’roll, mas se ama a vida e andasendo rondado pelo fantasma da decrep-itude, o filme é um tratamento de choque damelhor qualidade. Você sai do cinema comuma visão renovada da terceira idade.

Mick Jagger fará 65 anos em julho.Keith Richards, 65 em dezembro. O bateristaCharlie Watts tem 67, e o caçula Ron Wood,61. Não dá para dizer que eles têm uma pelede anjo – seus rostos mais parecem o GrandCanyon. O brilhante Martin Scorsese (66anos), que dirigiu Shine a Light com o tal-ento que a gente conhece não é de hoje,simplesmente não teve condescendência

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alguma com os quatro rapazes da banda: dápra enxergar até suas cáries.

Mas não é um filme de terror. Assistirpor duas horas a Mick Jagger no palco é aprova inconteste de que lá adiante, ou aliadiante (não sei em que idade você se encon-tra) não há, necessariamente, perda de ener-gia, nem perda de pique, nem perda decharme. Perda nenhuma de charme, aliás.

O homem é um dínamo.Apesar de mostrar um show quase o

tempo inteiro, lá pelas tantas aparece umacena de Jagger bem garoto, recémcomeçando a fazer sucesso, com aparênciade quem cheirava a leite (mas já com ar dequem cheirava outra coisa). Um jornalistapergunta a ele: “Você se imagina fazendo amesma coisa aos 60?” Resposta: “Fácil”. Eraprovocação, mas o fato é que ele chegou em2008 fazendo exatamente a mesma coisa. Sóum pouquinho mais ofegante, mas menos do

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que muito quarentão que faz meia hora deesteira na academia.

Além de um registro histórico da bandamais longeva e mais importante depois dosBeatles, esse documentário é de tirar ofôlego. Dá um tapa na cara do nosso cansaço,nos envergonha pela nossa falta de atitude(palavrinha manjada, mas é a que define osStones, não tem outra), e nos avisa: velhice?Sem essa. Nós também temos um palco:aqui, este. A vida. Também temos platéia,luz, figurino, a não ser que você tenha optadopor virar ermitão. Um resfriado violentopode nos jogar na cama e nos fazer sentirvelhos aos vinte anos, mas se temos saúde,não há velhice que nos detenha, a não serque tenhamos, por vontade própria, deixadode usar o cérebro.

Vá assistir ao documentário mesmogostando apenas de canto gregoriano. É umainjeção de adrenalina. E se você gosta derock como eu, bom, então nem preciso

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recomendar nada: você já deve ter ido e estáaí, fazendo planos para depois de se aposent-ar aos cem.

9 de abril de 2008

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DOIDAS E SANTAS

“Estou no começo do meu desespero/ e só

vejo dois caminhos:/ ou viro doida ou santa.”São versos de Adélia Prado, retirados dopoema “A serenata”. Narra a inquietude deuma mulher que imagina que mais cedo oumais tarde um homem virá arrebatá-la, logoela que está envelhecendo e está tomada pelaindecisão – não sabe como receber um novoamor não dispondo mais de juventude. E en-cerra: “De que modo vou abrir a janela, senão for doida? Como a fecharei, se não forsanta?”

Adélia é uma poeta danada de boa. Eperspicaz. Como pode uma mulher buscar

uma definição exata para si mesma estandoem plena meia-idade, depois de já ter tril-hado uma longa estrada onde encontroualegrias e desilusões, e tendo ainda mais es-trada pela frente? Se ela tiver coragem depassar por mais alegrias e desilusões – e agente sabe como as desilusões devastam –terá que ser meio doida. Se preferir se absterde emoções fortes e apaziguar seu coração,então a santidade é a opção. Eu nem precisodizer o que penso sobre isso, preciso?

Mas vamos lá. Pra começo de conversa,não acredito que haja uma única mulher nomundo que seja santa. Os marmanjos devemestar de cabelo em pé: como assim, e aminha mãe???

