do espontâneo ao restritivo

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  • 7/24/2019 Do Espontneo ao Restritivo

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    Universidade Federal de So Carlos

    Centro de Educao e Cincias

    Humanas Departamento de Cincias

    Monografia de Concluso de Curso

    Do espontneo ao restritivo:A diversidade futebolstica da cidade de Araraquara

    Luiz Felipe de Oliveira

    Monografia apresentada para a

    concluso do curso de bacharelado em

    cincias sociais da Universidade

    Federal de So Carlos

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Henrique de Toledo (DCSo)

    So CarlosSP2015

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    A mais srdida pelada de uma complexidade

    shakespeariana.

    Nelson Rodrigue

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    ndice

    Agradecimentos _________________________________________________________ 4Resumo _______________________________________________________________ 5

    Abstract _______________________________________________________________ 6

    Introduo _____________________________________________________________ 7

    Parte 1Distintas faces do mesmo esporte ___________________________________ 12

    1.1Pelada _______________________________________________________ 12

    1.1.1O futebol do Imperador _______________________________________ 15

    1.1.2O futebol da Fonte __________________________________________ 171.1.3O futebol do Cecap __________________________________________ 19

    1.1.4O futebol do "Camisa 10" _____________________________________ 21

    1.2"Contra" _______________________________________________________ 22

    1.3Os Campeonatos do Melusa Clube ___________________________________ 24

    1.4Taa EPTV de Futsal _____________________________________________ 27

    1.5Associao Ferroviria de Esportes __________________________________ 28

    Parte 2Articulaes e propostas: dilogo entre a bola e a teoria _________________ 31

    Consideraes finais ____________________________________________________ 45

    Referncias Bibliogrficas ________________________________________________ 47

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    Agradecimentos

    Dentre tantas pessoas que de alguma forma ajudaram a construir esta pesquisa e a me

    construir , sabendo que no serei capaz de me lembrar de todas elas, gostaria de comear

    agradecendo ao meu orientado, Luiz Henrique de Toledo. