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Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014 DO PERIGO DA EXPANSÃO DA NORMA JURÍDICO-PENAL E A FLEXIBILIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO DIREITO PENAL: UM ESTUDO A PARTIR DA TENTATIVA DE CRIMINALIZAÇÃO DE MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL. Bárbara Carolina de Almeida Mendes Lima 1 Isaias de Assis 2 RESUMO O presente artigo aborda a discussão da expansão da norma jurídica penal e o perigo de se alcançar a proteção de bem jurídico cuja relevância é desprezível para justificar a incidência do jus puniendi estatal. A pesquisa identifica em qual momento há uma extrapolação da norma penal para além de sua finalidade, demonstrando a ausência de idônea atuação estatal ante o caso concreto. O olhar investigativo, pautado no método dedutivo, tem como paradigma a observação do fenômeno das manifestações sociais ocorridas no Brasil em junho de 2013 e seus desdobramentos jurídico-penais. De modo específico, critica a aplicação Lei nº. 12.850/2013 em alguns casos, assim como sua inaplicabilidade para incriminar os referidos movimentos sociais, devido ao que se identificou, e se compreendeu como perigoso equívoco de interpretação do sistema penal. Indo além, tal equívoco se traduz em retrocesso das garantias colacionadas nos princípios informadores do Direito Penal. Estas, conseguidas arduamente ao longo de lutas históricas, postuladas na doutrina como gerações de direito positivados que desde o seu surgimento detêm o condão de limitar o direito de punir do Estado. Palavras-chave: Expansão da Norma Penal. Tutela de Bem Jurídico. Manifestações Sociais. Caracterização. Arbítrio Jurídico-Penal. 1. Introdução Para a adequada abordagem do tema proposto, faz-se necessária uma análise sobre os diversos efeitos negativos do uso inadequado da norma penal de forma expansionista para proteger bem jurídico que tradicionalmente não fora objeto de tutela do Direito Penal. 1 Advogada criminalista, professora da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato, especialista em Ciências Penais pela PUC Minas. 2 Bacharelando em Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato.

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Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014

DO PERIGO DA EXPANSÃO DA NORMA JURÍDICO-PENAL E AFLEXIBILIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO DIREITO PENAL:

UM ESTUDO A PARTIR DA TENTATIVA DE CRIMINALIZAÇÃO DE

MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL.

Bárbara Carolina de Almeida Mendes Lima1

Isaias de Assis2

RESUMO

O presente artigo aborda a discussão da expansão da norma jurídica penal e operigo de se alcançar a proteção de bem jurídico cuja relevância é desprezívelpara justificar a incidência do jus puniendi estatal. A pesquisa identifica em qualmomento há uma extrapolação da norma penal para além de sua finalidade,demonstrando a ausência de idônea atuação estatal ante o caso concreto. Oolhar investigativo, pautado no método dedutivo, tem como paradigma aobservação do fenômeno das manifestações sociais ocorridas no Brasil emjunho de 2013 e seus desdobramentos jurídico-penais. De modo específico,critica a aplicação Lei nº. 12.850/2013 em alguns casos, assim como suainaplicabilidade para incriminar os referidos movimentos sociais, devido ao quese identificou, e se compreendeu como perigoso equívoco de interpretação dosistema penal. Indo além, tal equívoco se traduz em retrocesso das garantiascolacionadas nos princípios informadores do Direito Penal. Estas, conseguidasarduamente ao longo de lutas históricas, postuladas na doutrina comogerações de direito positivados que desde o seu surgimento detêm o condãode limitar o direito de punir do Estado.

Palavras-chave: Expansão da Norma Penal. Tutela de Bem Jurídico.Manifestações Sociais. Caracterização. Arbítrio Jurídico-Penal.

1. Introdução

Para a adequada abordagem do tema proposto, faz-se necessária

uma análise sobre os diversos efeitos negativos do uso inadequado da norma

penal de forma expansionista para proteger bem jurídico que tradicionalmente

não fora objeto de tutela do Direito Penal.

1 Advogada criminalista, professora da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor AlbertoDeodato, especialista em Ciências Penais pela PUC Minas.2 Bacharelando em Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato.

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Com essa observância estrita, torna-se oportuno tecer crítica da

aplicação da lei nº. 12.850/2013 diante de alguns casos, no combate às

recentes manifestações na sociedade brasileira, como medida de prevenção

geral negativa3, aparentemente, com claro intuito de brecar o movimento social.

Destacando-se que o caráter expansivo dessa nova norma penal extravagante

que deve guardar consonância com os princípios informadores do Direito

Penal.

Essa investigação científica caracteriza a inadequação do uso da

norma penal de modo recorrente dentro da ideia de sociedade de risco, e

simultaneamente revela que determinado fato ou fenômeno pode ser

fomentado pela Constituição dos atuais Estados Democráticos.

Assim sendo, checou-se que há casos irrelevantes para a atuação

punitiva estatal, ou ainda, poderiam ter tratamento de outros mecanismos de

controle social como ensina Nilo Batista citando a Quintero Olivares4.

Na medida em que se aprofunda neste estudo verifica-se que os

princípios orientadores do Direito Penal devem ser efetivamente considerados

pelo intérprete da lei, quando da fixação dos critérios aplicativos da expansão

da norma penal. Na verdade, torna-se ponto essencial para que o leitor

entenda a flexibilização desta e a deturpação a que a mesma se propõe, ao

ignorar os princípios limitadores.