Nem ela, caríssimos, nem ela.Existe mulher cansada, que é outra

coisa. Ela deu tanto azar em suas relações,que desanimou. Ela ficou tão sem dinheirode uns tempos pra cá, que deixou de ter

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vaidade. Ela perdeu tanto a fé em dias mel-hores, que passou a se contentar com diasmedíocres. Guardou sua loucura em algumagaveta e nem lembra mais.

Santa mesmo, só Nossa Senhora, mas,cá entre nós, não é uma doideira o modocomo ela engravidou? (Não se escandalize,não me mande e-mails, estou brin-can-do.)

Toda mulher é doida. Impossível nãoser. A gente nasce com um dispositivo inter-no que nos informa desde cedo que, semamor, a vida não vale a pena ser vivida, e dá-lhe usar nosso poder de sedução para encon-trar “the big one”, aquele que será inteli-gente, másculo, se importará com nossossentimentos e não nos deixará na mão ja-mais. Uma tarefa que dá para ocupar umavida, não é mesmo? Mas além disso temosque ser independentes, bonitas, ter filhos efingir, às vezes, que somos santas, ajuizadas,responsáveis, e que nunca, mas nunca,

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pensaremos em jogar tudo para o alto e em-barcar num navio pirata comandado peloJohnny Depp, ou então virar uma cafetina,sei lá, diga aí uma fantasia secreta, sua ima-ginação deve ser melhor que a minha.

Eu só conheço mulher louca. Pense emqualquer uma que você conhece e me diga seela não tem ao menos três destas quali-ficações: exagerada, dramática, verborrágica,maníaca, fantasiosa, apaixonada, delirante.Pois então. Também é louca. E fascinante.

Todas as mulheres estão dispostas a ab-rir a janela, não importa a idade que tenham.Nossa insanidade tem nome: chama-seVontade de Viver até a Última Gota. Só ascansadas é que se recusam a levantar da ca-deira para ver quem está chamando lá fora.E santa, fica combinado, não existe. Umamulher que só reze, que tenha desistido dosprazeres da inquietude, que não deseje mais

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nada? Você vai concordar comigo: só sendolouca de pedra.

13 de abril de 2008

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A MULHER BANANA

A esta altura do campeonato, você já devesaber quem é a Mulher Melancia e a MulherJaca. São duas dançarinas de funk que gan-haram notoriedade por possuírem quadrisavantajados (respectivamente, 121 centímet-ros uma, 101 centímetros a outra). Essa étoda a história, com começo, meio e fim.

Tem também a Mulher Rodízio, formabem-humorada com que a Preta Gil se auto-batizou, justificando que ela tem carne pratodo mundo.

Pois agora vou apresentar pra vocês agrande novidade desse mercado tão nutrit-ivo: a Mulher Banana.

A Mulher Banana, se tivesse um quadrilde 120cm, correria três horas por dia numaesteira. Se isso não adiantasse, correria parauma mesa de cirurgia a fim de lipoaspiraruns cinco bifes de cada lado, pois ela achaque ter um bundão desmesurado é uma coisameio vulgar. Faria isso por vaidade, poisacredita que, na prática, não faz a menordiferença para os homens se a mulher tem90 centímetros ou 120 centímetros. Eu aviseique ela é banana.

Essa questão da vulgaridade quase adeixa doente. Ela não se conforma que essabobajada ganhe tanto espaço na imprensa,incentivando um monte de menininhas atambém rebolarem no pátio da escola. Elamorre de vergonha ao ver a mãe da MulherMelancia dizer para um repórter que sentemuito orgulho de ter uma filha vitoriosa. Elase pergunta: pelamordedeus, não existe

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ninguém pra avisar essa gente que ter bundanão é um talento? A Mulher Banana é total-mente sem noção, coitada.

A Mulher Banana não se dá conta deque há pouco assunto para muito espaço namídia. Não há novidade que chegue parapreencher tanto conteúdo de internet, tantamatéria de revista, tanto programa de tevê, eé por isso que qualquer bizarrice vira notícia.Sem falar que, hoje em dia, tudo é cultura demassa, tudo é pop, tudo é passível de análisepara criarmos uma identidade nacional. Não,não, não pode ser!! Pode, Mulher Banana.

