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DO ROTEIRO À MONTAGEM Antonio Costa. Compreender o Cinema. Rio de Janeiro, Globo, 1987. COMO SE ESCREVE UM FILME O processo de produçªo de um filme passa pela capacidade de domínio e contro- le de diversas tØcnicas dotadas de um maior ou menor grau de especificidade. Algumas pertencem à esfera cinematogrÆfica em sentido restrito (filmagem, mon- tagem), outras, embora com características precisas, sªo comuns ao cinema e a outras atividades artísticas ou nªo (cenografia, recitaçªo, mas tambØm recursos humanos e organizaçªo do trabalho). O roteiro, entendido como tØcnica de elaboraçªo ou de prØ-visualizacªo de um filme (ver Giustini, 1980, 1-2) constitui o ponto de referŒncia para o preparo de todas as açıes tØcnico-organizativas da realizaçªo. O roteiro Ø um texto de tipo muito particular. Ele deve ter qualidades expressivas ou dramÆticas enquanto contØm os diÆlogos que os atores terªo de dizer; alØm disso, tais qualidades devem ser funcionais para a compreensªo de todos os aspectos psicológicos, estØticos etc., por parte de todos aqueles (dos atores aos tØcnicos) que podem contribuir para o sucesso da obra. Mas o roteiro deve ser tambØm funcional: deve permitir ao produtor ter uma idØia exata sobre a oportunidade de financiar o filme e ao diretor de produçªo elaborar o plano de trabalho. Na base de um filme que entre num processo normal de produçªo (com a exclu- sªo de tipos particulares de experiŒncias baseadas na improvisaçªo e de todas as produçıes atípicas) existe um roteiro que pode ser redigido de vÆrias formas, mas que deve sempre conter indicaçıes funcionais para a passagem de uma fase projetual a uma operacional. Em geral, antes de chegar ao roteiro, a elaboraçªo de um filme passa por vÆrias etapas, que podem ser: a. o argumento b. o tratamento c. o prØ-roteiro d. o roteiro Segundo a importância e o valor operacional que sªo atribuídos às vÆrias fases, o prØ-roteiro (em inglŒs outline) pode preceder o tratamento (em inglŒs treatment) que às vezes pode ser abolido para passar diretamente ao roteiro (screenplay) e à decupagem tØcnica (shooting script) (ver Giustini, 1980 e Muscio, 1981). Tratemos agora de acompanhar estas fases tomando como referŒncia uma preci- osa documentaçªo do trabalho de Zavattini relativo às vÆrias fases de realizaçªo do filme Umberto D. (1952), de De Sica (Zavattini, 1953). a. O argumento Nesse caso se trata de um argumento original do próprio Zavattini (muitas vezes o argumento Ø constituído por uma obra literÆria ou teatral preexistente que,

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DO ROTEIRO À MONTAGEM

Antonio Costa. �Compreender o Cinema.� Rio de Janeiro, Globo, 1987.

COMO SE ESCREVE UM FILME

O processo de produção de um filme passa pela capacidade de domínio e contro-le de diversas técnicas dotadas de um maior ou menor grau de especificidade.Algumas pertencem à esfera cinematográfica em sentido restrito (filmagem, mon-tagem), outras, embora com características precisas, são comuns ao cinema e aoutras atividades artísticas ou não (cenografia, recitação, mas também recursoshumanos e organização do trabalho).

O roteiro, entendido como técnica de elaboração ou de �pré-visualizacão� de umfilme (ver Giustini, 1980, 1-2) constitui o ponto de referência para o preparo detodas as ações técnico-organizativas da realização. O roteiro é um texto de tipomuito particular. Ele deve ter qualidades expressivas ou dramáticas enquantocontém os diálogos que os atores terão de dizer; além disso, tais qualidadesdevem ser funcionais para a compreensão de todos os aspectos psicológicos,estéticos etc., por parte de todos aqueles (dos atores aos técnicos) que podemcontribuir para o sucesso da obra. Mas o roteiro deve ser também funcional: devepermitir ao produtor ter uma idéia exata sobre a oportunidade de financiar o filmee ao diretor de produção elaborar o plano de trabalho.

Na base de um filme que entre num processo normal de produção (com a exclu-são de tipos particulares de experiências baseadas na improvisação e de todasas produções atípicas) existe um roteiro que pode ser redigido de várias formas,mas que deve sempre conter indicações funcionais para a passagem de uma faseprojetual a uma operacional.

Em geral, antes de chegar ao roteiro, a elaboração de um filme passa por váriasetapas, que podem ser:

a. o argumento

b. o tratamento

c. o pré-roteiro

d. o roteiro

Segundo a importância e o valor operacional que são atribuídos às várias fases, opré-roteiro (em inglês outline) pode preceder o tratamento (em inglês treatment)que às vezes pode ser abolido para passar diretamente ao roteiro (screenplay) e àdecupagem técnica (shooting script) (ver Giustini, 1980 e Muscio, 1981).

Tratemos agora de acompanhar estas fases tomando como referência uma preci-osa documentação do trabalho de Zavattini relativo às várias fases de realizaçãodo filme Umberto D. (1952), de De Sica (Zavattini, 1953).

a. O argumento

Nesse caso se trata de um argumento original do próprio Zavattini (muitas vezeso argumento é constituído por uma obra literária ou teatral preexistente que,

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como se diz habitualmente, é �adequada�). O texto de Zavattini tem as dimensõesde um pequeno conto. Também a forma é literária. Não há indicações técnicasnem de ambientação. Desenvolve-se, no estilo coloquial típico de Zavattini, umalinha narrativa que pode ser assim resumida: desventuras e momentos ora dra-máticos, ora pateticamente cômicos da vida de um aposentado que não tem umaaposentadoria adequada para manter um nível de vida decente. Transcrevemos oinício:

O que é um velho? Os velhos cheiram mal, disse uma vez um rapaz. Receio quemuita gente pense a mesma coisa dos velhos, embora nunca tenha dito essafrase cruel. Exagero? Quero contar-lhes a história de um velho e espero que nofinal não digam que eu a inventei. Chama-se Umberto D., tem setenta anos e umrosto sorridente porque ama a vida, gosta tanto dela que protesta com todas asforças contra o Governo que não quer aumentar a sua magra aposentadoria. Nãose espantem se o vemos numa ordeira passeata de velhos que atravessam acidade com cartazes nos quais está escrito: Queremos somente o necessáriopara viver. Mas os policiais tiveram ordens de proibir aos manifestantes de conti-nuar e os manifestantes tentam forçar o cerco. Daí nasce um tumulto. Nada degrave, por sorte. O nosso Umberto, com as suas pernas um pouco enferrujadas,foge por uma rua transversal: quase arrependido, certamente maravilhado, porter se atrevido a tanto. Num canto da rua encontra outros velhos que correm ecom eles se refugia num portão. Dizem que tentarão outra vez. A esperança ossustenta. Trabalharam trinta anos, quarenta anos fiéis ao Estado, dobrando aespinha com a miragem de uma velhice tranqüila. Infelizmente, a velhice deles écheia de humilhações (...) ( Zavattini, 1953, 21).

b. O tratamento

Neste segundo texto as pistas narrativas do argumento são desenvolvidas eaprofundadas. A forma ainda é literária, mas adquiriu uma caracterização narrati-vamente mais definida, mais funcional para a descrição das várias cenas em quese articulam os episódios, com atenção para a ambientação (são definidos acidade e os locais da ação) e a definição das situações.

Eis o incipit (começo) do tratamento, que dá imediatamente uma noção da diferen-ça entre o registro da escrita e o da finalizacão:

Numa bela manhã de outono, uma estranha passeata percorre as ruas de Roma.São quinhentas ou seiscentas pessoas, talvez mais, cada uma com um cachorropela coleira, pessoas de todas as idades e condições sociais. A marcha é séria edisciplinada e os cachorros se comportam bem como os seus patrões. Desper-tando a curiosidade das pessoas, a passeata se dirige rumo à praça Veneza. Nãose consegue entender do que se trata. Pensamos, vendo surgir ao fundo o Altarda Pátria, que se trataria de uma homenagem, porém, vira à direita e sobe a esca-daria do Capitólio.

Mas eis que aparece no alto da escadaria um grupo de policiais que avança deci-dido contra o cortejo. Todos parados. O chefe dos policiais diz que a passeatanão pode subir até a praça do Capitólio. Muitos dos participantes protestam,gritam, empurram, querem continuar. Então os guardas são obrigados a detê-lospela força. Um deles sobe ao pedestal de uma estátua e começa a discursar en-quanto os guardas se retiram para o alto da escadaria à espera dos acontecimen-

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tos. O orador nos faz saber com palavras patéticas que estas pessoas represen-tam os proprietários de cães de toda a cidade e que vieram até aqui para protes-tar contra uma nova taxa sobre os cachorros (. ..) (Zavattini, 1953, 26).

Nesta fase vemos que a anotação inicial sobre o cortejo de protesto é desenvolvi-da e, em parte, modificada: torna-se uma passeata de protesto contra uma taxasobre cachorros. Trata-se de uma variante que prevê uma apresentação do prota-gonista e das suas condições de solidão e de carência econômica numa formamais indireta e fluída, com o acréscimo de alguns elementos cômicos. Comoveremos nas fases posteriores, esta variante será abandonada.

Para dar outro exemplo de como um tópico do argumento é elaborado na fase detratamento, vejamos como a frase �tem o rosto sorridente porque ama a vida,gosta tanto dela que protesta etc.� se transforma numa pequena cena:

Umberto D. sai do refeitório com um outro velho muito mal vestido.

�Que lindo sol!�, dizem ao chegar à rua. Umberto diz que o mundo é belo e quebastaria que lhe aumentassem um pouco a aposentadoria para ser feliz (Zavattini,1953, 27).

Eis também como a decisão de Umberto de pedir esmola, que no argumento édescrita como uma tentativa incerta e desajeitada, logo alterada por causa dachegada de uma pessoa conhecida, é focalizada numa verdadeira gag (que serámantida no filme):

O velho se apóia no muro e fica ali parado por um minuto. Depois estende a mão.Passa um homem apressado. Umberto se envergonha e finge ter estendido a mãopara ver se chovia. Então, o homem apressado olha para o alto, examinando océu, continua o seu caminho (Zavattini, 1953, 36).

e. O pré-roteiro

Nesta fase o projeto se apresenta como a descrição das cenas com a indicaçãosumária do que acontece. Eis o que se tornou o incipit que já examinamos nasfases de argumento e tratamento:

Passeata dos velhos aposentados na Via Nazionale. Apresentação de Umberto edo seu cachorro.

A polícia dissolve a passeata por não ter autorização:

perto do Palácio do Viminale. Umberto se refugia durante o esconde-escondenum portão com outro velho: o velho, ouvindo os seus problemas, aconselha umlugar onde se conseguem pequenos empréstimos(...) (Zavattini, 1953, 43).

c. O roteiro

Vejamos finalmente como as esquemáticas indicações do pré-roteiro são desen-volvidas no roteiro. Note-se que a partir de uma delas (�Apresentação de Umbertoe do seu cachorro�) as anotações sobre a falta de solidariedade em relação aosvelhos darão origem a uma seqüência patético-cômica.

Uma rua central de Roma � exterior, dia Uma passeata ordenada e pacífica per-

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corre uma rua central. O grupo é composto principalmente por velhos e muitosvelhos. Há alguns encurvados, aleijados, outros que se cansam em acompanhar apasseata e fazem breves corridas para ficar junto dos demais. Os que seguem àfrente levam grandes cartazes onde se lê: TRABALHAMOS A VIDA INTEIRA. 0SVELHOS TAMBÉM PRECISAM COMER. JUSTIÇA PARA OS APOSENTAOOS. SO-MOS OS PÁRIAS DA NAÇÃO. AUMENTEM AS APOSENTADORIAS.

As pessoas nas calçadas olham indiferentes os que desfilam. Alguém sorri. Al-guns guardas seguem e controlam discretamente os manifestantes. Um ônibusaparece vindo da praça Veneza e com grande barulho obriga a marcha a umarápida desarrumação.

BUZINADAS DE ÔNIBUS O ônibus prossegue deixando um zunzum de protestosda passeata que se reorganiza rapidamente. PALAVRÕES, GRITOS DOS MANI-FESTANTES . A passeata vira por uma rua lateral. Rua lateral � exterior, dia. Amarcha se dirige para uma pequena praça. Ao fundo aparece uma concentraçãode guardas em caminhonetes que bloqueiam a rua. A passeata prossegue emsilêncio. LATIDO DO MENINO. Da calçada, um menino late em direção a um ca-chorro que um velho de sessenta anos, Umberto D. (um velhote muito simpático,sempre um pouco encabulado, vestido modestamente mas com dignidade), puxapela coleira.O cão responde latindo e tentando livrar-se da coleira para correratrás do menino. LATIDO DO CACHORRO O menino, da calçada, caminha ao ladodele, continuando a atiçá-lo com latidos. O velho, sem jeito por causa dos latidosdo cachorro, olha os seus vizinhos da passeata com ar de quem pede desculpas:já que o cachorro continua a latir, Umberto D. ameaça seguir o menino, bate ospés. O menino foge, enquanto... todos os manifestantes começam a gritar em coroos seus protestos. CORO DE PROTESTOS: Au-men-to! Au-men-to! Au-men-to! Au-men-to! A-po-sen-ta-do-rias! A-po-sen-ta-do-rias! O velho se associa ao coro dosmanifestantes após um instante de hesitação, como se fosse tomar coragem,mostrando assim a sua timidez (Zavattini, 1953, 52-53).

Os trechos reproduzidos acima têm a forma do roteiro literário; faltam indicaçõestécnicas sobre a subdivisão em planos, o tipo de enquadramento etc. Estas últi-mas indicações aparecem no que em gíria se chama �decupagem técnica� e cujadefinição é dada, em medidas diferentes, pelo diretor e por seus colaboradoresmais chegados, os que operam na fase conclusiva do projeto ou nas filmagens.Pode-se afirmar que a decupagem definitiva se realiza também por meio de umcerto grau de improvisação no set e depois na montagem, quando ainda podemser introduzidas variantes com base no material rodado.

Naturalmente não se pode enunciar uma regra fixa, uma vez que o tipo de roteiroelaborado e o grau de respeito a ele varia, na fase de filmagem, em função dosdiretores, cinematografias etc. Por exemplo, é sabido que Hitchcock sempredemonstrou uma espécie de indiferença (há divertidas piadas a respeito) emrelação ao momento das filmagens: e isso não acontecia por ele não lhe dar adevida importância, mas porque chegava a essa fase tendo definido umadecupagem técnica tão precisa que exigia apenas a execução. E igualmente co-nhecido o valor que os jovens diretores da nouvelle vague atribuíam à improvisa-ção, à construção da decupagem dia a dia, segundo as reações dos atores àssituações potencializadas pelo roteiro, às ofertas imprevistas do ambiente defilmagem.

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Ao contrário, há tipos de produção (por exemplo filmes publicitários) em que adecupagem técnica é substituída ou integrada por um storyboard, ou seja, umavisualização gráfica mais ou menos sumária, que fornece, numa espécie de histó-ria em quadrinhos, o esboço dos elementos que entram no enquadramento. Essasolução se torna particularmente importante nos filmes que devem lançar mão demuitos efeitos especiais ou de técnicas particulares de filmagem.

Nos últimos anos, graças ao emprego de técnicas eletrônicas, está tomandoforma um novo modo de integração entre a pré-visualização literária de um filme,o que é o caso do roteiro, e uma pré-visualização eletrônica, análoga à dosstoryboards.

E um exemplo disso o processo adotado na realização de O fundo do coração(1981), de Coppola (ver Brown, 1982).

Para esse filme foi usado um computador para a elaboração eletrônica dos textos(word processor), que permitia a todos os membros da equipe ter a qualquermomento o roteiro atualizado com as últimas correções e as últimas notas técni-cas acrescentadas na fase de ensaios.

Os ensaios, especialmente complexos e bem cuidados, antes de chegar às filma-gens propriamente ditas, compreendiam: as gravações de uma espécie de trilhasonora prévia com músicas e diálogos, a elaboração de seqüências inteiras gra-vadas em vídeo nos locais reais de Las Vegas (e não na reconstrucão do estúdio),para permitir aos atores entrar melhor no ambiente visual das ações e para estu-dar os efeitos cromáticos e luminosos a serem obtidos.

Tudo isso permitiu a elaboração de uma nova metodologia de produção do roteiroem que a tradicional escrita do filme é integrada a vários sistemas de �pré-visualizacão� eletrônica que permitem chegar à fase das filmagens verdadeirastendo-se verificado com antecedência muitos dos fatores que determinam o re-sultado final. Trata-se de um método que oferece numerosas vantagens duranteas filmagens e também na montagem.