Especialmente quando se investiga a tentativa de subsunção das

condutas dos manifestantes aos tipos de injusto previstos na Lei nº

12.850/2013. Muito embora, ao menos manifestamente, esta lei tenha sido

editada com o propósito de aprimorar a legislação relacionada à criminalidade

organizada, o que se viu foi a tentativa de estender sua aplicação para abarcar

também os atos de violência perpetrados durante os protestos.

Obviamente, não se pretende, aqui, esgotar esse vasto assunto,

mas tão somente trazer mais um ponto de vista investigativo capaz de fomentar

a discussão dos limites da expansão da norma penal.

3 A prevenção geral negativa, tomada em sua versão pura, pretende obter com a pena adissuasão dos que não delinquiram, e podem sentir-se tentados a fazê-lo. (ZAFFARONI;BATISTA, 2011, p.117)4 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro:Revan, 2013, p.82.

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Importante frisar que tanto a norma penal quanto os necessários

limites à sua expansão devem servir como escudo impenetrável na nobre

missão de proteger os bens jurídicos de alto valor para a sociedade, e assim, a

norma penal e seus limites expansionistas devem coexistir harmoniosamente

com a liberdade das pessoas.

2. Da norma jurídico-penal e a função de garantia

A norma penal consiste em ser instrumento poderoso de controle

social. Assim sendo, sua incidência deve recair apenas nos fatos da vida que

têm especial relevância para o corpo social. Por isso mesmo, cabe utilizar-se

da legislação penal como última solução ante aos problemas sociais.

Nesse sentido, foi cunhado o Princípio da ultima ratio, que segundo

BELO5:

O Direito Penal, por pugnar a si a percepção de ser a ultima ratio,cujas consequências de sua utilização são graves, prevê um mínimode proporcionalidade entre a lesão e a pena. Por isso, essa lesão nãopoderá ser presumida tendo em vista que se desequilibraria aequação existente entre a defesa do bem jurídico e a dignidadehumana. Trata-se, antes de uma escolha jurídica, de uma escolhapolítica que coloca limites claros e intransponíveis ao processolegislativo infraconstitucional de restrição material à constituição denovos delitos.

Os princípios penais são como alicerces que dão sustentação a todo

arcabouço da norma penal, bem como servem de paradigmas na utilização da

interpretação sistêmica da norma penal.

Na verdade, a expansão da norma penal deve ter como barreira os

princípios, exatamente, por serem as bases que garantem a solidez de toda

estrutura jurídica, porque são eles os formadores e os balizadores da

dogmática penalista, no que se refere aos limites de seu uso.

Com essa noção o intérprete da lei é capaz de separar e discernir

qual deve ser a meta da aplicação normativa, bem como o real momento em

que sua expansão extrapola o fim a que se propõe, evitando assim, a

inadequação quanto ao uso desse poderoso instrumento de controle social.

5 BELO, Warley. Tratados dos princípios penais. 1.ed. Florianópolis: Bookess, 2012, V. II,p.209-210.

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Nesse sentido, o Princípio da Legalidade ou Reserva Legal funciona

como verdadeiro ‘filtro’ de situações de condutas humanas separando somente

aquelas que são relevantes para o jus puniendi.

Assim sendo, a função principal desse exercício punitivo estatal é

deixar clara em qual situação haverá incidência punitiva, e em razão disso

decorrem quatro relevantes desdobramentos desse princípio.

O primeiro trata-se da irretroatividade da lei penal maléfica ou

anterioridade. O segundo diz que a lei penal deve ser escrita para negar o

direito consuetudinário, não se podendo criar crimes ou penas através dos

costumes. O terceiro refere-se à lei estrita proibindo-se o uso da analogia in

malam partem para criar crimes e penas, apenas se admite o seu uso se for

beneficiar o réu. O quarto menciona que a legislação criminal deve ser lege

certa porque deve ser clara, precisa, evitando interpretações dúbias.

Tais desdobramentos visam assegurar os limites do exercício do

direito de punir estatal frente ao indivíduo delinquente, numa relação jurídica

sempre vertical com o Estado-Juiz.

Ferrajoli6 também sendo preciso nas considerações sobre o

Princípio da Legalidade, afirma o seguinte:

O Princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnicalegislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias ediscriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, masdiretamente a pessoas e, portanto, com caráter “constitutivo” e não“regulamentar” daquilo que é punível: como as normas que, emterríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges,os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que aindaexistem em nosso ordenamento, que perseguem os “desocupados”,os “propensos a delinqüir”, os “dedicados a tráficos ilícitos”, os“socialmente perigosos” e outros semelhantes.

É certo, pois que o Princípio da Legalidade exclui as convenções

arbitrárias e discriminatórias direcionadas às pessoas e não aos fatos, logo,

torna-se completamente ausente da boa interpretação sistêmica se vedar uso

de máscaras, roupas escuras, entre outros objetos aparentemente inofensivos,

6 FERRAJOLI, Luigi. Tradução. ZOMER, Ana Paula; CHOUKR, Fauzi Hassan; TAVARES,Juarez; GOMES, Luiz Flávio. Colaboração. BIANCHINI, Alice; PONTES, Evandro Fernandesde; PONTES, José Antonio Siqueira; STEFANINI, Lauren Paoletti. Direito e Razão – Teoria doGarantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.p.31.

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tal como ocorreu no período em que as manifestações sociais se intensificaram

no Brasil em meados de 20137.

