doc: uma vida esquecida - a anônima

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DOC: Uma vida esquecida Grazi grazimancini.blogspot.com

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Para documentar aquilo que foi esquecido, ou aquilo que está sendo esquecido, ou aquilo que nunca é lembrado. Para ser lido com emoção.

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DOC: Uma vida esquecida

Grazigrazimancini.blogspot.com

Por favor, diga seu nome e sua idade.

Mariana Costa dos Santos, 37 anos.

Poderia nos contar sua relação com ela?

Sim, pode ser. Éramos muito ligadas, pelo menos depois de sermos

apresentadas. Sabe, minha mãe nunca quis que eu tivesse contato com ela, a

minha avó. Achava que ela era maluca. Na verdade, elas nunca se deram

muito bem e acho que minha mãe descontava a raiva que tinha me impedindo de conhecê-la. Aí, um dia, meu pai ficou cansado daquilo que, aliás, ele

sempre achou um absurdo, e disse “Ou você arruma essa situação ou eu

mesmo arrumo para você”. Foi assim que, aos 7 anos, fui apresentada à ela.

Não me disseram, assim, de cara, que ela era a minha avó. Na verdade, não

me comentaram nem mesmo o que ela era. Acharam que era melhor ir com

calma. Até que, finalmente, no meu aniversário de 8 anos (que foi mais ou

menos uns 3 meses depois que eu a conheci, se não me falha a memória), que

meus pais acabaram por me contar que aquela mulher maravilhosa era a minha avó. Acho que a emoção era tanta que ali mesmo, no meio daquela

multidão passando de um lado pro outro, que a gente criou esse laço que

permaneceu tão forte. Tanto é que, até hoje, não entendo como minha mãe

conseguia odiá-la tanto.

Por que sua mãe não gostava dela?

Não sei. Nem meu pai sabe. Desconfio que seja por ela nunca ter

acreditado nas doutrinas católicas, já que ela era espírita. Mas prefiro acreditar

que minha mãe jamais teria deixado de gostar da própria mãe por um motivo

tão bobo.

Qual foi a reação da sua mãe quanto à sua relação com sua avó?

Ah, ela simplesmente pirou. Achava um absurdo. Aliás, depois que

descobri que ela era a minha avó, passei a ir quase que todos os dias na casa

dela. Passava a tarde inteira lá. Geralmente eu ia pra casa dela assim que saía

da escola, mas às vezes eu ainda passava em casa para almoçar (mas isso só

acontecia quando a minha mãe estava em casa).

E é claro que era uma delícia ficar a tarde inteira com ela, né? E minha

avó adorava me bajular: fazia um docinho, um salgado ou até mesmo uma roupinha para mim. E a gente variava as atividades de tarde: a gente

conversava, cozinhava, às vezes costurávamos, líamos ou, então, assistíamos

TV e brincávamos. Mas isso era só depois de ter feito a lição de casa (e ela

adorava me ajudar com os exercícios).

E a minha mãe, como já era de se esperar, brigava comigo, gritava, e

até chegou a fazer intrigas ridículas (mas isso só aconteceu quando eu era

mais velha).

E o que você fazia?

Tinha vezes que eu chegava a brigar com ela, mas era vencida pelo

cansaço. Outras vezes eu simplesmente não a ouvia, ia pro quarto ou qualquer

outra coisa do tipo.

Até meu pai entrava no meio dessa loucura: tentava conversar com ela e

mostrar que não havia problema algum na nossa relação. Mas até parece que

iria adiantar alguma coisa.

E a sua avó por parte de pai não ficava com ciúmes?

Na verdade, eu nunca cheguei a conhecê-la. Ela morreu aos 63 anos,

afogada. Sabe, chega a ser meio engraçado: logo ela que era uma ótima atleta!

E a última competição da qual participou, onde ela se afogou, foi no mar. Por

algum motivo, um dos atletas se atrapalhou e acabou chutando a cabeça dela.

Minha avó desmaiou e, quando chegaram para socorrê-la, ela já tinha ido para uma melhor.

Sinto muito. Aceita um lenço?

Não, obrigada. Estou bem.

Sua mãe, em algum momento, parou de agir daquele modo?

Como se ela fosse perder a oportunidade de brigar comigo. Na verdade,

mesmo depois que saí de casa, ela continuou com as mesmas picuinhas.

