do fundamentalismo À hermenÊutica · protestante estadunidense, a saber, o fundamentalismo...
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DO FUNDAMENTALISMO À HERMENÊUTICA
Alexandre Henrique Vieira*
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo abordar o surgimento histórico da ortodoxia
protestante estadunidense, a saber, o fundamentalismo religioso. Observado o modo como
esse se apresenta na sociedade atual, deduz-se que o fundamentalismo é entendido como
prática irracional e violenta, que não raro favorece a consolidação de uma postura dogmática e
intolerante. O artigo também faz uma análise do fundamentalismo e da sua aversão às ciências
modernas, e analisa suas práticas defensivas, resultantes, sobretudo da obra The
Fundamentals: a testimony to the truth (Os fundamentos: um testemunho em favor da
verdade), que defende os princípios dogmáticos da fé cristã. Nesse sentido procura-se
demonstrar como o fundamentalismo interpreta a fonte bíblica com exagero de literalismo,
sem absorver a crítica das ciências históricas e as críticas da modernidade. Outrossim, a
pesquisa apresenta a hermenêutica como um contraponto ao pensar teológico fundamentalista.
A hermenêutica como arte da interpretação nos parece mais ajustada e mais condizente com o
nosso tempo em diálogo com a modernidade.
Palavras-chave: Evangelho Social. Fundamentalismo. Cristianismo. Hermenêutica-Teológica.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo desta investigação científica é apresentar informações relevantes para o
debate acadêmico referentes ao fundamentalismo cristão e à própria hermenêutica. É a partir
de intelectuais de alto nível e de diferentes áreas do saber, que a pesquisa propiciará
ponderações consistentes para a reflexão teológica, histórica e social sobre esse fenômeno. É
preciso esclarecer que a exploração do assunto fundamentou-se em fontes bibliográficas.
O ponto nevrálgico para a realização desta investigação científica, é abordar, de
maneira breve, as causas que serviram de motivação imediata para que tal projeto ideológico
* Discente do Curso de Teologia do Centro Universitário La Salle – Unilasalle, matriculado na disciplina de
trabalho de Conclusão II, sob a orientação do Prof. Me. Gilmar Zampieri. E-mail:
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assumiusse posições críticas frente às ciências modernas. Outrro propósito, não menos
relevante, é reinterpretar o termo fundamentalismo, separando-o de qualquer sentido ambíguo,
propagandeado pela indústria cultural de massa, que gerou o conceito fundamentalismo,
associando seus praticantes ao terrorismo ou a qualquer posição tido como conservador,
tradicional e sectário. Essa ambiguidade tornou a prática religiosa alvo de preconceito e
discriminação. Mais ainda: com a guerra contra o terrorismo, esse conceito tornou-se mais
sinônimo de acusação do que ajuda para compreender a questão histórica do fenômeno. É
certo que o “pânico da segurança”, produzido pela mídia internacional, ajudou a distorcer o
sentido que deu origem a esse movimento.
Na primeira parte, intitulada: “Dos fundamentos ao fundamentalismo”, esta pesquisa
exploratória do fenômeno esclarece a origem do fundamentalismo religioso cristão de
ortodoxia protestante, no Ocidente, em particular na América do Norte. Em seguida, traçam-
se os motivos que levaram esse movimento a tomar certas posições adversas à ciência e à
razão. Por fim, buscou-se dar maior ênfase aos princípios dogmáticos defendidos pelos
fundamentalistas na obra The Fundamentals: a testimony to the truth (Os fundamentos: um
testemunho em favor da verdade) contra as ciências modernas.
Na segunda parte, a ideia do título: “Do fundamentalismo à hermenêutica”, é resgatar
o sentido etimológico de hermenêutica, a partir do mito grego que narra o nascimento de
Hermes. Esse intento de repassar a história da hermenêutica também visa contextualizar a
temática em questão, recuperando alguns pensadores que colaboraram para compreender a
arte de interpretar as narrativas bíblicas no campo filosófico e teológico. E, por fim, o artigo
apresenta, a partir do teólogo francês dominicano Claude Geffré, quatro traços do modelo
hermenêutico, mostrando como, em sua reflexão, ele consegue responder aos
questionamentos do pensar dogmático, mantendo uma análise aberta, mas também urgente,
para uma boa interpretação das fontes bíblicas, sem cair no dogmatismo intolerante, tão
perigoso em nosso tempo.
2 DOS FUNDAMENTOS AO FUNDAMENTALISMO
O fundamentalismo, doutrina religiosa de caráter conservador ou de extremo
tradicionalismo, é, inicialmente, o movimento religioso que, no Ocidente, em particular na
América do Norte, emerge de diversas denominações evangélicas que eram muito apegadas as
tradições e, dos quais iam em reação ao iluminismo e às ciências modernas (BOFF, 2009, p.
9-10). Os conflitos denominacionalistas gerados pelas opções de crenças religiosas
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transversais seguem, em algum sentido, versões da mesma declaração de fé: “batistas,
presbiterianos, anglicanos, metodistas, entre outras” (RUSSEL apud BONOME, 2009, p. 64),
delineiam o universo religioso de oposição ao modernismo do século XIX e XX. Com relação
à modernidade cultural, as declarações de fé cristã ortodoxa protestante não aceitam a ciência
bíblica, o pluralismo, o relativismo, a teoria da evolução por não estarem de acordo com a
narrativa bíblica. O anti-modernismo é o modelo hegemônico do conservador estadunidense.
O nascimento do movimento fundamentalista1 situa-se no centro da modernidade.
Não se trata, porém, de um processo unitário, com certa declaração institucional protestante.
O grupo de conservadores americanos que o promove resiste à secularização moderna e
pretende “defender e conservar os elementos fundamentais do cristianismo segundo o ponto
de vista dessa posição teológica” (SCHLESINGER; PORTO, 1995, p. 1126). Estava
convencido de que as doutrinas centrais do cristianismo clássico acabariam tornando-se
irrelevantes e desapareceriam na obscuridade frente às novas pesquisas modernas das
Sagradas Escrituras. Segundo Dreher (2002, p. 80), a ciência moderna havia tomado conta do
mundo protestante. Os fundamentalistas resistem a essa submissão.
[...] Frente a esse modernismo, os fundamentalistas opuseram seus Fundamentals
(fundamentais). Fundamentals eram os conteúdos de fé, verdades absolutas e
intocáveis, que deveriam ficar imunes à ciência e à relativização por meio do
método-histórico-crítico.