Por sua vez, o Princípio da Intervenção Mínima não está

expressamente inscrito no texto constitucional nem no Código Penal, mas

integra a política criminal, e, assim, impõe a observação tanto do legislador

quanto do intérprete da lei dentro do Estado Democrático de Direito, obtendo

dois princípios decorrentes, o da Fragmentariedade e o da Subsidiariedade8.

O primeiro, Princípio da Fragmentariedade, estabelece que o Estado

escolha os bens jurídicos fundamentais que carecem de sua proteção ante os

casos de lesão ou perigo de lesão a determinados bens jurídicos que se

destacam frente aos outros, e por isso, merecem guarida do jus puniendi

estatal9.

O segundo, Princípio da Subsidiariedade, apregoa que o Direito

Penal funciona de forma subsidiária em relação aos demais ramos sendo a

última alternativa do legislador para tutelar bens jurídicos, garantir a segurança

jurídica e proteger a ordem pública10.

Nilo Batista, em alusão a Roxin, afirma quanto ao Princípio da

Subsidiariedade que:

“(...)” onde bastem outros procedimentos mais suaves para preservarou reinstaurar a ordem jurídica” não dispõe da “legitimação danecessidade social” e perturba “ a paz jurídica”, produzindo efeitosque afinal contrariam objetivos do direito.(...)”11.

Ligado também à expansão da norma penal, o Princípio da

Lesividade é o fundamento que limita o poder punitivo estatal, pois determina

quais condutas são passíveis de incriminação por parte da legislação penal.

Outro principio relevante para a análise a que se propõe esse

trabalho é o da Adequação social. Segundo este princípio, somente pode

7 A contextualização histórica do movimento social será feita em tópico específico no decorrerdo trabalho.8 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro:Revan, 2013, p.83.9 RODRIGUES, Cristiano. Temas Controvertidos de Direito Penal. 1.ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2009, p.26.10 RODRIGUES, Cristiano. Temas Controvertidos de Direito Penal. 1.ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2009,p.27.11 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro:Revan, 2013, p.85.

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despertar o interesse jurídico penal condutas praticadas com perfeita

subsunção fática à norma penal. Além disso, ainda que tais condutas se

subsumam à norma, não se tornam típicas se forem socialmente pertinentes e

aceitas pelos demais, ou seja, desde que guardem harmonia com a ordem

social histórica contextualizada12.

Ante esse rol de princípios, demonstra-se que o não atendimento a

apenas um deles torna inviável falar em persecução penal idônea e em

harmonia com a interpretação correta do sistema de aplicação da norma penal.

O foco da norma penal reside na proteção jurídica de determinado

bem jurídico que se destaca devido à sua importância para a existência da

própria sociedade e seu regular funcionamento estrutural.

No entanto, alguns autores criticam essa finalidade não restritiva da

intervenção penal - é dizer generalista. Roxin é um desses críticos conforme se

nota a partir de sua concepção de bem jurídico:

O conceito de bem jurídico que aqui se defende é também umconceito de bem jurídico crítico com a legislação, na medida em quepretende mostrar ao legislador as fronteiras de uma punição legítima.Ele diferencia do assim denominado conceito metódico de bemjurídico, segundo o qual como bem jurídico unicamente se deveentender o fim das normas, a ratio legis. Este conceito de bemjurídico deve ser rechaçado, pois não aporta nada que vá mais alémdo reconhecido princípio de interpretação teleológica13.

Roxin, pois, afirma que o bem jurídico não se limita a bens jurídicos

individuais, abarcando também bens jurídicos da generalidade ou

transindividuais. Contudo, faz a ressalva de que neste último caso o bem

jurídico resguardado deve ter função social de promover o desenvolvimento

individual do cidadão no meio coletivo, como exemplo um sistema monetário

saudável. Dessa forma se justificaria a intervenção jurídico-penal.

No dizer de Nilo Batista14 “O direito penal vem ao mundo (ou seja, é

legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que

concretamente se organizou de determinada maneira”.

12 RODRIGUES, Cristiano. Temas Controvertidos de Direito Penal. 1.ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2009,p.68-70.13 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Trad. AndréLuís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.20.14 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12.ed. Rio de Janeiro:Revan, 2013, p.19.

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Não obstante o escopo de garantias conferido por esses princípios,

o que se tem observado é um crescimento demasiado do âmbito de tutela

penal, novas expectativas em relação ao fim do Direito Penal, entre outras

tendências que se aglutinam no denominado movimento de expansão.

O conceito de expansão da norma penal foi primorosamente tratado

por Sánchez15:Não é frequente que a expansão do Direito Penal se apresente comoproduto de uma espécie de perversidade do aparato estatal, quebuscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente)solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico(isto é, ao da declaração de princípios, que tranquiliza a opiniãopública) o que deveria resolver-se no nível de instrumentalidade (deproteção efetiva) (...).

Mas importa mesmo é demonstrar como o sistema penal, ao utilizar

do comando abstrato da norma penal para além do seu objetivo, gera sequelas

negativas, e assim, se clarifica a deturpação de seu uso frente a novos fatos e

fenômenos sociais de caráter lícito e legítimo.

Contextualizando esse ensinamento com o tipo do artigo16 1º, §1º,

da Lei nº. 12.850/2013, não é possível considerar que a aglutinação de

pessoas licitamente reunidas, com caráter de reivindicação legítima possa

atender ao comando normativo de organização criminosa, ainda que, sob um

aspecto meramente quantitativo, estejam reunidas em número muito superior

ao exigido pela norma penal.

