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    Capa Americana

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    Dr. Samuele Bacchiocchi (1938-2008) foi o primeiro no-catlico a se formar na Pontifical Gregorian University, em Roma, tendo recebido uma medalha de ouro do Papa Paulo VI por conquistar a distino acadmica summa cum laude por sua tese: Do Sbado Para o Domingo: Uma investigao histrica do surgimento da observncia do domingo no cristianismo primitivo. Nesse trabalho, Bacchiocchi, um adventista do stimo dia, mostrou que no h nenhuma ordem escriturstica para mudar ou eliminar a guarda do sbado e apontou o papel preponderante da Igreja Catlica na efetivao dessa mudana. O professor indicou ainda o anti-judasmo e a adorao pag ao Sol como fatores de abandono do sbado e influncia na adoo do domingo. Ele evidenciou o anti-judasmo latente nos escritos de alguns lderes cristos do segundo sculo que testemunharam e participaram no processo de separao do judasmo que levou a maioria dos cristos a abandonar o sbado e adotar o domingo como novo dia de adorao. Autor de vrios livros, era professor de teologia aposentado da Andrews University, no Estado do Michigan, e faleceu em 20 de dezembro de 2008, um sbado.

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    DO SBADO PARA O DOMINGO Uma Investigao do Surgimento da Observncia do Domingo

    no Cristianismo Primitivo

    PONTIFICIA UNIVERSITAS GREGORIANA FACULTAS HISTORIAE ECCLESIASTICAE

    FROM SABBATH TO SUNDAY A HISTORICAL INVESTIGATION OF THE RISE OF SUNDAY OBSERVANCE IN

    EARLY CHRISTIANITY

    SAMUELE BACCHIOCCHI

    Vidimus et aprobamus ad normam Statutorum Universitatis

    Romae, ex Pontifcia Universitate Gregoriana die 25 iunii 1974

    R. P. VICENZO MONACHINO, S. I. R. P. LUIZ MARTINEZ-FAZIO, S. I.

    Imprimatur Imprimatur Imprimatur Imprimatur Romae, die 16 Iunii 1975

    R. P. HERV CARRIER, S. I. Rector Universitatis

    Con approvazione Del Vicariato di Roma In data 17 giugno 1975

    _____________________________________________________

    THE PONTIFICAL GREGORIAN UNIVERSITY PRESS, ROMA, 1977

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    COMENTRIOS A RESPEITO DO LIVRO E DO AUTOR

    UMA OBRA QUE SE RECOMENDA A SI MESMA...

    uma obra que se recomenda a si mesma, em virtude do rico contedo e do vasto horizonte com que foi concebida e executada. Isto indica a habilidade singular do autor em englobar vrios campos a fim de capturar aqueles aspectos e elementos relacionados ao tema em investigao. A orientao estritamente cientfica da obra no impede que o autor revele suas profundas preocupaes religiosas e ecumnicas. Ciente de que a histria da salvao no conhece fraturas, mas continuidade, ele encontra, na redescoberta dos valores religiosos do sbado bblico, um auxlio para restaurar ao dia do Senhor seu antigo carter sagrado.

    Vincenzo Monachino, S. J. Chairman, Departamento de Histria Eclesistica. Pontifcia Universidade Gregoriana Redator, Miscellanea Historiae Pontificiae

    UM MARCO MILENAR POR MUITO TEMPO...

    Para aqueles interessados em saber como o Cristianismo veio a observar o domingo como dia de adorao, em lugar do sbado, este estudo impressionante feito por um erudito Adventista do Stimo Dia complementando sua dissertao doutoral com um imprimatur certamente ficar como marco milenar por muito tempo. A bibliografia de fontes principais e secundrias cobre quase 15 pginas.

    The Christian Ministry, Chicago

    TENTATIVA NOVA, PESQUISADA COM PROFUNDIDADE...

    Na ltima dcada, mais ou menos, as Igrejas crists tm feito grandes progressos ao purificar seus catequticos e teologia de um anti-judasmo histrico. Porm, com exceo de alguns termos tais como judeus perdidos, pouca ateno tem sido dada liturgia crist. Pode ser que uma das mais poderosas formas de anti-judasmo na Igreja hoje seja a prpria estrutura de sua liturgia. Por isso, Do Sbado Para o Domingo deve ser recebido como uma tentativa nova, pesquisada com profundidade, para iniciar as discusses nesta rea vital. um campo que necessita de nossa ateno. E no se poderia achar melhor ponto de partida para tal explorao do que o ltimo volume do Dr. Bacchiocchi. Eu o recomendo altamente.

    John T. Pawlikowski, OSM, Ph.D. Chairman, Departamento de Estudos Histricos e Doutrinrios Unio Teolgica Catlica

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    UMA PESQUISA COMPLETA E LABORIOSA...

    uma pesquisa completa e laboriosa, a qual todo investigador, no futuro, ter que levar em considerao.

    Bruce M. Metzger Professor do Novo Testamento Seminrio Teolgico de Princeton

    POSITIVA E COMPULSRIA...

    Para mim, o Dr. Samuele Bacchiocchi fez uma contribuio muito importante ao estudo de uma questo muito central na histria da religio bblica. Sua obra um estudo bastante completo e cuidadosamente pesquisado, com cobertura completa de todas as fontes principais e da maioria das secundrias que tratam dele. Conquanto no possamos esperar que a questo se resolver em termos puramente acadmicos, uma avaliao positiva e compulsria da evidncia deveria ser da maior importncia para toda a pesquisa e estudo do assunto.

    David Noel Freedman, Professor de Estudos Bblicos Universidade de Michigan Redator, Arquelogo Bblico

    DE GRANDE VALOR PARA JUDEUS...

    Com laboriosa erudio, o Dr. Bacchiocchi tem reavaliado a transio da observncia do sbado para o domingo na histria da Igreja. Ao mesmo tempo, sua anlise teolgica procura levar os cristos contemporneos a uma apreciao do sbado bblico, que os profetas bblicos viam como um dia, no de mau pressgio, mas de deleite honrado e santo ao Senhor. Contra o pano de fundo do rigor exagerado nas restries sabticas entre algumas seitas judaicas, agora enfatizadas pelos achados do Mar Morto, os rabinos farisaicos emergem como artistas espirituais que utilizavam os meios de comunicao de seu tempo para modelar um dia de devoo e iluminao. A contribuio de Bacchiocchi histria crist deve provar-se de grande valor aos judeus que, de sua especial posio vantajosa, poderiam ganhar um vislumbre mais profundo de sua herana halquica.

    Joseph M. Baugartem Professor de Leis e Instituies Rabnicas Baltimore Hebrew College

    IMPLICAES SURPREENDENTES...

    O trabalho bem pesquisado e bem escrito do Dr. Bacchiocchi combina erudio, devoo e um esprito conciliatrio. Ele argumenta que a compreenso do domingo como sbado cristo encontra suas razes, no no Novo Testamento, absolutamente, mas em complexas presses histricas e ideolgicas no perodo patrstico. Se esta controvrsia do Sr. Bacchiocchi est corretae acredito que estejaento deve-se, ou segui-lo e apoiar um sbado continuado (do

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    stimo dia), ou estudar-se novamente os documentos principais a fim de chegar a alguma outra concluso. Pessoalmente inclino-me para a ltima; seja como for, as implicaes so surpreendentes, no s em virtude da prpria questo sbado/domingo, mas tambm por causa do problema maior do relacionamento entre o Velho e o Novo Testamento.

    Don A. Carson Deo, Seminrio Teolgico Batista do Noroeste Vancouver, B.C. Redator do prximo simpsio sobre A Questo Sbado/Domingo.

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    NDICE

    Prefcio ......................................................................................................................................... 12

    CAPTULO I- INTRODUO - A Atual Crise do Dia do Senhor ............................................. 13 O Problema e os Objetivos desse Estudo ..................................................................................... 14 Notas e Referncias ...................................................................................................................... 16

    CAPTULO II - CRISTO E O DIA DO SENHOR ...................................................................... 18 A Tipologia do Sbado e seu cumprimento messinico ............................................................... 18 A Atitude de Cristo para com o Sbado ....................................................................................... 21 As Primeiras Interpretaes Patrsticas ....................................................................................................... 22 As Primeiras Curas no Sbado .................................................................................................................... 22 O Homem com a Mo Ressequida .............................................................................................................. 23 A Mulher Enferma ...................................................................................................................................... 25 O Paraltico e o Homem Cego .................................................................................................................... 27 A Colheita de Espigas ................................................................................................................................. 31 O Sbado na Epstola aos Hebreus ............................................................................................... 37 Uma Admoestao de Cristo Quanto ao Sbado .......................................................................... 40 Concluses .................................................................................................................................... 41 Notas e Referencias ...................................................................................................................... 43

    CAPTULO III AS APARIES PS-RESSURREIO E A ORIGEM DA OBSERVNCIA DO DOMINGO ............................................................................................... 50 A Ressurreio .............................................................................................................................. 50 A Santa Ceia ................................................................................................................................. 50 A Pscoa Hebraica ....................................................................................................................... 52 As Aparies do Cristo Ressurreto ............................................................................................... 54 Notas e Referncias ....................................................................................................................... 56

    CAPTULO IV TRS TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO E A ORIGEM DO DOMINGO ....................................................................................................................................................... 61 I Corntios 16:1-3 .......................................................................................................................... 61 Atos 20:7-12 ................................................................................................................................. 65 Apocalipse 1:10 ............................................................................................................................ 70 O Domingo ................................................................................................................................................. 71 O Domingo de Pscoa ................................................................................................................................ 71 O Sbado do Stimo dia.............................................................................................................................. 71 O Dia do Senhor ........................................................................................................................................ 72 Concluso ..................................................................................................................................... 72 Notas e Referncias ..................................................................................................................... 73

    CAPTULO V JERUSALM E A ORIGEM DO DOMINGO ................................................ 78 A Igreja de Jerusalm no Novo Testamento ................................................................................ 79 O Lugar das Reunies Crists .................................................................................................................... 79

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    A Hora das Reunies Crists .................................................................................................................... . 81 A Orientao Teolgica e a Igreja de Jerusalm ........................................................................................ 82 A Igreja de Jerusalm Depois de 70 A.D .................................................................................................... 86 Os Ebionitas ................................................................................................................................................ 87 Os Nazarenos .............................................................................................................................................. 88 A Maldio dos Cristos ............................................................................................................................. 89 A Poltica de Adriano ................................................................................................................................. 90 Notas e Referncias ...................................................................................................................... 92