A Mulher Banana, como o próprionome diz, é ingênua, inocente, tolinha. Elaacredita que o discernimento nasceu para to-dos e que ser elegante vale mais do que serordinária. É boba, mesmo. Não no mercadodas mulheres hortifrutigranjeiras, minha

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cara. Aliás, mercado ao qual você tambémpertence. Banana.

A Mulher Banana ainda se choca comcertas imagens, com certas fotos. Não que eladesacredite no que está bem diante do seunariz (já sondei e não tem parentesco algumcom a Velhinha de Taubaté). Ela vê, ela sabe,ela está bem informada. Só que não con-segue tirar isso pra piada, não leva na boa,não passa batido: ela é tão banana que seimporta!!

Aviso desde já que a Mulher Banananão tem empresário, não posa para sites er-óticos, não dá entrevistas e muito menosaceita sair de dentro de um bolo giganteusando apenas um tapa-sexo. Ela é banana.Vai morrer sem dinheiro, só é rica empotássio. E não pense que é movida à inveja.Se fosse, invejaria a bundinha da GiseleBündchen, que também andou à mostra por

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esses dias e tem um tamanho bem razoável.A Mulher Banana, tadinha, ainda sonha coma valorização de um padrão estético razoávele de um comportamento social menos nan-ico. Não pode ser brasileira! Mas é, conheço-a como a mim mesma.

20 de abril de 2008

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NÃO SORRIA, VOCÊESTÁ SENDO FILMADO

Sou incentivadora de alguns métodos clássi-cos para garantir a segurança pública – porexemplo, policiais bem remunerados e bemtreinados, e em quantidade suficiente paramonitorar as ruas. Mas não sou fanática.Tenho me constrangido com um procedi-mento que está se tornando comum nos“prédios inteligentes”, todos eles de escritóri-os. Falo dessa mania irritante de nos fichar-em na recepção.

Antes de pegar o elevador, é precisopassar por uma catraca. E, antes da catraca,há os recepcionistas que, não bastasse

pedirem nossos documentos (até aí, ok), pe-dem para nos fotografar e também para quea gente aplique nossa digital num sensorpara que a visita fique registrada para a pos-teridade. Não deve ser muito diferente de en-trar num presídio, só que não estou visitandonenhuma cadeia de segurança máxima,quero apenas consultar um dentista.

Outro dia fui bem antipática numdesses halls de entrada, logo eu que costumoser uma flor de condescendência.

Pediram documentos, dei.Pediram para tirar foto, tirei.Pediram para aplicar minha digital

numa máquina, apliquei.Mas minha digital não ficou registrada.

Sei lá, o teclado do computador deve tergasto a ponta dos meus dedos.

Então a recepcionista me perguntou:posso passar um hidratante na sua mão?

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Juro, sou calma, uma monja benedit-ina, mas não vou passar um hidratantequalquer no meio de uma tarde calorenta sóporque minha digital não está sendo bem re-gistrada por uma máquina incompetente.Vim trazer minha filha para uma consulta derevisão, e não trazer escondido um celularpara um traficante.

Coitada da moça, estava ali apenascumprindo ordens. Eu não disse nada disso,não nesse tom, mas, admito, me recusei apassar o tal creme. Acabaram me deixandoentrar a contragosto, temendo que eu vi-olasse todos os códigos de segurança e est-ivesse escondendo uma Uzi embaixo dovestido a fim de cometer uma carnificinanaquele prédio todo espelhado. Ah, me deuvontade mesmo de incorporar um JavierBardem, de cabelinho chanel e portandouma arma de matar gado. Onde os fracos nãotêm vez, rá-tá-tá-tá.

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Da mesma forma, meu espíritoselvagem aflora cada vez que vejo uma placaavisando: sorria, você está sendo filmado!Sorrio nada. E quase viro um HannibalLecter quando passo por aquelas portas gir-atórias e intimidatórias dos bancos, onderevistam nossa bolsa como se vasculhassemnossa alma. Sei que são tempos difíceis eparanóicos, sei que todo esse aparato servepara identificar criminosos, mas cá entrenós: é uma praga essa histeria com segur-ança. Daqui a pouco essa vigilância insanavai se tornar mais desconfortável do que sergentilmente assaltado.