As informações quanto a essa reunião de pessoas que provocou a

tentativa de tipificação aludida foi fornecida pelos noticiários, os quais

divulgaram que a convocação desse movimento se deu por meio das redes

sociais. Todavia não é possível caracterizar a conduta dos manifestantes ao

tipo penal de associação para organização criminosa, pois depredar patrimônio

público ou particular é tipo previsto no artigo 163, do Código Penal, ou seja,

crime de dano.

15 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva; tradução. ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira; Revisão. GOMES,Luiz Flávio. A expansão do direito penal. V. 11. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.23.16 Na verdade, o tipo incriminador prevê como necessária a reunião organizada de quatro oumais pessoas que de maneira ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda queinformalmente, tenham objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquernatureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas ultrapassem a 4(quatro) anos, ou seja de caráter transnacional. (Art. 1º, §1º Lei nº. 12.850/2013).

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Portanto, não há qualquer correlação entre a conduta dos

manifestantes e as exigências para configuração de uma organização

criminosa. A uma porque esses encontros foram aleatoriamente agendados

pela internet, nas redes sociais. A duas porque não há como verificar a

organização destas pessoas, posto que algumas destas se fizeram presentes

no movimento por sentimentos diversos reivindicando direito à saúde; outras

clamavam pelo fim da corrupção; tantas outras pelo fim da PEC 37; outras

ainda pelo aumento da passagem e concessão de passe livre aos estudantes.

Dessa forma não há que se falar em organização nesse movimento, ainda mais

quanto à sua eventual natureza criminosa.

Todavia houve um estímulo pelas agências estatais criminalizantes,

bem como por algumas agências de notícias para que, a despeito da técnica,

fossem caracterizados os movimentos como adequados à previsão do artigo

1º,§1º, da Lei n. 12.850/2013, acima aludido.

Nesse sentido, relevantes são as palavras do professor Zaffaroni “a

decisão criminalizante da agência judicial é sempre “má” mas menos “má” que

a decisão arbitrária do poder de outras agências (...)”17. Isso porque, no

Judiciário se tem a presença do contraditório e ampla defesa, enquanto que em

outras esferas o suposto acusado está diante de um processo inquisitório em

que vige a presunção de culpa, encontrando-se o contraditório e ampla defesa

ausentes. Especialmente na instância de criminalização que compete à polícia,

bem como nas hipóteses de influência midiática, os efeitos para o acusado são

nefastos, entre eles a estigmatização.

A fim de evitar, ou ao menos mitigar tais efeitos, é suma importância

a atuação dos Magistrados e Membros do Ministério Público, no sentido de

atentarem-se ao Princípio da Lesividade, e sua correlata ideia de tipicidade

material, competindo ao titular da ação penal pública e aos julgadores,

consoante o moderno conceito de fato típico, considerar um fato como atípico

devido à insignificância da lesão praticada, impedindo o início de um

procedimento criminal, ou mesmo absolvendo um acusado.

Sob essa ótica, ressalta-se que ao menos num primeiro momento,

houve omissão dos juízes e promotores em exercer um controle da legalidade

17 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. 5. Ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.

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dos atos arbitrários dos membros das agências policiais, e assim, viu-se a

violência manifestando-se de forma material (repressão da polícia) e de forma

imaterial (desprezo pela correta interpretação sistêmica das normas penais)

tanto das agências policiais quanto das judiciais.

3. O Conceito e as funções do bem jurídico em EstadosDemocráticos.

Historicamente o bem jurídico, em termos teóricos começa a ser

discutido na primeira metade do século XX. Na concepção ulteriormente

cunhada clássica, a acepção de bem jurídico estava relacionada à ofensa a um

direito subjetivo. Contudo, Von Litsz conferiu uma nova perspectiva à

discussão, ao afirmar que o bem jurídico é um interesse da vida e, assim, o

legislador deveria tomar por base a realidade social para defini-lo.

O bem jurídico é elemento relacionado à própria justificativa da

existência da norma penal, dado que aquele está revestido pela proteção

desta. Pode-se, pois, dizer que a norma penal tem por objetivo preservar a

integridade de determinado bem jurídico com relevância penal, sob iminente

lesão ou lesão já ocorrida, levando-se em conta o axioma social que o

envolve18.

Considerando o conceito de bem jurídico e o contexto dos

movimentos sociais brasileiros de meados de 2013 se verifica que algumas

condutas levaram à afetação do bem jurídico tutelado pelo crime de dano, qual

seja, a preservação de coisa alheia. Todavia, não se pôde constatar qualquer

violação ao bem jurídico resguardado na Lei nº. 12.850/2013, majoritariamente

identificado pela doutrina como sendo a paz pública.

Embora as agências policiais e judiciais tenham como atribuição

garantir a manutenção e preservação da paz social, percebe-se que a tentativa

de criminalização dos manifestantes à norma proibitiva contida na nova lei de

18 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10.ed. v.1. São Paulo: Revista dosTribunais, 2011, p.263-271.

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organizações criminosas se distancia em muito do bem tutelado nessa norma

especial.

No entanto, do ponto de vista do direito de manifestação, garantido

pela Constituição Federal, tem-se um aparente conflito entre normas

constitucionais, pois, com a ocorrência desse inaugurado fenômeno social em

junho de 2013, verifica-se que o mesmo encontra-se respaldado pela norma

constitucional ante o direito à livre manifestação, é dizer a justa reivindicação

de natureza lícita e legítima.