Em suas críticas às ciências modernas, o fundamentalismo2 se opôs a movimentos
sérios de promoção pública como o Gospel Social (Evangelho Social)3, movimento criado e
liderado pelo pastor da segunda Igreja Batista alemã no Norte de Nova York, Walter
Rauschenbusch (1861-1918), que incorporou o ideal cristão do século XIX ao Evangelho
Social. Rauschenbusch buscou associar a teologia dos valores morais de Albretch Ritschl
(1822-1889), com a participação social da Igreja em serviços humanitários de cunho
assistencialista, que eram motivados pela caridade cristã e pela justiça social, como resposta
aos desafios éticos e morais do cristianismo e da população em geral a partir de uma
compreensão mais ampla da doutrina cristã (MURAD; GOMES; RIBEIRO, 2010, p. 124). Na
prática, a teologia fortemente arraigada nas interações humanas tentara “retomar o que
considerava os preceitos básicos dos profetas hebreus e do próprio Cristo, que ensinara seus
seguidores a visitar os presos, vestir os nus e dar de comer aos famintos” (ARMSTRONG,
2009, p. 235).
Tal projeto é posto em prática por alguns protestantes americanos de diversos setores
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da sociedade. Propuseram ações de serviço humanitário, de acordo com as carências sociais
da época, porque após a Guerra Civil Americana de 1861-1865, em que os estados nortistas e
os sulistas se enfretaram belicosamente, a sociedade caíra em declínio urbano e econômico, e
os próprios cidadãos encontravam-se desmotivados para buscar alguém que viesse em seu
socorro. Para muitos,
a guerra deixou cidades inteiras em ruínas, famílias despedaçadas e os brancos do
Sul revoltados. Em vez de utopia, os estados do Norte conheceram a rápida e
dolorosa transição de uma sociedade agrária para uma sociedade industrializada.
Novas cidades foram construídas, velhas cidades cresceram desmensuradamente.
Levas e levas de imigrantes, procedentes do sul e do leste da Europa,
desembarcaram no país. Capitalistas fizeram fortunas imensas com ferro, petróleo e
aço, enquanto os operários viviam abaixo do nível de subsistência. (ARMSTRONG
apud VASCONCELLOS, 2008, p. 21).
Os evangelistas sociais passaram a substituir a dogmática confessional pela práxis
cristã. Há que se dizer que o movimento concentrou seus esforços em presídios, em fábricas,
“em missões no exterior e em campanhas pela Lei Seca ou por melhorias na educação”
(ARMSTRONG, 2009, p. 235). Os programas desenvolvidos pelos agentes sociais seguiam
ideal progressista. Combatiam a deficiência das políticas públicas, a rápida expansão
populacional da vida urbana e o crescimento desordenado de empresas fabris. No século XIX
o Evangelho Social recebeu adesão, conforme Oneide Bobsin (2002, p. 120), de “igrejas
presbiterianas, batistas, metodistas, congregacionais e episcopais”. Os conservadores também
estavam tão empenhados em defender tal moralidade quanto os liberais, porém assumiam
posturas ideológicas dessemelhantes. Para alguns cristãos conservadores, o movimento
ativista corporificado no serviço, na caridade cristã e na luta por justiça social, em “nada
comprometeria a adesão tradicional aos dogmas e, especialmente, em nada modificavam a
relação com as Escrituras” (VASCONCELLOS, 2008, p. 21). Todavia, para os não ortodoxos,
a prática social da Igreja despertava uma ação humanitária mais acessível aos desprovidos de
qualquer bem econômico. Enfim, tal atuação social revelava uma modalidade diferente de
prática religiosa.
Charles Eliot, professor emérito da Harvard University, em 1909 proferiu um
discurso intitulado de “The future of religion” (O futuro da religião), que assustou os mais
conservadores. Para Eliot, a nova religião deveria expressar-se em apenas um imperativo: a
caridade.
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Não existiriam igrejas nem escrituras; nem teologia do pecado, nem culto. [...] Essa
versão extrema do Evangelho Social representava um repúdio às disputas doutrinais
de décadas recentes. Numa sociedade que valorizava apenas a verdade racional ou
cientificamente demonstrável, o dogma se constituíra num problema. A teologia
podia facilmente converter-se num fetiche, num ídolo. [...] Ao descartar a doutrina,
Eliot procurou resgatar o que considerava fundamental: amor a Deus e ao próximo.
[...] Eliot tentou, portanto, solucionar o verdadeiro dilema dos cristãos modernos
propondo uma religião baseada mais na prática que em crenças convencionais
(ARMSTRONG, 2009, p. 236-237).
O comentário de Charles Eliot provocou reações contundentes, causando disputas
teológicas ferrenhas. Os grupos conservadores não compreendiam como uma instituição
religiosa poderia responder aos fiéis sem uma doutrina infalível. Essa concepção dogmática,
na visão deles, não podia ser cristã, e sentiram-se inspirados a descartar esse perigo liberal,
pois “era preciso dar respostas fundamentais a essa situação” (BONOME, 2009, p. 64).
É justamente nessa época que as formulações apologéticas, construídas nos
encontros4 dirigidos pelos institutos bíblicos, seminários teológicos e conferências bíblicas
serviram de suporte ideológico contra o crescente liberalismo do início do século XX.
Segundo Ammerman (1992, p. 20), o encontro mais importante das conferências bíblicas
ocorrido nos Estados Unidos, como centro de toda formulação teológica, começou em 18754,
com a seguinte nomeação: Encontro de Crentes para o Estudo da Bíblia.
Batizada de “Believers´ Meeting for Bible Study” (Encontro de Crentes para o
Estudo da Bíblia) começou em 1875. Oito anos mais tarde, mudou-se para um novo
local em Niagara-on-the-Lake, Ontário, e adotou seu nome mais comumente
conhecido, Conferência Bíblica de Niágara. Foi uma série de retiros de uma ou duas
semanas no verão (de 1883 a 1895) com alguns dos principais professores de Bíblia
e pregadores da época. Reunidos J.H. Brookes, William Eerdman, C.I. Scofield, A.
T. Pierson e A. J. Frost, todos presbiterianos e batistas. Eles e seus ouvintes se
reuniram para adoração, comunhão e estudo, apreciando a beleza do cenário natural.