23 de abril de 2008

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DIFERENÇA DENECESSIDADES

“Procedíamos de galáxias diferentes, comodois cometas que se cruzam efemeramenteno espaço. Ele vinha da infância e nuncativera uma parceira estável, queria me viveraté me esgotar, queria que montássemosjuntos uma casa, que sonhássemos um fu-turo, que nos enchêssemos de compromissosde eternidade até as orelhas. Eu provinha dafatigante travessia da idade madura e sabiaque a eternidade sempre se acaba, e tantomais cedo quanto mais eterna. E assim fuiavarenta, me neguei a ele, afastei-o de mim.Quanto mais ele me exigia, mais me sentia

asfixiada; e, quanto mais me regateava, maisansiosamente ele queria me segurar. Ditoisso, se ele se retirava, eu avançava, e então operseguia e o exigia: porque o amor é umjogo perverso de vasos comunicantes.”

Gastei bom pedaço da coluna transcre-vendo esse parágrafo do excelente livro Afilha do canibal, da espanhola Rosa Montero,pois eu não saberia descrever melhor a razãode tantos desencontros amorosos. O relatorefere-se a um homem e uma mulher com al-guma diferença de idade – ela é a mais velha,lógico, como tem se tornado comum hoje emdia. Muitas pessoas duvidam de que uma re-lação assim possa dar certo. Claro que pode.Tudo pode dar certo e tudo pode dar errado,e a idade nada tem a ver com isso, é apenasum detalhe na certidão de nascimento. O quetransforma nossa vida amorosa num melo-drama é a diferença de necessidades. Aí nãohá casal que encontre seu ponto de apoio,seu eixo e seu futuro.

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Um quer compromisso sério; para ooutro, amar já é sério o suficiente. Um querfilhos, o outro nem em sonhos. Um quer umacasinha no meio do mato, o outro é curioso,precisa de informação, cinema, teatro, gente.Um valoriza a transa antes de tudo, o outroacha que conversar é importante também.Ao menos, os dois gostam de dançar.

Um quer se sentir o centro do universo,o outro quer incluí-lo no seu amplo universo.Um quer fugir da solidão, o outro aceita asolidão. Um não quer falar de suas dores, ooutro pergunta demais. Um briga por amor,o outro silencia por amor. Os dois se amam,isso não se discute.

Um não precisa conhecer o mundo, ooutro traz o mundo em si. Um é românticopara disfarçar a brutalidade, o outro é docepara despistar a secura. Um quer muito detudo, o outro se contenta com o mínimo es-sencial. Nenhum dos dois liga pra dinheiro,mas o dinheiro quase sempre está no bolso

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de quem viveu mais. Um fica inseguro, ooutro diz que nada disso importa, mas claroque importa.

Um quer que lhe dêem atenção por 24horas, o outro precisa que lhe esqueçam poruns instantes. Um quer aproveitar cada rés-tia de sol, o outro gostaria de dormir umpouco mais. Um gostaria de saber o que nãosabe, o outro queria desaprender metade doque a vida lhe ensinou. Um precisa berrar, ooutro chora.

Um quer ir embora e, ao mesmo tempo,não. O outro quer liberdade, mas a dois.

Então um se vai e deita em todas as ca-mas, sofrendo. E o outro mergulha sozinhona dor, sobrevivendo.

Diferença de idade não existe. A ne-cessidade secreta de cada um é que destróiilusões e constrói o que está por vir.