O conflito é apenas aparente, devendo prevalecer o direito

constitucional à livre manifestação, em detrimento do arbítrio que faz lembrar

de um passado não muito distante de instabilidades democráticas e regimes

totalitários na história do país, no âmbito dos quais manejou-se o Direito Penal

para além de sua finalidade e limites principiológicos.

É certo que o bem jurídico guarda intrínseca relação com o Princípio

da Lesividade, portanto, deve ser visto sob esta ótica principiológica, já tratada

em tópico anterior.

Na consideração do professor Regis Prado o bem jurídico se revela

como resultado de um juízo positivo de valor, cujo conteúdo é específico, de

cunho empírico-valorativo19.

Ainda, seguindo o brilhante pensamento do professor Regis Prado,

os bens jurídicos se revelam objeto da ação do infrator e subdividem-se em

dois tipos: bens jurídicos corpóreos e incorpóreos. Os primeiros formados pelo

ser animado ou inanimado – pessoa ou coisa – aqueles que sofrem a ação do

autor. Os últimos se formam por meio da essencial consideração valorativa

sintética, como exemplo a honra do indivíduo, de caráter incorpóreo20.

De forma concisa Roxin (2009) define o bem jurídico como

intervenção jurídico-penal que resulta de uma função social do Direito Penal.

Função esta que visa garantir aos cidadãos uma existência pacífica, livre e

socialmente segura nas democracias parlamentares atuais, sempre que tais

metas não forem alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem

em menor medida a liberdade dos cidadãos.

19 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10.ed. v.1. São Paulo: Revista dosTribunais, 2011, p.265.20 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10.ed. v.1. São Paulo: Revista dosTribunais, 2011, p.264.

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O eminente jurista, Luiz Flavio Gomes21, ao discorrer sobre a norma

e bem jurídico no direito penal, considera assim:

Para justificar a intervenção penal (que é a mais severa dasintervenções), será imprescindível, em consequência, que a condutaexterna praticada (formalmente típica e subjetiva ou normalmenteimputável ao agente) não só concretize a descrição legal (típica),senão também que ofenda concretamente (lesão ou perigo) o bemjurídico protegido, que, no caso, é a vida, sob determinadascondições ou circunstâncias (i.e . consubstanciada numa relaçãosocial).A fundamentação do princípio da ofensividade (do qual, segundonossa perspectiva, não podemos abrir mão se não desejamos correro risco de que o Direito Penal do bem jurídico seja liberal em suasformulações e autoritário em seu conteúdo ou em suas conclusões)tem desse modo, que partir do reconhecimento de que o delito (oinjusto penal) não se esgota na violação do aspecto imperativo danorma (antinormatividade), senão da infração do Direito (é dizer, naantijuridicidade em sentido material, que significa afetação inarredáveldo bem jurídico).(...).

Como se depura do pensamento acima transcrito há clara limitação

da intervenção da norma penal à conduta externa praticada pelo agente, pois

ela deve lesionar ou colocar em perigo de lesão o bem jurídico tutelado pela

norma penal, em homenagem aos princípios do Direito Penal, especialmente o

da Legalidade e o da Fragmentariedade.

Esse cenário revela que, no caso em estudo, as forças policiais

agiram sempre com maior violência que o Judiciário. Este mitiga um pouco a

violência, mas ainda assim não é capaz de fazê-la cessar. Aquelas utilizam

indiscriminadamente da violência no exercício arbitrário preventivo e repressivo

do jus puniendi.

Por isso deve-se discutir sempre a melhor forma racional de utilizar a

norma penal para controle no meio social, pois ela se justifica somente quando

preenchidos os requisitos limitadores do Direito Penal, o que se apresenta

bastante desafiador ante o cenário de expansionismo do direito penal.

4. O expansionismo do Direito Penal e a Flexibilização do Princípioda Fragmentariedade

21 GOMES, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal. V.5. São Paulo: Revista dosTribunais, 2002, p.24.

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No Brasil22 as influências na legislação penal decorrem do Direito

Ibérico, sendo que o direito criminal se relacionou intrinsecamente com a fonte

do direito criminal lusitano.

Contudo, além da influência legislativa, é bastante substancial a

influência doutrinária, razão pela qual para aprofundar nas análises do presente

trabalho científico, o qual tem por escopo abordar a expansão da norma

jurídica penal e o seu alcance a bens jurídicos nada relevantes para o Direito

Penal, foram utilizados conceitos discutidos especialmente na Europa nas

últimas décadas no século XX.

Uma dessas contribuições é trazida pelo professor espanhol Jesús-

María Silva Sánchez, o qual em seus estudos sobre expansionismo penal,

ressalta que a sociedade de risco “(...) é a configuração do risco de

procedência humana como fenômeno social estrutural (...).” Assim sendo,

desde os avanços tecnológicos e o modo pós-industrial, configurou uma

sociedade atual, onde se tem a presença de novos marginais que são

percebidos como fonte de riscos pessoais e patrimoniais23.

Como pode se perceber nesse aludido pensamento, a sociedade de

risco serve de fator impulsivo para a expansão da norma penal em proteger

novos bens jurídicos que reclamem tutela.