E provável que o fracasso desse filme de Coppola junto ao público e à crítica sedeva ao fato de que o grande battage publicitário, que precedeu a sua apresenta-ção e que enfatizava o emprego de uma sofisticada tecnologia eletrônica, tenhacriado expectativas equivocadas ou inadequadas para entrar no espírito de umaobra que não tem nada a ver com as produções do gênero de ficção científica àsquais se associa o uso de tecnologias de vanguarda.

A incompreensão desse filme deriva, paradoxalmente, daquele fenômeno defetichismo da técnica que muitas vezes garante o sucesso de outros tipos deprodução. Na verdade, é difícil que o uso de expedientes técnicos possa garantirum filme que não tenha por base um bom roteiro.

Quem nos lembra isso não é um roteirista, mas um dos mais prestigiados direto-res de fotografia do cinema americano dos anos 70, Michael Chapman: �Aindahoje a melhor resposta para um problema técnico é um roteiro melhor� (váriosautores, 1979, 89).

À escrita do filme na fase de projeto corresponde uma forma de reescrita, depoisque o filme assumiu a sua forma definitiva, atingiu o público e, talvez, tenha se

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tornado um clássico. E o que em Avant-Scène du Cinéma, a mais prestigiada erigorosa coleção de roteiros do cinema mundial, recebe o nome de découpageaprès montage définitif, e que corresponde a decupagem extraída da cópia defini-tiva.

A leitura de um roteiro decupado desse gênero, mais do que de um filme do qualse disponha de uma cópia que se possa controlar na moviola e com o aparelho devídeo, é a forma mais agradável e segura para aprender tudo o que se precisasaber sobre a técnica de escrita analítica de um filme. Para dar exemplos dessastécnicas de escrita, apresentamos a seguir alguns trechos de roteiros extraídosde cópias definitivas.

Primeiro exemplo: incipit de Crepúsculo dos deuses (1950), de Billy Wilder. Nestatranscrição, organizada por Di Ciammatteo, é adotado o método da separação emduas colunas, que é o mesmo usado habitualmente pelos roteiristas: na coluna daesquerda são dadas todas as indicações relativas à parte visual, na da direita asrelativas à trilha sonora (diálogos, voz em off, música etc.). Na coluna da esquer-da são indicados entre parênteses, depois do número progressivo de planos, osdados técnicos, utilizando abreviaturas que, em geral, são explicadas em notas,enquanto as palavras em itálico evidenciam dados relativos a efeitos óticos (porexemplo as transições) ou os movimentos de câmera (panorâmicas, travellingsetc.).

Fade-in(clareamento progressivo da tela)

Uma calçada. Impressos por cima os dizeres: �Um filme Paramount�. A câmerarecua até mostrar uma tabuleta com a indicação: SUNSET BOULEVARD. Continuao movimento de recuo, sobre o asfalto da rua. Sucedem-se os créditos sobreimpressos (passam os créditos)

� (Sob os créditos, segue o mesmo plano de abertura do filme.) Panorâmicavertical para o alto, até enquadrar todo o Sunset Boulevard. Duas motos vêmrumo à câmera, seguidas de três automóveis da polícia.

� (Música. Sirene. Ronco de motores.)

� VOZ DE GILLIS: Sim, é o Sunset Boulevard, em Los Angeles, Califórnia. Sãocinco da manhã. Eis a polícia com os jornalistas.

Panorâniica rapidíssima para seguir o �cortejo� que passa mais adiante.

Fusão:

2 (PG) � Sunset Boulevard. As motos e os carros da polícia vêm em direçãocâmera.(Música. Sirene. Ronco de motores.) Voz de Gillis: Numa destas grandesmansões foi cometido um assassinato. As últimas edições dos jornais se ocupa-rão disso.(Música. Sirene. Ronco de motores.)

Fusão:

3 (PG) � Sunset Boulevard. Os dois motociclistas entram em campo e viramnuma rua lateral. Voz de Gillis: Vocês ouvirão falar na rádio, verão na TV os deta-lhes. Há uma �estrela� do cinema mudo na história...uma das mais famosas.

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4 (PG do alto) � Exterior da mansão de Norma Desmond. Entram em campo osdois motociclistas e param. Seguem os carros da polícia. Descem os agentes, osjornalistas, os fotógrafos. Em grupo se dirigem para a entrada da casa e sobem aescadinha que conduz à piscina. (A câmera segue os que vão atrás).(Música.Sirene. Ronco de motores.)

VOZ DE GILLIS: Antes que a notícia chegue até vocês �trabalhada� e alterada,antes que os jornalistas de Hollywood metam as mãos no caso, talvez não lhesdesagrade saber como ocorreram, realmente, os fatos. É assim? Então, eis omomento justo. Na piscina da mansão onde vive a �estrela� bóia o cadáver de umjovem com duas balas na espinha e uma no estômago.

5 (PG) � Policiais, jornalistas e fotógrafos (que batem fotos) em volta da piscinaonde flutua o cadáver.

(Música.) Voz de Gillis: Não é uma pessoa importante, posso assegurar-lhes.Trata-se de um roteirista de cinema que tinha no ativo alguns filmes de segundoplano.

6 (PG Câmera baixa) � O cadáver de Gillis na piscina, enquadrado por baixo. Nofundo, vistos através da água, os policiais e os jornalistas. São vistos de relanceos relâmpagos das �vacublitz�.

(Música.)

Voz de Gillis: Pobre coitado. Sempre quis uma piscina. Bom, afinalconseguiu...mas pagou caro demais. Passa-se para a recordação. Vamos dar umpasso atrás. (Acaba a música.)

Fusão:

7 (PG do alto) � Hollywood.

Ivar Street até Hollywood

Boulevard. Animação.

VOZ DE GILLIS: A história toda começou há seis meses. (Wilder, 1952, 17-19)Segundo exemplo: uma cena, para ser exato a oitava de um cult movie contempo-râneo, No correr do tempo (1976), de Wim Wenders, numa transcrição que adotaum critério diferente da precedente, adequada às técnicas de escrita hoje em usonos roteiros.

Na margem do Elba. Exterior � dia.

1. Bruno, da janelinha, é focalizado de perto, enquanto se ensaboa com o pincel,olhando no espelho retrovisor externo que está em primeiro plano. Inesperada-mente, ouve alguma coisa e volta-se para trás, saindo um pouco da janelinha. Acâmera se ergue até a metade da grua para enquadrar, completamente, a parte dafrente do caminhão e a estrada, atrás, onde está entrando em campo o carro deRobert. Continua em panorâmica seguindo o Volks, que acaba no rio com umgrande esguicho de água. O automóvel flutua na água.

2. Plano próximo frontal: Bruno permanece admirado, ainda segurando o pincel

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de barba. Vira-se para o rio, torna a olhar para a câmera.

3. Plano total do automóvel que flutua no rio.

4. A câmera na mão enquadra de perto, lateralmente, Robert que, no Volks, agita-se furiosamente contra o volante, enquanto a água começa a entrar no carro.

2a. Bruno não consegue conter uma grande risada.

4a. Robert abre a capota do Volks, enquanto a água continua a subir. Apanha ajaqueta e a coloca fora da capota.

2b. Bruno voltou a ficar sério.

5. Robert empurra a valise para fora. A câmera na mão se move para o alto atéchegar a um plano próximo. Robert sai pela capota.

2c. Bruno se prepara para descer do caminhão.

6. Plano frontal: pela direita do caminhão, Bruno, à esquerda do campo, olha nochão os seus apetrechos de barba que caíram enquanto ele descia.

7. Geral do rio: no centro, o automóvel em cujo teto Robert subiu.

6a. Fechada a janela do caminhão, Bruno recolhe os seus apetrechos de barba eos apóia sobre o pára-choque.

7a. Robert salta na água com a valise e começa a andar rumo à margem.

8. Plano de meio-conjunto frontal de Bruno com uma toalha nas costas. A câmerao focaliza, com um travelling lateral até chegar a um plano próximo, enquanto elese dirige para a margem do Elba, rindo. Com a toalha tira o creme de barba queainda tem no rosto.

9. Plano de conjunto de Robert que nada rumo à margem empurrando a valisepara a frente.

10. Primeiro plano de Bruno, que o observa sorridente e curioso.

9a. De conjunto a próximo: Robert atinge a margem, sai da água, sacode a valisee, todo molhado, prossegue. Entrou água no ouvido, por isso ele dobra a cabeça ecom um dedo tenta tirá-la.

lOa. Bruno o examina da cabeça aos pés.

11. Meio-conjunto, depois panorâmica, até plano próximo: Robert alcança Brunona margem. A câmera enquadra os dois enquanto se olham no rosto e caem narisada. Robert faz um gesto indicando os sapatos.

ROBERT: Estão ensopados, hã!

Robert se vira para o carro que está afundando de vez.

Lentamente os dois, seguidos pelo carrinho, se dirigem para o caminhão. Robertrepete:

R0BERT: Estão ensopados!!

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Chegando em frente do caminhão, os dois param, Robert se apóia com as costasvoltadas para o caminhão. Bruno faz uma pirueta e cai na risada outra vez, en-quanto Robert o observa irritado (...) (Wenders, 1979, 22-23).

A transcrição de um filme ou de uma parte dele feita com critérios análogos aosroteiros acima apresentados constitui um excelente exercício para entender asregras de composição de uma obra ou a peculiaridade do estilo de um autor. Adifusão do uso do vídeo torna esse tipo de análise relativamente simples e elimi-na a obrigatoriedade de utilizar a moviola.

Mesmo devendo ter sempre em conta que a qualidade da imagem é diferente daprojeção numa grande tela (mas isso vale também para a moviola), o exercíciopermite a qualquer pessoa reconstituir o processo de elaboração e construçãodas seqüências de um filme.

O PLANO

Consideremos um breve fragmento de filme. A cena é a seguinte: um homem euma mulher viajam de carro. Ele é Philip Marlowe, o detetive saído da fantasia deRaymond Chandler e que neste caso tem o rosto de Humphrey Bogart. Ela éVivien Regan Sternwood, interpretada por Lauren Bacall. O filme é À beira doabismo (1946), de Howard Hawks.

A cena não é muito longa: o tempo necessário para ela dizer �Acho que estouapaixonada por você� e para que ele repita em seguida �Acho que estou apaixo-nado por você�. Raymonde Bellour, um crítico francês que dedicou a esse seg-mento uma minuciosa análise, nota maliciosamente, antes de revelar-nos que ocena está articulada em doze planos, que qualquer espectador, mesmo atento,�será capaz de jurar com segurança que o segmento consiste num longo planosustentado pelo diálogo; e, na melhor dos hipóteses, em três ou quatro planos�(Bellour, 1979, 126).

E o resultado típico da chamada decupagem clássico que tende a produzir, mes-mo com extrema fragmentação dos planos e graças à integração da trilha sonora,uma impressão de unidade e continuidade da cena (que na realidade é constituídapor uma seqüência de planos com ângulos e composição variados).

Aqui o crítico se preocupou em enumerar exatamente as variações de ângulo e deescala porque estava decidido a demonstrar que a impressão de �evidência�provocada pelo cinema de Hawks e celebrada nos anos 50 por Rivette com afórmula �A evidência é o signo da genialidade de Howard Hawks� (ver Grignaffini,1984, 139) é na realidade o resultado de um procedimento de montagem rigorosa-mente codificado. Mas antes de ser uma exigência do crítico ou do espectadorque quer entender os mecanismos da linguagem fílmica, a definição exata doplano é uma exigência de todos aqueles que participam da elaboração e da exe-cução daquilo que no parágrafo precedente definimos como decupagem técnica.

Cada enquadramento é o resultado de uma série de escolhas relativas:

a. aos elementos pró-fílmicos, isto é, à cena e aos atores predispostos a seremfilmados, a serem incluídos ou excluídos:

b. às modalidades técnicas da filmagem, isto é, às diversas possibilidades de

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rendimento cinematográfico dos elementos pró-fílmicos.

Naturalmente tais escolhas são complementares: por exemplo, a opção de incluirsomente o rosto de um ator comporta a modalidade técnica de filmagem comdistância aproximada (ou de um procedimento equivalente como o uso de umateleobjetiva que, em escala semelhante, produzirá uma qualidade diferente daimagem).

Na terminologia corrente, isto é, na adotada em roteiros, nas descrições analíti-cas, em geral se faz uma distinção entre o campo de filmagem que define a por-ção de espaço enquadrado e o plano cinematográfico, que é habitualmente defini-do em relação à proporção que a figura humana é enquadrada. Não se trata, po-rém, de uma distinção rigorosa por não ser rigidamente definida nem respeitada.Mesmo assim, apresentamos uma lista com abreviaturas, definições e indicaçõesdos termos ingleses e franceses correspondentes aos principais tipos de campose planos.

PG: Plano geral ou simplesmente geral.

Define-se em relação à cena, enquadrada na sua totalidade. Se a cena é o pátio deum prédio, o exterior de uma fábrica ou o interior de um centro desportivo ou umasala de estar.

PG é o enquadramento que capta estes espaços no seu conjunto. Pode-se consi-derar equivalente ao plano de conjunto (PC).

Inglês: Extreme long shot ou Long shot.

Francês: Plan d�ensemble ou Plan général.

PMC: Plano de meio-conjunto.

Alguns o definem quantificando a distância da figura humana filmada entre maisou menos trinta metros e a figura inteira; outros, como um enquadramento que dádestaque à figura humana, sem isolá-la do ambiente.

Expressões equivalentes: meio plano geral ou meio geral.

Inglês: Medium long shot.

Francês: Demi-ensemble.

PM: Plano médio.

O parâmetro da figura inteira que surge no enquadramento é utilizado para definiroutras nomenclaturas, mais ou menos equivalentes, do tipo plano próximo.

Inglês: Ful lenght shot (FLS) ou medium shot (MS).

Francês: Plan moyen (PM).

PA: Plano americano.

A figura humana é filmada, aproximadamente, dos joelhos para cima.

Inglês: Mediam shot.

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Francês: Plan américain.

PP: Primeiro plano.

A figura humana é enquadrada de meio busto para cima. Alguns usam um valorintermediário entre o PA e o PP.

Inglês: Close up.

Francês: Premier plan.

PPP: Primeiríssimo plano.

Enquadramento apenas do rosto.

Inglês: Extreme dose ap.

Francês: Gros plan ou Très gros plan.

Detalhe.

Alguns autores o relacionam a objetos ou à figura humana. Quando referido àfigura humana, diz respeito a somente uma parte do rosto ou do corpo (boca,olhos, mãos etc.); quando a coisas, diz respeito a um objeto isolado ou parte deleocupando todo o espaço da tela.

Inglês: Detail shot, insert.

Francês: Insert, détail.

Além das escalas de planos que examinamos nas principais variantes em uso, aimagem é definida por outras características ligadas às modalidades técnicas defilmagem. Vejamos as principais.

Ângulo de filmagem.

Define o ângulo pelo qual o sujeito é filmado. A filmagem pode ser frontal emrelação ao eixo horizontal e vertical do sujeito filmado; ou o ângulo pode serconsiderado de cima para baixo ou da direita para a esquerda.

Luminosidade e foco.

Ambos dizem respeito às qualidades propriamente fotográficas da imagem edependem de elementos pró-fílmicos (o tipo de iluminação adotado) e também deelementos propriamente fílmicos (tipos de objetivas, aberturas de diafragma, tipode filme etc.).

Por exemplo, no que concerne ao foco, a possibilidade de manter em foco todosos elementos do enquadramento é facilitada pela introdução do filmepancromático e de objetivas especiais. Enquanto a luminosidade depende darelação entre a abertura do diafragma e o comprimento focal da objetiva, comobem sabe todo apaixonado pela fotografia, e diz respeito ao rendimento dos con-trastes de luz (definição) e à distribuição dos valores luminosos e cromáticossobre os volumes e as superfícies (tonalidade).

Em todo caso, esses valores são o resultado da interação entre as condições de

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luz produzidas a nível fílmico e as técnicas de filmagem adotadas.

As objetivas.

Como a escala de planos, variam notavelmente as potencialidades do espaço e darelação entre figura e fundo, segundo a objetiva usada, ou mais exatamente doseu comprimento focal. Por exemplo, os focos curtos (18/20 mm para a 35mm e10/18 mm para a l6mm) �colocam a personagem contra o fundo, alargam o espa-ço, aceleram deslocamentos, à custa de deformações marginais (as verticais securvam nos bordos da imagem. Os focos longos (50/135 mm para a 35 mm e 30/75mm para a 16 mm) �esmagam a perspectiva, restringem o espaço, achatam tudo oque se encontra a distância, reduzem o ritmo dos deslocamentos� (Pinel, 1981,26-27).

O plano e o valor expressivo de cada uma dessas características doenquadramento dependem do contexto, isto é, da relação de recíproca funcionali-dade que se estabelece com os outros elementos do enquadramento e os outroselementos da expressão fílmica (por exemplo, o som).