Havia até cinco palestras a cada dia, incluindo de quando em quando a leitura da
Bíblia. Esta prática consistia de leituras consecutivas de passagens selecionadas para
ilustrar um ponto ou doutrina. Exceto por uma breve introdução ou conclusão
dirigida pelo professor, o esforço era o de permitir o “fato” de a Escritura falar por si
mesma (AMMERMAN, 1991, p. 20)5.
No final desses encontros, criaram-se vários projetos que se tornaram públicos
através de panfletos, folhetos, revistas, livros e periódicos que pudessem revestir os
fundamentos do protestantismo conservador estadunidense, como plano estratégico de
disseminar os ideais teológicos captados pela própria maneira de compreender a fé cristã. Os
aspectos mais destacados, pelos fundamentalistas, nas publicações, basearam-se em
fundamentos bíblicos, de modo a adequá-los aos dogmas tradicionais, contestando de frente
as interpretações advindas da crítica histórica aplicada à Bíblia.
Não é incomum afirmar que o biblicismo, o historicismo e o literalismo já eram
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difundidos pelos grupos conservadores em todos os cantos dos Estados Unidos até antes do
primeiro volume de uma série (The Fundamentals)6 de manifestos ideológicos. Os
fundamentalistas viram “na publicação desse material a referência primeira para a proposição
e defesa de suas causas. [...] A certeza era de que se estava defendendo os fundamentos da fé
cristã e a identidade cristã da nação, de tantas formas ameaçadas” (VASCONCELLOS, 2008,
p. 31) pelas ciências modernas e por uma teologia orientada pelo método histórico-crítico, que
acabava contrariando a doutrina e a teologia cristã, ou seja, os ensinamentos do magistério da
Igreja, visando alcançar o sentido verdadeiro do texto-fonte.
De acordo com João Oliveira Ramos Neto (2009, p. 4), o texto bíblico deixa de ser
“fonte de esclarecimento, mas passa a ser objeto de análise como mais um livro, sem nenhum
status diferencial como texto sagrado ou fonte de autoridade”. Os adeptos da Crítica Bíblica
investigavam os textos literários utilizando métodos linguísticos, arqueológicos,
antropológicos entre outras ciências que poderiam auxiliar na objetivação da pesquisa bíblica.
Essa forma de estudar cientificamente influenciou grandes teólogos, causando transformações
no universo acadêmico, relativizando os conteúdos da fé que deveriam ficar imunes ao
modernismo (BOFF, 2002, p. 13-14). É por isso que, de 1910 a 1915, teólogos conservadores
das mais diversas confissões protestantes reuniram-se para a fixação das suas doutrinas, numa
obra monumental que alcançaria enorme repercução nos Estados Unidos da América. Sobre o
assunto, Baptista (2003, p. 162) nos aponta que:
Os presbiterianos de Princeton haviam publicado, em 1910, uma lista com os cinco
dogmas que consideravam essenciais. Nos artigos de The Fundamentals eles foram
ampliados para nove pontos: 1. a inspiração e a inerrância da Bíblia; 2. a trindade; 3.
o nascimento virginal e a divindade de Cristo; 4. a queda do homem e o pecado
original; 5. a morte expiatória de Cristo para a salvação dos homens; 6. a ressureição
corporal e a ascensão; 7. o retorno pré-milenar de Cristo; 8. a salvação pela fé e o
novo nascimento; 9. o juízo final.
De fato, os protestantes invocam estes princípios dogmáticos, reunidos na obra The
Fundamentals: a testimony of the truth7 (Os fundamentos: um testemunho em favor da
verdade), na tentativa de proporcionar subsídios sólidos para o movimento fundamentalista
que pretende contrapor-se ao espírito de cientificização da era moderna, “do Protestantismo
liberal, como também aos defensores da Evolução das espécies (darwinismo), do socialismo,
do Evangelho social, do Espiritismo e da filosofia moderna” (MURAD; GOMES; RIBEIRO,
2010, p. 124). Foi assim que os conteúdos se tornaram fundamentais para a fé protestante.
“Do título dessa série saiu o nome de um movimento formado no último terço do século XIX
por grupos de cristãos conservadores evangelicais” (DREHER, 2013, p. 447) norte-
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americanos, que suscitaram verdades inquestionáveis na obra literária The Fundamentals: a
testimony to the truth. Para esses, a fixação dos conteúdos dogmáticos serviria de
fundamentação ideológica para os adeptos do movimento protestante depois de sua
publicação. Essas ideias, apologias de resistência e de reafirmação, passaram a ser seguidas
lentamente pela população norte americana de denominação protestante. Com os diversos
conceitos doutrinais defendidos pelos teólogos conservadores naquela revista, delineia-se a
nítida identidade evangélica da fé cristã fundamentalista. Tais conceitos só recebem maior
formulação teológica por causa de escritores, exegetas, pastores, teólogos e demais fiéis que
se dispuseram a defendê-los (SILVA, 2014, p. 36-45). O docente de teologia e ética no Ewing
College, David Heagle (HEAGLE apud VASCONCELLOS, 2008, p.19) coautor de alguns
capítulos, afirma que: “Nenhum outro livro, ou coleção de livros, alcança para o homem os
grandes benefícios realizados por esse livro que contém a verdade”. Tal afirmação caracteriza
bem o espírito do fenômeno que emergia entre os anos de 1910 a 1915.
É importante dizer que no início da formação da identidade do movimento já havia
diversas Igrejas de denominação protestante que buscavam valorizar os ideais da fé cristã.
Muitos se diziam ser fundamentalistas, afirmando que eram verdadeiros cristãos, porque
defendiam os princípios fundamentais de sua fé. Porém é a partir dos anos 1970, com as
instabilidades políticas no Ocidente e no Oriente Médio (DUBIEL, 1995, p. 10-14), que o
substantivo fundamentalismo é empregado com carga depreciativa, saindo do mundo cristão e
começando a vigorar em outros espaços religiosos. O conceito inflacionou por todo o mundo,
decorrente dos ataques terroristas no século XXI. Segundo Oro (2013, p.70),
o conceito de fundamentalismo, tal como aparece veiculado na mídia e no senso
comum, é muito ambíguo. O termo fundamentalismo vem hoje aplicado a grupos
religiosos das mais diversas religiões e culturas. Refere-se a um posicionamento tido
como conservador, tradicional e sectário, ou a quem, em nome da fé, atua na política
de forma extremista ou radical.