Como exemplo desse expansionismo, Sanchéz (2002) cita o

movimento iniciado nos Estados Unidos na década de 1970 e seguintes,

chamado de lei e ordem (Law and Order ), o qual se dirigia basicamente a

reclamar uma reação legal, judicial e policial mais contundente contra os

fenômenos de delinquência de massas, da criminalidade das ruas (patrimonial

e violenta).

22 Historicamente o Direito Penal brasileiro tem origem com as Ordenações Afonsinas, oriundasde Portugal para o Brasil Colônia. Com o decurso do tempo essas foram substituídas pelasOrdenações Manuelinas, as quais por último foram sucedidas pelas Ordenações Filipinas, quetiveram eficácia até a publicação do Código Criminal do Império em 1830, o qual ficou vigenteaté 1890. (TOLEDO, 2008).Futuramente surgem as Consolidações das Leis Penais, as quais vigeram por um período demodificação entre o Código Criminal do Império e o notável Código Penal de 1940, válido atéos dias atuais, muito embora conte com múltiplas mudanças desde sua criação, dentre elas agrande reforma editada pela Lei nº. 7.209/1984. (TOLEDO, 2008).23 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva; tradução. ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira; Revisão. GOMES,Luiz Flávio. A expansão do direito penal. V. 11. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.29.

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É imprescindível que se olhe para a influência social e jurídica

ibérica em nossa legislação penal, e dessa forma, no dizer Silva Sánchez24:

A sociedade pós-industrial é, além da “sociedade de risco”tecnológico, uma sociedade com outras característicasindividualizadoras que contribuem à sua caracterização como umasociedade de “objetiva” insegurança. [...] E se é certo que são muitosos que propugnam a máxima participação pública nascorrespondentes tomadas de decisão, não é menos certo que, demomento, as mesmas têm lugar em um contexto de quase totalobscuridade.Tudo isso evidencia que, inegavelmente, estamos destinados a viverem uma sociedade de enorme complexidade, na qual a interaçãoindividual - pelas necessidades de cooperação e de divisão funcional– alcançou níveis até agora desconhecidos. Sem embargo, aprofunda correlação das esferas de organização individual incrementaa possibilidade de que alguns desses contatos sociais redundem naprodução de consequências lesivas. Dado que, no mais, taisresultados se produzem em muitos casos a longo prazo e, de todomodo, em um contexto geral de incerteza sobre a relação causa-efeito, os delitos de resultado/lesão se mostram crescentementeinsatisfatórios como técnica de abordagem do problema. Daí orecurso cada vez mais frequente aos tipos de perigo, assim como asua configuração cada vez mais abstrata ou formalista (em termos deperigo presumido).

Silva Sánchez, desse modo, expressa como os efeitos da complexa

sociedade pós-industrial vão ao encontro do que aqui se quer demonstrar. Sua

obra, pois, corrobora para revelar que o ocorrido em junho de 2013 no Brasil,

trata-se em verdade, de um desdobramento da complexidade do meio social,

que caracteriza não apenas as sociedades europeias, mas também a

brasileira.

O sociólogo alemão Ulrich Beck25 (1991) subsidiou os estudos de

Silva Sánchez, quanto ao expansionismo penal, com o seu conceito de

sociedade de risco muito apropriado ao presente trabalho:

A sociedade de risco designa uma época em que os aspectosnegativos do progresso determinam cada vez mais a natureza dascontrovérsias que animam a sociedade. O que inicialmente ninguémvia e, sobretudo, desejava, a saber, colocar a si mesmo em perigo e adestruição da natureza, está cada vez mais se tornando o motor dahistória. Não se trata, pois, de analisar os perigos enquanto tais, mas

24 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva; tradução. ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira; Revisão. GOMES,Luiz Flávio. A expansão do direito penal. V. 11. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.30-31.25 BECK, Ulrich. A Política na Sociedade de Risco. Trad. Estevão Bosco. Revista ideias.Campinas 2010. Disponívelem:<http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/66/62>. Acesso em 19 denovembro de 2014. s.p.

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de demonstrar que, diante da pressão do perigo industrial que nosameaça e o consequente desaparecimento das questões tradicionaisno conflito de classe e de interesses, aparecem chances de novasconfigurações.

Embora o conceito trazido por Beck faça alusão a um aspecto

ambiental, a magnitude de sua obra abarcou outros seguimentos da sociedade

como o risco na seara criminal, pois, em uma sociedade pós-industrializada e

com novas demandas e interesses em curso, propulsiona-se o surgimento de

riscos acolhidos como objeto de tutela jurídico penal.

Assim, em “nossa” sociedade do risco, cuidou-se de aglutinar as

influências legais e sociais estrangeiras, e a partir da complexidade das

interações entre o público e o privado, às quais faz menção Silva Sánchez,

tem-se buscado o aparato estatal na seara criminal para conter um sem

número de temores socais, justificando-se as ações por vezes arbitrárias de

instâncias incriminadoras sob o argumento de pacificação social.

A sociedade de risco traz consigo uma série de demandas, entre as

quais uma ressignificação do Direito Penal, ora de cunho primordialmente

preventivo e repressor.

Com isso, forja-se uma pseudo-legitimidade na criação,

interpretação e aplicação das normas penais em desatenção ao escopo de

garantias limitadoras do uso institucionalizado da violência, referido no tópico

anterior.

As reações de órgãos estatais aos movimentos sociais ocorridos no

Brasil em meados de 2013 dão mostra da transformação social identificada por

Ulrich Beck, exigindo-se reflexão e crítica especialmente quando tais

transformações acarretam em novas ondas punitivistas.

