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Documentários de natureza: um panorama a partir dos Estudos Culturais Historicamente, o gênero documentário se tornou uma das principais indústrias de informação e entretenimento, sendo suas produções facilmente encontradas em espaços domésticos, escolares e educacionais. Cristina Bruzzo (1998) afirma que, quando as pessoas se preparam para assistir a um documentário, se preparam para assistir a um trecho de uma realidade, à “vida como ela é”. Costuma-se separar gêneros de filme em ficção e não ficção antes de qualquer outra classificação: filmes de ficção supostamente contam histórias, fábulas, trabalham com criatividade e efeitos especiais para inventar um mundo à parte; e as obras de não ficção, os documentários, narram e mostram supostas realidades sobre uma pessoa, um povo, um evento ou algum acontecimento da natureza. Bruzzo (1998, p.23), na comparação entre filmes de ficção e não ficção, mostra que se trata de uma visão muito simplista das coisas: (...) o primeiro conta uma história e o segundo mostra a realidade. A decorrência desta simplificação é que o filme de ficção serve ao entretenimento, enquanto atribui-se ao documentário a enunciação da verdade, portanto a possibilidade de se aprender alguma coisa. Logo este cabe perfeitamente na escola, enquanto o outro requer cuidado em seu uso pedagógico, porque, sendo ficção, engana (BRUZZO, 1998, p.23). Bruzzo (1998) mostra que nas escolas e faculdades, sempre que se pleiteia a possibilidade de assistir a algum filme com os alunos, se busca alguma “finalidade pedagógica”, seja sobre assuntos específicos referentes às disciplinas curriculares ou sobre o desenvolvimento de determinados tipos de valores junto aos alunos. Dificilmente enfatizam-se, em sala de aula, as possibilidades artísticas e criativas abertas por esse ou aquele filme pelo menos, não nas aulas de Ciências e Biologia , mas essa é uma discussão que não pretendo desenvolver neste momento. O que quero, aqui, é reforçar que inúmeros filmes de ficção passam pelas escolas porque são “baseados em fatos históricos” (e, portanto, teriam uma “aura” de fidedignidade). Já os filmes documentários que também povoavam as atividades de muitos professores carregam (em seu próprio nome) uma espécie de legitimação, pois se trataria de um “documento” – algo que atesta uma realidade. Mas tais distinções, como veremos, não

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Documentários de natureza: um panorama a partir dos Estudos

Culturais

Historicamente, o gênero documentário se tornou uma das principais indústrias

de informação e entretenimento, sendo suas produções facilmente encontradas em

espaços domésticos, escolares e educacionais. Cristina Bruzzo (1998) afirma que,

quando as pessoas se preparam para assistir a um documentário, se preparam para

assistir a um trecho de uma realidade, à “vida como ela é”. Costuma-se separar gêneros

de filme em ficção e não ficção antes de qualquer outra classificação: filmes de ficção

supostamente contam histórias, fábulas, trabalham com criatividade e efeitos especiais

para inventar um mundo à parte; e as obras de não ficção, os documentários, narram e

mostram supostas realidades sobre uma pessoa, um povo, um evento ou algum

acontecimento da natureza. Bruzzo (1998, p.23), na comparação entre filmes de ficção e

não ficção, mostra que se trata de uma visão muito simplista das coisas:

(...) o primeiro conta uma história e o segundo mostra a realidade. A

decorrência desta simplificação é que o filme de ficção serve ao

entretenimento, enquanto atribui-se ao documentário a enunciação da

verdade, portanto a possibilidade de se aprender alguma coisa. Logo

este cabe perfeitamente na escola, enquanto o outro requer cuidado em

seu uso pedagógico, porque, sendo ficção, engana (BRUZZO, 1998,

p.23).