Essa ambiguidade contribui mais para aumentar a confusão e a imprecisão conceitual
do que ajuda a explicar o fenômeno.
Os historiadores Jaime Pinsky e Carla B. Pinsky (2004, p. 11) julgam que a face mais
cruel do nosso tempo é constituída pelos “homens-bomba, atentados terroristas, manifestações
racistas, ações extremistas”, que se apresentam como problemáticas reações incivilizadas para
a humanidade. No dizer de Urbano Zilles (apud BAPTISTA, 2003, p. 166), “o
fundamentalismo, em nosso século, assume características de fanatismo. E o fanatismo é
incapaz de diálogo, porque tem poucas ideias, das quais se torna tão escravo que nega,
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condena ou tenta destruir tudo que as questiona”.
É difícil mapear, identificar, ou simplesmente explicar as atitudes intransigentes que
constituem as faces do fundamentalismo hoje. Acrescente-se, ainda, que não seria difícil
identificar, alguns traços que, de acordo com observações de Antônio Gouvêa Mendonça,
conformariam a figura do crente fundamentalista que, no decorrer de sua árdua luta, em
resgate dos fundamentos, distorce a fé, transformando-a num posicionamento tido como
conservador, tradicional e sectário:
1. Gosto exagerado pelas profecias, com o abandono relativo dos demais quadros
básicos da fé cristã; 2. expectação permanente da volta de Jesus Cristo; 3. insistência
em sinais; 4. insistência em quadros referenciais de doutrinas que possam transmitir
segurança, ou melhor, respeito pela reta doutrina (dogmatismo); 5. desconfiança
para com a ciência e toda forma de saber que não tenha referencial bíblico; 6.
certeza de que os que não compartilham com seus pontos de vista religiosos não são
absolutamente cristãos (MENDONÇA apud BAPTISTA, 2003, 164).
As ações praticadas pelos fundamentalistas merecem, da parte deles, abosluta adesão
e são por eles defendidas de modo ferrenha. O problema é que essas atitudes reafirmam e
ajudam a alimentar um ímpeto e uma lógica extremista, ao pensar as narrativas a partir de
outros pontos de vista. E, para eles, o que não se encontra no universo religioso é relegado à
exclusão. O fundamento da fé segura não, para eles, geram contradições existenciais internas
do ser religioso (BRUN, 2007, p. 67). O preço é perder-se numa imoralidade religiosa. Mas,
assumindo-a, ganha-se a promessa duma fé sem riscos, sem perda da credibilidade. Os
adeptos dessa “doutrina” e/ou desse fenômeno “opõem-se, portanto, a todo dizer sobre a
verdade, pois a sua apreensão da verdade é absoluta e a defendem de maneira radical”
(PANASIEWICZ, 2007, p. 52).
Enquanto para os cientistas a pesquisa deve passar pelo método das leis naturais, o
religioso fundamentalista assume-se possuidor dos conteúdos da fé, sem que haja necessidade
de recorrer à ciência moderna para lentamente tomar consciência de que os fatos bíblicos
narrados se inserem como dado histórico. Como dizem Jaime Pinsky e Carla B. Pinsky (2004,
p. 9-10), o fanático da fé age como
detentor de uma verdade supostamente revelada especialmente para ele pelo seu
deus, (portanto não é uma verdade qualquer, mas A Verdade), o fanático não tem
como aceitar discussões ou questionamentos racionais com relação àquilo que
apresenta como sendo seu conhecimento: a origem divina de suas certezas não
permite que argumentos apresentados por simples mortais se contraponham a elas:
afinal, como colocar, lado a lado, dogmas divinos e argumentos humanos?
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O fundamentalista, ou o fanático fideísta, como foi explicitado mais acima,
desenvolve argumentações irracionais, fechando-se à compreensão, ainda que prévia, da
ambiguidade, quando aplica o princípio da não racionalidade ao Livro Sagrado. Na prática
religiosa, a sua maneira de ler, dita como primitiva, distorce a verdade original. Há grande
medo de perder a fé com a entrada da reflexão crítica usada para abordar a Escritura. O risco é
que a falta de formação teológica, antropológica, psicológica e das demais áreas do
conhecimento só gera ambiguidades gravíssimas de interpretação, pois “a teologia é, do
começo ao fim, empreendimento hermenêutico” (GEFFRÉ, 1989, p. 6), ao mesmo tempo, a
teologia dialóga com as outras ciências para aprofundar-se e enriquer-se com as de mais
reflexões atuais. É sobre esse empreendimento que nos debruçaremos de agora em diante.
3 DO FUNDAMENTALISMO À HERMENÊUTICA
Para compreender a arte do pensar hermenêutico no campo teológico, impõe-se,
como tarefa necessária, repassar a evolução histórica recente da temática, a hermenêutica. O
conceito-termo hermenêutica possui raízes na antiguidade. Porém, é com o advento da
modernidade que se resgata essa palavra e que ela passa a ser aplicada com maior
aprofundamento filosófico e teológico à hermenêutica bíblica.
Na atualidade, o uso linguístico da palavra hermenêutica apresenta uma série de
problemas conceituais. Por isso, reconhece-se, efetivamente, o conceito de hermenêutica
como um feixe de significações de caráter funcional de conteúdos. Em outras palavras, esse
termo vem carregado de sentidos ou de definições não uniformes, abrindo um campo de
enorme imprecisão, por vezes, até contraditório em si. “Ela é compreendida como sendo
sinônimo de interpretação, explanação, explicação, exegese” (PANASIEWICZ, 2007, p. 19).
Há um uso verdadeiramente impressionante do conceito, e este vai tornando-se mais aberto à
medida em que é conceitualizado pelos variados campos do saber. Nessa trilha e visando
evocar em linhas gerais o fator temático, a hermenêutica, quer-se, numa primeira parte, ir à
raiz do conceito-termo e depois à sua compreensão filosófica e teológica em três épocas:
idade antiga, moderna e atual.