    CAPTULO VI - ROMA E A ORIGEM DO DOMINGO ........................................................... 99 Predominncia dos Conversos Gentios ........................................................................................ 99 Primeiras Diferenas entre Judeus e Cristos ............................................................................. 100 Sentimentos e Medidas Anti-Judaicas ........................................................................................ 100 Medidas e Atitudes Romanas .................................................................................................................... 101 Medidas e Atitudes Crists ....................................................................................................................... 103 A Igreja de Roma e o Sbado Judaico ........................................................................................ 105 Roma e a Controvrsia Sobre a Pscoa ...................................................................................... 110 A Origem do Domingo de Pscoa ............................................................................................................ 110 O Domingo de Pscoa e o Domingo Semanal .......................................................................................... 111 O Primado da Igreja de Roma .................................................................................................... 113 Concluso ................................................................................................................................... 114 Notas e Referncias .................................................................................................................... 116

    CAPTULO VII - ANTI-JUDASMO NOS PAIS DA IGREJA E ORIGEM DO DOMINGO ..................................................................................................................................................... 132 Incio .......................................................................................................................................... 132 Barnab ....................................................................................................................................... 133 Justino Mrtir .............................................................................................................................. 136 Concluso ................................................................................................................................... 140 Notas e Referncias .................................................................................................................... 141

    CAPTULO VIII - O CULTO DO SOL E A ORIGEM DO DOMINGO ................................. 147 O Culto do Sol e a Semana Planetria Antes de 150 A.D .......................................................... 148 O Culto do Sol .......................................................................................................................................... 148 A Semana Planetria ................................................................................................................................. 149 Valorizao do Dia do Sol ........................................................................................................................ 150 Reflexos do Culto do Sol no Cristianismo ................................................................................. 152 Cristo, o sol ............................................................................................................................................... 152 Orientao em Direo ao Leste ............................................................................................................... 153 A Data do Natal ........................................................................................................................................ 154 O Dia do Sol e a Origem do Domingo ....................................................................................... 155 Concluso ................................................................................................................................... 158 Notas e Referncias .................................................................................................................... 160

    CAPTULO IX - A TEOLOGIA DO DOMINGO ......................................................................170 A Ressurreio ............................................................................................................................ 170 A Criao .................................................................................................................................... 171 O Oitavo Dia ............................................................................................................................... 173

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    Batismo ....................................................................................................................................... 174 A Semana Csmica ..................................................................................................................... 174 Continuao do Sbado .............................................................................................................. 175 A Superioridade do Oitavo Dia .................................................................................................. 176 A Separao do Oitavo Dia do Domingo ................................................................................... 180 Concluso ................................................................................................................................... 183 Notas e Referncias .................................................................................................................... 185

    CAPTULO X - RETROSPECTIVA E PERSPECTIVA .......................................................... 192 Notas e Referncias .................................................................................................................... 202

    APNDICE - PAULO E O SBADO ....................................................................................... 205 A Interpretao Tradicional de Colossenses 2:16 e 17 ............................................................................. 205 A Heresia Colossense ............................................................................................................................... 206 O Que Foi Cravado na Cruz? ..................................................................................................... 208 A Atitude de Paulo Para Com o Sbado ................................................................................................... 210 O Sbado em Romanos e em Glatas ....................................................................................................... 216 Concluso ................................................................................................................................... 218 Notas e Referncias .................................................................................................................... 220

    Observao sobre o ndice e as Notas de Referncia: Este livro at a presente data no foi publicado no Brasil. Esta uma edio particular. Durante a formatao particular, as pginas tiveram outra numerao, que no a utilizada na obra original. Neste sentido, o ndice foi refeito para que indicasse a correta numerao das pginas. As Notas de Referncia seguem a numeraao feita pelo autor. Como esta obra cedo ou tarde ser lanada no Brasil, e revisada por alguma editora, no fizemos uma reviso completa. Assim, nos desculpe por qualquer erro que possa ser encontrado.

    1 de Fevereiro de 2009.

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    ABREVIATURAS:

    ANF The Ante-Nicene Fathers. 10 vols. Grand Rapids, Michigan: Wm. B. Eerdmans. NPNF Nicene and Post-Nicene Fathers. First and Second Series, Grand Rapids, Mich:

    Wm. B. Eerdmans, 1971reprint. AUSS Andrews University Seminary Studies. Berrien Springs, Michigan. BZUNW Beiheft zur Zeitschrift fr die neutestamentiche Wissenschaft, Berlin. CCL Corpus Christianorum. Series Latina. Turnholti: Typographi Brepols Editores

    Pontificii, 1953ss. CD Damascus Document. CIL Corpus Inscripionum Latinorum, ed. A. Reimer, Berlin: apud G. Reimerum, 1863-

    1893. CSCO Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, Louvain: Secretariat du Corpus

    SCO. CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum. Vienne: C. Geroldi filium,

    1866ss. EIT Enciclopedia Italiana Trecani, Milano, Roma, 1929ss. GCS Die griechischen christlichen Scriftstel ler der ersten drei Jahrhunderte. Berlin:

    Akademie-Verlag, 1887ss. HE Historia Ecclesiastica. JBL Journal of Biblical Literature. Philadelphia. LCL Loeb Classical Library. MANSI Sacrorum Conciliatorum Nova et AmplissimaCollectio, ed. Joannes Dominicus

    Mansi. Graz, Austria: Akademische Dfruck U. Verlagsanstalt, 1960-1961. NST New Testament Studies. Cambridge. PG Patrologie cursus completus, Series Graeca, ed. J. P. Migne Editorem, 1857ss. PL Patrologie cursus completus, Series Latina, ed. J. P. Migne. Paris: Garnier Fratres et

    J. P. Migne, 1844ss. PS Patrologia Syriaca SS. Patrum, Doctorum, Scriptorumque Catholicorum, ed. R.

    Graffin. Paris: Firmin-Dodpt et socii, 1894ss. SC Sources Chretiennes. Collection directed by H. de Lubac and J. Danielou. Paris:

    Editions du Cerf, 1943ss. SB Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, ed. H. L. Strack and P.

    Billerbeck. Munich, 1922ss. TDNT Theological Dictionary of the New Dictionary, eds. G. Kittel e traduzido por G.

    W. Bromiley. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1964ss. TU Teste und Intersuchungen zur Geschichte der altchristlichen Literatur, encontrado

    por O. von Gebhardt e A. Harnack, Leipzig, 1882ss. VT Vetus Testamentum. Leiden.

    Obs.: Os nomes dos chamados Pais da Igreja e outros personagens antigos citados no livro tero normalmente a grafia de tais nomes mantidas em ingls nas Notas e Referncias quando associados diretamente com obras especificamente citadas. Noutros casos, tero sua grafia mais conhecida em portugus. Exemplo: Justino Mrtir/Justin Martyr. Duas letras s acompanhando um nmero indicar a seqncia de pginas que se segue primeira indicada. Assim, tem o sentido de e pginas seguintes. Exemplo: 117ss pgina 117 e seguintes. O Revisor.

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    PREFCIO

    A atrao que o problema da origem e observncia do domingo exerceu sobre os estudantes de Histria da Igreja Primitiva nas ltimas duas ou trs dcadas no est, de modo algum, desgastada. Isto, cremos, deve-se a duas razes principais. Por um lado, a sempre crescente no-observncia do Dia do Senhor em resultado da transformao radical do ciclo semanal, causada pela complexidade da vida moderna e pelo progresso cientfico, tecnolgico e industrial, leva a um srio reexame do significado do domingo para o cristo hoje. Para realizar uma correta reavaliao teolgica do domingo necessrio investigar sua base bblica e sua origem histrica. Por outro lado, os vrios estudos sobre este assunto, embora excelentes, no oferecem uma resposta totalmente satisfatria em virtude da falta de considerao de alguns dos fatores que na Igreja dos primeiros sculos contriburam para o surgimento e desenvolvimento de um dia de adorao diferente do sbado judaico.

    Por esta razo, o novo trabalho do Dr. Samuele Bacchiocchi muito oportuno. Ele levanta novamente o estudo deste sugestivo tema e, ao analisar criticamente os vrios fatoresteolgicos, polticos e pagosque de alguma modo influenciaram a adoo do domingo como um dia de culto cristo, ele se esfora para proporcionar um quadro completo da origem e progressiva configurao do domingo at o quarto sculo. uma obra que se recomenda a si prpria pelo seu rico contedo, o rigoroso mtodo cientfico, e o vasto horizonte com o qual foi concebida e executada. Isto uma demonstrao da singular habilidade do autor em abranger vrios campos a fim de captar os aspectos e elementos relacionados com o tema que est sendo investigado.

    Mencionamos com prazer a tese que Bacchiocchi defende quanto ao bero do culto dominical: Para ele mais provvel que este culto tenha surgido, no na primitiva Igreja de Jerusalm, bem conhecida por sua profunda ligao s tradies religiosas dos judeus, mas na Igreja de Roma. O abandono do sbado e a adoo do domingo como o dia do Senhor so o resultado de uma interao de fatores cristos, judaicos e pagos. O evento da ressurreio de Cristo, ocorrido neste dia, tem naturalmente uma importncia significativa. Seguindo a ordem da histria da Redeno, o autor comea sua investigao com a tipologia messinica do sbado no Velho Testamento e prossegue examinando como isto encontra seu cumprimento na misso redentora de Cristo.

    A estrita orientao cientfica da obra no permite ao autor revelar seu profundo interesse religioso e ecumnico. Cnscio de que a histria da salvao no trata de rupturas mas de continuidade, ele encontra na redescoberta dos valores religiosos do sbado bblico uma ajuda para restaurar o antigo carter sagrado do Dia do Senhor. Esta , na realidade, a exortao que j no quarto sculo os bispos dirigiram aos crentes, ou seja, que no deviam passar os domingos em passeios ou apreciando espetculos, mas sim santific-los, ao assistir a celebrao eucarstica e praticar atos de piedade. (St. Ambrose, Exam. III 1.1).

    Roma, 29 de junho de 1977 Vincenzo Monachino, S.J. Presidente do Depto. de Histria Eclesistica da Pontifcia Universidade Gregoriana

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    CAPTULO I INTRODUO - A ATUAL CRISE DO DIA DO SENHOR

    O ciclo de seis dias de trabalho e um de adorao e repouso, no obstante o legado da histria dos hebreus, tem, felizmente, prevalecido atravs de quase todo o mundo. De fato, o culto judeu e cristo encontra sua expresso concreta em um dia, a cada semana, no qual a adorao a Deus torna-se possvel e mais significativa pela interrupo das atividades seculares.