Bruzzo (1998) mostra que nas escolas e faculdades, sempre que se pleiteia a

possibilidade de assistir a algum filme com os alunos, se busca alguma “finalidade

pedagógica”, seja sobre assuntos específicos referentes às disciplinas curriculares ou

sobre o desenvolvimento de determinados tipos de valores junto aos alunos.

Dificilmente enfatizam-se, em sala de aula, as possibilidades artísticas e criativas

abertas por esse ou aquele filme – pelo menos, não nas aulas de Ciências e Biologia –,

mas essa é uma discussão que não pretendo desenvolver neste momento. O que quero,

aqui, é reforçar que inúmeros filmes de ficção passam pelas escolas porque são

“baseados em fatos históricos” (e, portanto, teriam uma “aura” de fidedignidade). Já os

filmes documentários que também povoavam as atividades de muitos professores

carregam (em seu próprio nome) uma espécie de legitimação, pois se trataria de um

“documento” – algo que atesta uma realidade. Mas tais distinções, como veremos, não

são tão simples, pois tanto o cinema de ficção quanto o de não-ficção são plurais – e,

além disso, para os Estudos Culturais, a separação entre “fantasia” e “realidade” perde a

importância, pois filmes de ficção e de não-ficção são, todos eles, constructos culturais.

Quando se trata de documentário de natureza, a realidade supostamente captada

pela câmera é ainda mais difícil de questionar. Podemos pensar que é comum questionar

o que um filme documental mostra, principalmente, em se tratando de documentários

feitos com pessoas ou sobre elas. Neste caso, sempre há margem para questionamentos

tais como: “será que estão falando a verdade? ”, “será que não foram pagos para dizer

isso? ”, “será que não alteraram o lugar filmado? ”, “será que essas pessoas não foram

influenciadas em suas falas porque estão diante de câmeras? ”. Mas como questionar

um filme que mostra a vida de um grupo de elefantes? De insetos? De lobos? Animais

não podem atuar, afinal.

Bill Nicholls (2005), em seu livro “Introdução ao documentário”, classifica os

documentários em subgêneros para mostrar que existem muitos modos e estilos de

produção de documentários. Ele salienta como são organizados e que estratégias são

acionadas para construí-los. O autor elenca seis modos de representação – isto é, seis

“conjuntos de regras que modulam a construção do espaço, do tempo e da enunciação

do relato audiovisual”: o modo poético; o modo expositivo; o modo observacional; o

modo participativo; o modo reflexivo; e o modo performativo. Os modos de narrar não

podem ser assumidos de maneira “pura”, ou seja, um filme pode misturar elementos de

diferentes modos e sistemas expressivos, mas, normalmente, há a predominância de

algum deles. Os documentários de natureza, em sua maioria, são produzidos desde a

lógica do modo expositivo – mas isso, de fato, é cada vez mais variado. Andrea

Molfetta (2008), pensando sobre o conceito de Nicholls de “modo expositivo” de

representação, enfatiza que os filmes da National Geographic, por exemplo,

apresentam, mostram, descrevem e narram histórias supostamente verídicas, e que

“ninguém duvida da janela de aventuras e excentricidades que eles nos trazem sobre o

Mundo Natural. Em síntese, é a estética naturalista, o cinema como janela para o

mundo. Nós cremos no que o filme nos diz e nos ensina” (MOLFETTA, 2008, p. 20)..

O filme documentário tem por característica sustentar-se, supostamente, por

acontecimentos “reais” – isto é, “tratar efetivamente daquilo que ocorreu, antes ou

durante as filmagens, e não daquilo que poderia ter acontecido" (PUCCINI, 2009, p.

101). Um documentário não traduz uma realidade dada e, sim, uma representação dela,

sob o ponto de vista de quem o constrói. Portanto, ver animais, plantas e fenômenos

naturais nos filmes documentais não pode ser equiparado a uma suposta expressão

exata, natural e definitiva.