O sentido etimológico de hermenêutica remonta “à mitologia grega, ao mito de
Hermes” (PANASIEWICZ, 2007, p. 20). Os mitos conseguiam oferecer respostas inteligíveis
às questões complexas e enigmáticas da condição humana. Nesse aspecto, o mito “é uma
narrativa que antecede o surgimento da ciência e era usado como forma de explicação da
realidade” (PANASIEWICZ, 2007, p. 20). De fato, o mito de Hermes respondia à dificuldade
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de a visão humana responder com segurança às causalidades do devir, quando era por meio
duma inteligibilidade mítico-simbólica que se conseguia (re)criar uma melhor compreensão
dos fatos.
Na mitologia grega, Hermes “é filho de Zeus, o deus do Olimpo, e de Maia, uma
jovem mortal” (PANASIEWICZ, 2007, p. 20). E, logo ao nascer revelou-se muito claramente
o seu poder de “ligar e desligar”, pois precocemente passou da sua dimensão humana à
imortalidade. Isso, ao ser colocado no “vão de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da
fecundidade e da imortalidade” (BRANDÃO apud PANASIEWICZ, 2007, p. 20). Isso
explica clara o agir da hermenêutica: saber conectar e desconectar é passar da
ininteligibilidade do recolhido, ainda provisório, à construção de sentido de tal afirmação
apreendida por respectivas releituras de qualquer texto sagrado ou não. E, por mais que exista
um método crítico de exegese bíblica que propicie o contorno necessário para entender a
complexidade de obras literárias, o teólogo hermeneuta não pode correr o risco de enclausurar
o conteúdo sêmico. Se fosse assim, é certo que se atolaria a hermenêutica; bastaria só atrofiar
a linguagem desprendendo-a do quadro semiótico, isto é, dos diversos significantes que têm
uma narrativa.
É importante assinalar que na circularidade do método hermenêutico convém
identificar a condição da estrutura linguística contida em sistema de signos que constitui a
obra, e/ou o gênero literário da palavra-texto. É apenas uma forma laboriosa de investigar e de
recuperar possíveis aspectos subjacentes à primeira produção de sentido a que o texto fora
submetido. Quando recém-nascido, com um só dia, Hermes, conseguiu furtar do irmão Apolo
um rebanho de novilhas. Como Apolo descobriu o surrupio, ele
vai queixar-se com Maia e com Zeus a respeito do roubo. Maia o defende por ser um
simples menino, e Zeus o interroga. Percebendo que Hermes estava mentindo,
obriga-o a prometer ‘que nunca mais faltaria com a verdade; Hermes concordou,
acrescentando, porém, que não estaria obrigado a dizer a verdade por inteiro
(PANASIEWICZ, 2007, p. 20-21).
Aqui se evidencia outro traço admirável da finalidade da ciência da interpretação: a
incompletude da “verdade” anuncia a dificuldade em atingir absolutamente uma compreensão
por inteiro. Essa verificação exprime uma coisa quase que evidente por si, pois, "por mais que
se busque interpretar, a verdade é um desafio constante do processo hermenêutico”
(PANASIEWICZ, 2007, p. 21). É possível perceber que a noção de inverdade está justamente
interligada com a ideia de que a Bíblia não é fechada em si e não é autojustificativa. O
intérprete age numa dialética da palavra-texto só quando há interpretação determinada por
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situações sempre novas; isso é manter aclarada a mensagem a partir de contextos culturais
inéditos e imersos na história. É um acontecimento inacabado, o qual supõe que uma
“tradição só é viva se obedece a uma dialética de continuidade e de inovação” (GEFFRÉ,
2013, p. 181).
O sentido etimológico de “hermenêutica” “é correlato do termo ‘interpretar’, mais
comum. Hermeneuo, em grego, é o equivalente a interpretar. Em si, é a mesma realidade em
dois vocábulos diferentes, grego o primeiro, latino o segundo” (CROATTO, 1986, p. 9). Mas
também é surpreendente que a terminologia hermenêutica (em grego ermeneúein) vem
saturada de acepções, por exemplo: Há “três orientações de significado: expressar (dizer,
falar), expor (interpretar, explicar) e traduzir (ser intérprete) [...]. O tradutor deve realmente
esclarecer ou tornar compreensível aquilo que um sentido estranho quer dizer” (GRONDIN
apud PANASIEWICZ, 2007, p. 23). É por isso que acontece em qualquer enunciado
linguístico certo “conflito-dialético” porque se quer tornar algo inteligível sem obter sentenças
precisas, ainda mais com fatos do passado, testemunhos escritos ou materiais da tradição, que
necessitam ser corretamente interpretados e compreendidos.
Desde a sua origem, inclusive na exegese patrística entre os séculos I e II, pode-se
dizer que a problemática da história da hermenêutica teológica cristã conheceu vários
modelos de investigação. Na filosofia dos Padres da Igreja há um problema hermenêutico. Em
realidade, existiam variações no pensar hermenêutico. Por um lado, a escola de Antioquia,
que se atinha ao sentido histórico literal da narração bíblica; de outro, havia “a escola de
Alexandria, que procurava atingir um sentido espiritual mais elevado, em uma exposição
simbólica-alegórica” (CORETH, 1973, p. 6).
Entretanto, o problema de uma hermenêutica bíblica não se reduz ao âmbito da
teologia escolástica. A partir do começo da era moderna, o problema se agrava. Durante os
decênios da Reforma Protestante buscou-se voltar à pura palavra da Escritura; “A Bíblia não
deve ser exposta segundo o ensino tradicional da Igreja, mas apenas compreendida por si
mesma; ela é ‘sui ipsius interpres’ (intérprete de si mesma)” (CORETH, 1973, p. 7).
O problema tornam-se outra vez mais agudo quando o sentido filosófico e teológico
da hermenêutica repercutiu em vários autores da filosofia e da teologia moderna os quais se
dedicaram a responder deliberadamente à “arte da compreensão”, enriquecendo a temática
com novas interpretações.
Não é intenção deste artigo deter-se longamente na descrição histórico conceitual do
pensar hermenêutico. Contudo, apresentam-se nele alguns autores considerados importantes
na área filosófica e da teológica. Na filosofia destacam-se: Friedrich Daniel Ernst
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Schleirmacher (1786-1834),Wilhelm Dilthey (1833-1911), Martin Heidegger (1889-1976) e
Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Na teologia existem dois autores excepcionais que
contribuíram significativamente para essa temática: Karl Barth (1886-1968) e Rudolf
Bultmann (1884-1976).