    Recentemente, entretanto, nossa sociedade tem sofrido muitas transformaes radicais, por causa de suas realizaes tecnolgicas, industriais, cientficas e espaciais. O homem moderno, como afirma Abraham Joshua Herschel, vive sob a tirania das coisas do espao.1 A crescente disposio tempo e lazer, causados pela diminuio da jornada de trabalho, tende a alterar no apenas o ciclo de seis dias de trabalho e um de repouso, como tambm os valores religiosos tradicionais, e at mesmo a santificao do dia do Senhor. Por esta razo o cristo hoje tentado a considerar o tempo como uma coisa que lhe pertence, algo que ele pode utilizar para seu prprio prazer. As obrigaes de culto, se no totalmente negligenciadas, so freqentemente reduzidas e facilmente dispensadas conforme os interesses da vida. A noo bblica do santo sbado, entendida como uma ocasio de cessar as atividades seculares a fim de experimentar as bnos da Criao-Redeno por meio da adorao a Deus e do trabalho desinteressado pelos necessitados est cada vez mais desaparecendo dos planos do cristo.

    Conseqentemente, se algum observa a presso que nossas instituies econmicas e industriais esto exercendo para obter a utilizao mxima das instalaes industriaisprogramando turnos de trabalho que ignoram qualquer feriado fcil compreender que o plano a ns transmitido de uma semana de sete dias, com o seu dia de repouso e adorao, pode sofrer alteraes radicais.

    O problema constitudo por uma geral concepo errnea do significado do santo dia de Deus. Muitos cristos bem intencionados consideram a observncia do domingo como uma HORA de adorao em vez de O SANTO DIA do Senhor. Uma vez cumpridas suas obrigaes de culto, muitos, em boa conscincia, gastam o restante do domingo ganhando dinheiro ou se divertindo.

    Algumas pessoas, preocupadas com a profanao generalizada do dia do Senhor, esto desejando uma legislao civil que torne ilegais todas as atividades no compatveis com o esprito do domingo.2 Para que esta legislao seja aceita at pelos no-cristos, algumas vezes tem-se apelado para a necessidade de preservar os recursos naturais. Um dia de total descanso para homens e mquinas ajudaria a salvaguardar nossas reservas de energia e o precrio meio ambiente.3 As necessidades sociais ou ecolgicas, entretanto, embora possam encorajar o descanso no domingo, dificilmente conseguiro levar a uma atitude de adorao.

    No se conseguiriam melhores resultados educando nossas comunidades crists para que compreendessem o significado bblico e a experincia do santo dia de Deus? Entretanto, para que isto seja possvel, indispensvel, antes de tudo, articular claramente o fundamento teolgico da observncia do dia de repouso. Quais so as razes bblica e histrica para a guarda do domingo? Pode este dia ser guardado como legtima substituio do sbado judaico? Pode o quarto mandamento ser corretamente invocado para proibir sua observncia? Pode o domingo ser considerado como a hora de culto em vez de o santo dia de repouso do Senhor?4

    Para dar uma resposta a esses problemas vitais indispensvel verificar, antes de mais nada quando, onde, e por que o domingo surgiu como um dia de culto cristo. Somente aps reconstruir este quadro histrico e identificar os principais fatores que contriburam para a origem

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    do domingo, ser possvel prosseguir com a tarefa de reconsiderar a validade e o significado da observncia do domingo.

    O Problema e Objetivos Deste Estudo

    O problema da observncia do domingo entre os cristos primitivos tem despertado, em poca recente, o interesse dos estudiosos de diferentes crenas religiosas. Os numerosos estudos cientficos, inclusive vrias teses doutorais, que tm aparecido nas duas ltimas dcadas, so uma clara evidncia do renovado interesse e esforo despendido para encontrar uma resposta mais satisfatria para a questo sempre intrigante da poca, lugar e causas da origem da guarda do domingo.5

    Em estudos recentes, entretanto, a tendncia tem sido tornar a observncia do domingo ou uma criao exclusiva e original da comunidade apostlica de Jerusalm6 ou uma adaptao pag do dies solis-dia do sol com a adorao ao sol a ele relacionada.7 Mas qualquer investigao e concluso que leve em conta apenas uns poucos fatores causais evidentemente unilateral, no equilibrada. Se reconhecemos, como J. V. Goudoever, que de todas as partes da liturgia as festas so talvez as mais duradouras: praticamente impossvel mudar o dia e forma de comemorao8, s podemos esperar que motivos complexos e profundos devam ter levado a maioria dos cristos a abandonar a imemorvel e notria tradio judaica da guarda do sbado em favor de um novo dia de culto. Em qualquer tentativa, portanto, de reconstruir o processo histrico da origem do domingo, deve-se dar ateno ao grande nmero de possveis fatoresteolgicos, sociais, polticos, pagosque podem ter desempenhado um menor ou maior papel ao induzir a adoo do domingo como dia de culto.

    Este estudo tem dois objetivos bem definidos: Primeiro, prope o exame das teses defendidas por inmeros estudiosos que atribuem aos apstolos, e at mesmo a Cristo, a iniciativa e responsabilidade de abandonar a guarda do sbado e instituir o culto dominical. Sero considerados os ensinos de Cristo quanto ao sbado, a ressurreio e aparecimentos de Cristo, a celebrao eucarstica e a comunidade crist de Jerusalm, a fim de determinar que parte desempenharam, se que desempenharam, no estabelecimento da observncia do domingo. Nosso objetivo verificar se o culto dominical comeou durante o tempo dos apstolos em Jerusalm ou se deu-se posteriormente. Esta verificao da origem histrica da guarda do domingo de grande importncia, pois ela pode explicar no apenas as causas de sua origem, mas tambm sua aplicabilidade aos cristos hoje. Se o domingo realmente o dia do Senhor, todos os cristos, sim, toda a humanidade deveria sab-lo.

    Em segundo lugar, esta pesquisa pretende avaliar em que medida alguns fatores, como os sentimentos anti-judaicos, as atitudes repressivas que os romanos tomaram contra os judeus, a adorao ao sol e sua relao com o dia do sol e determinadas motivaes teolgicas crists, influram no abandono do sbado e na adoo do domingo como o dia do Senhor pela maioria dos cristos.

    Este estudo , portanto, uma tentativa de reconstruir um mosaico de fatores na busca de uma descrio mais exata da poca e das causas que contriburam para a adoo do domingo como o dia de adorao e repouso. Isto est em harmonia com C. W. Dugmore, que sugere que s vezes bom reconsiderar o que a maioria das pessoas considera como coisa definida, mesmo que no se chegue a nenhuma concluso surpreendente.9 Reexaminar concluses e hipteses aceitas, submetendo-as a um exame crtico e minucioso, no um simples exerccio acadmico, mas uma tarefa a ser cumprida a servio da verdade.

    Nosso estudo no se preocupa com os aspectos litrgicos ou pastorais da observncia do

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    domingo entre os primitivos cristos, desde que tais problemas j tm sido tratados exaustivamente em recentes monografias.10 Examinaremos apenas os textos que podem ajudar a estabelecer a poca e as causas formais e materiais, imediatas e remotas da origem do culto dominical. Nosso propsito limita-se ao problema das origens.

    Exceto algumas referncias incidentais a textos posteriores, os documentos que examinaremos esto dentro dos quatro primeiros sculos da nossa era. Testemunhos patrsticos sero examinados at este ltimo perodo, a fim de verificar a validade histrica das motivaes que aparecem nos inadequados documentos da primeira parte do segundo sculo. Este o perodo no qual o culto dominical mudou de um nebuloso comeo para uma prtica estabelecida. Sendo este o perodo em que as instituies eclesisticas ainda estavam em um estgio embrionrio, o estudante que l os poucos documentos disponveis com os critrios eclesiolgicos posteriores, pode facilmente enganar-se.

    As fontes tm sido analisadas levando em conta os fatores cronolgicos, histricos e geogrficos. Passagens significativas tm sido submetidas a cuidadoso exame, j que freqentemente seus problemas textuais e contextuais tm sido passados por alto ou interpretados unilateralmente. Isto produz uma impresso que no verdadeira. N. J. White menciona por exemplo, uma freqente e inquestionada aplicao que a Igreja faz da frase dia do Senhor para referir-se ao domingo desde os primitivos tempos apostlicos.11

    Os documentos disponveis para a presente pesquisa so de natureza heterognea, tais como cartas, homilias e tratados. Sua procedncia, autenticidade e ortodoxia nem sempre so evidentes, mas por serem tudo o que temos, algo de valor deve ser deles obtido. Conforme as regras do rigor cientfico, pode-se fazer objeo ao uso de um documento como, por exemplo, Pseudo-Barnab. Entretanto, se algum limita-se apenas anlise de documentos de arquivos, de monumentos arqueolgicos e outras peas de incontestvel autenticidade, impossvel fazer algum progresso real, devido sua escassez. Por esta razo, necessrio examinar a rica literatura patrstica e apcrifa, tendo em mente as suas limitaes.

    Este estudo representa uma extenso da tese doutoral apresentada em italiano ao Departamento de Histria Eclesistica da Pontifcia Universidade Gregoriana, em Roma. O material foi substancialmente condensado e reorganizado. Esta nova apresentao motivada pelo desejo de tornar o estudo compreensvel mesmo para os leitores leigos. A discusso de questes tcnicas foi colocada em notas no final dos captulos.

    Espera-se que o presente trabalho fornea aos telogos os indispensveis dados histricos necessrios para reflexes sobre o significado do domingo, e tambm de se esperar que possa despertar o interesse dos historiadores para reconsiderar a questo da origem do domingo na tentativa de chegar mais perto da verdade. Espera-se tambm que os leitores sinceros sejam estimulados, atravs de uma melhor compreenso do significado do santo dia de Deus, a buscar um mais profundo relacionamento com o Senhor do sbado (Marcos 2:28).

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    NOTAS E REFERNCIAS

    1. Abraham Joshua Heschel, The Sabbath, its Meaning for Modern Man, 1951, p. 10. O mesmo autor salienta a noo de que o judasmo uma religio do tempo que frisa a santificao do tempo (ibid. p. 8).

    2. Sobre o desenvolvimento histrico da legislao dominical ver: H. Gruber, Geist und Buchstabe der Sonntagsruhe, 1958, que traa tal desenvolvimento at Idade Mdia. Um tratamento similar dispensado por J. Kelly, Forbidden Sunday and Feast-Day Occupations, dissertao, Catholic University of America, 1943. Para uma opinio puritana, ver J. Bohmer, Der Christliche Sonntag nach Ursprung und Geschichte, 1951. Ronald Goetz An Eschatological Manifesto, The Christian Century 76 (2 de novembro de 1960): 1275, argumenta que o princpio da separao entre Igreja e estado negligenciado pelos defensores das leis dominicais (cf. John Gilmary Shea, The Observance of Sunday and Civil Laws for its Enforcement. The American Catholic Quarterly Review, 8, (1883): 152ss.