Vamos partir daquela que é a qualificação primária do plano em relação ao con-texto: trata-se da qualificação objetiva ou subjetiva da imagem. Convencional-mente, todo espectador está habituado a considerar aquilo que o filme lhe mostracomo um conjunto de planos colhidos objetivamente pela câmera e segundo umalógica que respeita as regras da narração para imagens e que aceita um certograu de deformação ou de estilização devidas à subjetividade do narrador. Juntoa esse tipo de planos, há outros, contextualizados de tal modo que podem serinterpretados como imagens vistas, recordadas ou imaginadas por uma determi-nada personagem. É claro que um flou ou um ângulo particularmente deformanteadquirirão significados e funções diferentes se forem contextualizados comoplanos objetivos ou subjetivos. Um flou num primeiro plano contextualizado comoobjetivo é apenas um expediente de enfatização lírica ou dramática escolhidopelo diretor. Um plano insistentemente fora de foco, se contextualizado comosubjetivo, pode adquirir significado. em relação à personagem.

Um expediente deste tipo é usado por Murnau em A última gargalhada (1924) paraindicar a embriaguez do protagonista

depois de uma festa.

Simétrico é o significado, se bem que oposto à contextualização, do flou numacélebre seqüência de Hamlet (1948), de Laurence Olivier, a da aparição do espec-tro do pai. Antes que ela aconteça, algumas visíveis e insistentes ausências defoco num primeiríssimo plano de Hamlet nos fazem participantes da iminenteaparição do espectro. Uma série de rápidas personagens de foco a fora de focodo plano produzem um efeito de pulsação da imagem que transmite um estadofísico e psicológico da personagem.

Os dois planos nos transmitem o estado de espírito subjetivo da personagem: ode Murnau qualificado como subjetivo, o de Olivier como objetivo.

Considerações análogas podem ser feitas para os ângulos de filmagem. O ângulode baixo para cima é usualmente um expediente que aumenta e enfatiza a perso-nagem; pelo contrário. O de cima para baixo pode tornar-se uma indicação de

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fraqueza, opressão etc. Se colocados como subjetivos numa troca campo-contracampo entre duas personagens, indicam, respectivamente, um sentimentode domínio e de sujeição.

Eichenbaum, no âmbito das pesquisas dos formalistas russos sobre as relaçõesentre linguagem visual e verbal, considerava um procedimento desse tipo a reali-zação visual da metáfora �olhar alguém de cima para baixo� (ver Krainski, 1971,50-51).

Pode surgir um contexto que inverta o significado e venha a transgredir esseprincípio ligado a uma simbologia bastante elementar do alto e do baixo. EmMonstros (1932), de Tod Browning, nas seqüências finais em que os pequenosmonstros decidiram unir-se e vingar-se da bela Cleópatra que traiu e tentou matarum deles, os insistentes planos subjetivos do alto exprimem um sentimento deterror por essa forca misteriosa e irresistível que parece emergir do �subsolo� eestá para destruir a protagonista. Neste caso, �olhar de cima para baixo� nãoexprime domínio mas, através de um singular efeito de estranhamento, medo pelodesconhecido, pelo diverso.

Até agora falamos do plano como de um elemento estático, considerando-o virtu-almente fixo. Tudo isso é uma abstração necessária para o estudo e a definiçãode um fenômeno, como são abstrações os enquadramentos de um filme reprodu-zidos num livro.

Cada plano é na realidade um elemento dinâmico; e não só porque, como acaba-mos de ver, está sempre em interação com outros planos, que, contextualizando-a, determinam variações de usos e significados. Existe um dinamismo interno doplano que diz respeito tanto ao material pró-fílmico (os movimentos dos atores oude outros componentes da cena) quanto ao seu rendimento cinematográfico, umavez que a organização dos materiais plásticos (composição) pode gerar efeitosdinâmicos, exatamente como acontece na pintura ou na fotografia.

Dito de outra maneira, o plano define, literalmente circunscreve, elementos dinâ-micos, ou seja, em movimento, e, através de seus valores de composição (equilí-brio entre cheios e vazios, dominância de linhas verticais, horizontais ou oblíquasetc.), produz ou acentua valores dinâmicos.

Por fim, existe um dinamismo do plano ligado ao seu movimento: plano em movi-mento. Ele se opõe ao plano fixo que é obtido mantendo imóvel a câmera enquan-to dura cada tomada. O enquadramento fixo, por sua vez, não deve ser confundi-do com o stop frame (fotograma fixo), que é um efeito especial que se obtém aofazer a cópia do filme, e desempenha funções análogas às de outras �trucagens�codificadas como sinais de pontuação ou marcas enunciativas.

Portanto, uma cena pode ser filmada segundo três modalidades fundamentais(que aqui consideramos separadamente, mesmo sendo intuitivo que podem sercombinadas entre si):

1. Plano fixo

É aquele usado, por necessidade, pelo cinema primitivo, o de Méliès, por exem-plo, obrigado a adotar um ponto de vista único, a distância fixa, o que Sadoulchamava o ponto de vista do �senhor na platéia� (Sadoul, 1947-48, 401-409).

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2. Seqüência de planos variados quanto à escala, ângulo de filmagem etc.

Nesse caso, a filmagem é efetuada deslocando várias vezes a câmera, mas oespectador só vê os efeitos de tais deslocamentos. Esse conjunto de variaçõespode ser mantido claramente visível por causa das consideráveis diferenças dosparâmetros dos diversos planos e do forte escandimento rítmico (como aconteceno cinema soviético dos anos 20). Pelo contrário, as variações, mesmo quandofreqüentes, podem ser quase anuladas pela rigorosa funcionalidade das funçõesao desenvolvimento da ação e pelo papel hegemônico que a �continuidade� datrilha sonora desempenha em relação à �descontinuidade� dos planos (é, como járecordamos, o efeito da decupagem clássica).

3. Plano em movimento

A cena é filmada movendo a câmera seja para focalizar melhor e em fases suces-sivas os diversos elementos que compõem a cena, seja para produzir efeitos deintensificação expressiva.

OS MOVIMENTOS DE CÂMERA

Por influência da publicidade cinematográfica francesa e em seguida ao sucessoobtido pelo termo �plano-seqüência� introduzido por Bazin, existe a tendência,também entre nós, de reservar o termo �enquadramento� para definir osparâmetros espaciais (escala, ângulo etc.) e deixar o termo �plano para definir osrelativos à duração e ao movimento (plano travelling, por exemplo)�.

Portanto, é conveniente esclarecer que nem sempre e não necessariamente umplano em movimento é um �plano-seqüência�. De fato, podemos encontrar movi-mentos mais ou menos longos tanto numa cena desenvolvida segundo os critéri-os da decupagem clássica, quanto em determinadas passagens de tipo descriti-vo, lírico ou dramático da narração.

Vejamos agora analiticamente os movimentos de câmera mais comuns que cons-tituem, com exceção do zoom (ver mais adiante), a base técnica do plano emmovimento.

Panorâmica

Trata-se de um movimento giratório da câmera que pode ser horizontal (panorâmi-ca horizontal à direita ou à esquerda; se a rotação for completa: panorâmica de360°); vertical (de cima para baixo ou vice-versa); oblíqua.

Travelling (carrinho)

A câmera é colocada sobre um suporte móvel (normalmente um carrinho quecorre sobre trilhos, mas também um veículo com pneus, camera car, ou sistemasanálogos), executa um movimento para frente, para trás, para a direita, para aesquerda ou oblíquo; se é um movimento relativo a uma tomada do alto se fala de�travelling aéreo�; se acompanha o movimento de uma personagem, um animal,um veículo, se fala de travelling para acompanhar; se o movimento da câmeraprecede a tomada, se fala de travelling para preceder; o termo inglês travelling éhoje o mais difundido e não necessita de especificações nem provoca dúvidasquanto ao método usado para obter o movimento.

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O travelling pode ser simulado através do emprego do zoom, isto é, de uma objeti-va com foco variável que permite efeitos de aproximação a distanciamento doelemento enquadrado, obtendo variações da escala e de todos os outrosparâmetros do enquadramento. Com o zoom se pode obter a passagem, no tempodesejado, de um plano geral a um detalhe ou vice-versa, sem precisar mover acâmera.

Dolly ou grua

A câmera, colocada na extremidade de um braço móvel sustentado por uma plata-forma munida de rodas ou ajustável num veículo, pode executar movimentosmuito fluidos de baixo para cima (e vice-versa) e associar a esses outros movi-mentos do tipo daqueles anteriormente descritos. A diferença entre dolly e gruaestá na maior complexidade e capacidade de elevação da câmera que tem a se-gunda em relação à primeira.

Câmera na mão

Trata-se de movimentos obtidos através de deslocamentos do operador que ma-nobra a câmera sem a ajuda do instrumental corrente (cavalete munido de umsuporte para fixar a câmera, o carrinho etc.): método de filmagem que se tornoupossível graças à introdução de aparelhos leves e levados do cinema direto parao cinema narrativo.

Steadycam

A câmera fixada ao corpo do operador mediante uma armação e, ao mesmo tem-po, perfeitamente isolada dele por um sistema de amortecedores, adquire o máxi-mo de mobilidade própria das câmeras portáteis e o máximo de fluidez, já que osdeslocamentos não dependem mais do controle manual da câmera por parte dooperador.

Esse último procedimento descrito nos oferece uma pista excelente para abordaro complexo problema da natureza, do uso e do significado dos movimentos decâmera, em relação ao caráter analógico ou convencional desses importanteselementos da significação fílmica. O problema é o seguinte: aquilo a que chama-mos os �movimentos da câmera� e que são deslocamentos do ponto de visão emrelação à cena filmada, são reproduções dos movimentos e das trajetórias doolhar de um virtual observador ou são movimentos e trajetórias �convencionais�,que, mesmo apresentando semelhanças parciais com os da vida cotidiana e davisão comum, têm características que os tornam mais próximos da arbitrariedadedos signos lingüísticos do que da analogia dos signos icônicos?

Por exemplo, a abertura angular do campo visual humano é de cerca de 180º,enquanto uma objetiva com foco médio não supera os 40º. Isso não impediu quese estabilizasse uma convenção, partilhada e aceita, segundo a qual o empregode uma objetiva com foco médio simula modalidades de visão comum, em relaçãoà qual o uso da grande angular, isto é, de uma objetiva que está mais próxima daabertura angular do campo visual do olho humano é percebido como modalidadede visão extraordinária, adequado para destacar ou enfatizar, graças àsdistorções de perspectiva, o caráter espetacular de uma cena.

O chamado efeito de �câmera na mão� é o resultado de uma modalidade de filma-

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gem em que os sobressaltos e as irregularidades de deslocamento se tornaram amarca de uma participação que se pode definir como física, envolvente, no eventofilmado, mesmo que se trate de efeitos que não têm correspondência nas modali-dades de visão ordinária da vida cotidiana, onde um homem que caminha conti-nua a manter a capacidade de variar de forma fluida e regular o seu campo visual.

E em relação à precedente �convenção� das panorâmicas e dos travellings �flui-dos� do cinema feito nos estúdios que, nos anos 60, o uso da �câmera na mão�produz efeitos �extraordinários�, mas se trata sempre de uma nova �convenção�,com características transgressoras em relação a uma precedente.

Uma outra observação, aparentemente paradoxal, concerne à extraordináriafluidez dos movimentos da steadycam, graças à qual o olho da câmera se tornauma coisa só com o corpo do operador e, depurado de qualquer resíduo de efei-tos ligados às manobras mecânicas e manuais do operador, parece ter atingido aperfeita simulação do olho humano.

Convém observar que o modo pelo qual foi usado e percebido esse procedimentoparece conduzir a uma direção oposta. Ele foi usado até agora para a simulaçãode modalidades de visão extraordinária, chegando quase a uma performancetecnológica bastante próxima dos efeitos especiais (aos quais é às vezes assimi-lado), tanto é assim que alguns operadores, justamente por causa desse efeitoinduzido, limitam o seu uso ou o eliminam. Os casos em que os movimentos decâmera são considerados como diegeticamente plausíveis, isto é, são apresenta-dos como o ponto de vista de uma personagem que capta a cena segundo a traje-tória de um seu movimento no espaço, têm uma importância marginal (ou limitadaaos casos dos planos subjetivos) em relação às funções e aos significados da-queles movimentos que não têm nenhuma outra motivação além da funcionalida-de narrativa e a eficácia expressiva.

Pasolini, no período dos primeiros passos da semiótica cinematográfica, isto é,por volta da metade dos anos 60, elaborou uma tipologia das possíveis relaçõesentre movimentos da câmera e movimentos das personagens ou objetos enqua-drados. São três os principais tipos de relação que ele identificou, chamando-os�os modos da qualificação fílmica�.

Em analogia com os modos verbais, Pasolini distingue entre qualificação ativa epassiva. Ocorre a qualificação ativa quando �é a câmera que se move ou prevale-ce�. Nesse caso, a câmera �age� e o sujeito �sofre�. Ela prevalece nos filmes dogênero �lírico-subjetivo� que Pasolini fazia coincidir com as tendências maissignificativas do cinema novo dos anos 60.

Temos a qualificação passiva �quando a câmera está parada e não é percebida,enquanto se move o objeto da realidade�. Nesse caso é a personagem que age ea máquina se limita a sofrer (registrar) a sua ação. Ela prevalece nos filmes detendência realista, uma vez que implica confiança por parte do diretor na objetivi-dade do real (Pasolini, 1972, 219-20).

Apesar do seu esquematismo esta classificacão tem o mérito de sublinhar o valor�lírico-subjetivo� (isto é, expressivo) dos movimentos de câmera (no segundo eno terceiro caso, os movimentos, se existem, não são captados pelo espectador).

Seria um erro considerar que fusões entre os elementos em jogo numa cena,

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obtidas através de movimentos de câmera em vez da justaposição de planosvariados no ângulo, escala etc., sejam mais naturais ou pertinentes às modalida-des de visão ordinária na vida cotidiana.

Já observamos que o ordinário e o extraordinário nas modalidades de visão simu-ladas pelo cinema estão sempre relacionados com a convenção comunicativadominante e com o efeito obtido em relação ao contexto.

Por exemplo, a fragmentação dos planos utilizada segundo um critério capaz detorná-la quase imperceptível, utilizada na chamada decupagem clássica, torna-seuma modalidade comum de visão em relação à qual a filmagem em continuidadede um filme inteiro, realizada por Hitchcock em Festim diabólico (1948), constituiuma evidente infração, adquirindo assim um caráter extraordinário.

Nesse filme, Hitchcock realizou um verdadeiro tour de force de direção e estilo,propondo-se a rodar um filme inteiro num único plano-seqüência. Há somente umbreve segmento inicial que tem a função de prólogo e que é constituído por ummovimento composto de travelling para trás e panorâmica que nos faz ver umângulo de rua enquadrado de cima para baixo do terraço de um prédio, parandodepois para filmar a janela do apartamento em cujo interior se desenrolará toda aação. Quanto ao resto, o filme é realizado sem cortes aparentes, fazendo coincidira duração da narração fílmica e duração da ação (ver Bettetini, i979, 29).

Nesse caso, os, contínuos e complexos movimentos de câmera necessários paravariar ângulos e pontos de vista no desenvolvimento dramático da estória e paraocultar os cortes (inevitáveis a cada troca de bobina), em vez de produzir umaimpressão de naturalidade ou de adequação às modalidades de visão ordinária,produzem o efeito oposto.

Não é uma casualidade que o filme não tenha agradado a Bazin, ou seja, aqueleque teorizou pela primeira vez o plano-seqüência, o qual achou que Hitchcockhavia usado um expediente artificial para conseguir enquadramentos de tipotradicional. Segundo Chabrol e Rohmer, esse filme de Hitchcock assinalava odefinitivo afastamento da concepção tradicional do enquadramento, baseadaprincipalmente sobre valores de composição, e à qual tinham permanecido liga-dos tanto Eisenstein quanto Welles (Chabrol e Rohmer, 1957, 98-99).

Sem entrar no mérito da questão, usamos essa divergência de opiniões parasublinhar a variedade de significados assumidos ou atribuíveis aos movimentosde câmera, independentemente da técnica com que são produzidos e das finalida-des com que foram introduzidos.

É evidente que o emprego de grua e dolly no musical como se codificou a partirdos anos 30 (pensemos em particular em Busby Berkeley) tem a função de dina-mizar o espaço e de oferecer não só pontos de vista espetaculares, mas também,digamos assim, o espetáculo do deslocamento ascendente da perspectiva emrelação às mais complexas e estonteantes �figurações� da coreografia. Mas nãose pode ignorar que movimentos desse tipo constituem uma espécie de �formasimbólica� da fantasia do vôo, da perda do peso corpóreo, de uma espacialidadeque é a do sonho e do desejo.

Encontramos o mesmo movimento de grua em contextos e com funções bemdiferentes. Eis dois exemplos muito distantes do musical. No início de Arroz

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amargo (1949), de De Santis, um amplo movimento de grua parte do primeiroplano de um cronista de rádio e nos leva a descobrir progressivamente o vastocenário de uma estação em que se estão concentrando as colhedoras de arrozprestes a partir: é um procedimento típico do cinema de De Santis que se configu-ra como enfatização ideológica e dilatação espetacular da relação entre o indiví-duo e a coletividade (ver Lizzani, 1978, 58-59).

