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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO TURISMO E ARTES
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO
JACYARA DE SOUZA ARAÚJO
VIDAS DE PAPEL: O GÊNERO BIOGRAFIA NA PONTE
ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA
JOÃO PESSOA
2014
JACYARA DE SOUZA ARAÚJO
VIDAS DE PAPEL: O GÊNERO BIOGRAFIA NA PONTE
ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA
Monografia apresentada ao Curso de
Comunicação Social, do Centro de
Comunicação, Turismo e Artes da
Universidade Federal da Paraíba – UFPB,
em cumprimento às exigências da
disciplina de Trabalho de Conclusão de
Curso – TCC, como requisito para
obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social, com habilitação em
Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Edônio Alves
Nascimento.
JOÃO PESSOA
2014
Em vez de biologia,
biografia.
(JAMES HILMAN).
Estou pensando no mistério das letras
de músicas, tão frágeis quando escritas,
tão forte quando cantadas.
(AUGUSTO DE CAMPOS).
AGRADECIMENTOS
A Lourdes, mãe divina que me concedeu a vida terrena. Ao meu irmão Maycon, pela graça e
humor herdados do nosso pai amado Joselito. A Marinete, minha segunda mãe que me desperta os
sentimentos mais honestos. Aos amigos, pela companhia nas horas amenas. A todos que contribuíram,
de alguma forma, para minha formação como jornalista. Gratidão.
RESUMO
O fenômeno biográfico no mercado editorial colocou a biografia como um dos gêneros de não-ficção
mais difundidos no mundo. Por esse motivo, tornou-se necessário entender as transformações e as
adaptações que este gênero vem sofrendo ao longo dos anos. Com o sucesso de vendas dessa
modalidade de escrita, houve um aumento considerável no fazer biográfico entre os profissionais dos
mais diversos campos de conhecimento. Dentre eles, duas áreas se destacaram nas construções das
narrativas biográficas: a jornalística e a historiográfica. Dessa forma, este trabalho tenta entender a
hibridez do gênero através da análise comparativa entre as obras: Chega de Saudade: a história e as
histórias da Bossa Nova, de Ruy Castro, e Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura
militar, de Paulo César de Araújo, que possuem diferenças no discurso ao recontar a história de dois
movimentos musicais importantes no Brasil: a Bossa Nova e a música popular “cafona”. Assim,
caracterizaremos dois tipos de biografia: uma como obra pertencente ao Jornalismo Literário, por
utilizar de recursos estéticos e linguísticos advindos da fusão entre jornalismo e literatura; e a outra
como clássica ou acadêmica, por possuir um texto predominantemente dissertativo-argumentativo.
Palavras-chaves: Jornalismo, Biografia, Literatura.
ABSTRACT
The biographical phenomenon in publishing the biography placed as one of the genres of non-fiction
most widespread in the world. Therefore, it became necessary to understand the transformations and
adaptations that this genre has been suffering over the years. With the successful sales of this type of
writing, there was a considerable increase in the biographical making among professionals from
different fields of knowledge. Among them, two areas stood out in the construction of biographical
narratives: the journalistic and historiographical. Thus, this paper attempts to understand the hybridity
of the genre through a comparative analysis between the works: Chega de Saudade: a história ou as
histórias da Bossa Nova, by Ruy Castro, and Eu não Sou Cachorro não: música popular cafona e
ditadura militar, by Paulo César de Araújo, who have differences in speech to retell the story of two
important musical movements in Brazil: Bossa Nova and "tacky" popular music. Thus characterize two
types of biography: as a work belonging to literary journalism, for use of aesthetic and linguistic
resources arising from the merger between journalism and literature, and the other as classical or
academic, for possessing a predominantly dissertative-argumentative text.
Keywords: Journalism, Biography, Literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 7
1 O JORNALISMO LITERÁRIO ............................................................................................................. 9
1.1 Jornalismo e Literatura: encontros e desencontros ......................................................................... 9
1.2 Jornalismo Literário: diálogos possíveis ....................................................................................... 14
1.3 O Livro-reportagem: caindo no real .............................................................................................. 18
1.4 O livro-reportagem-perfil e o perfil de quem se fala..................................................................... 21
2 A BIOGRAFIA COMO TÓPICO DO JORNALISMO LITERÁRIO .................................................. 25
2.2 Conceitos e características da biografia ........................................................................................ 25
2.2 As narrativas historiográficas e jornalísticas no discurso biográfico ............................................ 37
2.3 O público versus o privado: a polêmica das biografias ................................................................ 41
3 DA BOSSA À FOSSA – RETRATOS DA MÚSICA BRASILEIRA ................................................... 49
3.1 Chega de Saudade: a história ou as histórias da Bossa Nova ........................................................ 49
3.2 Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar............................................ 54
4 CHEGA DE SAUDADE, EU NÃO SOU CACHORRO, NÃO: APROXIMAÇÕES E
AFASTAMENTOS .................................................................................................................................. 59
4.1 A literariedade na obra Chega de Saudade .................................................................................... 61
4.1.1 A caracterização dos personagens ........................................................................................ 62
4.1.2 As escolhas estilísticas ........................................................................................................... 64
4.1.3 A Construção da Cena ........................................................................................................... 66
4.1.4 Os Diálogos ........................................................................................................................... 67
4.1.5 Reconstituição do ambiente ................................................................................................... 68
4.2 Os argumentos do livro Eu não sou cachorro, não ........................................................................ 70
4.2.1 Exemplos referenciais ............................................................................................................ 71
4.2.2 Dados estatísticos .................................................................................................................. 72
4.2.3 Analogias ............................................................................................................................... 73
4.2.4 Referências às fontes na narrativa ........................................................................................ 74
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 76
6 REFÊRENCIAS .................................................................................................................................... 78
6.1 Referências impressas ................................................................................................................... 78
6.2 Referências online ......................................................................................................................... 79
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INTRODUÇÃO
O Jornalismo Literário surgiu a partir da fusão de dois campos de conhecimento distintos: o
jornalístico e o literário. Este novo gênero de textualidade conseguiu englobar técnicas jornalísticas e
parte da estilística literária, em um único texto, na tentativa de superar a superficialidade das notícias
vinculadas nos jornais. Através dessa prática, abriu-se um extensivo leque de modalidades de escrita
que passaram a usar essas duas linguagens na produção de textos de não-ficção com a qualidade da
práxis jornalística e a essência estética Literária. O resultado dessa mistura acabou desenvolvendo
outros subgêneros dentro do Jornalismo Literário, tais como o Novo Jornalismo, o livro-reportagem, a
crônica, o perfil, o romance-reportagem, a ficção-jornalística e a biografia, por exemplo.
No entanto, a biografia não surgiu após a criação do Jornalismo Literário. Pelo contrário, ela é
um gênero antigo que vem transformando e aperfeiçoando, ao longo do tempo, a maneira de contar a
vida de algo ou de alguém. As técnicas do Jornalismo Literário aplicadas a biografia, por exemplo,
conseguiram mudar a forma de escrever vidas, repaginando, assim, o gênero. Um exemplo claro disso é
que, no Brasil, os jornalistas possuem uma grande parcela de suas autorias, e suas obras chegaram a
ocupar o ranking das mais vendidas na modalidade de livro de não-ficção. Isto porque eles produziram
uma nova forma de escrever e deram outra fluidez ao texto, distanciando-se dos moldes acadêmicos e
científicos. Além disso, os jornalistas biógrafos que aderiram ao Jornalismo Literário puderam
construir narrativas que não cabem num lead e que se fundem aos elementos das narrativas literárias,
produzindo um livro esteticamente agradável, de fácil leitura e de notável abrangência histórica.
Embora o sucesso editorial, no Brasil, esteja assinalado, em grande parte, por jornalistas,
notamos rapidamente que elas, as biografias, não estão limitadas àqueles profissionais. Historiadores,
romancistas, psicólogos e filósofos, por exemplo, estão aptos a escrevê-las. Assim, percebemos que
tanto um historiador, ao se arriscar em escrever sobre a vida de alguém, usará ferramentas e
metodologias do Jornalismo e da Literatura, quanto um antropólogo, ao pretender o mesmo, fará o uso
de ambos os campos de conhecimento para a construção da narrativa biográfica.
Com o objetivo de entender a hibridez do discurso biográfico e suas confluências com outros
campos de conhecimento, analisamos, comparativamente, obras de dois jornalistas que, apesar de
possuírem a mesma formação acadêmica, diferem ao construirem narrativas que contam as histórias de
dois movimentos musicais que marcaram época no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Neste contexto,
classificamos Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova, de Ruy Castro, como
exemplo de biografia pertencente ao Jornalismo Literário, e Eu não sou cachorro não: música popular
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cafona e ditadura militar, de Paulo César de Araújo, como uma biografia clássica ou acadêmica, por
possuir um texto dissertativo-argumentativo.
Para demonstrar isso, concebemos este trabalho divido em quatro capítulos. O primeiro capítulo
refere-se ao surgimento e firmação do Jornalismo Literário e de seus subgêneros como, por exemplo, o
Novo Jornalismo, o livro-reportagem, o romance-reportagem, a ficção-jornalística e o perfil
jornalístico. Já o segundo capítulo conceitua e caracteriza as particularidades da biografia como tópico
do Jornalismo Literário. Nesta parte, também mostra-se como se portam as narrativas historiográficas e
jornalísticas dentro de uma narrativa biográfica, além de abordamos a recente polêmica das biografias
não-autorizadas no Brasil e suas possíveis implicações na atualidade e prováveis desdobramentos no
futuro para o ramo biográfico brasileiro. Fizemos isso, claro, ligando os fatos contemporâneos aos
textos dos autores analisados. No terceiro capítulo, para situar o leitor, são realizadas as apresentações
das obras Chega de Saudade, de Ruy Castro, e Eu não sou cachorro, não, de Paulo César de Araújo.
Na última parte, relacionamos semelhanças, diferenças e especificidades que cada uma das biografias
possui dentro de seus respectivos campos de conhecimento: o jornalístico-literário e o historiográfico.
Dessa forma, tentou-se elucidar quais foram as metodologias utilizadas pelos jornalistas
biógrafos ao abordar um mesmo tema e quais as convergências e divergências no uso dos recursos
estéticos e/ou linguísticos utilizados pelos autores nas obras analisadas. Relacionamos, assim, os
encontros e desencontros das diferentes metodologias aplicadas pelos biógrafos para escrever sobre a
música brasileira.
O presente estudo se fundamenta, basicamente, em pesquisas bibliográficas teóricas sobre
Jornalismo, Literatura, Jornalismo Literário e Biografia produzidos no Brasil. A respeito dos
pressupostos metodológicos utilizados neste trabalho, foram empregados alguns recursos da Análise
Comparativa, para elencar aspectos divergentes e convergentes tanto metodológicos quanto textuais
utilizados na escrita biográfica dos jornalistas biógrafos nas obras escolhidas como corpus desse
estudo. Isto porque, de acordo com o Schneider e Schmitt (1998, p. 49), é por meio do “raciocínio
comparativo que podemos descobrir regularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir
modelos e tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e
explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais.”
A análise comparativa que fizemos, portanto, objetiva mostrar as transformações que a biografia
vem sofrendo ao longo dos anos, bem como classificá-las em modalidades de escritas (jornalístico-
literária e historiográfica) que ora divergem, ora se encontram.
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1 O JORNALISMO LITERÁRIO
1.1 Jornalismo e Literatura: encontros e desencontros
Ao tentarmos analisar a estética biográfica e a sua interação com outros campos de
conhecimento temos que, primeiramente, fazer uma panorâmica dos acontecimentos que precederam
suas relações. Isto porque o encontro do jornalismo com a literatura deu vida e forma a diversos
gêneros de escritura pública. Houve um momento na História em que os dois discursos se fundiram
para só depois seguirem caminhos distintos; muito embora alguns gêneros mantenham ainda hoje uma
tênue linha que liga esses dois campos. Justamente por isso algumas reflexões ainda permanecem
válidas, por exemplo: em que época a escrita literária estava ligada a escrita jornalística? Onde surgiu a
literatura de folhetim e quais foram suas características? Quando e por que esses dois campos se
separaram? O que passou a diferenciá-los? Como a literatura pode influenciar o jornalismo (e vice-
versa)?
De acordo com Felipe Pena (2011), a forte influência da literatura na imprensa ocorreu nas
redações dos jornais a partir do século XVIII e seguiu até o século XIX. Para o autor, as relações se
tornaram mais próximas no chamado “Primeiro Jornalismo”, período entre os anos de 1789 e 1830, em
que os periódicos eram comandados por escritores, políticos e intelectuais, geralmente marcados por
conteúdos literários e políticos, com textos de cunho crítico. Ainda segundo o estudioso, no “Segundo
Jornalismo”, período que vai de 1830 a 1900, a presença da literatura na imprensa ainda é muito
marcante. Contudo, é nessa época que os jornais massificam suas vendas e os profissionais começam a
fazer uso das técnicas norte-americanas nesse tipo de escritura, como a criação das reportagens,
manchetes e a utilização da publicidade.
Foi no chamado “Primeiro Jornalismo” que os escritores passaram a adotar um novo estilo
discursivo que colocavam as técnicas das narrativas literárias nos jornais diários, com o surgimento do
folhetim. Inicialmente, o folhetim não era composto pelas narrativas de romance. O novo gênero surgiu
na França nas primeiras décadas do século XIX e servia para ocupar o lugar vazio destinado ao
entretenimento nas folhas informativas. Marlyse Meyer (1996) afirma que tal espaço, criado com sua
configuração específica, dava lugar as mais diversas temáticas e formas:
Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele
se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se propõem charadas, se oferecem
receitas de cozinha ou de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças,
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os livros recém-saídos – o esboço do Caderno B, em suma. E, numa época em que a
ficção está na crista da onda, é o espaço onde se pode treinar a narrativa, onde se
aceitam mestres e noviços do gênero, histórias curtas ou menos curtas e adota-se a moda
inglesa de publicações em série se houver mais textos e menos colunas. (MEYER,
1996, p.57 e 58, grifo do autor).
Somente durante os anos de 1830 e 1840, entretanto, é que o espaço mostrou-se um lugar de
liberdade e criação da escrita informativa. E ainda mais: os proprietários dos jornais viram a
oportunidade dele possibilitar lucro financeiro. Logo, o folhetim passou alimentar a lógica de mercado,
principalmente na França e Grã-Bretanha. De acordo com Meyer (2011, p. 59) foi nesta época que
houve um boom lítero-jornalístico e a ficção foi jogada “em fatias no jornal diário, no espaço
consagrado ao folhetim vale-tudo.”
Nascia, então, o folhetim-romance, com sua fórmula implacável: entretenimento ficcional de
linguagem fácil e em série. Com sua estrutura estética, o folhetim conseguiu atingir um grande número
de leitores e, consequentemente, causou um aumento considerável na venda dos jornais. Haviam
características interessantes adotadas pelo gênero para atrair e manter os leitores. Um bom exemplo
disso era o plot, ou seja, quando a história é interrompida antes de chegar ao ápice, para manter o
suspense e despertar expectativas nos leitores, causando, evidentemente, uma maior procura pelos
periódicos no dia seguinte.
A gradativa inserção do gênero folhetinesco no cotidiano tomou proporções significativas para
imaginário brasileiro, por exemplo. Podemos afirmar que a literatura ajudou criar a nossa identidade a
partir do momento que ditava costumes e mostrava aspectos sociais e culturais, estimulando a leitura
em um país pouco alfabetizado.
No Brasil, portanto, a literatura de folhetim propiciou que muitos escritores brasileiros se
firmassem e fossem construindo aos poucos a nossa Literatura Brasileira. No século XIX, escritores
como Machado de Assis (Gazeta de Notícias e Correio Mercantil), José de Alencar (Diário do Rio de
Janeiro) publicaram folhetins em forma de romance em fascículo. Grandes desses escritores do século
XX passaram pelos jornais da época, a exemplo de Raul Pompeia, Aloísio Azevedo, Euclides da Cunha
e Manuel Antônio de Almeida.
Para Pena (2011), apesar das críticas à sua estrutura popularesca, o folhetim democratizou a
cultura, possibilitando o acesso do grande público à Literatura, o que multiplicou o número de obras
publicadas.
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O casamento entre a imprensa e escritores era perfeito. Os jornais precisavam vender e
os autores queriam ser lidos. Só que os livros eram muito caros e não podiam ser
adquiridos pelo público assalariado. A solução seria óbvia: publicar romances em
capítulos na imprensa diária. Entretanto, esses romances deveriam apresentar
características especiais para seduzir o leitor. Não bastava escrever muito bem ou contar
uma história com maestria. Era preciso cativar o leitor e fazê-lo comprar o jornal do dia
seguinte. E, para isso, seria necessário inventar um novo gênero literário: o folhetim.
(PENA, 2011, p. 32).
Joaquim Manoel de Macedo foi o primeiro escritor brasileiro a ficar popularmente conhecido
após publicar, em 1844, o primeiro romance-folhetim da história da brasileira: A Moreninha. A obra é
considerada o primeiro romance da literatura nacional. O autor conseguiu traduzir para o romance
aspectos econômicos e sociais do país ao aliar, no texto, técnicas narrativas inovadoras e de tom
notadamente documental. Atualmente, a obra pode parecer simples, porém Joaquim Manoel Macedo
conseguiu influenciar toda uma geração de escritores brasileiros que deram vida à Literatura Brasileira.
Na metade do século XIX, mais precisamente a partir da década de 1950, o Brasil se
modernizou e os jornais começaram a adotar as técnicas padronizadas norte-americanas. O escritor, que
anteriormente ocupava lugar no jornal, passou a ser substituído pela figura do repórter, cujo dever era
dar clareza, concisão e imparcialidade as notícias. Substituiu-se, assim, pouco a pouco, nos espaços dos
jornais, as narrativas ditas subjetivas dos escritores-jornalistas. Os periódicos voltavam a sua atenção
para os casos factuais com abordagens simples, direta e objetiva. A literatura, que até então tinha um
espaço privilegiado dentro dos jornais, tornou-se suplemento literário. Ao longo dos anos, o próprio
suplemento passou a ocupar menos espaços nos periódicos, dando mais destaque a produtos culturais
como, por exemplo, livros e músicas, que estavam dispostos a atender a lógica de mercado.
Dessa forma, os cadernos literários surgiram para suprir, essencialmente, as necessidades do
mercado. Para Pena (2011, p. 40), o próprio nome suplemento significa algo que pode ser acrescentado
(ou não), adicionado (ou não) aos jornais; ou seja, não é algo imprescindível aos periódicos e que têm
na “venda o seu objetivo primordial.” Por esta razão, os produtos e artistas a eles vinculados irão ter
um valor financeiro para a empresa jornalística: se não têm “audiência”, não têm valor mercadológico;
logo, não seriam publicáveis.
Nesse contexto, o jornalismo começou a criar o seu próprio mundo, com regras e formas
próprias. Inevitavelmente, os folhetins foram substituídos por outros gêneros, a exemplo do colunismo,
das reportagens, entrevistas e notícias, por exemplo. Os escritores tiveram que se moldar as novas
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regras, como explica Nelson Werneck Sodré (1983):
Tais alterações são introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre: a tendência ao
declínio do folhetim, substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela reportagem; a
tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação […]. Aos homens de
letras, a imprensa impõe, agora, que escrevam menos colaborações assinadas sobre
assuntos de interesse restrito do que o esforço para se colocaram em condições de
redigir objetivamente reportagens, entrevistas, notícias. (SODRÉ, 1983, p. 296 e 297).
Para Danton Jobim (1992), o que vai diferenciar o jornalista do escritor é o estilo e a linguagem.
Este trabalha em sua obra com o objetivo de torná-la densa e artisticamente trabalhada, ou seja, com
qualidade estética; enquanto aquele priva o leitor da contextualidade histórica e suprime os artifícios
literários com o objetivo de informar:
O estilo jornalístico, bem como sua linguagem, não se apuram tão bem como o do
escritor. Falta em regra a densidade dos verdadeiros estilos literários, que se obtém pela
paciência e pela obstinação em perseguir a forma perfeita, artisticamente trabalhada:
para o público a linguagem não é um simples meio de comunicação com o público
contemporâneo, mas um meio de expressão artística, válido para a posteridade.
(JOBIM, 1992, p. 42).
Ao colocarmos essas considerações nos dias atuais, com o intuito de compreendê-las melhor,
podemos afirmar que ainda são coerentes, principalmente em meios de comunicação como portais de
notícias eletrônicos que priorizam o factual em detrimento às matérias e reportagens mais aprofundadas
e contextualizadas.
Uma outra característica que difere um campo do outro é que o jornalismo está apoiado na
realidade, fardo este que não é obrigatório à literatura. Não podemos encaixar, por exemplo, um conto
fantástico ao jornalismo propriamente dito. Já a literatura e seus escritores podem criar uma poesia ou
fazer um livro a partir de uma notícia publicada no jornal. Esses aspectos são o que diferenciam os
gêneros de ficção-jornalística do romance-reportagem, por exemplo. No primeiro, o narrador usa os
fatos verídicos para construir seu relato, complementando a história por acontecimentos inventados
pelo próprio autor. Já o segundo mantém a fidelidade do acontecimento, sem acrescentar nada além da
veracidade dos fatos, fazendo, apenas, uso dos recursos literários e linguísticos.
Como veremos no próximo item, o Jornalismo Literário surge a partir da inquietação dos
jornalistas a essa estrutura fechada que veda o diálogo mais aberto com o leitor. As grandes
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reportagens, nesse sentido, abriram os caminhos de fuga do objetivismo impregnado nos manuais de
redação1. Jobim (1992, p. 51) reitera que, sem dúvidas, os manuais de estilo “tendem a tornar difícil
que o trabalho jornalístico se converta em literário.”
O estudioso afirma que o jornalismo em si não é literatura, mas que, eventualmente, a
reportagem, o editorial e a crônica poderiam ser bons exemplos de “boas letras”. Estes gêneros estão na
tênue linha que englobam os dois discursos. Porém, se considerarmos que estas escritas jornalísticas
possuem as características necessárias para afirmamos que são modelos de textos literários, quais os
impactos que um discurso tem sobre o outro?
Podemos afirmar que a liberdade de criação textual está sendo estimulada, principalmente nos
meios de comunicação impressa, para atrair o leitor, uma vez que a internet e seus portais oferecem ao
navegante uma vasta opção de notícias objetivas e pouco contextualizadas. Neste sentido, a partir do
momento que o jornalista usa técnicas literárias para fugir do objetivismo, ele está influenciado pela
literatura. O resultado disso, por exemplo, poderá ser um livro mais abrangente sobre tema específico.
Já o escritor literário que procura recortes de jornais e revistas para a criação contextualizada de sua
obra poderá se influenciar pela narrativa jornalística e seus métodos de apuração. Os gêneros se
confundem, portanto, por terem como ponto comum e irrefutável a escrita, como explica Jobim:
Ambos os estilos se confundem; seria impossível traçar com nitidez a linha de
demarcação entre jornalismo e literatura. Esta linha tênue e hesitante marcará, sem
dúvida, a diferença de ângulo em que se colocam o repórter e o romancista, o
editorialista e o ensaísta – um voltado para as exigências imediatas e transitórias, outro
debruçado sobre temas universais e permanentes que nascem da natureza do homem e
do mistério da vida. (JOBIM, 1992, p. 53).