4 de maio de 2008

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O ÔNIBUS MÁGICO

Embriagada. Acho que essa é a palavra queresume como saí do cinema depois de assi-stir Na natureza selvagem, filme brilhante-mente dirigido por Sean Penn, que conta ahistória de Christopher McCandless, um ga-roto americano de 23 anos que, depois de seformar, larga tudo e sai pelo mundo comoum andarilho até chegar no Alasca, ondepretende levar às últimas conseqüências suaexperiência de desprendimento, solidão econtato com a natureza. No meio do cam-inho, faz novos amigos e realiza trabalhostemporários, tudo isso em meio a um cenáriomais que deslumbrante, e sob a trilha sonorade Eddie Vedder, vocalista do Pearl Jam.

Aconteceu de verdade. É a história realde Chris, mas poderia ser a história de mui-tos de nós – alguns que levaram esse sonhoadiante anonimamemte e outros (a maioria)que nem chegaram a planejá-lo, mas quesonharam com isso. Quem de nós – osidealistas – não imaginou um dia viver emliberdade total, sem destino, sem com-promisso, recebendo o que o dia traz, os de-safios que vierem, em total desapego aosbens materiais e em comunhão absoluta coma natureza e as emoções? Só se você nuncateve vinte anos.

Chris, depois de muito trilhar pelas es-tradas, chega ao Alasca e encontra, em cimade uma montanha, a carcaça de um ônibusvelho e abandonado, que ele logo trata debatizar de “ônibus mágico”: faz dele seu lar.Ali ele dorme, escreve, lê, cozinha os animaisque caça e vive plenamente a busca pela suaessência. É nesse lugar que consegue atingirum contato mais íntimo com o que ele é de

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verdade, até que um dia decide: ok, agora es-tou preparado para voltar, e quem viu o filmee leu o livro (sim, também há um livro) con-hece o desfecho.

Esqueça-se o desfecho.Fixemos nossa atenção no ônibus mági-

co que cada um traz dentro de si, ainda. Aomenos aqueles que não perderam o ideal-ismo, o romantismo e a porra-louquice da ju-ventude. Eu conservo o meu “ônibus” e estoucerta de que você tem o seu. Porque, franca-mente, tem hora que cansa viver rodeado dearranha-céus, com trânsito congestionado,com pessoas óbvias, com conversas inúteis eestando tão distante de mares, lagos emontanhas. Todo dia a gente perde umpouquinho da nossa identidade por causa demedos padronizados e cobranças coletivas.Antes de descobrir qual é a nossa turma –seja a turma dos bem-sucedidos, dos descol-ados, dos espertos – é bom estar agarrado aoque nos define, e isso a gente só vai descobrir

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se estiver em contato com nossos sentimen-tos mais primitivos. Não é preciso ir aoAlasca, não é preciso radicalizar, masmanter-se fiel à nossa verdade já é meiocaminho andado.

7 de maio de 2008

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UM POEMA FILMADO

Eu recomendei, cerca de um mês atrás, atrilha sonora de My Blueberry Nights, que éexcelente. Agora vi o filme, que no Brasilganhou o nome de Um beijo roubado. Ésobre o que, esse filme? Sobre absoluta-mente nada, a não ser a vida, essa que passapela nossa janela sem roteiro, sem diálogosgeniais, simplesmente a vida que nos con-vida: vai ou fica?

Ela, a vida, essa que nos faz entrar embares suspeitos, chorar de amor, espiar pelasfrestas, pegar no sono em cima do balcão de-pois de beber demais. É noite escura e agente sofre calado, deixa a conta pendurada,bebe de novo quando havia prometido parar

e morre – morre mesmo! – de ciúmes semter tido tempo de saber que éramos amados.

A vida e nossos vícios, nossas perdas,nossos encontros: quanto mais nos rela-cionamos com os outros, mais conhecemos anós mesmos, e é uma boa surpresa descobrirque, afinal, gostamos de quem a gente é, equando isso acontece fica mais fácil voltar aonosso local de origem, onde tudo começou.

A vida e a espera por um telefonema, avida e seus blefes, e nosso cansaço, e nossossonhos, e a rotina e as trivialidades, e tudoaquilo que parecerá sem graça se ninguémcolocar um pouco de poesia no olhar. A vidae suas pessoas belas, feias, fortes, fracas,normais. Todas atrás da chave: aquela queabrirá novas portas, velhas portas, a chaveque nos fará ter o controle da situação – masqueremos mesmo ter o controle da situação?Não será responsabilidade demais? Deixar achave nas mãos do destino é uma opção.