No final de Mamma Rosa (1962), de P. P. Pasolini, um movimento triplo de dollysobre o corpo sem vida de Ettore estendido no leito da cadeia assume, inclusivepela analogia com a estrutura de composição do célebre Cristo morto, de AndréaMantegna, uma clara função ritual, segundo uma declaração do próprio Pasolini(ver Magrelli, 1977, 54).

A mais complexa orquestração de movimentos de câmera se registra exatamenteno âmbito do �cinema novo� dos anos 60: entre os vários exemplos possíveisexaminemos o do húngaro Jancsó, do qual já recordamos Os sem esperança(l964), Csillagok Katonak (1967) e Csed és Kialtás (1968).

Nesses filmes, o movimento �horizontal e contínuo�, quase obsessivo, raramenteinterrompido por movimentos �verticais�, como notou G. Buttafava, parece nascerde uma adequação, e não de uma sobreposição artificial, às condiçõesambientais, �à própria natureza da paisagem húngara, achatada, com interminá-veis horizontes circulares�. Contudo, como observa o mesmo crítico, as comple-xas figurações desenhadas pelos intermináveis planos-seqüência de Jancsótornam-se �quase uma metáfora da dimensão inalcançável do sentidoevanescente, um símbolo de futilidade�:

�A extrema mobilidade da câmera, com seus ritmos circulares que retornam e serespondem incessantemente, cria não verossimilhança ou, pelo menos, ausênciade verossimilhança: os olhos do espectador não fazem outra coisa senão trans-correr no espaço e nos volumes que o povoam sem poder parar e conquistá-los,para associá-los a um significado ou a um código de referênciasprecisas.�(Buttafava, 1974,66.)

Essa incursão no cinema dos anos 60 em que se registrou uma espécie de exas-peração dos movimentos de câmera (ainda mais evidentes nos epígonos dosanos 70), não nos deve fazer esquecer que também na chamada decupagemClássica podem ser encontrados movimentos de câmera extremamente comple-xos, mas caracterizados por um rigoroso equilíbrio entre a exigência narrativa(introduzir imediatamente elementos narrativos claramente reconhecíveis emrelação ao gênero a que pertence o filme) e a função simbólica (que nunca é so-breposta artificialmente à ação, mas é por ela determinada).

Um exemplo pode ser dado por um clássico dos filmes do gênero noir de produ-ção Universal, assinado por Siodmak, Espelhos d�alma (1946). A seqüência deabertura é sustentada por uma complexa combinação de movimentos diferentes(panorâmicas e travellings) que nos apresenta em seguida: uma paisagem urbananoturna, com as luzes dos edifícios que emergem do fundo escuro, colhida porum amplo movimento lateral que nos leva até uma janela aberta com uma cortinaque se move lentamente com o vento: a câmera penetra além da janela até enqua-drar em primeírissimo plano um relógio (são 10 para as 11): a seguir, a câmeraretrocede em relação ao relógio e entra por uma porta em outra peça muito desar-

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rumada e com uma lâmpada caída no chão: com um travelling para frente, oenquadramento nos faz perceber uma rachadura de um espelho que parece umaespécie de hieróglifo; um outro movimento de volta (travelling para trás) determi-na uma ampliação do campo visual que nos permite discernir um cadáver com umpunhal cravado na espinha.

Do ponto de vista narrativo, esse segmento nos dá as informações fundamentaisque determinam o clima de um bom policial (romance ou filme): foi cometido umcrime, a hora do crime (o relógio), a arma do crime (punhal), o local (apartamentode um edifício numa metrópole).

Do ponto de vista iconográfico, o segmento apresenta: visão noturna de paisa-gem urbana sugestiva e misteriosa que contextualiza elementos figurativos,enfatizados por uma atmosfera luminosa densa e com fortes contrastes, como acortina movida pelo vento, o relógio, o espelho rachado, a lâmpada derrubada.São esses elementos que atribuem ao andamento aparentemente descritivo dosmovimentos analisados uma função de índice (ver Hamon, 1972, 143 e 150-51) ese tornam, portanto, marcas do gênero; o complexo movimento que os põe emevidência tem de fato uma conclusão somente com a �descoberta� do cadáver.

Do ponto de vista iconológico, o movimento labiríntico da câmera produz quaseem filigrana uma enigmática geometria que não apenas apela para o �hieróglifo�da rachadura do espelho, mas também os �hieróglifos� das �manchas deRorschach�, utilizadas como se sabe nos testes psicológicos, e que são coloca-das como motivo gráfico de fundo dos créditos iniciais, mas que terão tambémum papel importante na ação (um psiquiatra irá usá-las para caracterizar a perso-nalidade patológica de uma das gêmeas indiciadas no crime).

Considerações à parte devem ser feitas para o chamado travelling ótico, isto é, omovimento de câmera simulado através do zoom. Há diretores que o preferem aotravelling propriamente dito: um desses é Rohmer, o qual declarou:

�Quando alguém fala ou se concentra, acho mais natural restringir-lhe o campodo que me aproximar dele; ou quando nos concentramos num quadro, um objetoque o ator olha com atenção, acho que o movimento do zoom esteja mais próximoao olho humano� (ver Mancini, 1983, 17).

Outros diretores recusam ou limitam muito o seu uso, considerando o resultadomais artificial e �visível� do que o conseguido pelo travelling com câmera móvel,ou seja, pelas mesmas razões por que o zoom teve um grande sucesso no âmbitodo cinema novo dos anos 60 como marca da subjetividade do autor e como pro-cedimento transgressor em relação à sintaxe comedida e composta dadecupagem clássica.

A FOTOGRAFIA

Giuseppe Rotunno, diretor de fotografia em filmes de Visconti (O Leopardo, 1963etc.), de Fellini (Amarcord, 1973 ,etc.), de Altman (Popeye, 1981) e de Bob Fosse(O show deve continuar, 1979) declarou numa entrevista: �(...) Sem querer tirarnada à literatura, é preciso dizer que é fácil escrever �uma alvorada lívida�, mascomo traduzi-la em imagens?� (Consiglio e Ferzetti, 1983, 155).

Aí está em poucas palavras o trabalho do diretor de fotografia: ele deve procurar

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ou produzir aquelas condições de luz que, combinadas com as técnicas de filma-gem e de cópia, criem os resultados fotográficos previstos pelo roteiro ou exigi-dos pelo diretor; ele deve fazer com que, retomando o exemplo de Rotunno, aexpressão �alvorada lívida� se torne um fato plástico, adquira uma realidade emtermos de luz.

Naturalmente, a própria expressão �alvorada lívida� pode se tornar banal ousublime numa poesia ou num romance, dependendo do contexto em que aparece;o mesmo acontece com o seu equivalente cinematográfico que, mesmo se forrealizado de maneira irrepreensível (para não ser confundida com a �alvoradaradiosa� ou com uma �aurora de róseos dedos�), poderá adquirir valores ousignificados diversos se aparecer num filme de M. Carné dos anos 30 ou de Fellinidos anos 50.

O trabalho do diretor de fotografia se desenrola, como já foi dito com muita eficá-cia, �no limite entre a certeza da técnica e as possibilidades da criação�(Consiglio e Ferzetti, 1983, 11). Por um lado, ele é o depositário de uma tradiçãotécnica e de mestria às quais o diretor recorre para realizar as suas idéias; poroutro lado, ele é chamado a participar diretamente no processo criativo e portantoa viver o risco da experimentação e a aventura da inovação.

Atualmente, a tarefa do diretor de fotografia consiste em preparar e coordenar ailuminação das cenas a serem filmadas, iluminação que é feita por meio de refle-tores e superfícies refletoras e que pode ser orientada de várias maneiras (decima, de baixo, �com corte� etc.) e distribuída em muitas outras formas (direta,difusa etc.).

A relação entre luz natural, iluminação artificial (muito mais usada do que o públi-co imagina, mesmo nas tomadas externas) e técnicas de filmagem e cópia é o queproduz a qualidade fotográfica da imagem e é o que o diretor de fotografia deveestar em condições de coordenar da melhor maneira. Como disse Luciano Tovoli(diretor de fotografia, entre outros, de O passageiro: profissão repórter, 1973, deAntonioni):

�A operação mais complexa e interessante está em recriar a luz, ou melhor, empartir da luz natural para inventar uma luz completamente abstrata, que seja funci-onal à situação do filme, e esta é uma das tarefas do diretor de fotografia�(Consiglio e Ferzetti, 1983, 203).

As características fotográficas de um filme só podem ser o resultado de um con-junto de competências diversas: acontece que muitas vezes é o próprio diretor defotografia que tem a função de coordená-las e sobretudo de controlar os resulta-dos segundo os efeitos desejados, que são previamente estabelecidos e discuti-dos com o diretor. Nesse sentido, pode-se considerar o diretor de fotografia omais íntimo colaborador do diretor.

Os níveis da divisão do trabalho e das competências podem variar segundo olocal e o período: houve momentos na história do cinema (ou determinados tiposde produção) em que o diretor só se ocupava da direção dos atores, enquanto aodiretor de fotografia competia toda (ou quase) a parte visual. Atualmente, emHollywood, é taxativamente excluído dos acordos contratuais que o diretor defotografia possa ocupar-se da filmagem propriamente dita, possa � como se diz

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na gíria, �sentar na máquina�, tarefa que cabe ao �operador de câmera� (disso selamentam freqüentemente os diretores europeus chamados a trabalhar emHollywood). Mas além desses problemas aqui nos interessa a função que a com-petência do diretor de fotografia desenvolve na produção do texto fílmico.

Infelizmente, trata-se de uma função desvalorizada por muito tempo. Por exemplo,enquanto estiveram na moda as teorias da �montagem soberana�, críticos e teóri-cos se preocuparam bem pouco com os aspectos estritamente fotográficos dofilme; ainda hoje acontece de encontrar, em recensões de jornais, a fotografiadefinida como �moldura figurativa� do filme. Por muito tempo, as pessoas selimitaram a valorizar a função do diretor de fotografia só em relação à obra de umdiretor com o qual se tivesse estabelecido uma situação particular de colabora-ção.

Daí o seu destino de serem sempre citados em dupla: Billy Bitzer com Griffith,Edouard Tissé com Eisenstein, G. R. Aldo com Visconti, Segundo de Chomõn comPastrone, Ben Reynolds com Stroheim, Gregg Toland com O. Welles, AnatolijGolovnja com Pudovkin etc.

Não é um acaso, portanto, que na definição dessa colaboração, muitas vezestenham sido privilegiadas as anedotas (conhecidas por todo bom cinéfilo) desti-nadas a demonstrar o caráter fortuito e em geral puramente técnico das contribui-ções do fotógrafo e, ao contrário, a necessidade expressiva que eles adquirem nalinguagem artística do autor. Por exemplo, assim é o episódio da descobertacasual do fechamento e abertura com íris por parte de B. Bitzer, que se tornariamimportantes elementos da sintaxe fílmica griffithiana.

É semelhante o sentido de um outro episódio igualmente célebre: o das filmagensextemporâneas feitas por Tissé no porto de Odessa em uma manhã de névoamuito densa e que foram depois recuperadas por Eisenstein no momento damontagem para realizar a �sinfonia� fúnebre pela morte de Vakulincuk no filme Oencouraçado Potemkin (1925).

Hoje, a situação está completamente mudada. Há inclusive quem fale de um novoestrelismo dos diretores de fotografia (McGilligan, 1979), que é, aliás, paralelo aodos técnicos de efeitos especiais, cujas funções tendem a integrar-se. Por voltada metade dos anos 70, impôs-se um tipo de produção em que imensos investi-mentos, tanto de capitais quanto de recursos criativos, são combinados paraobter a mais alta qualidade técnica da imagem, e se tornaram fatores essenciaispara o sucesso econômico dos filmes.

Para Contatos imediatos do 3º grau (1977), de Spielberg, trabalhou uma equipe deonze diretores de fotografia, incluindo alguns dos mais prestigiados nomes dosetor (John Alonzo, Lazlo Kovacs, Fraker, Slocombe etc.) sob a direção de V.Zsigmond.

A importância cada vez maior que adquiriram as novas tecnologias no processocriativo (steadycam, Panaflex, objetivas ultra-sensíveis etc.) e a dedicação cres-cente exigida ao diretor de fotografia nas experimentações na fronteira entrecinema

tradicional e eletrônica estão contribuindo para relativizar a distinção dos papéis.Parece que hoje são freqüentes em Hollywood os casos (absolutamente

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impensáveis na �fase áurea�) de um Wexler, que dirige fragmentos inteiros deAmerican Graffiti (1973), de George Lucas, ou de um B. Butler, que �inventa� asseqüências inteiras de Grease: nos tempos da brilhantina (1978) (McGilligan,1979, 24).

Apesar deste novo estrelismo dos cinematographers, que na realidade, é umestrelismo da técnica do qual se beneficiaram também grandes diretores comoVittorio Storaro e Giuseppe Rotunno, é difícil encontrar na filmografia deles ele-mentos de continuidade e de unidade da mesma forma em que se encontram nosde um diretor.

Muito mais do que o diretor-autor, o diretor de fotografia vive as contradições dainstituição cinematográfica cuja continuidade certamente é assegurada pelacapacidade de produzir inovações (para as quais a contribuição do técnico édeterminante), mas também de absorvê-las e institucionalizá-las ao longo de todoo seu ciclo de vitalidade expressiva e econômica.

O diretor de fotografia se encontra portanto na condição de participar diretamentedos processos criativos e inovadores e, ao mesmo tempo, de ser o meio da suanormalização em trabalhos convencionais.

Para dar alguns exemplos italianos, na filmografia de Alfio Contini podemos en-contrar filmes como Aquele que sabe viver (1962), de Dino Risi, ou Zabriskie Point(1970), de Antonioni, mas também Geppo il folle (1978), de Adriano Celentano, e Omegero domado (1980), de Castellano e Pipolo. Assim Tovoli pode assinar a foto-grafia de O passageiro: profissão repórter (1975), de Antonioni, e, logo a seguir,de Il Pap�occhio (1980), de R. Arbore.

Um diretor de fotografia pode, portanto, ser chamado a dar uma contribuiçãodeterminante em obras de grande empenho técnico e estético (é o caso dos fil-mes de Antonioni), pode dar a sua contribuição para definir um standard figurati-vo qualitativamente alto no âmbito de um cinema de gênero (é o caso de Aqueleque sabe viver), mas pode igualmente ser chamado para garantir a corretamaquetização fílmica de motivos espetaculares (e podem não passar disso, maspodem também desencadear processos imprevisíveis). E a contribuicãodeterminante de um diretor de fotografia que pode tornar viável e importante umaestréia na direção: esta foi certamente a função de Tonino Delli Colli nos primei-ros filmes de Pasolini.

Enquanto nos primeiros anos do cinema um pioneiro como Méliès era responsá-vel absoluto por todos os aspectos, incluindo os fotográficos, e as suas extraor-dinárias invenções figurativas, hoje são raros os casos de diretores que cuidampessoalmente da fotografia: entre as exceções recordemos Ermano Olmi. Com Aárvore dos tamancos (1978), do qual se responsabilizou também pela fotografia,roteiro e montagem, Olmi nos deu a medida exata dos resultados que pode produ-zir um controle unitário e direto de todos os componentes de uma obra.

Mas, excluindo esses casos e aqueles de ligações particularmente longas (alémdas já citadas, podemos recordar ainda a colaboração entre Sven Nykvist eBergman, J. Alcott e S. Kubrik), a unidade e a coerência do trabalho do diretor defotografia podem ser medidas pela dimensão da �obra�, segundo um modelo queo cinema tomou à literatura e à pintura e que melhor se adapta ao trabalho do

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diretor.

Lee Garmes, por exemplo, pode ser considerado o inventor de um tipo de preto ebranco com fortes contrastes, obtido com um uso sistemático da iluminaçãodireta que, muito mais do que a obra de um único diretor, define o clima figurativodo cinema americano dos primeiros anos 30, e que aproxima filmes diversosentre si como a �trilogia� de Sternberg (Marrocos, 1930; Desonrada, 1931; Oexpresso de Xangai, 1932), Ruas da cidade (1931), de Rouben Mamoulian, eScarface (1932), de Howard Hawks.

Poucos, mesmo entre aqueles que escreveram páginas memoráveis sobre o�rosto� de Greta Garbo, deram o justo destaque à arte de William Daniels, o dire-tor de fotografia que a estrela impunha aos seus diretores. Certamente foi Danielsquem garantiu uma continuidade interpretativa aos valores expressivos da �figu-ra� de Garbo, independentemente dos papéis representados, mas também umclima figurativo especial que aproxima os seus filmes, embora dirigidos por dife-rentes diretores. Uma particularidade que muitos notaram, atribuindo-a sempre àcarismática presença cênica da estrela, esquecendo do complexo e delicadotrabalho de Daniels.