    3. Harold Linsell vai mais longe ao propor que o domingo seja um dia nacional de repouso em seu editorial na Christianity Today de 7 de maio de 1976, intitulado The Lords Day and Natural Resources. Ele afirma que a nica maneira de se conseguir o duplo objetivo da observncia do domingo e conservao de energia seria pela fora de uma sano legislativa atravs dos representantes eleitos pelo povo. A oposio dos sabatistas ao editorial, que consideram a proposta de Lindsell como uma violao dos direitos garantidos aos americanos pela primeira emenda da Constituio, aparentemente levou o editor a apresentar uma contraproposta em outro editorial na mesma revista de 5 de novembro de 1976. Conforme a nova proposta de Lindsell, o sbado e no o domingo deve ser considerado como um dia de repouso para todas as pessoas. Os adventistas do stimo dia rejeitaram enfaticamente mesmo a ltima proposta, baseando-se em que a observncia obrigatria de qualquer dia da semana seria um fardo e privaria alguns segmentos da populao da liberdade religiosa (cf. Leo R. van Dolson, Color the Blue Laws Green, Liberty, 72 (1977): 30.

    4. W. Rordorf, Sunday. The History of the Day of Rest and Worship in the Earliest Centuries of The Christian Church, 1968 (daqui por diante citado apenas como Sunday), p. 296, sustenta que com certeza at o quarto sculo a idia de repouso no influiu absolutamente nada no domingo cristo. Uma vez que na opinio de Rordorf o repouso dominical no era um componente original ou indispensvel do culto dominical, mas uma imposio imperial (p. 168), ele levanta a possibilidade de ser esta uma soluo ideal por fazer coincidir o dia de repouso e o dia de culto (p. 299). Ele prefere atribuir ao domingo uma exclusiva funo de culto que pode ser realizada na assemblia da comunidade crist, em qualquer momento do dia, para a celebrao eucarstica.

    5. Os seguintes so alguns dos mais recentes e importantes estudos: W. Rordorf, Sunday; pelo mesmo autor, Le Dimanche, jour du culte et jour du repos dans lEglise primitive, Le Dimenche, Lex Orandi 39, 1965, pp. 91-111; Sabbat et dimanche dans lEglise ancienne, 1972; C. S. Mosna, Storia della domenica dalle origini fino agli inizi del V Secolo, Analecta Gregoriana, vol. 170, 1969; J. Danilou, Le dimanche comme huitime jour, Le Dimanche, Lex Orandi 39, 1965, pp. 61-89.

    6. Esta exclusiva introduo reflete-se, por exemplo, na metodologia de W. Rordorf, quando declara que em principio h duas possveis solues para este problema: ou ns conclumos que a observncia do domingo teve origem no Cristianismo, e neste caso temos que procurar saber que fatores contriburam para o seu surgimento; ou estamos convencidos de que a Igreja Crist adotou sua observncia do domingo buscando-a em outra fonte. Devemos chegar a uma ou outra concluso em nossa pesquisa da origem da observncia crist do domingo, pois ela no pede ter sido ao mesmo tempo legada e adotada pelos cristos. (Sunday, p. 180). Rordorf defende tenazmente a primeira soluo, mas seu mtodo e concluses so criticados at mesmo por C. S. Mosna (ver nota 8). Semelhantemente J. Danilou escreve: O domingo uma criao puramente crist, ligado ao fato histrico da Ressurreio do Senhor (Bible and Liturgy, pp. 222 e 242). Este aspecto examinado nos captulos 3, 5 e 9.

    7. Ver, por exemplo, H. Gunkel, Zum religionsgeschichtlichen Verstandnis des Neuen Testaments, 1910, pp. 74ss.; A. Loisy, Les Mysteres paiens, 1930, pp. 223ss; tambm Les Evangiles synoptiques, 1907, 1,

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    pp. 177ss.; R. L. Odom, Sunday in Roman Paganism, 1944; P. Cotton, From Sabbath to Sunday, 1933, pp. 130ss.

    8. J. V. Goudoever, Biblical Calendars, 1959, p. 151. C. S. Mosna critica W. Rordorf por dar ao surgimento da festividade dominical uma origem demasiadamente crist, esquecendo outros elementos teis e destacando-o de seu contexto judeu (Storia della domenica, pp. 41 e 5);

    9. C. W. Dugmore (nota 7), p. 274. 10. Para os aspectos pastorais da observncia do domingo ver V. Monacchino, La Cura pastorale a

    Milano, Cartagine e Roma nel secolo IV, Analecta Gregoriana 41, 1947; e S. Ambrogio e la cura pastorale a Milano nel secolo IV, 1973; C. S. Mosna, Storia della domenica, parte IV, trata dos aspectos litrgico e pastoral do domingo tanto no Oriente como no Ocidente; para a questo do repouso no domingo, ver H. Huber, Spirito e lettera del riposo domenicale, 1961; J. Duval, La Doctrine de lEglise sur le travail dominical et son evolution, La Maison-Dieu 83 (1965): 106ss.; L. Vereecke, Le Repos du dimanche, Lumire et vie 58 (1962): 72ss.

    11. A Dictionary of the Bible, ed. James Hastings, 1911, s.v. Lords Day, por N. J. White.

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    CAPTULO II - CRISTO E O DIA DO SENHOR

    A expresso Dia do Senhor- que primeiro aparece como uma incontestvel designao crist para o domingo prximo parte final do segundo sculo, denota um dia que pertence exclusivamente ao Senhor-.1 J que o domingo tem sido tradicionalmente considerado por muitos cristos como o dia do qual Cristo Senhor e que consagrado a Ele, podemos muito bem comear nossa pesquisa histrica da origem da observncia do domingo verificando se Cristo antecipou a instituio de um novo dia de culto dedicado exclusivamente a Ele.

    As declaraes de Cristo encontradas nos evangelhos no contm a expresso dia do senhor. Os Sinticos (Mat. 12:8; Mar. 2:28; Luc. 6:5), entretanto, contm uma locuo semelhante, a saber, Senhor do sbado- , uma frase usada por Cristo no fim de uma discusso com os fariseus sobre a questo de legtimas atividades sabticas. Vrios autores tm procurado estabelecer uma relao causal entre Cristo proclamar a Si mesmo Senhor do sbado e a instituio do domingo como o dia do Senhor. C. S. Mosna, por exemplo, declara enfaticamente que Cristo proclamou-Se senhor do sbado especificamente para liberar o homem das cargas cerimoniais referentes ao sbado, e que se tornaram desnecessrias.2 Ele v neste pronunciamento a inteno de Cristo de instituir Seu novo dia de culto. Semelhantemente, Wilfrid Stott interpreta o dito de Cristo como uma implcita referncia ao domingo: Ele o Senhor do sbado e nesta expresso, citada por trs dos Sinticos, h uma referncia oculta ao dia do Senhor. Ele, como Senhor, escolhe Seu prprio dia.3

    Para verificar a validade destas conjeturas, devemos determinar a atitude bsica de Cristo quanto ao sbado. Indo direto ao assunto, Cristo observou verdadeiramente o sbado ou quebrou-o propositadamente? Se a ltima hiptese a verdadeira ento precisamos descobrir se Cristo, por Suas prprias palavras e atos, planejou estabelecer os fundamentos para um novo dia de culto que eventualmente substitusse o sbado.

    Apelar para os crticos tornaria ftil esta investigao, pois eles consideram o relato evanglico dos ensinos e atividades de Cristo quanto ao sbado, no como autnticos fatos histricos mas como reflexes posteriores da Igreja primitiva. Afirmam que impossvel saber o que o prprio Jesus pensava a respeito.4 No vemos nenhuma justificativa para este ceticismo histrico, especialmente porque uma nova busca do Cristo histrico tem comeado que lana sombras sobre a metodologia anterior e promete encontrar nos Evangelhos um nmero muito maior de autnticos feitos e palavras de Jesus.5 Entretanto, mesmo se os materiais dos Evangelhos representassem reflexes posteriores da comunidade crist (o que para ns inadmissvel), este fato no diminui o seu valor histrico. Ainda assim se constituem numa fonte valiosa para o estudo da atitude da Igreja primitiva quanto ao sbado.6 Na verdade, o espao considervel e a ateno dada pelos escritores dos Evangelhos a curas realizadas por Cristo no sbado (no menos que sete episdios esto registrados)7 e controvrsias, so indicativos de quo importante era a questo do sbado na poca em que foram escritos.

    A TIPOLOGIA DO SBADO E SEU CUMPRIMENTO MESSINICO

    Um bom lugar para iniciar nossa pesquisa sobre o conceito de Cristo a respeito do sbado talvez o quarto captulo do Evangelho de Lucas. A encontramos excertos do sermo de Cristo

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    pregado na sinagoga de Nazar em um dia de sbado na inaugurao de Seu ministrio pblico. Convm notar que no Evangelho de Lucas o ministrio de Cristo no apenas comea no sbadoo dia que, de acordo com Lucas (4:16), Cristo observava habitualmentemas tambm termina no dia da preparao, quando o sbado comeava (23:54). O ministrio sabtico de Jesus que provocou repetidas rejeies (Luc. 4:29; 13:14, 31; 14:1-6) parece ser apresentado por Lucas como um preldio da prpria rejeio e sacrifcio final de Cristo.

    Em Seu sermo de abertura Cristo refere-Se a Isaas 61:1-2 (cf. 58:6), que diz: O Esprito do Senhor est sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres; enviou-me para proclamar libertao aos cativos e restaurao da vista aos cegos, para pr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitvel do Senhor. (Luc. 4:18, 19)

    Praticamente todos os comentaristas concordam que o ano aceitvel do Senhor (4:19) que Cristo est oficialmente incumbido (ungido) de proclamar, refere-se ao ano sabtico (isto , o stimo ano) ou o ano do Jubileu (ou seja, o 50 ano aps sete sbados de anos).8 Nessas instituies anuais, o sbado vem a ser o libertador dos oprimidos da sociedade hebraica. A terra devia ficar sem cultivo, para produzir livremente para os pobres, os desapossados e os animais.9 Os escravos eram emancipados, se eles assim desejassem e os dbitos dos irmos eram perdoados.10 O ano do jubileu tambm requeria a restaurao da propriedade ao proprietrio original.11 Que o texto de Isaas, lido por Cristo refere-se a estas instituies sabticas est claro pelo contexto que fala da libertao dos pobres, cativos, cegos (ou prisioneiros), oprimidos.

    significativo que Cristo em Seu discurso de abertura anuncia Sua misso messinica na linguagem do ano sabtico. Seu breve comentrio sobre a passagem muito apropriado: Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir (4:21). Como P. K. Jewett sabiamente destaca, o grande sbado do jubileu tornou-se uma realidade para todos os que estavam perdidos por causa de seus pecados, pela vinda do Messias e nEle encontraram uma herana.12

    Podemos inquirir: Por que Cristo anunciou Sua misso como o cumprimento das promessas sabticas de libertao? Planejava Ele explicar, possivelmente numa forma velada, que a instituio do sbado era um tipo que encontrava seu cumprimento nEle prprio, o Anttipo, e da em diante cessava sua obrigao? (Neste caso, Cristo teria aberto caminho para a substituio do sbado por um novo dia de adorao). Ou Cristo identificava Sua misso com o sbado para tornar este dia um adequado memorial de Suas atividades redentoras?