Derek Bousé relata em seu site que, no final de 1800, Eadweard Muybridge

lançou as bases para o cinema moderno e, também, do gênero documentário de/sobre

natureza, com seus experimentos fotográficos com animais em movimento, como o

famoso The Horse in Motion (1882), no qual diversas câmeras foram dispostas ao longo

de uma pista de corrida de cavalos, e o conjunto das várias fotos gerou o primeiro

registro de imagem em movimento da história.

Os primeiros filmes (curta metragens) gravados entre os anos de 1894 e 1907

capturavam momentos isolados, partes de eventos como o desabrochar de uma flor, a

metamorfose de uma lagarta à borboleta, e o próprio galopar de um cavalo, como o do

filme citado anteriormente. Já Spiders on the Web (1900), produzido por G.A. Smith, é

considerado um dos primeiros exemplos de filme de história natural em close-up1, já

que consistiu no registro visual de aranhas presas em cativeiro. Diferentemente da

tendência contemporânea na qual a megafauna exótica (leões, elefantes, onças) é

protagonista da maioria dos documentários de natureza, os experimentos com as

câmeras no final do século XIX e início do século XX se limitavam a locais próximos,

devido ao enorme aparato de gravação da época e ao (também enorme) tempo de

exposição à câmera para a produção das imagens. Outro exemplo de documentário do

período é Cheese Mites (1903) de Charles Urban2, que mostra ácaros rastejando no

queijo colocado sobre a mesa de café da manhã de Urban, em um close-up considerado

“inovador” para a época. Charles Urban (1867-1942) foi considerado uma das mais

importantes figuras da indústria cinematográfica britânica do período, pois criou seu

próprio projetor, o Bioscope, em 1897, com o qual exibia os filmes que desenvolvia

1 Termo utilizado no campo da Fotografia e do Cinema para se referir a imagens focalizadas bem de

perto, um plano fechado em determinado objeto ou pessoa, gerando destaque e detalhamento da cena. 2 A biografia e os filmes produzidos por Charles Urban estão reunidos em um site comemorativo feito

em homenagem a sua contribuição para a história do cinema. Disponível em:

http://www.charlesurban.com/, acesso em 23 de abril de 2015.

Fonte: http://aambiental1.blogspot.com.br

para o público em uma espécie de cinema ambulante combinado com outras atrações

(The Bioscope Show).

Derek Bousé (2010) considera que as rápidas sucessões de fotos que viravam

filmes que mostravam o mundo animal que o olho humano não podia ver, rapidamente

ganharam status de “Ciência”. Com as muitas possibilidades de se fazer filmes (ainda

que curtos) com esse suposto valor científico, as câmeras, até então enormes, pesadas e

de difícil manuseio, passaram a ser utilizadas em jardins zoológicos para capturar a vida

dos animais. Os filmes Monkey Party (1886) e Pelicans at the Zoo (1887), com imagens

de macacos comendo bananas e pelicanos caminhando, voado e se alimentando entre as

grades, respectivamente, foram filmes curta metragens gravados em zoológicos. A

intenção dos filmes gravados em zoológicos era mostrar o comportamento dito

“natural” dos animais.

Mas é importante notar que, com o passar do tempo, esses filmes foram

perdendo popularidade. Derek Bousé, em seu site3, afirma que, possivelmente, isso

aconteceu porque um registro trivial, pequeno e pontual sobre um animal ou fenômeno

natural – elaborado por meio de técnicas de edição que se limitavam a fazer

interferências no “cenário” (colocar plantas e animais em ambiente controlado, por

exemplo) – deixou de ser uma maneira “eficaz” de contar uma história interessante para

as pessoas

Topsy e Mary, elefantas em cartaz!

A crueldade e a humilhação marcaram sobremaneira o início do cinema

documentário com animais.

Durante as pesquisas,

imagens e relatos

perturbadores de cenas de

maus tratos, de

subjugação, de violências

extremas que

frequentemente levavam à

3http://www.wildfilmhistory.org/, acesso em 4 de março de 2014.