Poder-se-ia se afirmar que o nascimento do movimento fundamentalista está ligada a
esses autores da modernidade. Sobretudo a teólogos como Albert Ritschl (1822-1889), Otto
Pfleiderer (1839-1908), Adolf von Harnack (1851-1930) e Ernst Troeltsch (1865-1923) entre
outros, que começam a entrar em diálogo com a modernidade, criando, assim, a teologia
liberal. É nesse cenário que os métodos analíticos são aplicados às narrativas sagradas,
maneira diferente de lê-las e de reconstituir os acontecimentos nela descritos.
Na realidade, os teólogos liberais suscitaram a investigação histórico-crítica contra a
tradição autoritária de interpretação igreja-instituição da Bíblia e das doutrinas de fé que daí
emanaram (CORETH, 1973, p. 9). É sob esse ideal cientificista é que eles, os liberais,
investigavam os escritos sagrados, tirando o aspecto mítico do texto. O método “teológico” de
investigação objetiva pôs em dúvida a autoria, a datação, a topografia, as histórias
miraculosas, os gêneros literários, e, ou, os escritos bíblicos como documentos redigidos
muito tempo após a morte do líder, entre outros temas. Segundo Hartlich (apud
PANASIEWICZ, 2007, p. 57), por séculos
se fez um leitura das histórias bíblicas sem nenhuma crítica histórica aos fatos nela
contados. Até a época da Reforma, a Sagrada Escritura foi dita como documento
sem erros da revelação divina. Lentamente começam a emergir, na modernidade,
maneiras diferentes de ler e compreender o texto bíblico. A exegesse bíblica vai se
tornando histórica e, manifesta-se o intuito de distinguir entre histórias puramente
imaginadas, inventadas, e histórias reais, verificáveis.
Esse método histórico-crítico rompeu com a maneira antiga de encarar as fontes
sagradas e com o concordísmo histórico e científico, que consiste em encarar os
acontecimentos narrados na literatura bíblica equiparando-os com os fatos históricos a partir
de descobertas arqueológicas atuais. Tais relatos passam a não ser mais interpretados como se
realmente tivessem acontecido, mas são submetidos à análise crítica e sistemática pelo
método histórico-crítico para, dessa forma, saber se os acontecimentos ocorreram assim como
estão narrados. Com relação à hermenêutica bíblica, esta não é “mais um depósito fechado
que já ‘disse’ tudo, mas é um texto que ‘diz’, no presente, mas fala como ‘texto’, não como
uma palavra difusa minha” (CROATTO, 1986, p. 7). O que importa não é tanto o que a Bíblia
“disse”, mas o que ela “diz”! Sobretudo uma hermenêutica em perspectiva teológica não é
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apenas uma hermenêutica da Escritura, mas também da tradição de sua interpretação.
O conhecimento histórico não dá formas de “recuperar o ‘atrás’ do texto, a situação
de vida que o originou como primeira produção de sentido” (CROATTO, 1989, p. 27), com
precisão do ocorrido. Pode-se dizer que não há como compreender a mensagem bíblica para
hoje excluindo a ideia de reconstrução ininterrupto da interpretação dialética entre o
discernimento hermenêutico e o veículo cultural objetivo de um texto sagrado sem que o torne
interpretante para o tempo atual. Ora, é neste sentido que o teólogo hermeneuta se propõe a
operar a tradição não em nome de uma “verdade revelada, absoluta e definitiva, que escape a
qualquer historicidade” (GEFFRÉ, 2013, p.181) mas recorrendo a pensamentos teológicos
mais originais e inteligíveis para os cristãos modernos.
Pode-se descrever um amplo modelo de orientação sistemática do método
hermenêutico, como fenômeno interpretativo que auxilie a compreender com originalidade,
em cada caso teológico, o que se quer submeter a análise. Em outros termos, o quadro do
horizonte hermenêutico é vasto e é demarcado de acordo com cada autor. Com isso, inexiste
um postulado de imperativos que tenha total poder de precisão subsequênciais aplicáveis à
investigação analítica sobre o gênero literário. Existem, portanto, muitas contribuições para
pensar a teologia com uma abordagem dialética do agir hermenêutico.
O teólogo dominicano francês Claude Geffré (1989, p. 68-70), apresenta algumas
proposições possíveis para abordar a hermenêutica teológica em relação à leitura da escritura,
sendo o que interessa enquanto contraponto ao fundamentalismo bíblico. Segundo ele, quatro
são os traços caraterísticos do modelo “hermenêutico”: 1. O ato de interpretação da Escritura,
parte da primeira comunidade cristã, não pode ser compreendido como proposição “imutável
de fé”. O ser que se interroga, o hermeneuta, reinterpreta sempre, a partir de Escrituras já
interpretadas, suscitando, sob a ação do Espírito, reflexão sobre tendências novas que são
inspiradas em novas realidades. 2. É imprescindível viver o“compreender histórico”
tornando-o inseparável da interpretação precedente dos primeiros intérpretes, em transmissão
enriquecedora da Escritura pela tradição. 3. O modelo hermenêutico não se limita a mostrar a
dogmática imutável da fé católica, explicando a sua correlação com a Escritura, com os
Santos Padres e com os ensinamentos do magistério. Muito mais: ele atua em consonância
com as experiências históricas visando tornar a Palavra de Deus sempre atual. 4. A teologia
segundo o modelo hermenêutico não recusa entregar-se o serviço de (re)elaboração
interpretativa dos proferidos postulados da fé cristã a partir do enriquecimento histórico cujo
alcance se dá na importância da necessária atualização da palavra-texto.
Essas preposições do agir hermenêutico são necessárias para que se possa
14
compreender as afirmações contidas nas narrativas sagradas através de condições aplicáveis
ao que se quer pôr em perspectiva para reflexão teológica. Elas apontam caminhos do pensar
teológico como instância hermenêutica de uma nova interpretação do cristianismo
contemporâneo.