    Para solucionar este dilema precisamos, antes de tudo, recordar as implicaes redentoras messinicas do sbado. Inerente instituio do sbado est a certeza das bnos divinasDeus abenoou o stimo dia (Gn. 2:3; cf. x. 20:11). A noo de bno do velho Testamento concreta e expressa-se em vida plena e abundante. A bno do sbado na histria da Criao (Gn. 2:3) segue a bno dos seres vivos (Gn. 1:22) e do homem (Gn. 1:28). Logo, exprime a derradeira e total bno de Deus sobre a completa e perfeita Criao (Gn. 1:31). Ao abenoar o sbado Deus promete ser o benfeitor do homem durante todo o curso da histria humana.13

    As bnos do sbado na revelao da histria da Redeno tornam-se mais especificamente associadas com os atos divinos da salvao. Por exemplo, na verso de xodo dos mandamentos Yahweh introduz-Se como o misericordioso Redentor que tirou Israel da terra do Egito, da casa da servido (xo. 20:2). Para garantir esta recm-obtida liberdade a todos os membros da comunidade dos hebreus, o mandamento do sbado ordena que o descanso seja estendido a todos, incluindo at mesmo os animais (xo. 20:10). Na verso de Deuteronmio do declogo o tema da Redeno aparece no apenas no prefcio (Deut. 5:6) de todos os mandamentos (como em xo. 20:1), mas tambm explicitamente incorporado ao prprio mandamento do sbado. Talvez para ressaltar a importncia imediata do mandamento do sbado perante os israelitas e todas as geraes seguintes, a verso de Deuteronmio mostre o sbado

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    fundamentado no no passado ato divino da Criao (como em xo. 20:1), que nem sempre trata das preocupaes imediatas das pessoas, mas no divino ato da Redeno: porque te lembrars que foste servo na terra do Egito, e que o Senhor teu Deus te tirou dali com mo poderosa, e brao estendido: pelo que o Senhor teu Deus te ordenou que guardasses o dia de sbado (Deut. 5:15).14

    Aqui a razo para observar o sbado , como bem declarou Hans Walter Wolff, a afirmao absolutamente fundamental para Israel, isto , que Yahweh libertara Israel do Egito. Cada sbado Israel deveria lembrar que seu Deus um Libertador.15 Este apelo para recordar o livramento do xodo atravs do sbado era para os israelitas uma experincia concreta que envolvia estender o repouso sabtico a todos aqueles que no eram livres para observ-lo. O descanso no sbado, entretanto, no se destinava meramente a ser uma ajuda mnemnica para auxiliar Israel a recordar seu livramento histrico, mas, como observa Brevard S. Childs, significava experimentar no presente a histria da salvao do passado.16

    A. M. Dubarle confirma esta interpretao ao escrever que mediante a observncia do sbado era realmente compreendido e atualizado durante todo o tempo o livramento realizado pela primeira vez no ms de Abib. No era, pois, s uma questo de comemorar por uma simples lembrana, mas antes um regozijo resultante da constante renovao do benefcio inicial.17

    Podemos dizer que o sbado continha um escopo tridimensional: ele comemorava o livramento passado, presente e futuro. O alvio semanal das durezas da vida que os israelitas experimentavam no presente, tambm resumia o passado livramento na Pscoa, assim como a futura redeno messinica. Por causa de sua ntima ligao, tanto a Pscoa como o sbado podiam simbolizar o futuro livramento messinico. (Deve-se notar que assim como o sbado tornou-se para os israelitas a extenso semanal da Pscoa anual, posteriormente o domingo tornou-se para muitos cristos a comemorao semanal do Domingo de Pscoa anual).

    A funo redentiva do sbado era aparentemente entendida como uma prefigurao da misso do Messias. O livramento da dureza do trabalho e desigualdades sociais que tanto o sbado semanal como o anual garantiam a todos os membros da comunidade dos hebreus era considerado uma prefigurao da completa redeno que o Messias um dia traria ao Seu povo. A era messinica da reunio de todas as naes descrita em Isaas como o tempo em que de um sbado a outro vir toda a carne a adorar perante mim (66:23). A misso do Messias tambm descrita por Isaas (na mesma passagem que Cristo aplicou a Si em Seu primeiro sermo (Luc. 4:18-19) na linguagem do ano sabtico (61:1).

    P. K. Jewett comenta muito bem que Deus, no ato da redeno e restaurao do ano sabtico e do jubileu, de novo surge como o Redentor que garante ao indivduo sua liberdade pessoal e preserva para o pobre uma parte na herana de seu povo. Decerto esta no uma concepo antiquada, cerimonial, pois Deus manifestou-Se como Redentor, supremamente em Cristo, o Mediador, o Filho que nos torna de fato livres (Joo 8:36).18

    Outra importante tipologia messinica do sbado pode ser vista na experincia do repouso sabtico-menuhah, que A. J. Herschel define como felicidade e calma, como paz e harmonia.19 Theodore Friedman num erudito artigo mostra persuasivamente que a paz e harmonia do sbado so com freqncia identificadas, tanto nos escritos dos Profetas como na literatura Talmdica, com a era messinica, geralmente conhecida como o fim dos tempos ou o mundo por vir. Ele nota, por exemplo, que Isaas emprega as palavras deleitoso (oneg) e honra (kaved) em sua descrio de amboso sbado e o fim dos dias (isto , a era messinica) (58:13mas se chamares ao sbado deleitoso. . . e o honrares; 66:11e vos deleiteis com a abundncia da sua glria). A implicao clara. O deleite e alegria que marcaro o fim dos dias est disponvel aqui e agora por meio do sbado.20

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    Friedman apresenta tambm uma amostra informativa de ditos rabnicos onde o sbado a antecipao, o antegozo, o paradigma da vida no mundo por vir (isto , a era messinica).21 Outra semelhante interpretao do sbado encontrada em texto apocalptico judaico onde a durao do mundo calculada pela semana csmica de seis pocas de mil anos cada, seguidas pelo sbado do fim do tempo. Na grande maioria das passagens este sbado escatolgico considerado como os dias do Messias que precedem ou que so identificados com o paraso restaurado.22

    O tema do descanso sabtico que aparece em Hebreus 3 e 4 pode representar outra linha da tipologia messinica extrada do Velho Testamento. G. von Rad nota um desenvolvimento do tema do repouso no Velho Testamento desde o conceito da paz nacional e poltica (Deut. 12:91; 25:19) at o descanso espiritual e o sossego que Deus d (cf. Sal. 95:11).23 Este conceito, como veremos mais tarde, novamente proposto em Hebreus, onde o povo de Deus convidado a entrar no repouso sabtico (4:9) quando crer (4:3), obedecer (4:6, 11) e aceitar pela f as boas-novas de Deus (4:1-2). O autor rejeita a noo temporria do descanso sabtico entendido como sendo a entrada na terra de Cana (Deut. 12:9; 25:19), argumentando que a terra que Josu deu aos israelitas (4:8), no o repouso (4:9) que Deus coloca disponvel para o Seu povo desde a criao (4:3, 4, 10). Este ltimo pode ser experimentado quando se aceita hoje (4:7) as boas-novas (4:2, 6) da salvao. A aluso ao evento-Cristo absolutamente claro. nEle que o repouso sabtico do Velho Testamento encontra seu cumprimento e atravs dEle que tal repouso pode agora ser experimentado por todos os crentes.24

    Esta breve pesquisa foi suficiente para estabelecer a existncia, no Velho Testamento, de uma tipologia do sbado alusiva ao Messias. luz deste fato, a alegao feita por Cristo, em Seu discurso inaugural, de ser o cumprimento da funo salvadora do sbado, adquire significado adicional. Ao identificar-Se com o sbado, Cristo afirma Sua misso de Messias. Isto explica por que Cristo, como ser mostrado posteriormente, revelou Sua misso messinica particularmente atravs do Seu ministrio aos sbados.25 Que isto estava bem entendido evidente, por exemplo, pela acusao que os lderes judeus levantaram contra Cristo: No somente violava o sbado, mas tambm dizia que Deus era seu prprio Pai, fazendo-se igual a Deus (Joo 5:18). Parece que neste caso a verdadeira acusao contra Cristo no era a violao do sbado. Aparentemente, como salienta W. Rordorf, Seus oponentes obviamente preferiram se concentrar na reivindicao messinica que estava implcita mesmo em seu quebrantamento do sbado.26

    A ATITUDE DE CRISTO PARA COM O SBADO

    O fato de ter Cristo afirmado ser Ele o cumprimento das esperanas messinicas inerentes ao sbado, levanta uma importante questo: como considera Cristo a atual observncia do sbado? Confirmou Ele para Seus seguidores a validade de tal instituio como a inquestionvel vontade de Deus? Ou considerou Cristo a obrigao de guardar o sbado como j estando cumprida, e anulou, pela Sua vinda, o verdadeiro sbado?

