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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE COMUNICAÇÃO TURISMO E ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL JORNALISMO JACYARA DE SOUZA ARAÚJO VIDAS DE PAPEL: O GÊNERO BIOGRAFIA NA PONTE ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA JOÃO PESSOA 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO TURISMO E ARTES

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

JACYARA DE SOUZA ARAÚJO

VIDAS DE PAPEL: O GÊNERO BIOGRAFIA NA PONTE

ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA

JOÃO PESSOA

2014

JACYARA DE SOUZA ARAÚJO

VIDAS DE PAPEL: O GÊNERO BIOGRAFIA NA PONTE

ENTRE O JORNALISMO E A LITERATURA

Monografia apresentada ao Curso de

Comunicação Social, do Centro de

Comunicação, Turismo e Artes da

Universidade Federal da Paraíba – UFPB,

em cumprimento às exigências da

disciplina de Trabalho de Conclusão de

Curso – TCC, como requisito para

obtenção do grau de Bacharel em

Comunicação Social, com habilitação em

Jornalismo.

Orientador: Prof. Dr. Edônio Alves

Nascimento.

JOÃO PESSOA

2014

Em vez de biologia,

biografia.

(JAMES HILMAN).

Estou pensando no mistério das letras

de músicas, tão frágeis quando escritas,

tão forte quando cantadas.

(AUGUSTO DE CAMPOS).

AGRADECIMENTOS

A Lourdes, mãe divina que me concedeu a vida terrena. Ao meu irmão Maycon, pela graça e

humor herdados do nosso pai amado Joselito. A Marinete, minha segunda mãe que me desperta os

sentimentos mais honestos. Aos amigos, pela companhia nas horas amenas. A todos que contribuíram,

de alguma forma, para minha formação como jornalista. Gratidão.

RESUMO

O fenômeno biográfico no mercado editorial colocou a biografia como um dos gêneros de não-ficção

mais difundidos no mundo. Por esse motivo, tornou-se necessário entender as transformações e as

adaptações que este gênero vem sofrendo ao longo dos anos. Com o sucesso de vendas dessa

modalidade de escrita, houve um aumento considerável no fazer biográfico entre os profissionais dos

mais diversos campos de conhecimento. Dentre eles, duas áreas se destacaram nas construções das

narrativas biográficas: a jornalística e a historiográfica. Dessa forma, este trabalho tenta entender a

hibridez do gênero através da análise comparativa entre as obras: Chega de Saudade: a história e as

histórias da Bossa Nova, de Ruy Castro, e Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura

militar, de Paulo César de Araújo, que possuem diferenças no discurso ao recontar a história de dois

movimentos musicais importantes no Brasil: a Bossa Nova e a música popular “cafona”. Assim,

caracterizaremos dois tipos de biografia: uma como obra pertencente ao Jornalismo Literário, por

utilizar de recursos estéticos e linguísticos advindos da fusão entre jornalismo e literatura; e a outra

como clássica ou acadêmica, por possuir um texto predominantemente dissertativo-argumentativo.

Palavras-chaves: Jornalismo, Biografia, Literatura.

ABSTRACT

The biographical phenomenon in publishing the biography placed as one of the genres of non-fiction

most widespread in the world. Therefore, it became necessary to understand the transformations and

adaptations that this genre has been suffering over the years. With the successful sales of this type of

writing, there was a considerable increase in the biographical making among professionals from

different fields of knowledge. Among them, two areas stood out in the construction of biographical

narratives: the journalistic and historiographical. Thus, this paper attempts to understand the hybridity

of the genre through a comparative analysis between the works: Chega de Saudade: a história ou as

histórias da Bossa Nova, by Ruy Castro, and Eu não Sou Cachorro não: música popular cafona e

ditadura militar, by Paulo César de Araújo, who have differences in speech to retell the story of two

important musical movements in Brazil: Bossa Nova and "tacky" popular music. Thus characterize two

types of biography: as a work belonging to literary journalism, for use of aesthetic and linguistic

resources arising from the merger between journalism and literature, and the other as classical or

academic, for possessing a predominantly dissertative-argumentative text.

Keywords: Journalism, Biography, Literature.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 7

1 O JORNALISMO LITERÁRIO ............................................................................................................. 9

1.1 Jornalismo e Literatura: encontros e desencontros ......................................................................... 9

1.2 Jornalismo Literário: diálogos possíveis ....................................................................................... 14

1.3 O Livro-reportagem: caindo no real .............................................................................................. 18

1.4 O livro-reportagem-perfil e o perfil de quem se fala..................................................................... 21

2 A BIOGRAFIA COMO TÓPICO DO JORNALISMO LITERÁRIO .................................................. 25

2.2 Conceitos e características da biografia ........................................................................................ 25

2.2 As narrativas historiográficas e jornalísticas no discurso biográfico ............................................ 37

2.3 O público versus o privado: a polêmica das biografias ................................................................ 41

3 DA BOSSA À FOSSA – RETRATOS DA MÚSICA BRASILEIRA ................................................... 49

3.1 Chega de Saudade: a história ou as histórias da Bossa Nova ........................................................ 49

3.2 Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar............................................ 54

4 CHEGA DE SAUDADE, EU NÃO SOU CACHORRO, NÃO: APROXIMAÇÕES E

AFASTAMENTOS .................................................................................................................................. 59

4.1 A literariedade na obra Chega de Saudade .................................................................................... 61

4.1.1 A caracterização dos personagens ........................................................................................ 62

4.1.2 As escolhas estilísticas ........................................................................................................... 64

4.1.3 A Construção da Cena ........................................................................................................... 66

4.1.4 Os Diálogos ........................................................................................................................... 67

4.1.5 Reconstituição do ambiente ................................................................................................... 68

4.2 Os argumentos do livro Eu não sou cachorro, não ........................................................................ 70

4.2.1 Exemplos referenciais ............................................................................................................ 71

4.2.2 Dados estatísticos .................................................................................................................. 72

4.2.3 Analogias ............................................................................................................................... 73

4.2.4 Referências às fontes na narrativa ........................................................................................ 74

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 76

6 REFÊRENCIAS .................................................................................................................................... 78

6.1 Referências impressas ................................................................................................................... 78

6.2 Referências online ......................................................................................................................... 79

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INTRODUÇÃO

O Jornalismo Literário surgiu a partir da fusão de dois campos de conhecimento distintos: o

jornalístico e o literário. Este novo gênero de textualidade conseguiu englobar técnicas jornalísticas e

parte da estilística literária, em um único texto, na tentativa de superar a superficialidade das notícias

vinculadas nos jornais. Através dessa prática, abriu-se um extensivo leque de modalidades de escrita

que passaram a usar essas duas linguagens na produção de textos de não-ficção com a qualidade da

práxis jornalística e a essência estética Literária. O resultado dessa mistura acabou desenvolvendo

outros subgêneros dentro do Jornalismo Literário, tais como o Novo Jornalismo, o livro-reportagem, a

crônica, o perfil, o romance-reportagem, a ficção-jornalística e a biografia, por exemplo.

No entanto, a biografia não surgiu após a criação do Jornalismo Literário. Pelo contrário, ela é

um gênero antigo que vem transformando e aperfeiçoando, ao longo do tempo, a maneira de contar a

vida de algo ou de alguém. As técnicas do Jornalismo Literário aplicadas a biografia, por exemplo,

conseguiram mudar a forma de escrever vidas, repaginando, assim, o gênero. Um exemplo claro disso é

que, no Brasil, os jornalistas possuem uma grande parcela de suas autorias, e suas obras chegaram a

ocupar o ranking das mais vendidas na modalidade de livro de não-ficção. Isto porque eles produziram

uma nova forma de escrever e deram outra fluidez ao texto, distanciando-se dos moldes acadêmicos e

científicos. Além disso, os jornalistas biógrafos que aderiram ao Jornalismo Literário puderam

construir narrativas que não cabem num lead e que se fundem aos elementos das narrativas literárias,

produzindo um livro esteticamente agradável, de fácil leitura e de notável abrangência histórica.

Embora o sucesso editorial, no Brasil, esteja assinalado, em grande parte, por jornalistas,

notamos rapidamente que elas, as biografias, não estão limitadas àqueles profissionais. Historiadores,

romancistas, psicólogos e filósofos, por exemplo, estão aptos a escrevê-las. Assim, percebemos que

tanto um historiador, ao se arriscar em escrever sobre a vida de alguém, usará ferramentas e

metodologias do Jornalismo e da Literatura, quanto um antropólogo, ao pretender o mesmo, fará o uso

de ambos os campos de conhecimento para a construção da narrativa biográfica.

Com o objetivo de entender a hibridez do discurso biográfico e suas confluências com outros

campos de conhecimento, analisamos, comparativamente, obras de dois jornalistas que, apesar de

possuírem a mesma formação acadêmica, diferem ao construirem narrativas que contam as histórias de

dois movimentos musicais que marcaram época no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Neste contexto,

classificamos Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova, de Ruy Castro, como

exemplo de biografia pertencente ao Jornalismo Literário, e Eu não sou cachorro não: música popular

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cafona e ditadura militar, de Paulo César de Araújo, como uma biografia clássica ou acadêmica, por

possuir um texto dissertativo-argumentativo.

Para demonstrar isso, concebemos este trabalho divido em quatro capítulos. O primeiro capítulo

refere-se ao surgimento e firmação do Jornalismo Literário e de seus subgêneros como, por exemplo, o

Novo Jornalismo, o livro-reportagem, o romance-reportagem, a ficção-jornalística e o perfil

jornalístico. Já o segundo capítulo conceitua e caracteriza as particularidades da biografia como tópico

do Jornalismo Literário. Nesta parte, também mostra-se como se portam as narrativas historiográficas e

jornalísticas dentro de uma narrativa biográfica, além de abordamos a recente polêmica das biografias

não-autorizadas no Brasil e suas possíveis implicações na atualidade e prováveis desdobramentos no

futuro para o ramo biográfico brasileiro. Fizemos isso, claro, ligando os fatos contemporâneos aos

textos dos autores analisados. No terceiro capítulo, para situar o leitor, são realizadas as apresentações

das obras Chega de Saudade, de Ruy Castro, e Eu não sou cachorro, não, de Paulo César de Araújo.

Na última parte, relacionamos semelhanças, diferenças e especificidades que cada uma das biografias

possui dentro de seus respectivos campos de conhecimento: o jornalístico-literário e o historiográfico.

Dessa forma, tentou-se elucidar quais foram as metodologias utilizadas pelos jornalistas

biógrafos ao abordar um mesmo tema e quais as convergências e divergências no uso dos recursos

estéticos e/ou linguísticos utilizados pelos autores nas obras analisadas. Relacionamos, assim, os

encontros e desencontros das diferentes metodologias aplicadas pelos biógrafos para escrever sobre a

música brasileira.

O presente estudo se fundamenta, basicamente, em pesquisas bibliográficas teóricas sobre

Jornalismo, Literatura, Jornalismo Literário e Biografia produzidos no Brasil. A respeito dos

pressupostos metodológicos utilizados neste trabalho, foram empregados alguns recursos da Análise

Comparativa, para elencar aspectos divergentes e convergentes tanto metodológicos quanto textuais

utilizados na escrita biográfica dos jornalistas biógrafos nas obras escolhidas como corpus desse

estudo. Isto porque, de acordo com o Schneider e Schmitt (1998, p. 49), é por meio do “raciocínio

comparativo que podemos descobrir regularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir

modelos e tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e

explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais.”

A análise comparativa que fizemos, portanto, objetiva mostrar as transformações que a biografia

vem sofrendo ao longo dos anos, bem como classificá-las em modalidades de escritas (jornalístico-

literária e historiográfica) que ora divergem, ora se encontram.

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1 O JORNALISMO LITERÁRIO

1.1 Jornalismo e Literatura: encontros e desencontros

Ao tentarmos analisar a estética biográfica e a sua interação com outros campos de

conhecimento temos que, primeiramente, fazer uma panorâmica dos acontecimentos que precederam

suas relações. Isto porque o encontro do jornalismo com a literatura deu vida e forma a diversos

gêneros de escritura pública. Houve um momento na História em que os dois discursos se fundiram

para só depois seguirem caminhos distintos; muito embora alguns gêneros mantenham ainda hoje uma

tênue linha que liga esses dois campos. Justamente por isso algumas reflexões ainda permanecem

válidas, por exemplo: em que época a escrita literária estava ligada a escrita jornalística? Onde surgiu a

literatura de folhetim e quais foram suas características? Quando e por que esses dois campos se

separaram? O que passou a diferenciá-los? Como a literatura pode influenciar o jornalismo (e vice-

versa)?

De acordo com Felipe Pena (2011), a forte influência da literatura na imprensa ocorreu nas

redações dos jornais a partir do século XVIII e seguiu até o século XIX. Para o autor, as relações se

tornaram mais próximas no chamado “Primeiro Jornalismo”, período entre os anos de 1789 e 1830, em

que os periódicos eram comandados por escritores, políticos e intelectuais, geralmente marcados por

conteúdos literários e políticos, com textos de cunho crítico. Ainda segundo o estudioso, no “Segundo

Jornalismo”, período que vai de 1830 a 1900, a presença da literatura na imprensa ainda é muito

marcante. Contudo, é nessa época que os jornais massificam suas vendas e os profissionais começam a

fazer uso das técnicas norte-americanas nesse tipo de escritura, como a criação das reportagens,

manchetes e a utilização da publicidade.

Foi no chamado “Primeiro Jornalismo” que os escritores passaram a adotar um novo estilo

discursivo que colocavam as técnicas das narrativas literárias nos jornais diários, com o surgimento do

folhetim. Inicialmente, o folhetim não era composto pelas narrativas de romance. O novo gênero surgiu

na França nas primeiras décadas do século XIX e servia para ocupar o lugar vazio destinado ao

entretenimento nas folhas informativas. Marlyse Meyer (1996) afirma que tal espaço, criado com sua

configuração específica, dava lugar as mais diversas temáticas e formas:

Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele

se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se propõem charadas, se oferecem

receitas de cozinha ou de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças,

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os livros recém-saídos – o esboço do Caderno B, em suma. E, numa época em que a

ficção está na crista da onda, é o espaço onde se pode treinar a narrativa, onde se

aceitam mestres e noviços do gênero, histórias curtas ou menos curtas e adota-se a moda

inglesa de publicações em série se houver mais textos e menos colunas. (MEYER,

1996, p.57 e 58, grifo do autor).

Somente durante os anos de 1830 e 1840, entretanto, é que o espaço mostrou-se um lugar de

liberdade e criação da escrita informativa. E ainda mais: os proprietários dos jornais viram a

oportunidade dele possibilitar lucro financeiro. Logo, o folhetim passou alimentar a lógica de mercado,

principalmente na França e Grã-Bretanha. De acordo com Meyer (2011, p. 59) foi nesta época que

houve um boom lítero-jornalístico e a ficção foi jogada “em fatias no jornal diário, no espaço

consagrado ao folhetim vale-tudo.”

Nascia, então, o folhetim-romance, com sua fórmula implacável: entretenimento ficcional de

linguagem fácil e em série. Com sua estrutura estética, o folhetim conseguiu atingir um grande número

de leitores e, consequentemente, causou um aumento considerável na venda dos jornais. Haviam

características interessantes adotadas pelo gênero para atrair e manter os leitores. Um bom exemplo

disso era o plot, ou seja, quando a história é interrompida antes de chegar ao ápice, para manter o

suspense e despertar expectativas nos leitores, causando, evidentemente, uma maior procura pelos

periódicos no dia seguinte.

A gradativa inserção do gênero folhetinesco no cotidiano tomou proporções significativas para

imaginário brasileiro, por exemplo. Podemos afirmar que a literatura ajudou criar a nossa identidade a

partir do momento que ditava costumes e mostrava aspectos sociais e culturais, estimulando a leitura

em um país pouco alfabetizado.

No Brasil, portanto, a literatura de folhetim propiciou que muitos escritores brasileiros se

firmassem e fossem construindo aos poucos a nossa Literatura Brasileira. No século XIX, escritores

como Machado de Assis (Gazeta de Notícias e Correio Mercantil), José de Alencar (Diário do Rio de

Janeiro) publicaram folhetins em forma de romance em fascículo. Grandes desses escritores do século

XX passaram pelos jornais da época, a exemplo de Raul Pompeia, Aloísio Azevedo, Euclides da Cunha

e Manuel Antônio de Almeida.

Para Pena (2011), apesar das críticas à sua estrutura popularesca, o folhetim democratizou a

cultura, possibilitando o acesso do grande público à Literatura, o que multiplicou o número de obras

publicadas.

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O casamento entre a imprensa e escritores era perfeito. Os jornais precisavam vender e

os autores queriam ser lidos. Só que os livros eram muito caros e não podiam ser

adquiridos pelo público assalariado. A solução seria óbvia: publicar romances em

capítulos na imprensa diária. Entretanto, esses romances deveriam apresentar

características especiais para seduzir o leitor. Não bastava escrever muito bem ou contar

uma história com maestria. Era preciso cativar o leitor e fazê-lo comprar o jornal do dia

seguinte. E, para isso, seria necessário inventar um novo gênero literário: o folhetim.

(PENA, 2011, p. 32).

Joaquim Manoel de Macedo foi o primeiro escritor brasileiro a ficar popularmente conhecido

após publicar, em 1844, o primeiro romance-folhetim da história da brasileira: A Moreninha. A obra é

considerada o primeiro romance da literatura nacional. O autor conseguiu traduzir para o romance

aspectos econômicos e sociais do país ao aliar, no texto, técnicas narrativas inovadoras e de tom

notadamente documental. Atualmente, a obra pode parecer simples, porém Joaquim Manoel Macedo

conseguiu influenciar toda uma geração de escritores brasileiros que deram vida à Literatura Brasileira.

Na metade do século XIX, mais precisamente a partir da década de 1950, o Brasil se

modernizou e os jornais começaram a adotar as técnicas padronizadas norte-americanas. O escritor, que

anteriormente ocupava lugar no jornal, passou a ser substituído pela figura do repórter, cujo dever era

dar clareza, concisão e imparcialidade as notícias. Substituiu-se, assim, pouco a pouco, nos espaços dos

jornais, as narrativas ditas subjetivas dos escritores-jornalistas. Os periódicos voltavam a sua atenção

para os casos factuais com abordagens simples, direta e objetiva. A literatura, que até então tinha um

espaço privilegiado dentro dos jornais, tornou-se suplemento literário. Ao longo dos anos, o próprio

suplemento passou a ocupar menos espaços nos periódicos, dando mais destaque a produtos culturais

como, por exemplo, livros e músicas, que estavam dispostos a atender a lógica de mercado.

Dessa forma, os cadernos literários surgiram para suprir, essencialmente, as necessidades do

mercado. Para Pena (2011, p. 40), o próprio nome suplemento significa algo que pode ser acrescentado

(ou não), adicionado (ou não) aos jornais; ou seja, não é algo imprescindível aos periódicos e que têm

na “venda o seu objetivo primordial.” Por esta razão, os produtos e artistas a eles vinculados irão ter

um valor financeiro para a empresa jornalística: se não têm “audiência”, não têm valor mercadológico;

logo, não seriam publicáveis.

Nesse contexto, o jornalismo começou a criar o seu próprio mundo, com regras e formas

próprias. Inevitavelmente, os folhetins foram substituídos por outros gêneros, a exemplo do colunismo,

das reportagens, entrevistas e notícias, por exemplo. Os escritores tiveram que se moldar as novas

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regras, como explica Nelson Werneck Sodré (1983):

Tais alterações são introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre: a tendência ao

declínio do folhetim, substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela reportagem; a

tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação […]. Aos homens de

letras, a imprensa impõe, agora, que escrevam menos colaborações assinadas sobre

assuntos de interesse restrito do que o esforço para se colocaram em condições de

redigir objetivamente reportagens, entrevistas, notícias. (SODRÉ, 1983, p. 296 e 297).

Para Danton Jobim (1992), o que vai diferenciar o jornalista do escritor é o estilo e a linguagem.

Este trabalha em sua obra com o objetivo de torná-la densa e artisticamente trabalhada, ou seja, com

qualidade estética; enquanto aquele priva o leitor da contextualidade histórica e suprime os artifícios

literários com o objetivo de informar:

O estilo jornalístico, bem como sua linguagem, não se apuram tão bem como o do

escritor. Falta em regra a densidade dos verdadeiros estilos literários, que se obtém pela

paciência e pela obstinação em perseguir a forma perfeita, artisticamente trabalhada:

para o público a linguagem não é um simples meio de comunicação com o público

contemporâneo, mas um meio de expressão artística, válido para a posteridade.

(JOBIM, 1992, p. 42).

Ao colocarmos essas considerações nos dias atuais, com o intuito de compreendê-las melhor,

podemos afirmar que ainda são coerentes, principalmente em meios de comunicação como portais de

notícias eletrônicos que priorizam o factual em detrimento às matérias e reportagens mais aprofundadas

e contextualizadas.

Uma outra característica que difere um campo do outro é que o jornalismo está apoiado na

realidade, fardo este que não é obrigatório à literatura. Não podemos encaixar, por exemplo, um conto

fantástico ao jornalismo propriamente dito. Já a literatura e seus escritores podem criar uma poesia ou

fazer um livro a partir de uma notícia publicada no jornal. Esses aspectos são o que diferenciam os

gêneros de ficção-jornalística do romance-reportagem, por exemplo. No primeiro, o narrador usa os

fatos verídicos para construir seu relato, complementando a história por acontecimentos inventados

pelo próprio autor. Já o segundo mantém a fidelidade do acontecimento, sem acrescentar nada além da

veracidade dos fatos, fazendo, apenas, uso dos recursos literários e linguísticos.

Como veremos no próximo item, o Jornalismo Literário surge a partir da inquietação dos

jornalistas a essa estrutura fechada que veda o diálogo mais aberto com o leitor. As grandes

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reportagens, nesse sentido, abriram os caminhos de fuga do objetivismo impregnado nos manuais de

redação1. Jobim (1992, p. 51) reitera que, sem dúvidas, os manuais de estilo “tendem a tornar difícil

que o trabalho jornalístico se converta em literário.”

O estudioso afirma que o jornalismo em si não é literatura, mas que, eventualmente, a

reportagem, o editorial e a crônica poderiam ser bons exemplos de “boas letras”. Estes gêneros estão na

tênue linha que englobam os dois discursos. Porém, se considerarmos que estas escritas jornalísticas

possuem as características necessárias para afirmamos que são modelos de textos literários, quais os

impactos que um discurso tem sobre o outro?

Podemos afirmar que a liberdade de criação textual está sendo estimulada, principalmente nos

meios de comunicação impressa, para atrair o leitor, uma vez que a internet e seus portais oferecem ao

navegante uma vasta opção de notícias objetivas e pouco contextualizadas. Neste sentido, a partir do

momento que o jornalista usa técnicas literárias para fugir do objetivismo, ele está influenciado pela

literatura. O resultado disso, por exemplo, poderá ser um livro mais abrangente sobre tema específico.