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Os sinais fecham, os sinais abrem. Vocêsegue adiante, você freia. A gente atravessa arua e vai parar em outro mundo, basta dar osprimeiros passos. Viaja para esquecer, viajapara descobrir, e alguém fica parado nomesmo lugar, aguardando (quando pequeno,sua mãe lhe ensinou que, ao se perder namultidão, não é bom ficar ziguezagueando,melhor manter-se parado no mesmo lugar, aífica mais fácil ser encontrado). Muitos estãoparados no mesmo lugar, torcendo para ser-em descobertos.

A vida como uma estrada sem rumo, avida e seus sabores compartilhados, um beijotambém é compartilhar um sabor.

Afinal, vou ou não vou falar sobre ofilme? Contei-o de cabo a rabo. Vá compoesia no olhar.

25 de maio de 2008

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OS OLHOS DA CARA

Recentemente participei de um eventoprofissional só para o público feminino. Eraum bate-papo com uma platéia composta deumas 250 mulheres de todas as raças, credose idades. Principalmente idades. Lá pelastantas fui questionada sobre a minha, e,como não me envergonho dela, respondi. Foium momento inesquecível. A platéia inteirafez um “Oooohh” de descrédito. E quando eudisse que, até aqui, ainda não enfiei uma ún-ica agulha no rosto ou no corpo, foi maisemocionante ainda: “Oooooooooooooooohh-hhhh”. Aí fiquei pensando: pô, estou nesteauditório há quase uma hora exibindo minha

incrível e sensacional inteligência, e a únicacoisa que provocou uma reação calorosa namulherada foi o fato de eu não aparentar aidade que tenho. Onde é que nós estamos?

Onde não sei, mas estamos correndoatrás de algo caquético chamado “juventudeeterna”. Estão todos em busca da reversão dotempo, e com sucesso: quanto mais elepassa, mais moços ficamos. Ok, acho ótimo,porque decrepitude também não é meusonho de consumo, mas cirurgias estéticasnão dão conta desse assunto sozinhas. Háum outro truque que faz com que continue-mos a ser chamadas de senhoritas mesmoem idade avançada. A fonte da juventudechama-se mudança. Eu sei disso, você sabe, ea escritora Betty Milan também, tanto queenfatizou essa frase em seu mais recente liv-ro, Quando Paris cintila. De fato, quem é es-cravo da repetição está condenado a virar

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cadáver antes da hora. A única maneira desermos idosos sem envelhecer é não nosopormos a novos comportamentos, é ter dis-posição para guinadas. É assim que se morrejovem, sem precisar termos o mesmo destinode um James Dean ou de uma Marylin Mon-roe. Eu pretendo morrer jovem aos 120 anos.

Mudança, o que vem a ser tal coisa?Minha mãe recentemente se mudou do

apartamento em que morou a vida toda paraum bem menorzinho. Teve que vender e doarmais da metade dos móveis e tranqueirasque havia guardado e, mesmo tendo feitoisso com certa dor, ao conquistar uma vidamais compacta e simplificada, rejuvenesceu.Uma amiga casada há 38 anos cansou dasgalinhagens do marido e o mandou passear,sem temer ficar sozinha aos 65 anos de id-ade. Rejuvenesceu. Uma outra cansou dapauleira urbana e trocou um ótimo emprego

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em Porto Alegre por um não tão bom, só queem Florianópolis, onde ela caminha na beirada praia todas as manhãs. Rejuvenesceu.

Toda mudança cobra um alto preçoemocional. Antes de tomar uma decisão difí-cil, e durante a tomada, chora-se muito, osquestionamentos são inúmeros, a vida sedesestabiliza. Mas então chega o depois, acoisa feita, e aí a recompensa fica escan-carada na face.