5. Breve Histórico das manifestações brasileiras

As manifestações sociais brasileiras também conhecidas como

movimento ‘vem pra rua’ tiveram como estopim o aumento de passagem de

ônibus no valor de vinte centavos de real no Estado de São Paulo e em outras

cidades brasileiras.

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No entanto, conforme o movimento social se desenvolvia também

crescia o interesse popular por manifestar-se, e quando se aprofunda na

investigação desse fenômeno, acredita-se que vinte centavos foram apenas a

‘centelha da faísca do fogo’ que fez eclodir o levante social.

De certo, ocorreram agressões, palavras de ordem direcionadas às

autoridades, enfretamento e intervenção da força física estatal, por meio da

agência policial e posteriormente da agência judicial.

Simultaneamente as agências de comunicação e autoridades

reforçavam a necessidade de se recorrer ao poderoso instrumento de controle

social, que é o Direito Penal, aqui nesse estudo visto como expansão da norma

penal, para o adequado enfrentamento do problema.

5.1 As manifestações populares de junho de 2013: Do direitoConstitucional à livre manifestação ao crime organizado.

Zaffaroni (2010) nos adverte acerca do papel dos meios de

comunicação de massa, os quais têm como função incutir o medo no sentido

desejado ou reproduzir os fatos conflitivos interessantes de serem reproduzidos

em cada conjuntura para favorecer as agências do sistema penal.

Conforme adverte Silva Sánchez, no contexto das sociedades de

risco a mídia tem também um papel relevante:

Em todo caso, à vista do que vem acontecendo nos últimos anos, éincontestável a correlação estabelecida entre a sensação social deinsegurança diante do delito e a atuação dos meios de comunicação.Estes, por uma lado, da posição privilegiada que ostentam no seio da“sociedade da informação” e no seio de uma concepção do mundocomo aldeia global, tansmitem uma imagem da realidade na qual oque está distante e o que está próximo tem uma presença quaseidêntica na forma como o receptor recebe a mensagem. Isso dá lugar,alguma vezes, diretamente a percepções inexatas, e, em outras, pelomenos a sensação de impotência. (...) não cabe negar que, em certasocasiões, também as próprias instituições públicas de repressão dacriminalidade transmitem imagens oblíquas da realidade, quecontribuem com a difusão da sensação de insegurança26.

26 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva; tradução. ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira; Revisão. GOMES,Luiz Flávio. A expansão do direito penal. V. 11. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.37-39.

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Os meios de informação nacional bem fomentaram essa sensação

de insegurança, ao tratarem genericamente de vândalos aqueles que

marchavam nas ruas do país. Enquanto outros meios de fonte de notícias,

como a imprensa internacional ou independente, que aqui veio cobrir o

fenômeno social, viam um cenário de forte aparato repressor estatal e tratavam

aos participantes do movimento de protestantes, destacando atos isolados de

vandalismo em meio aos protestantes.

No entanto, era interessante para as agências de notícias brasileiras

veicularem e reforçarem os atos isolados de alguns, e assim se repetiam as

falas e as imagens de fachadas de prédios públicos e privados quebradas, para

então se justificar o discurso jurídico penal como forma imprescindível para

solucionar o interesse envolvido, e tentar retirar o caráter lícito e legítimo do

movimento social.

Contudo, o que se viu mediante notícias veiculadas nos meios de

informação é a de que grupos de pessoas foram conduzidos para a delegacia,

sob a acusação de portarem objetos de eficácia destruidora, quando, na

verdade, finda a fase investigatória ou diligenciais, verificou-se que, tais

objetos, eram completamente ineficazes, no que se refere à possibilidade de

lesionar ou por em perigo de lesão qualquer bem jurídico. Tratavam-se, em sua

maioria, de objetos que poderiam amenizar os efeitos de gases de efeito moral

ou lacrimejante, o chamado gás pimenta, armas não letais utilizadas pelas

forças policiais.

Averiguou-se na verdade, em muitos casos, o despreparo das forças

policiais quando foram conduzidos para delegacias centenas de manifestantes

e alguns por interpretação equívoca, seja do delegado, seja do promotor,

ficaram por diversos dias e até mesmo por meses detidos.

Enfatiza-se, o que se viu foram cenas nas quais, em pleno meio da

multidão, poucos agentes destruíam patrimônios e se mesclavam no meio dos

protestantes pacíficos, e assim, as autoridades completamente perdidas,

conduziam ônibus lotados de manifestantes buscando rotular a todos como

delinquentes.

Todavia, o que se viu foi a constatação, findas as diligências, por

meio da informação midiática que, na verdade, eram encontrados com

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manifestantes a posse de objetos que passam ao largo do conceito de arma

branca, como vinagre, máscaras, óculos de sol, roupas pretas, entre outros.

Objetos os quais, a bem da verdade, são incapazes de manter ou

justificar a incidência da norma penal, pois não são capazes de ameaçar, quão

mais lesionar o bem jurídico tutelado pela Lei 12.850/2013, é dizer, há ausência

do injusto penal e a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, e que se diga,

ausente está também o axioma valorativo desse bem jurídico.

Nesse caso em estudo, diante do fenômeno social das

manifestações de junho de 2013 não há, portanto, qualquer possibilidade de

incidência da Lei 12.850/2013, por não se amoldar ao apregoado no princípio

da estrita legalidade.

Essas características determinam as fronteiras da expansão da

norma penal e, até quando poderá haver sua flexibilização diante de novos

fatos sociais, como as manifestações de junho 2013.