Vale salientar que o estudioso defende, nas suas conjecturas sobre o tema, o jornalismo
moderno brasileiro. Por isso sua obra considera indispensável a objetividade, a concisão e a
imparcialidade jornalística, por exemplo, como prática necessária do repórter no exercício da sua
profissão. Neste sentido, para Jobim, todo jornalista que utiliza-se dos manuais de redação colhem bons
frutos em sua profissão, por seguir padrões que a empresa jornalística considera importante no que diz
respeito a levar ao leitor a versão mais fiel e imparcial dos fatos. O autor afirma, ainda, que os
1 Os manuais de redação surgiram com o propósito de estabelecer regras de escrita que vão de acordo com as ideologias
dos donos dos jornais, por exemplo. Para Jobim (1992, p. 51), “cada redação possui o compêndio de regras para bem
escrever, na opinião do diretor do jornal. Com esse código se deve conformar todos os que desejam ver publicada
alguma coisa sua nas colunas da folha.”
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profissionais do jornalismo que se envolvem com artifícios literários são escritores que não se
realizaram. Logo, ainda segundo Jobim, um bom repórter interessa-se pelo acontecimento e, ao narrá-
lo, não se deixa dominar por ele, fazendo-se crer na imparcialidade da escritura jornalistica. Esses
argumentos são totalmente contrários aos que serão discutidos ao longo deste trabalho. Mesmo assim,
destacamos aqui os pontos que diferenciam o jornalismo da literatura, tópicos bem explicados em sua
obra.
1.2 Jornalismo Literário: diálogos possíveis
“O Jornalismo Literário é caracterizado como uma modalidade de prática da
reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de
observação e redação originários da (ou inspirados pela) Literatura. Traços
básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados
e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização.”
Felipe Pena
Ao misturarmos Jornalismo e Literatura é certo que estamos construindo um novo tipo de
escritura, ou seja, um novo discurso. Foi a junção dessas duas linguagens que fez emergir o Jornalismo
Literário. Para Felipe Pena (2011), o jornalista literário, ao escrever, fará uma apuração mais rigorosa e
uma abordagem mais aprofundada, exercendo a cidadania – preocupando-se com a formação do
cidadão, indo além da lógica mercadológica da notícia como produto à venda – e a ética, ao usar fontes
oficiais e não oficiais. Ainda segundo o autor, o Jornalismo Literário vai ultrapassar os limites do
acontecimento cotidiano, isto é, realizará um rompimento com algumas características básicas do
Jornalismo contemporâneo: a periodicidade, a atualidade, as grades do lead e da pirâmide invertida,
aprofundando-se em técnicas narrativas que darão uma visão mais ampla da realidade sobre fato
específico.
A preocupação do Jornalismo Literário, então, é contextualizar a informação da forma
mais abrangente possível – o que seria muito mais difícil no exíguo espaço de um
jornal. Para isso, é preciso mastigar as informações, relacioná-las com outros fatos,
compará-los com diferentes abordagens e, novamente, localizá-las em um espaço
temporal de longa duração. (PENA, 2011, p. 14).
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Nesse sentido, o autor expõe que o jornalista literário deve superar a superficialidade das
notícias sufocadas pelo tempo e pelo espaço. Esses são alguns dos objetivos de quem recorre ao
Jornalismo Literário. Porém, é importante observar que, apesar do jornalista fugir dos modos
apressados do jornalismo cotidiano e ingressar no novo gênero, ele continuará utilizando quase tudo o
que aprendeu na academia e nas redações de jornais. Por isso, o jornalista literário deverá estar mais
atento a algumas regras básicas do jornalismo tradicional: apuração, observação e clareza, por
exemplo. Outro intuito primordial de quem busca ferramentas do gênero é dar perenidade a obra. Isto
porque, ao publicar um texto superficial, ele será facilmente descartado. Um livro mais denso e
contextualizado, evidentemente, terá mais valor histórico ou social, podendo permanecer influenciando
estudiosos e, principalmente, o público leitor.
Qual seria, então, o conceito do Jornalismo Literário? Felipe Pena (2011) acredita que o
conceito está ligado fundamentalmente a uma questão linguística. Ou seja, as duas formas (jornalística
e literária) de escrita estão em constante metamorfose, ora misturam-se, ora afastam-se para construir o
discurso jornalístico-literário, como explica o autor: “não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas
sim de uma verossimilhança possível. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de
uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de Jornalismo, nem de
Literatura, mas sim da melodia.” (PENA, 2011, p. 21).
E quais são, contudo, os textos que atendem a forma e a estética do Jornalismo Literário? De
acordo com o autor, as práticas do New Journalism, do romance-reportagem, da ficção-jornalística e da
biografia (como veremos no tópico 2), por exemplo, encaixam-se como subgêneros do Jornalismo
Literário pela abordagem aprofundada e por utilizar elementos literários na narrativa jornalística.
O New Journalism, ou Novo Jornalismo, tem como um dos seus principais precursores Tom
Wolfe quando escreveu o manifesto do gênero, em 1973. Essa corrente jornalística enumera quatro
recursos básicos que moldam a nova escrita do campo: reconstrução da história cena a cena; os
registros de diálogos completos; a apresentação das cenas pelos pontos de vista de diferentes
personagens; os registros de hábitos, roupas, gestos e outras características simbólicas do personagem.
Para Edvaldo Pereira Lima (1995), essa narrativa jornalística se reportaria a riqueza de detalhes que
possui a narrativa literária, sem, contudo, perder de vista a especificidade do gênero jornalístico. O
teórico acredita, ainda, que a fonte inspiradora dessa nova narrativa criada por alguns jornalistas foi o
realismo social emergente nos anos 60.
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O novo jornalismo traz à luz dos holofotes o mesmo timbre comum de sensualidade, de
mergulho completo, corpo e mente, na realidade, como acontecia em todas as formas de
expressão da contracultura. […] À objetividade da capacitação linear, lógica, somava-se
a subjetividade impregnada de impressões do repórter, imerso dos pés à cabeça no real.
(LIMA, 1995, p. 149, grifo do autor).
Todavia, o estilo nasceu e prosperou antes que Wolfe o formulasse. A obra A Sangue Frio de
Truman Capote, por exemplo, lançada em 1965, recriou diálogos e reconstruiu detalhes da atmosfera
de cada cena ao contar a história de dois assaltantes que mataram cinco pessoas de uma mesma família
na zona rural do Kansas, nos Estados Unidos. O texto foi publicado no The New Yorker antes de ser
publicado em livro. Foi justamente o sucesso dessa obra e de tantas outras que ajudaram Wolfe a
estabelecer características do novo gênero que misturava jornalismo e literatura em um único texto.
Assim como tantos outros gêneros que sugiram com a junção do jornalismo com a literatura, o
Novo Jornalismo nasceu como uma alternativa de fuga para muitos profissionais da imprensa que
estavam insatisfeitos com as regras impostas pelas redações tradicionais. Um dos focos do Novo
Jornalismo é, portanto, desconstruir o texto objetivo e utilizar técnicas literárias para contar os fatos
com riqueza de detalhes. Para Pena (2011, p. 55), os escritores desse gênero podem ou “devem superar
os melhores romances realistas.”
Os outros dois subgêneros que fazem parte do Jornalismo Literário, de acordo com Pena (2011),
são o romance-reportagem e a ficção-jornalística, conforme antecipamos. O estudioso explica que na
narrativa do romance-reportagem, por exemplo, o escritor ou o repórter “não inventa nada. Ele se
concentra nos fatos e na maneira literária de apresentá-los ao leitor” (PENA, 2011, p. 103). A narrativa
do romance-reportagem também engloba tanto o discurso do romance quanto o relato jornalístico. O
objetivo principal do estilo é retratar a realidade, apesar de o autor usar “estratégias ficcionais”. Assim,
ele se concentra na história verídica e acrescenta apenas elementos literários na narrativa. O autor do
romance-reportagem não inventa histórias, ele tem como objetivo primordial retratar da forma mais
“verdadeira”, o fato em questão, a partir da sua contextualização.
Em outras palavras, quem faz romance-reportagem busca a representação direta do real
por meio da contextualização e interpretação de determinados acontecimentos. Não há
preocupação apenas em informar, mas também em explicar, orientar e opinar, sempre
com base na realidade. Pode até ser que a narrativa se aproxime da ficção, mas nunca é
feito deliberadamente. (PENA, 2011, p. 103).
17
Já a ficção-jornalística, por outro caminho, aproveita o real para construir uma nova história,
sem compromisso com a veracidade dos acontecimentos, já que o fato é apenas um pretexto para que
autor narre outra estória. Pena (2011, p. 114) explica que a “ficção-jornalística não tem compromisso
com a realidade, apenas a explora como suporte para a sua narrativa. […] O autor de ficção-jornalística
inventa deliberadamente.”
Podemos destacar, neste contexto, os livros O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira
(1979); Em câmara lenta, de Renato Tapajós (1977) e As confissões de Ralfo, de Sérgio Sant'anna
(1975) como obras que envolvem narrativas jornalísticas sobre o real, a partir da exposição de
memórias (re)vividas pelos seus autores e enriquecidas por elementos ficcionais. Elas nasceram durante
o regime ditatorial implantado no Brasil, em 1964 para reportar o contexto social abafado pelos
censores da ditadura militar.
O professor e jornalista Edônio Alves Nascimento analisou essas três obras no livro “As
ligações perigosas: relações entre literatura e jornalismo na década de 70 no Brasil”, em que mede o
nível de resolução estética e composicional dada pelos diferentes autores nas suas obras, e relaciona
semelhanças e diferenças ao considerar suas relações com o jornalismo e a literatura, como explica:
As três tematizam à sua maneira a referencialidade contextual e histórica da década de
70, compõem tipos diferentes de autobiografias com preocupações memorialísticas,
apresentam no seu entrecho narrativo, protagonistas que falam e agem a partir de
condição de guerrilheiros, exploram técnicas narrativas típicas do jornal como a
fragmentação com base na narração factual e na reflexão (interpretação) sobre estes
mesmos fatos, apresentam, embora de maneira diferenciada, uma espécie de
“subversão” da categoria do tempo narrativo e, sobretudo, operam do ponto de vista da
fatura textual na fronteira entre a realidade (exposição de fatos históricos verificáveis) e
ficção (invenção de realidades baseadas na imaginação). (NASCIMENTO, 2006, p. 64 e
65).
Notamos que todos esses subgêneros apresentados utilizam as técnicas literárias e o “estilo”
jornalístico para montar um novo discurso sobre o factual. O que irá mudar, primordialmente, são as
estruturas textuais e a estética de cada obra, mas sua essência consiste em aplicar a realidade aspectos
que contextualizem e enobreçam a qualidade do texto como pesquisas aprofundadas, clareza da
linguagem; além de recursos linguísticos como, por exemplo, figuras de linguagens, descrição
detalhada, construção cena a cena, diálogos etc. Essas aproximações e afastamentos se dão,
18
principalmente, pelo fato de que ambos os campos (jornalístico e literário) utilizam-se da escrita como
ponto de partida e de chegada. A escrita textual jornalística deixa, no Jornalismo Literário, que as
palavras fruam de modo que as tornem enriquecedoras aos olhos dos leitores e, quem sabe, própria da
História.
1.3 O Livro-reportagem: caindo no real
Uma das ligações que retomaram o namoro do jornalismo com a literatura, após seus
afastamentos nos periódicos foi, sem dúvida, o surgimento da reportagem e suas variantes: a grande-
reportagem e o livro-reportagem. Os jornais, ao adotarem técnicas para a estruturação e
desenvolvimento da linguagem e forma jornalística, acabaram por suprimir a contextualização que
deveria estar presente nas notícias. Ali, a linguagem teria que ser simples, objetiva e concisa. Tal fato
propiciou que o chamado jornalismo informativo fosse bastante criticado por se revelar superficial. Por
essa razão, a notícia redonda2 surgiu como uma modalidade que visava driblar as críticas e a
superficialidade das notícias. Ainda assim, ela não era suficiente para dar a amplitude aos fatos. Foi
nesse cenário que nasceu a reportagem, com o objetivo de estender as notícias espremidas pelo tempo e
espaço, oferecendo o contexto necessário às notícias que continuavam reverberando nos periódicos.
Edvaldo Pereira Lima (1995, p. 24) conceitua a reportagem como uma “ampliação do relato
simples, raso, para uma dimensão contextual.” A nova modalidade surgiu com o objetivo de ampliar a
notícia, livrando-a da superficialidade. E com o tempo, a reportagem passou a exibir uma variante de
maior amplitude: a grande-reportagem; que, por sua vez, abriu os caminhos para que fossem lançadas
em livro.
A grande-reportagem faz parte do já vasto panorama em que se apresenta o jornalismo
moderno, diversificando em suas múltiplas faces. O livro-reportagem cumpre um
relevante papel, preenchendo vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras
de rádio, pelos noticiários da televisão. Mais do que isso, avança para o aprofundamento
do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da
atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística. (LIMA, 1995, p.
2 Manoel Vilela Magalhães (1979 apud LIMA, 1995, p. 24) define a notícia redonda como “uma nova formulação em
que a informação principal, ao ser tratada pelo repórter, é acompanhada de dados complementares capazes de oferecer
aos leitores elementos mais sólidos para avaliar a extensão do noticiário, isto é, do fato noticiado, que supõe
preliminarmente uma informação de atualidade.”
19
16).
Sendo assim, por que podemos colocar o livro-reportagem como uma das modalidades do
jornalismo tradicional e até mesmo do Jornalismo Literário? Lima (1995) explica que o gênero possui
características de formulação que partem tanto das funções desempenhadas pelos jornalistas, assim
como utilizam artifícios literários para a estruturação da narrativa jornalística, sem perder de vista a
veracidade dos acontecimentos. Dessa forma, dependendo como o repórter se relaciona com o texto e
com os fatos dentro do livro-reportagem, a obra poderá de encaixar tanto no jornalismo literário como
no tradicional, como explica Lima (1995, p. 20): “Basicamente, a função que o livro-reportagem
exerce, apesar de matizes particulares, procede, essencialmente, do jornalismo como um todo. Os
recursos técnicos com que essa função é desempenhada provêm do jornalismo. E o profissional que
escreve o livro-reportagem é, quase sempre, um jornalista.”
Sodré e Ferrari (1986) afirmam que, a partir do momento que a reportagem tem como objetivo
responder as clássicas perguntas “quem, o quê, quando, onde e por que”, presentes no lead, o discurso
sairá do campo ficcional (literário) para ir ao encontro da narrativa factual, presente nos jornais, com o
intuito de informar sobre a realidade social, econômica e cultural do país e/ou do mundo. A reportagem,
portanto, constituirá um gênero tipicamente jornalístico.
Por isso, o novo gênero só foi possível com o surgimento de outros veículos de comunicação,
como, por exemplo, a revista semanal. O aparecimento do jornalismo interpretativo, como nova prática
jornalística, propiciou que a reportagem e a grande-reportagem se firmasse definitivamente. O
jornalismo interpretativo veio justamente para lançar um outro olhar sobre o factual, propiciando que o
repórter pudesse dar opinião ou explicitar sua visão sobre os acontecimentos. Essa modalidade oferece
meios que torne o fato contextualizado (buscando sua origem) e profundo (a causa e os porquês dos
acontecimentos), tentando elucidar questionamentos do leitor (explanação de consequências presentes
e/ou futuras).
O livro-reportagem é, então, também fruto do jornalismo interpretativo. Lima (1995) explana
suas diversas características em comum com os jornais cotidianos, a exemplo da utilização de um
conteúdo real e/ou factual, fundamentado na veracidade dos acontecimentos. O tratamento do texto
também é tipicamente jornalístico, ou seja, a linguagem do livro-reportagem é clara, concisa e objetiva;
e igualmente tem a função primordial de informar, explicar e orientar o leitor sobre os mais diversos
temas. O estudioso distingue o gênero das demais publicações periódicas por apresentar dois tipos
distintos de aprofundamento: horizontal (ou extensiva) e vertical (intensiva). A primeira se refere a
20
riqueza de detalhes de dados no relato dos acontecimentos. Já a segunda se reporta a contextualização
da questão, ou seja, seu histórico, origem e consequências.
O aprofundamento é extensivo, ou horizontal, quando o leitor é brindado com dados,
números, informações, detalhes que amplificam quantitativamente sua taxa de
conhecimento do tema. O aprofundamento é intensivo, ou vertical, quando o leitor é
alimentado de informações que lhe possibilitam aumentar qualitativamente sua taxa de
conhecimento. Isto é, existe uma análise multiangular de causas e consequências, de
efeitos e desdobramentos, de repercussões e implicações. (LIMA, 1995, p. 37).
Já Otto Groth, citado por Lima (1995), enumera outras quatro características principais
presentes nos periódicos: atualidade, periodicidade, universalidade e difusão coletiva. Ou seja, as
notícias informam aos leitores fatos atuais (atualidade) e mantém contato periódico com seu público
(periodicidade), ao abordar sobre os mais diversos temas (universalidade), que chegarão a inúmeras
pessoas de várias classes sociais (difusão coletiva).
Partindo desses conceitos, podemos associar as características de universalidade e difusão
coletiva ao livro-reportagem, pelo fato de que eles possuem temas variados e chegam a pessoas de
diversas classes sociais. Quanto à atualidade, sabemos que não necessariamente o livro-reportagem irá
abordar um tema atual e que o seu conceito dependerá do veículo que deseja produzi-lo, como explica
Lima:
A atualidade, ideia de presente, ganha diferentes contornos, de acordo com a
periodicidade do veículo onde é inserida. Assim, no jornal diário o atual é o ocorrido
ontem, há poucas horas. Na revista semanal, o atual é a ocorrência social que resiste um
pouco mais ao tempo, por causa do maior impacto público e perdura reverberando na
sociedade, na medida em que suas causas e origens vão sendo descobertas, identificadas
no transcorrer dos dias, na medida em que também sua rede de implicações e
consequência se torna visível. (LIMA, 1995, p. 31).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos afirmar que a periodicidade também não
poderá se encaixar como característica do livro-reportagem, pois esses trabalhos partem de uma vasta
pesquisa, sendo, geralmente, um livro não periódico, já que resgata com profundidade o tema proposto.
Para Sodré e Ferrari (1986), a diferença entre a notícia e a reportagem está no modo como o
jornalista narrará os fatos, em que a reportagem combinará elementos narrativos, e até
cinematográficos, para ilustrar os acontecimentos, como se o leitor estivesse vendo um filme ou
21
assistindo a mesma reportagem na televisão.
A inovação está no comportamento do narrador: dialoga com o leitor e com o “repórter
de campo”, como um leitor; presente à cena, registra tudo como uma câmara
cinematográfica, que ora se aproxima em close, ora se afasta para uma panorâmica;
onisciente, tem informações de arquivo, recortes de jornal etc. (SODRÉ e FERRARI,
1986, p. 107).
Sendo assim, concluímos que o livro-reportagem se encaixa, também, como um gênero do
jornalismo tradicional, por obedecer a uma lógica dos meios de produção jornalística. O produto em si,
o livro, nasce também com o objetivo de ganhar visibilidade e perenidade; que igualmente irá atender
ao sistema capitalista como um produto à venda, tanto quanto a notícia. A contextualidade parte,
justamente, como um atrativo maior para levar o leitor a adquiri-lo para, assim, se aprofundar no caso
tratado no livro-reportagem.
O posicionamento crítico do jornalista diante dos fatos e dentro do livro-reportagem, muitas
vezes, parte com intuito de levar o leitor a determinado ponto de consciência, para que ele se incline a
favor (ou não) da opinião do repórter, mas que o estimule a fazer algum pronunciamento. Os
acontecimentos ganharão outra dimensão, números, estatísticas, opiniões e até hipóteses futuras,
inclusive; característica que, teoricamente, não há na notícia, tida como um simples relato da
ocorrência dos fatos.
O livro-reportagem, por outro lado, também pode encaixar-se no Jornalismo Literário, como já
mencionado. Podemos notar as características literárias, por exemplo, na modalidade “Livro-
reportagem-perfil” ou “livro-reportagem-biografia”. Esse gênero será abordado a seguir e com mais
profundidade no tópico 2 deste trabalho.
1.4 O livro-reportagem-perfil e o perfil de quem se fala
Para entendermos o modo de construção das biografias, denominado por Lima (1995) de livro-
reportagem-perfil ou livro-reportagem biografia, é importante conhecermos como se dá o processo de
formação de um perfil jornalístico (texto mais curto, geralmente vinculado nos jornais e revistas), já
que ambos trabalham com um mesmo objetivo: relembrar ou dar prestígio a vida de um (ou vários)
indivíduo(s). Contudo, colocaremos apenas o livro-reportagem biografia como tópico do Jornalismo
Literário, por se tratar de um trabalho “mais aprofundado” sobre a história de vida de um personagem,
22
em que os recursos advindos da literatura são mais facilmente identificados. Muitas biografias
tornaram-se best-sellers por retratar, com enorme contextualização e riqueza de detalhes, a vida de
grandes personalidades que fizeram (e ainda fazem) parte da História.
Partindo do conceito de Sodré e Ferrari (1986, p. 125), o perfil jornalístico é a descrição,
interior e exterior, de um personagem. Nessa narrativa, o repórter irá abordar, dentre outros assuntos, os
costumes peculiares e o sucesso da vida de uma personalidade. Contudo, este relato é curto, para que
caiba em jornais e revistas (eletrônicas ou não), como explica Vilas Boas (2002):
O perfil jornalístico é um texto biográfico curto (também chamado de short-term
biography) publicado em veículo impresso ou eletrônico, que narra episódios e
circunstâncias marcantes da vida de um indivíduo, famoso ou não. Tais episódios e
circunstâncias combinam-se, na medida do possível, com entrevistas de opinião,
descrições (de espaços físicos, épocas, feições, comportamentos, intimidades etc.) e
caracterizações a partir do que o personagem revela (às vezes sem dizer). (VILAS
BOAS, 2001, p. 93).
Segundo Sodré e Ferrari (1986), existem três modalidades de perfis: o perfil propriamente dito,
o multiperfil e o miniperfil. O primeiro tem como principal característica o total enfoque no
personagem. Nele, os acontecimentos giram em torno da vida de um único indivíduo. Já quando um
jornal produz diversas matérias em inúmeras modalidades (crônica, reportagem, poema, entrevistas
etc.) para homenagear uma única pessoa, o veículo estará construindo um multiperfil. O miniperfil, por
sua vez, é quando um personagem secundário tem destaque em algum momento da narrativa. Ele pode
ser inserido em um breve momento da reportagem, por exemplo.
Ainda segundo os autores, há três tipos de personalidades que podem ser perfiladas. São o
personagem indivíduo, quando se faz um perfil mais psicológico do que referencial, ou seja, o interesse
do repórter está em contar as suas atitudes diante da vida; o personagem tipo, que corresponde as
celebridades, esportistas, milionários etc., enfoca o “como” tais personalidades conseguiram a fama,
dinheiro e sucesso; e, por último, o personagem caricatura, quando o personagem tem características
estranhas ou pouco comuns.