Mudanças fazem milagres por nossosolhos, e é no olhar que se percebe a tal juven-tude eterna. Um olhar opaco pode ser pux-ado e repuxado por um cirurgião a ponto deas rugas sumirem, só que continuará opaco,porque não existe plástica que resgate seubrilho. Quem dá brilho ao nosso olhar é avida que a gente optou por levar. Um olhariluminado, vivo e sagaz impede que a pessoaenvelheça. Olhe-se no espelho. Você tem um

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olhar de quem estaria disposta a cometerloucuras? Tem que ter.

E aí pode abrir o jogo, contar a ver-dade: tenho 39, 46, 57, 78 anos! Ooooooohh-hhh. Uma guria.

1º de junho de 2008

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ABSOLVENDO O AMOR

Duas historinhas que envolvem o amor.A primeira: uma mulher namora um

príncipe encantado por três meses e entãodescobre que ele não é príncipe coisa nen-huma, e sim um bobalhão que não soubeequalizar as diferenças e sumiu no mundosem se despedir. Mais um, segundo ela. Sãotodos assim, os homens. Ela resmunga: “Nãodá mesmo para acreditar no amor”.

Peraí. Por que o amor tem que levar aculpa desses desencontros? Que a princesanão acredite mais no Pedro, no Paulo ou noPafúncio, vá lá, mas responsabilizar o amorpelo fim de uma relação e a partir daí nãoquerer mais se envolver com ninguém é

preguiça de continuar tentando. Não foi oamor que caiu fora. Aliás, ele talvez nemtenha entrado nessa história. Quando entra,é para contribuir, para apimentar, para fazerfeliz. Se o relacionamento não dá certo, ou dácerto por um determinado tempo e depoisacaba, o amor merece um aperto de mãos,um muito obrigada e até a próxima. Fiquecom o cartão dele, você vai chamá-lo denovo, vai precisar de seus serviços, estejacerta. Dispense namorados, mas não dis-pense o amor, porque esse estará sempre apostos. Viver sem amor por uns tempos énormal. Viver sem amor pra sempre é azarou incompetência. Só não pode ser umaescolha, nunca. Escolher não amar é suicídiosimbólico, é não ter razão pra existir. Nãoadianta querer compensar com amor pelosamigos, filhos e cachorros, não é com elesque você fica de mãos dadas no cinema.

Segunda história: uma mulher amaprofundamente um homem e é por ele

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amada da mesma forma, os dois dormemembolados e se gostam de uma maneiraquase indecente, de tão certo que dá a re-lação. Tudo funciona como um relógio queora atrasa, ora adianta, mas não pára, umtiquetaque excitante que ela não divulga paraas amigas, não espalha, adivinhe por quê:culpa. Morre de culpa desse amor que fun-ciona, desse amor que é desacreditado emmatérias de jornal e em pesquisas, desseamor que deram como morto e enterrado,mas que na casa dela vive cheio de gás e queameaça ser eterno. Culpa, a pobre mulhersente, e mais: sente medo. Nem sabe de que,mas sente. Medo de não merecê-lo, medo deperdê-lo, medo do dia seguinte, medo das es-tatísticas, medo dos exemplos das outrasmulheres, daquela mulher lá do início dotexto, por exemplo, que se iludiu com maisum bobalhão que desapareceu sem deixarrastro – ou bobalhona foi ela, nunca se sabe.Mas o fato é que terminou o amor da mulher

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lá do início do texto, enquanto que essa mul-her de fim de texto, essa criatura feliz eapaixonada é ao mesmo tempo infeliz e tem-erosa porque teve a sorte de ser premiadacom aquilo que tanta gente busca e poucoencontra: o tal amor como se sonha.

Uma mulher infeliz por ter amor demenos, outra, infeliz por ter amor demais, eo amor injustamente crucificado por ambas.Coitado do amor, é sempre acusado de pro-vocar dor, quando deveria ser reverenciadosimplesmente por ter acontecido em nossavida, mesmo que sua passagem tenha sidobreve. E se não foi, se permaneceu em nossavida, aí é o luxo supremo. Qualquer amormerece nossa total indulgência, porquequem costuma estragar tudo, caríssimos, nãoé ele, somos nós.