Figura 1- Reportagem sobre Topsy, 1916.

morte os animais protagonistas foram recorrentes. A indústria dos filmes

documentários de natureza possui um histórico de exploração e devastação que não

pode ser negado. Topsy e Mary, duas elefantas sequestradas ainda filhotes de seus

habitats, na Índia, para serem animais de circo4, também foram parar no cinema. Já é

muito assustador pensar em animais sendo treinados para aparecer em picadeiros

fantasiados e rodando em um pé só, mas é muito pior5. Topsy era frequentemente

maltratada pelo seu domador: conta-se que ele bebia muito e enquanto embriagado,

oferecia-lhe de comer cigarros acesos! Em um ataque de fúria, ela o matou pisoteado e,

depois disso, mais dois homens morreram ao tentar domá-la.

Esses acontecimentos revoltaram a opinião pública em 1903 e seus proprietários

decidiram matá-la. Primeiro decidiram que fosse enforcada, porém, a American Society

for the Prevention of Cruelty to Animals protestou, por considerar cruel, e pediu que se

pensasse em outra maneira de sacrificá-la. Naquele período, Thomas Edison e Nikola

Tesla estavam elaborando hipóteses sobre os perigos e danos relacionados à corrente

alternada em relação à corrente contínua, então Thomas Edison sugeriu que Topsy fosse

eletrocutada com corrente alternada (pois assim conseguiria também provar os perigos

desta – e, também, provar que Tesla estava incorreto), e acabou por convencer a

associação protetora de animais. Assim, na execução de Topsy, foi aplicada uma

corrente alternada de 6.600 volts que a matou em menos de um minuto. O evento foi

presenciado por cerca de 1.500 pessoas pagantes (venderam-se ingressos para a

execução), e a gravação em filme6 foi feita por Thomas Edison e visualizada em todo

território americano, como um filme educativo sobre os perigos da corrente elétrica

alternada, passando em escolas e universidades7.

4 Topsy pertencia ao Forepaugh Circus localizado em Coney Island, EUA e Mary ao Sparks World

Famous Shows, em Kingsport, Tenesse, EUA. 5 Os “shows” das elefantas eram performáticos e acrobáticos, os treinamentos eram abusivos, envolvendo

constantes flagelações e, para as apresentações em público, as elefantas usavam roupas e toucas coloridas. 6 Vídeo disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/transcoded/2/2b/Edison_-

_Electrocuting_an_Elephant.ogv/Edison_-_Electrocuting_an_Elephant.ogv.360p.webm, acesso em 24 de

abril de 2015. 7 Matéria publicada pelo site DailyMail, de onde as informações foram retiradas:

http://www.dailymail.co.uk/news/article-2559840/The-town-hanged-elephant-A-chilling-photo-macabre-

story-murder-revenge.html. Possui uma versão traduzida no site:

http://www.sociedadevegan.com/elefantes-executados-publicamente. Acesso em 24 de abril de 2015.

Fonte: http://sociedadevegan.com

“Kill the elephant!”

Em 1916, a outra elefanta, Mary, também foi sacrificada, filmada e mostrada

para o mundo. A elefanta matou seu treinador e diversas pessoas testemunharam o

ataque, dizendo que ela havia sido ferida com um gancho pontiagudo próximo da região

da orelha e, só então, o atacou de modo defensivo. Um jornal noticiário da época, o

Johnson City Staff, informou sobre o fato em suas páginas da seguinte maneira:

Mary colidiu a sua tromba com força contra o corpo de Eldridge,

elevando-o a uma altura de 10 pés no ar e, então, estilhaçou-o com

fúria contra o chão... e com toda sua força. Comentou-se que ela

perfurou o corpo do homem com as presas. O animal, então,

dilacerou-o e, terminado a chacina, repentinamente, ela balançou

aquele corpo sem vida com as suas gigantes patas e arremessou-o

contra a multidão.