    Alguns estudiosos consideram os debates e as curas que Cristo realizou no sbado como atos intencionais e provocatrios, destinados a mostrar que o mandamento do sbado no tinha mais a mesma fora. J. Danilou defende, por exemplo, que nos episdios de cura, Cristo aparece concretamente como inaugurando o verdadeiro sbado (ou seja, o domingo27 W. Rordorf expressa a mesma convico, e ainda mais enfaticamente, quando escreve que o mandamento do sbado no estava meramente sendo posto de lado pela atividade curadora de Jesus: estava simplesmente sendo anulado.28

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    As Primeiras Interpretaes Patrsticas

    Infelizmente tais concluses nem sempre so baseadas em uma anlise do que Cristo realmente fez ou disse a respeito do sbado, mas em antigas interpretaes patrsticas do que dizem os Evangelhos a respeito do sbado, e que se tornaram, e em grande parte ainda so, um legado tradicional e incontestvel. Do segundo sculo em diante, de fato, escritores patrsticos produziram uma lista de violaes do sbado mencionadas nos Evangelhos, freqentemente acrescentando novos casos para ser estabelecida uma forte prova contra o sbado. Dos Evangelhos eles tomaram os exemplos de alegada violao do sbado mencionados por Cristo em Seu debate com os fariseus, que so: Davi, no sbado, juntamente com seus companheiros, comeu os pes da proposio (Mat. 12:3; cf. I Sam. 21:1-7), os sacerdotes neste mesmo dia circuncidaram (Joo 7:23) e ofereceram sacrifcio (Mat. 12:5)29 e o prprio Deus no interrompe Seu trabalho no sbado (Joo 5:17)30. Este repertrio foi enriquecido com outras provas, tais como o exemplo de Josu que quebrou o sbado quando comandou os filhos de Israel ao redor dos muros de Jeric,31 dos Macabeus que guerrearam no sbado,32 e dos patriarcas e fiis que viveram antes de Moiss, supostamente sem guardar o sbado.33

    Se aceitamos (sem consentir) que tais argumentos baseiam-se em slidos critrios de hermenutica bblica, no somos levados a crer que tais excees apenas confirmam a natureza obrigatria do mandamento do sbado? Alm disso, a pessoa que aceita o uso e interpretao que os Pais primitivos fazem do material dos evangelhos a respeito do sbado para determinar a atitude de Cristo, e tambm a sua, quanto ao sbado, no deve tambm concordar, para ser consistente, com suas negativas e conflitantes explanaes do significado no apenas do sbado, mas tambm de toda a economia judaica?

    Seria interessante descobrir se algum estudioso da Bblia concordaria, por exemplo, com a declarao de Barnab de que a prtica literal do sbado nunca havia sido o objeto de um mandamento de Deus,34 ou que os judeus perderam o convnio exatamente aps Moiss receb-lo (4:7); ou com a hiptese de Justino de ter Deus imposto o sbado aos judeus como um sinal de infmia para isol-los para castigo aos olhos dos romanos;35 ou com a noo de Siraco Didascalia de que o sbado fora imposto aos judeus como um tempo de lamentao;36 ou com o conceito de Afraates de que o sbado foi introduzido como um resultado da queda.37

    Se tais interpretaes do significado e natureza do sbado devem ser rejeitadas como no comprovadas pelas evidncias escritursticas do Velho Testamento, ento no existe nenhuma justificativa para usar como prova seus argumentos contra o sbado, j que em grande parte eles baseiam-se nesse tipo de pressupostos equivocados. Mais tarde em nosso estudo veremos que uma combinao de condies que aumentaram a tenso entre Roma e os judeus e entre a Igreja e a Sinagoga na primeira parte do segundo sculo, contribuiu para o desenvolvimento de um anti-judasmo de diferenciao. Esta situao expressou-se em uma reinterpretao negativa tanto da histria como das observncias judaicas, como da guarda do sbado. No podemos, portanto, avaliar as referncias ao sbado nos Evangelhos, luz de sua antiga interpretao patrstica, mas devemos avaliar a atitude de Cristo quanto ao sbado examinando os documentos exclusivamente por seus prprios mritos.

    As Primeiras Curas no Sbado

    Os evangelhos de Marcos e Lucas sugerem que Cristo primeiramente limitou Suas atividades de cura no sbado a casos especiais, sem dvida porque estava ciente da explosiva reao que resultaria de Sua proclamao do significado e uso do sbado. Em Lucas, o anncio

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    inicial de sua funo de Messias como um cumprimento do ano sabtico (Luc. 4:16-21) seguido por dois episdios de cura. O primeiro ocorreu na sinagoga de Cafarnaum, uma cidade da Galilia, durante os servios de sbado e resultou na cura espiritual de um homem possesso (Luc. 4:31-37). O segundo foi realizado imediatamente aps a reunio na casa de Simo e resultou na restaurao fsica da sogra de Simo (Luc. 4:38-39). Em ambos os casos, Cristo agiu por necessidade e amor. No primeiro caso, foi a necessidade de libertar uma pessoa do poder de Satans e assim restaurar a ordem nos servios que levou Cristo a agir. A funo salvadora do sbado, que j est includa neste ato de Cristo, ser mais explicitamente proclamada em curas posteriores. No segundo caso Cristo atuou em considerao a um de Seus amados discpulos e sua sogra. Neste caso a cura fsica tornou o sbado um dia de regozijo para toda a famlia. Tambm digno de nota que a cura resultou em servio imediatoe logo se levantou, passando a servi-los (v. 39). O significado do sbado como redeno, regozijo e servio j presente em uma fase embrionria nestas primeiras curas de Cristo, revelado mais explicitamente no subseqente ministrio de Cristo aos sbados. Neste primeiro estgio, entretanto, a maior parte das atividades de cura de Cristo deixada para depois do sbado, aparentemente para evitar uma prematura confrontao e rejeio: Ao pr-do-sol, todas os que tinham enfermos de diferentes molstias lhos traziam; e ele os curava, impondo as mos sobre cada um (Luc. 4:40; cf. Mar. 1:32).

    O Homem com a Mo Ressequida

    O prximo episdio de cura, o do homem com a mo ressequida narrado por todos os trs sinticos (Mat. 12:9-21; Mar. 6:6-11), o ponto de prova pelo qual Cristo comea Suas reformas sabticas. Jesus encontra-Se na sinagoga diante de um homem com uma mo paralisada, levado ali, muito provavelmente, por uma delegao de Escribas e Fariseus.38 Estes tinham vindo sinagoga no para adorar, mas para inspecionar Cristo e ver se o curaria em dia de sbado, a fim de o acusarem (Mar. 3:2). De acordo com Mateus, eles dirigiram a Cristo a probante pergunta: lcito curar no sbado? (Mat. 12:10). Sua dvida no era motivada por uma genuna preocupao pelo homem enfermo, nem por um desejo de explorar como o sbado est relacionado com o ministrio da cura. Em vez disso, estavam ali como a autoridade que sabe todas as isenes previstas pela casustica rabnica, e que quer julgar a Cristo com base nas mincias de seus regulamentos. Lendo seus pensamentos, Cristo Se entristece com a dureza de seus coraes (Mar. 3:5). No entanto, aceita o desafio. Primeiro, convida o homem para se aproximar, dizendo: Vem para o meio (Mar. 3:3) Este passo possivelmente destinou-se a despertar simpatia para com o homem enfermo e ao mesmo tempo para cientificar a todos do que Ele estava para fazer. Ento perguntou aos especialistas da lei: lcito nos sbados fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou tir-la? (Mar. 3:4) Para tornar a pergunta mais direta, de acordo com Mateus Cristo acrescentou uma segunda, na forma de uma parbola (que aparece duas vezes mais, um pouco modificada em Luc. 14:5; 13:15), Qual dentre vs ser o homem que, tendo uma ovelha, e, num sbado esta cair numa cova, no far todo o esforo, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha? (Mat. 12:11, 12).39

    Tais declaraes levantam um importante debate. Pela pergunta inicial, que Cristo ilustrou com uma segunda pergunta contendo um exemplo prtico, pretendeu Ele ab-rogar radicalmente o mandamento do sbado ou quis restaurar seus divinos valores e funes originais? Muitos estudiosos aceitam a opo anterior. L. Goppelt declara enfaticamente que a dupla pergunta de Jesus assinala o fim do mandamento de sbado: no mais uma ordenana estatucional e no tem mais validade absoluta, se esta ampla e justaposta alternativa vlida, a saber, salvar a vida.40

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    Esta interpretao repousa sobre a suposio de que salvar a vida contrrio ao esprito e funo do sbado. Pode isto ser verdade? Talvez possa refletir o mal-entendido reinante e o uso errneo do sbado, mas no o propsito original do mandamento do sbado. Aceitar tal suposio seria culpar a Deus de falhar em salvaguardar o valor da vida ao instituir o sbado. W. Rordorf defende a mesma concluso da suposta maneira errnea de deduo da pergunta de Cristo sobre princpio e exemplo. Ele explica que da pergunta se legal salvar ou matar e do exemplo de resgatar um animal em urgente necessidade, ningum, pode legitimamente tirar inferncias que sejam vlidas tambm para um ser humano com problemas de sade que absolutamente no necessita de assistncia imediata num sbado.41

    O Mishnah explcito a este respeito: Em qualquer caso que exista uma possibilidade de a vida estar em perigo, a lei do sbado deve ser posta de lado.42 Entretanto, no caso do homem com a mo ressequida, como em todos os outros exemplos de cura no sbado, no se dava a necessidade de socorrer algum doente numa emergncia, mas sempre eram pessoas com doenas crnicas. Portanto, Rordorf conclui que o princpio de salvar a vida no descreve o valor da observncia do sbado, mas uma referncia natureza da misso do Messias, que devia estender a salvao imediatamente a todos os que estavam em necessidade. Em face a esta conscincia messinica, o mandamento do sbado tornou-se ento irrelevante. . . . foi simplesmente anulado.43

    Esta espcie de anlise no faz justia a vrios pontos da narrativa. Primeiro, a pergunta dirigida a Cristo era especificamente relacionada com o assunto da correta observncia do sbado: lcito curar no sbado? (Mat. 12:10). Em segundo lugar, a resposta de Cristo, na forma de duas perguntas (uma implicando um princpio e a outra ilustrando-o) tambm trata explicitamente da questo do que legal realizar no sbado. Em terceiro lugar, a aparente errnea analogia entre a pergunta de Cristo sobre a legitimidade de salvar a vida ou tir-la (Mar. 3:4) no sbado e o enfermo crnico cuja vida no seria salva nem perdida pelo adiamento da cura para depois do sbado, pode ser satisfatoriamente explicada pela nova avaliao que Cristo colocava sobre o sbado. Isto explicitamente expresso na positiva declarao relatada por Mateus: Logo, lcito fazer bem aos sbados (Mat. 12:12). Se correto fazer o bem e salvar no sbado, ento qualquer recusa de faz-lo significa fazer o mal ou matar. Mais tarde veremos que este princpio exemplificado na histria por dois tipos opostos de guardadores do sbado.