A técnica do low-key-lighting, isto é, da iluminação por baixo adotada nos EstadosUnidos por influência dos operadores alemães e do cinema expressionista, e ouso que dela fez principalmente Arthur Edeson, contribuíram para a formação doinconfundível clima figurativo do cinema americano do início dos anos 40, de Arelíquia macabra (1941), de John Huston, até Casablanca (1942), de MichaelCurtiz; e que se trate de dois filmes fotografados por Edeson é um dado certa-mente menos divulgado mas não menos importante que o rosto de HumphreyBogart, ao qual habitualmente associamos os dois títulos.

Da mesma forma, se poderá reconhecer a importância decisiva que operadorescomo M. Terzano e A. Gallea imprimiram à controvertida fase do cinema italianodos anos 30 e que define o espírito de uma época bem melhor do que (eventuais)personalidades de diretores. Ou se poderá distinguir nitidamente nos filmes foto-grafados no pós-guerra por Carlo Montuori, apesar das diferenças notáveis queexistem entre uma obra-prima consagrada como Ladrões de bicicleta (1948), deDe Sica, e o desventurado Meu filho professor (1946), de Castellani, a presençade uma nuança crepuscular que tanta importância teve na formação da imagemneo-realista.

As caracterizações figurativas que encontramos disseminadas em filmes de valore importância desiguais são o resultado de um trabalho direto sobre aquela que éa matéria por excelência da expressão do filme, a luz. Por isso elas estão destina-das a incidir em profundidade no imaginário do espectador, de forma diferentemas não menos importante de quanto possa incidir o estilo de um diretor ou amáscara de um ídolo.

A história do cinema não é somente a história de obras-primas capazes de repre-sentar sozinhas as tendências em curso num determinado período. Certamente, éverdade que, pelo uso da profundidade de campo e pelo rendimento plástico dosinteriores (elementos ligados ao emprego de novas objetivas, novas técnicas deiluminação etc.), a colaboração entre G. Toland e Orson Welles em Cidadão Kane(1941) produziu uma verdadeira revolução figurativa, como a considerou Bazin.

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Mas existe também a necessidade de entender como antes, contemporaneamentee depois de Cidadão Kane, se imponham em filmes de qualidade diferente algu-mas características estruturais da imagem que definem a linguagem comum deuma época do cinema.

É importante estabelecer as diferenças (qualitativas) entre o filme de estréia deWelles e, por exemplo, o de Huston (A relíquia macabra, 1941), mas não é menosimportante prestar atenção a algumas analogias entre a fotografia de Toland parao primeiro e a de Edeson para o segundo (tomadas freqüentes de baixo paracima, prolongamento dos tetos, que surgem no enquadramento pelo ângulo dastomadas e pelo tipo de iluminação etc.).

Assim, sem dúvida será útil estudar a ruptura das convenções fotográficas docinema italiano produzida pelo modo em que Aldo Tonti, sob a direção de Visconti,filmou Clara Calamai em Obsessão (1943), destruindo literalmente a imagemprecedente, limpa e afetada, da estrela; será igualmente importante entenderquanto das técnicas e das convenções fotográficas do cinema dos anos 30 so-brevive no neo-realismo.

Nestor Almendros, que Truffaut considerava o mais importante cameraman emoperação no mundo e que, quando jovem, tinha estudado fotografia no CentroSperimentale di Roma, recorda, em seu livro de memórias, que no início dos anos50, entre os operadores do neo-realismo, somente G. R. Aldo atraía o interessedos jovens estudantes de fotografia. Eles consideravam que o novo movimento,tão importante pelas temáticas, pelas intenções programáticas, pelos argumentostratados etc., não tivesse provocado uma renovação semelhante na fotografia,ainda ligada às convenções do cinema precedente (Almendros, 1980, 3-4).

A circulação, a permanência e o esgotamento de procedimentos e técnicas, o usoe as funções que podem assumir as inovações ou a recuperação de estilos foto-gráficos, nem sempre ocorrem segundo os ritmos e a lógica que regulam a evolu-ção de outros aspectos mais aparatosos e conhecidos da instituição cinemato-gráfica.

Encontramos a comprovação disso na cor, outro aspecto da expressão fílmicaque tem íntimas relações com o setor fotográfico, tanto pelas diversas modalida-des de iluminacão da cena que a filmagem em cores implica, quanto por todos osoutros problemas técnicos conexos (sensibilidade do filme, revelação, cópia etc.).

A introdução da cor nas formas que ainda hoje são habituais (final dos anos 30 einício dos 40, mas o primeiro filme italiano em cores, Totò a colori, é de 1952),

esperada e saudada como um expediente que aperfeiçoava o realismo da produ-ção cinematográfica, não determinou mudanças consideráveis e imediatas emnível global da linguagem cinematográfica.

Por um lado, registrou-se uma forte resistência, superior à que fora oposta aocinema sonoro, por parte dos diretores, especialmente atentos aos valores estéti-cos, que viam limites e obstáculos numa técnica considerada como expedienteespe-

tacular e ainda não perfeitamente controlável.

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Por outro lado, ocorreu uma espécie de convencão tácita segundo a qual determi-nados gêneros (filmes épico-históricos, musical, western, etc.) passaram a serrodados de preferência em cores, enquanto outros (filmes noir, dramas psicológi-cos etc.) permaneceram por mais tempo fiéis ao preto e branco.

Somente nos anos 60 se atinge uma difusão generalizada da cor, para o que con-tribuiu certamente a progressiva melhoria das técnicas, que convenceu os direto-res que tinham resistido por muito tempo a adotar essa alternativa: Antonioni, porexemplo, empregou-a somente com Deserto vermelho (1965). enquanto Dreyernunca rodou um filme em cores.

A convivência do colorido e do preto e branco no cinema dos anos 40 e 50 de-monstra o caráter convencional das duas técnicas: convém registrar a preferên-cia do preto e branco para os filmes de gênero realista. Ainda mais evidente é ocaráter convencional da cor e a amplitude de funções e significados que ela podeassumir naqueles filmes que, com diferentes motivações expressivas eestilísticas, utilizam a alternância de seqüências coloridas e em preto e branco.Os exemplos não faltam .Nuit et brouillard (1955), de Resnais, é baseado nacontraposição entre a filmagem em cores nos locais dos campos de extermínionazistas revisitados no presente e o preto e branco das seqüências montadascom materiais de época. Nesse caso, a alternativa tem uma função de marcatemporal, mas também busca produzir um efeito de contraponto entre a pasteuri-zada irrealidade das luzes e das cores desses lugares transformados em museuse a obsessiva e inquietante realidade documentada de modo assombroso pelopreto e branco.

Em Nós que nos amávamos tanto (1974), de Ettore Scola, o preto e branco consti-tui uma marca temporal (é reservado a todas as cenas que decorrem no passa-do), e igualmente um expediente para acentuar o sentimento de nostalgia pelos�tempos difíceis mas ricos de ideais e de tensão moral�.

No cinema contemporâneo se registra uma significativa retomada do uso do pretoe branco, depois de um período de abandono quase completo; entre os exemplosque podem ser dados, recordamos A última sessão de cinema (1971) e Lua depapel (1973), de Bogdanovich, onde prevalece a intenção de uma reproduçãoperfeita de técnicas fotográficas do cinema das décadas passadas, Manhattan(1979), Stardust memories (1980), Broadway Danny Rose (1983), de Woody Allen,em que um preto e branco muito elegante e sofisticado (devido à arte de GordonWillis) torna-se uma marca acrescentada, mas essencial, do estilo humorísticoparticular do cômico nova-iorquino.

A esses podem ser acrescentados muitos outros casos interessantes por razõesdiferentes: O touro indomável (1980), de Martin Scorsese (fotografia Chapman), Ohomem-elefante (1980), de David Lynch (fotografia de Freddy Francis), além dealguns dos mais significativos de Wim Wenders (Alice na cidade, 1974, No correrdo tempo, 1976, O estado das coisas, 1982).

A conquista da cor muitas vezes induziu diversos diretores a confrontarem-secom a pintura, correndo o perigo de cair nos efeitos artificiais do tableau vivant,do quadro animado. Embora não faltem diretores de cinema e diretores de foto-grafia que tenham estudado e assimilado os valores cromáticos e luminosos deobras de pintura, os resultados que podem ser obtidos no campo cinematográfico

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dependem da capacidade de reelaboração em função das possibilidades expres-sivas do cinema e da coerência estilística do texto.

Citações explícitas ou evidentes sugestões pictóricas podem ser identificadas nouso da cor, da luz e na composição dos enquadramentos de filmes de Pasolini (Aricota, 1963, Os contos de Canterbury, 1972, etc.), Bergman (Gritos e sussurros,1972), Antonioni (Deserto vermelho, 1965), Stanley Kubrick (2001: uma odisséiano espaço, 1968, Barry Lyndon, 1975), René Allio, (Moi, Pierre Riviére. . ., 1976), ouWim Wenders (Paris, Texas, 1984). Trata-se de estabelecer, caso por caso, a fun-ção que assume no texto a referência pictórica. Por exemplo, as freqüentes cita-ções da pintura maneirista no cinema de Pasolini têm relações precisas com apoética de um autor que havia assumido os excessos, os preciosismos e as de-formações plásticas e cromáticas típicas do maneirismo pictórico como compo-nentes essenciais do seu estilo. Enquanto que em filmes históricos como BarryLyndon ou Moi, Pierre Rivière são respectivamente a pintura do século XVIII in-glês ou do século XIX francês que constituem as fontes para recriar com coerên-cia de tonalidades cromáticas e de atmosfera luminosa as imagens de uma épocapassada.

A capacidade de tornar cinematográficas sugestões pictóricas compete ao diretorde fotografia, mesmo que seja a estrutura geral do texto fílmico, de responsabili-dade do diretor, a definir o seu valor e significado.

OS EFEITOS ESPECIAIS

Parece que o termo efeitos especiais (special effects em inglês, e abreviado SP-EFX) tenha surgido pela primeira vez nos créditos de um filme em What priceglory (1926), de Raoul Walsh (Brosnan, 1976, 9). Mesmo se tratando de um termoque existe há muitas décadas, ele se tornou realmente popular só nos últimosanos.

A volta do sucesso do gênero ficção científica, a partir de Guerra nas estrelas(1977), de George Lucas, e Contatos imediatos do 3º grau (1977), de StevenSpielberg, sem esquecer 2001: uma odisséia no espaço (1968), de StanleyKubrick, demonstrou a importância que podia ter para o êxito do filme o uso deuma tecnologia cada vez mais sofisticada na produção de trucagens. Deve-sedestacar que caiu em desuso o antiquado termo �trucagens�, que evoca os tem-pos de Méliès e as maravilhas fúteis e surpreendentes oferecidas aos espectado-res das feiras, passando a ter maior sucesso o futurista �efeitos especiais�, maisadequado para se referir à alta tecnologia.

Mas �trucagens� e �efeitos especiais� serão a mesma coisa? E dizem respeitosomente ao cinema de ficcão científica? Que relações existem entre a evoluçãoda tecnologia das trucagens e a linguagem cinematográfica?

Se para começar a orientar-nos consultamos um glossário cinematográfico, porexemplo o de Grazzini, no verbete trucagem lemos que uma distinção entretrucagens e efeitos especiais não está codificada, �se bem que � acrescenta oautor � esses últimos exijam um sistema mais complexo de fantasia e das inova-ções tecnológicas� (Grazzini, 1982).

Se tentarmos aprofundar os nossos conhecimentos, encontraremos autorescomo Metz que nem sequer colocam o problema e usam ambos os termos (Metz,

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1972, 269-293) ou outros, como Farassino, que propõem sutis distinções:

Trucagem e efeitos especiais não são noções homólogas porque se colocam emdois niveís diversos da existência do filme: a trucagem é o que produz o efeitoespecial; a trucagem existe mas não se vê; o efeito especial, ao contrário, como oespetáculo, é visto e dava ser visto.

Se a trucagem não pode fazer o espetáculo, o efeito especial é espetáculo porexcelência e deixa indecifrável a relação com o que existe, com a realidade(Farassino, 1980, 201).

Se consultarmos um texto americano, como por exemplo o já citado Brosnan,encontraremos indicações de tipo diferente, baseadas sobre uma atenção maisprecisa aos dados empíricos relativos às modalidades de produção de um filme,mesmo que sejam menos sistemáticas no plano teórico. Brosnan separa, combase também numa distinção verificada nos créditos, os efeitos especiais(special effects) dos efeitos fotográficos especiais (special photographic effects).

Os primeiros são propriamente efeitos físicos e mecânicos e, acrescentaBrosnan, há casos em que o trabalho de um especialista de efeitos não tem nadaa ver com as trucagens e a ilusão, �como quando explode realmente um edifícioou manda realmente um trem ponte abaixo� (Brosnan, 1976, 9). Basta essa obser-vação para tornar absolutamente inadequada a costumeira definição de efeitosespeciais como �procedimentos através dos quais são obtidas imagens cinema-tográficas alteradas ou ilusórias a respeito da realidade objetiva ou ao resultadodas filmagens� (Vários autores, 1976, 217).

A partir dessas primeiras verificações, nos demos conta de que o problema écomplexo e as opiniões, muitas vezes, contraditórias. Tratemos agora de esclare-cer as idéias, primeiro a nível lexical.

É difícil estabelecer uma distinção entre trucagens e efeitos especiais. Talvez sejaútil destacar a conotação diferente que os dois termos apresentam e as mudan-ças da ordem estrutural da instituição cinematográfica e que a nível lingüísticosão confirmadas pela preferência em usar o segundo termo e não o primeiro.

O termo �trucagens� tem uma conotação negativa: remete-nos para uma épocaremota do cinema ou evoca certas necessidades nem sempre gloriosas nemdivulgáveis da �fábrica de ilusões�, como aquela de Alan Ladd que, embora tenharepresentado Shane em Os brutos também amam (1953), um dos heróis maispuros e míticos do gênero western, era obrigado a representar sobre �invisíveis�banquinhos para ocultar a sua baixa estatura.

O termo �efeitos especiais� revelou-se mais adequado ao papel cada vez maisimportante que as técnicas de filmagem e de manipulação da imagem assumiramno cinema contemporâneo, sobretudo depois que os investimentos em tecnologiacomeçaram a consumir uma boa parte do orçamento total de um filme e desdeque as tradicionais técnicas cinematográficas foram integradas ou substituídaspelas eletrônicas.

A classificação das trucagens feita por Metz constitui ainda hoje um ótimo pontode partida para o estudo deste aspecto, por longo tempo negligenciado a nívelteórico, da expressão fílmica.

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No campo da produção, Metz distingue os �truques prófílmicos� das �trucagenscinematográficas�.

Convencionando que a �pró-fílmico� atribui-se o significado de �tudo o que écolocado diante da câmera para que ela o �tome��, Metz define como pró-fílmicosaqueles truques que intervêm antes do ato de filmar: por exemplo, a substituiçãodo ator por um figurante ou por um manequim, ou o uso de expedientes comoalçapões, engenhos para fazer um ator voar etc. (Metz, 1972, 274-76).Correspondem, grosso modo, ao que Brosnan define como efeitos físicos oumecânicos.

As trucagens cinematográficas pertencem ao ato de filmar e, não como os prece-dentes, ao que é filmado. Elas são produzidas durante as filmagens (trucagem decâmera) ou em laboratórios destinados à cópia (trucagem de cópia) e podem terdiversos graus de especificidade. É o caso do flou, isto é, uma tomada fora defoco com um procedimento que o cinema tem em comum com a fotografia; ouentão o efeito de aceleração ou de lentidão que são obtidos diminuindo ou au-mentando o número de fotogramas por segundo em relação à freqüência (24 porsegundo) utilizada na fase de projeção (um procedimento que é específico docinema) (Metz, 1972, 276-77).

A distinção proposta por Metz deverá ser complementada por algumas observa-ções. O nível pró-fílmico e o cinematográfico de realização da trucagem não sãonitidamente separáveis: é óbvio que o sucesso do uso do figurante ou do mane-quim exige uma série de estratagemas na fase de filmagem (por exemplo, o usode ritmo acelerado para tornar mais difícil a percepção da trucagem). Portanto,mesmo quando a trucagem é feita a nível pró-fílmico, existe uma intervençãopropriamente cinematográfica destinada a ocultar (leve aceleracão e escolha deplanos particulares, no caso do uso de um figurante) ou a tornar mais visível (usode ritmo lento numa explosão) os detalhes do que se produz a nível pró-fílmico.

As atuais técnicas de produção dos efeitos especiais tornam em muitos casosdifícil ou até impossível a distinção entre pró-fílmico e cinematográfico. Doisexemplos serão suficientes para esclarecer essas afirmações.

Nos filmes de ficção científica, os vôos das astronaves são filmados usando umacâmera especial, a Dykstraflex, que é montada sobre um braço desdobrável cujosmovimentos são programados por um computador: é o movimento da câmera emrelação à miniatura da astronave, que permanece parada, a produzir a ilusão dovôo espacial. Nesse caso, o efeito final será constituído por uma perfeita simula-ção (ver mais adiante) de uma astronave em vôo, combinando um truque pró-fílmico (modelo da astronave em miniatura) com uma complexa modalidade defilmagem.