Pelos registros da época, cerca de 2.500

pessoas assistiram o enforcamento público de

Mary – escolas levaram suas crianças, que

gritavam, em coro, “Kill the elephant!”, Kill the

elephant!”. A elefanta foi erguida pelo pescoço

com uma corrente alçada por um guindaste

montado sobre um vagão, que quebrou e ela

caiu ao chão e agonizou até morrer. Fotos e

filmagens foram distribuídas pela cidade, que

logo ficou conhecida como a “Cidade que

enforcou um elefante”8.

Filmes de Safári

8http://www.dailymail.co.uk/news/article-2559840/The-town-hanged-elephant-A-chilling-photomacabre-

story-murder-revenge.html, acesso em 24 de abril de 2015.

Figura 2 - Cartaz (traduzido) do clipe que

mostrou Mary ser enforcada.

Figura 4- A caçadora Osa Johnson entrega uma pele de

zebra para o prefeito de Nova Iorque na inauguração do

Museu de História Natural de Nova York.

Fonte: http://wildfilmhistory.org/

A partir dos anos 1920, teve início um modo de representar a natureza bastante

popular que, de certa forma, perdura até os nossos dias: os filmes documentais sobre

expedições (e, especialmente, os Safáris na África). Esse tipo de filme foi muitas vezes

financiado por grandes instituições, como museus e universidades, com o objetivo duplo

de obter lucros de bilheteria e informações sobre lugares pouco explorados. Antes dos

anos 1950 esses filmes (que ainda não se chamavam “Safári”) mostravam os

exploradores em seus meios de transporte fazendo diversos abates de animais com

armas de fogo.

Os primeiros filmes documentais de

Safári exibidos nos anos 1950 e 1960

mostram animais – e nativos africanos!

– ferozes, raivosos, demonizados, e

homens brancos (eventualmente,

mulheres) empunhando armas para

detê-los. As florestas são consideradas

lugares terríveis, entre outros

predicados pejorativos. David Ingram

(2000) relata que, antes de 1960, o cinema

tende a representar os animais silvestres

como “obstáculos malévolos” para a conquista imperialista da natureza; obstáculos que

foram superados (isto é, mortos) por homens brancos.

Durante o fim do século XIX e início do século XX, a palavra suaíli9 safari (que

significa “viagem”) foi apropriada por

viajantes europeus e americanos na África

e popularizada como um modo de caça e

recreação. Assim, o que antes era

possibilidade apenas de pesquisadores e

cineastas patrocinados por Academias de

9 Idioma Banto, uma das línguas oficiais do Quênia, da Tanzânia e de Uganda.

Figura 3- Expedição de Safári do casal Johnson.

Fonte: http://wildfilmhistory.org/

Ciências e Artes10, poderia ser realizado por qualquer um que tivesse condições de

pagar por isso. Os safaris “particulares” tornaram-se cada vez mais mercantilizados na

década de 1950 e 1960 com o advento da proibição da caça e a independência dos

países africanos. Os Safaris, desde então, foram transformados em símbolo de luxo da

indústria do turismo cultural, que é a principal força motriz da economia de lugares

como a África Oriental (PETERSON, 2014)11.

Conforme Fernão Ramos (2010), “narrativa fílmica” é a maneira que se conta

uma história dentro de uma obra cinematográfica, como são expostos os “fatos” e como

são construídas as sequências de cenas. Há diversas maneiras

pelas quais as linguagens da narrativa se expressam: pelas palavras, oralizadas ou

escritas; pelas imagens; pelos jogos de luz e sombra; pelo zoom; pelos sons, músicas,

falas e efeitos de sonoplastia, etc. Nesse sentido, ressalto que “filmes de Safári” são

considerados um estilo particular de narrativa documentária.

Tais filmes promoviam (e ainda promovem) uma superioridade não apenas da

tecnologia ocidental, como também moral sobre os africanos, os animais e a terra.