O conflito entre teólogos hermeneutas e fundamentalistas dogmáticos traduz
oposições no pensar as Sagradas Escrituras, justamente porque cada um recorra a
interpretações e defende interesses hermenêuticos que escapam a uma leitura objetiva de um
texto. E advogar da Escritura um único modo “válido” de interpretação seria retirar a
legitimidade sêmica da hermenêutica bíblica. A reflexão teológica não se enquadra numa
hermenêutica unificada por uma condição linear de pensamento. “O ser que se interroga é um
ser-em (no mundo), situado, o qual se pré-compreende no ato de interpretar” (CROATTO,
1986, p. 10). Então, há que se dizer que o pensar hermenêutico cresce no sentido do ato de
interpretar o texto pelas condições históricas em que o intérprete atua. “Sabe-se que a leitura
mais objetiva de um texto, sagrado ou não, dá lugar a uma pluralidade de interpretações”
(GEFFRÉ, 2013, p. 182). É claro que o critério da teologia hermenêutica, [...] da boa
interpretação é que o texto se torne interpretante para o ouvinte de hoje” (GEFFRÉ, 2013, p.
182). Mas as chances de “idolatrar a letra da Escritura como se fosse a própria palavra de
Deus” (GEFFRÉ, 2013, p. 183), escrita ou copiada à “mão” por Ele, ainda é, como dizem os
teólogos, um problema hermenêutico.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento religioso de ortodoxia protestante estadunidense situa-se no centro da
modernidade. No universo conservador das narrativas bíblicas, as ciências modernas não
tinham nenhuma relevância para compreender as Sagradas Escrituras. Os fundamentalistas
surgem de encontros bíblicos com postulados dogmáticos em oposição à crescente
manifestação da modernidade. Sobretudo, quando a teologia cristã lentamente encarna os
princípios do mundo moderno, utilizando-se do método histórico-crítico, para interpretar os
escritos sagrados. Para eles, a natureza dos eventos relatados na Bíblia não podem ser
submetidos à análise por métodos que coloquem em risco as verdades afirmadas e defendidas
pelo cristianismo durante muitos os séculos.
Com os discursos políticos e ideológicos dos últimos anos, empregados por
posicionamentos religiosos, para justificar atitudes fanáticas ou até mesmo práticas
intoloráveis para a humanidade, o termo fundamentalismo inflacionou-se, perdendo o real
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sentido e significado que aproximava o crente e o Livro com a sua confissão de fé. Os
princípios dogmáticos defendidos pelos fundamentalista na obra The Fundamentals: a
Testimony to the Truth (Os fundamentos: Um Testemunho da Verdade) mostram a
importância que os evangelicais conservadores norte americanos atribuíam ao Livro Sagrado
e a afeição que o crente teria que ter aos pontos defendidos na revista para as Sagradas
Escrituras.
Na prática religiosa, o que traça o perfil do fundamentalista religioso é a grande
insistência em referendar a moral cristã a apartir de “fundamentos” retirados do Livro
Sagrado. Este livro é a garantia irrenunciável do fundamentalismo religioso. Há dois
elementos identificadores que permitem demonstrar esse caráter ortodoxo: 1. O princípio da
inerrância postula a infalibilidade literária de qualquer passagem bíblica justamente porque a
qualificam-na como inspirada por Deus. 2. O princípio da historicidade define que as
doutrinas de fé são imutáveis porque são verdade dada por Deus aos seres humanos e, por
isso, é inconcebível a razão humana decidir interpretar e reinterpretar a mensagem
proclamada por Deus à luz de uma nova linguagem. Essas posturas delineiam o fenômeno
fundamentalista em suas várias faces anti-hermenêuticas.
Em resumo, o fundamentalismo religioso e a hermenêutica teológica distinguem-se
em posicionamento frente ao compreender hermenêutico. Enquanto a fé cristã conservadora
se vale da ideia da interpretação fideísta, moralizadora, concordista e historicista a
hermenêutica teológica se move na linha da interpretação dos Escritos Sagrados com
ininterruptas reflexões teológicas sempre atuais para os cristãos contemporâneos.
DEL FUNDAMENTALISMO A LA HERMENEUTICA
RESUMEN
Este arttículo tiene como objetivo tratar del surgimiento histórico de la ortodoxia
protestante estadounidense, el fundamentalismo religioso. Observado el modo como éste
aparece en la sociedad actual, deduzimos que el fundamentalismo es comprendido como una
práctica irracional y violenta, que con frequencia favorece a la consolidación de una postura
dogmática e intolerante. El artículo también analisa el fundamentalismo y su aversión a las
ciencias modernas y también sus prácticas defensivas, que son resultado, sobre tido, de la obra
The Fundamentals: a testimony to the truth (Los fundamentos: un testimonio en favor de la
verdad) que defiende los principios dogmaticos de la fe cristiana. En esta dirección, se busca
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demostrar cómo el fundamentalismo interpreta la fuente bíblica con exagerado literalismo, sin
absorver la crítica de las ciencias históricas críticas de la modernidad. Además, la
investigación presente la hermenéutica como un contrapunto a pensar teológico
fundamentalista. La hermeneutica como arte de la interpretación nos parece más ajustada y
más consistente con nuestro tiempo en dialogo con la modernidad.
Palabras llave: Evangelio Social. Fundamentalismo. Cristianismo. Hermenéutica-Teológica.