Os perfis estão há mais de dois séculos nos jornais e revistas espalhados pelo mundo. Segundo
Vilas Boas (2002), há pelo menos 50 anos alguns veículos de comunicação tornaram o gênero marca
registrada, a exemplo de The New Yorker, Life, People e Biography etc. No Brasil, uns dos precursores
do estilo foram as revistas Realidade e O Cruzeiro, no começo dos anos 1950:
23
Os autores de perfis dos anos cinquenta e sessenta eram encorajados a conduzir diálogos
verdadeiramente interativos para humanizar o máximo a matéria. Podiam mesclar
informações sobre cotidiano, projetos e obras do sujeito; e opiniões desde sobre temas
contemporâneos como fama, sexo, família, drogas, dinheiro, lazer e política. Ideias e
empatias coexistem em nome de um retrato literário nítido, em nome de captar o
passado e o presente do personagem […]. (VILAS BOAS, 2002, p. 96).
Nesta época, os repórteres trabalhavam como o máximo de esforço para expressarem com
palavras as características do caráter do personagem em destaque que, em geral, tinha alguma
relevância no contexto sociopolítico ou cultural. Vilas Boas (2002, p. 97) afirma que todas essas
informações serviriam para integrar um “conjunto de pistas oferecidas ao leitor para suas próprias
conclusões sobre o personagem.”
A principal diferença entre o livro-reportagem-biografia e o perfil jornalístico é, sem dúvidas,
quanto a sua extensão (até por que o livro oferece espaço para perfilar com melhor qualidade um
personagem quando o comparamos aos periódicos de circulação diária ou semanal). Mas uma questão
relevante nos dias atuais está sobre no “quem” os jornais preferem para traçar perfis e escrever
biografias. Com o aparecimento de revistas comerciais de comportamento como, por exemplo, Caras,
Quem, Chiques e Famosos etc., veio a necessidade editorial e mercadológica que explorara cada vez
mais os passos das celebridades, contando os pormenores de suas vidas, em que se mostra as “intrigas
de bastidores, a invasão consentida, premeditada e falseada da privacidade, a preocupação estrita com
autoimagens, a riqueza sem grandeza, a vida miúda” (VILAS BOAS, 2002, p. 96).
O tema do perfil, ou seja, o personagem em foco, é o grande diferencial para a escolha de uma
das modalidades. Sem dúvidas, o perfilado que faz a novela das oito venderá inúmeras revistas da
semana. Mas, se o mesmo personagem virar livro-reportagem-biografia, provavelmente será por uma
questão de maior relevância de sua vida e obra no contexto social, cultural e/ou político. A questão,
entretanto, não é tão simples.
Para exemplificarmos, podemos utilizar a história de vida ator Reynaldo Gianecchini. Muito
longe de ser um artista renomado, ele teve sua biografia escrita logo após ser acometido por um câncer
raro. O jornalista Guilherme Fiuza escreveu o livro enquanto o ator ainda se tratava da doença. A
biografia tornou-se um best-seller no Brasil. Foram mais de 50 mil exemplares vendidos nos primeiros
meses de lançamento, sendo traduzido para outros idiomas, a exemplo da Europa que, em três semanas,
ficou no ranking das mais vendidas. Sua vida badalada, seus romances, suas polêmicas e sua beleza
24
juvenil, misturada com uma trágica doença no meio do percurso, com uma incrível e inacreditável
recuperação, foi tiro certeiro para o sucesso biográfico. Tudo isso faz parte da espetacularização da
vida. As celebridades tornam-se referências em mundo raso e superficial, que pouco ou nada tem a
acrescentar. E a tendência é que a encenação de vidas glamourizadas ainda se perpetue por tempo
indeterminável nos perfis e em futuras biografias que visam, proritariamente, o sucesso comercial.
25
2 A BIOGRAFIA COMO TÓPICO DO JORNALISMO LITERÁRIO
2.2 Conceitos e características da biografia
Antes de compreendermos a biografia como subgênero do Jornalismo Literário, tentaremos
expor alguns conceitos e características que a estabeleça como gênero narrativo autônomo. Isto porque
a biografia não nasceu após o surgimento do Jornalismo Literário. Pelo contrário, ela vem sendo
desenvolvida e aperfeiçoada ao longo da História; isso desde Plutarco (46-120 d.C.), um dos primeiros
biógrafos de que se tem conhecimento.
Conceitualmente, a biografia é a compilação, dentro de uma forma narrativa, de uma ou várias
vidas. Esta definição de Vilas Boas (2002, p. 18) elucida o que o leitor encontrará ao abrir um livro do
gênero. O próprio nome significa, etimologicamente, escrever (graphein) vidas (bios), ou seja, é a
escrita sobre a vida de alguém ou de algo.
Até meados do século XVIII, existiam poucas biografias publicadas no mundo. Além disso, de
acordo Vilas Boas (2002), os antigos biógrafos costumavam escrever sobre diversas pessoas em um
mesmo livro, onde acabavam incluindo histórias de vidas sobre nobres, santos, reis e poetas, por
exemplo. Esses biógrafos dificilmente se dedicavam a um único personagem como fio condutor da
narrativa, como acontece atualmente com as biografias contemporâneas.
Com o passar dos anos, a biografia começou, então, a ser escrita por especialistas que
geralmente atuavam na mesma área do biografado. Segundo alguns autores e críticos, elas serviam
fundamentalmente como exibição da erudição do próprio escritor, pelo fato de incluir muitos detalhes
considerados inúteis ou desnecessários dentro da narrativa. Como resultado, estas biografias não se
tornavam nem boa história nem boa crítica por causa do excesso de informação.
Em 1971, no entanto, James Boswell escreveu a primeira biografia sobre uma única pessoa,
Samuel Johnson, em um livro com mais de 1400 páginas e evoluiu consideravelmente o gênero. Para
alguns autores, a biografia escrita por Boswell foi o divisor de águas para o surgimento de um novo
conceito de biografia. Isto porque o autor forneceu ao leitor, ao longo do livro, “reflexões profundas
sobre como narrar uma vida; expôs ao leitor os obstáculos à escrita ao longo do texto; incluiu cartas
pessoais, documentos, incidentes e conversas pessoais” (VILAS BOAS, 2002, p. 35). Justamente por
isso, ele foi considerando, por diversos teóricos e críticos, como um dos precursores da biografia
moderna.
Décadas mais tarde, já em 1975, Robert Caro, o primeiro jornalista a conquistar o Prêmio
26
Pulitzer nessa categoria jornalístico-literária, causou entusiamos entre os demais colegas de profissão, e
o gênero começou a ser largamente praticado entre os comunicadores sociais de todo o mundo. No
Brasil, o sucesso biográfico só aconteceria décadas mais tarde, a partir dos anos 1990, quando se
percebeu um incrível aumento no número de profissionais envolvidos com a escrita biográfica. Nesse
contexto, não podemos deixar de destacar o escritor e jornalista Alberto Dines como um dos primeiros
profissionais a ingressar no texto biográfico. Isto porque ele escreveu, em 1981, a biografia “Morte no
Paraíso”. A obra conta a história de vida do escritor e biógrafo austríaco Stefan Zweig, que se refugiou
no Brasil após ser perseguido por nazistas por causa da sua origem judia. Zweig escreveu em 1929 o
livro Brasil, país do futuro e, paradoxalmente, se suicidou junto com sua segunda mulher em
Petrópolis, na cidade do Rio de Janeiro, em 1942.
Antes de abordarmos as principais características conceituais que compõem as biografias, é
importante diferenciá-las dos livros autobiográficos e das obras de memórias. A confusão conceitual
acontece porque todas essas modalidades têm o propósito de relembrar a história de um (ou vários)
personagens utilizando-se de um recurso em comum para sua concepção: o resgate dos personagens
pela memória. Basicamente, as biografias são narradas em terceira pessoa e centralizadas, na maioria
das vezes, em um único personagem, em que todos os outros acontecimentos são apenas satélites.
Nessas narrativas, se faz uso constante das memórias de amigos e parentes, por exemplo, para
reorganização do passado. Já nas autobiografias, o autor é narrador e personagem ao mesmo tempo e,
relatando sua própria existência em primeira pessoa, utiliza as próprias recordações para a reconstrução
do discurso. Por outro lado, os livros de memória não são elaborados, necessariamente, com o foco
total em um personagem principal. Eles podem relatar uma história, por exemplo, sem focalizar
nenhum indivíduo. Este gênero geralmente incorpora lembranças e histórias do autor com memórias de
outras pessoas para a concepção da obra. Para Vilas Boas (2006), há uma questão reflexiva quanto ao
processo de construção das narrativas nas últimas duas modalidades porque, segundo ele,
as fronteiras entre imaginação e memória são difíceis de determinar, e as autobiografias
e livros de memória funcionam como espelho, autoconhecimento, reinvenção e até
autodefesa. Vladimir Nabokov, autor de Lolita, dizia que ninguém pode falar de si
mesmo sem estar consciente da quantidade de ficção que existe na percepção do eu.
(VILAS BOAS, 2006, p. 40, grifo do autor).
Já nas biografias, a reflexão reside na relação biógrafo versus biografado. Ou seja, a vida e a
obra do biografado influenciou/instigou, de alguma forma, o autor da biografia. Isto porque questões
27
como empatia, compreensão e interpretação que o primeiro tem sobre o segundo terão peso no modo
como o personagem será abordado durante a formatação de sua história de vida. Por isso, como
alternativa para essa questão, Vilas Boas (2006) propõe a construção de uma Metabiografia. A nova
metodologia motiva os escritores biográficos a deixarem em evidência a relação “biógrafo x
biografado”. Dentro desse modelo, o teórico sugere que os biógrafos explicitem ao leitor “sua
consciência sobre interpretações e compreensões; os limites e as possibilidades da escrita biográfica;
suas autorreflexões; seus significados e os significados do outro cuja a vida será sempre mais importa
que a do biógrafo” (VILAS BOAS, 2006, p. 41). Tudo isso porque a vida do biografado não é apenas
um aglomerado de dados e informações, mas também uma relação de troca de saberes constante entre
ambos (autor e personagem):
Metabiografia é um modo de narração biográfica que dá atenção também aos exames e
autoexames do biógrafo sobre o biografar e sobre si mesmo. Mas por que pensar nisso?
Por que análise e autoanálise são partes constitutivas do processo de construção de uma
vida pela escrita. Esse processo é do biógrafo, do biografado e de ambos, juntos,
harmônicos, em um mesmo cenário volátil; a metabiografia porque qualquer processo
biográfico extravasa e consagra o relacionamento sujeito-sujeito. (VILAS BOAS, 2006,
p. 41).
As biografias também podem ser classificadas a partir dos contratos autorais. Vilas Boas (2002)
estabeleceu quatro tipos: autorizadas, independentes ou não autorizadas, encomendadas e ditadas.
Basicamente, as autorizadas são aprovadas pelo próprio biografado (quando vivo) ou por seus
familiares; as independentes ou não autorizadas são aquelas em que o escritor inicia por conta própria a
pesquisa biográfica sobre determinado personagem sem o seu consentimento; as encomendadas são
pedidos de editores, familiares ou pelo próprio biografado, para que se escreva o livro; e as ditadas, por
sua vez, são aquelas em que o biógrafo exerce o papel de ghostwriter, ou seja, ele escreve o livro, mas
quem assina a obra é o biografado.
Dentre todas as modalidades citadas, sem dúvidas, a biografia autorizada é a que mais facilita o
trabalho do biógrafo, porque ele possui livre acesso aos arquivos e outras fontes para desenvolver seu
trabalho. Entretanto, a obra pode sofrer censuras por parte de alguns dos personagens importantes que
fizeram parte da história de vida do protagonista da obra (biografado), prejudicando, assim, a trajetória
inicialmente traçada pelo biógrafo. Para Vilas Boas (2002, p. 50 e 51), entretanto:
Seja qual for o contrato biográfico, não se espera independência total, afirmam os
28
biógrafos de personagens contemporâneas. Na corrente que vai do desejo de biografar
até a publicação da obra por uma editora, há vários elos. Um deles é o mercado
editorial, que raramente absorve textos sobre personagens pouco conhecidos do público
dito “heterogêneo”.
No que concerne ao conteúdo, a biografia é caracterizada como um gênero literário de não-
ficção por contar uma história real sobre determinado personagem que existiu ou existe. Dessa forma, a
veracidade, ou pelo menos a verossimilhança dos fatos, são itens que estão necessariamente ligados ao
processo de construção biográfica. Por esse motivo, alguns biógrafos estariam atados no que diz
respeito à liberdade de criação (uma vez que os acontecimentos regem a vida do biografado e impõem
limites imaginativos – o que não acontece com os escritores de literatura de ficção, por exemplo). Por
isso,
[...] os autores de literatura de não-ficção (ou literatura da realidade ou creative
nonfiction) devem reconhecer que têm vocabulário e engenho para explorar – ou mesmo
extrapolar – todas as possibilidades de uma narrativa rica, criando formas renovadoras
que não comprometam sua veracidade. (VILAS BOAS, 2002, p. 144, grifo do autor).
Entretanto, cabe indagar quanto a este ponto: se há limitações na literariedade biográfica,
podemos, então, classificar a biografia como obra de arte? Vilas Boas (2002 p. 113), por exemplo,
citando Virginia Woolf, classifica os biógrafos como “artesões, e não artistas; e seu trabalho não é uma
obra de arte mas algo entre um e outro.” A razão de seus argumentos é porque os biógrafos estão
obrigados a limitar-se aos fatos de uma narrativa de vida, e este fator já o difere da ficção e da poesia,
por exemplo. Assim, mesmo que a vontade do biógrafo seja de narrar com riqueza de artifícios
literários e linguísticos os acontecimentos, estes nunca devem perder a veracidade. Além disso, outro
ponto discutido entre os autores é que a narrativa linear, cronológica e ordenada dos acontecimentos,
presente no discurso biográfico, impede que esses livros sejam classificados como “obra de arte.” É por
isso que muito se discute um vínculo já pactuado entre o leitor e o biógrafo: este traz à tona o passado,
preenche as lacunas que ficaram vazias durante a trajetória de vida do biografado, explica os porquês,
contextualiza os eventos; aquele aceita os fatos como verdadeiros e coerentes, por exemplo.
O leitor, na maioria das vezes, nestes casos, não percebe que tudo que foi dito é apenas uma
interpretação dos acontecimentos, uma parcela, e não sua totalidade – visto que não é mais memória e
sim uma recriação do passado a partir de lembranças de um número incontável de pessoas que se
dispuseram em compartilhar suas lembranças com o biógrafo.
29
Grande parte dos teóricos acreditam que a narrativa cronológica da biografia, largamente
utilizada pelos biógrafos contemporâneos, serve, principalmente, para que a obra ganhe público, já que
anteriormente a vida do personagem não passa de meia dúzia de memórias espalhadas e encobertas de
incertezas. O biógrafo tem, assim, teoricamente, a missão de juntar os pedaços, remendar os fatos, dar
unidade aos acontecimentos e associar as memórias de fontes oficiais (e não oficiais) aos episódios de
vida do indivíduo; tudo para que o leitor facilmente compreenda a vida do personagem como um todo,
e não como parte.
Para Felipe Pena (2004), a biografia é uma das formas de resgate da memória mais presente na
atualidade. Isto porque o ritmo frenético e crescente do número de informação veiculada na mídia gera
o esquecimento quase imediato do que foi noticiado ou exibido minutos atrás. Dessa forma, a biografia
surge como exercício de recuperação e armazenamento da memória na medida em que tenta “encontrar
alguma estabilidade diante da reordenação espacial e temporal do mundo” (PENA, 2004, p. 19),
proporcionando perenidade a vida de algo ou de alguém.
E é nesta tentativa de reviver e reordenar o mundo que as biografias seguem uma suposta
cronologia dos fatos, como se todos os acontecimentos da vida humana tivessem início, meio e fim,
ordenadamente, passo após passo, como em um ciclo estável e imodificável. Portanto, essa linearidade
também pode ser considerada como ponto a favor do sucesso biográfico, porque facilita a compreensão
do conjunto da obra entre diversas classes sociais.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1974) denomina esse tipo construção cronológica como
“ilusão biográfica”. Nela, o biógrafo tenta relatar coerentemente a vida de alguma personalidade como
verdadeira e linear. Porém, para este mesmo autor, o que biógrafo produz nestas narrativas são apenas
efeitos do real e impressões que se acomodam em uma “criação superficial do sentido”, conforme
explica:
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se como uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que
toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1974, p.
185).
Apesar de toda a crítica existente atualmente em torno da ordem cronológica dos fatos dispostos
na montagem biográfica, grande parte dos biógrafos ainda reconstroem e reestruturam o passado
através da utilização da memória, trabalhando no processo de organização de uma narrativa linear.
30
Contudo, Pena (2004) acredita que já na transposição da memória (passado) para a escrita biográfica
(presente), há uma evidente quebra da linearidade biográfica. Isto porque o discurso (a narrativa) torna-
se uma presentificação do passado, que não o substitui, mas o complementa e o interpreta de diferentes
maneiras.
Dessa forma, a memória só é memória no esquecimento e, a partir do momento em que é
lembrada, torna-se discurso do tempo presente. Neste sentido, a memória escrita (ou seja, a narrativa)
não substitui o passado, ela apenas apresenta uma versão não-linear sobre o que foi lembrado, como
explica o autor:
Partindo da ausência para fundar outra presença, a escrita leva significado sempre para a
posteridade. Nesse sentido, rompe com a ideia de linearidade temporal, já que o instante
original das formulações jamais seria atingido, pois ele não estaria no passado, mas na
sua reinterpretação no presente. Prevalece a ideia da simultaneidade. Prevalece a
presentificação do tempo. (PENA, 2004, p. 24).
Levando em conta a impossibilidade de uma construção linear e coerente de determinada
identidade a ser biografada, alguns autores apresentaram algumas alternativas para superá-la. Felipe
Pena (2004), por exemplo, propõe em sua tese de doutorado intitulada Teoria da Biografia sem fim,
uma biografia em fractais. Este modelo está apoiado no desenvolvimento de uma narrativa que conte as
histórias das várias identidades que compõem um único personagem. O autor parte do princípio de que
um indivíduo possui várias personalidades. Dessa forma, o biógrafo terá a consciência que existe um
indivíduo pai, professor, empresário, marido, por exemplo, em um só ser humano. A Teoria dos Fractais
aplicada a construção biográfica surge como alternativa para conscientizar o leitor de que a identidade
é fragmentada, e que ela será influenciada, também, no modo como cada biógrafo enxerga o biografado
e de sua relação com este.
A teoria dos fractais revela uma complexidade que certamente também pode ser
aplicada nas pesquisas sobre a identidade. Ainda mais quando inserida nos estudos
sobre o discurso biográfico. Definir a identidade do biografado em explicações
coerentes e totalizantes está definidamente fora de propósito. Mas fraccionar essa
identidade em múltiplas e similares identidades, em simetria de escala e recorrência de
possíveis padrões, parece ser uma boa opção. (PENA, 2004, p. 62).
Segundo esse modelo, o discurso não teria preocupação com a ordem cronológica dos fatos e os
capítulos seriam “nominais”, onde o leitor poderia iniciar a leitura pela parte que preferisse, sem medo
31
de se perder durante a história. Assim, cada fractal (ou capítulo) traria notas de rodapé em que iriam
constar as referências e as fontes utilizadas pelo biógrafo. Neste modelo, haveria, ainda, as outras
possíveis versões sobre um mesmo fato, possibilitando que as múltiplas interpretações de um mesmo
acontecimento ficassem evidentes para o leitor. Dessa forma, Pena explica que
nos fractais biográficos, estas múltiplas identidades são visíveis. Em determinados
momentos, prevalecerá a identidade relacionada à profissão, em outras a religião, depois
a família, assim por diante. Tudo vai depender dos acontecimentos dos deslocamentos
do personagem pelo espaço social. (PENA, 2004, p.63).
Para colocar em prática a teoria disposta em sua tese, Felipe Pena escreveu a biografia de
Adolpho Bloch, dono da revista e TV Manchete, em um livro com 19 grandes fractais. Cada um dos
capítulos possuem outros pequenos fractais, totalizando 158 abordagens sobre o personagem. A
biografia ficou disponível no site do autor (www.felipepena.com) e os leitores também puderam
escrever sobre Bloch, o biografado. Ou seja, o leitor teve a oportunidade de tornar-se co-autor do livro.
Dessa forma, explica Pena (2004, p. 85), a biografia estaria sendo mais fiel ao próprio fluxo da vida,
por se apresentar de maneira não-linear e possuir inúmeras versões e interpretações sobre um mesmo
personagem, além de oferecer oportunidade a diversidade de múltiplas escritas, já que, segundo ele,
“não é possível contar essas estórias como elas realmente ocorreram.”
Nesse mesmo sentido, Vilas Boas (2002) também acredita que cada ser humano não é possuidor
de uma única personalidade, mas, sim de um conjunto de comportamentos que o difere dos outros seres
humanos. Como exemplo disso podemos citar o jogador de futebol Garrincha, biografado pelo escritor
e jornalista Ruy Castro. O biógrafo tentou mostrar as várias faces de sua persona como jogador,
alcoólatra, entre outros “eus” que compõem o personagem que se tornou um célebre driblador do time
do Botafogo do Rio de Janeiro. Tal exposição das múltiplas personalidades, entretanto, ainda é pouco
evidente na formatação das escrituras de vida de Ruy Castro.
Precisamente por essa razão, Vilas Boas (2002) apropria-se do conceito de Carl Gustav Jung, e
chama de persona a “máscara” que o ser humano utiliza para mostrar-se aos outros e, assim, reitera que
a relação biógrafo e biografado influenciará sempre na construção da(s) persona(s) nos textos
biográficos, pois
[...] a biografia também transporta a carga do seu autor, suas impressões pessoais, sua
formação, sua história de vida, seus compromissos com a sociedade que o moldou e
consigo mesmo. As matrizes de interpretação que compõem o biografado são as mesas
que compõem o biógrafo em seu próprio processo, com suas próprias máscaras.
32
(VILAS BOAS, 2002, p.136).
Como recurso para o seu trabalho, o biógrafo se apoia, além das memórias, em um árduo
trabalho de pesquisa, seleção, interpretação de dados, construção de narrativas etc. Para isso, ele utiliza
inúmeras fontes como alicerce para o desenvolvimento do discurso biográfico. Vilas Boas (2002)
divide as fontes biográficas em dois tipos: primárias e secundárias. A primeira se refere às fontes
gravadas ou impressas, que não estão fundamentalmente apoiadas na memória humana como, por
exemplo, documentos, cartas, fotografias, diários e livros. Já a segunda só existe porque o biógrafo
incita memórias de diversas pessoas para reconstrução do passado. Um exemplo de fonte secundária
mais utilizada por esses profissionais são as entrevistas orais ou por escrito.
Como podemos notar, o biógrafo está o tempo todo lidando com questões humanas e reais, se
relacionando com pessoas e colhendo dados pessoais e profissionais. Esse fator “humanístico” também
pode está associado ao sucesso desse gênero. Isto porque muitos biografados servem, na maioria das
vezes, como exemplo ou referência social. Eles são, teoricamente, indivíduos que possuem uma
história de vida no mínimo instigante para mostrar ao público leitor. Ou seja, são sujeitos considerados
de importância histórica e referencial que, por algum motivo, despertam interesse ou inspiram, de
alguma forma, quem os lê, através de suas histórias de vida.
Alguns autores acreditam que a biografia supera as obras de ficção, em termos de preferência,
por oferecer a vida de alguém como experiência ou exemplo, por mostrar conflitos externos e internos
inerentes ao ser humano; pelo fato de escancarar que ele, o consumidor biográfico, não está “sozinho”
no mundo. Por isso,
os biógrafos tendem a preferir biografar um indivíduo que ao menos mereça seu
respeito e estimule sua capacidade individual de investigação. Evidentemente, outros
fatores entram no conflitante jogo da criação biográfica, como o mercado, as
preferências pessoais do autor, sua relação com o personagem central, entre outros.
(VILAS BOAS, 2002, p.18).
Ou seja, o estudioso acredita que os biógrafos tendem a ter uma relação de simpatia e empatia
com a personalidade que irá ser transformada em livro. Mesmo assim, atualmente algumas questões
reflexivas permeiam a produção das biografias contemporâneas. Primeiramente: quais são os tipos de
personas biografadas que o público está consumindo? Qual o público-alvo desses biógrafos? Se o leitor
procura referências pessoais na vida de outra pessoa, por que há, então, um crescente interesse sobre a
vida das celebridades que estão na mídia, por exemplo? Pelo número elevado de biografias sobre
33
celebridades, os biógrafos estariam alimentando uma população alienada e preguiçosa? A lógica
teorizada por Vilas Boas (a de que os biógrafos têm empatia com o seu personagem) estaria deixando
de existir para suprir a curiosidade alheia e, principalmente, do mercado?
Essas são questões importantes. Podemos notar, por exemplo, que a cultura de massa confunde
e distorce a realidade, inverte os valores. Tal necessidade em sabermos os pormenores da vida alheia é
forjada e imposta a massa – e não só a ela – como algo importante ou necessário para a formação
individual. A futilidade vira algo essencial e a vida é banalizada. Por esse motivo, Vilas Boas (2002, p.
43) acredita que “raramente se consegue avaliar o valor das pessoas que não se destacam, sob a
justificativa de que os indivíduos competentes estarão necessariamente em evidência.”
Já Felipe Pena (2004) atribui esse fenômeno, em grande parte, à espetacularização da vida. Ou
seja, as celebridades tornaram-se heróis em uma completa e total inversão de valores do mundo
contemporâneo. E com a ajuda de inúmeros programas televisivos e sites na internet, essas mídias
passaram a destrinchar a vida de artistas, seguir seus passos e noticiar seus casos. A vida pessoal de um
artista, por exemplo, virou, de fato, uma novela ou uma série televisiva do gênero drama, em que os
telespectadores acompanham o enredo atentamente.
É a encenação da própria realidade e a glamourização do banal. Pena (2004, p. 31), citando
Neal Gabler, acredita que esses veículos de comunicação produzem “quase todos os dias dados de fazer
inveja a qualquer romancista.” E é esse ciclo vicioso em vender fatias de vidas que acaba gerando
muitos outros produtos sociais, a exemplo dos livros e filmes biográficos.
A espetacularização da vida toma lugar das tradicionais formas de entretenimento. Cada
momento da biografia de um indivíduo é superdimensionado, transformado em capítulo
e consumido como um filme. Mas a valorização do biográfico é diretamente
proporcional à capacidade desse indivíduo em roubar a cena, ou seja, em torna-se uma
celebridade. Aliás, as celebridades tornaram-se o pólo de identificação do consumidor-
ator-espectador do espetáculo contemporâneo. São elas que catalizam a atenção e
preenchem o imaginário coletivo. (PENA, 2004, p. 34).
Para o autor, portanto, as celebridades constroem uma pseudo vida heroica por interpretarem o
papel de herói como se fossem mais um personagem da trama. É o espetáculo do próprio “eu” sobre o
espectador em uma realidade encenada. E é isso que vende: tanto alimentando a mídia quanto o
público. O contato direto e imediato do indivíduo comum com a celebridade cria um vínculo de
intimidade que são consumidas (vendidas) diariamente. Por isso, a valorização dessas biografias põem
34
em xeque o oportunismo e o sensacionalismo de alguns biógrafos, fenômeno crescente em todo o
mundo, nesse meio jornalístico-literário.
No que diz respeito ao envolvimento da biografia com diversos campos do saber, notamos que o
gênero utiliza-se de recursos advindos da História, do Jornalismo, da Literatura e de muitas outras
áreas. O seu discurso é hibrido e a estética biográfica dependerá, em grande parte, do campo de
conhecimento do biógrafo e de suas relações com outras ciências. Justamente por isso, alguns teóricos
acreditam que ainda não exista um padrão para tal discurso. Vilas Boas afirma que
como a biografia nunca teve uma terminologia e um protocolo de aceitação geral, ou
uma estética que pudesse ser apoiada e contestada, a incerteza a respeito do método
biográfico reflete a duplicidade do território em que o biógrafo trabalha. (VILAS
BOAS, 2002, p. 155).
Essa hibridez, por exemplo, faz com que teóricos e escritores questionem qual o lugar da
biografia. Afinal, o gênero pertence à História, à Literatura, ao Jornalismo ou à Filosofia? A fusão de
várias linguagens cria, assim, uma tênue linha que perpassa vários campos do conhecimento durante a
formação do discurso biográfico. No final, cada biografia possui características próprias e singulares,
sendo apenas possível analisá-las individualmente ou em pequenos grupos.
Existem, por outro lado, alguns procedimentos metodológicos comuns à construção dessas
narrativas como, por exemplo, entrevistas, pesquisas, documentação, recursos narrativos, interpretação
dos fatos etc., mas cada autor se posicionará de diferentes modos diante da coleta de informações para
a produção dos textos. Vilas Boas (2002) destaca, neste particular, que existe “uma” biografia e não “a”
biografia, por entender que a narrativa é uma versão dos fatos, um ponto de vista do biógrafo sobre o
biografado. Nesse sentido, pois, dois biógrafos sempre abordarão de maneiras distintas um mesmo
biografado porque o “tipo” de vivência que cada um já tem ou teve com o biografado influenciará,
também, os aspectos da abordagem.
Como estudioso das narrativas de vidas, Vilas Boas (2006, p. 24) notou que, apesar de inúmeros
profissionais de áreas distintas ingressarem no ramo biográfico, há uma repetição quanto à percepção
dos biógrafos no processo de produção dessas narrativas que vão além de alguns dos procedimentos
metodológicos. O teórico percebeu que existe uma limitação de cunho filosófico nas escritas de muitos
profissionais. Este fato, segundo ele, demonstra uma certa superficialidade dos autores em visualizar e
sentir “a experiência humana e o significado da escrita biográfica.”
Em tal sentido, Vilas Boas (2006) mapeou, em sua tese de doutorado intitulada “Biografismo:
35
reflexões sobre as escritas de vida”, pelo menos seis características provenientes dessas limitações
filosóficas: descendência, fatalismo, extraordinariedade e verdade, ligados à maneira de pesquisa e
compreensão do biografado; e transparência e tempo, associados à maneira do biógrafo em
expressar/narrar biografias contemporâneas.
Basicamente, a limitação filosófica que se refere a descendência significa a recorrente busca dos
biógrafos em justificar certas características do personagem biografado com base em origens
consanguíneas como, por exemplo, pais, avós, tios etc. Ou seja, muitos autores fundamentam traços de
temperamento da persona biografada apoiados nos atributos de personalidade dos seus ancestrais.
Sendo assim, esses biógrafos acreditam nas “influências da ascendência sobre a personalidade” do
biografado.
Biógrafos adoram recorrer a pais, avós e bisavós para tentar explicar temperamentos,
atitudes destrutivas, decisões arriscadas, fracassos, repetições, compulsões, conquistas
etc. Essa é uma “opção” da maioria dos biógrafos, que preenchem páginas à procura dos
ancestrais de seus biografados talvez por acreditarem que os ancestrais consanguíneos
necessariamente moldam as gerações seguintes. (VILAS BOAS, 2006, p. 48).
O autor acredita que os biógrafos devam ir além da linha evolutiva para justificar as
características dos biografados, e notar que o meio em que ele viveu e sua condição histórica, por
exemplo, o formataram tanto quanto o convívio com seus familiares.
O fatalismo, segunda limitação filosófica traçada por Vilas Boas, está associado às escritas de
alguns biógrafos em fixar acontecimentos de vida do biografado como algo já traçado pelo destino. Isto
quer dizer que na vida do personagem “tudo acontece porque tem que acontecer, sem que nada possa
modificar o rumo dos acontecimentos” (VILAS BOAS, 2006, p. 85). Tal predestinação coloca a obra
do biografado acima da sua própria vida, do seu próprio trabalho.
Pelo fato de a maioria das biografias disponíveis hoje em dia narrar a vida de pessoas
publicamente conhecidas, o fatalismo está diretamente relacionado à faceta
carreira/obra do biografado. É como se os biógrafos estivessem nos dizendo assim: meu
personagem estava fadado a construir uma obra notável; nada nem ninguém poderia
impedir seu extraordinário feito. (VILAS BOAS, 2006, p. 99).
A terceira limitação se refere à extraordinariedade. Essa característica está ligada à elevação do
biografado pelo biógrafo ao status de gênio, Deus, anormal, entre outras condições louváveis. Ou seja,
o personagem é um ser humano diferente de todos os outros e por isso digno de um livro que narre suas
36
vitórias e seu brilhantismo alcançado durante sua trajetória de vida.
Assim como a descendência e o fatalismo, Vilas Boas (2006) considera a extraordinariedade
uma característica que banaliza e diminui tanto a narrativa biográfica quanto o personagem em foco.
São, ao ver do teórico, recursos usados sem aprofundamento necessário, quase jogados ao leitor sem
motivo; ou talvez por comodismo, sem o cuidado de estar colocando algo que é apenas uma
interpretação como um fato verdadeiro.
A verdade, aliás, é outra limitação filosófica da qual os biógrafos estão fadados a tentar atingir,
ou pelo menos mostrar ao leitor que tudo o que ele escreveu é, sim, verdadeiro. Vilas Boas (2006) nota
que os biógrafos tendem a ser mais evidentes em demonstrar a “verdade” dos fatos, principalmente
entre os jornalistas-biógrafos. Isto porque esse mecanismo é uma prática já impregnada na sua
formação profissional. Ou seja, o jornalista trabalha em cima dos acontecimentos e sua obrigação é
estruturar a notícia da forma mais real possível para o público. E tal prática acabou sendo aplicada na
construção do discurso biográfico. Contudo, como anteriormente demonstrado neste tópico, a biografia
não passa de uma versão sobre seu personagem, e por isso, a relação biógrafo versus biografado
influenciará no modo como o indivíduo será retratado por um livro.
Para Vilas Boas (2006), as quatro características acima conceituadas estão relacionadas ao
modo de pesquisa e compreensão do biografado pelo biógrafo. As outas duas, transparência e tempo, se
referem ao “como” o biógrafo se expressa e narra as biografias contemporâneas.
A transparência está fundamentalmente ligada ao conceito formulado pelo autor na criação da
Metabiografia. Neste modelo, a relação biógrafo e biografado devem ser de conhecimento do público
leitor, como já explicado anteriormente no início desde tópico. Para o teórico, as reflexões, as escolhas,
as interpretações, as dúvidas, as dificuldades e os caminhos seguidos pelo biógrafo, por exemplo,
precisam constar de forma contínua na narrativa biográfica e de maneira que fique explícito ao leitor o
como e os porquês de tais versões. Desse modo, o biógrafo estaria humanizando o seu relato e, ao
mesmo tempo, usando a autorreflexão de forma transparente, ou seja, visível aos olhos do público
consumidor.
Por último, temos a limitação filosófica que remete ao tempo. Vilas Boas (2002) também notou
que o tempo estabelecido em quase todas as biografias escritas até hoje seguem a ordem cronológica,
como se todas as histórias de vida fosse “redondas”, lineares, com início, meio e fim. Tal aspecto
também já foi mencionado anteriormente no início deste tópico.
Como saída, o teórico propõe que o biógrafo insira quatro dimensões do tempo e dos espaços
narrativos, que são:
37
1. dimensão física, transcorrida no espaço-tempo onde os pés do biografado
pisam ou pisaram; 2. a dimensão psicológica individual e coletiva – o tempo
interior; 3. a dimensão do contexto, que ocorre fora do alcance físico e que é
dependente ou independente da vontade; e 4. a dimensão imprevista – não
manifesta. (VILAS BOAS, 2006, p. 238 e 239).
Todas essas limitações relacionadas à escrita biográfica parecem que estão enraizadas no modo
de fazer biografias contemporâneas. São convenções adotadas por diversos biógrafos os quais pouco
(ou nada) refletiram antes de lançarem suas obras nas prateleiras. Afinal, muitas dessas características
foram incorporadas por biógrafos que se inspiraram em outros biógrafos, seguindo uma tradição
biográfica pouco prudente. A priori, uma mudança radical proposta por alguns teóricos parece distante
da realidade do mercado editoral e do público consumidor contemporâneo, no gênero. Essa limitada
reflexão sobre o exercício biográfico, portanto, pode está relacionado a escassez teórica que diz
respeito ao próprio gênero. No Brasil, pelo menos após a elevada procura pelas biografias, muitos
intelectuais passaram a ocupar-se em desvendar não só a hibridez da biografia, mas também a
transdisciplinaridade desse tipo de escrita e sua interatividade com público leitor cada vez mais ávido
em consumir exemplares de biografias.
2.2 As narrativas historiográficas e jornalísticas no discurso biográfico
As biografias interessam a uma série de profissionais. Historiadores, sociólogos, literatos e
jornalistas, por exemplo, já ingressaram no ramo biográfico. Para fins deste trabalho, analisaremos dois
tipos de escrita biográfica: a clássica, também chamada de acadêmica, usualmente exercidas por
historiadores ou acadêmicos, e as “biografias jornalísticas”, que são livros-reportagem-perfil. Estas são
escritas por comunicadores sociais e geralmente formatadas através de alguns preceitos básicos do
chamado Jornalismo Literário.
As biografias clássicas, em sua grande parte, mantém uma certa tradição acadêmica, com
característica notadamente documental e direcionadas para um público específico. Em suas escritas, os
recursos literários são escassos. E os registros, arquivos e certificados, por exemplo, estão quase
sempre evidentes em forma de notas de rodapé. O surgimento da corrente da Nova História, sobre a
qual abordaremos mais a frente, quebrou muitos padrões já enraizados nessas escrituras, além de criar
38
condições para o surgimento de outros modos de percepção e narração sobre as histórias de vida.
Mais recentemente, e paralelamente a produção biográfica dos historiadores, a modalidade de
livro-reportagem-perfil ganhou as prateleiras e o público leitor. Esta modalidade passou a ser produzida
em maior quantidade, e os jornalistas começaram a apresentar uma nova linguagem ao recontar
histórias de vidas. Eles utilizam-se de artifícios literários e linguísticos para atrair o consumidor, e a sua
narração romanceada realmente fez aumentar a procura do público pelo gênero.
Na construção do discurso biográfico, tanto a História quanto o Jornalismo fazem uso de
conceitos éticos e estéticos semelhantes para a formação da narrativa. Ora eles se afastam ora se
aproximam, em um movimento contínuo, por possuírem fontes idênticas para a narrativa da vida de
personagens, como explica Vilas Boas:
As fontes de um biógrafo são idênticas às de um historiador ou de um jornalista
investigativo que trabalha para periódicos ou em seu próprio livro-reportagem:
documentos (oficiais e não oficiais), correspondências, fotos, diários, clippings, livros
de memórias e autobiografias, assim como, eventualmente, entrevistas e reconstituição.
(VILAS BOAS, 2002, p. 53, grifo do autor).
Entretanto, para o historiador Benito Bisso Schmidt (1997), as antigas abordagens
historiográficas nas biografias possuíam enfoques excessivamente estruturalistas3 e totalmente despidas
de “humanidade”. Com o passar dos anos, ainda segundo o autor, essas narrativas passaram a ser mais
analíticas do que descritivas, enfocando mais o homem do que as circunstâncias. Contudo, para
Schmidt, ambos os campos de conhecimento só tiveram força no discurso biográfico após sua ligação
com a literatura. Ainda segundo o autor: “O gênero biográfico emerge na história e no jornalismo no
bojo de um processo de aproximação destas áreas com a literatura, o que implica na incorporação do
elemento ficcional e a adoção de determinados estilos e técnicas narrativas.” (SCHMIDT, 1997, p. 8).
Há diferenças metodológicas primordiais, entretanto, que diferem as narrativas historiográficas
das narrativas jornalísticas no que diz respeito a produção de biografias. Primeiramente, os
historiadores ainda estão muito ligados às metodologias próprias do seu campo. Schmidt (1997, p. 8)
acredita que o historiador-biógrafo ainda se mantém “fiel à tradição da crítica (interna e externa) aos
documentos: quem produziu determinado vestígio? em que situação? Com quais interesses?” Para o
3 Para Jean Piaget (1979, p. 8), “o estruturalismo se distanciou, sobretudo, das pesquisas diacrônicas, que se estribam em
fenômenos isolados, para encontrar sistemas de conjunto em função da sincronia.” Ou seja, para entender aspectos de
uma realidade – seja ela politica, social ou cultural, por exemplo –, este método analisa o sistema que a comporta, e
exclui visivelmente os fenômenos individuais, pois são vistos como algo menor dentro de uma estrutura.
39
estudioso, o jornalista-biógrafo, por outro lado, não estaria tão preocupado, assim, com tais preceitos
primários inerentes à abordagem histórica. Além disso, o teórico observa que romancistas, historiadores
e jornalistas também utilizam-se da imaginação para reconstruir existências.
Schimidt (1997), contudo, teoriza que a imaginação disposta nas narrativas biográficas
realizadas pelos romancistas e historiadores diferem das demais porque eles evidenciam para o leitor
tal ocorrência “fantasiosa”. Já os jornalistas tendem, segundo ele, a elaborar elementos de ficção como
o verdadeiro e o verossímil ao reproduzir diálogos, sentimentos e sensações. O autor entende que “as
biografias produzidas no campo da história e aquelas produzidas no do jornalismo, apesar de algumas
aproximações significativas, apresentam diferenças marcantes, tanto formais quanto epistemológicas”
(SCHIMIDT, 1997, p. 15).
A literariedade presente na escrita biográfica pode ser explicada pelo fato de que os jornalistas,
no momento em que passaram a se interessar em escrever biografias, em meados dos anos 1970 nos
Estados Unidos, já estavam contaminados por outros gêneros jornalísticos imersos na literatura, a
exemplo do Novo Jornalismo e do livro-reportagem, que influenciaram visivelmente a escrita
biográfica desses profissionais. Dessa maneira, muitos repórteres já detinham experiência e
conhecimento de algumas técnicas narrativas que misturavam jornalismo e literatura, e conseguiram
aplicar tais recursos no discurso biográfico.
Além do envolvimento das biografias com o campo da literatura, uma corrente de pensamento
esteve presente nestas escritas: a Nova História. Vilas Boas (2002) acredita que, tanto na historiografia
– com a biografia – como no jornalismo – com o livro-reportagem –, essa corrente influenciou a escrita
biográfica moderna pela sua possibilidade de intercâmbio com outras ciências. Isto porque ela
apresentou interesse “no detalhe tanto quanto no essencial; na clareza tanto quanto na substância; no
registro tanto quanto no documento; na covardia tanto quanto na grandeza” (VILAS BOAS, 2002, p.
69). Ou seja, os novos-historiadores ficaram mais atentos a “abrangência da atividade humana e a
interdisciplinaridade.” Destarte, outros campos passaram a contribuir para compreensão dos
acontecimentos, formando novo discurso dentro da História e repaginando, da mesma forma, os novos
biógrafos e as novas biografias, que passaram a se interessar por questões mais analíticas do que
meramente descritivas.
Em outras palavras: podemos dizer que a partir do momento em que várias ciências começaram
a pesar sobre os fenômenos históricos, a Nova História passou a se diferenciar da história tradicional
por não estar prioritariamente ligada ao modo narrativo dos acontecimentos. À vista disso, os novos-
historiadores estiveram mais preocupados com o contexto social ao se apoiarem em elementos que vão
40
muito além dos documentos e personagens oficiais, por exemplo. Por isso, nas biografias
os biógrafos operam o que os novos-historiadores chamam de “mundo das experiências
comuns”, que incluem novas formas narrativas, como micronarrativas, narrativas de
frente para trás (flaschback) e histórias que se movimentam entre os mundos público e
privado ou apresentam os menos acontecimentos de múltiplos pontos de vista. (VILAS
BOAS, 2002, p. 70, grifo do autor).
No campo jornalístico, Vilas Boas (2002) verificou, por sua vez, que nos anos 1990 três obras
escritas por jornalistas se destacaram entre os dez livros de não-ficção mais vendidos da década no
Brasil. Chatô, de Fernando Morais, Mauá, de Jorge Caldeira e Estrela Solitária, de Ruy Castro,
tornaram-se sucesso de crítica e de público, trazendo à tona, novamente, grandes personagens do
imaginário brasileiro.
Todavia, poderíamos indagar: o sucesso dessas obras estaria ligado, essencialmente, à maneira
de escrever do jornalista? O escritor e biógrafo Steve Weinberg, citado por Vilas Boas (2002), acredita,
por exemplo, que sim, porque verificou que muitos dos melhores biógrafos americanos têm formação
em jornalismo ou experiência nas redações de jornais e revistas.
Jornalistas importantes que se tornaram biógrafos trazem para a sua nova ocupação
características já prontas que, para os acadêmicos especializados, surgem com menos
naturalidade: eles já sabem obter informação difícil, considerada sigilosa, sobre uma
variedade de assuntos a partir de agências governamentais e instituições particulares;
convencer fontes relutantes a falar; escrever de forma clara para que os leitores de todos
os níveis e não só para acadêmico; utilizar o processador de texto antes de vencer o
prazo final para entrega do trabalho. (WEINBERG, 1992, apud VILAS BOAS, 2002, p.
26).
Sobre esse ponto, notamos que, apesar disso, tanto a produção historiográfica quanto a
jornalística se destacam quando o campo é a biografia. Porém, nas últimas décadas, principalmente no
Brasil, observamos um crescente número de profissionais da área de comunicação social ingressarem
nesta atividade.
O sucesso dessas obras já foi associado por muitos estudiosos à linguagem acessível e carregada
de recursos literários que muitos jornalistas adotam ao narrar histórias de vidas. De fato, os jornalistas-
biógrafos conseguiram dar uma nova revigorada nesse mercado editorial.
Justamente por isso, com o objetivo de entender em que consiste a hibridez do gênero,
41
estudaremos duas obras desse tipo, escritas por jornalistas que, mesmo inseridos na mesma profissão
(jornalismo), diferem claramente quanto as suas narrativas. Assim, analisaremos comparativamente as
obras de dois jornalistas-biógrafos: Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, de
Ruy Castro, vista como exemplo de biografia escrita nos moldes do Jornalismo Literário, e Eu Não Sou
Cachorro, não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar, de Paulo César de Araújo, entendida como
uma biografia clássica ou acadêmica. Ambas tem como ponto comum a narração de dois movimentos
musicais que marcaram época no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Pretendemos, com isso, relacionar
os encontros e desencontros das diferentes narrativas elaboradas pelos biógrafos para escrever sobre
um mesmo tema: a música popular no Brasil.
2.3 O público versus o privado: a polêmica das biografias
Como abordado no item 2.1, as biografias podem ser classificadas a partir dos seus contratos
autorais. Vilas Boas (2002) as dividiu em quatro grupos: autorizadas, independentes ou não
autorizadas, encomendadas e ditadas. No Brasil, contudo, as biografias autorizadas ainda podem sofrer
censuras de alguns dos personagens envolvidos na narrativa, e a obra nunca poderá tratar de
determinado fato que poderia ter sido importante dentro da história contada. Mas, se os autores não
quiserem modificar nenhum trecho do seu trabalho, eles podem lançar no mercado uma biografia não
autorizada, ou seja, que não foi aprovada pelo biografado. Entretanto, o personagem em foco (ou seus
herdeiros) podem recorrer à Justiça para que a obra seja retirada de circulação. Isto porque não existe,
no Brasil, uma lei que regulamente as biografias não autorizadas, ou seja, que beneficie tanto biógrafo
no exercício da liberdade de expressão, quanto o biografado no direito à privacidade.
Recentemente, muito se discutiu sobre as biografias no Brasil. Uma modalidade em particular
ganhou manchetes à exaustão em jornais, revistas e programas televisivos: as biografias não
autorizadas. Isto porque uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi impetrada no Supremo
Tribunal Federal pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) com o objetivo de que a
Corte reconheça a inconstitucionalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, de 2002. O artigo 21
concede aos biografados – quando vivos (ou aos seus herdeiros), o direito de proibirem as biografias
não autorizadas. Isso significa dizer que livros ou produções audiovisuais que remetam à história de
vida de alguma personalidade, para que sejam comercializadas, precisam de suas autorizações prévias.
E, mesmo que as biografias não autorizadas cheguem ao mercado, os biografados (ou seus familiares)
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que sentirem a "honra, a boa fama ou a respeitabilidade atingidas" durante a narrativa poderão recorrer
à Justiça para que a obra seja proibida e retirada de circulação. O artigo 20, por sua vez, coloca a
privacidade do indivíduo como “inviolável”.
Tais dispositivos, argumenta a Anel, infringem “as liberdades de manifestação do pensamento,
da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, além do direito difuso da cidadania à
informação”, que são constitucionalmente assegurados pela Carta Magna de 1988. Ainda em sua ADI,
a Anel alega que, com esses artigos em vigor, as biografias que necessitam de autorização prévia para a
publicação estão sofrendo um tipo de censura privada, porque mesmo que a pessoa biografada possuía
notoriedade pública, o interesse individual passa a ser mais importante do que o interesse coletivo, já
que o personagem será o dono de sua história. Para a Anel, o afastamento da autorização prévia dos
biografados (quando vivos), dos familiares ou de outras pessoas que fizeram parte da narrativa, estará
contribuindo para a construção da memória e da historiografia nacional. No Poder Legislativo, o
projeto de Lei 393/2011 do deputado Newton Lima (PT-SP) também tenta remover do Código Civil o
artigo 20. No entanto, nem a ação interposta pela Anel nem o projeto de Lei foram ainda votados.
Mas o ápice da polêmica que girou em torno das biografias não autorizadas e as tornou um dos
assuntos mais debatidos durante o último semestre de 2013 foi quando o grupo Procure Saber4,
liderado pela empresária Paula Lavigne e que tem como membros os músicos Chico Buarque, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Roberto Carlos, passou a apoiar a
inalterabilidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil e a reivindicar, entre outras coisas, o direito a uma
porcentagem do lucro da venda destes livros. Tal posicionamento surpreendeu negativamente tanto o
público como uma gama de jornalistas, editores e biógrafos, que rebateram sem piedade todos os
argumentos propostos pelo grupo. Isto porque justamente esses cantores, que passaram pelas maiores
censuras as suas obras durante os anos 60 e 70, estariam, agora, paradoxalmente, defendendo que uma
obra de cunho intelectual continue passando pelo crivo da censura prévia do personagem biografado ou
de qualquer coadjuvante que porventura fizesse parte do livro.
Contudo, em meio a polêmica toda, houve quem afirmasse que a censura só é legitima quando o
Estado intervem em uma situação pública. O colunista Francisco Bosco, por exemplo, em um artigo
publicado no site O Globo, disse que a autorização prévia das biografias pode e dever ser praticada
para que a privacidade do biografado seja preservada. Ele afirma que o que está em jogo é se a vida do
4 De acordo com sua página oficial criada em uma rede social (www.facebook.com/procuresabermusica), o grupo Procure
Saber é formado por “autores, artistas e pessoas ligadas a música” e é “dedicado a estudar e informar os interessados e a
população em geral sobre regras, leis e funcionamento da indústria da música no Brasil.”
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biografado pode ser explorada pela coletividade sem que o próprio personagem possa intervir nas
informações divulgadas. E ainda defendeu que o “princípio da soberania decisória sobre a vida privada
deve prevalecer”, sustentando que “pode-se construir essa memória valendo-se apenas de obras,
informações e documentos públicos.” Tal posicionamento, entretanto, revela que ele pouco sabe sobre
o gênero biografia, visto que a exposição ou apenas a análise das obras e de informações públicas não
constitui primordialmente o gênero biográfico. Etimologicamente, o nome biografia significa: o
escrever de vidas. Portanto “não existe biografia sem vida pessoal”, como afirmou o biógrafo Paulo
César de Araújo em uma entrevista concedida para o programa Roda Viva, da TV Cultura. Isto porque
as escrituras de vida costumam abranger o contexto histórico vivido pelo biografado relacionando,
concomitantemente, características pessoais com aspectos de sua obra para a formatação da
personalidade do personagem em foco.
Em um artigo publicado n’O Globo, Gustavo Binenbojm, professor de Direito e advogado da
Anel, lembra que não há uma prática ilícita por parte dos biógrafos na apuração das informações ou na
coletas de dados: “Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores
que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos
domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo. O trabalho de pesquisa histórica se
realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas
envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados”.
Vejamos, entretanto, se a alternativa proposta por Bosco se aplica a um caso concreto.
Peguemos como exemplo a construção da narrativa biográfica no livro Roberto Carlos em Detalhes, do
mesmo Paulo César de Araújo. A obra que foi proibida e retirada do mercado teve como objetivo
primordial contar o fenômeno histórico que foi o cantor no cenário musical, cultural e social (até então
parcialmente excluído da historiografia musical brasileira). Ou seja, o livro foi, sobretudo, um estudo
que quis resgatar Roberto Carlos do limbo do esquecimento historiográfico. Contudo, o biógrafo, que
passou quinze anos pesquisando sobre a vida do cantor, nunca obteve a tal autorização prévia do
biografado para que a obra fosse lançada. Mesmo assim, Paulo César assumiu os riscos e publicou o
livro pela editora Planeta em 2006. Contudo, no ano seguinte, Roberto Carlos entrou na Justiça e
conseguiu que a venda do livro fosse totalmente proibida e os exemplares recolhidos. O biógrafo,
questionado no Programa Roda Vida da TV Cultura sobre qual parte da biografia poderia ter causado o
incomodo que levou o cantor a processá-lo, acredita que a simples existência da biografia o perturbou,
afirmando que, à época, os advogados disseram que Roberto Carlos nem chegou a ler o livro. Além
disso, destacou o cantor como artista e, principalmente, como um empresário que não gostou que
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alguém estivesse ganhando dinheiro “com o seu nome”. O autor mencionou ainda ser impossível falar
de Roberto Carlos sem que sua vida pessoal fosse abordada. Isto porque Paulo César de Araújo o
classifica como um artista popular autobiográfico em suas próprias canções, e que teve sua vida
acompanhada como uma verdadeira novela por inúmeras revistas.
Podemos perceber, neste imbrólio todo, que há questões que vão muito além do simples direito
à privacidade ou respeito à intimidade do biografado. Outros aspectos, principalmente o econômico,
fazem com que os herdeiros ou o próprio biografado se apropriem da história de vida de um
personagem público e notório cujo relato de sua existência e trabalho poderiam ter um indecifrável
valor para a história e para a formação cultural de um país. Para Gustavo Binenbojm, o embate está
muito além do conteúdo que porventura estaria presente na biografia. O problema reside,
principalmente, “apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo.”
Outro exemplo de biografia não autorizada censurada após a instauração de processo cível foi a
biografia Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro, lançada em 1995, e
retirada de circulação por um ano após as herdeiras do ex-jogador entrarem na Justiça pedindo os
direitos autorais sobre a obra. Em um artigo publicado n’O Globo, Luiz Schwarcz, diretor da
Companhia das Letras, editora que publicou Estrela Solitária, falou pela primeira vez que o pagamento
acordado entre a editora e seus herdeiros se deu pela fragilidade das leis. Isto porque, segundo o
Schwarcz, antes da situação parar na justiça, “o advogado da família não falava em 'imagem denegrida',
mas em 'ajudar o Natal das meninas'.” Como não houve acordo entre as partes, um processo foi
interposto pelas filhas do jogador e em 2001, seis anos após o livro ter sido publicado, a 42ª Vara Cível
do Rio de Janeiro condenou a editora ao pagamento de indenização pelas 180 fotos de Garrincha
utilizadas no livro. As duas partes ainda recorreram na segunda instância e, a partir daí, as herdeiras
afirmaram que além de terem sofridos danos morais e materiais, a biografia denegriu o ex-jogador por
explorar o alcoolismo e a compulsão por sexo sofridos por Garrincha. A editora, por outro lado, dizia
que o livro enaltecia o ex-jogador como um dos mais brilhantes atletas dos últimos tempos e que o
alcoolismo, que já era fato público, foi retratado de maneira ética. Contudo, a família da Estrela
Solitária conseguiu 5% sobre o valor de cada livro vendido, e a obra voltou para o mercado. Shwarcz
afirmou que “com o pagamento realizado, nem a capa ou muito menos o conteúdo voltou a preocupar
as herdeiras.” E observou na questão que “o fato é que a atual lei brasileira permite que se instaure um
balcão de negócios, arbitrariedades e malversações.”
Duas biografias do escritor e poeta curitibano Paulo Leminski também foram impedidas de
serem comercializadas. A primeira, escrita por Toninho Vaz, teve a 4ª edição de Paulo Leminski: o
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bandido que sabia Latim, proibida pela família do escritor. O escritor Domingos Pellegrini, autor do
livro de memória Passeando por Paulo Leminski também não entrou em um acordo com os familiares
do poeta e desistiu de lançar o livro, disponibilizando-o gratuitamente na internet. Alice, Estrela e
Áurea, esposa e filhas de Paulo Leminsk, respectivamente, não autorizaram as obras justificando a
“ausência de autorização expressa aos escritores para inclusão de imagens e poemas de Paulo
Leminski, direitos pertencentes às herdeiras, garantidos pela Lei de Direitos Autorais”, bem como “pela
inclusão de trechos nas biografias que violam a intimidade e honra do poeta, bem como da própria
família'.”
Mais uma vez, a ordem econômica pesa sobre os ombros dos herdeiros, dos autores e dos
editores. E o que dizem os biógrafos quanto à proposta idealizada por Roberto Carlos e adotada pelo
grupo Procure Saber no que diz respeito à porcentagem que deveriam ter os biografados na venda dos
livros?
O jornalista e escritor Ernesto Rodrigues, autor das biografias de Ayrton Senna e de João
Havelange, publicou um artigo no site O Globo e propôs, com ironia, que os músicos como Chico
Buarque e Gilberto Gil trocassem os direitos autorais de uma única música por toda a receita que ele
obteve pela venda da biografia de João Havelange nos últimos sete anos. Mas disse não fazer tal
proposta porque “seria crime de estelionato”. E completa: “Até hoje a venda do livro não cobriu o
adiantamento que recebi da editora.”
O cantor e compositor Chico Buarque, que achou justo a indenização recebida pelas filhas do
ex-jogador Garrincha, foi questionado, em um artigo publicado n’O Globo por Mário Magalhães,
biógrafo de Carlos Mariguella, quanto à música que também cita o ex-jogador. “Se defende que as
filhas do Garrincha recebam pelo trabalho árduo do biógrafo, já pensou em remunerá-las por ter citado
o Mané junto com Pelé, Didi, Pagão e Canhoteiro? “O futebol”, sua música, não tem também “fins
comerciais”? A imprensa de “fins comerciais” publica perfis. E se o Sarney e o Bolsonaro resolverem
cobrar? Devemos reeditar a censura de outrora ou persistir no bom combate a ela?”
Paulo César também se posicionou contra a divisão da renda das vendas entre o biografado.
“Eles tinham que escolher defender ou a privacidade ou o dinheiro. Há uma dificuldade de defender a
proibição de biografias não autorizadas para pessoas que sabem o valor do livro, que além de leitores,
são autores.” Além disso, ressaltou que o biógrafo trabalha por temas, e por mais que Roberto Carlos
seja um personagem real, sua pesquisa sobre ele propõe uma versão do cantor em meio as tantas
interpretações possíveis.
Já Vagner Fernandes, biógrafo de Clara Nunes, confessa que teve mais “ônus do que bônus”
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durante a escrita da trajetória de vida da cantora. E completa: “não fiquei rico com os 10% de repasse
do preço de capa que a editora me concedia. Em cada unidade vendida a R$ 49,90, ganhei R$ 4,90.
Nos acordos em que se negocia um quantitativo muito grande de livros o valor do preço de capa pode
ser reduzido. Ganha-se, no entanto, os mesmos 10%. Façam as contas. Durante quatro anos, como
muitos colegas biógrafos já relataram, gastei com passagens aéreas, hospedagens, telefonemas,
alimentação, fotocópias, compra de livros, de material audiovisual, entre outros itens.”
Mas por que a proposta em destinar uma porcentagem do lucro das vendas das biografias aos
biografados é indevida? Primeiramente, uma biografia não é simplesmente uma reprodução da obra do
biografado, mas uma interpretação dela que comporta uma relação direta com a vida do personagem
em foco. A lei do direito autorial garante ao artista uma quantia em dinheiro toda vez que sua obra, em
sua integridade, for explorada comercialmente. Por exemplo: Roberto Carlos tem o direito de receber
um valor determinado toda vez que a música “Esse cara sou eu” for reproduzida em uma novela ou
quando usada para um comercial de propaganda de supermercado. Isto porque a sua música foi
explorada integralmente para fins comerciais. Por outro lado, se um historiador utilizar a mesma
música para identificar alguns aspectos comportamentais da sociedade contemporânea, valendo-se da
análise e exposição da letra, elaborará um trabalho novo, portando outra carga autoral. Isto porque o
que esse historiador produzirá não será mais a reprodução pura e simples da música, mas uma
interpretação desta dentro de algumas perspectivas preestabelecidas e limitadas pelo autor. E mesmo
que parte da obra seja reproduzida em uma biografia, ela terá o objetivo de analisar, exemplificar ou
expor o conteúdo com fins históricos e/ou acadêmicos.
E quais são os prejuízos que os artigos 20 e 21 do código civil estão produzindo nos produtos
biográficos atualmente? É evidente que o direito à privacidade do indivíduo deve ser respeitado, mas
não se pode comparar livros de cunho biográfico, que levam, às vezes, três, quatro ou oito anos, por
exemplo, para serem concluídos, com conteúdos de algumas revistas e jornais que compõem a
chamada impressa marrom, que se utiliza de fatos esdrúxulos para montar um espetáculo midiático. É
preciso que haja esta distinção para que não se confunda pesquisas sérias de profissionais responsáveis
com a imprensa sensacionalista. Por outro lado, imagine-se que todas as biografias produzidas até hoje
no Brasil passaram pela leitura dos biografados (ou de seus herdeiros). Qual parte teria sido suprimida?
O que biógrafo deixou de contar para que a obra pudesse ser comercializada? O que foi maquiado ou
dito de outra forma com o propósito de beneficiar a escritura de vida do personagem em foco? Essa
peneira de fatos pode causar um efeito deturpador as informações e continuar privando o leitor do
conhecimento mais aproximado da veracidade dos acontecimentos.
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Se houvesse censura dos principais personagens dos livros Chega de Saudade e Eu não sou
cachorro, não, por exemplo, como seria a produção dessas narrativas biográficas? Em Chega de
Saudade um personagem ganha destaque durante toda a narrativa: João Gilberto; isto por que ele foi o
precursor da nova batida que deu origem ao estilo musical intitulado posteriormente como Bossa Nova.
Para ganhar distinção de outros personagens, Ruy Castro o caracteriza das mais variadas formas:
descreve sua cidade natal, sua relação com a família, seu jeito descompromissado e acomodado, seus
casamentos, sua relação com a música e com a maconha. Diferentemente dos outros personagens, a
narrativa da trajetória de vida de João Gilberto é apoiada nesses elementos acima. Notemos que, apesar
de João Gilberto ser um personagem real, o que está retratado é uma versão do biógrafo sobre sua
personalidade. Contudo, imaginemos que João Gilberto proibisse a obra por revelar fatos pessoais
como, por exemplo, sua experiência com a maconha?
Percebe-se que Ruy Castro abordou este aspecto no personagem porque João Gilberto, à época,
morava com o músico Luís Telles, e este o achava demasiadamente triste em meados de 1955. Luís
Telles logo associou o estado psicológico de João Gilberto ao constante uso que ele fazia da maconha.
À vista disso, Telles, incomodado com a situação de depressão que supostamente era causado pela
droga, sugeriu que João Gilberto fosse respirar outros ares, e o mandou para Porto Alegre. Pouco
tempo depois, o cantor seguiu destino para a casa de sua irmã mais velha, Dadainha, na cidade de
Diamantina em Minas Gerais. Nesta temporada, João Gilberto ficou recluso por dois anos e conseguiu
compor música e letra das canções Hô-ba-la-la e Bim-bom. Ao retornar para o Rio de Janeiro em
1957, João Gilberto surpreendeu a todos ao mostrar o novo ritmo que trazia consigo.
Como podemos notar, um fato privado pode ser de fundamental importância para explicar a
causa e o motivo de determinado acontecimento. Se João Gilberto desejasse suprimir suas experiências
com a maconha, como explicar, então, o motivo que o levou a sair do Rio de Janeiro e ficar recluso na
casa de sua irmã, criando, por consequência, a nova batida? E se João Gilberto não quisesse ser
mencionado no livro Chega de Saudade, como explicar o fenômeno musical que foi a Bossa Nova no
âmbito social, cultural e político no Brasil (visto que ele formulou outro tipo de ritmo musical que
influenciou toda uma gama de artistas na década de 60)? A missão parece impossível.
O mesmo se aplica ao livro Eu não sou cachorro, não. Hipoteticamente, se alguns dos
personagens não tivessem consentido com o relado de sua história de vida e/ou possíveis
interpretações, a obra poderia nunca ter sido escrita (ao menos com os propósitos do autor) e os
cantores cafonas, até então ignorados pela historiografia musical brasileira, continuariam esquecidos.
Como exemplo disso, Paulo César de Araújo explora, nesse livro, a intimidade do cantor
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Agnaldo Timóteo através da análise das canções “A galeria do amor”, “Perdido na noite” e “Eu
pecador”, que tem como tema central a homossexualidade. Em entrevista ao biógrafo, o cantor revela a
necessidade de explorar tal temática em suas músicas em uma sociedade ainda opressora em meados
dos anos 1970. Apesar das declarações, as análises das músicas revelam um pouco mais que a simples
exploração temática do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, mas, também, e muito
claramente, a possível orientação sexual de Agnaldo Timóteo.
Como podemos notar mais uma vez, para explicar um fato social (o surgimento e sucesso de
músicas com temas homoeróticas), o biógrafo explora um dado pessoal de um cantor. Por esse motivo,
Agnaldo Timóteo, baseado na atual legislação poderia ter embargado a obra ou a retirado de circulação.
Se tal episódio tivesse acontecido, a contribuição do cantor ao falar de homossexualidade em uma
época em que o tema era tabu, continuaria fora dos livros historiográficos sobre música popular
brasileira, por exemplo.
Se Agnaldo Timóteo tivesse tomado tal postura, o direito à privacidade (individual) estaria se
sobrepondo ao direito de liberdade de expressão. Ou seja, seria a proibição de um livro – que tanto
serviria aos amantes da música brasileira, mas, sobretudo, a uma sociedade (coletividade) interessada
em conhecer e entender os aspectos históricos, políticos, econômicos e sociais vividos pelos artistas
populares entre 1968 e 1978 –, por parte de uma única pessoa (individualidade) que se acha dono da
sua história, mesmo que ela possua notoriedade pública.
49
3 DA BOSSA À FOSSA – RETRATOS DA MÚSICA BRASILEIRA
Frequentemente, as biografias são associadas a história de vida de um único personagem. No
entanto, o relato de algo compõe, igualmente, um livro biográfico. Um dos motivos que justifica esta
afirmação é o fato de que o momento histórico só pode ser mais claramente compreendido quando
entendemos quais personalidades estão por trás desse novo capítulo da História. Justamente por isso se
faz necessário apreender características, tanto sociais quanto culturais, que levaram alguns indivíduos
criarem outra importante parte da historiografia brasileira. Nessas obras, percebe-se um enfoque
especial (embora parcial) na vida particular alguns personagens para justificar e explicar um fenômeno
histórico. Esses livros, portanto, oferecem sua contribuição para a história ressaltando, também, as
intimidades dos indivíduos que influenciaram, de alguma forma, a construção de novos costumes,
estilos e referências sociais, por exemplo.
Isto posto, fica evidente todos esses aspectos nas obras que relatam as histórias de dois
movimentos musicais importantes para a firmação da identidade cultural brasileira: a Bossa Nova e a
música popular cafona, presente nas obras Chega de Saudade, de Ruy Castro e Eu não sou cachorro,
não, de Paulo César de Araújo, respectivamente. Essas biografias retratam, antes de tudo, os
personagens que deram vida as novas formas estéticas e culturais instaladas no Brasil com o objetivo
de entender o surgimento de alguns ídolos que ditaram novas maneiras de viver e de se relacionar
socialmente. Nesse contexto, podemos classificá-las como biografias porque relatam histórias de vida
dos cantores que fizeram parte de um movimento maior (a música brasileira), e narram,
concomitantemente, dois momentos históricos importantes, e que só são compreensíveis quando seus
personagens são caracterizados dentro da narrativa biográfica.
3.1 Chega de Saudade: a história ou as histórias da Bossa Nova
A Bossa Nova, estilo musical responsável por revolucionar o cenário musical brasileiro no final
da década de 1950, é a principal protagonista do livro Chega de Saudade: a história ou as histórias da
Bossa Nova, escrito pelo jornalista e escritor Ruy Castro e lançado em 1990. A obra, além de contar a
história de um dos movimentos artísticos mais importantes que influenciaram a formação da identidade
nacional, biografa, por consequência, a vida de inúmeros personagens que participaram da construção
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deste estilo musical, e que tem como um dos seus precursores o músico e cantor baiano João Gilberto,
quando gravou o LP “Chega de Saudade”, em 1959.
Ruy Castro, antes de introduzir a Bossa Nova como fenômeno musical que viria mudar toda
uma tradição melódica já firmada por outros músicos, realiza um panorama dos 10 anos que
antecederam seu lançamento, na década de 50, na primeira parte do livro intitulada “O Grande Sonho”,
que acomoda 10 capítulos. A segunda parte, que recebeu o título de “O Grande Feriado”, possui 11
capítulos e relata o desenvolvimento da fase pós-Bossa e sua afirmação no âmbito nacional e,
principalmente, internacional.
Nos primeiros capítulos, Ruy Castro volta sua atenção para o cenário que viria ser o lugar de
nascimento da Bossa Nova: o Rio de Janeiro. A cidade, nos anos 50, ia muito além da efervescência
dos compositores de sambas, choros e marchinhas carnavalescas; havia, também, pessoas interessadas
em outro tipo de melodia: a música internacional. Um número incontável de adolescentes e adultos
estavam “apaixonados pelas bandas de swing, pelos crooners e pelos conjuntos vocais americanos”
(CASTRO, 1990, p. 36). O ano de 1949, quando surgiram diversos fãs-clubes para homenagear
cantores como Frank Sinatra e Dick Farney, por exemplo, marcaria não apenas a paixão desses jovens
pelo jazz americano, mas, também, a introdução de incontáveis deles nas rádios, palcos, bares e boates
do Rio de Janeiro.
Foi a partir da montagem dos fãs-clubes, especialmente o “Sinatra-Farney Fan Club”, que só
aceitavam sócios que sabiam cantar, tocar ou dançar, que muitos garotos e garotas, à época, começaram
a profissionalizar sua carreira artística. Dentre eles, podemos citar como exemplo João Donato, Johnny
Alf, Paulo Moura, Raul Mascarenhas, Doris Monteiro e Nora Ney. Para Ruy Castro, aquele momento
já era um prenúncio da Bossa Nova.
Nesta época, já existiam dezenas de conjuntos vocais brasileiros inspirados em cantores de jazz
internacional como, por exemplo, Os Namorados da Lua, Garotos da Lua e Os Cariocas. E a
eferverscência musical brasileira e estrangeira podia ser discutida entre os discos e os eletrodomésticos
vendidos nas Lojas Murray, localizada no centro do Rio de Janeiro. O local tornou-se um importante
ponto de encontro entre os jovens que faziam parte dos fãs-clubes e os rapazes que formavam os
conjuntos vocais. Ali, eles debatiam sobre as novidades recém-chegadas dos Estados Unidos e
travavam longas análises sobre as cordas vocais dos seus cantores favoritos.
Após um pequeno panorama musical em que o Brasil vivia, Ruy Castro começa a esboçar, de
maneira alternada, a biografia de diversos personagens importantes que ajudaram, de alguma forma, na
construção da nova batida musical. João Gilberto é o primeiro a ser biografado com mais riqueza de
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detalhes, e os relatos incluem tanto sua vida pessoal quanto profissional. Desta forma, em um primeiro
momento, o biógrafo conta a sua chegada no Rio de Janeiro, em 1950, perpassando por sua
participação como vocalista do conjunto vocal Garotos da Lua, seu comportamento relaxado e
descompromissado, a dificuldade em arranjar emprego após a saída do grupo e seus namoros com as
cantoras Sylvinha Telles e Mariza.
As histórias de vida de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Morais também começam a ser
relatadas na primeira parte do livro. Jobim foi por muito tempo pianista de restaurantes e boates, mas
acabou desistindo da vida noturna, por um período, para começar a trabalhar como arranjador da
gravadora Continental. Vinicius, por sua vez, já era poeta e diplomata do Itamaraty. Anos mais tarde,
Lúcio Rangel apresentou-os na Casa Villarino, bar localizado no centro do Rio de Janeiro, onde
começaram uma parceria que mudou os rumos da música brasileira. O primeiro trabalho em conjunto
foi um musical, a peça Orfeu da Conceição, estreado em 1956.
Ainda em 1956, Roberto Menescal e Carlinhos Lyra abriram uma Academia de Violão. Nara
Leão, dedicada aluna da academia, reunia professores, alunos e amigos em seu famoso apartamento em
Copacabana. Menescal levou, naquele ano de 1957, João Gilberto ao seu apartamento. Ele trazia
consigo composições como “Hô-ba-la-la” e “Bim-bom”, que possuíam uma batida diferente de tudo
que os rapazes e moças daquela época haviam escutado. As canções surgiram durante os dois anos em
que passou fora do Rio de Janeiro, entre 1955 e 1957. Neste período, João Gilberto esteve recluso em
Porto Alegre, Diamantina e Juazeiro. Foi durante o período em que esteve em Minas Gerais, na casa de
sua irmã Dadainha, que ele manteve-se isolado elaborando “aquele ritmo no violão que simplificava
toda a batida do samba” (CASTRO, 1990, p. 150).
Apesar do entusiamo com a nova melodia que saía do violão, João Gilberto só gravaria o LP
“Chega de Saudade” em 1959, com arranjos de Tom Jobim e tendo carta branca do diretor da gravadora
Odeon, Aloysio de Oliveira. Entretanto, antes do lançamento do LP, João Gilberto gravou, em 1958,
um 78 rotações com lado A e B, contendo as músicas “Chega de Saudade” e “Bim-Bom”. O Rio de
Janeiro não entrou em delírio com a nova batida e, então, os diretores levaram o disco até São Paulo.
Aos poucos, João Gilberto começou tocar nas rádios e fazer pequenas apresentações. Meses depois, de
volta ao Rio, o 78 rotações foi considerado um sucesso, já que vendeu 15 mil cópias. No ano seguinte,
o LP “Chega de Saudade” chegou a vender 35 mil cópias tão logo que colocado nas prateleiras.
As cantoras Dolores Duran, Syvinha Telles e Maysa têm destaque na narrativa por terem
emergido em uma época em que a sociedade carioca ainda era preconceituosa com mulheres que se
arriscavam na carreira artística. Para Ruy Castro, elas foram “as cantoras mais influentes da década de
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50 e suas canções dor-de-cotovelo foram as coisas mais próximas do blues brasileiro” (CASTRO,
1990, p. 105). Todas elas saíram de condições sociais completamente diferentes e suas vidas foram
repletas de escândalos, exageros e talento. Elas acabaram morrendo precocemente aos 29, 33 e 34 anos
de idade, respectivamente.
A linha do tempo conduz a inserção dos personagens na narrativa do biógrafo Ruy Castro. Ao
longo do discurso, ele insere pequenas e longas biografias de maneira alternada. A profundidade na
história de vida de cada pessoa está ligada, fundamentalmente, no grau de importância da
personalidade dentro da concepção e desenvolvimento da Bossa Nova.
Na segunda parte do livro, são narrados os primeiros passos do novo estilo musical, ou seja, sua
inserção no cenário musical brasileiro ainda em 1959, ano do lançamento do LP “Chega de Saudade”.
Uma das primeiras apresentações da turma de Nara Leão foi promovida por iniciativa dos alunos da
PUC do Rio de Janeiro e realizada no anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura, em agosto
daquele mesmo ano. A cantoria ficou por conta de Nara, Carlinhos Lyra, Normando Santos, Chico
Feitosa, Norma Bengell, Syvinha Telles, Alayde Costa, Luiz Carlos Vinha, Ronaldo Bôscoli e
apresentação de Roberto Menescal. Artistas como Dolores Duran, Vinicius de Morais, Billy Blanco e
Tom Jobim foram prestigiar a rapaziada, mas não fizeram parte do espetáculo. O LP de João Gilberto
saiu do forno em junho e aquele “1° Festival de Samba Session” parecia com o primeiro passo fora do
apartamento de Nara Leão em um movimento pró-Bossa Nova.
Enquanto a turma de Nara, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Carlinhos Lyra ia
promovendo pequenas e frequentes apresentações musicais no Rio de Janeiro, João Gilberto estava
curtindo sua carreira e fazendo show em outras cidades do Brasil.
É nesta parte do livro que Ruy Castro tem a preocupação em deixar em evidência as canções
que fizeram mais sucesso durante o frenesi inicial da Bossa Nova. Ele conta em detalhes o como e em
que situações as canções brotaram dos dedos de seus compositores. As músicas “Chega de Saudade”,
“Desafinado”, e “Samba de uma nota só”, por exemplo, são ressaltadas como clássicos da Bossa Nova.
As duas últimas foram compostas por Tom Jobim e Newton Mendonça. Eles foram amigos de infância
e pianistas nas madrugadas do Rio de Janeiro. Newton, no entanto, morreu sem prestígio em 1960,
momento em que poucos sequer sabiam da sua existência.
Além de algumas versões internacionais das músicas como “Desafinado” e “Bim-Bom”, por
exemplo, houve dois momentos que impulsionaram definitivamente a Bossa Nova para o exterior. O
primeiro deles foi em 1962, quando Tom e Vinicius lançaram a música “Garota de Ipanema” em uma
temporada de apresentações no “Au Bon Gourmet”, com a participação de João Gilberto e do conjunto
53
vocal “Os Cariocas”. Na ocasião, também foram lançadas outros clássicos como “Corcovado”, “Samba
da minha terra”, “Insensatez” e “Se todos fossem iguais a você”. Para Ruy, “a temporada de O encontro
no Bon Gourmet foi, provavelmente, o maior momento da Bossa Nova no Brasil” (CASTRO, 1990 p.
316). A canção “Garota de Ipanema” teve mais de quarenta gravações no Brasil e nos Estados Unidos
apenas nos dois primeiros anos após seu lançamento. O outro momento de expansão da Bossa Nova foi
a realização de um show no Carnegie Hall, em Nova York, em novembro do mesmo ano, com a
participação dos inúmeros músicos envolvidos com o estilo musical.
Assim como as músicas e seus compositores, Ruy Castro conta as histórias dos temas de
algumas canções como forma de firmar o novo estilo musical. Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal,
por exemplo, exploraram o amor, o mar, o sal e o sol em diversas canções compostas nos anos de 1960
e 1961, a exemplo de “O rio”, “Mar, amar”, “A morte de um Deus de Sal” e “O barquinho”. Em 1962 e
1964, foi a vez de “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius de Morais, e “Samba de verão”, de
Marcos e Paulo Sérgio Valle, respectivamente.
Foi esta exploração temática que levou Nara Leão, em 1964, virar-se contra a Bossa Nova.
Como protesto, realizou o show Opinião, juntamente com os cantores João do Vale e Zé Kéti, sob o
argumento de que estava cansada de cantar músicas com temas irrelevantes para dois ou três grupos de
burgueses. As músicas e os textos do show Opinião tinham como tema a miséria e a reforma agrária. O
espetáculo foi um sucesso e Nara lucrou com a temporada. Neste mesmo ano, o Brasil sofreu o golpe
de Estado com a implantação do regime militar, e a Bossa Nova, então, ficou visivelmente dividida
entre os cantores de “direita” e os de “esquerda”.
Entretanto, apesar da efervescência política que nascia nesta época, inclusive entre os cantores e
em suas letras musicais, Ruy Castro se limita aos fatos ligados ao movimento musical que, em 1965,
começou a ser parcialmente substituído pela sigla MPB, cujo significado que dizer Música Popular
Brasileira. As novas gerações de cantores estavam tentando fugir do excesso de jazz impregnado na
Bossa Nova. Para o biógrafo, a MPB “não tinha compromisso com o samba e queria flertar à vontade
com outros ritmos, temas e posturas” (CASTRO, 1990, p. 377). O tropicalismo e a Jovem Guarda são
apenas citados uma única vez durante a obra, apesar de serem movimentos simultâneos e de grande
força no cenário nacional.
A Bossa Nova voou para o mundo levando a maioria dos seus fundadores. Grande parte dos
músicos que formaram ativamente o novo estilo foram morar fora do pais. A música brasileira tornou-
se referência não só no Brasil, mas também em várias partes do planeta. O exterior abriu os olhos para
os cantores brasileiros a partir da decolagem da Bossa Nova como gênero musical efetivamente
54
consolidado.
Notamos que, aos longo da narrativa, Tom Jobim, Roberto Menescal, Nara Leão, João Gilberto,
Carlinhos Lyra, Elis Regina, Maysa, Silvynha Telles, Antônio Maria, Luis Bonfá, Johnny Alf, João
Donato, Vinicius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Newton Mendonça, Frank Sinatra e Baden Powell, por
exemplo, são apenas alguns dos personagens que têm sua história biografada no cenário musical
brasileiro. Os mais importantes artistas dentro do movimento possuem detalhes tanto da sua vida
profissional quanto pessoal. Com a maioria, entretanto, Ruy Castro se limita aos detalhes profissionais,
porém sempre com minúcias nas informações. A evolução da Bossa Nova é notadamente o fio condutor
para o encaixe desses músicos na narrativa do autor.
3.2 Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar
Os cantores populares brasileiros chamados de “cafonas”, suas músicas e o regime militar são
os temas principais da biografia Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar,
do jornalista e historiador Paulo César de Araújo, lançada em 2002. O livro narra não só como surgiram
e o que fizeram os cantores românticos durante o período da ditadura militar, mas também destaca sua
importância dentro do cenário musical brasileiro, visto que ainda são visivelmente excluídos da
historiografia da música popular. Notadamente, o autor faz uma crítica a toda uma gama de
pesquisadores, críticos, musicólogos e historiadores que menosprezaram a música “cafona” por julgá-la
inferior ou pobre de conteúdo quando comparada à Bossa Nova ou MPB, por exemplo. Através da
análise das músicas, o biógrafo tenta explorar tanto o lado político quanto o lado social que também
esteve presente nas canções desses artistas durante regime militar. O sucesso desses cantores chegou ao
auge entre 1968 e 1978, período em que vigorava o Ato Institucional nº 5 com sua censura prévia a
qualquer forma de expressão artístico-cultural. Seus discos apareciam nas listas dos mais vendidos e
suas músicas batiam recorde em execução nas rádios brasileiras.
Na obra repleta de conceitos e contextualização histórica, Paulo César de Araújo define a MPB
como um movimento musical que não agregava (e ainda não agrega) toda diversidade de música
brasileira. A Música Popular Brasileira, em um primeiro momento, tentava fugir do jazz impregnado na
Bossa Nova e da influência do rock americano que estava no auge em 1960, e influenciava os cantores
da Jovem Guarda no Brasil. E foi com propósito de mobilizar artistas para uma música mais brasileira
55
e autêntica que cantores como Nara Leão, Edu Lobo, Elis Regina e Geraldo Vandré, por exemplo,
comandaram uma passeata contra a influência das guitarras elétricas que já chegavam ao Brasil.
Contudo, pouco tempo depois, os baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia
criaram o movimento musical chamado “Tropicalismo”, que possuíam forte influência de jazz, blues,
rock e soul e que aderiam, inclusive, às guitarras elétricas. O público universitário e a classe média,
consumidores da MPB, passaram, então, a fazer oposição aos artistas populares que cantavam músicas
“cafonas” ou de “empregadas”, como diziam, por julgarem suas canções vulgares e, principalmente,
despolitizadas. O livro, portanto, tem o objetivo de desconstruir esta imagem da música popular tida
como “cafona”.
No que se refere à música romântica brasileira, o biógrafo divide os artistas populares em três
gerações. Na primeira, estão aos cantores da década de 1940 e 1950 que cantavam boleros, entre eles
Orlando Silva, Orlando Dias e Adilson Ramos. A segunda, corresponde a geração “cafona” que
começou com Paulo Sérgio e seus seguidores como, por exemplo, Odair José, Benito di Paula, Dom &
Ravel, Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano, Wando e Nelson Ned. Na terceira geração, a partir dos anos
1980, os cantores já eram chamados “bregas” e, dentre eles, estão Sidney Magal, Peninha e Amado
Batista. O autor utiliza-se da expressão “cafona” para mencionar os cantores românticos da segunda
geração. Esta palavra surgiu através do produtor Carlos Imperial no decorrer da década de 1970.
Entretanto, o termo está entre aspas ao longo do livro porque Paulo César de Araújo acredita que tal
expressão está impregnada de preconceitos dos quais ele não compartilha.
Antes de introduzir a história de vida dos artistas populares e de suas canções, Paulo César de
Araújo enumera três fatores em comum que ligam esses cantores durante toda a obra. Primeiro, as
músicas “cafonas” lançadas durante o período de 1968 a 1978 também denunciavam questões sociais e
políticas que estavam presente no cotidiano brasileiro como, por exemplo, autoritarismo e segregação
social. O segundo se refere ao fato de que esses artistas conseguiram atingir o auge durante a vigência
do Ato Institucional n°5, e também tiveram suas músicas censuradas ou vetadas no regime militar. O
terceiro, por sua vez, ressalta as condições sociais das quais esses cantores emergiram: todos eles
vinham das mais baixas camadas sociais e tiveram que trabalhar precocemente, inclusive na infância.
O cantor Agnaldo Timóteo, por exemplo, foi engraxate, vendedor de pastéis, lavador de
automóvel e, aos 9 anos, auxiliar de torneiro mecânico. Waldick Soriano chegou a trabalhar na lavoura
com os seus irmãos e também foi garimpeiro, faxineiro, engraxate, servente de pedreiro e camelô.
Nelson Ned, por sua vez, trabalhou em uma fábrica de chocolate. Os irmãos Dom e Ravel foram office-
boy e vendedor de picolé, respectivamente. Wando vendeu jornal, foi engraxate e, aos 13 anos, feirante.
56
Paulo Sérgio foi alfaiate dos 12 anos até o lançamento do seu primeiro LP.
Este cantor, considerando o responsável por repaginar o estilo “balada romântica”, lançou o
primeiro LP em 1968 e causou polêmica ao fazer sucesso por ter voz e estilo parecidos com os do
cantor Roberto Carlos. O “rei” da música romântica brasileira, no entanto, no mesmo ano, lançou o
disco “O inimitável”, fazendo referência a Paulo Sérgio. O LP de Roberto Carlos foi, inclusive, o mais
romântico até então e obteve reconhecimento da crítica. Aos poucos sua música foi elevada ao status de
MPB. Por outro lado, Paulo Sérgio continuou fazendo canções românticas que influenciaram toda uma
geração de artistas que surgiram durante os anos 60 e 70.
Apesar da efervescência política que pairava no ar desde 1964, os cantores populares
românticos estavam alheios a manifestações sociais e passeatas mobilizadas contra a ditadura militar.
Contudo, Paulo César de Araújo justifica essa possível alienação com base no lugar social ocupado por
esses artistas. Por esse motivo, o autor afirma que os movimentos políticos e sociais da época estavam
ligados à elite brasileira e aos setores populares organizados. Os artistas românticos, segundo ele,
estavam preocupados, na verdade, com a forma de como iriam ganhar o pão, além do que toda a
movimentação criada à época estava distante dos subúrbios onde moravam.
Mesmo assim, as canções dos cantores “cafonas” denunciavam, principalmente, o autoritarismo
vivenciado pelos segmentos populares. Era dessa maneira que elas revelavam o autoritarismo que se
expressava “através do preconceito aos pobres, aos negros, aos homossexuais, às prostitutas, às
empregadas, aos analfabetos, aos deficientes físicos e aos imigrantes nordestinos” (ARAÚJO, 2013, p.
48), por exemplo.
Paulo César de Araújo, além de analisar minuciosamente, no seu livro, as canções que
abordavam os temas elencados acima, realiza uma abrangente contextualização histórica do período da
ditadura militar que desencadeou a inspiração dos cantores “cafonas”. Além disso, o autor compara
constantemente as canções ligadas à MPB com às letras dos artistas populares. Este artifício surge
como forma de destacar, igualmente, a importância das músicas “cafonas” dentro do contexto social e
político em que o Brasil vivia. Isto porque “o repertório cafona é também marcado pelo conteúdo
político, embora nunca fosse reconhecido pelo público da MPB” (ARAÚJO, 2013, p. 241).
O biógrafo ressalta, por exemplo, que assim como o cantor Chico Buarque, Odair José – como
outros artistas “cafonas” – também teve algumas canções censuradas e até proibidas durante o regime
militar. À vista disso, temos como exemplo as canções “Vou tirar você desse lugar”, “Esta noite você
vai ser minha” e “As noites que você passou comigo”, que foram parcialmente censuradas, e o cantor
tendo que mudar suas letras para que o LP pudesse chegar as lojas. Já “Em qualquer lugar”, “A
57
primeira noite de um homem” e “Pare de tomar a pílula”, também de Odair José, as letras foram
totalmente vetadas pelos censores federais. As duas primeiras por questões morais e ao apelo sexual
presente em suas letras; a última por questões políticas, sociais e econômicas. “Pare de tomar a pílula”
foi lançada quando os militares patrocinavam uma campanha do controle de natalidade e distribuía o
DIU (Dispositivo Intra-Uterino, peça colocada na cavidade uterina que impede a gestação) e pílulas
anticoncepcionais a população brasileira. Como o governo possuía inúmeros convênios com
laboratórios multinacionais fabricantes do remédio, a censura chegou a crer que a música poderia
influenciar as milhares de brasileiras a pararem de tomar a pílula e, por isso, rapidamente a canção foi
silenciada das rádios. Odair José chegou a ser até detido por cantar a música proibida durante os seus
shows.
O mesmo aconteceu com a canção “Meu pequeno amigo”, de Fernando Mendes, que
denunciava um polêmico caso policial jamais solucionado durante a ditadura militar. Muitas canções de
Dom & Ravel também falavam de uma sociedade autoritária e do processo de concentração de terras
nas mãos dos fazendeiros. O cantor Wando, por exemplo, mobilizava o poder público para atender
reivindicações dos habitantes do morro na canção “Presidente da favela”. Há, durante toda a obra, uma
vasta análise de canções “cafonas” que foram lançadas durante o AI 5 porque, para o biógrafo, elas
também “apresentavam em seus versos alguma forma de desabafo contra a opressão e o tratamento
humano degradante” (ARAÚJO, 2013, p. 239).
Para Paulo César, as canções produzidas pelos artistas da MPB eram sempre alvo de
apontamentos, análises e censuras; “já em relação à obra de artistas populares como Luiz Ayrão, Benito
de Paula ou Wando, ocorria exatamente o contrário: negava-se as intenções críticas, por mais relevantes
que fossem. Como não nomes identificados com a MPB, não seriam capares de refletir e criticar”
(ARAÚJO, 2013, p. 127).
A obra do historiador questiona, principalmente, o silêncio que permeia os estudos críticos e
acadêmicos quando o assunto se refere à música “cafona”. Paulo César indaga, por exemplo, quais os
critérios que regem o que deve ser esquecido ou preservado na memória nacional. Enquanto os artistas
populares continuam não se encaixando na música “tradicional” – o samba e seus derivados – nem na
música “moderna” – a bossa nova ou MPB –, eles prosseguirão jogados embaixo do tapete da História.
O autor ainda classifica a produção historiográfica da música popular brasileira como autoritária e
excludente porque “aquilo que as camadas mais pobres ouviam ou admiravam não é considerado digno
de registro ou pesquisa” (ARAÚJO, 2013, p. 347). Portanto, através de uma vasta pesquisa
bibliográfica em enciclopédias, manuais e livros sobre música brasileira, o biógrafo constata que nada
58
ou pouco se diz sobre as músicas dos artistas populares.
Fica evidente, nesta sua obra, a proposta do autor em valorizar a música popular “cafona”
durante o período em que o Brasil esteve sob a vigência do AI 5. E as constantes análises das músicas
reforça, por conseguinte, a tentativa de levar a sério o conteúdo e a forma da música “cafona”, assim
como ressaltar a relevância dos seus cantores para milhares de ouvintes. A necessidade em expor a
importância dessas canções dentro do cenário musical brasileiro está na subversão ao preconceito
exercido pela elite e pela intelectualidade brasileira, que preferem estudar o que está associado ao “bom
gosto”. Afinal, o que é bom ou ruim? O resgate da memória desses artistas populares é o principal
objetivo do jornalista e historiador Paulo César de Araújo, para que uma parte importante da história da
música popular brasileira não caia no limbo do esquecimento. Sua análise, portanto, vai além das
limitações maniqueístas que tratam de questões do bem e do mal; do bom ou do ruim.
59
4 CHEGA DE SAUDADE, EU NÃO SOU CACHORRO, NÃO: APROXIMAÇÕES E
AFASTAMENTOS
Percebemos até aqui que a hibridez do gênero biográfico está, por exemplo, nas escolhas
lexicais, técnicas e de criação que cada autor opta por fazer ao escrever sobre algo ou alguém. Vimos,
também, que o campo de atuação do biógrafo também pode interferir na construção do seu discurso. É
justamente por isso que existe a tentativa de classificar qual o tipo de biografia estamos consumindo.
Isto porque existem aquelas que estão apoiadas em recursos linguísticos e literários, em que a obra
parece um romance de ficção (apesar de ser um texto referencial, baseado em fatos e acontecimentos
reais); e aquelas que são textos prioritariamente dissertativos-argumentativos, que estão visivelmente
montados a partir de documentos, estatísticas e exemplos. Esses dados ficam em constante evidência ao
longo da narrativa como uma maneira de mostrar ao leitor que se trata de um livro de não-ficção.
A partir dessas considerações, tentaremos elencar semelhanças, diferenças e especificidades nas
escritas biográficas dos jornalistas Ruy Castro e Paulo César de Araújo, autores que, apesar de atuarem
no mesmo campo de conhecimento, possuem discursos totalmente diferentes no que concerne à
narração das histórias de vida que compõem os livros Chega de saudade e Eu não sou cachorro, não,
respectivamente. Ambos, além de relatarem o desenvolvimento de dois movimentos musicais
importantes da década de 60 e 70, biografam, por consequência, os cantores que deles fizeram parte.
Dessa forma, notamos que tanto Ruy Castro, com Chega de saudade, quanto Paulo César de
Araújo, com Eu não sou cachorro, não, exercem um jornalismo não-periódico e aprofundado; fazendo
uso, concomitantemente, de funções jornalísticas que objetivam explicar, informar e orientar o leitor;
além de incorporarem, nas suas escrituras, procedimentos operacionais idênticos ao dever jornalistico
como, por exemplo, a coleta de informações, entrevistas, apuração dos fatos etc. Ruy Castro deixa
claro na introdução da obra, que ela é um livro “que se pretende o mais factual e objetivo possível”.
Ambas as obras, justamente por desempenharem a tarefa de orientar o público sobre os acontecimentos
com ampla contextualização histórica, podem ser classificadas como livros-reportagem.
Edvaldo Pereira Lima (1995), por exemplo, enumera três características essenciais para
identificar e diferenciar os livros-reportagem de outros tipos de publicações. A primeira delas se refere
ao conteúdo, em que a veracidade e a verossimilhança são aspectos fundamentais que devem estar
presente no livro. Isto porque os fatos narrados são reais, e o texto possui referencial embasador no
qual o autor se apoia para desenvolver o discurso. Assim, percebemos que os dois livros apresentados
possuem esta característica, por contar a história de dois movimentos musicais brasileiros que
60
marcaram época nos anos 60 e 70 no Brasil, sendo, assim, obras de não-ficção.
A segunda característica, no entanto, reporta ao tratamento linguístico e a edição do texto
presente no livro-reportagem. Igualmente, notamos que Chega de Saudade e Eu não sou cachorro, não
são obras que possuem uma linguagem concisa, clara, acessível e, de certa forma, coloquial; com o
intuito de que elas cheguem as mais diversas camadas sociais. As ilustrações, fotografias e gráficos, por
exemplo, também fazem parte de um jornalismo aprofundado, e estão presentes, da mesma forma, nos
livros em questão.
Por último, como já vimos anteriormente no tópico 1, a função primordial do livro-reportagem é
preencher as lacunas deixadas pela superficialidade da notícia, da reportagem e da grande-reportagem,
oferecendo amplitude aos acontecimentos. Dessa maneira, a terceira característica que identifica a
modalidade são os aprofundamentos horizontais (quando há uma abordagem extensiva em termos de
detalhes quantitativos, oferecendo dados, números, informações ao leitor) e os verticais (quando se
procura a causa dos acontecimentos de forma intensiva; narrando seus desdobramentos, impactos,
implicações e resultados futuros, como objetiva o livro Eu não sou cachorro, não, que teve a intenção
de colocar em evidência os porquês que envolvem o silenciamento dos cantores “cafonas” dentro da
historiografia musical brasileira. Isso ocorre com também em Chega de Saudade, porém de forma mais
sutil, já que tem finalidade pura e simples de contar a história da Bossa Nova).
Outro ponto em comum remete à identificação dos autores com o tema que abordam. Ruy
Castro expõe, na introdução e nos agradecimentos da obra que, por ter crescido escutando a Bossa
Nova desde que ela ganhou este nome e por ter convivido com alguns personagens do livro, “uma certa
dose de paixão acabou se intrometendo na receita.” Paulo César de Araújo, da mesma forma, afirma
que cresceu ouvindo cantores como Waldick Soriano, Odair José e Nelson Ned. Foi, por essas razões,
que ele resolveu se aprofundar no tema, o que implicou em outras reflexões maiores do que o puro
relato das histórias de vida dos artistas “cafonas”. Este aspecto, aliás, está ligado à empatia que os
biógrafos têm sobre o objeto de sua biografia, e sua relação com ele, como explorado no tópico 2 deste
trabalho. A questão pode nos levar a refletir que os anseios e as “paixões” que um tem sobre o outro
podem pesar no desenvolvimento do relato dos acontecimentos e de seus personagens.
Lima (1995) ainda subdivide o livro-reportagem em diferentes grupos. Iremos, assim, utilizar o
conceito de livro-reportagem-perfil (estudado no tópico 1) para ambos os livros estudados. Isto por que
eles evidenciam no discurso o lado humano dos personagens através do relato das histórias de vida dos
cantores e artistas que formaram a Bossa Nova e a música popular cafona. Especificamente,
classificaremos Chega de Saudade como uma biografia pertencente ao Jornalismo Literário, por esta
61
possuir alguns preceitos ligados à modalidade, como veremos mais à frente. No caso da obra Eu não
sou cachorro, não, abordaremos como uma biografia clássica ou acadêmica pela escassez de recursos
literários e sua narrativa ser predominantemente um texto dissertativo-argumentativo; e, também, como
um livro-reportagem-ensaio, por ela possuir, em sua narrativa, a presença marcante do autor e de suas
opiniões acerca do tema, algo como uma tentativa de convencer o leitor a compartilhar do mesmo
ponto de vista por ele divulgado.
4.1 A literariedade na obra Chega de Saudade
Para entendermos a marcante literariedade presente na biografia Chega de Saudade: a história
ou as histórias da Bossa Nova, escrita por Ruy Castro, precisamos compreender, na prática, algumas
ferramentas estilísticas utilizadas pelos jornalistas literários após a fusão do jornalismo com a literatura.
Como iremos mostrar, a narrativa que conduz a obra possui, predominantemente, as mesmas
características que regem as narrativas do chamado Jornalismo Literário. Ou seja, primeiramente, o
livro, além de abranger contextualmente o tema principal (característica básica do livro-reportagem: o
aprofundamento dos fatos) – que é a criação, desenvolvimento e firmação da Bossa Nova na década de
60 na cidade do Rio de Janeiro, utiliza recursos advindos da literatura tais como a caracterização física
e psicológica dos personagens e o uso intenso de recursos literários e linguísticos, a exemplo de
eufemismos, hipérboles, comparações etc. Ruy Castro também se apoia, com frequência, nas
ferramentas de que se beneficiam os Novos-jornalistas, que são: a construção cena a cena, o uso de
diálogos e a reconstrução detalhada dos ambientes.
Vale ressaltar que esses recursos são típicos das narrativas ficcionais. Embora os jornalistas
literários tenham conseguido aplicar tais ferramentas na criação do romance de não-ficção (livro-
reportagem). Como decorrência disso, houve um aumento na qualidade estética da biografia, a
elevando, na maioria das vezes, ao status de “obra de arte”. Em vista disso, vamos expor a seguir todos
esses aspectos elencados acima com trechos do livro que os exemplifiquem, tendo como objetivo
firmar a biografia Chega de Saudade como obra pertencente ao Jornalismo Literário.
62
4.1.1 A caracterização dos personagens
No livro Chega de Saudade dois personagens aparecem com maior frequência ao longo da
narrativa: João Gilberto (criador da batida original da Bossa Nova) e Tom Jobim (responsável por
firmar o novo estilo musical no cenário internacional). O teórico Yves Reuter (2007, p. 43) acredita que
a distinção e a hierarquização de alguns personagens dentro de uma história contribuem, na tradição do
romance literário ficcional, “para a clareza do texto e de sua leitura”. Para isso, o autor cita algumas
categorias5 criadas por Phillippe Hamon, que tem o propósito de diferenciar estes personagens dentro
da narrativa. Para fins deste trabalho, iremos trabalhar com duas categorias que diferenciam João
Gilberto e Tom Jobim na obra de Ruy Castro: a qualificação diferencial e a funcionalidade diferencial,
explicitadas a seguir.
1. A qualificação diferencial remete à quantidade de qualidades atribuídas a um personagem,
como, por exemplo, seus traços, condições físicas, atitudes comportamentais etc. Geralmente,
essas características são apreendidas nas relações sociais do personagem, ou seja, sua
articulação cultural e familiar, por exemplo. Tal diferenciação leva ao reconhecimento do herói
(isto porque ele possui qualidades que não existem em nenhum outro personagem dentro da
narrativa). Podemos notar que este aspecto está presente na construção de um único
personagem ao longo da narrativa: João Gilberto. Primeiro, Ruy Castro descreve sua relação
com a família (principalmente com seu pai, seu Juveniano):
Não admira que seu Juveniano tenha posto todas as suas fichas na educação dos filhos,
que não eram poucos: ele já tinha Walter, do primeiro casamento, e, com d. Patu,
vieram, em escadinha, Dadainha, Vavá, Joãozinho, Dedé, Vivinha e o caçula Jovininho.
Educar aquela filharada era uma tarefa cara e difícil. Em Juazeiro, nos anos 40, a
instrução parava no curso primário e, do ginásio para a frente, o destino dos garotos era
Salvador ou, mais próxima, Aracaju. Mas seu Juveniano foi um vitorioso porque, de um
jeito ou de outro, pôs um diploma na mão de cada filho. Exceto na de um, e justo aquele
que todos diziam ser o mais inteligente. Naturalmente, Joãozinho. (CASTRO, 1990, p.
23).
5 Na classificação proposta por Phillippe Hamon (1972 apud REUTER, 2007, p. 42 e 43), seis categorias compõem a
distinção e hierarquização dos personagens dentro de um texto ficcional: qualificação diferencial, funcionalidade
diferencial, distribuição diferencial, autonomia diferencial, pré-disignação convencional e comentário explícito.
63
Em seguida o autor expõe a relação de João Gilberto com sua cidade natal, Juazeiro, na Bahia.
O trecho inicia com a observação de que lugar estava ficando pequeno para acomodar o futuro herói da
Bossa Nova que ali se desenvolvia:
Juazeiro estava ficando pequena demais para Joãozinho. Aos dezoito anos, que acabara
de completar em junho de 1949, sentia-se preparado para voar longe com sua voz. […]
Nas últimas rodas de violão sob o tamarineiro, assim que decidiu ir embora de Juazeiro,
Joãozinho fazia um ar gaiato, abria os braços e, antecipando o que o esperava em
Salvador, anunciava para os amigos: “Champanhe, mulheres e música, aqui vou eu!” E
foi. (CASTRO, 1990, p. 28).
Posteriormente, o autor predestina João Gilberto como o notável precursor e idealizador do
novo ritmo musical brasileiro, ainda em Juazeiro:
Este, desde as calças curtas, quando voava em sua bicicleta pelas ruas estilo faroeste de
Juazeiro, já havia decidido preferir o caminho mais difícil: ia tornar-se João Gilberto.
(CASTRO, 1990, p. 23).
2. Por outro lado, a funcionalidade diferencial diz respeito não mais ao ser do personagem, como
na primeira característica citada acima, mas sim ao fazer do indivíduo: seu papel e sua função
dentro da narrativa. Como podemos observar, é o que acontece com a caracterização de Tom
Jobim no livro, em que seus atributos profissionais estão acima de sua personalidade. Dessa
forma, Ruy Castro descreve com maior intensidade a excelência de Jobim na vida profissional,
já que ele foi um dos responsáveis por firmar a Bossa Nova no exterior. Aqui, o autor narra, por
exemplo, o começo da sua carreira quando era apenas mais um pianista de boates, na cidade do
Rio de Janeiro:
Tom havia investido o creme da sua juventude debruçado sobre Villa-Lobos, Debussy,
Ravel, Chopin, Bach, Beethoven e Custódio Mesquita. E, além disso, já estava ficando
farto de encarar o bife com ovo do bar Far-West, no Posto 6, onde via diariamente o sol
nascer, depois que saía do trabalho na boate. (CASTRO, 1990, p. 92).
A narrativa estende-se até a conquista da vitória, ou seja, seu alcance a nível nacional e
internacional como pianista, compositor e músico da Bossa Nova:
Jobim tornou-se um nome caseiro e querido em escala planetária. Passa o ano
64
recebendo homenagens e títulos honoríficos em cidades que vão de Tóquio a São Paulo,
mas só há pouco tornou-se uma unanimidade em seu próprio país. (CASTRO, 1990, p.
419).
É fácil perceber que a qualificação diferencial e a funcionalidade diferencial são recursos
tipicamente usados nas narrativas ficcionais para ajudar na fruição da leitura. Isto porque a
hierarquização e a distinção de alguns personagens dentro da narrativa oferecem mais clareza à história
contada. Entretanto, tais ferramentas podem ser implantadas nas narrativas de não-ficção, como no
caso da biografia Chega de Saudade, possibilitando, assim, uma leitura parcialmente focalizada em
alguns poucos personagens (geralmente personalidades essenciais dentro do contexto histórico, como é
o caso de João Gilberto e Tom Jobim, que são devidamente realçados dentro da narrativa biográfica de
Ruy Castro) e, logo, mais facilmente compreendida.
Esse modo narrativo também proporciona qualidade estética à narrativa, sem deixar de lado, no
entanto, a veracidade dos fatos – elemento importante por se tratar de uma obra de não-ficção. Este
recurso consegue oferecer, para quem lê, o mesmo dinamismo proposto para as obras ficcionais
romanceadas.
4.1.2 As escolhas estilísticas
Por muito tempo, a arte de escrever bem esteve ligada ao bom emprego de figuras de
linguagens na construção do estilo dos autores em seus textos. Nas palavras de Reuter (2007, p. 110):
“O aprendizado das figuras era fundamental, e o “escrever bem” consistia largamente em saber utilizar
o repertório das figuras já consagradas.” Esta tradição romanesca ainda persiste para o enriquecimento
estilístico e retórico, também, nos textos de não-ficção. Em Chega de Saudade, Ruy Castro utiliza, com
maior frequência, três tipos de figuras de linguagens para a ornamentação do texto: o eufemismo, a
comparação e a hipérbole.
1. O eufemismo consiste em substituir termos e expressões por outras palavras mais suaves e
brandas, como nos trechos a seguir (grifo nosso):
TRECHO I:
Raimundo foi esperado na esquina por um pelotão de PM com esprit de corps, os quais,
entre outras coisas, massagearam-lhe as gengivas com o cabo das carabinas.
65
(CASTRO, 1990, p. 20).
TRECHO II:
Em compensação, ganharia um enorme problema: o gaúcho Luís Telles achou que o
espeto passara do ponto e mantou que ele procurasse outro lugar. Enfim, o pôs na rua.
(CASTRO, 1990, p. 162 e 163).
2. A comparação é uma figura de linguagem usada para substitui um coisa pela outra, pois está
baseada na semelhança de dois objetos/sentimentos, que tem traços e/ou funções comuns (grifo nosso):
TRECHO I:
Tanto o Sinatra- Farney quanto o Dick Haymes-Lúcio Alves Fan Club já tinham
encerrado suas operações há quatro anos, mas era como se os fã de Dick e Lúcio não
soubessem disto. A rivalidade continuava, num clima de Fla-Flu. (CASTRO, 1990, p.
99).
TRECHO II:
Paiva deu conta do recado, mas a impressão que se tem hoje é a de que, com seu estilo
tradicional, ele se sentia tão à vontade naquelas canções quanto um peixinho dourado
num tapete persa. (CASTRO 1990, p. 158).
3. A hipérbole, por sua vez, é o exagero intencional a qual o autor utiliza para oferecer mais
expressividade à informação, como grifado no trecho abaixo (grifo nosso):
Mas algo lhe despertou uma centelha porque, de repente, ele passou a tocar violão dia e
noite, encerrado no quarto, como se tomado por uma obsessão. No princípio, nada que
tocava fazia muito sentido: o mesmo acorde era repetido um zilhão de vezes, em
duplicatas quase perfeitas, exceto quando ele lhes acrescentava a sua voz. (CASTRO,
1990, p. 147).
O uso das figuras de linguagens é uma das ferramentas estilísticas mais predominantes dentro
da obra Chega de Saudade. O biógrafo utiliza-se de termos e expressões que ora oferecem humor, ora
ironia às determinadas situações vividas pelos personagens que compõem a narrativa biográfica. Neste
caso, o recorrente uso estético da linguagem tem claro objetivo de romancear, também, o texto de não-
ficção.
E é através desses recursos literários (figuras de pensamento, de palavras e de som) que o
biógrafo consegue envolver o leitor ao contar os acontecimentos com uma atrativa narração dos fatos.
Tal ferramenta também se limitou, por muito tempo, aos romances ficcionais. No entanto, muitos
66
jornalistas literários puderam firmar seu estilo através do constante uso de figuras de linguagens ao
longo do discurso, como é o caso de Ruy Castro.
4.1.3 A Construção da Cena
Esta ferramenta estilística, muito utilizada pelos adeptos do Novo Jornalismo (subgênero do
Jornalismo Literário), torna possível o narrador oferecer mais realismo aos acontecimentos. Ela
consiste em um relato detalhado dos fatos, fazendo com o que o leitor sinta-se assistindo uma cena de
projeção cinematográfica. Lima (1995, p. 158) denomina de “cena presentificada da ação”, onde
“presentificar significa apresentar a vida em desenvolvimento para o leitor.”
Este recurso textual está constantemente presente na narração de Chega de Saudade. Um
exemplo disso está no trecho da cena em que Billy Blanco se inspirou para compor a música “Sinfonia
do Rio de Janeiro”, em parceria com Tom Jobim:
O ônibus fez a curva na av. Princesa Isabel e, quando tomou a av. Atlântica, a montanha,
o sol e o mar de Copacabana se abriram de repente à sua frente, em cinemascope. Como
se Billy não passasse por ali há anos, todos os dias, o espetáculo que viu pela janela
caiu-lhe como uma revelação divina e uma frase musical, com letra e tudo, iluminou-lhe
a testa:
"Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a montanha, o sol, o mar."
Billy entrou em êxtase e, em seguida, em pânico. Era um achado bom demais para se
perder, e ele temia que, até chegar em casa, tivesse esquecido o que acabara de compor.
Ficou repetindo mentalmente:
"Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a montanha, o sol, o mar."
Não aguentou mais e, no meio do caminho, deu sinal para descer. O lotação parou e ele
saiu correndo em busca de um telefone. Não existiam orelhões em 1954 e, quando se
queria telefonar da rua, era preciso apelar para um botequim. Entrou no primeiro que
encontrou, na rua República do Peru, e disse ao português do caixa que se tratava de
uma emergência. (E, de certa forma, era mesmo.) O português acedeu de má vontade e
Billy ligou para Tom Jobim:
"Tom, escute isto: 'Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a
montanha, o sol, o mar'."
Mas as ligações ainda eram mais precárias do que hoje e o botequim estava apinhado
com os habituais vadios de bermudas e chinelos, discutindo futebol. E
havia ainda o inferno do trânsito. Billy teve de repetir várias vezes a frase musical, aos
67
gritos, no que todos os olhos e ouvidos voltaram-se para ele como flechas:
"'Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a montanha, o sol, o mar.'
Tom, escreve isto antes que eu esqueça! Estou indo praí!"
E assim, sem muita poesia, nasceram os primeiros compassos da belíssima "Sinfonia do
Rio de Janeiro", de Antonio Carlos Jobim e Billy Blanco. (CASTRO, 1990, p. 97 e 98,
grifo do autor).
O modo narrativo presente no trecho acima corresponde ao mostrar, também chamado de
mimese. Nela, “a narração é menos aparente, para dar ao leitor a impressão de que a história se
desenrola, sem distância, diante dos olhos, como se ele estivesse no teatro ou no cinema. Constrói-se,
assim, a ilusão de uma presença imediata” (REUTER, 2007, p. 60).
Geralmente, esse modo narrativo está presente nas cenas consideradas mais importantes para o
Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, para que o leitor consiga visualizar o acontecimento como
possivelmente se realizou. Outra característica da mimese é a reprodução dos diálogos junto com
excesso de detalhes no desenrolar da cena. Vale ressaltar que no modo narrativo mostrar, as cenas se
diferem dos sumários. Neste outro modo narrativo (sumário), a reconstrução da cena tende ao resumo e
não consegue produzir tanta visualização dos acontecimentos.
4.1.4 Os Diálogos
Assim como a construção cena a cena, os diálogos ganharam força na construção narrativa dos
Novos jornalistas. Este recurso textual, segundo Tom Wolfe6, envolve muito mais o leitor quando
comparado a qualquer outra ferramenta estilística. Isto porque ele observou que “os redatores de
revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa de erro algo que os estudos
acadêmicos demonstraram: que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer
outro instrumento. Também situa e define o personagem mais rapidamente do que qualquer outro
recurso” (apud LIMA, 1995, p. 150).
Ruy Castro explora constantemente este recurso ao longo da sua narrativa. No trecho que segue
abaixo, o diálogo conta como e porque de Vinicius de Morais não era muito bem quisto na cidade de
São Paulo por longo tempo:
6 Tom Wolfe escreveu, em 1973, um manifesto sobre o Novo Jornalismo, em que reuniu as principais características do
novo gênero jornalístico (ver tópico 1 sobre o tema).