Já o escritor literário que procura recortes de jornais e revistas para a criação contextualizada de sua

obra poderá se influenciar pela narrativa jornalística e seus métodos de apuração. Os gêneros se

confundem, portanto, por terem como ponto comum e irrefutável a escrita, como explica Jobim:

Ambos os estilos se confundem; seria impossível traçar com nitidez a linha de

demarcação entre jornalismo e literatura. Esta linha tênue e hesitante marcará, sem

dúvida, a diferença de ângulo em que se colocam o repórter e o romancista, o

editorialista e o ensaísta – um voltado para as exigências imediatas e transitórias, outro

debruçado sobre temas universais e permanentes que nascem da natureza do homem e

do mistério da vida. (JOBIM, 1992, p. 53).

Vale salientar que o estudioso defende, nas suas conjecturas sobre o tema, o jornalismo

moderno brasileiro. Por isso sua obra considera indispensável a objetividade, a concisão e a

imparcialidade jornalística, por exemplo, como prática necessária do repórter no exercício da sua

profissão. Neste sentido, para Jobim, todo jornalista que utiliza-se dos manuais de redação colhem bons

frutos em sua profissão, por seguir padrões que a empresa jornalística considera importante no que diz

respeito a levar ao leitor a versão mais fiel e imparcial dos fatos. O autor afirma, ainda, que os

1 Os manuais de redação surgiram com o propósito de estabelecer regras de escrita que vão de acordo com as ideologias

dos donos dos jornais, por exemplo. Para Jobim (1992, p. 51), “cada redação possui o compêndio de regras para bem

escrever, na opinião do diretor do jornal. Com esse código se deve conformar todos os que desejam ver publicada

alguma coisa sua nas colunas da folha.”

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profissionais do jornalismo que se envolvem com artifícios literários são escritores que não se

realizaram. Logo, ainda segundo Jobim, um bom repórter interessa-se pelo acontecimento e, ao narrá-

lo, não se deixa dominar por ele, fazendo-se crer na imparcialidade da escritura jornalistica. Esses

argumentos são totalmente contrários aos que serão discutidos ao longo deste trabalho. Mesmo assim,

destacamos aqui os pontos que diferenciam o jornalismo da literatura, tópicos bem explicados em sua

obra.

1.2 Jornalismo Literário: diálogos possíveis

“O Jornalismo Literário é caracterizado como uma modalidade de prática da

reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de

observação e redação originários da (ou inspirados pela) Literatura. Traços

básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados

e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização.”

Felipe Pena

Ao misturarmos Jornalismo e Literatura é certo que estamos construindo um novo tipo de

escritura, ou seja, um novo discurso. Foi a junção dessas duas linguagens que fez emergir o Jornalismo

Literário. Para Felipe Pena (2011), o jornalista literário, ao escrever, fará uma apuração mais rigorosa e

uma abordagem mais aprofundada, exercendo a cidadania – preocupando-se com a formação do

cidadão, indo além da lógica mercadológica da notícia como produto à venda – e a ética, ao usar fontes

oficiais e não oficiais. Ainda segundo o autor, o Jornalismo Literário vai ultrapassar os limites do

acontecimento cotidiano, isto é, realizará um rompimento com algumas características básicas do

Jornalismo contemporâneo: a periodicidade, a atualidade, as grades do lead e da pirâmide invertida,

aprofundando-se em técnicas narrativas que darão uma visão mais ampla da realidade sobre fato

específico.

A preocupação do Jornalismo Literário, então, é contextualizar a informação da forma

mais abrangente possível – o que seria muito mais difícil no exíguo espaço de um

jornal. Para isso, é preciso mastigar as informações, relacioná-las com outros fatos,

compará-los com diferentes abordagens e, novamente, localizá-las em um espaço

temporal de longa duração. (PENA, 2011, p. 14).

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Nesse sentido, o autor expõe que o jornalista literário deve superar a superficialidade das

notícias sufocadas pelo tempo e pelo espaço. Esses são alguns dos objetivos de quem recorre ao

Jornalismo Literário. Porém, é importante observar que, apesar do jornalista fugir dos modos

apressados do jornalismo cotidiano e ingressar no novo gênero, ele continuará utilizando quase tudo o

que aprendeu na academia e nas redações de jornais. Por isso, o jornalista literário deverá estar mais

atento a algumas regras básicas do jornalismo tradicional: apuração, observação e clareza, por

exemplo. Outro intuito primordial de quem busca ferramentas do gênero é dar perenidade a obra. Isto

porque, ao publicar um texto superficial, ele será facilmente descartado. Um livro mais denso e

contextualizado, evidentemente, terá mais valor histórico ou social, podendo permanecer influenciando

estudiosos e, principalmente, o público leitor.

Qual seria, então, o conceito do Jornalismo Literário? Felipe Pena (2011) acredita que o

conceito está ligado fundamentalmente a uma questão linguística. Ou seja, as duas formas (jornalística

e literária) de escrita estão em constante metamorfose, ora misturam-se, ora afastam-se para construir o

discurso jornalístico-literário, como explica o autor: “não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas

sim de uma verossimilhança possível. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de

uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de Jornalismo, nem de

Literatura, mas sim da melodia.” (PENA, 2011, p. 21).

E quais são, contudo, os textos que atendem a forma e a estética do Jornalismo Literário? De

acordo com o autor, as práticas do New Journalism, do romance-reportagem, da ficção-jornalística e da

biografia (como veremos no tópico 2), por exemplo, encaixam-se como subgêneros do Jornalismo

Literário pela abordagem aprofundada e por utilizar elementos literários na narrativa jornalística.

O New Journalism, ou Novo Jornalismo, tem como um dos seus principais precursores Tom

Wolfe quando escreveu o manifesto do gênero, em 1973. Essa corrente jornalística enumera quatro

recursos básicos que moldam a nova escrita do campo: reconstrução da história cena a cena; os

registros de diálogos completos; a apresentação das cenas pelos pontos de vista de diferentes

personagens; os registros de hábitos, roupas, gestos e outras características simbólicas do personagem.

Para Edvaldo Pereira Lima (1995), essa narrativa jornalística se reportaria a riqueza de detalhes que

possui a narrativa literária, sem, contudo, perder de vista a especificidade do gênero jornalístico. O

teórico acredita, ainda, que a fonte inspiradora dessa nova narrativa criada por alguns jornalistas foi o

realismo social emergente nos anos 60.

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O novo jornalismo traz à luz dos holofotes o mesmo timbre comum de sensualidade, de

mergulho completo, corpo e mente, na realidade, como acontecia em todas as formas de

expressão da contracultura. […] À objetividade da capacitação linear, lógica, somava-se

a subjetividade impregnada de impressões do repórter, imerso dos pés à cabeça no real.

(LIMA, 1995, p. 149, grifo do autor).

Todavia, o estilo nasceu e prosperou antes que Wolfe o formulasse. A obra A Sangue Frio de

Truman Capote, por exemplo, lançada em 1965, recriou diálogos e reconstruiu detalhes da atmosfera

de cada cena ao contar a história de dois assaltantes que mataram cinco pessoas de uma mesma família

na zona rural do Kansas, nos Estados Unidos. O texto foi publicado no The New Yorker antes de ser

publicado em livro. Foi justamente o sucesso dessa obra e de tantas outras que ajudaram Wolfe a

estabelecer características do novo gênero que misturava jornalismo e literatura em um único texto.

Assim como tantos outros gêneros que sugiram com a junção do jornalismo com a literatura, o

Novo Jornalismo nasceu como uma alternativa de fuga para muitos profissionais da imprensa que

estavam insatisfeitos com as regras impostas pelas redações tradicionais. Um dos focos do Novo

Jornalismo é, portanto, desconstruir o texto objetivo e utilizar técnicas literárias para contar os fatos

com riqueza de detalhes. Para Pena (2011, p. 55), os escritores desse gênero podem ou “devem superar

os melhores romances realistas.”

Os outros dois subgêneros que fazem parte do Jornalismo Literário, de acordo com Pena (2011),

são o romance-reportagem e a ficção-jornalística, conforme antecipamos. O estudioso explica que na

narrativa do romance-reportagem, por exemplo, o escritor ou o repórter “não inventa nada. Ele se

concentra nos fatos e na maneira literária de apresentá-los ao leitor” (PENA, 2011, p. 103). A narrativa

do romance-reportagem também engloba tanto o discurso do romance quanto o relato jornalístico. O

objetivo principal do estilo é retratar a realidade, apesar de o autor usar “estratégias ficcionais”. Assim,

ele se concentra na história verídica e acrescenta apenas elementos literários na narrativa. O autor do

romance-reportagem não inventa histórias, ele tem como objetivo primordial retratar da forma mais

“verdadeira”, o fato em questão, a partir da sua contextualização.

Em outras palavras, quem faz romance-reportagem busca a representação direta do real

por meio da contextualização e interpretação de determinados acontecimentos. Não há

preocupação apenas em informar, mas também em explicar, orientar e opinar, sempre

com base na realidade. Pode até ser que a narrativa se aproxime da ficção, mas nunca é

feito deliberadamente. (PENA, 2011, p. 103).

17

Já a ficção-jornalística, por outro caminho, aproveita o real para construir uma nova história,

sem compromisso com a veracidade dos acontecimentos, já que o fato é apenas um pretexto para que

autor narre outra estória. Pena (2011, p. 114) explica que a “ficção-jornalística não tem compromisso

com a realidade, apenas a explora como suporte para a sua narrativa. […] O autor de ficção-jornalística

inventa deliberadamente.”

Podemos destacar, neste contexto, os livros O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira

(1979); Em câmara lenta, de Renato Tapajós (1977) e As confissões de Ralfo, de Sérgio Sant'anna

(1975) como obras que envolvem narrativas jornalísticas sobre o real, a partir da exposição de

memórias (re)vividas pelos seus autores e enriquecidas por elementos ficcionais. Elas nasceram durante

o regime ditatorial implantado no Brasil, em 1964 para reportar o contexto social abafado pelos

censores da ditadura militar.

O professor e jornalista Edônio Alves Nascimento analisou essas três obras no livro “As

ligações perigosas: relações entre literatura e jornalismo na década de 70 no Brasil”, em que mede o

nível de resolução estética e composicional dada pelos diferentes autores nas suas obras, e relaciona

semelhanças e diferenças ao considerar suas relações com o jornalismo e a literatura, como explica:

As três tematizam à sua maneira a referencialidade contextual e histórica da década de

70, compõem tipos diferentes de autobiografias com preocupações memorialísticas,

apresentam no seu entrecho narrativo, protagonistas que falam e agem a partir de

condição de guerrilheiros, exploram técnicas narrativas típicas do jornal como a

fragmentação com base na narração factual e na reflexão (interpretação) sobre estes

mesmos fatos, apresentam, embora de maneira diferenciada, uma espécie de

“subversão” da categoria do tempo narrativo e, sobretudo, operam do ponto de vista da

fatura textual na fronteira entre a realidade (exposição de fatos históricos verificáveis) e

ficção (invenção de realidades baseadas na imaginação). (NASCIMENTO, 2006, p. 64 e

65).

Notamos que todos esses subgêneros apresentados utilizam as técnicas literárias e o “estilo”

jornalístico para montar um novo discurso sobre o factual. O que irá mudar, primordialmente, são as

estruturas textuais e a estética de cada obra, mas sua essência consiste em aplicar a realidade aspectos

que contextualizem e enobreçam a qualidade do texto como pesquisas aprofundadas, clareza da

linguagem; além de recursos linguísticos como, por exemplo, figuras de linguagens, descrição

detalhada, construção cena a cena, diálogos etc. Essas aproximações e afastamentos se dão,

18

principalmente, pelo fato de que ambos os campos (jornalístico e literário) utilizam-se da escrita como

ponto de partida e de chegada. A escrita textual jornalística deixa, no Jornalismo Literário, que as

palavras fruam de modo que as tornem enriquecedoras aos olhos dos leitores e, quem sabe, própria da

História.

1.3 O Livro-reportagem: caindo no real

Uma das ligações que retomaram o namoro do jornalismo com a literatura, após seus

afastamentos nos periódicos foi, sem dúvida, o surgimento da reportagem e suas variantes: a grande-

reportagem e o livro-reportagem. Os jornais, ao adotarem técnicas para a estruturação e

desenvolvimento da linguagem e forma jornalística, acabaram por suprimir a contextualização que

deveria estar presente nas notícias. Ali, a linguagem teria que ser simples, objetiva e concisa. Tal fato

propiciou que o chamado jornalismo informativo fosse bastante criticado por se revelar superficial. Por

essa razão, a notícia redonda2 surgiu como uma modalidade que visava driblar as críticas e a

superficialidade das notícias. Ainda assim, ela não era suficiente para dar a amplitude aos fatos. Foi

nesse cenário que nasceu a reportagem, com o objetivo de estender as notícias espremidas pelo tempo e

espaço, oferecendo o contexto necessário às notícias que continuavam reverberando nos periódicos.

Edvaldo Pereira Lima (1995, p. 24) conceitua a reportagem como uma “ampliação do relato

simples, raso, para uma dimensão contextual.” A nova modalidade surgiu com o objetivo de ampliar a

notícia, livrando-a da superficialidade. E com o tempo, a reportagem passou a exibir uma variante de

maior amplitude: a grande-reportagem; que, por sua vez, abriu os caminhos para que fossem lançadas

em livro.

A grande-reportagem faz parte do já vasto panorama em que se apresenta o jornalismo

moderno, diversificando em suas múltiplas faces. O livro-reportagem cumpre um

relevante papel, preenchendo vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras

de rádio, pelos noticiários da televisão. Mais do que isso, avança para o aprofundamento

do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da

atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística. (LIMA, 1995, p.

2 Manoel Vilela Magalhães (1979 apud LIMA, 1995, p. 24) define a notícia redonda como “uma nova formulação em

que a informação principal, ao ser tratada pelo repórter, é acompanhada de dados complementares capazes de oferecer

aos leitores elementos mais sólidos para avaliar a extensão do noticiário, isto é, do fato noticiado, que supõe

preliminarmente uma informação de atualidade.”

19

16).

Sendo assim, por que podemos colocar o livro-reportagem como uma das modalidades do

jornalismo tradicional e até mesmo do Jornalismo Literário? Lima (1995) explica que o gênero possui

características de formulação que partem tanto das funções desempenhadas pelos jornalistas, assim

como utilizam artifícios literários para a estruturação da narrativa jornalística, sem perder de vista a

veracidade dos acontecimentos. Dessa forma, dependendo como o repórter se relaciona com o texto e

com os fatos dentro do livro-reportagem, a obra poderá de encaixar tanto no jornalismo literário como

no tradicional, como explica Lima (1995, p. 20): “Basicamente, a função que o livro-reportagem

exerce, apesar de matizes particulares, procede, essencialmente, do jornalismo como um todo. Os

recursos técnicos com que essa função é desempenhada provêm do jornalismo. E o profissional que

escreve o livro-reportagem é, quase sempre, um jornalista.”

Sodré e Ferrari (1986) afirmam que, a partir do momento que a reportagem tem como objetivo

responder as clássicas perguntas “quem, o quê, quando, onde e por que”, presentes no lead, o discurso

sairá do campo ficcional (literário) para ir ao encontro da narrativa factual, presente nos jornais, com o

intuito de informar sobre a realidade social, econômica e cultural do país e/ou do mundo. A reportagem,

portanto, constituirá um gênero tipicamente jornalístico.

Por isso, o novo gênero só foi possível com o surgimento de outros veículos de comunicação,

como, por exemplo, a revista semanal. O aparecimento do jornalismo interpretativo, como nova prática

jornalística, propiciou que a reportagem e a grande-reportagem se firmasse definitivamente. O

jornalismo interpretativo veio justamente para lançar um outro olhar sobre o factual, propiciando que o

repórter pudesse dar opinião ou explicitar sua visão sobre os acontecimentos. Essa modalidade oferece

meios que torne o fato contextualizado (buscando sua origem) e profundo (a causa e os porquês dos

acontecimentos), tentando elucidar questionamentos do leitor (explanação de consequências presentes

e/ou futuras).

O livro-reportagem é, então, também fruto do jornalismo interpretativo. Lima (1995) explana

suas diversas características em comum com os jornais cotidianos, a exemplo da utilização de um

conteúdo real e/ou factual, fundamentado na veracidade dos acontecimentos. O tratamento do texto

também é tipicamente jornalístico, ou seja, a linguagem do livro-reportagem é clara, concisa e objetiva;

e igualmente tem a função primordial de informar, explicar e orientar o leitor sobre os mais diversos

temas. O estudioso distingue o gênero das demais publicações periódicas por apresentar dois tipos

distintos de aprofundamento: horizontal (ou extensiva) e vertical (intensiva). A primeira se refere a

20

riqueza de detalhes de dados no relato dos acontecimentos. Já a segunda se reporta a contextualização

da questão, ou seja, seu histórico, origem e consequências.

O aprofundamento é extensivo, ou horizontal, quando o leitor é brindado com dados,

números, informações, detalhes que amplificam quantitativamente sua taxa de

conhecimento do tema. O aprofundamento é intensivo, ou vertical, quando o leitor é

alimentado de informações que lhe possibilitam aumentar qualitativamente sua taxa de

conhecimento. Isto é, existe uma análise multiangular de causas e consequências, de

efeitos e desdobramentos, de repercussões e implicações. (LIMA, 1995, p. 37).

Já Otto Groth, citado por Lima (1995), enumera outras quatro características principais

presentes nos periódicos: atualidade, periodicidade, universalidade e difusão coletiva. Ou seja, as

notícias informam aos leitores fatos atuais (atualidade) e mantém contato periódico com seu público

(periodicidade), ao abordar sobre os mais diversos temas (universalidade), que chegarão a inúmeras

pessoas de várias classes sociais (difusão coletiva).

Partindo desses conceitos, podemos associar as características de universalidade e difusão

coletiva ao livro-reportagem, pelo fato de que eles possuem temas variados e chegam a pessoas de

diversas classes sociais. Quanto à atualidade, sabemos que não necessariamente o livro-reportagem irá

abordar um tema atual e que o seu conceito dependerá do veículo que deseja produzi-lo, como explica

Lima:

A atualidade, ideia de presente, ganha diferentes contornos, de acordo com a

periodicidade do veículo onde é inserida. Assim, no jornal diário o atual é o ocorrido

ontem, há poucas horas. Na revista semanal, o atual é a ocorrência social que resiste um

pouco mais ao tempo, por causa do maior impacto público e perdura reverberando na

sociedade, na medida em que suas causas e origens vão sendo descobertas, identificadas

no transcorrer dos dias, na medida em que também sua rede de implicações e

consequência se torna visível. (LIMA, 1995, p. 31).

Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos afirmar que a periodicidade também não

poderá se encaixar como característica do livro-reportagem, pois esses trabalhos partem de uma vasta

pesquisa, sendo, geralmente, um livro não periódico, já que resgata com profundidade o tema proposto.

Para Sodré e Ferrari (1986), a diferença entre a notícia e a reportagem está no modo como o

jornalista narrará os fatos, em que a reportagem combinará elementos narrativos, e até

cinematográficos, para ilustrar os acontecimentos, como se o leitor estivesse vendo um filme ou

21

assistindo a mesma reportagem na televisão.

A inovação está no comportamento do narrador: dialoga com o leitor e com o “repórter

de campo”, como um leitor; presente à cena, registra tudo como uma câmara

cinematográfica, que ora se aproxima em close, ora se afasta para uma panorâmica;

onisciente, tem informações de arquivo, recortes de jornal etc. (SODRÉ e FERRARI,

1986, p. 107).

Sendo assim, concluímos que o livro-reportagem se encaixa, também, como um gênero do

jornalismo tradicional, por obedecer a uma lógica dos meios de produção jornalística. O produto em si,

o livro, nasce também com o objetivo de ganhar visibilidade e perenidade; que igualmente irá atender

ao sistema capitalista como um produto à venda, tanto quanto a notícia. A contextualidade parte,

justamente, como um atrativo maior para levar o leitor a adquiri-lo para, assim, se aprofundar no caso

tratado no livro-reportagem.

O posicionamento crítico do jornalista diante dos fatos e dentro do livro-reportagem, muitas

vezes, parte com intuito de levar o leitor a determinado ponto de consciência, para que ele se incline a

favor (ou não) da opinião do repórter, mas que o estimule a fazer algum pronunciamento. Os

acontecimentos ganharão outra dimensão, números, estatísticas, opiniões e até hipóteses futuras,

inclusive; característica que, teoricamente, não há na notícia, tida como um simples relato da

ocorrência dos fatos.

O livro-reportagem, por outro lado, também pode encaixar-se no Jornalismo Literário, como já

mencionado. Podemos notar as características literárias, por exemplo, na modalidade “Livro-

reportagem-perfil” ou “livro-reportagem-biografia”. Esse gênero será abordado a seguir e com mais

profundidade no tópico 2 deste trabalho.

1.4 O livro-reportagem-perfil e o perfil de quem se fala

Para entendermos o modo de construção das biografias, denominado por Lima (1995) de livro-

reportagem-perfil ou livro-reportagem biografia, é importante conhecermos como se dá o processo de

formação de um perfil jornalístico (texto mais curto, geralmente vinculado nos jornais e revistas), já

que ambos trabalham com um mesmo objetivo: relembrar ou dar prestígio a vida de um (ou vários)

indivíduo(s). Contudo, colocaremos apenas o livro-reportagem biografia como tópico do Jornalismo

Literário, por se tratar de um trabalho “mais aprofundado” sobre a história de vida de um personagem,

22

em que os recursos advindos da literatura são mais facilmente identificados. Muitas biografias

tornaram-se best-sellers por retratar, com enorme contextualização e riqueza de detalhes, a vida de

grandes personalidades que fizeram (e ainda fazem) parte da História.

Partindo do conceito de Sodré e Ferrari (1986, p. 125), o perfil jornalístico é a descrição,

interior e exterior, de um personagem. Nessa narrativa, o repórter irá abordar, dentre outros assuntos, os

costumes peculiares e o sucesso da vida de uma personalidade. Contudo, este relato é curto, para que

caiba em jornais e revistas (eletrônicas ou não), como explica Vilas Boas (2002):

O perfil jornalístico é um texto biográfico curto (também chamado de short-term

biography) publicado em veículo impresso ou eletrônico, que narra episódios e

circunstâncias marcantes da vida de um indivíduo, famoso ou não. Tais episódios e

circunstâncias combinam-se, na medida do possível, com entrevistas de opinião,

descrições (de espaços físicos, épocas, feições, comportamentos, intimidades etc.) e

caracterizações a partir do que o personagem revela (às vezes sem dizer). (VILAS

BOAS, 2001, p. 93).

Segundo Sodré e Ferrari (1986), existem três modalidades de perfis: o perfil propriamente dito,

o multiperfil e o miniperfil. O primeiro tem como principal característica o total enfoque no

personagem. Nele, os acontecimentos giram em torno da vida de um único indivíduo. Já quando um

jornal produz diversas matérias em inúmeras modalidades (crônica, reportagem, poema, entrevistas

etc.) para homenagear uma única pessoa, o veículo estará construindo um multiperfil. O miniperfil, por

sua vez, é quando um personagem secundário tem destaque em algum momento da narrativa. Ele pode

ser inserido em um breve momento da reportagem, por exemplo.

Ainda segundo os autores, há três tipos de personalidades que podem ser perfiladas. São o

personagem indivíduo, quando se faz um perfil mais psicológico do que referencial, ou seja, o interesse

do repórter está em contar as suas atitudes diante da vida; o personagem tipo, que corresponde as

celebridades, esportistas, milionários etc., enfoca o “como” tais personalidades conseguiram a fama,

dinheiro e sucesso; e, por último, o personagem caricatura, quando o personagem tem características

estranhas ou pouco comuns.