Sabe, o mais engraçado de tudo é que, apesar de ter tido, sempre,

pouquíssimo tempo para passar comigo, por trabalhar o dia inteiro, ela nunca queria conversar comigo ou passar um momento em família de modo

agradável.

E sua avó, o que fazia?

Tentava falar com a minha mãe, em particular. Mas quando estávamos

sozinhas, a gente se esquecia dela. Aliás, eu até passei a me sentir mais à

vontade para falar sobre a minha vida particular com a minha avó do que com a

minha mãe.

Eu chegava a apresentar todo mundo que eu conhecia para a minha avó. E quando podia, apresentava apenas alguns pingos de pessoas para a

minha mãe.

Quando sua avó começou a ficar doente?

Não sei exatamente. Acho que foi um processo. No início, ela se

esquecia de onde estavam as coisas, depois de quem eram aquelas pessoas

que falavam com ela todos os dias, até que chegou ao ponto de apontarmos o

rosto dela nas fotos e ela ficar olhando, procurando se encontrar. Mas de nada

adiantava.

Uma coisa engraçada foi que não importava o quanto a gente tentava

lembrá-la de quem era a mamãe que ela não lembrava. Aliás, chegava a tratar

minha mãe com estranheza e impaciência.

E como vocês cuidavam da sua avó?

Bom, a gente não tinha tempo para dar tanta atenção a ela. Pelo menos

não tanto quanto ela precisava.

Assim, toda vez que eu tinha um tempo livre, procurava por uma casa de

abrigo aos idosos. Passei quase 3 meses pesquisando, porque os preços eram

salgados demais para o nosso bolso.

Enfim, consegui encontrar o “Lar Lôlo”, onde minha avó passou a morar.

Eu dividia o valor da mensalidade com a minha mãe e meu irmão (porque além

desse abrigo, ainda tinham os remédios e tratamentos que eram uma fortuna).

Eu a visitava às segundas-feiras, quartas, quintas, sábados e, aos

domingos, eu a levava para a casa da mamãe, pra almoçarmos juntos.

Sabe, eu sempre ficava pensando “será que, mesmo não se lembrando

de nada, ela está feliz?”.

Às vezes, quer dizer, na maior parte do tempo, ela ficava olhando pro

nada, como se ali ela estivesse vendo algo, lembrando de alguma cena ou até

criando uma. Era mais provável que ela estivesse apenas tendo mais um

“momento branco”.

Ela chegava a ficar falando sozinha. Raramente conversava comigo,

mas quando isso acontecia, ela quase nunca me tratava como a neta adulta

que sou: eu virava uma personagem, a filha dela, uma criança qualquer...

Minha avó se tornou numa pessoa imprevisível.

E o que aconteceu?

Quando ela completou 83 anos, ela morreu. Acho que ela viveu doente

por 6 anos.

Ela morreu dormindo. Prefiro pensar que estava bem, feliz até, e que

não sentiu dor alguma.

Fizemos um velório bem simples, mas bonito. Só tinha a gente, alguns

primos próximos e os amigos da vovó, mas apenas os mais chegados.

Nós, quer dizer, eu e minha mãe decidimos cremá-la. Jogamos as

cinzas na fazenda que a gente ia todo ano, na páscoa.

Acho que ela finalmente está feliz, novamente.

Você tem filhos?

Tenho, o Edu. Ele já tem 3 anos, acredita?

Você vai deixá-lo conhecer a avó?

Ele já conhece. Apesar de não aprovar a maior parte das ações da

minha mãe, ela é a minha mãe, e não há nada que possa mudar isso.

Além do mais, não tenho o direito de proibi-lo de conhecê-la. E quando

ele crescer, vai conhecer a minha história, e não vou esconder nada, afinal, ele

tem que saber quem a avó dele realmente é.

E quem ela é?

Uma mulher que, apesar da idade, continua perdida e achando que tem

o direito de controlar as pessoas ao seu bel prazer.

E apesar de tudo, ela ainda consegue ser uma boa pessoa: basta você

saber como lidar com ela e quem ela é.

Para finalizar, poderia me dizer o nome completo da sua avó e da

sua mãe?

Minha avó se chama Laís Oliveira da Costa e a minha mãe é a Fernanda

Costa Silva.

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