68
Vinicius tinha ido a São Paulo resolver uns negócios e entrara no Cave para fazer hora
antes de voltar — de táxi — para o Rio. A boate estava vazia, exceto por uma mesa,
cujos integrantes o reconheceram e o convocaram em altos brados. "Eram uns grã-finos,
já meio no óleo", contou depois Vinicius. Sentou-se com eles e, como falavam alto, não
ouvia bem a música do conjunto que tocava. De súbito, Vinícius distinguiu o piano de
Johnny Alf em meio à barulheira. Levantou-se e foi bater um papo com ele. Aquilo
irritou o grupo. Quando voltou, um dos grã-finos censurou-o:
"Que mau gosto, trocar a nossa companhia por um sujeito que não toca coisa com coisa,
desafina tudo e com todas as harmonias erradas."
Vinícius o encarou:
"Um sujeito que usa essa sua cara e esse seu bigode não tem o direito de piar sobre
música. Johnny Alf é um grande compositor e você é que não tem ouvido para entender
as harmonias que ele faz."
Paulo Cotrim, relações-públicas do Cave, ouviu a discussão e veio correndo. Mas
Vinícius já tinha voltado ao piano e estava dizendo a Johnny Alf:
"Meu irmãozinho, pegue a sua malinha e se mande para o Rio de Janeiro, porque São
Paulo é o túmulo do samba." (CASTRO, 1990, p. 227).
O uso do diálogo implica em uma narrativa mais dinâmica e atrativa, conduzindo o leitor ao
mergulho total na cena descrita, como podemos notar no trecho acima. Tal recurso foi bastante
criticado por colocar em xeque a ética dos jornalistas literários ao tentar reproduzir de forma fiel (ou
seria fantasiosa?) os diálogos expostos ao longo do discurso jornalístico-literário. Os Novos-jornalistas,
no entanto, argumentaram que era possível reconstruir integralmente as falas a partir da observação
participante.
4.1.5 Reconstituição do ambiente
A reconstituição detalhada do ambiente é, segundo Vilas Boas (2002, p. 88), a ferramenta mais
utilizada pelos biógrafos adeptos do Jornalismo Literário e objetiva “reconstruir cenários,
gesticulações, hábitos, maneiras, mobiliário, vestuário, decorações, estilos de viajar, comer, arrumar a
casa; modo de educar as crianças, tratar os empregados, os superiores; sem esquecer, claro,
observações, poses, modo de caminhar e outros detalhes simbólicos que a cena e a época possam
conter.” Tal recurso também é frequentemente utilizado por Ruy Castro em Chega de Saudade.
O primeiro trecho, a seguir, descreve com riqueza de detalhes o primeiro fã-clube do Rio de
69
Janeiro criado pelas adolescentes Joca, Didi e Teresa, em um sobrado na casa onde moravam no bairro
da Tijuca, para homenagear os cantores Frank Sinatra e Dick Farney. O segundo trecho, por sua vez,
descreve o bar Villarino, onde Tom Jobim e Vinicius de Morais se conheceram em 1956.
TRECHO I:
Elas promoveram um mutirão com seus amigos do bairro e deixaram o porão estalando
de novo: enceraram o chão de tábua corrida com Parquetina; forraram o teto com uma
lona listrada de verde e branco; improvisaram um minibar com uma velha geladeira
Norge, a ser abastecida com estoques de Crush, Guará e Coca-Cola; e — o mais
importante — empapelaram as paredes com capas de discos, recortes de Life e O
Cruzeiro, fotos e tudo o mais que se referisse aos seus cantores favoritos, Frank Sinatra
e Dick Farney. (Mais tarde, a decoração seria enriquecida com uma ampliação de 1,5m
x 1m, mostrando os dois ídolos — juntos!). Perto da entrada, Joca, Didi e Teresa
emolduraram as partituras de "Night and day", de Cole Porter, e "Copacabana", de João
de Barro e Alberto Ribeiro, cortadas ao meio, formando um retângulo. (CASTRO, 1990,
p. 32).
TRECHO II:
O Villarino era (aliás, é, porque ainda existe) o de que você quisesse chamá-lo. Visto de
fora, era uma mercearia, que oferecia uvas argentinas, sardinhas do Báltico e um
oceânico estoque de bebidas importadas. Nos fundos, convertia-se numa charmosa
uisqueria, com um ligeiro clima de speakeasy. As paredes eram decoradas por desenhos
(a pincel, batom, giz e o que houvesse à mão) de artistas amigos da casa, como Pancetti,
Carlos Leão e Augusto Bandeira. Havia meia dúzia de mesas e os uísques da moda,
Haig's e Black Label, eram servidos por Jorge, o garçom, segundo o "gabarito fosfórico"
criado pelos fregueses: doses da altura de uma caixa de fósforos Beija-flor, de pé, na
vertical. (CASTRO, 1990, p.116 e 117).
O propósito principal da reconstituição do ambiente em Chega de Saudade é descrever, com
riqueza de detalhes, lugares e localidades que proporcionaram encontros importantes entre os diversos
personagens que deram vida à Bossa Nova. O recurso surge como uma maneira de resgatar, na
memória, importantes ambientes históricos que proporcionaram momentos relevantes dentro do
movimento cultural que surgia.
No primeiro trecho, por exemplo, Ruy Castro descreve o primeiro fã-clube do Rio de Janeiro. O
lugar reunia jovens que se tornaram grandes nomes do novo estilo musical como, por exemplo, João
Donato e Johnny Alf. Dessa forma, o biógrafo consegue informar para um grande público um local até
então pouco lembrado, dando, assim, sua devida importância, já que, ali, segundo Ruy Castro, foi um
70
prenúncio da Bossa Nova. O mesmo acontece com o segundo trecho: o bar Villarino ainda existe e
continua sendo um importante ponto turístico para os amantes da Bossa Nova.
4.2 Os argumentos do livro Eu não sou cachorro, não
Paulo César de Araújo, assim como Ruy Castro, objetiva em Eu não sou cachorro, não explorar
um importante movimento musical brasileiro: a música popular “cafona” que marcou os anos de
chumbo no Brasil. Entretanto, ao contrário da narrativa romanceada que é sustentada em Chega de
Saudade, Paulo César constrói um discurso dissertativo-argumentativo com o propósito de mostrar aos
leitores os motivos que levaram os cantores mais escutados do Brasil durante o período do regime
militar serem, atualmente, excluídos da historiografia musical brasileira. A carga argumentativa
presente obra pode ser explicada pelo fato do livro ser fruto de um trabalho acadêmico. A obra é uma
versão ampliada da dissertação de mestrado do autor, e apresentada ao Programa de Pós-Graduação e
Memória Social e Documento da Universidade do Rio de Janeiro. Este fato influenciou a estrutura
acadêmica na qual o livro se prende. Eu não sou cachorro, não é, também, uma crítica à elite, a
historiografia e a intelectualidade que ignorou por décadas a música romântica por taxá-la de alienada e
pouco politizada. Paulo César constrói seu discurso através do relato do estilo de vida dos cantores
“cafonas” e da análise das letras das músicas que embalaram milhares de ouvintes no Brasil.
A partir do conceito de Vilas Boas (2002), que diz que o objetivo macro da narrativa biográfica
é gerar conhecimento sobre o passado de alguém ou de alguma coisa, é que classificaremos Eu não sou
cachorro, não como um livro-reportagem-biografia, porque ele relata a vida dos artistas populares
durante o regime militar, assim como fruir do movimento musical “cafona”. Ainda podemos considerá-
lo como livro-reportagem-ensaio, visto que existe “a presença muito evidenciada do autor e de suas
opiniões sobre o tema, conduzida de tal forma a convencer o leitor a compartilhar do ponto de vista do
autor” (LIMA, 1995, p. 49). Um exemplo disso é o que o próprio autor afirma no livro: “Esta análise é
de fundamental importância porque o espaço da memória constitui permanente campo de batalha, e o
ato de esquecer pode ser resultado de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados,
ou de vencedores frente a vencidos” (ARAÚJO, 2013, p. 23).
A escritura de Eu não sou cachorro, não mantem, como já explicitado anteriormente, a mesma
tradição narrativa que envolvem as biografias clássicas ou acadêmicas. Elas são predominantemente
textos dissertativos que têm a finalidade de defender um ponto de vista sobre determinado fato ou
71
acontecimento. À vista disso, Paulo César de Araújo utiliza-se de quatros recursos argumentativos para
defender sua opinião acerca do tema: exemplos referenciais, dados estatísticos, analogias e as citações
de fontes. Recorrendo ao mesmo método empregado na análise do livro Chega de Saudade,
exemplificamos, com base no texto de Paulo César, as quatro características acima elencadas.
4.2.1 Exemplos referenciais
Os exemplos servem, primordialmente, para comprovar, esclarecer ou justificar os argumentos
propostos em um texto dissertativo-argumentativo. Basicamente, o exemplo tenta comprovar a teoria
apresentada. E esta é a primeira grande finalidade de Paulo César de Araújo, ao mostrar para os leitores
que, ao contrário do que se pensa, os cantores populares também tiveram suas músicas parcialmente
censuradas ou totalmente proibidas de circulação nas rádios durante a ditadura militar.
Para mostrar que as músicas “cafonas” também incomodavam os censores, Paulo César de
Araújo observa, por exemplo, que por causa da palavra “açoite” a canção “Animais irracionais”, da
dupla Dom & Ravel, foi totalmente proibida de tocar nas rádios. Isto porque o açoite e o porrete eram
formas de amedrontar a sociedade civil desde o começo do século e, inclusive, muito utilizada durante
o regime militar.
E o verso "um grande açoitando um pequeno" traz uma imagem que marca a história
brasileira desde o período colonial, avança pelo Império e chega até o período
republicano, quando os marinheiros liderados por João Cândido, o "Almirante Negro",
em 1910 se rebelaram contra os castigos corporais na Marinha de Guerra, no episódio
conhecido como A Revolta da Chibata. Um dos remanescentes daquela época, o ex-
marinheiro Adolfo Ferreira dos Santos, o Ferreirinha, chegou a afirmar numa entrevista
ao Jornal do Brasil que as chicotadas e lambadas que recebeu nas costas domaram seu
gênio e fizeram com que ele compreendesse o que significa ser cidadão brasileiro.
Marca indelével da nossa sociedade, o açoite ou a existência de "um grande açoitando
um pequeno" levou o historiador José Murilo de Carvalho a encontrar aí a prática
brasileira de formação do cidadão. Tomando como base o depoimento de Ferreirinha,
José Murilo definiu que, ao contrário do que ocorreu em outras nações do mundo
ocidental, a cidadania no Brasil foi implantada a porrete. E esta seria, segundo o autor, a
contribuição original brasileira à teoria e à prática da moderna cidadania. E José Murilo
acentua que “Ferreirinha virou cidadão, em suas palavras, no marmelo, na lambada, na
chibata. Outros entraram no pau, no sarrafo, no cacete, no porrete, no bordão, na
72
manguara, na vara, no cipó. Ou na borduna, a contribuição indígena à nossa pólis. Isto
no ciclo do pau-brasil. No ciclo do boi as alternativas ampliaram-se. O candidato a
cidadão tinha então à sua disposição o couro, o bacalhau, o chicote, o relho, o açoite, o
laço. As técnicas continuaram a diversificar-se. Hoje é o pau-de-arara, o choque elétrico,
o “telefone”, o afogamento, o fuzilamento simulado.” Portanto, a canção de Dom e
Ravel aponta para uma das características definidoras da sociedade brasileira: o uso
frequente do açoite e do porrete. E foi exatamente isto o que mais incomodou as
autoridades militares na época, levando-as a proibir a execução da música em todo o
território nacional. (ARAÚJO, 2013, p. 86 e 87).
Como se sabe, a censura por muito tempo esteve associada apenas aos músicos politizados
ligados à esquerda. A intenção de Paulo César de Araújo foi de, justamente, desconstruir esse
pensamento. E, para isso, como visto acima, o biógrafo expõe e analisa as canções que não passaram
pela aprovação dos censores federais porque denunciavam o autoritarismo e a segregação social
vividos por estes artistas entre 1968 e 1978.
4.2.2 Dados estatísticos
Outro recurso que baseia um texto argumentativo é a exposição de dados estatísticos
disponíveis em órgãos oficiais para comprovar alguma opinião sobre determinado fato. No caso do
livro Eu não sou cachorro, não, estes números servem de suporte para Paulo César de Araújo
comprovar, por exemplo, que no maior período de repressão social houve a consolidação da cultura de
massa e a consequente expansão fonográfica no Brasil. O biógrafo tem como fonte a Associação
Brasileira de Produtos de Discos:
Entre 1970 e 1976, a indústria do disco cresceu em faturamento, no Brasil, 1.375%. Na
mesma época, a venda de LPs e compactos passou de 25 milhões de unidades por ano
para 66 milhões de unidades. O consumo de toca-discos, entre 1967 e 1980, aumentou
em 813%. Favorecido pela conjuntura econômica em transformação, o Brasil alcançou
o quinto lugar no mercado mundial de discos. Nunca tantos brasileiros tinham gravado e
ouvido tantas canções. A música popular firmava assim como o grande canal de
expressão de uma ampla camada da população brasileira que, neste sentido, não ficou
calada, se pronunciou através de sambas, boleros e, principalmente, baladas. (ARAÚJO,
2013, p. 19)
73
Essa ferramenta argumentativa, no texto de Paulo César de Araújo, além de tentar comprovar,
com números, que a repressão social vivida pelos brasileiros levou a consequente expansão da cultura
de massa, informa, com precisão, os dados emitidos por um órgão oficial. Dessa forma, o biógrafo
tanto contextualiza a informação, fazendo um aprofundamento horizontal (quando há detalhes
quantitativos: dados e números, por exemplo) e um aprofundamento vertical (quando se procura a
causa dos acontecimentos de forma intensiva; narrando seus desdobramentos e impactos, ou seja, no
caso em questão, o porquê do crescimento fonográfico no Brasil entre 1970 e 1976).
4.2.3 Analogias
As analogias ou comparações também são recursos muito utilizados em discursos dissertativo-
argumentativos para que o autor apoie sua defesa sobre um determinado ponto de vista. No livro em
questão, Paulo César de Araújo faz uso recorrente dessa ferramenta. Ele compara as letras produzidas
pelos cantores ligados à MPB – ora sua temática central, ora seus recursos linguísticos para burlar a
censura –, com as canções dos artistas cafonas.
Um exemplo claro desse artifício utilizado é a linguagem de fresta, empregada por cantores
como Chico Buarque e Caetano Veloso. Este recurso foi largamente empregado por estes cantores para
“malandramente” driblar a censura. A partir desse conceito, veementemente associado aos cantores de
esquerda, Paulo César aponta que as canções românticas igualmente enganaram os censores ao aplicar
a linguagem de fresta em suas letras.
Uma obra que contribuiu para propagar esta visão foi “Músíca popular: de olho na
fresta”, do ensaísta Gilberto Vasconcelos. Publicado em 1977, o livro reúne um
conjunto de textos que procura acentuar o papel de resistência desempenhado naquele
momento por diversos nomes da MPB que, dentro da tradição brasileira da
malandragem, representariam, segundo o autor, os "malandros" dos novos tempos.
Baseando-se nos versos do samba “Festa Imodesta”, composição de Caetano Veloso que
tematiza a problemática da censura - "Tudo aquilo que o malandro pronuncia / que o
otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela fresta da cesta" - ,
Vasconcelos defendia como inevitável naquela conjuntura o recurso da linguagem da
fresta: aquela de que se vale o compositor popular para malandramente driblar a censura
imposta pelo regime. […] O recurso da linguagem da fresta - aquela de que
malandramente se valeram artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha para burlar o
cerco da censura - também foi utilizado naquela época pelo cantor e compositor Uday
74
Vellozo, o sambista cigano que ficaria mais conhecido com o nome artístico de Benito
di Paula. Autor de ”Retalhos de cetim”, “Charlie Brown” e vários outros sucessos
populares, este ícone do chamado sambão-jóia também teve a sua carreira musical
marcada por atos da repressão política e, como veremos, não apenas da ditadura militar
do Brasil. […] Odair José aprendeu [...] e cercou-se de cuidados na letra da canção “O
crime da Barra”, que fala de um corpo de mulher jogado na estrada (de quem seria?) e
de festas com jogo de cartas (quem as promovia?) nos embalos de sábado à noite, no
Rio. Com as estrofes numa linguagem da fresta, versos nas entrelinhas, no refrão o
compositor ainda se esquiva: "Eu não vou citar exemplo / só pra não me envolver / mas
pelo que eu já falei / acho que deu para entender..." (ARAÚJO, 1990, p. 103).
Como podemos notar, através destas comparações, o autor tenta mostrar que, além dos músicos
politizados de esquerda (a MPB, os cantores de protesto e o tropicalismo, por exemplo), os artistas
populares também utilizavam artifícios linguísticos para enganar a censura; bem como exploravam
temáticas que incomodavam os censores federais.
4.2.4 Referências às fontes na narrativa
Outro aspecto que rompe com a narrativa romanceada é a forte citação das referências/fontes
reveladas ao longo da narrativa. Paulo César de Araújo faz questão de mostrar quais foram os meios de
comunicação e/ou livros dos quais foram tiradas as informações apresentadas ao leitor. Tais referências
estão ora situadas no discurso ora localizadas em notas de rodapé.
No primeiro trecho, Paulo César cita como fontes o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo, por
exemplo. Já no segundo, ele destaca as informações coletadas na revista Veja:
TRECHO I:
Segundo relato do Jornal do Brasil, "cerca de 50 mil pessoas se colocaram ao longo das
ruas de Jundiaí para receber o presidente Garrastazu Médici" e todo o trajeto por onde
ele passou naquela manhã estava enfeitado com "faixas e cartazes e, ao longo das
calçadas, milhares de pessoas, inclusive estudantes uniformizados, agitavam bandeiras e
lançavam papéis picados". O jornal Folha de S. Paulo também descreve que
"praticamente toda a cidade foi decorada com as cores da bandeira nacional e todas as
residências ostentavam nas janelas e sacadas retratos do Presidente". (ARAÚJO, 2013,
p. 275).
TRECHO II:
75
E entre estas manifestações públicas, destaca-se a entrevista que eles concederam à
revista Veja em fevereiro de 1971. Naquele momento firmando-se como um importante
veículo formador de opinião, Veja apresentava em primeira mão ao público letrado do
país os responsáveis pela marcha Eu te amo meu Brasil, o grande sucesso daquela
temporada. Com o título de "Os fabricantes felizes da alegre vitória", aquela foi a
primeira reportagem com Dom & Ravel num veículo de circulação nacional. E hoje os
próprios artistas reconhecem que as suas declarações à revista contribuíram para formar
a imagem de mercenários e oportunistas que eles iriam carregar a partir daí.(ARAÚJO,
2013, p. 277).
Notamos que este recurso é clara tentativa de legitimar o argumento por ele sustentado. Essa
ferramenta é frequentemente usada em trabalhos acadêmicos, por exemplo. Ao todo, Eu não sou
cachorro, não possui 654 notas de rodapé, que estão apoiadas em entrevistas de jornais, revistas,
rádios, livros teóricos e arquivos de instituições.
76
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os subgêneros que permeiam o Jornalismo Literário, a biografia tornou-se, como vimos
nesse trabalho, uma das modalidades mais consumidas nas últimas décadas. O sucesso biográfico foi
associado, por diversas vezes, ao ingresso dos jornalistas no setor, pois esses profissionais começaram
a narrar histórias de vidas com mais dinamismo, utilizando a práxis jornalística juntamente com a
estética literária. Assim, as biografias escritas pelos jornalistas literários distanciaram-se de um texto
dissertativo-argumentativo ou expositivo, como ainda mantém a tradição das biografias clássicas ou
acadêmicas. Elas ganharam linguagens e estéticas semelhantes a um romance de ficção – embora sem
perder a veracidade dos fatos –, e conquistaram de vez o público leitor.
Como visto ao longo desse trabalho de conclusão de curso, a hibridez do discurso biográfico
dificulta sua classificação definitiva em um único campo de conhecimento. Isto porque os profissionais
que ingressaram nesta modalidade de textos fazem usos metodológicos idênticos, a exemplo dos
jornalistas e historiadores, mas diferem na maneira de narrar os fatos colhidos no decorrer da pesquisa
sobre o(s) biografado(s). Entretanto, é possível classificar algumas biografias a partir da verificação de
algumas características comuns ligadas ao Jornalismo Literário ou ao modo historiográfico de construir
narrativas biográficas.
Dessa forma, notamos que Chega de Saudade: a história ou as histórias da Bossa Nova, de Ruy
Castro, possui características suficientes para classificá-la como uma obra pertencente ao Jornalismo
Literário. Ou seja, há a marcante literariedade na construção dos personagens, nas descrições das cenas
e o constante uso de diálogos, sendo, então, pontos fortes para categorizá-la como uma biografia
jornalístico-literária. Já o livro Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar, de
Paulo César de Araújo, tem uma narrativa fortemente dissertativa-argumentativa, apoiada em exemplos
referências, dados estatísticos e comparações, sem nenhum recurso estético-linguístico. Assim,
podemos afirmar que essa biografia ainda segue a tradição clássica ou acadêmica no seu modo de
narrar vidas.
Foi um pouco para entender e explicar a hibridez biográfica, ao menos na análise comparativa
das duas obas, que verificamos que existem pelo menos dois tipos de escrita de vidas: as que obedecem
aos moldes acadêmicos, muitas vezes realizadas por historiadores, e as que são escritas através das
ferramentas de que se beneficiam os jornalístas literários.
Contudo, nenhuma dessas biografias analisadas poderiam existir caso seus biografados
entrassem na justiça para que elas fossem retiradas de circulação. A recente polêmica das biografias
77
(ver item 4.3) inclui diversos direitos e temas intrínsecos ao fazer biográfico. O primeiro deles é o
direito à liberdade de expressão em oposição ao direito à privacidade. A questão é a seguinte: o
biografado tem ou não o direito de impedir que sua vida seja exposta através de um livro? Até o
presente momento, os artigos 20 e 21 do Código Civil brasileiro de 2002 dizem que sim.
De outra parte, conforme, como relatamos, um trabalho biográfico sério leva, muitas vezes,
anos para chegar até as livrarias. O biógrafo tem um dever árduo de realizar uma vasta pesquisa, fazer
centenas de entrevistas, coletar informações e analisar dados, por exemplo. Esse tipo de profissional
não deve ser confundido com escritores ou jornalistas sensacionalistas que se aproveitam de
determinado fato privado para montar o circo midiático (vale ressaltar que esse tipo de profissional é
minoria no ramo biográfico). Portanto, é indevido que as biografias ainda hoje no Brasil precisem de
autorização prévia dos biografados ou de seus herdeiros para que sua história, notável, seja lida pela
sociedade. O biografado, ao se tornar dono da sua própria história, poderá camuflar ou suavizar dados e
informações preciosas para uma sociedade.
É importante lembrar que a biografia é, antes de tudo, um produto social, que resgata a memória
de personagens singulares que ajudaram a formar uma determinada nação. Logo, a exposição das
identidades servirão, também, para o conhecimento de épocas, costumes, aspectos sociais, econômicos
e políticos, por exemplo. A biografia, através das informações contidas em suas páginas, nos oferece
explicações e conhecimentos dos acontecimentos históricos e fenômenos sociais das mais diversas
vertentes para a compreensão de diferentes épocas e em distintas sociedades.
78
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