Os perfis estão há mais de dois séculos nos jornais e revistas espalhados pelo mundo. Segundo

Vilas Boas (2002), há pelo menos 50 anos alguns veículos de comunicação tornaram o gênero marca

registrada, a exemplo de The New Yorker, Life, People e Biography etc. No Brasil, uns dos precursores

do estilo foram as revistas Realidade e O Cruzeiro, no começo dos anos 1950:

23

Os autores de perfis dos anos cinquenta e sessenta eram encorajados a conduzir diálogos

verdadeiramente interativos para humanizar o máximo a matéria. Podiam mesclar

informações sobre cotidiano, projetos e obras do sujeito; e opiniões desde sobre temas

contemporâneos como fama, sexo, família, drogas, dinheiro, lazer e política. Ideias e

empatias coexistem em nome de um retrato literário nítido, em nome de captar o

passado e o presente do personagem […]. (VILAS BOAS, 2002, p. 96).

Nesta época, os repórteres trabalhavam como o máximo de esforço para expressarem com

palavras as características do caráter do personagem em destaque que, em geral, tinha alguma

relevância no contexto sociopolítico ou cultural. Vilas Boas (2002, p. 97) afirma que todas essas

informações serviriam para integrar um “conjunto de pistas oferecidas ao leitor para suas próprias

conclusões sobre o personagem.”

A principal diferença entre o livro-reportagem-biografia e o perfil jornalístico é, sem dúvidas,

quanto a sua extensão (até por que o livro oferece espaço para perfilar com melhor qualidade um

personagem quando o comparamos aos periódicos de circulação diária ou semanal). Mas uma questão

relevante nos dias atuais está sobre no “quem” os jornais preferem para traçar perfis e escrever

biografias. Com o aparecimento de revistas comerciais de comportamento como, por exemplo, Caras,

Quem, Chiques e Famosos etc., veio a necessidade editorial e mercadológica que explorara cada vez

mais os passos das celebridades, contando os pormenores de suas vidas, em que se mostra as “intrigas

de bastidores, a invasão consentida, premeditada e falseada da privacidade, a preocupação estrita com

autoimagens, a riqueza sem grandeza, a vida miúda” (VILAS BOAS, 2002, p. 96).

O tema do perfil, ou seja, o personagem em foco, é o grande diferencial para a escolha de uma

das modalidades. Sem dúvidas, o perfilado que faz a novela das oito venderá inúmeras revistas da

semana. Mas, se o mesmo personagem virar livro-reportagem-biografia, provavelmente será por uma

questão de maior relevância de sua vida e obra no contexto social, cultural e/ou político. A questão,

entretanto, não é tão simples.

Para exemplificarmos, podemos utilizar a história de vida ator Reynaldo Gianecchini. Muito

longe de ser um artista renomado, ele teve sua biografia escrita logo após ser acometido por um câncer

raro. O jornalista Guilherme Fiuza escreveu o livro enquanto o ator ainda se tratava da doença. A

biografia tornou-se um best-seller no Brasil. Foram mais de 50 mil exemplares vendidos nos primeiros

meses de lançamento, sendo traduzido para outros idiomas, a exemplo da Europa que, em três semanas,

ficou no ranking das mais vendidas. Sua vida badalada, seus romances, suas polêmicas e sua beleza

24

juvenil, misturada com uma trágica doença no meio do percurso, com uma incrível e inacreditável

recuperação, foi tiro certeiro para o sucesso biográfico. Tudo isso faz parte da espetacularização da

vida. As celebridades tornam-se referências em mundo raso e superficial, que pouco ou nada tem a

acrescentar. E a tendência é que a encenação de vidas glamourizadas ainda se perpetue por tempo

indeterminável nos perfis e em futuras biografias que visam, proritariamente, o sucesso comercial.

25

2 A BIOGRAFIA COMO TÓPICO DO JORNALISMO LITERÁRIO

2.2 Conceitos e características da biografia

Antes de compreendermos a biografia como subgênero do Jornalismo Literário, tentaremos

expor alguns conceitos e características que a estabeleça como gênero narrativo autônomo. Isto porque

a biografia não nasceu após o surgimento do Jornalismo Literário. Pelo contrário, ela vem sendo

desenvolvida e aperfeiçoada ao longo da História; isso desde Plutarco (46-120 d.C.), um dos primeiros

biógrafos de que se tem conhecimento.

Conceitualmente, a biografia é a compilação, dentro de uma forma narrativa, de uma ou várias

vidas. Esta definição de Vilas Boas (2002, p. 18) elucida o que o leitor encontrará ao abrir um livro do

gênero. O próprio nome significa, etimologicamente, escrever (graphein) vidas (bios), ou seja, é a

escrita sobre a vida de alguém ou de algo.

Até meados do século XVIII, existiam poucas biografias publicadas no mundo. Além disso, de

acordo Vilas Boas (2002), os antigos biógrafos costumavam escrever sobre diversas pessoas em um

mesmo livro, onde acabavam incluindo histórias de vidas sobre nobres, santos, reis e poetas, por

exemplo. Esses biógrafos dificilmente se dedicavam a um único personagem como fio condutor da

narrativa, como acontece atualmente com as biografias contemporâneas.

Com o passar dos anos, a biografia começou, então, a ser escrita por especialistas que

geralmente atuavam na mesma área do biografado. Segundo alguns autores e críticos, elas serviam

fundamentalmente como exibição da erudição do próprio escritor, pelo fato de incluir muitos detalhes

considerados inúteis ou desnecessários dentro da narrativa. Como resultado, estas biografias não se

tornavam nem boa história nem boa crítica por causa do excesso de informação.

Em 1971, no entanto, James Boswell escreveu a primeira biografia sobre uma única pessoa,

Samuel Johnson, em um livro com mais de 1400 páginas e evoluiu consideravelmente o gênero. Para

alguns autores, a biografia escrita por Boswell foi o divisor de águas para o surgimento de um novo

conceito de biografia. Isto porque o autor forneceu ao leitor, ao longo do livro, “reflexões profundas

sobre como narrar uma vida; expôs ao leitor os obstáculos à escrita ao longo do texto; incluiu cartas

pessoais, documentos, incidentes e conversas pessoais” (VILAS BOAS, 2002, p. 35). Justamente por

isso, ele foi considerando, por diversos teóricos e críticos, como um dos precursores da biografia

moderna.

Décadas mais tarde, já em 1975, Robert Caro, o primeiro jornalista a conquistar o Prêmio

26

Pulitzer nessa categoria jornalístico-literária, causou entusiamos entre os demais colegas de profissão, e

o gênero começou a ser largamente praticado entre os comunicadores sociais de todo o mundo. No

Brasil, o sucesso biográfico só aconteceria décadas mais tarde, a partir dos anos 1990, quando se

percebeu um incrível aumento no número de profissionais envolvidos com a escrita biográfica. Nesse

contexto, não podemos deixar de destacar o escritor e jornalista Alberto Dines como um dos primeiros

profissionais a ingressar no texto biográfico. Isto porque ele escreveu, em 1981, a biografia “Morte no

Paraíso”. A obra conta a história de vida do escritor e biógrafo austríaco Stefan Zweig, que se refugiou

no Brasil após ser perseguido por nazistas por causa da sua origem judia. Zweig escreveu em 1929 o

livro Brasil, país do futuro e, paradoxalmente, se suicidou junto com sua segunda mulher em

Petrópolis, na cidade do Rio de Janeiro, em 1942.

Antes de abordarmos as principais características conceituais que compõem as biografias, é

importante diferenciá-las dos livros autobiográficos e das obras de memórias. A confusão conceitual

acontece porque todas essas modalidades têm o propósito de relembrar a história de um (ou vários)

personagens utilizando-se de um recurso em comum para sua concepção: o resgate dos personagens

pela memória. Basicamente, as biografias são narradas em terceira pessoa e centralizadas, na maioria

das vezes, em um único personagem, em que todos os outros acontecimentos são apenas satélites.

Nessas narrativas, se faz uso constante das memórias de amigos e parentes, por exemplo, para

reorganização do passado. Já nas autobiografias, o autor é narrador e personagem ao mesmo tempo e,

relatando sua própria existência em primeira pessoa, utiliza as próprias recordações para a reconstrução

do discurso. Por outro lado, os livros de memória não são elaborados, necessariamente, com o foco

total em um personagem principal. Eles podem relatar uma história, por exemplo, sem focalizar

nenhum indivíduo. Este gênero geralmente incorpora lembranças e histórias do autor com memórias de

outras pessoas para a concepção da obra. Para Vilas Boas (2006), há uma questão reflexiva quanto ao

processo de construção das narrativas nas últimas duas modalidades porque, segundo ele,

as fronteiras entre imaginação e memória são difíceis de determinar, e as autobiografias

e livros de memória funcionam como espelho, autoconhecimento, reinvenção e até

autodefesa. Vladimir Nabokov, autor de Lolita, dizia que ninguém pode falar de si

mesmo sem estar consciente da quantidade de ficção que existe na percepção do eu.

(VILAS BOAS, 2006, p. 40, grifo do autor).

Já nas biografias, a reflexão reside na relação biógrafo versus biografado. Ou seja, a vida e a

obra do biografado influenciou/instigou, de alguma forma, o autor da biografia. Isto porque questões

27

como empatia, compreensão e interpretação que o primeiro tem sobre o segundo terão peso no modo

como o personagem será abordado durante a formatação de sua história de vida. Por isso, como

alternativa para essa questão, Vilas Boas (2006) propõe a construção de uma Metabiografia. A nova

metodologia motiva os escritores biográficos a deixarem em evidência a relação “biógrafo x

biografado”. Dentro desse modelo, o teórico sugere que os biógrafos explicitem ao leitor “sua

consciência sobre interpretações e compreensões; os limites e as possibilidades da escrita biográfica;

suas autorreflexões; seus significados e os significados do outro cuja a vida será sempre mais importa

que a do biógrafo” (VILAS BOAS, 2006, p. 41). Tudo isso porque a vida do biografado não é apenas

um aglomerado de dados e informações, mas também uma relação de troca de saberes constante entre

ambos (autor e personagem):

Metabiografia é um modo de narração biográfica que dá atenção também aos exames e

autoexames do biógrafo sobre o biografar e sobre si mesmo. Mas por que pensar nisso?

Por que análise e autoanálise são partes constitutivas do processo de construção de uma

vida pela escrita. Esse processo é do biógrafo, do biografado e de ambos, juntos,

harmônicos, em um mesmo cenário volátil; a metabiografia porque qualquer processo

biográfico extravasa e consagra o relacionamento sujeito-sujeito. (VILAS BOAS, 2006,

p. 41).

As biografias também podem ser classificadas a partir dos contratos autorais. Vilas Boas (2002)

estabeleceu quatro tipos: autorizadas, independentes ou não autorizadas, encomendadas e ditadas.

Basicamente, as autorizadas são aprovadas pelo próprio biografado (quando vivo) ou por seus

familiares; as independentes ou não autorizadas são aquelas em que o escritor inicia por conta própria a

pesquisa biográfica sobre determinado personagem sem o seu consentimento; as encomendadas são

pedidos de editores, familiares ou pelo próprio biografado, para que se escreva o livro; e as ditadas, por

sua vez, são aquelas em que o biógrafo exerce o papel de ghostwriter, ou seja, ele escreve o livro, mas

quem assina a obra é o biografado.

Dentre todas as modalidades citadas, sem dúvidas, a biografia autorizada é a que mais facilita o

trabalho do biógrafo, porque ele possui livre acesso aos arquivos e outras fontes para desenvolver seu

trabalho. Entretanto, a obra pode sofrer censuras por parte de alguns dos personagens importantes que

fizeram parte da história de vida do protagonista da obra (biografado), prejudicando, assim, a trajetória

inicialmente traçada pelo biógrafo. Para Vilas Boas (2002, p. 50 e 51), entretanto:

Seja qual for o contrato biográfico, não se espera independência total, afirmam os

28

biógrafos de personagens contemporâneas. Na corrente que vai do desejo de biografar

até a publicação da obra por uma editora, há vários elos. Um deles é o mercado

editorial, que raramente absorve textos sobre personagens pouco conhecidos do público

dito “heterogêneo”.

No que concerne ao conteúdo, a biografia é caracterizada como um gênero literário de não-

ficção por contar uma história real sobre determinado personagem que existiu ou existe. Dessa forma, a

veracidade, ou pelo menos a verossimilhança dos fatos, são itens que estão necessariamente ligados ao

processo de construção biográfica. Por esse motivo, alguns biógrafos estariam atados no que diz

respeito à liberdade de criação (uma vez que os acontecimentos regem a vida do biografado e impõem

limites imaginativos – o que não acontece com os escritores de literatura de ficção, por exemplo). Por

isso,

[...] os autores de literatura de não-ficção (ou literatura da realidade ou creative

nonfiction) devem reconhecer que têm vocabulário e engenho para explorar – ou mesmo

extrapolar – todas as possibilidades de uma narrativa rica, criando formas renovadoras

que não comprometam sua veracidade. (VILAS BOAS, 2002, p. 144, grifo do autor).

Entretanto, cabe indagar quanto a este ponto: se há limitações na literariedade biográfica,

podemos, então, classificar a biografia como obra de arte? Vilas Boas (2002 p. 113), por exemplo,

citando Virginia Woolf, classifica os biógrafos como “artesões, e não artistas; e seu trabalho não é uma

obra de arte mas algo entre um e outro.” A razão de seus argumentos é porque os biógrafos estão

obrigados a limitar-se aos fatos de uma narrativa de vida, e este fator já o difere da ficção e da poesia,

por exemplo. Assim, mesmo que a vontade do biógrafo seja de narrar com riqueza de artifícios

literários e linguísticos os acontecimentos, estes nunca devem perder a veracidade. Além disso, outro

ponto discutido entre os autores é que a narrativa linear, cronológica e ordenada dos acontecimentos,

presente no discurso biográfico, impede que esses livros sejam classificados como “obra de arte.” É por

isso que muito se discute um vínculo já pactuado entre o leitor e o biógrafo: este traz à tona o passado,

preenche as lacunas que ficaram vazias durante a trajetória de vida do biografado, explica os porquês,

contextualiza os eventos; aquele aceita os fatos como verdadeiros e coerentes, por exemplo.

O leitor, na maioria das vezes, nestes casos, não percebe que tudo que foi dito é apenas uma

interpretação dos acontecimentos, uma parcela, e não sua totalidade – visto que não é mais memória e

sim uma recriação do passado a partir de lembranças de um número incontável de pessoas que se

dispuseram em compartilhar suas lembranças com o biógrafo.

29

Grande parte dos teóricos acreditam que a narrativa cronológica da biografia, largamente

utilizada pelos biógrafos contemporâneos, serve, principalmente, para que a obra ganhe público, já que

anteriormente a vida do personagem não passa de meia dúzia de memórias espalhadas e encobertas de

incertezas. O biógrafo tem, assim, teoricamente, a missão de juntar os pedaços, remendar os fatos, dar

unidade aos acontecimentos e associar as memórias de fontes oficiais (e não oficiais) aos episódios de

vida do indivíduo; tudo para que o leitor facilmente compreenda a vida do personagem como um todo,

e não como parte.

Para Felipe Pena (2004), a biografia é uma das formas de resgate da memória mais presente na

atualidade. Isto porque o ritmo frenético e crescente do número de informação veiculada na mídia gera

o esquecimento quase imediato do que foi noticiado ou exibido minutos atrás. Dessa forma, a biografia

surge como exercício de recuperação e armazenamento da memória na medida em que tenta “encontrar

alguma estabilidade diante da reordenação espacial e temporal do mundo” (PENA, 2004, p. 19),

proporcionando perenidade a vida de algo ou de alguém.

E é nesta tentativa de reviver e reordenar o mundo que as biografias seguem uma suposta

cronologia dos fatos, como se todos os acontecimentos da vida humana tivessem início, meio e fim,

ordenadamente, passo após passo, como em um ciclo estável e imodificável. Portanto, essa linearidade

também pode ser considerada como ponto a favor do sucesso biográfico, porque facilita a compreensão

do conjunto da obra entre diversas classes sociais.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1974) denomina esse tipo construção cronológica como

“ilusão biográfica”. Nela, o biógrafo tenta relatar coerentemente a vida de alguma personalidade como

verdadeira e linear. Porém, para este mesmo autor, o que biógrafo produz nestas narrativas são apenas

efeitos do real e impressões que se acomodam em uma “criação superficial do sentido”, conforme

explica:

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato

coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja

conformar-se como uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que

toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1974, p.

185).

Apesar de toda a crítica existente atualmente em torno da ordem cronológica dos fatos dispostos

na montagem biográfica, grande parte dos biógrafos ainda reconstroem e reestruturam o passado

através da utilização da memória, trabalhando no processo de organização de uma narrativa linear.

30

Contudo, Pena (2004) acredita que já na transposição da memória (passado) para a escrita biográfica

(presente), há uma evidente quebra da linearidade biográfica. Isto porque o discurso (a narrativa) torna-

se uma presentificação do passado, que não o substitui, mas o complementa e o interpreta de diferentes

maneiras.

Dessa forma, a memória só é memória no esquecimento e, a partir do momento em que é

lembrada, torna-se discurso do tempo presente. Neste sentido, a memória escrita (ou seja, a narrativa)

não substitui o passado, ela apenas apresenta uma versão não-linear sobre o que foi lembrado, como

explica o autor:

Partindo da ausência para fundar outra presença, a escrita leva significado sempre para a

posteridade. Nesse sentido, rompe com a ideia de linearidade temporal, já que o instante

original das formulações jamais seria atingido, pois ele não estaria no passado, mas na

sua reinterpretação no presente. Prevalece a ideia da simultaneidade. Prevalece a

presentificação do tempo. (PENA, 2004, p. 24).

Levando em conta a impossibilidade de uma construção linear e coerente de determinada

identidade a ser biografada, alguns autores apresentaram algumas alternativas para superá-la. Felipe

Pena (2004), por exemplo, propõe em sua tese de doutorado intitulada Teoria da Biografia sem fim,

uma biografia em fractais. Este modelo está apoiado no desenvolvimento de uma narrativa que conte as

histórias das várias identidades que compõem um único personagem. O autor parte do princípio de que

um indivíduo possui várias personalidades. Dessa forma, o biógrafo terá a consciência que existe um

indivíduo pai, professor, empresário, marido, por exemplo, em um só ser humano. A Teoria dos Fractais

aplicada a construção biográfica surge como alternativa para conscientizar o leitor de que a identidade

é fragmentada, e que ela será influenciada, também, no modo como cada biógrafo enxerga o biografado

e de sua relação com este.

A teoria dos fractais revela uma complexidade que certamente também pode ser

aplicada nas pesquisas sobre a identidade. Ainda mais quando inserida nos estudos

sobre o discurso biográfico. Definir a identidade do biografado em explicações

coerentes e totalizantes está definidamente fora de propósito. Mas fraccionar essa

identidade em múltiplas e similares identidades, em simetria de escala e recorrência de

possíveis padrões, parece ser uma boa opção. (PENA, 2004, p. 62).

Segundo esse modelo, o discurso não teria preocupação com a ordem cronológica dos fatos e os

capítulos seriam “nominais”, onde o leitor poderia iniciar a leitura pela parte que preferisse, sem medo

31

de se perder durante a história. Assim, cada fractal (ou capítulo) traria notas de rodapé em que iriam

constar as referências e as fontes utilizadas pelo biógrafo. Neste modelo, haveria, ainda, as outras

possíveis versões sobre um mesmo fato, possibilitando que as múltiplas interpretações de um mesmo

acontecimento ficassem evidentes para o leitor. Dessa forma, Pena explica que

nos fractais biográficos, estas múltiplas identidades são visíveis. Em determinados

momentos, prevalecerá a identidade relacionada à profissão, em outras a religião, depois

a família, assim por diante. Tudo vai depender dos acontecimentos dos deslocamentos

do personagem pelo espaço social. (PENA, 2004, p.63).

Para colocar em prática a teoria disposta em sua tese, Felipe Pena escreveu a biografia de

Adolpho Bloch, dono da revista e TV Manchete, em um livro com 19 grandes fractais. Cada um dos

capítulos possuem outros pequenos fractais, totalizando 158 abordagens sobre o personagem. A

biografia ficou disponível no site do autor (www.felipepena.com) e os leitores também puderam

escrever sobre Bloch, o biografado. Ou seja, o leitor teve a oportunidade de tornar-se co-autor do livro.

Dessa forma, explica Pena (2004, p. 85), a biografia estaria sendo mais fiel ao próprio fluxo da vida,

por se apresentar de maneira não-linear e possuir inúmeras versões e interpretações sobre um mesmo

personagem, além de oferecer oportunidade a diversidade de múltiplas escritas, já que, segundo ele,

“não é possível contar essas estórias como elas realmente ocorreram.”

Nesse mesmo sentido, Vilas Boas (2002) também acredita que cada ser humano não é possuidor

de uma única personalidade, mas, sim de um conjunto de comportamentos que o difere dos outros seres

humanos. Como exemplo disso podemos citar o jogador de futebol Garrincha, biografado pelo escritor

e jornalista Ruy Castro. O biógrafo tentou mostrar as várias faces de sua persona como jogador,

alcoólatra, entre outros “eus” que compõem o personagem que se tornou um célebre driblador do time

do Botafogo do Rio de Janeiro. Tal exposição das múltiplas personalidades, entretanto, ainda é pouco

evidente na formatação das escrituras de vida de Ruy Castro.

Precisamente por essa razão, Vilas Boas (2002) apropria-se do conceito de Carl Gustav Jung, e

chama de persona a “máscara” que o ser humano utiliza para mostrar-se aos outros e, assim, reitera que

a relação biógrafo e biografado influenciará sempre na construção da(s) persona(s) nos textos

biográficos, pois

[...] a biografia também transporta a carga do seu autor, suas impressões pessoais, sua

formação, sua história de vida, seus compromissos com a sociedade que o moldou e

consigo mesmo. As matrizes de interpretação que compõem o biografado são as mesas

que compõem o biógrafo em seu próprio processo, com suas próprias máscaras.

32

(VILAS BOAS, 2002, p.136).

Como recurso para o seu trabalho, o biógrafo se apoia, além das memórias, em um árduo

trabalho de pesquisa, seleção, interpretação de dados, construção de narrativas etc. Para isso, ele utiliza

inúmeras fontes como alicerce para o desenvolvimento do discurso biográfico. Vilas Boas (2002)

divide as fontes biográficas em dois tipos: primárias e secundárias. A primeira se refere às fontes

gravadas ou impressas, que não estão fundamentalmente apoiadas na memória humana como, por

exemplo, documentos, cartas, fotografias, diários e livros. Já a segunda só existe porque o biógrafo

incita memórias de diversas pessoas para reconstrução do passado. Um exemplo de fonte secundária

mais utilizada por esses profissionais são as entrevistas orais ou por escrito.