    Infelizmente, quando Rordorf no pode ajustar em seu esquema a positiva interpretao de Mateus a respeito do sbado, ele tenta resolver o problema acusando-o de comear a moralstica divergncia da atitude de Jesus quanto ao sbado. Tal divergncia supostamente consiste em aceitar que a obrigao de amar o prximo substitui em certas circunstncias a ordem de guardar um dia de repouso.44 estranho que Mateus tenha realmente entendido mal ou realmente compreendido a pretenso de Cristo e a mensagem do sbado, quando escreveu lcito fazer bem aos sbados (Mat. 12:12). verdade que no judasmo do ps-exlio, uma elaborada cerca foi construda ao redor do sbado para assegurar sua fiel observncia. O exagero de mincias e regras casusticas (conforme o Rabino Johanan, havia 1521 leis derivadas)45 referentes guarda do sbado tornou sua observncia um ritual legalstico, em vez de um servio de amor. Todavia, no certo considerar o sbado exclusivamente luz desse desenvolvimento legalstico posterior.

    A obrigao de amar o prximo era a essncia da primitiva histria do sbado e suas instituies afins. Nas vrias verses do mandamento do sbado, por exemplo, h uma constante lista de pessoas a quem a liberdade de repousar no sbado deve ser garantida. Os citados particularmente so em geral os criados, os filhos dos escravos, o gado, o hspede e/ou estrangeiro. Isto indica que o sbado fora ordenado especialmente para mostrar compaixo pelas criaturas indefesas e necessitadas. Seis dias fars a tua obra, mas ao stimo dia descansars: para

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    que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro (xo. 23:12).46 Niels-Erik Andreasen comenta acertadamente que o dono da terra devia preocupar-se com o valor humano de seus sditos, assim como Yahweh, quando assegurou liberdade ao Seu povo.47 sem dvida comovente que o sbado estava destinado a mostrar interesse at mesmo pelos animais. Mas, como bem destacou Hans Walter Wolff, mais tocante que, de todos os trabalhadores dependentes, o filho da escrava e o estrangeiro so especialmente destacados. Pois, quando tais pessoas eram obrigadas a trabalhar, no tinham nenhum recurso ou proteo.48

    A dimenso original do sbado como dia para honrar a Deus atravs da preocupao e compaixo para com os seres inferiores havia sido amplamente esquecida no tempo de Jesus. O sbado tinha se tornado no dia quando a realizao correta de um ritual era mais importante que uma resposta espontnea ao clamor das necessidades humanas. Nosso episdio prov um bom exemplo desta perverso, contrastando dois tipos de guardadores de sbado. De um lado ficou Cristo, condodo com a dureza dos coraes de Seus acusadores e dando passos para salvar a vida de um homem defeituoso (Mar. 3:4-5). Do outro lado ficaram os especialistas da lei que, embora estando no lugar de adorao, gastaram seu tempo de sbado observando a Jesus . . . a fim de O acusarem . . . conspiravam em como lhe tirariam a vida (Mar. 3:2, 6). Este contraste de atitudes pode bem ter gerado a explanao da pergunta de Cristo sobre a legitimidade de salvar ou matar no sbado (Mar. 3:4), ou seja, que uma pessoa que no est preocupada com a salvao fsica e espiritual de outros no sbado, est automaticamente envolvida em atitudes e esforos destrutivos.49

    O programa de reformas do sbado proposto por Cristo deve ser considerado no contexto de Sua atitude geral perante a lei.50 No sermo do monte, Cristo explica que Sua misso restaurar as vrias prescries da lei s suas intenes originais (Mat. 5:17, 21). Esta obra de esclarecer o propsito atrs dos mandamentos era uma triste necessidade, pois com o acmulo de tradies, em muitos casos sua funo original estava obscurecida. Como Cristo colocou, jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a vossa prpria tradio (Mar. 7:9). O quinto mandamento, por exemplo, que ordena honrar o pai e a me, conforme Cristo, havia sido substitudo pela tradio do Corb (Mac. 7:12-13). Aparentemente isto consistia em transferir um servio ou uma obrigao a ser dedicada aos pais, em uma oferta a ser dada no Templo.

    O mandamento do sbado no era exceo, e a menos que fosse libertado das muitas restries casusticas sem sentido, teria permanecido mais como um sistema para justia prpria do que como um tempo para amar o Criador-Redentor e os semelhantes.

    A Mulher Enferma

    Para compreendermos melhor o propsito das reformas de Cristo quanto ao sbado, vamos considerar rapidamente outros episdios de cura. A cura da mulher enferma, relatada apenas por Lucas (13:10-17), aparentemente o ltimo ato realizado por Cristo na sinagoga. A crescente oposio das autoridades deve ter impossibilitado que Cristo prosseguisse em Seu ministrio sabtico na sinagoga. Este episdio, comparado com a cura anterior, do homem com a mo ressequida (Luc. 6:6-11), mostra uma substancial evoluo. Isto pode ser visto tanto na atitude mais decidida de Cristo que automaticamente entrou em ao declarando a mulher livre de sua enfermidade (13:12) sem ser solicitado, como em Sua pblica repreenso ao chefe da sinagoga (13:15). As autoridades tambm protestaramneste caso o chefe da sinagogae desta vez no foi do lado de fora, mas de dentro da sinagoga, condenando publicamente toda a congregao por buscar a cura no sbado (13:14). Finalmente, a funo redentiva do sbado expressa mais

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    explicitamente. O verbo libertar agora usado para esclarecer o significado do sbado. difcil acreditar que o verbo estava sendo usado por Cristo acidentalmente, pois nesta breve narrativa ele ocorre trs vezes, embora na traduo inglesa RSV cada vez usado um sinnimo diferente: livrar, desprender, soltar (13:12, 15, 16).

    O verbo usado por Cristo primeiramente ao dirigir-se mulher: Ests livre da tua enfermidade (v. 12). A mulher que por dezoito anos andava encurvada (v. 11) diante das palavras de Cristo imediatamente se endireitou e dava glria a Deus (v. 13). A reao do chefe da sinagoga destacou o contraste entre a predominante perverso do sbado, de um lado, e o esforo de Cristo para restaurar ao sbado o seu verdadeiro significado, de outro. Seis dias h em que se deve trabalhar, disse o chefe da sinagoga, vinde, pois, nesses dias para serdes curados (v. 14). Para o administrador, que considerava o sbado como regras a obedecer em vez de pessoas a amar, a cura era uma obra imprpria para o sbado. Para Cristo, que Se preocupava em restaurar todo o ser, no havia melhor dia que o sbado para realizar esse ministrio redentor.

    Para esclarecer esta funo libertadora do sbado, Cristo novamente usou por duas vezes o verbo libertar. Primeiro, ao referir-Se a uma concesso rabnica: Hipcritas, cada um de vs no desprende da manjedoura no sbado o seu boi ou o sue jumento, para lev-lo a beber? (13:15). Deve-se notar que dar gua a um animal no sbado no est includo na mesma categoria de emergncia como resgatar uma ovelha de uma cova (Mat. 12:11). Qualquer animal pode sobreviver um dia sem gua, embora isto possa resultar em perda de peso e, conseqentemente, em perda de valor comercial. Pode-se estranhar o fato de Cristo referir-Se a este pervertido senso de valores, ou seja, que a perda financeira derivada de negligenciar um animal no sbado era mais importante para alguns que suprir as necessidades de seres humanos, o que no trazia nenhum retorno financeiro. Isto est bem claro nas palavras de Cristo. Mas o que Jesus quis esclarecer que um servio bsico realizado no sbado, mesmo aos animais.

    Baseado no conceito de desatar um animal, Cristo novamente usa o mesmo verbo na forma de uma pergunta retrica para salientar Sua concluso: Por que motivo no se devia livrar deste cativeiro em dia de sbado esta filha de Abrao, a quem Satans trazia presa h dezoito anos? (13:16) Raciocinando de um caso menor para um maior, Cristo mostra como o sbado havia sido paradoxalmente distorcido. Um boi ou jumento podia ser libertado da manjedoura no sbado mas uma mulher sofredora no podia neste dia ser liberta de sua enfermidade fsica e espiritual. Que perverso do sbado! Por esta razo Cristo agiu contra a tradio normativa para restaurar o sbado ao objetivo pretendido por Deus. Seja notado que neste e em todos os exemplos Cristo no est questionando a obrigatoriedade da norma do sbado, e sim destacando seus reais valores, que tinham sido bastante esquecidos.

    O quadro de Cristo, num sbado, libertando uma vtima do cativeiro de Satans (13:16), lembra o que Cristo disse sobre Sua misso de proclamar liberdade aos cativos (Luc. 4:18; cf. Isa. 61:1-3). A libertao de ama filha de Abrao dos laos de Satans, no sbado, representa assim o cumprimento da tipologia messinica deste dia. Paul K. Jewett comenta sobre isto: Temos nas curas de Jesus aos sbados, no apenas atos de amor, compaixo e graa, mas verdadeiros atos sabticos, atos que mostram que o sbado messinico, o cumprimento do repouso sabtico do velho Testamento, tem chegado ao nosso mundo. Portanto, o sbado, entre todos os dias, e o mais apropriado para cura.51

    Este cumprimento, por Cristo, da simbologia do sbado no Velho Testamento (como no caso de sua instituio correlata, a Pscoa) no implica, como sugerido pelo mesmo autor, que os cristos esto livres do sbado para se reunirem no primeiro dia,52 mas sim que Cristo, ao cumprir a tipologia redentora do sbado tornou o dia um permanente e adequado memorial desta realidade, ou seja de sua misso redentora.53 Podemos perguntar como a mulher e as pessoas que

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    testemunharam as intervenes salvadoras de Cristo passaram a considerar o sbado. Lucas relata que enquanto os adversrios de Cristo se envergonharam (13:17) com a justificao do Senhor pela Sua atividade salvadora no sbado, o povo se alegrava (13:17) e a mulher dava glria a Deus (13:13). Indubitavelmente, para a mulher e todas as pessoas abenoadas pelo ministrio de Cristo aos sbados, este dia tornou-se o memorial da cura de seus corpos e almas, da sada dos grilhes de Satans para a liberdade do Salvador.

    O Paraltico e o Cego

    Esta relao entre o sbado e a obra de salvao est bem evidente nos dois milagres aos sbados relatados no Evangelho de Joo (Joo 5:1-18; 9:1-41). Devido sua substancial semelhana, vamos consider-los juntos. A semelhana notada em vrios aspectos. Os dois homens curados haviam sido doentes crnicos: um, invlido por 38 anos (5:5) e o outro, cego de nascena (9:2). Nos dois exemplos Cristo disse aos homens para agirem. Ao invlido Ele disse: Levanta, toma a tua cama e anda (5:8); e ao cego: Vai, lava-te no tanque de Silo (9:7). Em ambos os casos os fariseus acusaram a Cristo formalmente de quebrar o sbado e consideraram isto como uma evidncia de que Ele no era o Messias: Esse homem no de Deus, porque no guarda o sbado (9:16; cf. 5:18). Nas duas situaes, a acusao contra Cristo no envolve primariamente a ao da cura em si mas a violao das leis rabnicas do sbado, quando ordenou que o paraltico levasse a sua cama (5:8, 10, 12) e quando preparou o barro (9:6, 14).54 Nos dois exemplos Cristo repudiou a acusao de violar o sbado, argumentando que Suas obras de salvao no eram impedidas e sim previstas pelo mandamento do sbado (5:17; 7:23; 9:4).