Peterson (2014) cita Donna Haraway em seu argumento de que “os africanos tinham o

mesmo status de animais selvagens... a justificativa final para [sua] dominação” por

ocidentais brancos.

Produzindo “histórias reais”

Entre 1867 a 191412, as narrativas documentais de natureza eram gravadas,

principalmente, em circos, zoológicos, jardins e até mesmo em ambientes domésticos

(como no caso dos documentários acerca dos ácaros e das aranhas, mencionados

anteriormente). Por vezes, baseavam-se na exposição de animais ao ridículo (para gerar

10 Por exemplo, a National Geographic Society que, desde a sua fundação, em 1888, nos EUA, patrocina

e realiza viagens de exploração ao redor do mundo e publica mensalmente uma revista, a National

Geographic. Em 1997, a National Geographic Society lançou seu próprio canal televisivo, o National

Geographic Channel (NAT GEO e NAT GEO WILD). 11 Artigo Online disponível em: http://animalcollectivism.com/?portfolio=7th-tea acesso em 22 de junho

de 2015. 12 Informação retirada da linha cronológica (contendo os principais eventos relacionados a filmes com

animais) feita por Bousé e disponível em: http://wildfilmhistory.org/events.php, acesso em 7 de maio de

2015.

Figura 6- Produtor com filhote de raposa no

set de filmagens do filme “Foxes”.

Figura 5- Attenborough preparando filmagens

com um tamanduá.

um efeito cômico nos públicos). E, a partir dos anos 1920, filmagens de Safáris13 e

perseguições seguidas de abate “dão o tom”, por assim dizer, em termos de

documentários de natureza. Investimentos e financiamentos foram feitos para que os

documentaristas pudessem viajar para outros continentes para realizar expedições não

só para produzir filmes com animais exóticos, mas, também, para documentar outros

povos e culturas. Com a exibição desses filmes e fotos, o interesse comercial e científico

aumentou muito sobre os “recursos naturais”, a fauna e a flora internacional. Mas

Bousé, em seu site, ressalta que com o financiamento de instituições interessadas, as

equipes de filmagens traziam muito mais que registros em rolos de filme e fotografias:

traziam, também, espécimes, peles e presas de animais, plantas e relatórios para vender

aos museus e instituições científicas. Os públicos, na maior parte das vezes, não sabiam

que os filmadores não capturavam apenas as belas paisagens, os “inéditos” animais em

filme, mas os capturavam também em camburões e navios. Junto com o

desenvolvimento da indústria do cinema sobre a vida selvagem, a exploração da mesma

também tomou novas proporções.

Estúdios e set de filmagem

Filmar os animais em seus habitats era

13 É importante ressaltar que os primeiros filmes de Safári contavam histórias de aventura, suspense e

perigo. Como o cinema ainda era mudo (ainda não havia a possibilidade de gravar imagem e sons juntos),

as cenas começaram a ser editadas contando com o auxílio de simulações e textos para compor as

narrativas, o que acabou fazendo muito sucesso entre os públicos.

Fonte: http://wildfilmhistory.org/

muito custoso monetária e materialmente; além disso, levava-se muito tempo para

filmá-los em seus ambientes. Assim, tal como já referido anteriormente, as câmeras

passaram a ser levadas para os zoológicos, pois os animais de cativeiro são muito mais

fáceis de filmar. Mas, por volta dos anos 1930, os animais começaram a ser levados

para os estúdios de televisão recém montados. Nesse período, a BBC, até então rádio e

produtora de alguns filmes para cinema, começou a gravar em set de filmagens diversos

tipos de curtas-metragens sobre a vida natural para TV aberta britânica.

Nesse mesmo período, segundo Bousé (2010), instaurou-se uma “preocupação

pública generalizada sobre os maus-tratos de animais em sets de filmagem”.