Como podemos notar, o biógrafo está o tempo todo lidando com questões humanas e reais, se

relacionando com pessoas e colhendo dados pessoais e profissionais. Esse fator “humanístico” também

pode está associado ao sucesso desse gênero. Isto porque muitos biografados servem, na maioria das

vezes, como exemplo ou referência social. Eles são, teoricamente, indivíduos que possuem uma

história de vida no mínimo instigante para mostrar ao público leitor. Ou seja, são sujeitos considerados

de importância histórica e referencial que, por algum motivo, despertam interesse ou inspiram, de

alguma forma, quem os lê, através de suas histórias de vida.

Alguns autores acreditam que a biografia supera as obras de ficção, em termos de preferência,

por oferecer a vida de alguém como experiência ou exemplo, por mostrar conflitos externos e internos

inerentes ao ser humano; pelo fato de escancarar que ele, o consumidor biográfico, não está “sozinho”

no mundo. Por isso,

os biógrafos tendem a preferir biografar um indivíduo que ao menos mereça seu

respeito e estimule sua capacidade individual de investigação. Evidentemente, outros

fatores entram no conflitante jogo da criação biográfica, como o mercado, as

preferências pessoais do autor, sua relação com o personagem central, entre outros.

(VILAS BOAS, 2002, p.18).

Ou seja, o estudioso acredita que os biógrafos tendem a ter uma relação de simpatia e empatia

com a personalidade que irá ser transformada em livro. Mesmo assim, atualmente algumas questões

reflexivas permeiam a produção das biografias contemporâneas. Primeiramente: quais são os tipos de

personas biografadas que o público está consumindo? Qual o público-alvo desses biógrafos? Se o leitor

procura referências pessoais na vida de outra pessoa, por que há, então, um crescente interesse sobre a

vida das celebridades que estão na mídia, por exemplo? Pelo número elevado de biografias sobre

33

celebridades, os biógrafos estariam alimentando uma população alienada e preguiçosa? A lógica

teorizada por Vilas Boas (a de que os biógrafos têm empatia com o seu personagem) estaria deixando

de existir para suprir a curiosidade alheia e, principalmente, do mercado?

Essas são questões importantes. Podemos notar, por exemplo, que a cultura de massa confunde

e distorce a realidade, inverte os valores. Tal necessidade em sabermos os pormenores da vida alheia é

forjada e imposta a massa – e não só a ela – como algo importante ou necessário para a formação

individual. A futilidade vira algo essencial e a vida é banalizada. Por esse motivo, Vilas Boas (2002, p.

43) acredita que “raramente se consegue avaliar o valor das pessoas que não se destacam, sob a

justificativa de que os indivíduos competentes estarão necessariamente em evidência.”

Já Felipe Pena (2004) atribui esse fenômeno, em grande parte, à espetacularização da vida. Ou

seja, as celebridades tornaram-se heróis em uma completa e total inversão de valores do mundo

contemporâneo. E com a ajuda de inúmeros programas televisivos e sites na internet, essas mídias

passaram a destrinchar a vida de artistas, seguir seus passos e noticiar seus casos. A vida pessoal de um

artista, por exemplo, virou, de fato, uma novela ou uma série televisiva do gênero drama, em que os

telespectadores acompanham o enredo atentamente.

É a encenação da própria realidade e a glamourização do banal. Pena (2004, p. 31), citando

Neal Gabler, acredita que esses veículos de comunicação produzem “quase todos os dias dados de fazer

inveja a qualquer romancista.” E é esse ciclo vicioso em vender fatias de vidas que acaba gerando

muitos outros produtos sociais, a exemplo dos livros e filmes biográficos.

A espetacularização da vida toma lugar das tradicionais formas de entretenimento. Cada

momento da biografia de um indivíduo é superdimensionado, transformado em capítulo

e consumido como um filme. Mas a valorização do biográfico é diretamente

proporcional à capacidade desse indivíduo em roubar a cena, ou seja, em torna-se uma

celebridade. Aliás, as celebridades tornaram-se o pólo de identificação do consumidor-

ator-espectador do espetáculo contemporâneo. São elas que catalizam a atenção e

preenchem o imaginário coletivo. (PENA, 2004, p. 34).

Para o autor, portanto, as celebridades constroem uma pseudo vida heroica por interpretarem o

papel de herói como se fossem mais um personagem da trama. É o espetáculo do próprio “eu” sobre o

espectador em uma realidade encenada. E é isso que vende: tanto alimentando a mídia quanto o

público. O contato direto e imediato do indivíduo comum com a celebridade cria um vínculo de

intimidade que são consumidas (vendidas) diariamente. Por isso, a valorização dessas biografias põem

34

em xeque o oportunismo e o sensacionalismo de alguns biógrafos, fenômeno crescente em todo o

mundo, nesse meio jornalístico-literário.

No que diz respeito ao envolvimento da biografia com diversos campos do saber, notamos que o

gênero utiliza-se de recursos advindos da História, do Jornalismo, da Literatura e de muitas outras

áreas. O seu discurso é hibrido e a estética biográfica dependerá, em grande parte, do campo de

conhecimento do biógrafo e de suas relações com outras ciências. Justamente por isso, alguns teóricos

acreditam que ainda não exista um padrão para tal discurso. Vilas Boas afirma que

como a biografia nunca teve uma terminologia e um protocolo de aceitação geral, ou

uma estética que pudesse ser apoiada e contestada, a incerteza a respeito do método

biográfico reflete a duplicidade do território em que o biógrafo trabalha. (VILAS

BOAS, 2002, p. 155).

Essa hibridez, por exemplo, faz com que teóricos e escritores questionem qual o lugar da

biografia. Afinal, o gênero pertence à História, à Literatura, ao Jornalismo ou à Filosofia? A fusão de

várias linguagens cria, assim, uma tênue linha que perpassa vários campos do conhecimento durante a

formação do discurso biográfico. No final, cada biografia possui características próprias e singulares,

sendo apenas possível analisá-las individualmente ou em pequenos grupos.

Existem, por outro lado, alguns procedimentos metodológicos comuns à construção dessas

narrativas como, por exemplo, entrevistas, pesquisas, documentação, recursos narrativos, interpretação

dos fatos etc., mas cada autor se posicionará de diferentes modos diante da coleta de informações para

a produção dos textos. Vilas Boas (2002) destaca, neste particular, que existe “uma” biografia e não “a”

biografia, por entender que a narrativa é uma versão dos fatos, um ponto de vista do biógrafo sobre o

biografado. Nesse sentido, pois, dois biógrafos sempre abordarão de maneiras distintas um mesmo

biografado porque o “tipo” de vivência que cada um já tem ou teve com o biografado influenciará,

também, os aspectos da abordagem.

Como estudioso das narrativas de vidas, Vilas Boas (2006, p. 24) notou que, apesar de inúmeros

profissionais de áreas distintas ingressarem no ramo biográfico, há uma repetição quanto à percepção

dos biógrafos no processo de produção dessas narrativas que vão além de alguns dos procedimentos

metodológicos. O teórico percebeu que existe uma limitação de cunho filosófico nas escritas de muitos

profissionais. Este fato, segundo ele, demonstra uma certa superficialidade dos autores em visualizar e

sentir “a experiência humana e o significado da escrita biográfica.”

Em tal sentido, Vilas Boas (2006) mapeou, em sua tese de doutorado intitulada “Biografismo:

35

reflexões sobre as escritas de vida”, pelo menos seis características provenientes dessas limitações

filosóficas: descendência, fatalismo, extraordinariedade e verdade, ligados à maneira de pesquisa e

compreensão do biografado; e transparência e tempo, associados à maneira do biógrafo em

expressar/narrar biografias contemporâneas.

Basicamente, a limitação filosófica que se refere a descendência significa a recorrente busca dos

biógrafos em justificar certas características do personagem biografado com base em origens

consanguíneas como, por exemplo, pais, avós, tios etc. Ou seja, muitos autores fundamentam traços de

temperamento da persona biografada apoiados nos atributos de personalidade dos seus ancestrais.

Sendo assim, esses biógrafos acreditam nas “influências da ascendência sobre a personalidade” do

biografado.

Biógrafos adoram recorrer a pais, avós e bisavós para tentar explicar temperamentos,

atitudes destrutivas, decisões arriscadas, fracassos, repetições, compulsões, conquistas

etc. Essa é uma “opção” da maioria dos biógrafos, que preenchem páginas à procura dos

ancestrais de seus biografados talvez por acreditarem que os ancestrais consanguíneos

necessariamente moldam as gerações seguintes. (VILAS BOAS, 2006, p. 48).

O autor acredita que os biógrafos devam ir além da linha evolutiva para justificar as

características dos biografados, e notar que o meio em que ele viveu e sua condição histórica, por

exemplo, o formataram tanto quanto o convívio com seus familiares.

O fatalismo, segunda limitação filosófica traçada por Vilas Boas, está associado às escritas de

alguns biógrafos em fixar acontecimentos de vida do biografado como algo já traçado pelo destino. Isto

quer dizer que na vida do personagem “tudo acontece porque tem que acontecer, sem que nada possa

modificar o rumo dos acontecimentos” (VILAS BOAS, 2006, p. 85). Tal predestinação coloca a obra

do biografado acima da sua própria vida, do seu próprio trabalho.

Pelo fato de a maioria das biografias disponíveis hoje em dia narrar a vida de pessoas

publicamente conhecidas, o fatalismo está diretamente relacionado à faceta

carreira/obra do biografado. É como se os biógrafos estivessem nos dizendo assim: meu

personagem estava fadado a construir uma obra notável; nada nem ninguém poderia

impedir seu extraordinário feito. (VILAS BOAS, 2006, p. 99).

A terceira limitação se refere à extraordinariedade. Essa característica está ligada à elevação do

biografado pelo biógrafo ao status de gênio, Deus, anormal, entre outras condições louváveis. Ou seja,

o personagem é um ser humano diferente de todos os outros e por isso digno de um livro que narre suas

36

vitórias e seu brilhantismo alcançado durante sua trajetória de vida.

Assim como a descendência e o fatalismo, Vilas Boas (2006) considera a extraordinariedade

uma característica que banaliza e diminui tanto a narrativa biográfica quanto o personagem em foco.

São, ao ver do teórico, recursos usados sem aprofundamento necessário, quase jogados ao leitor sem

motivo; ou talvez por comodismo, sem o cuidado de estar colocando algo que é apenas uma

interpretação como um fato verdadeiro.

A verdade, aliás, é outra limitação filosófica da qual os biógrafos estão fadados a tentar atingir,

ou pelo menos mostrar ao leitor que tudo o que ele escreveu é, sim, verdadeiro. Vilas Boas (2006) nota

que os biógrafos tendem a ser mais evidentes em demonstrar a “verdade” dos fatos, principalmente

entre os jornalistas-biógrafos. Isto porque esse mecanismo é uma prática já impregnada na sua

formação profissional. Ou seja, o jornalista trabalha em cima dos acontecimentos e sua obrigação é

estruturar a notícia da forma mais real possível para o público. E tal prática acabou sendo aplicada na

construção do discurso biográfico. Contudo, como anteriormente demonstrado neste tópico, a biografia

não passa de uma versão sobre seu personagem, e por isso, a relação biógrafo versus biografado

influenciará no modo como o indivíduo será retratado por um livro.

Para Vilas Boas (2006), as quatro características acima conceituadas estão relacionadas ao

modo de pesquisa e compreensão do biografado pelo biógrafo. As outas duas, transparência e tempo, se

referem ao “como” o biógrafo se expressa e narra as biografias contemporâneas.

A transparência está fundamentalmente ligada ao conceito formulado pelo autor na criação da

Metabiografia. Neste modelo, a relação biógrafo e biografado devem ser de conhecimento do público

leitor, como já explicado anteriormente no início desde tópico. Para o teórico, as reflexões, as escolhas,

as interpretações, as dúvidas, as dificuldades e os caminhos seguidos pelo biógrafo, por exemplo,

precisam constar de forma contínua na narrativa biográfica e de maneira que fique explícito ao leitor o

como e os porquês de tais versões. Desse modo, o biógrafo estaria humanizando o seu relato e, ao

mesmo tempo, usando a autorreflexão de forma transparente, ou seja, visível aos olhos do público

consumidor.

Por último, temos a limitação filosófica que remete ao tempo. Vilas Boas (2002) também notou

que o tempo estabelecido em quase todas as biografias escritas até hoje seguem a ordem cronológica,

como se todas as histórias de vida fosse “redondas”, lineares, com início, meio e fim. Tal aspecto

também já foi mencionado anteriormente no início deste tópico.

Como saída, o teórico propõe que o biógrafo insira quatro dimensões do tempo e dos espaços

narrativos, que são:

37

1. dimensão física, transcorrida no espaço-tempo onde os pés do biografado

pisam ou pisaram; 2. a dimensão psicológica individual e coletiva – o tempo

interior; 3. a dimensão do contexto, que ocorre fora do alcance físico e que é

dependente ou independente da vontade; e 4. a dimensão imprevista – não

manifesta. (VILAS BOAS, 2006, p. 238 e 239).

Todas essas limitações relacionadas à escrita biográfica parecem que estão enraizadas no modo

de fazer biografias contemporâneas. São convenções adotadas por diversos biógrafos os quais pouco

(ou nada) refletiram antes de lançarem suas obras nas prateleiras. Afinal, muitas dessas características

foram incorporadas por biógrafos que se inspiraram em outros biógrafos, seguindo uma tradição

biográfica pouco prudente. A priori, uma mudança radical proposta por alguns teóricos parece distante

da realidade do mercado editoral e do público consumidor contemporâneo, no gênero. Essa limitada

reflexão sobre o exercício biográfico, portanto, pode está relacionado a escassez teórica que diz

respeito ao próprio gênero. No Brasil, pelo menos após a elevada procura pelas biografias, muitos

intelectuais passaram a ocupar-se em desvendar não só a hibridez da biografia, mas também a

transdisciplinaridade desse tipo de escrita e sua interatividade com público leitor cada vez mais ávido

em consumir exemplares de biografias.

2.2 As narrativas historiográficas e jornalísticas no discurso biográfico

As biografias interessam a uma série de profissionais. Historiadores, sociólogos, literatos e

jornalistas, por exemplo, já ingressaram no ramo biográfico. Para fins deste trabalho, analisaremos dois

tipos de escrita biográfica: a clássica, também chamada de acadêmica, usualmente exercidas por

historiadores ou acadêmicos, e as “biografias jornalísticas”, que são livros-reportagem-perfil. Estas são

escritas por comunicadores sociais e geralmente formatadas através de alguns preceitos básicos do

chamado Jornalismo Literário.

As biografias clássicas, em sua grande parte, mantém uma certa tradição acadêmica, com

característica notadamente documental e direcionadas para um público específico. Em suas escritas, os

recursos literários são escassos. E os registros, arquivos e certificados, por exemplo, estão quase

sempre evidentes em forma de notas de rodapé. O surgimento da corrente da Nova História, sobre a

qual abordaremos mais a frente, quebrou muitos padrões já enraizados nessas escrituras, além de criar

38

condições para o surgimento de outros modos de percepção e narração sobre as histórias de vida.

Mais recentemente, e paralelamente a produção biográfica dos historiadores, a modalidade de

livro-reportagem-perfil ganhou as prateleiras e o público leitor. Esta modalidade passou a ser produzida

em maior quantidade, e os jornalistas começaram a apresentar uma nova linguagem ao recontar

histórias de vidas. Eles utilizam-se de artifícios literários e linguísticos para atrair o consumidor, e a sua

narração romanceada realmente fez aumentar a procura do público pelo gênero.

Na construção do discurso biográfico, tanto a História quanto o Jornalismo fazem uso de

conceitos éticos e estéticos semelhantes para a formação da narrativa. Ora eles se afastam ora se

aproximam, em um movimento contínuo, por possuírem fontes idênticas para a narrativa da vida de

personagens, como explica Vilas Boas:

As fontes de um biógrafo são idênticas às de um historiador ou de um jornalista

investigativo que trabalha para periódicos ou em seu próprio livro-reportagem:

documentos (oficiais e não oficiais), correspondências, fotos, diários, clippings, livros

de memórias e autobiografias, assim como, eventualmente, entrevistas e reconstituição.

(VILAS BOAS, 2002, p. 53, grifo do autor).

Entretanto, para o historiador Benito Bisso Schmidt (1997), as antigas abordagens

historiográficas nas biografias possuíam enfoques excessivamente estruturalistas3 e totalmente despidas

de “humanidade”. Com o passar dos anos, ainda segundo o autor, essas narrativas passaram a ser mais

analíticas do que descritivas, enfocando mais o homem do que as circunstâncias. Contudo, para

Schmidt, ambos os campos de conhecimento só tiveram força no discurso biográfico após sua ligação

com a literatura. Ainda segundo o autor: “O gênero biográfico emerge na história e no jornalismo no

bojo de um processo de aproximação destas áreas com a literatura, o que implica na incorporação do

elemento ficcional e a adoção de determinados estilos e técnicas narrativas.” (SCHMIDT, 1997, p. 8).

Há diferenças metodológicas primordiais, entretanto, que diferem as narrativas historiográficas

das narrativas jornalísticas no que diz respeito a produção de biografias. Primeiramente, os

historiadores ainda estão muito ligados às metodologias próprias do seu campo. Schmidt (1997, p. 8)

acredita que o historiador-biógrafo ainda se mantém “fiel à tradição da crítica (interna e externa) aos

documentos: quem produziu determinado vestígio? em que situação? Com quais interesses?” Para o

3 Para Jean Piaget (1979, p. 8), “o estruturalismo se distanciou, sobretudo, das pesquisas diacrônicas, que se estribam em

fenômenos isolados, para encontrar sistemas de conjunto em função da sincronia.” Ou seja, para entender aspectos de

uma realidade – seja ela politica, social ou cultural, por exemplo –, este método analisa o sistema que a comporta, e

exclui visivelmente os fenômenos individuais, pois são vistos como algo menor dentro de uma estrutura.

39

estudioso, o jornalista-biógrafo, por outro lado, não estaria tão preocupado, assim, com tais preceitos

primários inerentes à abordagem histórica. Além disso, o teórico observa que romancistas, historiadores

e jornalistas também utilizam-se da imaginação para reconstruir existências.

Schimidt (1997), contudo, teoriza que a imaginação disposta nas narrativas biográficas

realizadas pelos romancistas e historiadores diferem das demais porque eles evidenciam para o leitor

tal ocorrência “fantasiosa”. Já os jornalistas tendem, segundo ele, a elaborar elementos de ficção como

o verdadeiro e o verossímil ao reproduzir diálogos, sentimentos e sensações. O autor entende que “as

biografias produzidas no campo da história e aquelas produzidas no do jornalismo, apesar de algumas

aproximações significativas, apresentam diferenças marcantes, tanto formais quanto epistemológicas”

(SCHIMIDT, 1997, p. 15).

A literariedade presente na escrita biográfica pode ser explicada pelo fato de que os jornalistas,

no momento em que passaram a se interessar em escrever biografias, em meados dos anos 1970 nos

Estados Unidos, já estavam contaminados por outros gêneros jornalísticos imersos na literatura, a

exemplo do Novo Jornalismo e do livro-reportagem, que influenciaram visivelmente a escrita

biográfica desses profissionais. Dessa maneira, muitos repórteres já detinham experiência e

conhecimento de algumas técnicas narrativas que misturavam jornalismo e literatura, e conseguiram

aplicar tais recursos no discurso biográfico.

Além do envolvimento das biografias com o campo da literatura, uma corrente de pensamento

esteve presente nestas escritas: a Nova História. Vilas Boas (2002) acredita que, tanto na historiografia

– com a biografia – como no jornalismo – com o livro-reportagem –, essa corrente influenciou a escrita

biográfica moderna pela sua possibilidade de intercâmbio com outras ciências. Isto porque ela

apresentou interesse “no detalhe tanto quanto no essencial; na clareza tanto quanto na substância; no

registro tanto quanto no documento; na covardia tanto quanto na grandeza” (VILAS BOAS, 2002, p.

69). Ou seja, os novos-historiadores ficaram mais atentos a “abrangência da atividade humana e a

interdisciplinaridade.” Destarte, outros campos passaram a contribuir para compreensão dos

acontecimentos, formando novo discurso dentro da História e repaginando, da mesma forma, os novos

biógrafos e as novas biografias, que passaram a se interessar por questões mais analíticas do que

meramente descritivas.

Em outras palavras: podemos dizer que a partir do momento em que várias ciências começaram

a pesar sobre os fenômenos históricos, a Nova História passou a se diferenciar da história tradicional

por não estar prioritariamente ligada ao modo narrativo dos acontecimentos. À vista disso, os novos-

historiadores estiveram mais preocupados com o contexto social ao se apoiarem em elementos que vão

40

muito além dos documentos e personagens oficiais, por exemplo. Por isso, nas biografias

os biógrafos operam o que os novos-historiadores chamam de “mundo das experiências

comuns”, que incluem novas formas narrativas, como micronarrativas, narrativas de

frente para trás (flaschback) e histórias que se movimentam entre os mundos público e

privado ou apresentam os menos acontecimentos de múltiplos pontos de vista. (VILAS

BOAS, 2002, p. 70, grifo do autor).

No campo jornalístico, Vilas Boas (2002) verificou, por sua vez, que nos anos 1990 três obras

escritas por jornalistas se destacaram entre os dez livros de não-ficção mais vendidos da década no

Brasil. Chatô, de Fernando Morais, Mauá, de Jorge Caldeira e Estrela Solitária, de Ruy Castro,

tornaram-se sucesso de crítica e de público, trazendo à tona, novamente, grandes personagens do

imaginário brasileiro.

Todavia, poderíamos indagar: o sucesso dessas obras estaria ligado, essencialmente, à maneira

de escrever do jornalista? O escritor e biógrafo Steve Weinberg, citado por Vilas Boas (2002), acredita,

por exemplo, que sim, porque verificou que muitos dos melhores biógrafos americanos têm formação

em jornalismo ou experiência nas redações de jornais e revistas.

Jornalistas importantes que se tornaram biógrafos trazem para a sua nova ocupação

características já prontas que, para os acadêmicos especializados, surgem com menos

naturalidade: eles já sabem obter informação difícil, considerada sigilosa, sobre uma

variedade de assuntos a partir de agências governamentais e instituições particulares;

convencer fontes relutantes a falar; escrever de forma clara para que os leitores de todos

os níveis e não só para acadêmico; utilizar o processador de texto antes de vencer o

prazo final para entrega do trabalho. (WEINBERG, 1992, apud VILAS BOAS, 2002, p.

26).

Sobre esse ponto, notamos que, apesar disso, tanto a produção historiográfica quanto a

jornalística se destacam quando o campo é a biografia. Porém, nas últimas décadas, principalmente no

Brasil, observamos um crescente número de profissionais da área de comunicação social ingressarem

nesta atividade.

O sucesso dessas obras já foi associado por muitos estudiosos à linguagem acessível e carregada

de recursos literários que muitos jornalistas adotam ao narrar histórias de vidas. De fato, os jornalistas-

biógrafos conseguiram dar uma nova revigorada nesse mercado editorial.

Justamente por isso, com o objetivo de entender em que consiste a hibridez do gênero,

41

estudaremos duas obras desse tipo, escritas por jornalistas que, mesmo inseridos na mesma profissão

(jornalismo), diferem claramente quanto as suas narrativas. Assim, analisaremos comparativamente as

obras de dois jornalistas-biógrafos: Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova, de

Ruy Castro, vista como exemplo de biografia escrita nos moldes do Jornalismo Literário, e Eu Não Sou

Cachorro, não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar, de Paulo César de Araújo, entendida como

uma biografia clássica ou acadêmica. Ambas tem como ponto comum a narração de dois movimentos

musicais que marcaram época no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Pretendemos, com isso, relacionar

os encontros e desencontros das diferentes narrativas elaboradas pelos biógrafos para escrever sobre

um mesmo tema: a música popular no Brasil.