5.2 O tratamento jurídico- penal do tema

Na sábia lição de Silva Sánchez (2002) as causas da provável

existência de novos bens jurídicos penais são distintas. Dessa forma o

professor aponta três argumentos que justificariam o surgimento de novos

interesses.

O primeiro se apoia em realidades inéditas e que passam a existir

pelo próprio contexto de evolução no qual o indivíduo é obrigado a conviver,

como exemplo o referido autor cita as instituições econômicas de créditos ou

inversão.

O segundo argumento se embasa nas realidades tradicionalmente

abundantes e que ao longo do desenvolvimento da sociedade tornam-se

escassos, atribuindo valores a esses bens que outrora não se tinha em

consideração, como exemplo o meio ambiente.

O terceiro argumento se consolida na evolução social e cultural de

determinadas realidades que sempre estiveram presentes, mas que ganham

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relevância por um querer de preservação e manutenção desses bens, como

exemplo o patrimônio histórico-artístico.

Nesse sentir é que se olha para as manifestações de junho de 2013,

identificando-as como objeto da expansão da norma penal, especialmente com

as tentativas de aplicação da Lei nº 12.850/2013, revelando-se como um novo

interesse que equivocadamente procurou-se remediar com a ira do jus

puniendi.

O problema da aplicação da Lei nº 12.850/2013 consiste em tentar

aplicar o conceito de organização criminosa contida em seu bojo normativo a

fim de tipificar condutas dos movimentos sociais de junho de 2013. Isso

porque, o objetivo da Nova Lei se dirige às organizações criminosas, as quais,

segundo a corrente majoritária da doutrina penalista brasileira, têm sua

acepção pautada em forte influência do Direito Externo, especificamente a da

Convenção de Palermo.

A possibilidade de aplicação da Lei 12.850/2013 às condutas de

alguns manifestantes apoia-se na falta de clareza presente no ato normativo,

especialmente em seu art. 1º, §1º, que recebeu críticas da doutrina dado o

descumprimento do Princípio da legalidade sob o aspecto de “Lex certa”. Não

restou claro o conceito organização criminosa advindo nessa Lei, o qual foi tido

como conceito aberto, por pairar dúvida sobre a natureza da vantagem

almejada pelo agente criminoso. Ou seja, a vantagem almejada pelos

componentes da organização criminosa abarcava a vantagem indevida e ilícita,

ou também abarcava a vantagem devida e lícita, tal qual a perseguida pelos

manifestantes.

Assim, valendo-se do conceito aberto de organização criminosa, o

poder público utilizou aquela nova norma penal para tipificar condutas de

manifestantes que marchavam em protestos em diversas cidades do país, não

obstante o fim lícito e devido do movimento, sob a ótica do campo sociológico.

6. Conclusão

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Ante os conceitos doutrinários e aspectos jurídico-penais até aqui

discutidos é possível verificar que há enorme perigo para a sociedade, ainda

mais hodiernamente, quando o intérprete da lei aplica a expansão da norma

penal em determinado fato ou fenômeno social, sem observância de uma

interpretação sistêmica da dogmática penal, e, assim, acaba por proteger bem

jurídico penalmente irrelevante, vale dizer, desvirtua a finalidade da norma

penal.

Ainda mais impactante é para o indivíduo, que por essa elasticidade

da norma penal, se vê em uma situação de ter tolhida sua liberdade, mesmo

com garantias constitucionais asseguradas, como o direito de manifestação,

bem como a vigência de todos os princípios informadores da dogmática penal.

Nota-se que haverá dissociação da finalidade da norma penal

sempre que o bem jurídico envolvido nos casos de incidência da norma penal,

não se traduzir em verdadeira lesão ou perigo de lesão ao mesmo, é dizer

sempre que não estiver num patamar de relevância penal para o equilíbrio e

pacificação social.

A crítica à Lei 12.850/2013 mais que analisar e constatar que

persiste o erro originário de se ter um tipo aberto na definição do que é

associação em organizações criminosas, a bem da verdade, verifica-se que se

tratou também de avanços positivos nessa nova legislação especial, contudo

deve ser afastada a sua aplicabilidade para os casos decorrentes das

manifestações de junho 2013.

Assim sendo, ao se aplicar o preceito primário, ao se encarcerar

manifestantes, incursos nas iras dos dispositivos da Lei nº 12.850/2013,

denota-se grande equívoco de interpretação normativa penal, gera-se uma

insegurança jurídica.

Posto que essa norma específica tenha o seu fim para combater

organizações criminosas, cuja complexidade jurídica visa alcançar um poder

paralelo ao Estado e simultaneamente nefasto, ou seja, que realmente abala os

fundamentos da sociedade, e por isso mesmo, tratado de modo peculiar nessa

legislação especial.

Por fim se invoca aos operadores jurídicos, em especial as agências

policiais e judiciais que a expansão da norma penal visa ao atendimento a uma

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sistemática de interpretação da própria persecução estatal, apoiada nos limites

principiológicos de sua aplicação.

Dessa forma, haverá obediência constitucional e limitação ao

instrumento poderosíssimo que é o jus puniendi estatal no combate aos delitos

existentes e mesmo diante de novos fatos ou fenômenos sociais legítimos se

possa exigir um acerto do intérprete quanto ao uso desse instrumento

garantidor da paz social, evitando-se o arbítrio-penal.

7. Referências

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