Informações, fotos, clipes de making off “vazaram” para os públicos, resultando na

revolta de alguns grupos pró-direitos dos animais. Em 1937, foi sancionada uma lei para

regular essas questões na Europa. A Lei 1.937 de Filmes Cinematográficos com

Animais (Cinematograph Films Animals Act, de 1937) foi e ainda é uma lei do

Parlamento do Reino Unido14 voltada especialmente aos filmes com animais. A lei

define que é crime filmar, distribuir ou exibir um filme em que haja a imposição cruel

de dor ou terror em qualquer animal ou, mesmo, suscitar sua ira e fúria para fazer

filmes, fotos ou vídeos. As infrações podem resultar em uma multa e/ou até três meses

de prisão, a ser agravado em caso de morte do animal15.

Com o surgimento da televisão, a bilheteria dos filmes documentários no cinema

começou a declinar. Em 1957, a unidade de História Natural da BBC foi formalmente

criada em Bristol para produzir programas de natureza para a televisão, como resultado

da grande popularidade de exibições aleatórias e independentes na TV. A BBC

comemorou, em 2007, 50 anos atuando com produção, venda e distribuição de

documentários científicos, em especial de vida selvagem, com uma revista

comemorativa16. Com o surgimento da TV por assinatura, a maioria dos canais com

programação documentária agora precisa ser paga para ser assistida e, na medida em

que diversos canais foram surgindo, o ramo dos documentários tornou-se organizado

como uma “indústria” (CHRIS, 2009). Assim, nos anos 1980, surgiram empresas como

a Discovery Communications nos Estados Unidos e a BBC no Reino Unido.

15 Até o momento, não encontrei qualquer legislação brasileira sobre a utilização de animais em filmes.

O Discovery Channel é um canal de televisão por assinatura destinado,

basicamente, à apresentação de documentários, séries e programas educativos sobre

ciência, tecnologia, história, meio ambiente e geografia. É o canal principal da

Discovery Communications17. Outros canais também possuem programação com

documentários de natureza, e um canal em específico, o Animal Planet18, é exclusivo

para programações envolvendo o mundo animal. Documentários produzidos pela

Discovery, BBC e National Geographic possuem um reconhecimento popular bastante

sólido, como ressalta Bill Nichols: “Se o Discovery Channel chama um programa de

‘documentário’, então ele pode ser rotulado como documentário antes mesmo que

qualquer comentário por parte do público ou da crítica comece” (NICHOLS, 2001).

Tal como já mencionado anteriormente, a National Geographic Society, surgiu

em 1888 em Washington, idealizada por um grupo de 33 homens da elite americana,

interessados em “organizar uma sociedade para o incremento e a difusão do

conhecimento geográfico”19. O grupo reunia geógrafos, exploradores, oficiais do

exército, advogados, meteorologistas, cartógrafos, naturalistas, biólogos, inventores e

engenheiros. Essa sociedade também se utilizou da televisão como um meio para levar

as viagens de seus correspondentes e seus programas educacionais, culturais e

científicos até os lares americanos. Em 1973, começou a comercializar apenas para TV

por assinatura e, em 1997, a sociedade lançou seu próprio canal televisivo, o National

Geographic Channel. O NatGeo Wild é o canal em HD do grupo, também dedicado

somente a filmes e programas sobre natureza.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Walt Disney inaugurou uma série de

enorme sucesso composta por documentários de longa e curta-metragem, chamada de

True Life Adventures (Aventuras da Vida Real, em tradução literal), na qual a natureza

estadunidense é retratada em forma de filme e apresentada nos cinemas daquele país. A

série estreou com On Seal Island (1948) e Beaver Valley (1950), curtas dirigidos por

James Algar. Seguiram-se os documentários de longa-metragem The Living Desert

17 Canais disponíveis no Brasil: Discovery Channel, Discovery Kids, Animal Planet, TLC (Originalmente

Discovery Travel & Living), Discovery Home & Health, Discovery Civilization, Discovery Science,

Discovery Turbo, Discovery Theater (originalmente, Discovery HD Theater), Discovery World

(originalmente, TLC HD) e Investigação Discovery (originalmente, People + Arts). Fonte: wikipedia.com 18 Canal produzido em conjunto com a BBC. 19 Informações retiradas do site oficial da National Geographic Brasil:

http://www.nationalgeographic.pt/index.php/inicio/missao, acesso em 22 de junho de 2015.