2.3 O público versus o privado: a polêmica das biografias

Como abordado no item 2.1, as biografias podem ser classificadas a partir dos seus contratos

autorais. Vilas Boas (2002) as dividiu em quatro grupos: autorizadas, independentes ou não

autorizadas, encomendadas e ditadas. No Brasil, contudo, as biografias autorizadas ainda podem sofrer

censuras de alguns dos personagens envolvidos na narrativa, e a obra nunca poderá tratar de

determinado fato que poderia ter sido importante dentro da história contada. Mas, se os autores não

quiserem modificar nenhum trecho do seu trabalho, eles podem lançar no mercado uma biografia não

autorizada, ou seja, que não foi aprovada pelo biografado. Entretanto, o personagem em foco (ou seus

herdeiros) podem recorrer à Justiça para que a obra seja retirada de circulação. Isto porque não existe,

no Brasil, uma lei que regulamente as biografias não autorizadas, ou seja, que beneficie tanto biógrafo

no exercício da liberdade de expressão, quanto o biografado no direito à privacidade.

Recentemente, muito se discutiu sobre as biografias no Brasil. Uma modalidade em particular

ganhou manchetes à exaustão em jornais, revistas e programas televisivos: as biografias não

autorizadas. Isto porque uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi impetrada no Supremo

Tribunal Federal pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) com o objetivo de que a

Corte reconheça a inconstitucionalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, de 2002. O artigo 21

concede aos biografados – quando vivos (ou aos seus herdeiros), o direito de proibirem as biografias

não autorizadas. Isso significa dizer que livros ou produções audiovisuais que remetam à história de

vida de alguma personalidade, para que sejam comercializadas, precisam de suas autorizações prévias.

E, mesmo que as biografias não autorizadas cheguem ao mercado, os biografados (ou seus familiares)

42

que sentirem a "honra, a boa fama ou a respeitabilidade atingidas" durante a narrativa poderão recorrer

à Justiça para que a obra seja proibida e retirada de circulação. O artigo 20, por sua vez, coloca a

privacidade do indivíduo como “inviolável”.

Tais dispositivos, argumenta a Anel, infringem “as liberdades de manifestação do pensamento,

da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, além do direito difuso da cidadania à

informação”, que são constitucionalmente assegurados pela Carta Magna de 1988. Ainda em sua ADI,

a Anel alega que, com esses artigos em vigor, as biografias que necessitam de autorização prévia para a

publicação estão sofrendo um tipo de censura privada, porque mesmo que a pessoa biografada possuía

notoriedade pública, o interesse individual passa a ser mais importante do que o interesse coletivo, já

que o personagem será o dono de sua história. Para a Anel, o afastamento da autorização prévia dos

biografados (quando vivos), dos familiares ou de outras pessoas que fizeram parte da narrativa, estará

contribuindo para a construção da memória e da historiografia nacional. No Poder Legislativo, o

projeto de Lei 393/2011 do deputado Newton Lima (PT-SP) também tenta remover do Código Civil o

artigo 20. No entanto, nem a ação interposta pela Anel nem o projeto de Lei foram ainda votados.

Mas o ápice da polêmica que girou em torno das biografias não autorizadas e as tornou um dos

assuntos mais debatidos durante o último semestre de 2013 foi quando o grupo Procure Saber4,

liderado pela empresária Paula Lavigne e que tem como membros os músicos Chico Buarque, Caetano

Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Roberto Carlos, passou a apoiar a

inalterabilidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil e a reivindicar, entre outras coisas, o direito a uma

porcentagem do lucro da venda destes livros. Tal posicionamento surpreendeu negativamente tanto o

público como uma gama de jornalistas, editores e biógrafos, que rebateram sem piedade todos os

argumentos propostos pelo grupo. Isto porque justamente esses cantores, que passaram pelas maiores

censuras as suas obras durante os anos 60 e 70, estariam, agora, paradoxalmente, defendendo que uma

obra de cunho intelectual continue passando pelo crivo da censura prévia do personagem biografado ou

de qualquer coadjuvante que porventura fizesse parte do livro.

Contudo, em meio a polêmica toda, houve quem afirmasse que a censura só é legitima quando o

Estado intervem em uma situação pública. O colunista Francisco Bosco, por exemplo, em um artigo

publicado no site O Globo, disse que a autorização prévia das biografias pode e dever ser praticada

para que a privacidade do biografado seja preservada. Ele afirma que o que está em jogo é se a vida do

4 De acordo com sua página oficial criada em uma rede social (www.facebook.com/procuresabermusica), o grupo Procure

Saber é formado por “autores, artistas e pessoas ligadas a música” e é “dedicado a estudar e informar os interessados e a

população em geral sobre regras, leis e funcionamento da indústria da música no Brasil.”

43

biografado pode ser explorada pela coletividade sem que o próprio personagem possa intervir nas

informações divulgadas. E ainda defendeu que o “princípio da soberania decisória sobre a vida privada

deve prevalecer”, sustentando que “pode-se construir essa memória valendo-se apenas de obras,

informações e documentos públicos.” Tal posicionamento, entretanto, revela que ele pouco sabe sobre

o gênero biografia, visto que a exposição ou apenas a análise das obras e de informações públicas não

constitui primordialmente o gênero biográfico. Etimologicamente, o nome biografia significa: o

escrever de vidas. Portanto “não existe biografia sem vida pessoal”, como afirmou o biógrafo Paulo

César de Araújo em uma entrevista concedida para o programa Roda Viva, da TV Cultura. Isto porque

as escrituras de vida costumam abranger o contexto histórico vivido pelo biografado relacionando,

concomitantemente, características pessoais com aspectos de sua obra para a formatação da

personalidade do personagem em foco.

Em um artigo publicado n’O Globo, Gustavo Binenbojm, professor de Direito e advogado da

Anel, lembra que não há uma prática ilícita por parte dos biógrafos na apuração das informações ou na

coletas de dados: “Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores

que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos

domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo. O trabalho de pesquisa histórica se

realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas

envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados”.

Vejamos, entretanto, se a alternativa proposta por Bosco se aplica a um caso concreto.

Peguemos como exemplo a construção da narrativa biográfica no livro Roberto Carlos em Detalhes, do

mesmo Paulo César de Araújo. A obra que foi proibida e retirada do mercado teve como objetivo

primordial contar o fenômeno histórico que foi o cantor no cenário musical, cultural e social (até então

parcialmente excluído da historiografia musical brasileira). Ou seja, o livro foi, sobretudo, um estudo

que quis resgatar Roberto Carlos do limbo do esquecimento historiográfico. Contudo, o biógrafo, que

passou quinze anos pesquisando sobre a vida do cantor, nunca obteve a tal autorização prévia do

biografado para que a obra fosse lançada. Mesmo assim, Paulo César assumiu os riscos e publicou o

livro pela editora Planeta em 2006. Contudo, no ano seguinte, Roberto Carlos entrou na Justiça e

conseguiu que a venda do livro fosse totalmente proibida e os exemplares recolhidos. O biógrafo,

questionado no Programa Roda Vida da TV Cultura sobre qual parte da biografia poderia ter causado o

incomodo que levou o cantor a processá-lo, acredita que a simples existência da biografia o perturbou,

afirmando que, à época, os advogados disseram que Roberto Carlos nem chegou a ler o livro. Além

disso, destacou o cantor como artista e, principalmente, como um empresário que não gostou que

44

alguém estivesse ganhando dinheiro “com o seu nome”. O autor mencionou ainda ser impossível falar

de Roberto Carlos sem que sua vida pessoal fosse abordada. Isto porque Paulo César de Araújo o

classifica como um artista popular autobiográfico em suas próprias canções, e que teve sua vida

acompanhada como uma verdadeira novela por inúmeras revistas.

Podemos perceber, neste imbrólio todo, que há questões que vão muito além do simples direito

à privacidade ou respeito à intimidade do biografado. Outros aspectos, principalmente o econômico,

fazem com que os herdeiros ou o próprio biografado se apropriem da história de vida de um

personagem público e notório cujo relato de sua existência e trabalho poderiam ter um indecifrável

valor para a história e para a formação cultural de um país. Para Gustavo Binenbojm, o embate está

muito além do conteúdo que porventura estaria presente na biografia. O problema reside,

principalmente, “apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo.”

Outro exemplo de biografia não autorizada censurada após a instauração de processo cível foi a

biografia Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro, lançada em 1995, e

retirada de circulação por um ano após as herdeiras do ex-jogador entrarem na Justiça pedindo os

direitos autorais sobre a obra. Em um artigo publicado n’O Globo, Luiz Schwarcz, diretor da

Companhia das Letras, editora que publicou Estrela Solitária, falou pela primeira vez que o pagamento

acordado entre a editora e seus herdeiros se deu pela fragilidade das leis. Isto porque, segundo o

Schwarcz, antes da situação parar na justiça, “o advogado da família não falava em 'imagem denegrida',

mas em 'ajudar o Natal das meninas'.” Como não houve acordo entre as partes, um processo foi

interposto pelas filhas do jogador e em 2001, seis anos após o livro ter sido publicado, a 42ª Vara Cível

do Rio de Janeiro condenou a editora ao pagamento de indenização pelas 180 fotos de Garrincha

utilizadas no livro. As duas partes ainda recorreram na segunda instância e, a partir daí, as herdeiras

afirmaram que além de terem sofridos danos morais e materiais, a biografia denegriu o ex-jogador por

explorar o alcoolismo e a compulsão por sexo sofridos por Garrincha. A editora, por outro lado, dizia

que o livro enaltecia o ex-jogador como um dos mais brilhantes atletas dos últimos tempos e que o

alcoolismo, que já era fato público, foi retratado de maneira ética. Contudo, a família da Estrela

Solitária conseguiu 5% sobre o valor de cada livro vendido, e a obra voltou para o mercado. Shwarcz

afirmou que “com o pagamento realizado, nem a capa ou muito menos o conteúdo voltou a preocupar

as herdeiras.” E observou na questão que “o fato é que a atual lei brasileira permite que se instaure um

balcão de negócios, arbitrariedades e malversações.”

Duas biografias do escritor e poeta curitibano Paulo Leminski também foram impedidas de

serem comercializadas. A primeira, escrita por Toninho Vaz, teve a 4ª edição de Paulo Leminski: o

45

bandido que sabia Latim, proibida pela família do escritor. O escritor Domingos Pellegrini, autor do

livro de memória Passeando por Paulo Leminski também não entrou em um acordo com os familiares

do poeta e desistiu de lançar o livro, disponibilizando-o gratuitamente na internet. Alice, Estrela e

Áurea, esposa e filhas de Paulo Leminsk, respectivamente, não autorizaram as obras justificando a

“ausência de autorização expressa aos escritores para inclusão de imagens e poemas de Paulo

Leminski, direitos pertencentes às herdeiras, garantidos pela Lei de Direitos Autorais”, bem como “pela

inclusão de trechos nas biografias que violam a intimidade e honra do poeta, bem como da própria

família'.”

Mais uma vez, a ordem econômica pesa sobre os ombros dos herdeiros, dos autores e dos

editores. E o que dizem os biógrafos quanto à proposta idealizada por Roberto Carlos e adotada pelo

grupo Procure Saber no que diz respeito à porcentagem que deveriam ter os biografados na venda dos

livros?

O jornalista e escritor Ernesto Rodrigues, autor das biografias de Ayrton Senna e de João

Havelange, publicou um artigo no site O Globo e propôs, com ironia, que os músicos como Chico

Buarque e Gilberto Gil trocassem os direitos autorais de uma única música por toda a receita que ele

obteve pela venda da biografia de João Havelange nos últimos sete anos. Mas disse não fazer tal

proposta porque “seria crime de estelionato”. E completa: “Até hoje a venda do livro não cobriu o

adiantamento que recebi da editora.”

O cantor e compositor Chico Buarque, que achou justo a indenização recebida pelas filhas do

ex-jogador Garrincha, foi questionado, em um artigo publicado n’O Globo por Mário Magalhães,

biógrafo de Carlos Mariguella, quanto à música que também cita o ex-jogador. “Se defende que as

filhas do Garrincha recebam pelo trabalho árduo do biógrafo, já pensou em remunerá-las por ter citado

o Mané junto com Pelé, Didi, Pagão e Canhoteiro? “O futebol”, sua música, não tem também “fins

comerciais”? A imprensa de “fins comerciais” publica perfis. E se o Sarney e o Bolsonaro resolverem

cobrar? Devemos reeditar a censura de outrora ou persistir no bom combate a ela?”

Paulo César também se posicionou contra a divisão da renda das vendas entre o biografado.

“Eles tinham que escolher defender ou a privacidade ou o dinheiro. Há uma dificuldade de defender a

proibição de biografias não autorizadas para pessoas que sabem o valor do livro, que além de leitores,

são autores.” Além disso, ressaltou que o biógrafo trabalha por temas, e por mais que Roberto Carlos

seja um personagem real, sua pesquisa sobre ele propõe uma versão do cantor em meio as tantas

interpretações possíveis.

Já Vagner Fernandes, biógrafo de Clara Nunes, confessa que teve mais “ônus do que bônus”

46

durante a escrita da trajetória de vida da cantora. E completa: “não fiquei rico com os 10% de repasse

do preço de capa que a editora me concedia. Em cada unidade vendida a R$ 49,90, ganhei R$ 4,90.

Nos acordos em que se negocia um quantitativo muito grande de livros o valor do preço de capa pode

ser reduzido. Ganha-se, no entanto, os mesmos 10%. Façam as contas. Durante quatro anos, como

muitos colegas biógrafos já relataram, gastei com passagens aéreas, hospedagens, telefonemas,

alimentação, fotocópias, compra de livros, de material audiovisual, entre outros itens.”

Mas por que a proposta em destinar uma porcentagem do lucro das vendas das biografias aos

biografados é indevida? Primeiramente, uma biografia não é simplesmente uma reprodução da obra do

biografado, mas uma interpretação dela que comporta uma relação direta com a vida do personagem

em foco. A lei do direito autorial garante ao artista uma quantia em dinheiro toda vez que sua obra, em

sua integridade, for explorada comercialmente. Por exemplo: Roberto Carlos tem o direito de receber

um valor determinado toda vez que a música “Esse cara sou eu” for reproduzida em uma novela ou

quando usada para um comercial de propaganda de supermercado. Isto porque a sua música foi

explorada integralmente para fins comerciais. Por outro lado, se um historiador utilizar a mesma

música para identificar alguns aspectos comportamentais da sociedade contemporânea, valendo-se da

análise e exposição da letra, elaborará um trabalho novo, portando outra carga autoral. Isto porque o

que esse historiador produzirá não será mais a reprodução pura e simples da música, mas uma

interpretação desta dentro de algumas perspectivas preestabelecidas e limitadas pelo autor. E mesmo

que parte da obra seja reproduzida em uma biografia, ela terá o objetivo de analisar, exemplificar ou

expor o conteúdo com fins históricos e/ou acadêmicos.

E quais são os prejuízos que os artigos 20 e 21 do código civil estão produzindo nos produtos

biográficos atualmente? É evidente que o direito à privacidade do indivíduo deve ser respeitado, mas

não se pode comparar livros de cunho biográfico, que levam, às vezes, três, quatro ou oito anos, por

exemplo, para serem concluídos, com conteúdos de algumas revistas e jornais que compõem a

chamada impressa marrom, que se utiliza de fatos esdrúxulos para montar um espetáculo midiático. É

preciso que haja esta distinção para que não se confunda pesquisas sérias de profissionais responsáveis

com a imprensa sensacionalista. Por outro lado, imagine-se que todas as biografias produzidas até hoje

no Brasil passaram pela leitura dos biografados (ou de seus herdeiros). Qual parte teria sido suprimida?

O que biógrafo deixou de contar para que a obra pudesse ser comercializada? O que foi maquiado ou

dito de outra forma com o propósito de beneficiar a escritura de vida do personagem em foco? Essa

peneira de fatos pode causar um efeito deturpador as informações e continuar privando o leitor do

conhecimento mais aproximado da veracidade dos acontecimentos.

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Se houvesse censura dos principais personagens dos livros Chega de Saudade e Eu não sou

cachorro, não, por exemplo, como seria a produção dessas narrativas biográficas? Em Chega de

Saudade um personagem ganha destaque durante toda a narrativa: João Gilberto; isto por que ele foi o

precursor da nova batida que deu origem ao estilo musical intitulado posteriormente como Bossa Nova.

Para ganhar distinção de outros personagens, Ruy Castro o caracteriza das mais variadas formas:

descreve sua cidade natal, sua relação com a família, seu jeito descompromissado e acomodado, seus

casamentos, sua relação com a música e com a maconha. Diferentemente dos outros personagens, a

narrativa da trajetória de vida de João Gilberto é apoiada nesses elementos acima. Notemos que, apesar

de João Gilberto ser um personagem real, o que está retratado é uma versão do biógrafo sobre sua

personalidade. Contudo, imaginemos que João Gilberto proibisse a obra por revelar fatos pessoais

como, por exemplo, sua experiência com a maconha?

Percebe-se que Ruy Castro abordou este aspecto no personagem porque João Gilberto, à época,

morava com o músico Luís Telles, e este o achava demasiadamente triste em meados de 1955. Luís

Telles logo associou o estado psicológico de João Gilberto ao constante uso que ele fazia da maconha.

À vista disso, Telles, incomodado com a situação de depressão que supostamente era causado pela

droga, sugeriu que João Gilberto fosse respirar outros ares, e o mandou para Porto Alegre. Pouco

tempo depois, o cantor seguiu destino para a casa de sua irmã mais velha, Dadainha, na cidade de

Diamantina em Minas Gerais. Nesta temporada, João Gilberto ficou recluso por dois anos e conseguiu

compor música e letra das canções Hô-ba-la-la e Bim-bom. Ao retornar para o Rio de Janeiro em

1957, João Gilberto surpreendeu a todos ao mostrar o novo ritmo que trazia consigo.

Como podemos notar, um fato privado pode ser de fundamental importância para explicar a

causa e o motivo de determinado acontecimento. Se João Gilberto desejasse suprimir suas experiências

com a maconha, como explicar, então, o motivo que o levou a sair do Rio de Janeiro e ficar recluso na

casa de sua irmã, criando, por consequência, a nova batida? E se João Gilberto não quisesse ser

mencionado no livro Chega de Saudade, como explicar o fenômeno musical que foi a Bossa Nova no

âmbito social, cultural e político no Brasil (visto que ele formulou outro tipo de ritmo musical que

influenciou toda uma gama de artistas na década de 60)? A missão parece impossível.

O mesmo se aplica ao livro Eu não sou cachorro, não. Hipoteticamente, se alguns dos

personagens não tivessem consentido com o relado de sua história de vida e/ou possíveis

interpretações, a obra poderia nunca ter sido escrita (ao menos com os propósitos do autor) e os

cantores cafonas, até então ignorados pela historiografia musical brasileira, continuariam esquecidos.

Como exemplo disso, Paulo César de Araújo explora, nesse livro, a intimidade do cantor

48

Agnaldo Timóteo através da análise das canções “A galeria do amor”, “Perdido na noite” e “Eu

pecador”, que tem como tema central a homossexualidade. Em entrevista ao biógrafo, o cantor revela a

necessidade de explorar tal temática em suas músicas em uma sociedade ainda opressora em meados

dos anos 1970. Apesar das declarações, as análises das músicas revelam um pouco mais que a simples

exploração temática do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, mas, também, e muito

claramente, a possível orientação sexual de Agnaldo Timóteo.

Como podemos notar mais uma vez, para explicar um fato social (o surgimento e sucesso de

músicas com temas homoeróticas), o biógrafo explora um dado pessoal de um cantor. Por esse motivo,

Agnaldo Timóteo, baseado na atual legislação poderia ter embargado a obra ou a retirado de circulação.

Se tal episódio tivesse acontecido, a contribuição do cantor ao falar de homossexualidade em uma

época em que o tema era tabu, continuaria fora dos livros historiográficos sobre música popular

brasileira, por exemplo.

Se Agnaldo Timóteo tivesse tomado tal postura, o direito à privacidade (individual) estaria se

sobrepondo ao direito de liberdade de expressão. Ou seja, seria a proibição de um livro – que tanto

serviria aos amantes da música brasileira, mas, sobretudo, a uma sociedade (coletividade) interessada

em conhecer e entender os aspectos históricos, políticos, econômicos e sociais vividos pelos artistas

populares entre 1968 e 1978 –, por parte de uma única pessoa (individualidade) que se acha dono da

sua história, mesmo que ela possua notoriedade pública.

49

3 DA BOSSA À FOSSA – RETRATOS DA MÚSICA BRASILEIRA

Frequentemente, as biografias são associadas a história de vida de um único personagem. No

entanto, o relato de algo compõe, igualmente, um livro biográfico. Um dos motivos que justifica esta

afirmação é o fato de que o momento histórico só pode ser mais claramente compreendido quando

entendemos quais personalidades estão por trás desse novo capítulo da História. Justamente por isso se

faz necessário apreender características, tanto sociais quanto culturais, que levaram alguns indivíduos

criarem outra importante parte da historiografia brasileira. Nessas obras, percebe-se um enfoque

especial (embora parcial) na vida particular alguns personagens para justificar e explicar um fenômeno

histórico. Esses livros, portanto, oferecem sua contribuição para a história ressaltando, também, as

intimidades dos indivíduos que influenciaram, de alguma forma, a construção de novos costumes,

estilos e referências sociais, por exemplo.

Isto posto, fica evidente todos esses aspectos nas obras que relatam as histórias de dois

movimentos musicais importantes para a firmação da identidade cultural brasileira: a Bossa Nova e a

música popular cafona, presente nas obras Chega de Saudade, de Ruy Castro e Eu não sou cachorro,

não, de Paulo César de Araújo, respectivamente. Essas biografias retratam, antes de tudo, os

personagens que deram vida as novas formas estéticas e culturais instaladas no Brasil com o objetivo

de entender o surgimento de alguns ídolos que ditaram novas maneiras de viver e de se relacionar

socialmente. Nesse contexto, podemos classificá-las como biografias porque relatam histórias de vida

dos cantores que fizeram parte de um movimento maior (a música brasileira), e narram,

concomitantemente, dois momentos históricos importantes, e que só são compreensíveis quando seus

personagens são caracterizados dentro da narrativa biográfica.

3.1 Chega de Saudade: a história ou as histórias da Bossa Nova

A Bossa Nova, estilo musical responsável por revolucionar o cenário musical brasileiro no final

da década de 1950, é a principal protagonista do livro Chega de Saudade: a história ou as histórias da

Bossa Nova, escrito pelo jornalista e escritor Ruy Castro e lançado em 1990. A obra, além de contar a

história de um dos movimentos artísticos mais importantes que influenciaram a formação da identidade

nacional, biografa, por consequência, a vida de inúmeros personagens que participaram da construção

50

deste estilo musical, e que tem como um dos seus precursores o músico e cantor baiano João Gilberto,

quando gravou o LP “Chega de Saudade”, em 1959.