8 de junho de 2008

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A GAROTA DA ESTRADA

Basta entrar na estrada e ela vira uma pessoadiferente. Coloca a música que mais gosta,abre a janela do carro e pensa, com um sor-riso indisfarçado: “Estou deixando pra trásaquela outra”. No porta-malas, uma sacolacom as roupas que a outra não usa durante asemana – tênis, um jeans surrado, umascamisetas e um biquíni. Seu iPod. Suacâmera fotográfica. Um livro ou dois, porqueé preciso terminar a leitura que aquela outracomeçou, mas nunca tem tempo para con-cluir. Palavras cruzadas, um vício que ela nãoconta pra ninguém. Uma garrafa de cham-panhe, porque na pousada pode não ter. Eela está ao lado do amor da sua vida, coisa

que a outra não consegue dar valor, já que étão atarefada.

Ao passar por cada placa de sinalização,mais distante ela fica da sua cidade e maisperto de si mesma. Os assuntos durante otrajeto? Os mais bobos, os mais sérios, masnada discutido com pressa e nem com ne-cessidade de conclusão, a única regra é nãodeixar de se divertir. Não é todo dia que sesai de férias, mesmo que durem apenas 48horas de um final de semana. Não são fériasde julho nem férias de verão: férias da outra!

Pelo espelho retrovisor lateral, ela per-cebe que está sem batom. Ora, ele vai beijá-la de novo daqui a dez minutos, nem vale apena retocar. Claro que ela levou o batom:está indo para um recanto secreto, mas nãoperdeu o juízo. Deixou na casa da outra assombras, bases, esfoliantes, mas o batom e osecador, isso ela não consegue abandonar.Não tem mais quinze anos.

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Também não tem mais dezoito, nemvinte, nem trinta. Mas quem é que consegueconvencê-la de que não é mais uma garota?Aquela outra, a que ficou, bem que tenta.Abre a agenda e mostra todos os compromis-sos marcados. Avisa que a geladeira estávazia. Coloca sobre a mesa todas as contaspra pagar. Abre o site do banco e analisa seuextrato. Traz à tona as encrencas da família,os problemas dos filhos. Marca hora nomédico. E, cruel, se posiciona na frente deum espelho muito maior do que um retrovis-or de carro e pergunta à queima-roupa: éuma garota que você está enxergando na suafrente? Uma tentativa de aniquilamento,mas felizmente malsucedida.

Ela lembra disso tudo enquanto está naestrada e pensa: a outra tem razão, alguémtem que trabalhar, pagar as contas, cumprira agenda, dar ordens, receber ordens, ser re-sponsável. Mas não todo dia, não toda a vida.Aquela lá, a que ficou, é uma mulher

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confiável, é uma mulher de olho no relógio eno calendário, uma mulher cumpridora doque esperam dela. Mas ela não pode estar nocontrole o tempo todo, ela tem que permitirque eu escape dessa organização de vez emquando, que eu busque a alegria sem horamarcada, o descomprometimento total, queeu fique à-toa desde a hora de acordar até ahora de dormir, um dia inteiro, dois dias in-teiros. Ela tem que aceitar e até mesmo in-centivar que eu pegue essa estrada e a deixede lado, que eu faça isso sem culpa, que eufaça isso por ela.

Eu, a garota dentro dela.

13 de julho de 2008

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As crônicas deste livro foram originalmente publicadas nos

jornais O Globo e Zero Hora.

Capa: Marco Cena

Revisão: Jó Saldanha e Patrícia Rocha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M44d

Medeiros, Martha, 1961-

Doidas e santas [recurso eletrônico] / Martha Medeiros. –

Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

recurso digital

Formato: ePub

Requisitos do sistema:

Modo de acesso:

ISBN 978.85.254.0691-0 (recurso eletrônico)

1. Crônica brasileira. 2. Livros eletrônicos I. Título.

10-6333.

CDD: 869.98

CDU: 821.134.3(81)-8

07.12.10 16.12.10023321

© Martha Medeiros, 2008

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