Considerações análogas podem ser feitas pelo Zoptic, o procedimento elaboradopor Zoran Perisic e utilizado com grande sucesso em Super-homem (1978), deClive Donner, que permite simular a visão de um homem ou de um objeto em vôomediante o emprego de um projetor (que projeta o fundo �paisagístico�) e umacâmera (que filma o homem ou o objeto imóveis sobre o fundo com paisagemprojetado): ambas são dotadas de zoom sincronizado, por meio dos quais o proje-tor retifica o ângulo do visual da paisagem que parece afastar-se, enquanto acâmera obtém o efeito de aproximação (e portanto a ilusão de vôo rasante) do

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homem e do objeto, que na realidade estão parados.

A seguir, Metz propõe uma classificação das trucagens segundo a maneira pelaqual elas são percebidas pelo espectador (regimes perceptivos da trucagem).Identifica três tipos: trucagens imperceptíveis, trucagens invisíveis mas perceptí-veis, trucagens visíveis.

São imperceptíveis aquelas trucagens que �funcionam� somente com a condiçãode que o espectador não se dê conta de nada: por exemplo, o uso de um figurantepara substituir um ator. Esse tipo de trucagem �é sempre compatível com a con-venção, típica da maioria dos filmes atuais, de um grau mínimo de realismo mé-dio, isto é, do que se costuma definir um filme realista� (Metz, 1972, 278). Sãoinvisíveis mas perceptíveis as trucagens a respeito das quais o espectador nãosabe onde estão e em que ponto do texto fílmico intervenham, mas percebe a suaexistência (como na trucagem do �homem invisível�): não pode ser colocado emdúvida e constitui mesmo um dos pontos de interesse do filme (Metz, 1972, 278).

Existem ainda as trucagens visíveis, aquelas que são não apenas claramenteidentificadas como tais (é o caso do flou, do ritmo acelerado, do ritmo lento, dasobre-impressão, da fusão). Elas são apresentadas e percebidas como manipula-ções explícitas da imagem e desenvolvem principalmente a função de procedi-mentos retóricos que Metz chama de �marcas de enunciação�, ou seja, modalida-des particulares de enunciação fílmica. Para explicitar o que diz Metz, podemoscitar o uso do ritmo acelerado no filme A ricota (1963), de Pasolini, em que o pro-tagonista Stracci é mostrado, por meio do ritmo acelerado, enquanto devora ali-mentos numa velocidade incrível. Nesse caso, o ritmo acelerado tem a mesmafunção que, na literatura ou na linguagem falada, desempenha a figura retórica dahipérbole, que, como nos diz o dicionário, �consiste em usar palavras exageradaspara exprimir um conceito além dos limites do verossímil� (Marchese, 1978, 130).Assim, aceita-se o efeito com sua dimensão artificial explícita e que, nesse caso,tem uma função cômico-grotesca.

Essas últimas considerações levam-nos a enfrentar o problema da relação entre�trucagem� e �linguagem�, que é central no trabalho de Metz e deveria ser centralpara todo historiador e teórico da linguagem cinematográfica.

Trata-se de compreender as modalidades de passagem da trucagem enquanto�pequena maravilha ao mesmo tempo fútil e estonteante� para efetivo procedi-mento gramatical e sintático. É o que aconteceu com a fusão, procedimento queconsiste na progressiva dissolução de uma imagem que se dilui até desaparecer,enquanto, através de uma sobre-impressão, se forma o perfil de uma imagemposterior. lnicialmente ela foi introduzida como trucagem de transformação, istoé, como procedimento ótico para obter extraordinárias metamorfoses das perso-nagens (um homem numa mulher, um velho num jovem etc.).

Posteriormente, foi codificada como procedimento enunciativo para marcar amutação espacial ou temporal da cena ou para sublinhar relações de similaridadeou de continuidade entre uma cena e outra ou para indicar uma passagem daesfera da realidade à do sonho ou da lembrança.

Um procedimento antes usado (e retirado do espetáculo) literalmente (mutaçãomágica da realidade) transformou-se num procedimento gramatical, retórico. Em

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diferentes níveis da linguagem cinematográfica, como diz Metz, o mesmo efeitopode ser incluído pelo espectador na ordem da diégese (isto é, na ordem doseventos narrativos) ou na ordem da enunciação (isto é, dos procedimentosdiscursivos, retóricos, que podem dizer respeito a eventos originários, comuns).No primeiro caso, podemos acrescentar, o efeito especial simula um evento extra-ordinário; no segundo, um procedimento mental.

Esclarecido isso, podemos acrescentar uma outra série de considerações. Muitasvezes, é exatamente o problema dos efeitos especiais que evidencia os limites dequalquer teoria do cinema direta ou indiretamente apoiada na idéia de reprodu-ção. Se, ao contrário, partimos de uma teoria baseada na idéia de simulação,trucagens ou efeitos especiais que poderão ser integrados organicamente numateoria da linguagem cinematográfica, e não mais tratados à parte ou ignorados ebanidos.

Como na análise lingüística da narração se faz uma distinção entre o plano daenunciação e o do enunciado ou, em outras palavras, entre o do discurso e o dahistória (ver Metz, 1977, 85-90), no cinema distinguiremos entre um plano da visãoe outro do visto, isto é, entre o modo pelo qual um evento nos é mostrado (modali-dade de visão) e o próprio evento (o que pertence à estória, ou ao campo doseventos narrados).

Façamos agora uma pequena consideração lexical: o uso de termo �efeitos espe-ciais� pressupõe, pelo menos conceitual e implicitamente na consciência dosfalantes, uma contraposição com um termo antitético como �efeitos ordinários�.

Isso significa que existe na consciência dos produtores e dos fruidores de textosfílmicos a idéia de que a representação (simulação) de certos eventos pode ocor-rer mediante um procedimento ordinário ou extraordinário em relação à naturezado evento e à modalidade de visualização. A qualidade de �ordinário� ou �extraor-dinário� pode referir-se tanto aos eventos quanto às modalidades de visão. Comofazem os estudiosos dos gêneros literários ou cinematográficos como o fantásti-co, a ficção científica ou o horror (ver Prédal, 1970; Todorov, 1970), podemoschamar de ordinários os eventos que entram no âmbito das leis naturais conheci-das e das possibilidades técnico-científicas que são patrimônio comum da huma-nidade; extraordinários os que transgridem umas e outras ou ambas.

Em geral, os efeitos especiais foram usados exatamente para tornarrepresentáveis eventos deste tipo. Contudo, será necessário destacar que oslimites entre ordinário e extraordinário foram sendo modificados em conseqüên-cia do progresso técnico-científico. O vôo espacial, evento extraordinário tantoem Viagem à Lua (1902), de Méliès, quanto em Destino à Lua (1950), de lrvingPichel, já o é um pouco menos em No assombroso mundo da Lua (1967), deRobert Altman, que apareceu nas vésperas do primeiro desembarque na Lua, e jánão o é com os freqüentes vôos das naves espaciais.

Contudo, mesmo nos filmes de ficção científica, continuam a ser usados efeitosespeciais para representar eventos que não são mais extraordinários no sentidoacima referido, não apenas pela razão óbvia de ser mais econômico simular osvôos com miniaturas em vez de realizá-los e filmá-los, mas também porque a suasimulação permite oferecer modalidades de visão muito mais sugestivas. Bastaconfrontar as tomadas de um vôo (real) da nave espacial do programa Shuttle

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com aqueles que se vêem nos filmes da série Guerra nas estrelas para entender adiferença.

Portanto, diremos que os efeitos especiais podem simular eventos ordinários eextraordinários apresentados por sua vez através da simulação de modalidadesde visão ordinárias e extraordinárias. Naturalmente, os limites entre modalidadede visão ordinária ou extraordinária também são móveis e variam com a variaçãoda competência visual do espectador. Um critério para definir o extraordinário e oordinário nesse campo pode ser o da compatibilidade com o código das expecta-tivas do espectador, ou seja, com aqueles que são os seus hábitos perceptivos eque podem coincidir com as convenções de representação realista, mas tambémcom aqueles que se estabilizaram nos gêneros não realistas.

O emprego da steadycam, pelo menos até o seu uso não se generalizar, podiaoferecer a simulação de modalidades de visão extraordinária inclusive de even-tos ordinários por exemplo, poderíamos recordar as tomadas com a steadycamda corrida de triciclo da pequeno Danny através dos corredores no OverlookHotel de O iluminado (1980), de S. Kubrick: nesse caso o evento é ordinário; é amodalidade de visão extraordinária que produz um enfoque especial destinado aaumentar o clima de terror do filme.

Resumindo tudo num esquema simples, os efeitos especiais podem ser destina-dos à produção de eventos ou de modalidades de visão que poderão encontrar-se em quatro relações possíveis:

modalidade de visão evento

ordinária ordinário

extraordinária ordinário

ordinária extraordinário

extraordinária extraordinário

Exemplos do primeiro caso (ordinária/ordinário) podem ser escolhidos entrequaisquer filmes de gênero não fantástico (um western ou um melodrama), emque a presença de efeitos especiais de vários tipos quanto à modalidade de pro-dução e de fruição não resulta incompatível com o que caracteriza um filme realis-ta (é suficiente pensar no último western ou no último melodrama do períodoclássico visto na televisão). Porém, devemos acrescentar que nesse caso podeser incluído o mais atípico, inquietante e �perturbador� dos filmes de terror:Monstros (1932), de Tod Browning (os �monstros� que o filme coloca em cenanão são resultado do trabalho de técnicas de efeitos especiais).

Exemplos do segundo caso (extraordinária/ordinário) dizem respeito aos filmesrealistas quanto ao gênero de parentesco (baseados sobre eventos que são com-patíveis com o conjunto dos nossos conhecimentos técnicos, científicos e históri-cos), que apresentam, graças ao emprego dos efeitos especiais, modalidades devisão que excedem tanto a nossa experiência cotidiana quanto a experiênciacinematográfica precedente: podemos citar os �excessos� de realismo nos efei-tos de laceracão da carne provocada por projéteis nos western de Peckinpah(resultado de uma combinação de sofisticados e aperfeiçoados efeitos pró-

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fílmicos ou físico-mecânicos com aqueles propriamente cinematográficos do floue do ritmo lento); ou então o conjunto de efeitos especiais utilizados emApocalypse now (1979), de Coppola, no que concerne ao gênero bélico, ou em Ofundo do coração (1981), do mesmo autor, no que diz respeito à comédia musical.

Exemplos do terceiro caso (ordinária/extraordinário) poderão ser escolhidosentre aqueles filmes que, mesmo pondo em cena eventos que excedem os nos-sos atuais conhecimentos técnico-científicos, captam o interesse do espectadoratravés do plot e não excedem no emprego dos efeitos especiais as convençõestípicas de um filme realista: um exemplo no campo da ficção científica pode serrepresentado por Jogos de guerra (1983), de John Badham e, no campo do gêne-ro horror, por aqueles filmes que, mesmo abordando fenômenos sobre os quaisnão é possível dar uma explicação natural, não utilizam elementos que transgri-dem as convenções visuais do cinema realista médio.

O último caso (extraordinária/extraordinário) encontra uma ampla exemplificaçãono cinema de ficção científica e no horror film contemporâneo: desde 2001: umaodisséia no espaço (1968), de Kubrick, até Blade Runner: caçador de andróides(1982), de Ridley Scott, de Guerra nas estrelas (1977), de Lucas, até O enigma dooutro mundo (1982), de John Carpenter. O último filme citado, confrontado com Omonstro do Ártico (1951), de Nyby e Hawks, do qual constitui o remake, podeoferecer um excelente exemplo de diversas modalidades de visão a respeito deum evento do mesmo tipo, mas também de uma estética do excesso de visibilida-de que se afirmou no cinema contemporâneo de ficção científica e de terror (vervários autores, 1983a).

Essa tipologia oferece certamente a vantagem de integrar num único esquemafilmagens que por convenção são consideradas normais por produtores efruidores, e também aquelas que são o resultado de efeitos especiais (produzidosde modo diferente e em diversos níveis). Ela é aplicável tanto ao cinema realistaquanto ao fantástico.

Em relação às tradicionais tipologias do fantástico, oferece a vantagem de inte-grar os aspectos temáticos com os técnico-lingüísticos. Por exemplo, a tipologiado fantástico proposta por Prédal (1970) quanto à relação ordinário e extraordiná-rio toma em consideração somente aspectos temáticos. De fato ela prevê trêscasos:

a) aparecimento de um elemento extraordinário num mundo ordinário;

b) aparecimento de um elemento ordinário num mundo extraordinário;

c) análise de elementos extraordinários num mundo extraordinário (ver Prédal,1970, 8-9; Costa, 1980, 129-35).

Ao contrário, a tipologia que ilustramos acima não só define as relações entreaspectos técnico-lingüísticos (modalidade de visão) e temáticos (os classificadospor Prédal), mas define também o papel dos efeitos especiais em filmes quetematicamente não pertencem ao gênero fantástico.

Isso explica inclusive o fenômeno muitas vezes observado do envelhecimentoprecoce de filmes fantásticos ou de ficção científica, devido não tanto ao envelhe-cimento das suas temáticas, quanto da base técnica que no meio-tempo entrou

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no uso comum, perdeu o seu caráter extraordinário e foi até assimilada em for-mas expressivas distantes do fantástico. Nesse caso, modalidades de visão ex-traordinárias são progressivamente assimiladas na consciência dos espectado-res na esfera do cotidiano. O fenômeno é do mesmo tipo daquele que observa-mos a propósito da dissolvência cruzada que, de truque de transformação, pas-sou a ser um procedimento normal de pontuação.

Não se deve esquecer que, mesmo quando um efeito ótico foi, como diz Metz,gramaticalizado, tornou-se um procedimento enunciativo como qualquer outro,ele conserva alguma coisa do fascínio primitivo de evento mágico. Mesmo depoisde se tornar simplesmente um sinal de pontuação, a fusão conserva �qualquercoisa da fusão substancial, da transmutação mágica, da eficácia mística� (Metz,1977, 255).

Todorov, num sugestivo ensaio sobre a literatura fantástica (Todorov, 1970), sus-tenta que a essência do fantástico consiste na hesitação do leitor (que dura todoo tempo da leitura) entre uma explicação natural e uma explicação sobrenaturaldos eventos extraordinários de que o texto o faz participar. A teoria da�hesitacão� de Todorov poderia ser alargada ao cinema fantástico, mas nos ofe-rece também a pista para identificar na �hesitação� a propriedade fundamentaldos efeitos especiais: frente a esses o prazer do espectador se nutre da incertezade atribuir o fascínio ao extraordinário universo em que é mergulhado ou ao ex-traordinário mecanismo que o simula.

A MONTAGEM

Filming Othello (1978), o filme em que Orson Welles narra como realizou o seuprecedente Otelo (1952), começa mostrando-nos o diretor na moviola enquantodá uma pequena aula sobre montagem:

�Esta é uma moviola, a máquina para montar os filmes. Prestem atenção, porém,quando dizemos que estamos cuidando da edição e da montagem de um filme, narealidade não dizemos o suficiente. Os filmes não se realizam só no set: grandeparte do trabalho se faz exatamente aqui, por isso uma moviola como esta é qua-se tão importante quanto a câmera. Aqui os filmes são salvos, às vezes resgata-dos do desastre massacrados. Esta é a última parada do longo percurso entre osonho criativo de um cineasta e o público a quem o sonho é destinado� (transcri-ção da dublagem da edição italiana).

Welles levou cerca de quatro anos para concluir esse filme (de 1948 a 1952),tendo tido muitas dificuldades de produção, problemas devidos à não disponibili-dade dos atores etc. Ele foi obrigado a abandonar e retomar as filmagens váriasvezes, mudando continuamente os locais (de Veneza para Marrocos), porquenaquela época estava rodando outros filmes como ator.

Felizmente existe a montagem, nos diz Welles em Filming Othello, recordando que�milagres� ela pode fazer:

�Iago passa do pórtico de uma igreja de Torcello, uma ilha da laguna vêneta, parauma cisterna portuguesa ao largo da costa africana. Atravessou o mundo, trans-ferindo-se de um continente a outro no meio de uma frase. No meu Otelo é umacoisa que acontece continuamente. Uma escadaria toscana e um parapeitomourisco fazem parte do que no filme é um único ambiente. Rodrigo dá um ponta-

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pé em Cássio, cio Mazagan, e recebe como resposta um soco em Orvieto, a milmilhas de distância. As peças do quebra-cabeça estavam separadas no e pormuitas viagens de avião. Não havia nenhuma continuidade...�(transcrição dadublagem da edição italiana).