Ruy Castro, antes de introduzir a Bossa Nova como fenômeno musical que viria mudar toda

uma tradição melódica já firmada por outros músicos, realiza um panorama dos 10 anos que

antecederam seu lançamento, na década de 50, na primeira parte do livro intitulada “O Grande Sonho”,

que acomoda 10 capítulos. A segunda parte, que recebeu o título de “O Grande Feriado”, possui 11

capítulos e relata o desenvolvimento da fase pós-Bossa e sua afirmação no âmbito nacional e,

principalmente, internacional.

Nos primeiros capítulos, Ruy Castro volta sua atenção para o cenário que viria ser o lugar de

nascimento da Bossa Nova: o Rio de Janeiro. A cidade, nos anos 50, ia muito além da efervescência

dos compositores de sambas, choros e marchinhas carnavalescas; havia, também, pessoas interessadas

em outro tipo de melodia: a música internacional. Um número incontável de adolescentes e adultos

estavam “apaixonados pelas bandas de swing, pelos crooners e pelos conjuntos vocais americanos”

(CASTRO, 1990, p. 36). O ano de 1949, quando surgiram diversos fãs-clubes para homenagear

cantores como Frank Sinatra e Dick Farney, por exemplo, marcaria não apenas a paixão desses jovens

pelo jazz americano, mas, também, a introdução de incontáveis deles nas rádios, palcos, bares e boates

do Rio de Janeiro.

Foi a partir da montagem dos fãs-clubes, especialmente o “Sinatra-Farney Fan Club”, que só

aceitavam sócios que sabiam cantar, tocar ou dançar, que muitos garotos e garotas, à época, começaram

a profissionalizar sua carreira artística. Dentre eles, podemos citar como exemplo João Donato, Johnny

Alf, Paulo Moura, Raul Mascarenhas, Doris Monteiro e Nora Ney. Para Ruy Castro, aquele momento

já era um prenúncio da Bossa Nova.

Nesta época, já existiam dezenas de conjuntos vocais brasileiros inspirados em cantores de jazz

internacional como, por exemplo, Os Namorados da Lua, Garotos da Lua e Os Cariocas. E a

eferverscência musical brasileira e estrangeira podia ser discutida entre os discos e os eletrodomésticos

vendidos nas Lojas Murray, localizada no centro do Rio de Janeiro. O local tornou-se um importante

ponto de encontro entre os jovens que faziam parte dos fãs-clubes e os rapazes que formavam os

conjuntos vocais. Ali, eles debatiam sobre as novidades recém-chegadas dos Estados Unidos e

travavam longas análises sobre as cordas vocais dos seus cantores favoritos.

Após um pequeno panorama musical em que o Brasil vivia, Ruy Castro começa a esboçar, de

maneira alternada, a biografia de diversos personagens importantes que ajudaram, de alguma forma, na

construção da nova batida musical. João Gilberto é o primeiro a ser biografado com mais riqueza de

51

detalhes, e os relatos incluem tanto sua vida pessoal quanto profissional. Desta forma, em um primeiro

momento, o biógrafo conta a sua chegada no Rio de Janeiro, em 1950, perpassando por sua

participação como vocalista do conjunto vocal Garotos da Lua, seu comportamento relaxado e

descompromissado, a dificuldade em arranjar emprego após a saída do grupo e seus namoros com as

cantoras Sylvinha Telles e Mariza.

As histórias de vida de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Morais também começam a ser

relatadas na primeira parte do livro. Jobim foi por muito tempo pianista de restaurantes e boates, mas

acabou desistindo da vida noturna, por um período, para começar a trabalhar como arranjador da

gravadora Continental. Vinicius, por sua vez, já era poeta e diplomata do Itamaraty. Anos mais tarde,

Lúcio Rangel apresentou-os na Casa Villarino, bar localizado no centro do Rio de Janeiro, onde

começaram uma parceria que mudou os rumos da música brasileira. O primeiro trabalho em conjunto

foi um musical, a peça Orfeu da Conceição, estreado em 1956.

Ainda em 1956, Roberto Menescal e Carlinhos Lyra abriram uma Academia de Violão. Nara

Leão, dedicada aluna da academia, reunia professores, alunos e amigos em seu famoso apartamento em

Copacabana. Menescal levou, naquele ano de 1957, João Gilberto ao seu apartamento. Ele trazia

consigo composições como “Hô-ba-la-la” e “Bim-bom”, que possuíam uma batida diferente de tudo

que os rapazes e moças daquela época haviam escutado. As canções surgiram durante os dois anos em

que passou fora do Rio de Janeiro, entre 1955 e 1957. Neste período, João Gilberto esteve recluso em

Porto Alegre, Diamantina e Juazeiro. Foi durante o período em que esteve em Minas Gerais, na casa de

sua irmã Dadainha, que ele manteve-se isolado elaborando “aquele ritmo no violão que simplificava

toda a batida do samba” (CASTRO, 1990, p. 150).

Apesar do entusiamo com a nova melodia que saía do violão, João Gilberto só gravaria o LP

“Chega de Saudade” em 1959, com arranjos de Tom Jobim e tendo carta branca do diretor da gravadora

Odeon, Aloysio de Oliveira. Entretanto, antes do lançamento do LP, João Gilberto gravou, em 1958,

um 78 rotações com lado A e B, contendo as músicas “Chega de Saudade” e “Bim-Bom”. O Rio de

Janeiro não entrou em delírio com a nova batida e, então, os diretores levaram o disco até São Paulo.

Aos poucos, João Gilberto começou tocar nas rádios e fazer pequenas apresentações. Meses depois, de

volta ao Rio, o 78 rotações foi considerado um sucesso, já que vendeu 15 mil cópias. No ano seguinte,

o LP “Chega de Saudade” chegou a vender 35 mil cópias tão logo que colocado nas prateleiras.

As cantoras Dolores Duran, Syvinha Telles e Maysa têm destaque na narrativa por terem

emergido em uma época em que a sociedade carioca ainda era preconceituosa com mulheres que se

arriscavam na carreira artística. Para Ruy Castro, elas foram “as cantoras mais influentes da década de

52

50 e suas canções dor-de-cotovelo foram as coisas mais próximas do blues brasileiro” (CASTRO,

1990, p. 105). Todas elas saíram de condições sociais completamente diferentes e suas vidas foram

repletas de escândalos, exageros e talento. Elas acabaram morrendo precocemente aos 29, 33 e 34 anos

de idade, respectivamente.

A linha do tempo conduz a inserção dos personagens na narrativa do biógrafo Ruy Castro. Ao

longo do discurso, ele insere pequenas e longas biografias de maneira alternada. A profundidade na

história de vida de cada pessoa está ligada, fundamentalmente, no grau de importância da

personalidade dentro da concepção e desenvolvimento da Bossa Nova.

Na segunda parte do livro, são narrados os primeiros passos do novo estilo musical, ou seja, sua

inserção no cenário musical brasileiro ainda em 1959, ano do lançamento do LP “Chega de Saudade”.

Uma das primeiras apresentações da turma de Nara Leão foi promovida por iniciativa dos alunos da

PUC do Rio de Janeiro e realizada no anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura, em agosto

daquele mesmo ano. A cantoria ficou por conta de Nara, Carlinhos Lyra, Normando Santos, Chico

Feitosa, Norma Bengell, Syvinha Telles, Alayde Costa, Luiz Carlos Vinha, Ronaldo Bôscoli e

apresentação de Roberto Menescal. Artistas como Dolores Duran, Vinicius de Morais, Billy Blanco e

Tom Jobim foram prestigiar a rapaziada, mas não fizeram parte do espetáculo. O LP de João Gilberto

saiu do forno em junho e aquele “1° Festival de Samba Session” parecia com o primeiro passo fora do

apartamento de Nara Leão em um movimento pró-Bossa Nova.

Enquanto a turma de Nara, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Carlinhos Lyra ia

promovendo pequenas e frequentes apresentações musicais no Rio de Janeiro, João Gilberto estava

curtindo sua carreira e fazendo show em outras cidades do Brasil.

É nesta parte do livro que Ruy Castro tem a preocupação em deixar em evidência as canções

que fizeram mais sucesso durante o frenesi inicial da Bossa Nova. Ele conta em detalhes o como e em

que situações as canções brotaram dos dedos de seus compositores. As músicas “Chega de Saudade”,

“Desafinado”, e “Samba de uma nota só”, por exemplo, são ressaltadas como clássicos da Bossa Nova.

As duas últimas foram compostas por Tom Jobim e Newton Mendonça. Eles foram amigos de infância

e pianistas nas madrugadas do Rio de Janeiro. Newton, no entanto, morreu sem prestígio em 1960,

momento em que poucos sequer sabiam da sua existência.

Além de algumas versões internacionais das músicas como “Desafinado” e “Bim-Bom”, por

exemplo, houve dois momentos que impulsionaram definitivamente a Bossa Nova para o exterior. O

primeiro deles foi em 1962, quando Tom e Vinicius lançaram a música “Garota de Ipanema” em uma

temporada de apresentações no “Au Bon Gourmet”, com a participação de João Gilberto e do conjunto

53

vocal “Os Cariocas”. Na ocasião, também foram lançadas outros clássicos como “Corcovado”, “Samba

da minha terra”, “Insensatez” e “Se todos fossem iguais a você”. Para Ruy, “a temporada de O encontro

no Bon Gourmet foi, provavelmente, o maior momento da Bossa Nova no Brasil” (CASTRO, 1990 p.

316). A canção “Garota de Ipanema” teve mais de quarenta gravações no Brasil e nos Estados Unidos

apenas nos dois primeiros anos após seu lançamento. O outro momento de expansão da Bossa Nova foi

a realização de um show no Carnegie Hall, em Nova York, em novembro do mesmo ano, com a

participação dos inúmeros músicos envolvidos com o estilo musical.

Assim como as músicas e seus compositores, Ruy Castro conta as histórias dos temas de

algumas canções como forma de firmar o novo estilo musical. Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal,

por exemplo, exploraram o amor, o mar, o sal e o sol em diversas canções compostas nos anos de 1960

e 1961, a exemplo de “O rio”, “Mar, amar”, “A morte de um Deus de Sal” e “O barquinho”. Em 1962 e

1964, foi a vez de “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius de Morais, e “Samba de verão”, de

Marcos e Paulo Sérgio Valle, respectivamente.

Foi esta exploração temática que levou Nara Leão, em 1964, virar-se contra a Bossa Nova.

Como protesto, realizou o show Opinião, juntamente com os cantores João do Vale e Zé Kéti, sob o

argumento de que estava cansada de cantar músicas com temas irrelevantes para dois ou três grupos de

burgueses. As músicas e os textos do show Opinião tinham como tema a miséria e a reforma agrária. O

espetáculo foi um sucesso e Nara lucrou com a temporada. Neste mesmo ano, o Brasil sofreu o golpe

de Estado com a implantação do regime militar, e a Bossa Nova, então, ficou visivelmente dividida

entre os cantores de “direita” e os de “esquerda”.

Entretanto, apesar da efervescência política que nascia nesta época, inclusive entre os cantores e

em suas letras musicais, Ruy Castro se limita aos fatos ligados ao movimento musical que, em 1965,

começou a ser parcialmente substituído pela sigla MPB, cujo significado que dizer Música Popular

Brasileira. As novas gerações de cantores estavam tentando fugir do excesso de jazz impregnado na

Bossa Nova. Para o biógrafo, a MPB “não tinha compromisso com o samba e queria flertar à vontade

com outros ritmos, temas e posturas” (CASTRO, 1990, p. 377). O tropicalismo e a Jovem Guarda são

apenas citados uma única vez durante a obra, apesar de serem movimentos simultâneos e de grande

força no cenário nacional.

A Bossa Nova voou para o mundo levando a maioria dos seus fundadores. Grande parte dos

músicos que formaram ativamente o novo estilo foram morar fora do pais. A música brasileira tornou-

se referência não só no Brasil, mas também em várias partes do planeta. O exterior abriu os olhos para

os cantores brasileiros a partir da decolagem da Bossa Nova como gênero musical efetivamente

54

consolidado.

Notamos que, aos longo da narrativa, Tom Jobim, Roberto Menescal, Nara Leão, João Gilberto,

Carlinhos Lyra, Elis Regina, Maysa, Silvynha Telles, Antônio Maria, Luis Bonfá, Johnny Alf, João

Donato, Vinicius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Newton Mendonça, Frank Sinatra e Baden Powell, por

exemplo, são apenas alguns dos personagens que têm sua história biografada no cenário musical

brasileiro. Os mais importantes artistas dentro do movimento possuem detalhes tanto da sua vida

profissional quanto pessoal. Com a maioria, entretanto, Ruy Castro se limita aos detalhes profissionais,

porém sempre com minúcias nas informações. A evolução da Bossa Nova é notadamente o fio condutor

para o encaixe desses músicos na narrativa do autor.

3.2 Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar

Os cantores populares brasileiros chamados de “cafonas”, suas músicas e o regime militar são

os temas principais da biografia Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar,

do jornalista e historiador Paulo César de Araújo, lançada em 2002. O livro narra não só como surgiram

e o que fizeram os cantores românticos durante o período da ditadura militar, mas também destaca sua

importância dentro do cenário musical brasileiro, visto que ainda são visivelmente excluídos da

historiografia da música popular. Notadamente, o autor faz uma crítica a toda uma gama de

pesquisadores, críticos, musicólogos e historiadores que menosprezaram a música “cafona” por julgá-la

inferior ou pobre de conteúdo quando comparada à Bossa Nova ou MPB, por exemplo. Através da

análise das músicas, o biógrafo tenta explorar tanto o lado político quanto o lado social que também

esteve presente nas canções desses artistas durante regime militar. O sucesso desses cantores chegou ao

auge entre 1968 e 1978, período em que vigorava o Ato Institucional nº 5 com sua censura prévia a

qualquer forma de expressão artístico-cultural. Seus discos apareciam nas listas dos mais vendidos e

suas músicas batiam recorde em execução nas rádios brasileiras.

Na obra repleta de conceitos e contextualização histórica, Paulo César de Araújo define a MPB

como um movimento musical que não agregava (e ainda não agrega) toda diversidade de música

brasileira. A Música Popular Brasileira, em um primeiro momento, tentava fugir do jazz impregnado na

Bossa Nova e da influência do rock americano que estava no auge em 1960, e influenciava os cantores

da Jovem Guarda no Brasil. E foi com propósito de mobilizar artistas para uma música mais brasileira

55

e autêntica que cantores como Nara Leão, Edu Lobo, Elis Regina e Geraldo Vandré, por exemplo,

comandaram uma passeata contra a influência das guitarras elétricas que já chegavam ao Brasil.

Contudo, pouco tempo depois, os baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia

criaram o movimento musical chamado “Tropicalismo”, que possuíam forte influência de jazz, blues,

rock e soul e que aderiam, inclusive, às guitarras elétricas. O público universitário e a classe média,

consumidores da MPB, passaram, então, a fazer oposição aos artistas populares que cantavam músicas

“cafonas” ou de “empregadas”, como diziam, por julgarem suas canções vulgares e, principalmente,

despolitizadas. O livro, portanto, tem o objetivo de desconstruir esta imagem da música popular tida

como “cafona”.

No que se refere à música romântica brasileira, o biógrafo divide os artistas populares em três

gerações. Na primeira, estão aos cantores da década de 1940 e 1950 que cantavam boleros, entre eles

Orlando Silva, Orlando Dias e Adilson Ramos. A segunda, corresponde a geração “cafona” que

começou com Paulo Sérgio e seus seguidores como, por exemplo, Odair José, Benito di Paula, Dom &

Ravel, Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano, Wando e Nelson Ned. Na terceira geração, a partir dos anos

1980, os cantores já eram chamados “bregas” e, dentre eles, estão Sidney Magal, Peninha e Amado

Batista. O autor utiliza-se da expressão “cafona” para mencionar os cantores românticos da segunda

geração. Esta palavra surgiu através do produtor Carlos Imperial no decorrer da década de 1970.

Entretanto, o termo está entre aspas ao longo do livro porque Paulo César de Araújo acredita que tal

expressão está impregnada de preconceitos dos quais ele não compartilha.

Antes de introduzir a história de vida dos artistas populares e de suas canções, Paulo César de

Araújo enumera três fatores em comum que ligam esses cantores durante toda a obra. Primeiro, as

músicas “cafonas” lançadas durante o período de 1968 a 1978 também denunciavam questões sociais e

políticas que estavam presente no cotidiano brasileiro como, por exemplo, autoritarismo e segregação

social. O segundo se refere ao fato de que esses artistas conseguiram atingir o auge durante a vigência

do Ato Institucional n°5, e também tiveram suas músicas censuradas ou vetadas no regime militar. O

terceiro, por sua vez, ressalta as condições sociais das quais esses cantores emergiram: todos eles

vinham das mais baixas camadas sociais e tiveram que trabalhar precocemente, inclusive na infância.

O cantor Agnaldo Timóteo, por exemplo, foi engraxate, vendedor de pastéis, lavador de

automóvel e, aos 9 anos, auxiliar de torneiro mecânico. Waldick Soriano chegou a trabalhar na lavoura

com os seus irmãos e também foi garimpeiro, faxineiro, engraxate, servente de pedreiro e camelô.

Nelson Ned, por sua vez, trabalhou em uma fábrica de chocolate. Os irmãos Dom e Ravel foram office-

boy e vendedor de picolé, respectivamente. Wando vendeu jornal, foi engraxate e, aos 13 anos, feirante.

56

Paulo Sérgio foi alfaiate dos 12 anos até o lançamento do seu primeiro LP.

Este cantor, considerando o responsável por repaginar o estilo “balada romântica”, lançou o

primeiro LP em 1968 e causou polêmica ao fazer sucesso por ter voz e estilo parecidos com os do

cantor Roberto Carlos. O “rei” da música romântica brasileira, no entanto, no mesmo ano, lançou o

disco “O inimitável”, fazendo referência a Paulo Sérgio. O LP de Roberto Carlos foi, inclusive, o mais

romântico até então e obteve reconhecimento da crítica. Aos poucos sua música foi elevada ao status de

MPB. Por outro lado, Paulo Sérgio continuou fazendo canções românticas que influenciaram toda uma

geração de artistas que surgiram durante os anos 60 e 70.

Apesar da efervescência política que pairava no ar desde 1964, os cantores populares

românticos estavam alheios a manifestações sociais e passeatas mobilizadas contra a ditadura militar.

Contudo, Paulo César de Araújo justifica essa possível alienação com base no lugar social ocupado por

esses artistas. Por esse motivo, o autor afirma que os movimentos políticos e sociais da época estavam

ligados à elite brasileira e aos setores populares organizados. Os artistas românticos, segundo ele,

estavam preocupados, na verdade, com a forma de como iriam ganhar o pão, além do que toda a

movimentação criada à época estava distante dos subúrbios onde moravam.

Mesmo assim, as canções dos cantores “cafonas” denunciavam, principalmente, o autoritarismo

vivenciado pelos segmentos populares. Era dessa maneira que elas revelavam o autoritarismo que se

expressava “através do preconceito aos pobres, aos negros, aos homossexuais, às prostitutas, às

empregadas, aos analfabetos, aos deficientes físicos e aos imigrantes nordestinos” (ARAÚJO, 2013, p.

48), por exemplo.

Paulo César de Araújo, além de analisar minuciosamente, no seu livro, as canções que

abordavam os temas elencados acima, realiza uma abrangente contextualização histórica do período da

ditadura militar que desencadeou a inspiração dos cantores “cafonas”. Além disso, o autor compara

constantemente as canções ligadas à MPB com às letras dos artistas populares. Este artifício surge

como forma de destacar, igualmente, a importância das músicas “cafonas” dentro do contexto social e

político em que o Brasil vivia. Isto porque “o repertório cafona é também marcado pelo conteúdo

político, embora nunca fosse reconhecido pelo público da MPB” (ARAÚJO, 2013, p. 241).

O biógrafo ressalta, por exemplo, que assim como o cantor Chico Buarque, Odair José – como

outros artistas “cafonas” – também teve algumas canções censuradas e até proibidas durante o regime

militar. À vista disso, temos como exemplo as canções “Vou tirar você desse lugar”, “Esta noite você

vai ser minha” e “As noites que você passou comigo”, que foram parcialmente censuradas, e o cantor

tendo que mudar suas letras para que o LP pudesse chegar as lojas. Já “Em qualquer lugar”, “A

57

primeira noite de um homem” e “Pare de tomar a pílula”, também de Odair José, as letras foram

totalmente vetadas pelos censores federais. As duas primeiras por questões morais e ao apelo sexual

presente em suas letras; a última por questões políticas, sociais e econômicas. “Pare de tomar a pílula”

foi lançada quando os militares patrocinavam uma campanha do controle de natalidade e distribuía o

DIU (Dispositivo Intra-Uterino, peça colocada na cavidade uterina que impede a gestação) e pílulas

anticoncepcionais a população brasileira. Como o governo possuía inúmeros convênios com

laboratórios multinacionais fabricantes do remédio, a censura chegou a crer que a música poderia

influenciar as milhares de brasileiras a pararem de tomar a pílula e, por isso, rapidamente a canção foi

silenciada das rádios. Odair José chegou a ser até detido por cantar a música proibida durante os seus

shows.

O mesmo aconteceu com a canção “Meu pequeno amigo”, de Fernando Mendes, que

denunciava um polêmico caso policial jamais solucionado durante a ditadura militar. Muitas canções de

Dom & Ravel também falavam de uma sociedade autoritária e do processo de concentração de terras

nas mãos dos fazendeiros. O cantor Wando, por exemplo, mobilizava o poder público para atender

reivindicações dos habitantes do morro na canção “Presidente da favela”. Há, durante toda a obra, uma

vasta análise de canções “cafonas” que foram lançadas durante o AI 5 porque, para o biógrafo, elas

também “apresentavam em seus versos alguma forma de desabafo contra a opressão e o tratamento

humano degradante” (ARAÚJO, 2013, p. 239).

Para Paulo César, as canções produzidas pelos artistas da MPB eram sempre alvo de

apontamentos, análises e censuras; “já em relação à obra de artistas populares como Luiz Ayrão, Benito

de Paula ou Wando, ocorria exatamente o contrário: negava-se as intenções críticas, por mais relevantes

que fossem. Como não nomes identificados com a MPB, não seriam capares de refletir e criticar”

(ARAÚJO, 2013, p. 127).

A obra do historiador questiona, principalmente, o silêncio que permeia os estudos críticos e

acadêmicos quando o assunto se refere à música “cafona”. Paulo César indaga, por exemplo, quais os

critérios que regem o que deve ser esquecido ou preservado na memória nacional. Enquanto os artistas

populares continuam não se encaixando na música “tradicional” – o samba e seus derivados – nem na

música “moderna” – a bossa nova ou MPB –, eles prosseguirão jogados embaixo do tapete da História.

O autor ainda classifica a produção historiográfica da música popular brasileira como autoritária e

excludente porque “aquilo que as camadas mais pobres ouviam ou admiravam não é considerado digno

de registro ou pesquisa” (ARAÚJO, 2013, p. 347). Portanto, através de uma vasta pesquisa

bibliográfica em enciclopédias, manuais e livros sobre música brasileira, o biógrafo constata que nada

58

ou pouco se diz sobre as músicas dos artistas populares.