NOTAS EXPLICATIVAS
1 “Os primeiros a se autodenominarem ‘fundamentalistas’ foram os membros da Associação dos
Fundamentalistas criada em 1920 por Curtis Lee Laws (1868-1946), diretor da revista batista conservadora
Watchman-Examiner (Sentinela-Examinador). Laws usou o termo ‘fundamentalista’ pela primeira vez na edição
de 1° de julho de 1920, referindo-se aos protestantes separatistas que rejeitavam o liberalismo e que estavam em
consonância com as doutrinas dos evangelistas” (SILVA, 2014, p. 74-75). 2 “Fundamentalismo – (Cristianismo): Movimento religioso, nos Estados Unidos, durante a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), que considerava certas verdades fundamentais no cristianismo, com a interpretação literal
da Bíblia. Converteu-se em tendência marcante de certas denominações protestantes. Não se trata, porém, de um
movimento unitário unificado, mas de tendências de certos setores, que pretendem defender e conservar os
elementos ‘fundamentais’ da fé cristã. Por isso, o fundamentalismo é detectável dentro das mais diversas
denominações. Contudo, algumas Igrejas, pela sua posição oficial, podem ser consideradas de tendência
fundamentalista. É comparável, na Igreja Católica, ao integrismo. Assim, foi denominado em virtude de uma
série de tratados publicados entre 1912 a 1914 denominados The Fundamentals, que apresentavam as verdades
básicas do cristianismo segundo o ponto de vista dessa posição teológica. Tal corrente surgiu como reação contra
o liberalismo. No centro da oposição fundamentalista está o conceito de infabilidade da Bíblia, que é considerada
uma fonte absolutamente autorizada e digna de total confiança para o correto conhecimento de Deus e sua
atividade. Seus adeptos se opunham à crítica bíblica porque viam nela uma negação da unicidade do
cristianismo. Ao lado de outras informações literalistas da ortodoxia protestante, o fundamentalismo se opôs à
teologia darwinista da evolução, por não estar de acordo com a narrativa bíblica da criação. Como movimento
definido o fundamentalismo surgiu no último quartel do século XIX e se desenvolveu nas primeiras décadas do
século XX” (SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto, 1995, p. 1126). 3 Evangelho Social: “Na prática, o processo se manifestava em ações sociais e políticas, como socorro aos
operários e aos imigrantes das regiões urbanas do norte do país, tais como Nova York, Minneapolis e Chicago. O
movimento era comandado por lideranças de algumas igrejas e teorizado por teólogos progressistas, que
desenvolveram o chamado Evangelho Social. Um dos pastores, Charles Stelzle, convidou León Trotski e Emma
Goldman para realizar palestras no templo da sua igreja. O teólogo Walter Rauschenbusch escrevia, em 1912,
que: os Estados Unidos foram ‘cristianizados’ [...] só faltava transformar o comércio e a indústria por meio do
‘pensamento e do espírito de Cristo”(ARMSTRONG apud BAPTISTA, 2003, p. 161). 4 “Em 1875 a 1901, a conferência Niagra Conference (depois chamada de Niagra-ont-the-Lake) em Ontário,
local de sua realização, apareceram os primeiros escritos cuja preocupação era a situação moral da sociedade
estadunidense, vista como decadente. E justamente aí dois grupos (os fundamentalistas e os conservadores)
debatiam as questões comuns, mas ‘a diferença principal entre eles era provavelmente mais humor de espírito
que doutrinas teológicas’ (Russel, 1976, p. 17). Os fundamentalistas eram tidos como os mais agressivos, mais
intransigentes, afirmavam estar certos de terem a verdade, como seus oponentes não acreditavam ter a verdade
consigo e por isso não eram tão enfáticos. O credo fundamentalista adotado em 1878 e oficializado em 1890
refletiu numa expressão calvinística conservadora, até mesmo uma convicção pessoal e premilenista da volta de
Cristo” (BONOME, 2009, p. 65). 5 Dubbed the Believers´ Meeting for Bible Study, began in 1875. Eight years later it moved to a new location at
Niagara-on-the-Lake, Ontario, and adopted its more commonly known name, the Niagara Bible Conference. It
was a series of one or two-week summer retreats featuring some of the leading Bible teachers and preachers of
the day. Here gathered J.H. Brooks, William Eerdman, C. I. Scofield, A. T. Pierson, and A. J. Frost,
Presbyterians and Baptists all. They and their listeners came together to worship and fellowship and study,
17
enjoying the beauty of the setting. There were as many as five addresses each day, sometimes including a Bible
reading. This practice consisted of consecutive readings of passages selected to illustrate a point or doctrine.
Except for a brief introduction or conclusion delivered by the teacher, the attempt was to let the ‘facts’ of
Scripture speak for themselves (Tradução de Jonathas Bitencourt). 6 “Os fundamentos – (Protestantismo): Série de doze volumes de artigos publicados em Chicago, entre 1910 e
1915, como testemunha das doutrinas e experiências centrais do cristianismo protestante, e como defesa contra
numerosos movimentos modernos, incluindo seitas e críticas da ortodoxia. Os Fundamentos, com o sub-título
Um Testemunho da Verdade, está associado com o aparecimento do fundamentalismo como uma reafirmação do
cristianismo ortodoxo contra a teologia liberal e o modernismo daquele tempo. Três milhões de exemplares dos
volumes foram distribuídos gratuitamente a ministros missionários e outros obreiros protestantes de língua
inglesa, em todas as partes do mundo. Os Fundamentos teve sua origem entre pessoas nos movimentos das
escolas bíblicas, do reavivamento de eclesiásticos independentes associados com o Instituto Bíblico de Los
Angeles e o Instituto Moody, sendo editorialmente controlado por eles. Mas os autores eram uma seleção ampla
de presbiterianos, anglicanos, batistas, independentes e outros, da Inglaterra, Escócia, Canadá, bem como dos
Estados Unidos. Como um grupo, representavam o fim da ortodoxia vitoriana: dos trinta e sete membros mais
destacados, apenas nove estavam vivos em 1925 e, entre estes apenas seis tomaram partido dos fundamentalistas
nas batalhas eclesiásticas daquela década. Os oitenta e três artigos abrangiam os seguintes temas principais: 1)
Uma declaração e defesa apologética das principais doutrinas cristãs (e.g. Deus, a revelação, a encarnação, a
ressureição, o Espírito Santo, a inspiração); 2) uma defesa da Bíblia contra a alta crítica alemã; 3) uma crítica a
movimentos considerados não-cristãos (e.g.romantismo, eddyismo, mormismo, racionalismo, darwinismo e
socialismo); 4) uma ênfase dada à evangelização e às missões; 5) uma amostra de testemunhos pessoais dados
por pessoas que contavam como Cristo operara em sua vida” (SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto,
1995, p. 1126). 7 Dois influentes executivos cristãos, magnatas (os irmãos Lyman e Milton Stewart) do ramo do petróleo nos
EUA, “depois que em 1908 fundaram o Bible College of Los Angeles para investir contra a crítica superior –
Teologia Liberal – financiaram um projeto concebido para educar os fiéis nos princípios centrais da fé”
(ARMSTRONG, 2009, p. 237). Os milionários do petróleo “patrocinaram a publicação e distribuição gratuita de
doze compilações de ensaios sobre a doutrina cristã, escritores por eminentes estudiosos protestantes
conservadores. Essa compilação ficou conhecida como The Fundamentals (Os fundamentos). Entre 1910 e 1915
foram produzidos três milhões de exemplares e distribuídos gratuitamente a líderes evangélicos, estudantes de
teologia, pastores, professores e diretores de escolas e de faculdades de teologia, por exemplo, Havard, Yale e
Princeton, alcançando vários países, em especial os anglófonos” (SILVA, 2014, p. 73-74).
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