É curioso que esse elogio da montagem seja feito pelo diretor que talvez maistenha influenciado as teorias de Bazin sobre o fim da �montagem soberana�. Poroutro lado, tal elogio, centrado como sutil ironia sobre o poder de simulação des-se aspecto fundamental da técnica e da linguagem do cinema, foi feito a propósitoda versão fílmica de um drama shakespeariano no qual encenação e simulaçãotêm um papel importante na intriga. Não podemos esquecer que Welles também éo autor de Verdades e mentiras (1973), um irônimo pastiche sobre as relaçõesentre arte e falsificação.

Mesmo com motivações muito pessoais, Welles define aqui a primeira, e maiselementar, função da montagem: uma função que não é ainda lingüística e expres-siva, mais próxima à do truque, tanto é assim que os primeiros manuais de técni-ca cinematográfica indicavam a montagem como o recurso principal (ver Metz,1972, 290). Com a montagem, como nos recorda Welles, se pode dar a ilusão deque duas porções de espaço, filmadas em locais diversos, constituem os compo-nentes de uma cena unitária e contínua. Essa impressão de unidade (de lugar) ede continuidade (de tempo) é certamente o resultado de uma série de mecanis-mos usados durante a filmagem e a montagem, mas também de uma cooperaçãodo espectador que integra as informações deduzidas dos enquadramentos indivi-duais, ativando uma série de relações espaço-temporais sugeridas pela sua su-cessão.

O exemplo clássico, sobre o qual discutiram por muito tempo os teóricos do cine-ma, é o chamado �efeito Kulechov�, tirado do nome do diretor russo que o experi-mentou.

Montando em três segmentos diferentes os mesmos planos não especialmenteexpressivos do ator Mozzuchin, em seqüência com os planos de: a) um prato desopa, b) o corpo de uma mulher arrumado num caixão, c) uma menina brincando,Kulechov verificou experimentalmente os seguintes resultados: os grupos deespectadores a quem foram mostrados os três segmentos atribuíram unanime-mente à idêntica imagem de Mozzuchin três expressões de significado completa-mente diferente: a) de fome, b) de dor, c) de alegria e serenidade.

Pudovkin, que relata e comenta esta experiência com a qual ele próprio colaborou(trad. it. em Pudovkin, 1961, 125-129), fala a esse respeito de �montagem constru-tiva�, uma vez que produz significados que não estão em cada plano, mas nasrelações entre os planos estabelecidas pelo diretor-montador.

A definição de �montagem construtiva� a propósito de efeito poderia ser aceitaainda hoje, com a condição de admitir que a construção do sentido é trabalhotanto do espectador quanto do diretor. A semiótica contemporânea consideraria oefeito Kulechov como um exemplo vulgar de cooperação interpretativa (ver Eco,1979), a relação entre o olhar do ator e vários objetos provoca no espectador umframe ou �roteiro� (Eco, 1979, 79-81), que prevê para a expressão do rosto signifi-cados pré-constituídos (é curioso notar que tanto a semiótica anglo-saxônicaquanto a italiana tenham adotado, para estudar determinados modelos de comuni-

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cação e interpretação, termos cinematográficos como �frame� e �roteiro�, que noentanto não são considerados sinônimos, pois o significado cinematográfico deframe é fotograma e, por extensão, quadro, enquadramento. etc.).

No período do cinema mudo, e sobretudo no âmbito do cinema soviético dos anos20, era habitual atribuir qualquer efeito relativo à comunicação e à expressãofílmica às propriedades da montagem, com a qual se fazia coincidir o chamado�específico fílmico�, isto é, o elemento com o qual se identificava a especificidadedo cinema. Ao mesmo tempo, a grande atenção dedicada à montagem, considera-da a base estética do filme, servia para estabelecer analogias com outras formasde expressão e para dar uma legitimidade estética ao cinema. Especialmente emvários movimentos de vanguarda, do futurismo ao cubismo e ao surrealismo,havia um grande interesse pelas técnicas de colagem, mistura de conjuntos,justaposição de materiais figurativos, verbais etc., retirados dos mais diversoscontextos (ver em Hauser o capítulo �A era do filme�, 1953, 451-484, Lawder,1975).

Consideremos inicialmente a montagem em seus aspectos operacionais e técni-cos, tornando bem preciso que ela é o resultado de duas operações contextuais:a de seleção e a de combinação ou, em termos ainda mais claros, de cortar ecolar. Realmente são estas as operações que cabem ao montador, sob a orienta-ção do diretor, na mesa de montagem ou moviola.

A função seletiva e combinatória da montagem, em italiano indicadas pela mesmapalavra, em outras línguas são separadas. Em francês, a primeira se chamadécoupage e a segunda montage; em inglês, a primeira, cuttting e a segunda,editing, que

define geralmente a fase da elaboração de um filme, ou montage, galicismo com oqual se define uma seqüência constituída por uma rápida sucessão de planos(montage sequence, isto é, seqüência de montagem) e que é destinado a designara concepção de montagem típica do cinema mudo soviético (ver Reisz-Millar,1981, 109; Katz, 1982, 820-21; Beaver, 1985, 200-209).

A língua francesa dá muito claramente a idéia de que a função seletiva da monta-gem começa já na fase do roteiro, chamando essa última (na fase final, que prevêa articulação em enquadramento) de découpage (decupagem). Esse termo, queacabou sendo adotado por outras línguas, incluindo a nossa, remete explicita-mente para a idéia de cortar, recortar, operando inclusões e exclusões: em rela-ção à indefinida continuidade da cena, �recortam-se� os momentos significativosdo ponto de vista narrativo e visual. (Considerações semelhantes valem para oinglês cutting script; além do mais, mesmo o termo de gíria cut! (corta!), a ordemque dá o diretor para interromper a filmagem, remete para a operação de cortar.)

A seletividade da montagem que, portanto, tem início já na fase de decupagem edas filmagens é exercitada em relação à continuidade espaço-temporal. Tentemosobservar as coisas mais de perto.

a) Seleção em relação ao espaço

Se as �visões� dos filmes primitivos, de Méliès, por exemplo, simulam, como jáobservamos, o ponto de vista do �senhor na platéia�, com a articulação emenquadramentos e ângulos de filmagem diferentes, a narração fílmica começou a

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simular o ponto de vista do narrador onisciente do romance do século XIX. Dessaforma, em relação ao continuum espacial, são selecionadas em cada situação asmodalidades de visão funcionais para as exigências narrativas e expressivas.Uma vez que cada plano já é uma forma de organização de relações espaciais(entre figura e fundo, entre personagens e objetos, entre trajetórias dominantesetc.), é evidente que já essa fase, que definimos como �seletiva�, comporta umacontextual operação �combinatória�: é nesse sentido que se fala de �montageminterna� (no interior do plano), ainda mais evidente porque o plano não é fixo.

Seleção quanto à duração

Em relação à continuidade temporal de uma cena e à duração de um aconteci-mento ou de uma inteira ação narrada, a decupagem isola os movimentos signifi-cativos, recorrendo a elipses temporais mais ou menos marcadas.

A seleção temporal concerne tanto à inteira estrutura da filme quanto às seqüên-cias singulares. Outubro (1928), de Eisenstein, sintetiza em menos de duas horasos dez dias cruciais da Revolução de Outubro (o filme se inspirou numa reporta-gem jornalística de John Reed, (Os dez dias que abalaram o mundo), enquantoGertrud (1964), de Dreyer, narra ao mesmo tempo a vida de uma mulher da juven-tude até a maturidade.

Se examinarmos a organização das seqüências dos dois filmes, veremos que emOutubro existem elipses temporais evidentes e marcadas, tanto que se pode falarde uma espécie de destruição do tempo real de cada evento narrado e de produ-ção de uma temporalidade abstrata, paralela a um uso simbólico dos elementoscenográficos e dos objetos e adequada às finalidades da montagem intelectualteorizada pelo diretor soviético.

Pelo contrário, Gertrud é constituído por segmentos cuja duração se aproxima omais possível da real decorrência de cada episódio (trata-se de segmentos narra-tivos unitários, principalmente de cenas de conversação entre as personagens daestória e que se desenvolvem em diversos momentos da vida da mulher).

Esses são dois extremos opostos que exemplificam duas diversas modalidadesde tratamento da duração.

Contextual e complementar à operação seletiva (que tecnicamente se efetua nafase de decupagem e de filmagem) é a ação combinatória que se coloca no finaldo processo de produção, mesmo que um primeiro esboço da montagem sejafeito cotidianamente com base nos �copiões�, isto é, a cópia de filme que se usapara o trabalho de montagem.

Num primeiro nível, a operação de montagem tem a função de produzir uma conti-nuidade, isto é, de unificar os pedaços de filme escolhidos para a elaboração dacópia definitiva. Tal operação não consiste somente em colar os pedaços, masinclui a escolha de cortes (seleções) adequados para fazer com que se destaquee potencialize a impressão de continuidade espaço-temporal de cada cena que foifragmentada durante a filmagem e decupagem. Tais ligações, codificadas na épo-ca da decupagem clássica, são de vários tipos (ligações sobre o eixo, sobre eixosparalelos, a l80º ou a 30º, sobre olhares, campo/contra-campo etc.), mas todasdestinadas a obter uma equilibrada seqüência dos diferentes enquadramentos.

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A utilização de cortes �incorretos� e desarmônicos pode ser uma opçãoestilística: é este, por exemplo, um dos elementos mais destacados no planotécnico-estilístico de Acossado (1960), o longa-metragem de estréia de J.L.Godard, que fez sucesso inclusive pela sua ostensiva desenvoltura em relação àsintaxe fílmica mais bem comportada e respeitada.

Até agora vimos os cortes de modo genérico ou entre planos no âmbito de umamesma cena. Se observarmos as coisas um pouco mais de perto, nos encontra-mos frente ao problema dos cortes entre cenas ou seqüências; cortes entre pla-nos que se referem a espaços e a lugares diversos e que podem ser utilizadossegundo diferentes modalidades técnicas.

O montador tem à sua disposição uma série de cortes amplamente comprovadosdo ponto de vista técnico e codificados no plano das funções e dos significados:eles podem ser uma simples ligação, através da qual dois planos (o último dacena A e o primeiro da cena B) se sucedem apenas por justaposição; fade out �fade in (os últimos fotogramas da cena A se fundem mais ou menos lentamentecontra um fundo negro ou neutro ou, se o filme é colorido, numa das tonalidadesdominantes, enquanto os primeiros fotogramas da nova cena são justapostoscom ou sem o efeito de fade in, isto é, aparece imediatamente nítido e em foco ouemerge gradualmente do fundo em que se dissolveu o enquadramento preceden-te); fusão (ao progressivo apagar do último enquadramento da cena A se sobre-põe o progressivo emergir do primeiro enquadramento da cena B, de modo talque num determinado lapso de tempo as duas imagens se sobrepõem); outrosrecursos de montagem prevêem o uso de lentes com íris e filtros. Essas figurasde linguagem cinematográfica que, excetuando o caso da �separação�, são efei-tos especiais obtidos geralmente mediante a trucka (ou impressora ótica), podemser consideradas verdadeiros sinais de pontuação ou, mais propriamente, demacropontuação, como os define Metz, já que têm uma função semelhante aosespaços em branco entre um parágrafo e outro ou entre os vários capítulos de umlivro (Metz, 1972, 245). Freqüentemente, os efeitos óticos desse tipo mantêm ouassumem, além da convencional e codificada função de sinais de pontuação, umvalor e um significado mais complexos e mais difíceis de definir, tanto é assimque Metz adotou-os sob o pretexto de estudar as modalidades de percepção(�regimes perceptivos�) do espectador (Metz, 1972, 269-293) e para estudar asrelações entre linguagem cinematográfica e os mecanismos e as configuraçõesdos sonhos (Metz, 1977).

Mais do que um fato técnico de montagem e uma forma convencional de pontua-ção, tais ligações podem assumir um valor particular na estrutura de cada textofílmico.

As fusões em O homem da câmera (1929), de Vertov, marcam com evidente valorsimbólico uma espécie de continuidade entre a dimensão do biológico (a figurahumana, os movimentos do corpo), do mecânico (a máquina, a automação) e dosocial (a agregação dos indivíduos nos vários espaços e momentos da vida urba-na). Também no cinema hollywoodiano clássico a fusão pode adquirir valênciasmetafóricas: em Ao cair da noite (1948), de Frank Borzage, uma fusão que relacio-na a imagem do pai enforcado com a de um boneco que balança no berço do filho,além de ligar uma ocorrência procedente com o início da narração, tem a funçãode introduzir plasticamente a obsessão da predestinação que domina a psicologia

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do protagonista.

Uma série de fade outs sublinha a sucessão das seqüências em Gritos e sussur-ros (1972), de lngmar Bergman: nesse caso, a transicão é feita de modo a deter-minar a formação de uma área uniforme de vermelho que é a tonalidade dominan-te na decoração da mansão em que são ambientadas as cenas do filme. É eviden-te a função de cadência métrica, de decomposição rítmica, mas também de �for-ma simbólica� que adquirem abstratas homogeneizações em que parece anular-se continuamente a substância figurativa do filme.

Naturalmente não são apenas os sinais de pontuação a definir os valores rítmicosde um filme, embora se possa intuir facilmente o resultado diferente que é produ-zido pela dominância dos cortes por �separações� ou por dissoluções ou porfusão etc. O ritmo é um dos efeitos produzidos pelo conjunto das operaçõesrelativas à montagem e a sua função é igualmente importante tanto no cinema nãonarrativo (também chamado �de montagem�) quanto no narrativo.

Os diretores do cinema mudo valorizaram especialmente os valores rítmicos damontagem, embora com diferentes motivações.

Em Griffith o ritmo é destinado a reforçar o rendimento dramático da ação.Pudokvin tende para a ilustração épico-sinfônica dos grandes acontecimentoshistóricos (lembremos de filmes como A mãe, 1926, ou O fim de São Petesburgo,1927). Eisenstein tenta obter o escandimento dos mais complexos e articuladospercursos da montagem �intelectual� teorizada e praticada por ele: pensemos emparticular em certas seqüências de Outubro (1928), como a célebre �seqüênciados deuses�, em que uma frenética orquestração de símbolos religiosos, de umCristo barroco até um amuleto animista, exprime a idéia de subserviência aopoder político.

Valores rítmicos e prosódicos da montagem foram amplamente experimentadospor todas as vanguardas: é este o motivo que une vários filmes realizados nosanos 20 e dedicados à representação do espaço urbano: Rien que les heures(1926), de Alberto Cavalcanti, Berlim, sinfonia da metrópole (1927), de WalterRuttmann, O homem da câmera, de Dziga Vertov, À proposta de Nice (1930), deJean Vigo.

Mas o problema do ritmo é essencial também na montagem do cinema de ação,isto é, naquele em que as opções de montagem são mais diretamente destinadasàs exigências narrativas: Nascimento de uma nação (1915), de Griffith, e No tem-po das diligências (1939), de John Ford, oferecem excelentes exemplos de �mon-tagem alternada� como procedimento narrativo cujos efeitos de suspense sãogarantidos e ampliados pelos valores rítmicos das seqüências.

A montagem como fundamento da narrativa cinematográfica foi amplamenteestudada e teorizada a partir das contribuições dos cineastas soviéticos, influen-ciados pelo formalismo, e por Eisenstein em particular. Num célebre ensaio deEisensten, publicado em 1944, e intitulado �Dickens Griffith e nós�, são analisa-das as analogias entre as técnicas de estruturação da narrativa no romancistainglês e nos procedimentos de montagem que se afirmaram no cinema a partir deGriffith (trad. it. em Eisenstein, 1964, 173-221).

Embora a montagem, considerada nesse sentido, tenha sido radicalmente posta

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em discussão depois das contribuições de Bazin, o papel da montagem no cine-ma narrativo constituiu um dos temas centrais da nascente semiótica do cinemaem meados dos anos 60.

A �grande sintagmática do filme de ficção� estudada por Metz (ver Metz, 1968,175-249) não é mais do que uma tentativa de estabelecer o código das principaisformas de concatenação dos enquadramentos no interior das unidades de monta-gem (segmentos autônomos). Não retomaremos aqui toda a casuística examinadae classificada por Metz, mesmo porque está ligada a uma problemática relativa àaplicabilidade de modelos lingüístico-gramaticais ao estudo da linguagem fílmicaque em parte foi ultrapassada.

Vamos nos limitar a alguns aspectos da classificação metziana, os que nos pare-cem válidos ainda hoje e, sobretudo, úteis para descrever e classificar os proce-dimentos de montagem num filme.

Metz propõe distinguir inicialmente entre os �planos autônomos� e os�sintagmas�. Os primeiros são segmentos autônomos de um filme constituídospor um só plano. O tipo principal de plano autônomo é o plano-seqüência. Eleexiste quando �uma cena inteira é feita num só plano�; neste caso é a �unidadede uma �ação� a conferir ao plano a sua autonomia� (Metz, 1968, 182).