Fica evidente, nesta sua obra, a proposta do autor em valorizar a música popular “cafona”

durante o período em que o Brasil esteve sob a vigência do AI 5. E as constantes análises das músicas

reforça, por conseguinte, a tentativa de levar a sério o conteúdo e a forma da música “cafona”, assim

como ressaltar a relevância dos seus cantores para milhares de ouvintes. A necessidade em expor a

importância dessas canções dentro do cenário musical brasileiro está na subversão ao preconceito

exercido pela elite e pela intelectualidade brasileira, que preferem estudar o que está associado ao “bom

gosto”. Afinal, o que é bom ou ruim? O resgate da memória desses artistas populares é o principal

objetivo do jornalista e historiador Paulo César de Araújo, para que uma parte importante da história da

música popular brasileira não caia no limbo do esquecimento. Sua análise, portanto, vai além das

limitações maniqueístas que tratam de questões do bem e do mal; do bom ou do ruim.

59

4 CHEGA DE SAUDADE, EU NÃO SOU CACHORRO, NÃO: APROXIMAÇÕES E

AFASTAMENTOS

Percebemos até aqui que a hibridez do gênero biográfico está, por exemplo, nas escolhas

lexicais, técnicas e de criação que cada autor opta por fazer ao escrever sobre algo ou alguém. Vimos,

também, que o campo de atuação do biógrafo também pode interferir na construção do seu discurso. É

justamente por isso que existe a tentativa de classificar qual o tipo de biografia estamos consumindo.

Isto porque existem aquelas que estão apoiadas em recursos linguísticos e literários, em que a obra

parece um romance de ficção (apesar de ser um texto referencial, baseado em fatos e acontecimentos

reais); e aquelas que são textos prioritariamente dissertativos-argumentativos, que estão visivelmente

montados a partir de documentos, estatísticas e exemplos. Esses dados ficam em constante evidência ao

longo da narrativa como uma maneira de mostrar ao leitor que se trata de um livro de não-ficção.

A partir dessas considerações, tentaremos elencar semelhanças, diferenças e especificidades nas

escritas biográficas dos jornalistas Ruy Castro e Paulo César de Araújo, autores que, apesar de atuarem

no mesmo campo de conhecimento, possuem discursos totalmente diferentes no que concerne à

narração das histórias de vida que compõem os livros Chega de saudade e Eu não sou cachorro, não,

respectivamente. Ambos, além de relatarem o desenvolvimento de dois movimentos musicais

importantes da década de 60 e 70, biografam, por consequência, os cantores que deles fizeram parte.

Dessa forma, notamos que tanto Ruy Castro, com Chega de saudade, quanto Paulo César de

Araújo, com Eu não sou cachorro, não, exercem um jornalismo não-periódico e aprofundado; fazendo

uso, concomitantemente, de funções jornalísticas que objetivam explicar, informar e orientar o leitor;

além de incorporarem, nas suas escrituras, procedimentos operacionais idênticos ao dever jornalistico

como, por exemplo, a coleta de informações, entrevistas, apuração dos fatos etc. Ruy Castro deixa

claro na introdução da obra, que ela é um livro “que se pretende o mais factual e objetivo possível”.

Ambas as obras, justamente por desempenharem a tarefa de orientar o público sobre os acontecimentos

com ampla contextualização histórica, podem ser classificadas como livros-reportagem.

Edvaldo Pereira Lima (1995), por exemplo, enumera três características essenciais para

identificar e diferenciar os livros-reportagem de outros tipos de publicações. A primeira delas se refere

ao conteúdo, em que a veracidade e a verossimilhança são aspectos fundamentais que devem estar

presente no livro. Isto porque os fatos narrados são reais, e o texto possui referencial embasador no

qual o autor se apoia para desenvolver o discurso. Assim, percebemos que os dois livros apresentados

possuem esta característica, por contar a história de dois movimentos musicais brasileiros que

60

marcaram época nos anos 60 e 70 no Brasil, sendo, assim, obras de não-ficção.

A segunda característica, no entanto, reporta ao tratamento linguístico e a edição do texto

presente no livro-reportagem. Igualmente, notamos que Chega de Saudade e Eu não sou cachorro, não

são obras que possuem uma linguagem concisa, clara, acessível e, de certa forma, coloquial; com o

intuito de que elas cheguem as mais diversas camadas sociais. As ilustrações, fotografias e gráficos, por

exemplo, também fazem parte de um jornalismo aprofundado, e estão presentes, da mesma forma, nos

livros em questão.

Por último, como já vimos anteriormente no tópico 1, a função primordial do livro-reportagem é

preencher as lacunas deixadas pela superficialidade da notícia, da reportagem e da grande-reportagem,

oferecendo amplitude aos acontecimentos. Dessa maneira, a terceira característica que identifica a

modalidade são os aprofundamentos horizontais (quando há uma abordagem extensiva em termos de

detalhes quantitativos, oferecendo dados, números, informações ao leitor) e os verticais (quando se

procura a causa dos acontecimentos de forma intensiva; narrando seus desdobramentos, impactos,

implicações e resultados futuros, como objetiva o livro Eu não sou cachorro, não, que teve a intenção

de colocar em evidência os porquês que envolvem o silenciamento dos cantores “cafonas” dentro da

historiografia musical brasileira. Isso ocorre com também em Chega de Saudade, porém de forma mais

sutil, já que tem finalidade pura e simples de contar a história da Bossa Nova).

Outro ponto em comum remete à identificação dos autores com o tema que abordam. Ruy

Castro expõe, na introdução e nos agradecimentos da obra que, por ter crescido escutando a Bossa

Nova desde que ela ganhou este nome e por ter convivido com alguns personagens do livro, “uma certa

dose de paixão acabou se intrometendo na receita.” Paulo César de Araújo, da mesma forma, afirma

que cresceu ouvindo cantores como Waldick Soriano, Odair José e Nelson Ned. Foi, por essas razões,

que ele resolveu se aprofundar no tema, o que implicou em outras reflexões maiores do que o puro

relato das histórias de vida dos artistas “cafonas”. Este aspecto, aliás, está ligado à empatia que os

biógrafos têm sobre o objeto de sua biografia, e sua relação com ele, como explorado no tópico 2 deste

trabalho. A questão pode nos levar a refletir que os anseios e as “paixões” que um tem sobre o outro

podem pesar no desenvolvimento do relato dos acontecimentos e de seus personagens.

Lima (1995) ainda subdivide o livro-reportagem em diferentes grupos. Iremos, assim, utilizar o

conceito de livro-reportagem-perfil (estudado no tópico 1) para ambos os livros estudados. Isto por que

eles evidenciam no discurso o lado humano dos personagens através do relato das histórias de vida dos

cantores e artistas que formaram a Bossa Nova e a música popular cafona. Especificamente,

classificaremos Chega de Saudade como uma biografia pertencente ao Jornalismo Literário, por esta

61

possuir alguns preceitos ligados à modalidade, como veremos mais à frente. No caso da obra Eu não

sou cachorro, não, abordaremos como uma biografia clássica ou acadêmica pela escassez de recursos

literários e sua narrativa ser predominantemente um texto dissertativo-argumentativo; e, também, como

um livro-reportagem-ensaio, por ela possuir, em sua narrativa, a presença marcante do autor e de suas

opiniões acerca do tema, algo como uma tentativa de convencer o leitor a compartilhar do mesmo

ponto de vista por ele divulgado.

4.1 A literariedade na obra Chega de Saudade

Para entendermos a marcante literariedade presente na biografia Chega de Saudade: a história

ou as histórias da Bossa Nova, escrita por Ruy Castro, precisamos compreender, na prática, algumas

ferramentas estilísticas utilizadas pelos jornalistas literários após a fusão do jornalismo com a literatura.

Como iremos mostrar, a narrativa que conduz a obra possui, predominantemente, as mesmas

características que regem as narrativas do chamado Jornalismo Literário. Ou seja, primeiramente, o

livro, além de abranger contextualmente o tema principal (característica básica do livro-reportagem: o

aprofundamento dos fatos) – que é a criação, desenvolvimento e firmação da Bossa Nova na década de

60 na cidade do Rio de Janeiro, utiliza recursos advindos da literatura tais como a caracterização física

e psicológica dos personagens e o uso intenso de recursos literários e linguísticos, a exemplo de

eufemismos, hipérboles, comparações etc. Ruy Castro também se apoia, com frequência, nas

ferramentas de que se beneficiam os Novos-jornalistas, que são: a construção cena a cena, o uso de

diálogos e a reconstrução detalhada dos ambientes.

Vale ressaltar que esses recursos são típicos das narrativas ficcionais. Embora os jornalistas

literários tenham conseguido aplicar tais ferramentas na criação do romance de não-ficção (livro-

reportagem). Como decorrência disso, houve um aumento na qualidade estética da biografia, a

elevando, na maioria das vezes, ao status de “obra de arte”. Em vista disso, vamos expor a seguir todos

esses aspectos elencados acima com trechos do livro que os exemplifiquem, tendo como objetivo

firmar a biografia Chega de Saudade como obra pertencente ao Jornalismo Literário.

62

4.1.1 A caracterização dos personagens

No livro Chega de Saudade dois personagens aparecem com maior frequência ao longo da

narrativa: João Gilberto (criador da batida original da Bossa Nova) e Tom Jobim (responsável por

firmar o novo estilo musical no cenário internacional). O teórico Yves Reuter (2007, p. 43) acredita que

a distinção e a hierarquização de alguns personagens dentro de uma história contribuem, na tradição do

romance literário ficcional, “para a clareza do texto e de sua leitura”. Para isso, o autor cita algumas

categorias5 criadas por Phillippe Hamon, que tem o propósito de diferenciar estes personagens dentro

da narrativa. Para fins deste trabalho, iremos trabalhar com duas categorias que diferenciam João

Gilberto e Tom Jobim na obra de Ruy Castro: a qualificação diferencial e a funcionalidade diferencial,

explicitadas a seguir.

1. A qualificação diferencial remete à quantidade de qualidades atribuídas a um personagem,

como, por exemplo, seus traços, condições físicas, atitudes comportamentais etc. Geralmente,

essas características são apreendidas nas relações sociais do personagem, ou seja, sua

articulação cultural e familiar, por exemplo. Tal diferenciação leva ao reconhecimento do herói

(isto porque ele possui qualidades que não existem em nenhum outro personagem dentro da

narrativa). Podemos notar que este aspecto está presente na construção de um único

personagem ao longo da narrativa: João Gilberto. Primeiro, Ruy Castro descreve sua relação

com a família (principalmente com seu pai, seu Juveniano):

Não admira que seu Juveniano tenha posto todas as suas fichas na educação dos filhos,

que não eram poucos: ele já tinha Walter, do primeiro casamento, e, com d. Patu,

vieram, em escadinha, Dadainha, Vavá, Joãozinho, Dedé, Vivinha e o caçula Jovininho.

Educar aquela filharada era uma tarefa cara e difícil. Em Juazeiro, nos anos 40, a

instrução parava no curso primário e, do ginásio para a frente, o destino dos garotos era

Salvador ou, mais próxima, Aracaju. Mas seu Juveniano foi um vitorioso porque, de um

jeito ou de outro, pôs um diploma na mão de cada filho. Exceto na de um, e justo aquele

que todos diziam ser o mais inteligente. Naturalmente, Joãozinho. (CASTRO, 1990, p.

23).

5 Na classificação proposta por Phillippe Hamon (1972 apud REUTER, 2007, p. 42 e 43), seis categorias compõem a

distinção e hierarquização dos personagens dentro de um texto ficcional: qualificação diferencial, funcionalidade

diferencial, distribuição diferencial, autonomia diferencial, pré-disignação convencional e comentário explícito.

63

Em seguida o autor expõe a relação de João Gilberto com sua cidade natal, Juazeiro, na Bahia.

O trecho inicia com a observação de que lugar estava ficando pequeno para acomodar o futuro herói da

Bossa Nova que ali se desenvolvia:

Juazeiro estava ficando pequena demais para Joãozinho. Aos dezoito anos, que acabara

de completar em junho de 1949, sentia-se preparado para voar longe com sua voz. […]

Nas últimas rodas de violão sob o tamarineiro, assim que decidiu ir embora de Juazeiro,

Joãozinho fazia um ar gaiato, abria os braços e, antecipando o que o esperava em

Salvador, anunciava para os amigos: “Champanhe, mulheres e música, aqui vou eu!” E

foi. (CASTRO, 1990, p. 28).

Posteriormente, o autor predestina João Gilberto como o notável precursor e idealizador do

novo ritmo musical brasileiro, ainda em Juazeiro:

Este, desde as calças curtas, quando voava em sua bicicleta pelas ruas estilo faroeste de

Juazeiro, já havia decidido preferir o caminho mais difícil: ia tornar-se João Gilberto.

(CASTRO, 1990, p. 23).

2. Por outro lado, a funcionalidade diferencial diz respeito não mais ao ser do personagem, como

na primeira característica citada acima, mas sim ao fazer do indivíduo: seu papel e sua função

dentro da narrativa. Como podemos observar, é o que acontece com a caracterização de Tom

Jobim no livro, em que seus atributos profissionais estão acima de sua personalidade. Dessa

forma, Ruy Castro descreve com maior intensidade a excelência de Jobim na vida profissional,

já que ele foi um dos responsáveis por firmar a Bossa Nova no exterior. Aqui, o autor narra, por

exemplo, o começo da sua carreira quando era apenas mais um pianista de boates, na cidade do

Rio de Janeiro:

Tom havia investido o creme da sua juventude debruçado sobre Villa-Lobos, Debussy,

Ravel, Chopin, Bach, Beethoven e Custódio Mesquita. E, além disso, já estava ficando

farto de encarar o bife com ovo do bar Far-West, no Posto 6, onde via diariamente o sol

nascer, depois que saía do trabalho na boate. (CASTRO, 1990, p. 92).

A narrativa estende-se até a conquista da vitória, ou seja, seu alcance a nível nacional e

internacional como pianista, compositor e músico da Bossa Nova:

Jobim tornou-se um nome caseiro e querido em escala planetária. Passa o ano

64

recebendo homenagens e títulos honoríficos em cidades que vão de Tóquio a São Paulo,

mas só há pouco tornou-se uma unanimidade em seu próprio país. (CASTRO, 1990, p.

419).

É fácil perceber que a qualificação diferencial e a funcionalidade diferencial são recursos

tipicamente usados nas narrativas ficcionais para ajudar na fruição da leitura. Isto porque a

hierarquização e a distinção de alguns personagens dentro da narrativa oferecem mais clareza à história

contada. Entretanto, tais ferramentas podem ser implantadas nas narrativas de não-ficção, como no

caso da biografia Chega de Saudade, possibilitando, assim, uma leitura parcialmente focalizada em

alguns poucos personagens (geralmente personalidades essenciais dentro do contexto histórico, como é

o caso de João Gilberto e Tom Jobim, que são devidamente realçados dentro da narrativa biográfica de

Ruy Castro) e, logo, mais facilmente compreendida.

Esse modo narrativo também proporciona qualidade estética à narrativa, sem deixar de lado, no

entanto, a veracidade dos fatos – elemento importante por se tratar de uma obra de não-ficção. Este

recurso consegue oferecer, para quem lê, o mesmo dinamismo proposto para as obras ficcionais

romanceadas.

4.1.2 As escolhas estilísticas

Por muito tempo, a arte de escrever bem esteve ligada ao bom emprego de figuras de

linguagens na construção do estilo dos autores em seus textos. Nas palavras de Reuter (2007, p. 110):

“O aprendizado das figuras era fundamental, e o “escrever bem” consistia largamente em saber utilizar

o repertório das figuras já consagradas.” Esta tradição romanesca ainda persiste para o enriquecimento

estilístico e retórico, também, nos textos de não-ficção. Em Chega de Saudade, Ruy Castro utiliza, com

maior frequência, três tipos de figuras de linguagens para a ornamentação do texto: o eufemismo, a

comparação e a hipérbole.

1. O eufemismo consiste em substituir termos e expressões por outras palavras mais suaves e

brandas, como nos trechos a seguir (grifo nosso):

TRECHO I:

Raimundo foi esperado na esquina por um pelotão de PM com esprit de corps, os quais,

entre outras coisas, massagearam-lhe as gengivas com o cabo das carabinas.

65

(CASTRO, 1990, p. 20).

TRECHO II:

Em compensação, ganharia um enorme problema: o gaúcho Luís Telles achou que o

espeto passara do ponto e mantou que ele procurasse outro lugar. Enfim, o pôs na rua.

(CASTRO, 1990, p. 162 e 163).

2. A comparação é uma figura de linguagem usada para substitui um coisa pela outra, pois está

baseada na semelhança de dois objetos/sentimentos, que tem traços e/ou funções comuns (grifo nosso):

TRECHO I:

Tanto o Sinatra- Farney quanto o Dick Haymes-Lúcio Alves Fan Club já tinham

encerrado suas operações há quatro anos, mas era como se os fã de Dick e Lúcio não

soubessem disto. A rivalidade continuava, num clima de Fla-Flu. (CASTRO, 1990, p.

99).

TRECHO II:

Paiva deu conta do recado, mas a impressão que se tem hoje é a de que, com seu estilo

tradicional, ele se sentia tão à vontade naquelas canções quanto um peixinho dourado

num tapete persa. (CASTRO 1990, p. 158).

3. A hipérbole, por sua vez, é o exagero intencional a qual o autor utiliza para oferecer mais

expressividade à informação, como grifado no trecho abaixo (grifo nosso):

Mas algo lhe despertou uma centelha porque, de repente, ele passou a tocar violão dia e

noite, encerrado no quarto, como se tomado por uma obsessão. No princípio, nada que

tocava fazia muito sentido: o mesmo acorde era repetido um zilhão de vezes, em

duplicatas quase perfeitas, exceto quando ele lhes acrescentava a sua voz. (CASTRO,

1990, p. 147).

O uso das figuras de linguagens é uma das ferramentas estilísticas mais predominantes dentro

da obra Chega de Saudade. O biógrafo utiliza-se de termos e expressões que ora oferecem humor, ora

ironia às determinadas situações vividas pelos personagens que compõem a narrativa biográfica. Neste

caso, o recorrente uso estético da linguagem tem claro objetivo de romancear, também, o texto de não-

ficção.

E é através desses recursos literários (figuras de pensamento, de palavras e de som) que o

biógrafo consegue envolver o leitor ao contar os acontecimentos com uma atrativa narração dos fatos.

Tal ferramenta também se limitou, por muito tempo, aos romances ficcionais. No entanto, muitos

66

jornalistas literários puderam firmar seu estilo através do constante uso de figuras de linguagens ao

longo do discurso, como é o caso de Ruy Castro.

4.1.3 A Construção da Cena

Esta ferramenta estilística, muito utilizada pelos adeptos do Novo Jornalismo (subgênero do

Jornalismo Literário), torna possível o narrador oferecer mais realismo aos acontecimentos. Ela

consiste em um relato detalhado dos fatos, fazendo com o que o leitor sinta-se assistindo uma cena de

projeção cinematográfica. Lima (1995, p. 158) denomina de “cena presentificada da ação”, onde

“presentificar significa apresentar a vida em desenvolvimento para o leitor.”

Este recurso textual está constantemente presente na narração de Chega de Saudade. Um

exemplo disso está no trecho da cena em que Billy Blanco se inspirou para compor a música “Sinfonia

do Rio de Janeiro”, em parceria com Tom Jobim:

O ônibus fez a curva na av. Princesa Isabel e, quando tomou a av. Atlântica, a montanha,

o sol e o mar de Copacabana se abriram de repente à sua frente, em cinemascope. Como

se Billy não passasse por ali há anos, todos os dias, o espetáculo que viu pela janela

caiu-lhe como uma revelação divina e uma frase musical, com letra e tudo, iluminou-lhe

a testa:

"Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a montanha, o sol, o mar."

Billy entrou em êxtase e, em seguida, em pânico. Era um achado bom demais para se

perder, e ele temia que, até chegar em casa, tivesse esquecido o que acabara de compor.

Ficou repetindo mentalmente:

"Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a montanha, o sol, o mar."

Não aguentou mais e, no meio do caminho, deu sinal para descer. O lotação parou e ele

saiu correndo em busca de um telefone. Não existiam orelhões em 1954 e, quando se

queria telefonar da rua, era preciso apelar para um botequim. Entrou no primeiro que

encontrou, na rua República do Peru, e disse ao português do caixa que se tratava de

uma emergência. (E, de certa forma, era mesmo.) O português acedeu de má vontade e

Billy ligou para Tom Jobim:

"Tom, escute isto: 'Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a

montanha, o sol, o mar'."

Mas as ligações ainda eram mais precárias do que hoje e o botequim estava apinhado

com os habituais vadios de bermudas e chinelos, discutindo futebol. E

havia ainda o inferno do trânsito. Billy teve de repetir várias vezes a frase musical, aos

67

gritos, no que todos os olhos e ouvidos voltaram-se para ele como flechas:

"'Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar! Rio de Janeiro, a montanha, o sol, o mar.'

Tom, escreve isto antes que eu esqueça! Estou indo praí!"

E assim, sem muita poesia, nasceram os primeiros compassos da belíssima "Sinfonia do

Rio de Janeiro", de Antonio Carlos Jobim e Billy Blanco. (CASTRO, 1990, p. 97 e 98,

grifo do autor).

O modo narrativo presente no trecho acima corresponde ao mostrar, também chamado de

mimese. Nela, “a narração é menos aparente, para dar ao leitor a impressão de que a história se

desenrola, sem distância, diante dos olhos, como se ele estivesse no teatro ou no cinema. Constrói-se,

assim, a ilusão de uma presença imediata” (REUTER, 2007, p. 60).

Geralmente, esse modo narrativo está presente nas cenas consideradas mais importantes para o

Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, para que o leitor consiga visualizar o acontecimento como

possivelmente se realizou. Outra característica da mimese é a reprodução dos diálogos junto com

excesso de detalhes no desenrolar da cena. Vale ressaltar que no modo narrativo mostrar, as cenas se

diferem dos sumários. Neste outro modo narrativo (sumário), a reconstrução da cena tende ao resumo e

não consegue produzir tanta visualização dos acontecimentos.

4.1.4 Os Diálogos

Assim como a construção cena a cena, os diálogos ganharam força na construção narrativa dos

Novos jornalistas. Este recurso textual, segundo Tom Wolfe6, envolve muito mais o leitor quando

comparado a qualquer outra ferramenta estilística. Isto porque ele observou que “os redatores de

revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa de erro algo que os estudos

acadêmicos demonstraram: que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer

outro instrumento. Também situa e define o personagem mais rapidamente do que qualquer outro

recurso” (apud LIMA, 1995, p. 150).

Ruy Castro explora constantemente este recurso ao longo da sua narrativa. No trecho que segue

abaixo, o diálogo conta como e porque de Vinicius de Morais não era muito bem quisto na cidade de

São Paulo por longo tempo:

6 Tom Wolfe escreveu, em 1973, um manifesto sobre o Novo Jornalismo, em que reuniu as principais características do

novo gênero jornalístico (ver tópico 1 sobre o tema).