(1953), The Vanishing Prairie (1954) e White Wilderness (1958) – que, segundo Derek

Bousé (2000), estabeleceram um “estilo Disney” para o gênero documentário. Tal

“estilo Disney” pode ser entendido como uma produção mais “romantizada”, quase

“novelizada”, com enredos que enaltecem a natureza, já que nas produções anteriores, a

Disney – bem como outras produtoras e documentaristas independentes – tendia a

mostrar os animais como seres ferozes, raivosos e demonizados, e as florestas como

lugares terríveis e hostis.

Bousé (2000) afirma que os documentários da Disney praticamente

monopolizaram o mercado de filmes de natureza nos anos 1950 na América do Norte e

na Europa. Os filmes ganharam vários Academy Awards, incluindo cinco prêmios de

Melhor Documentário de Curta e Longa-Metragem. A partir da década de 1980, todas

as produções documentárias da Disney passaram a ser reunidas sob o rótulo de

Disneynature – que se tornou um ramo independente da Disney dedicado apenas às

produções dos documentários de natureza ao estilo de sua franquia anterior, True Life

Adventures. A distribuição dos documentários Disneynature, já naquela época, ficou ao

encargo de outra empresa da Disney, a Buena Vista Home Entertainment.

Em 1999, a BBC lança um dos mais aclamados documentários feitos

basicamente de forma digital, em computação gráfica: “Walking with Dinossaurs”

supostamente recriava “o retrato mais preciso dos animais pré-históricos já visto na

tela20” segundo as maiores descobertas arqueológicas do período, e inovava em termos

de formato (com muitos gráficos, tabelas informativas e efeitos animatrônicos).

Outra interessante tendência dos anos 2000 foi a realização e distribuição

cinematográfica e em séries televisivas de diversas produções documentais feitas por

produtoras sem tradição na área documentária. Tais produções adquirem visibilidade e

legitimidade ao circular pelas grandes corporações midiáticas e, também, por trazerem

cientistas e celebridades para apresentar e embasar seu conteúdo. Empresas

multimidiáticas como Sony, Warner Bros., HBO, Universal Movies e Disney, com

tradição em serem distribuidoras e produtoras de filmes “ficcionais” e animações,

passaram a ter o gênero “documentário de natureza” dentre suas produções mais

recentes.

20 Comentário presente no site da BBC. Fonte:

http://www.bbc.co.uk/sn/prehistoric_life/tv_radio/wwdinosaurs/ acesso em 21 de junho de 2015.

Essas produções utilizando-se de inúmeras estratégias representacionais para

isso. Diversas tecnologias de imagem e de comunicação têm sido utilizadas cada vez

mais para popularizar conteúdos científicos – torná-los atraentes, acessíveis para serem

utilizados em espaços escolares, universitários e domésticos. Tais produções adquirem

visibilidade e legitimidade ao circular pelas grandes corporações midiáticas e por trazer

cientistas e celebridades para apresentar e embasar seu conteúdo. Como todas as

histórias contadas, não há neutralidades, pois carregam consigo textos morais e

ideológico de quem as produziu, os significados são sempre constituídos no contexto

em que são vistos e/ou produzidos.

REFERÊNCIAS

BOUSÉ, Derek. Wildlife films. University of Pennsylvania Press, 2000.

BRUZZO, Cristina. O cinema na escola: o professor, um espectador. São Paulo:

Unicamp, 1995. (Tese de doutorado)

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