Por sua vez, os sintagmas são segmentos autônomos formados por várias partes,ou seja, vários planos que constituem uma unidade nitidamente identificável eque são dotados de um significado autônomo. Metz distingue entre sintagmasacronológicos e sintagmas cronológicos: nos primeiros são ligados vários ele-mentos, sem haver uma precisa denotação de relações temporais; nos cronológi-cos são definidas as relações temporais entre os fatos apresentados pelas ima-gens (Metz, 1968, 162-63).

Um caso de sintagma acronológico e o �sintagma paralelo�: a montagem aproxi-ma e entrelaça dois ou mais motivos sem indicar relações temporais ou espaciaisprecisas, mas fazendo emergir analogias ou contradições que têm valor simbóli-co (Metz, 1968, 183-84). É aquilo que nas tradicionais gramáticas cinematográfi-cas se chama �montagem paralela�, que não se confunde com a alternada, que noesquema de Metz é um sintagma cronológico.

No sintagma narrativo alternado, �a montagem apresenta alternativamente duasou mais séries de acontecimentos de maneira tal que no interior de cada série asrelações temporais sejam de consecução, mas que entre as séries consideradasem bloco a relação temporal seja de simultaneidade� (Metz, 1968, 186-87). Oexemplo clássico a ser citado é obviamente a seqüência de Nascimento de umanação (1915), de Griffith, construída com a alternativa de enquadramentos dosCameron unidos por causa do cerco e os salvadores da Ku Klux Klan.

A utilidade da distinção entre sintagmas acronológicos e cronológicos se eviden-cia confrontando outros dois tipos de montagem que são confundidos muitasvezes.

É acronológico o �sintagma em feixe�, que é assim definido: �Uma série de cenasbreves representando acontecimentos que o filme dá como exemplo de umamesma ordem de realidade, abstendo-se deliberadamente de situá-las numa rela-ção com outras no tempo, insistindo sobre o seu suposto parentesco no interior

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de uma categoria de fatos�. Como exemplo Metz cita entre outros o início de Umamulher casada (1964), de Godard, no qual através de uma série de cenas ligadasentre si é expresso um �significado global entendido como amor moderno� (Metz,1968, 183-84).

Diversamente do sintagma em feixe, a seqüência em episódios reúne planoscaracterizados por uma descontinuidade temporal, mas ordenados segundo umcritério cronológico, segundo uma progressão conseqüencial. Como exemplo,Metz cita a seqüência de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, em que o naufrá-gio do casamento entre Kane e a primeira mulher é expresso �através de umasérie cronológica de rápidas alusões a refeições feitas em comum num climacada vez menos afetuoso� (Metz, 1968, 188-90).

Sem entrar na definição dos outros tipos de sintagmas isolados por Metz, basta-rão os exemplos citados para compreender a importância da lógica de implicaçãoespaço-temporal nos procedimentos mais comuns de montagem do cinema narra-tivo.

Mesmo tendo separado o plano-seqüência como autônomo de todos os outrostipos de sintagmas, Metz não exclui o fato de que uma análise mais profunda doplano-seqüência levaria a identificar formas de construção de imagens com fun-ções análogas àquelas identificadas nos vários sintagmas isolados por ele.

Em outros termos, Metz admite que o cinema moderno tornou desatualizada umacerta teoria e uma certa prática da montagem entendida como colagem, mas nempor isso estamos autorizados a livrar-nos da noção de montagem em sentido lato,�entendida como construção de uma intelegibilidade por meio de �aproximações�de vários tipos�, uma vez que �o filme é sempre um discurso, e portanto lugar deaparição simultânea de diversos elementos atualizados� (Metz, 1968, 194-95).

Certamente não faltam exemplos no cinema contemporâneo de um contínuo erenovado interesse pela montagem como instrumento essencial de produção daespecialidade e temporalidade próprias do texto fílmico. Neste âmbito se incluemfilmes como Tüzolto utca 25 (1973), de Istvan Szabò, ou Meu tio da América (1980)e La vie est um roman (1983), de Alain Resnais.

Além das integrações das técnicas tradicionais de montagem com as fornecidaspela eletrônica estão mudando progressivamente os tempos e as separações dasoperações técnicas da montagem. Graças à simultânea e contextual gravação emvídeo de toda tomada feita num filme e à sua codificação com um computador, omontador e o diretor podem confrontar simultaneamente em monitores a qualida-de das imagens obtidas com as várias filmagens e verificar experimentalmenteem tempos breves uma grande variedade de ligações, efeitos rítmicos etc. Dessaforma, as escolhas e o planejamento dos cortes e das ligações (que só posterior-mente serão feitos no filme) podem se processar em tempos extremamente maisrápidos e sobretudo com modalidades de controle muito mais precisas.

Esses procedimentos experimentais de F. F. Coppola já a partir de ApocalypseNow e sobretudo com O fundo do coração (ver Brown, 1982), mas amplamentedifundidos no campo da televisão, encurtam as distâncias entre os procedimen-tos mentais e lógico-discursivos através dos quais o filme é pensado e as opera-ções materiais através das quais ele assume sua forma definitiva.

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NÃO SÓ IMAGENS

A operação seletiva e combinatória por meio da qual o filme, da decupagem àmontagem, toma a sua forma visual pressupõe, do advento do cinema sonoro emdiante, uma contextual (idealmente contemporânea, de fato defasada na sua reali-zação técnica) operação seletiva e combinatória dos elementos sonoros: pala-vras, ruídos, músicas (para um amplo panorama informativo, bibliográfico efilmográfico de todos os aspectos relativos à trilha sonora, ver Comuzio, 1980).

No nosso percurso do roteiro até a montagem seguimos de forma predominante oelemento visual, mesmo não tendo faltado nos diversos parágrafos referências aosom.

Já ilustramos, com o exemplo de Crepúsculo dos deuses, como um roteiro searticula na dupla bitola da decupagem visual e da decupagem sonora. Quando lêum roteiro (não importa se antes ou depois), a coisa de que cada espectadorsente mais a falta é de uma adequada descrição do universo sonoro do filme. Asindicações são sempre muito genéricas, aproximativas ou inexistentes. Paracomprová-lo basta �escutar� atentamente algumas vezes uma seqüência e depoistentar integrar o roteiro, extraído da cópia final segundo os critérios habituais,com todas as informações analíticas relativas ao universo sonoro (qualidade eintensidade dos ruídos, timbre de voz, grau de fusão entre música, ruídos e pala-vras ou a predominância de um elemento sobre os outros, intensidade e duraçãodos silêncios etc.). Qualquer um se dará conta de que talvez fosse impossívelescrever ou ler um roteiro desse tipo, mas se poderia também identificar umaquantidade de efeitos semânticos produzidos pelo som.

Existe um procedimento muito complexo para o �registro sonoro� do filme àsvezes tão importante quanto o visual, com diversas modalidades de�enquadramento do som� (Villain, 1984, 87-101). O exemplo mais significativotalvez seja dado por filmes de Bresson, como L�argent (1983), em que o �microfo-ne espera em vez de acompanhar� e �recolhe a voz das personagens em relaçãoà sua distância�: eis como pode ser posta em discussão a �uniformidade do pla-no sonoro, que dá a impressão de continuidade�, à semelhança do que acontececom a imagem �em que mudanças de enquadramento e ruptura do ponto de vistasão praticadas a partir de Porter e Griffith� (Villain, 1984).

À continuidade do �plano sonoro� devemos atribuir uma importante função nosefeitos de continuidade e fluidez das ligações na chamada decupagem clássica. Ocinema moderno tem atribuído, graças ao desenvolvimento das técnicas de filma-gem direta, uma importância maior ao som, especialmente no que diz respeito àpalavra, à voz. Bazin já havia elaborado a idéia de �encenação� como �escritafílmica� que se cumpre somente com a conquista e o domínio do som, da palavra:�no tempo do cinema mudo a montagem evocava o que o realizador queria dizer�,a decupagem clássica descrevia, �hoje finalmente se pode dizer que o diretorescreve diretamente em cinema� (Bazin, 1958, 63-92; ver também vários autores,1975, 144).

Por outro lado, é significativo notar como a implicação da voz na escrita e notexto tenha atraído a atenção do semiólogo Roland Barthes, que concluiu o seuensaio O prazer do texto com a sugestiva descrição de um �primeiro plano� sono-ro (e visual) em que relaciona texto literário e texto fílmico. Barthes fala do efeito

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de sedução e de gozo que se realiza toda vez que �o cinema registre muito deperto o som da voz� e �faça sentir na sua materialidade e na sua sensualidade arespiração, a rocaille, a polpa dos lábios, toda uma presença do rosto humano�(Barthes, 1973, 76).

Naturalmente, podemos identificar nesta observação sobre o processo de produ-ção da trilha sonora, além de uma fase paralela à do registro visual, fases parale-las às dos efeitos especiais e da montagem.

Existem, ao lado dos efeitos especiais visuais, também os sonoros, com umagama de funções muito ampla: por exemplo, a simulação do aspecto sonoro deum evento, ou a integração sonora de um efeito visual especial para acentuar-lheo caráter de modalidade de visão extraordinária. Os efeitos especiais sonoroshoje se confundem e se integram com aquela que é genericamente chamada demúsica eletrônica, mas que seria melhor considerar como música produzida como sintetizador.

A esse respeito, vamos nos deter sobre uma observação de Vittorio Gelmetti, omúsico que colaborou, entre outros trabalhos, na trilha sonora de Deserto verme-lho: �A operação do cinema ao utilizar a qualidade inaudita do som eletrônicoimprime ao desenvolvimento de tais meios uma mudança decisiva� (in G. e T.Aristarco, 1985, 184) A noção de �qualidade inaudita� introduzida por Gelmettipode integrar aquela, já discutida, de �modalidade de visão extraordinária� e,segundo algumas observações do próprio Gelmetti, pode fazer-nos compreenderde que modo possa ocorrer a assimilação da música e do ruído no processo deevolução e codificação da linguagem cinematográfica, além da musical (emboraseja difícil, à luz das experiências da música e do cinema contemporâneos, man-ter a tradicional distinção entre música e ruído).

Gelmetti mostra com dois exemplos como a integração da música eletrônica nocontexto cinematográfico determina a codificação, graças a uma espécie de inter-câmbio entre as duas linguagens, de novos significados. O primeiro exemploconcerne ao cinema de ficção científica: neste caso, �a associação do som ele-trônico a uma narrativa de ficção científica projeta tout court sobre a músicaeletrônica um significado que por si só ela não possuía e que permanecerá ligadoa ela de algum modo�. O segundo exemplo diz respeito a Deserto vermelho: aqui�as sonoridades eletrônicas�, extraídas de composições do próprio Gelmetti, ouelaboradas para a ocasião, �se qualificam, na contínua ambígua passagem entreela e outros ruídos, como sonoridades do inconsciente e como tal são recebidaspelo espectador� (in G. e T. Aristarco, 1985, 184).

É nesta fase de integração entre as novas modalidades de produção da imagem edo som, em que a eletrônica desempenha um papel determinante, que se estãoproduzindo novas configurações da linguagem cinematográfica ou, melhor dizen-do, audiovisual.

No campo do som, o nível de elaboração da trilha sonora, correspondente à mon-tagem das imagens, é a mixagem, ou seja, a reunificação numa única fita magnéti-ca de todos os elementos sonoros anteriormente registrados em separado (diálo-gos, ruídos, música). A operação está completa somente quando a fita magnéticaé �revertida� na ótica, que é a forma adequada de registro e leitura do som atual-mente em uso no cinema.

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Realmente, no que respeita aos mecanismos de produção de sentido do filme,montagem e mixagem são consideradas duas operações contextuais einterdependentes, que levam a cabo o processo de produção, mesmo que o papeldesignado aos vários componentes da obra seja muitas vezes predeterminado nafase de concepção, dependendo do gênero ou do autor.

A possibilidade de basear as relações entre trilha sonora e trilha visual sobre anão sincronia, teorizada pelos diretores soviéticos no final dos anos 20 com oobjetivo de não cair na reprodução pura e simples da recitação teatral e de afir-mar a primazia da montagem, foi de fato amplamente utilizada mesmo por quemnão pretendeu fazer disso um critério estético geral.

Mesmo nos filmes mais explicitamente narrativos são muitos os momentos �nãosincrônicos�, quer dizer aqueles nos quais a fonte de emissão do som (voz huma-na, música etc.) não está enquadrada enquanto presente na cena: a voz em off,amplamente usada também na �découpage clássica�, é o exemplo mais óbvio,para não falar da música que, excetuando os casos em que é motivada pela pre-sença de um rádio, uma jukebox etc., é quase sempre não sincrônica.

Mais importante é compreender qual dos elementos sonoros do filme se torna oelemento estruturador e o princípio organizador do texto. Poderíamos partir, paraesclarecer melhor, dos casos de uma total ou parcial renúncia aos elementossonoros, tornando-se esse o fator construtivo ou princípio dominante.

Pensemos em Luzes da cidade (1931) e Tempos modernos (1936), nos quais arenúncia à palavra determina não só a estrutura narrativa mas também a organi-zação do espaço fílmico. Em outras palavras, Chaplin quis permanecer fiel aoprincípio estrutural da gag do período mudo, subordinando os únicos elementossonoros aceitos por ele (música e ruídos) a essa opção.

Outros cômicos seguirão caminhos diferentes. Stan Laurel e Oliver Hardy inven-taram uma integração entre gag visual e gag verbal; e é exatamente uma espéciede curto-circuito contínuo entre o plano visual e verbal que produz o seu total,absoluto e exasperante desambientamento em qualquer lugar e situação. O filmeDois caipiras ladinos (1937) é todo construído sobre um jogo de interferênciasentre o plano metafórico (da palavra) e o literal (da ação). Aqui o jogo assume aforma da realização (visual) de uma metáfora (verbal). Exemplos: Stan é constran-gido a fazer o que tinha dito: �Se não conseguia tirar o documento, como o teuchapéu�; Stan, pressentindo um engano, diz: �Sinto cheiro de queimado�, emseguida descobrimos que meteu o pé, que estava descoberto por causa da solagasta, numa ponta de cigarro.

Os irmãos Marx, ao contrário, privilegiaram a gag verbal, como fará mais tardeWoody Allen, o que não significa que nos filmes deles o aspecto visual não tenhaimportância; significa que o elemento estruturador é o verbal, enquanto é a au-sência da palavra do protagonista que constitui o fator construtivo das gags maistípicas dos filmes de Jacques Tati.

Para esclarecer melhor como a palavra possa se tornar o elemento estruturadorde procedimentos essencialmente visuais como, por exemplo, os movimentos decâmera, citarei um segmento da cena inicial, que se desenvolve num bar, de Cur-va do destino (1945), de Edgar G. Ulmer.

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Uma canção proveniente de uma jukebox lembra ao protagonista um velho amor;é a sua voz em ali que conduz um complexo movimento de câmera que, doprimeiríssimo plano do seu rosto, volta atrás até enquadrar a abstrata geometriado detalhe de uma xícara de café, para chegar depois à forma geométrica dodisco que toca, antes da separação na qual começa o flashback. Desta maneira,um complexo enquadramento contextualizado visualmente como objetivo (o pro-tagonista não acompanha com o olhar o movimento de câmera) é carregado poruma dimensão de subjetividade, graças à integração do elemento oral.

Considerações semelhantes podem ser feitas a propósito do musical, um gêneroonde a música é... obrigatória, diríamos, mas onde pode desenvolver funçõesdiversas em relação à estrutura do texto.

Michael Wood, que já tivemos ocasião de citar, pela sua capacidade de aliar agu-das observações sociológicas a uma rara atenção pelos elementos formais, defi-ne genericamente o musical como �veículo de uma alegria para todos os usos,veículo de qualquer alegria, de qualquer coisa que te dê vontade de cantar e dan-çar� (Wood, 1975, 135). Contudo, ele propõe também uma distinção entre osmusicals em que a introdução da música constitui um artifício evidente, umasuperposição complicada baseada em �pretextos grosseiros� propiciados peloenredo, e aqueles baseados em passagens quase imperceptíveis ou até numa�autêntica continuidade� entre vida cotidiana e música:

�(...) existe um tipo de musical que põe descaradamente a música onde não hálugar para ela, compensando-nos totalmente da aridez provocada pela falta demúsica nas nossas atividades cotidianas. O outro tipo sugere que a música este-ja por todo lado, espalhada em torno de nós, bastando ter o cuidado de olhar eescutar.�(Wood, 1975, 136).

Bem diferente do musical clássico, do qual fala Wood, é o contemporâneo, de umBob Fosse por exemplo, de Charity, meu amor (1969) até O show deve continuar(1979): a ligação muito mais estreita entre os elementos coreográfico-musicais eas intervenções de direção fílmica (escandimento rítmico das separações, dosângulos, dos movimentos de câmera etc.) não qualifica a encenação como formasimbólica do desejo realizado, mas, pelo contrário, como forma de puravirtualidade não realizada - Quanto mais o universo figurativo do musical se tornaimprevisto e precioso (enriquecido por preciosismos cromáticos, fotográficos,luminosos, que conferem ao conjunto uma evidência hiper-realista), mais ele édominado por um sentido de irrealidade total, de alucinação.