68

Vinicius tinha ido a São Paulo resolver uns negócios e entrara no Cave para fazer hora

antes de voltar — de táxi — para o Rio. A boate estava vazia, exceto por uma mesa,

cujos integrantes o reconheceram e o convocaram em altos brados. "Eram uns grã-finos,

já meio no óleo", contou depois Vinicius. Sentou-se com eles e, como falavam alto, não

ouvia bem a música do conjunto que tocava. De súbito, Vinícius distinguiu o piano de

Johnny Alf em meio à barulheira. Levantou-se e foi bater um papo com ele. Aquilo

irritou o grupo. Quando voltou, um dos grã-finos censurou-o:

"Que mau gosto, trocar a nossa companhia por um sujeito que não toca coisa com coisa,

desafina tudo e com todas as harmonias erradas."

Vinícius o encarou:

"Um sujeito que usa essa sua cara e esse seu bigode não tem o direito de piar sobre

música. Johnny Alf é um grande compositor e você é que não tem ouvido para entender

as harmonias que ele faz."

Paulo Cotrim, relações-públicas do Cave, ouviu a discussão e veio correndo. Mas

Vinícius já tinha voltado ao piano e estava dizendo a Johnny Alf:

"Meu irmãozinho, pegue a sua malinha e se mande para o Rio de Janeiro, porque São

Paulo é o túmulo do samba." (CASTRO, 1990, p. 227).

O uso do diálogo implica em uma narrativa mais dinâmica e atrativa, conduzindo o leitor ao

mergulho total na cena descrita, como podemos notar no trecho acima. Tal recurso foi bastante

criticado por colocar em xeque a ética dos jornalistas literários ao tentar reproduzir de forma fiel (ou

seria fantasiosa?) os diálogos expostos ao longo do discurso jornalístico-literário. Os Novos-jornalistas,

no entanto, argumentaram que era possível reconstruir integralmente as falas a partir da observação

participante.

4.1.5 Reconstituição do ambiente

A reconstituição detalhada do ambiente é, segundo Vilas Boas (2002, p. 88), a ferramenta mais

utilizada pelos biógrafos adeptos do Jornalismo Literário e objetiva “reconstruir cenários,

gesticulações, hábitos, maneiras, mobiliário, vestuário, decorações, estilos de viajar, comer, arrumar a

casa; modo de educar as crianças, tratar os empregados, os superiores; sem esquecer, claro,

observações, poses, modo de caminhar e outros detalhes simbólicos que a cena e a época possam

conter.” Tal recurso também é frequentemente utilizado por Ruy Castro em Chega de Saudade.

O primeiro trecho, a seguir, descreve com riqueza de detalhes o primeiro fã-clube do Rio de

69

Janeiro criado pelas adolescentes Joca, Didi e Teresa, em um sobrado na casa onde moravam no bairro

da Tijuca, para homenagear os cantores Frank Sinatra e Dick Farney. O segundo trecho, por sua vez,

descreve o bar Villarino, onde Tom Jobim e Vinicius de Morais se conheceram em 1956.

TRECHO I:

Elas promoveram um mutirão com seus amigos do bairro e deixaram o porão estalando

de novo: enceraram o chão de tábua corrida com Parquetina; forraram o teto com uma

lona listrada de verde e branco; improvisaram um minibar com uma velha geladeira

Norge, a ser abastecida com estoques de Crush, Guará e Coca-Cola; e — o mais

importante — empapelaram as paredes com capas de discos, recortes de Life e O

Cruzeiro, fotos e tudo o mais que se referisse aos seus cantores favoritos, Frank Sinatra

e Dick Farney. (Mais tarde, a decoração seria enriquecida com uma ampliação de 1,5m

x 1m, mostrando os dois ídolos — juntos!). Perto da entrada, Joca, Didi e Teresa

emolduraram as partituras de "Night and day", de Cole Porter, e "Copacabana", de João

de Barro e Alberto Ribeiro, cortadas ao meio, formando um retângulo. (CASTRO, 1990,

p. 32).

TRECHO II:

O Villarino era (aliás, é, porque ainda existe) o de que você quisesse chamá-lo. Visto de

fora, era uma mercearia, que oferecia uvas argentinas, sardinhas do Báltico e um

oceânico estoque de bebidas importadas. Nos fundos, convertia-se numa charmosa

uisqueria, com um ligeiro clima de speakeasy. As paredes eram decoradas por desenhos

(a pincel, batom, giz e o que houvesse à mão) de artistas amigos da casa, como Pancetti,

Carlos Leão e Augusto Bandeira. Havia meia dúzia de mesas e os uísques da moda,

Haig's e Black Label, eram servidos por Jorge, o garçom, segundo o "gabarito fosfórico"

criado pelos fregueses: doses da altura de uma caixa de fósforos Beija-flor, de pé, na

vertical. (CASTRO, 1990, p.116 e 117).

O propósito principal da reconstituição do ambiente em Chega de Saudade é descrever, com

riqueza de detalhes, lugares e localidades que proporcionaram encontros importantes entre os diversos

personagens que deram vida à Bossa Nova. O recurso surge como uma maneira de resgatar, na

memória, importantes ambientes históricos que proporcionaram momentos relevantes dentro do

movimento cultural que surgia.

No primeiro trecho, por exemplo, Ruy Castro descreve o primeiro fã-clube do Rio de Janeiro. O

lugar reunia jovens que se tornaram grandes nomes do novo estilo musical como, por exemplo, João

Donato e Johnny Alf. Dessa forma, o biógrafo consegue informar para um grande público um local até

então pouco lembrado, dando, assim, sua devida importância, já que, ali, segundo Ruy Castro, foi um

70

prenúncio da Bossa Nova. O mesmo acontece com o segundo trecho: o bar Villarino ainda existe e

continua sendo um importante ponto turístico para os amantes da Bossa Nova.

4.2 Os argumentos do livro Eu não sou cachorro, não

Paulo César de Araújo, assim como Ruy Castro, objetiva em Eu não sou cachorro, não explorar

um importante movimento musical brasileiro: a música popular “cafona” que marcou os anos de

chumbo no Brasil. Entretanto, ao contrário da narrativa romanceada que é sustentada em Chega de

Saudade, Paulo César constrói um discurso dissertativo-argumentativo com o propósito de mostrar aos

leitores os motivos que levaram os cantores mais escutados do Brasil durante o período do regime

militar serem, atualmente, excluídos da historiografia musical brasileira. A carga argumentativa

presente obra pode ser explicada pelo fato do livro ser fruto de um trabalho acadêmico. A obra é uma

versão ampliada da dissertação de mestrado do autor, e apresentada ao Programa de Pós-Graduação e

Memória Social e Documento da Universidade do Rio de Janeiro. Este fato influenciou a estrutura

acadêmica na qual o livro se prende. Eu não sou cachorro, não é, também, uma crítica à elite, a

historiografia e a intelectualidade que ignorou por décadas a música romântica por taxá-la de alienada e

pouco politizada. Paulo César constrói seu discurso através do relato do estilo de vida dos cantores

“cafonas” e da análise das letras das músicas que embalaram milhares de ouvintes no Brasil.

A partir do conceito de Vilas Boas (2002), que diz que o objetivo macro da narrativa biográfica

é gerar conhecimento sobre o passado de alguém ou de alguma coisa, é que classificaremos Eu não sou

cachorro, não como um livro-reportagem-biografia, porque ele relata a vida dos artistas populares

durante o regime militar, assim como fruir do movimento musical “cafona”. Ainda podemos considerá-

lo como livro-reportagem-ensaio, visto que existe “a presença muito evidenciada do autor e de suas

opiniões sobre o tema, conduzida de tal forma a convencer o leitor a compartilhar do ponto de vista do

autor” (LIMA, 1995, p. 49). Um exemplo disso é o que o próprio autor afirma no livro: “Esta análise é

de fundamental importância porque o espaço da memória constitui permanente campo de batalha, e o

ato de esquecer pode ser resultado de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados,

ou de vencedores frente a vencidos” (ARAÚJO, 2013, p. 23).

A escritura de Eu não sou cachorro, não mantem, como já explicitado anteriormente, a mesma

tradição narrativa que envolvem as biografias clássicas ou acadêmicas. Elas são predominantemente

textos dissertativos que têm a finalidade de defender um ponto de vista sobre determinado fato ou

71

acontecimento. À vista disso, Paulo César de Araújo utiliza-se de quatros recursos argumentativos para

defender sua opinião acerca do tema: exemplos referenciais, dados estatísticos, analogias e as citações

de fontes. Recorrendo ao mesmo método empregado na análise do livro Chega de Saudade,

exemplificamos, com base no texto de Paulo César, as quatro características acima elencadas.

4.2.1 Exemplos referenciais

Os exemplos servem, primordialmente, para comprovar, esclarecer ou justificar os argumentos

propostos em um texto dissertativo-argumentativo. Basicamente, o exemplo tenta comprovar a teoria

apresentada. E esta é a primeira grande finalidade de Paulo César de Araújo, ao mostrar para os leitores

que, ao contrário do que se pensa, os cantores populares também tiveram suas músicas parcialmente

censuradas ou totalmente proibidas de circulação nas rádios durante a ditadura militar.

Para mostrar que as músicas “cafonas” também incomodavam os censores, Paulo César de

Araújo observa, por exemplo, que por causa da palavra “açoite” a canção “Animais irracionais”, da

dupla Dom & Ravel, foi totalmente proibida de tocar nas rádios. Isto porque o açoite e o porrete eram

formas de amedrontar a sociedade civil desde o começo do século e, inclusive, muito utilizada durante

o regime militar.

E o verso "um grande açoitando um pequeno" traz uma imagem que marca a história

brasileira desde o período colonial, avança pelo Império e chega até o período

republicano, quando os marinheiros liderados por João Cândido, o "Almirante Negro",

em 1910 se rebelaram contra os castigos corporais na Marinha de Guerra, no episódio

conhecido como A Revolta da Chibata. Um dos remanescentes daquela época, o ex-

marinheiro Adolfo Ferreira dos Santos, o Ferreirinha, chegou a afirmar numa entrevista

ao Jornal do Brasil que as chicotadas e lambadas que recebeu nas costas domaram seu

gênio e fizeram com que ele compreendesse o que significa ser cidadão brasileiro.

Marca indelével da nossa sociedade, o açoite ou a existência de "um grande açoitando

um pequeno" levou o historiador José Murilo de Carvalho a encontrar aí a prática

brasileira de formação do cidadão. Tomando como base o depoimento de Ferreirinha,

José Murilo definiu que, ao contrário do que ocorreu em outras nações do mundo

ocidental, a cidadania no Brasil foi implantada a porrete. E esta seria, segundo o autor, a

contribuição original brasileira à teoria e à prática da moderna cidadania. E José Murilo

acentua que “Ferreirinha virou cidadão, em suas palavras, no marmelo, na lambada, na

chibata. Outros entraram no pau, no sarrafo, no cacete, no porrete, no bordão, na

72

manguara, na vara, no cipó. Ou na borduna, a contribuição indígena à nossa pólis. Isto

no ciclo do pau-brasil. No ciclo do boi as alternativas ampliaram-se. O candidato a

cidadão tinha então à sua disposição o couro, o bacalhau, o chicote, o relho, o açoite, o

laço. As técnicas continuaram a diversificar-se. Hoje é o pau-de-arara, o choque elétrico,

o “telefone”, o afogamento, o fuzilamento simulado.” Portanto, a canção de Dom e

Ravel aponta para uma das características definidoras da sociedade brasileira: o uso

frequente do açoite e do porrete. E foi exatamente isto o que mais incomodou as

autoridades militares na época, levando-as a proibir a execução da música em todo o

território nacional. (ARAÚJO, 2013, p. 86 e 87).

Como se sabe, a censura por muito tempo esteve associada apenas aos músicos politizados

ligados à esquerda. A intenção de Paulo César de Araújo foi de, justamente, desconstruir esse

pensamento. E, para isso, como visto acima, o biógrafo expõe e analisa as canções que não passaram

pela aprovação dos censores federais porque denunciavam o autoritarismo e a segregação social

vividos por estes artistas entre 1968 e 1978.

4.2.2 Dados estatísticos

Outro recurso que baseia um texto argumentativo é a exposição de dados estatísticos

disponíveis em órgãos oficiais para comprovar alguma opinião sobre determinado fato. No caso do

livro Eu não sou cachorro, não, estes números servem de suporte para Paulo César de Araújo

comprovar, por exemplo, que no maior período de repressão social houve a consolidação da cultura de

massa e a consequente expansão fonográfica no Brasil. O biógrafo tem como fonte a Associação

Brasileira de Produtos de Discos:

Entre 1970 e 1976, a indústria do disco cresceu em faturamento, no Brasil, 1.375%. Na

mesma época, a venda de LPs e compactos passou de 25 milhões de unidades por ano

para 66 milhões de unidades. O consumo de toca-discos, entre 1967 e 1980, aumentou

em 813%. Favorecido pela conjuntura econômica em transformação, o Brasil alcançou

o quinto lugar no mercado mundial de discos. Nunca tantos brasileiros tinham gravado e

ouvido tantas canções. A música popular firmava assim como o grande canal de

expressão de uma ampla camada da população brasileira que, neste sentido, não ficou

calada, se pronunciou através de sambas, boleros e, principalmente, baladas. (ARAÚJO,

2013, p. 19)

73

Essa ferramenta argumentativa, no texto de Paulo César de Araújo, além de tentar comprovar,

com números, que a repressão social vivida pelos brasileiros levou a consequente expansão da cultura

de massa, informa, com precisão, os dados emitidos por um órgão oficial. Dessa forma, o biógrafo

tanto contextualiza a informação, fazendo um aprofundamento horizontal (quando há detalhes

quantitativos: dados e números, por exemplo) e um aprofundamento vertical (quando se procura a

causa dos acontecimentos de forma intensiva; narrando seus desdobramentos e impactos, ou seja, no

caso em questão, o porquê do crescimento fonográfico no Brasil entre 1970 e 1976).

4.2.3 Analogias

As analogias ou comparações também são recursos muito utilizados em discursos dissertativo-

argumentativos para que o autor apoie sua defesa sobre um determinado ponto de vista. No livro em

questão, Paulo César de Araújo faz uso recorrente dessa ferramenta. Ele compara as letras produzidas

pelos cantores ligados à MPB – ora sua temática central, ora seus recursos linguísticos para burlar a

censura –, com as canções dos artistas cafonas.

Um exemplo claro desse artifício utilizado é a linguagem de fresta, empregada por cantores

como Chico Buarque e Caetano Veloso. Este recurso foi largamente empregado por estes cantores para

“malandramente” driblar a censura. A partir desse conceito, veementemente associado aos cantores de

esquerda, Paulo César aponta que as canções românticas igualmente enganaram os censores ao aplicar

a linguagem de fresta em suas letras.

Uma obra que contribuiu para propagar esta visão foi “Músíca popular: de olho na

fresta”, do ensaísta Gilberto Vasconcelos. Publicado em 1977, o livro reúne um

conjunto de textos que procura acentuar o papel de resistência desempenhado naquele

momento por diversos nomes da MPB que, dentro da tradição brasileira da

malandragem, representariam, segundo o autor, os "malandros" dos novos tempos.

Baseando-se nos versos do samba “Festa Imodesta”, composição de Caetano Veloso que

tematiza a problemática da censura - "Tudo aquilo que o malandro pronuncia / que o

otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela fresta da cesta" - ,

Vasconcelos defendia como inevitável naquela conjuntura o recurso da linguagem da

fresta: aquela de que se vale o compositor popular para malandramente driblar a censura

imposta pelo regime. […] O recurso da linguagem da fresta - aquela de que

malandramente se valeram artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha para burlar o

cerco da censura - também foi utilizado naquela época pelo cantor e compositor Uday

74

Vellozo, o sambista cigano que ficaria mais conhecido com o nome artístico de Benito

di Paula. Autor de ”Retalhos de cetim”, “Charlie Brown” e vários outros sucessos

populares, este ícone do chamado sambão-jóia também teve a sua carreira musical

marcada por atos da repressão política e, como veremos, não apenas da ditadura militar

do Brasil. […] Odair José aprendeu [...] e cercou-se de cuidados na letra da canção “O

crime da Barra”, que fala de um corpo de mulher jogado na estrada (de quem seria?) e

de festas com jogo de cartas (quem as promovia?) nos embalos de sábado à noite, no

Rio. Com as estrofes numa linguagem da fresta, versos nas entrelinhas, no refrão o

compositor ainda se esquiva: "Eu não vou citar exemplo / só pra não me envolver / mas

pelo que eu já falei / acho que deu para entender..." (ARAÚJO, 1990, p. 103).

Como podemos notar, através destas comparações, o autor tenta mostrar que, além dos músicos

politizados de esquerda (a MPB, os cantores de protesto e o tropicalismo, por exemplo), os artistas

populares também utilizavam artifícios linguísticos para enganar a censura; bem como exploravam

temáticas que incomodavam os censores federais.

4.2.4 Referências às fontes na narrativa

Outro aspecto que rompe com a narrativa romanceada é a forte citação das referências/fontes

reveladas ao longo da narrativa. Paulo César de Araújo faz questão de mostrar quais foram os meios de

comunicação e/ou livros dos quais foram tiradas as informações apresentadas ao leitor. Tais referências

estão ora situadas no discurso ora localizadas em notas de rodapé.

No primeiro trecho, Paulo César cita como fontes o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo, por

exemplo. Já no segundo, ele destaca as informações coletadas na revista Veja:

TRECHO I:

Segundo relato do Jornal do Brasil, "cerca de 50 mil pessoas se colocaram ao longo das

ruas de Jundiaí para receber o presidente Garrastazu Médici" e todo o trajeto por onde

ele passou naquela manhã estava enfeitado com "faixas e cartazes e, ao longo das

calçadas, milhares de pessoas, inclusive estudantes uniformizados, agitavam bandeiras e

lançavam papéis picados". O jornal Folha de S. Paulo também descreve que

"praticamente toda a cidade foi decorada com as cores da bandeira nacional e todas as

residências ostentavam nas janelas e sacadas retratos do Presidente". (ARAÚJO, 2013,

p. 275).

TRECHO II:

75

E entre estas manifestações públicas, destaca-se a entrevista que eles concederam à

revista Veja em fevereiro de 1971. Naquele momento firmando-se como um importante

veículo formador de opinião, Veja apresentava em primeira mão ao público letrado do

país os responsáveis pela marcha Eu te amo meu Brasil, o grande sucesso daquela

temporada. Com o título de "Os fabricantes felizes da alegre vitória", aquela foi a

primeira reportagem com Dom & Ravel num veículo de circulação nacional. E hoje os

próprios artistas reconhecem que as suas declarações à revista contribuíram para formar

a imagem de mercenários e oportunistas que eles iriam carregar a partir daí.(ARAÚJO,

2013, p. 277).

Notamos que este recurso é clara tentativa de legitimar o argumento por ele sustentado. Essa

ferramenta é frequentemente usada em trabalhos acadêmicos, por exemplo. Ao todo, Eu não sou

cachorro, não possui 654 notas de rodapé, que estão apoiadas em entrevistas de jornais, revistas,

rádios, livros teóricos e arquivos de instituições.

76

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentre os subgêneros que permeiam o Jornalismo Literário, a biografia tornou-se, como vimos

nesse trabalho, uma das modalidades mais consumidas nas últimas décadas. O sucesso biográfico foi

associado, por diversas vezes, ao ingresso dos jornalistas no setor, pois esses profissionais começaram

a narrar histórias de vidas com mais dinamismo, utilizando a práxis jornalística juntamente com a

estética literária. Assim, as biografias escritas pelos jornalistas literários distanciaram-se de um texto

dissertativo-argumentativo ou expositivo, como ainda mantém a tradição das biografias clássicas ou

acadêmicas. Elas ganharam linguagens e estéticas semelhantes a um romance de ficção – embora sem

perder a veracidade dos fatos –, e conquistaram de vez o público leitor.

Como visto ao longo desse trabalho de conclusão de curso, a hibridez do discurso biográfico

dificulta sua classificação definitiva em um único campo de conhecimento. Isto porque os profissionais

que ingressaram nesta modalidade de textos fazem usos metodológicos idênticos, a exemplo dos

jornalistas e historiadores, mas diferem na maneira de narrar os fatos colhidos no decorrer da pesquisa

sobre o(s) biografado(s). Entretanto, é possível classificar algumas biografias a partir da verificação de

algumas características comuns ligadas ao Jornalismo Literário ou ao modo historiográfico de construir

narrativas biográficas.

Dessa forma, notamos que Chega de Saudade: a história ou as histórias da Bossa Nova, de Ruy

Castro, possui características suficientes para classificá-la como uma obra pertencente ao Jornalismo

Literário. Ou seja, há a marcante literariedade na construção dos personagens, nas descrições das cenas

e o constante uso de diálogos, sendo, então, pontos fortes para categorizá-la como uma biografia

jornalístico-literária. Já o livro Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar, de

Paulo César de Araújo, tem uma narrativa fortemente dissertativa-argumentativa, apoiada em exemplos

referências, dados estatísticos e comparações, sem nenhum recurso estético-linguístico. Assim,

podemos afirmar que essa biografia ainda segue a tradição clássica ou acadêmica no seu modo de

narrar vidas.

Foi um pouco para entender e explicar a hibridez biográfica, ao menos na análise comparativa

das duas obas, que verificamos que existem pelo menos dois tipos de escrita de vidas: as que obedecem

aos moldes acadêmicos, muitas vezes realizadas por historiadores, e as que são escritas através das

ferramentas de que se beneficiam os jornalístas literários.

Contudo, nenhuma dessas biografias analisadas poderiam existir caso seus biografados

entrassem na justiça para que elas fossem retiradas de circulação. A recente polêmica das biografias

77

(ver item 4.3) inclui diversos direitos e temas intrínsecos ao fazer biográfico. O primeiro deles é o

direito à liberdade de expressão em oposição ao direito à privacidade. A questão é a seguinte: o

biografado tem ou não o direito de impedir que sua vida seja exposta através de um livro? Até o

presente momento, os artigos 20 e 21 do Código Civil brasileiro de 2002 dizem que sim.

De outra parte, conforme, como relatamos, um trabalho biográfico sério leva, muitas vezes,

anos para chegar até as livrarias. O biógrafo tem um dever árduo de realizar uma vasta pesquisa, fazer

centenas de entrevistas, coletar informações e analisar dados, por exemplo. Esse tipo de profissional

não deve ser confundido com escritores ou jornalistas sensacionalistas que se aproveitam de

determinado fato privado para montar o circo midiático (vale ressaltar que esse tipo de profissional é

minoria no ramo biográfico). Portanto, é indevido que as biografias ainda hoje no Brasil precisem de

autorização prévia dos biografados ou de seus herdeiros para que sua história, notável, seja lida pela

sociedade. O biografado, ao se tornar dono da sua própria história, poderá camuflar ou suavizar dados e

informações preciosas para uma sociedade.

É importante lembrar que a biografia é, antes de tudo, um produto social, que resgata a memória

de personagens singulares que ajudaram a formar uma determinada nação. Logo, a exposição das

identidades servirão, também, para o conhecimento de épocas, costumes, aspectos sociais, econômicos

e políticos, por exemplo. A biografia, através das informações contidas em suas páginas, nos oferece

explicações e conhecimentos dos acontecimentos históricos e fenômenos sociais das mais diversas

vertentes para a compreensão de diferentes épocas e em distintas sociedades.

78

6 REFÊRENCIAS

6.1 Referências impressas

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: musica popular cafona e ditadura militar. 8.ed.

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