    Antes de examinar a justificativa de Cristo por Suas atividades salvadoras no sbado, deve-se dar ateno ao verbo respondeu- usado por Joo ao apresentar a defesa de Cristo. Mario Veloso, em sua incisiva anlise desta passagem, nota que esta forma verbal ocorre apenas duas vezes em Joo.55 A primeira vez, quando Cristo replicou a acusao dos judeus (5:17) e a segunda, quando esclareceu a resposta dada (5:19). A forma comum usada por Joo cerca de 50 vezes pi que tambm traduzida como respondeu. O uso especial da voz central do verbo implica, por um lado, como explica Veloso, numa defesa pblica e formal,56 e por outro lado, conforme disse J. H. Moulton, que o agente est extremamente relacionado com a ao.57

    Isto significa que Cristo no apenas fez uma defesa formal, mas que tambm identificou-Se com o contedo de Sua resposta. As poucas palavras da defesa de Cristo merecem, portanto, cuidadosa ateno.

    O que Cristo pretendeu quando Se defendeu formalmente contra a acusao de violar o sbado, dizendo Meu Pai trabalha at agora, e eu trabalho tambm (Joo 5:17)? Esta declarao tem sido alvo de considervel e minucioso exame e de algumas concluses extremadas. J. Danilou afirma que as palavras de Cristo condenam formalmente a aplicao do repouso de Deus no sbado como significando inatividade. . . . A obra de Cristo deve ser considerada como a realidade que vem para substituir a figurada inatividade do sbado.58 W. Rordorf argumenta que Joo 5:17 pretende interpretar Gnesis 2:2 no sentido de que Deus nunca descansou desde o incio da criao, e que Ele ainda no descansa, mas que descansar afinal.59 luz da passagem paralela de Joo 9:4, ele conjetura que o prometido repouso sabtico de Deus . . . encontra seu cumprimento no repouso de Jesus na sepultura.60 Assim, conclui que Jesus deriva para Si mesmo a ab-rogao do mandamento de descansar no sbado semanal, da interpretao escatolgica de Gn. 2:261 Paul K. Jewett reprope a explanao de Oscar Cullmann, interpretando a expresso Meu Pai trabalha at agora como implicando um movimento na

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    histria redentora da promessa ao cumprimento, isto , da promessa do repouso sabtico do Velho Testamento ao cumprimento encontrado no dia da Ressurreio.62 O argumento baseia-se em considerar que o repouso de Deus no foi conseguido ao fim da primeira criao e sim, como coloca Cullmann, primeiramente cumprido na ressurreio de Cristo.63 O domingo, ento, como o dia da ressurreio, representa o cumprimento do divino repouso prometido pelo sbado do Velho Testamento.

    Para avaliar a validade destas interpretaes necessitamos primeiro averiguar o significado da expresso Meu Pai trabalha at agora- e subseqentemente estabelecer sua relao com a questo sbado-domingo. H um amplo consenso de opinio em considerar o trabalha at agora do Pai como uma referncia ao trabalho da Criao mencionado em Gnesis 2:2.64 O raciocnio por detrs desta interpretao que, j que Deus est trabalhando at agora em atividades criativas, Ele ainda no experimentou o repouso sabtico da Criao, mas vir um tempo na restaurao escatolgica de todas as coisas, quando isto se tornar uma realidade. O domingo, portanto, sendo em virtude da Ressurreio, como diz Jewett, a realidade e antecipao deste sbado final, j celebrado pelos cristos em lugar do sbado.65

    A espcie de interpretao usada para chegar a esta concluso emprestada do filsofo judeu helenstico Filo, que defendeu a idia da criao contnua para evitar um aspecto muito antropomrfico do repouso de Deus. Deus nunca cessou de agir, escreve Filo, mas assim como a propriedade do fogo aquecer, a de Deus criar.66 Aparentemente, porm, Filo faz distino entre a criao de coisas mortais que foi completada com o divino repouso e a criao de coisas divinas que ainda continua.67 Posteriormente (cerca de 100-130 AD) os rabinos Gamaliel II, Josu ben Chananiah, Eliezer ben Azariah e Aqiba declararam explicitamente em Roma que Deus continua Sua atividade criativa.68

    Esta noo de uma contnua criao divina presente no judasmo helenstico , todavia, estranha aos ensinos do Evangelho de Joo. Em harmonia com o ponto de vista de todos os livros da Bblia, Joo ensina que as obras da criao de Deus foram realizadas em um tempo passado conhecido como princpio (1:1) Neste princpio, atravs do Verbo que estava com Deus (1:1) todas as coisas foram feitas . . . e sem Ele nada do que foi feito se fez (1:3). Ambas as frases No princpio-e a forma aorista do verbo -fazer (ou trazer) existncia indicam com suficiente clareza que as obras da Criao so consideradas como concludas em um indefinido passado distante. Alm disso, o fato de que em Joo 5:17 as obras do Pai so identificadas com aquelas desempenhadas por Cristo na terra, indica que no possvel que sejam as obras da criao, porque Cristo naquele momento no estava ocupado em obras de criao.69 Fazer distino entre as obras do Pai e as do Filho seria destruir a absoluta unidade entre os dois, que enfaticamente declarada no Evangelho de Joo.

    A que se refere ento este trabalha at agora do Pai? H indicaes conclusivas de que a expresso refere-se no atividade criativa mas redentiva de Deus. O Velho Testamento apresenta um antecedente explicativo. Ali, como G. Bertram mostra, a atividade de Deus vista essencialmente no curso da histria de Israel e das naes.70 M. Veloso bem destaca que no questo de uma histria considerada como uma mera sucesso de atos humanos, mas uma histria moldada pelas obras salvadoras de Deus, pelo que se torna a histria da salvao.71 No Evangelho de Joo estas obras de Deus so repetidamente identificadas como o ministrio redentor de Cristo. Jesus diz, por exemplo, as obras que o Pai me confiou para que eu as realizasse, essas que eu fao testemunham a meu respeito, de que o Pai me enviou (5:36). O propsito da manifestao das obras do Pai atravs do ministrio de Cristo tambm explicitamente declarado: A obra de Deus esta, que creiais nAquele que por Ele foi enviado (6:29). E tambm: Se no fao as obras de meu Pai, no me acrediteis, mas se fao e no me

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    credes, crede nas obras; para que possais saber e compreender que o Pai est em mim, e eu estou no Pai (10:37-38; cf. 14:11; 15:24).72

    Esta amostra de referncias esclarece a natureza redentiva e o propsito do trabalho que Deus est fazendo at agora, mencionado em Joo 5:17. Uma breve comparao com a passagem paralela de Joo 9:4 deve remover quaisquer dvidas. Jesus diz: necessrio que faamos as obras daquele que me enviou, enquanto dia; a noite vem, quando ningum pode trabalhar (9:4). A surpreendente semelhana entre os dois textos deve ser notada no apenas em seu contedo mas tambm em seu contexto. Nos dois exemplos Cristo defende Suas obras aos sbados de serem violao do sbado, como acusam Seus inimigos. Entretanto, em Joo 9:3-4 a natureza redentiva das obras de Deus est absolutamente clara. No apenas o Pai descrito como Aquele que envia o Filho para fazer Suas obras, implicando assim o carter missionrio da atividade de Cristo, mas a prpria cura do cego descrita como manifestao das obras de Deus (9:3). Estas evidncias foram a concluso de que o trabalhar at agora do Pai, de Joo 5:17, no se refere a uma ininterrupta atividade criativa de Deus que possa anular qualquer observncia sabtica, mas sim s obras de salvao realizadas pelo Pai atravs do Filho. Melhor dizendo, para usar as bem escolhidas palavras de Donatien Mollat, existe uma obra de Deus: que a misso do Filho no mundo.73 Se nossa identificao do trabalha at agora do Pai (5:17) como a misso salvadora de Cristo est correta, concluso esta que nos parece inevitvel, ento aquelas interpretaes mencionadas anteriormente que explicam as obras de Cristo como uma referncia ao repouso sabtico da Criao, que supostamente Deus no guardou ainda, so portanto incorretas, j que a noo de criao no est absolutamente presente em Joo 5:17.

    No entanto, uma dvida ainda permanece, ou seja, o fato de Cristo defender Suas curas aos sbados no campo das ininterruptas atividades salvadoras de Seu Pai, manifestadas atravs dEle, no implica em que, como declarou Jewett, por Sua obra redentiva, Jesus coloca o sbado de lado?74 Defender que atravs de Seus feitos no sbado Cristo estava anunciando (embora de uma maneira velada) o fim da observncia do sbado, sustentar a mesma posio dos judeus que acusaram a Cristo de quebrar o sbado (Joo 5:16, 18; 9:16). E esta era a acusao que Cristo firmemente recusava admitir. Nos episdios de cura que consideramos anteriormente vimos que Cristo defendeu Suas atividades salvadoras aos sbados com base nas consideraes humanitrias previstas, pelo menos em parte, at mesmo na legislao rabnica. Vimos tambm em Joo que Cristo refutou formalmente a acusao de quebrar o sbado com um argumento teolgico admitido por Seus oponentes. Antes de considerar o argumento de Cristo, deve-se enfatizar que neste e em todos os outros exemplos Ele no admite ter transgredido o sbado, antes defende a legalidade de Sua ao.

    Como bem declarou M. Veloso, uma defesa nunca destinada a admitir a acusao, mas, ao contrrio, a refut-la. Jesus no aceita a acusao de transgredir o sbado lanada sobre Ele pelos judeus. Ele est realizando a obra de salvao que lcito praticar no sbado.75

    Para compreender a fora da defesa de Cristo em Joo, precisamos lembrar o que j discutimos em parte, ou seja, que o sbado tanto est associado ao cosmos atravs da Criao (Gn. 2:2-3; xo. 20:8-11) como Redeno atravs do xodo (Deut. 5:15). Enquanto pela interrupo de todas as atividades seculares os israelitas estavam lembrando o Deus-Criador, pelos atos de misericrdia aos semelhantes estav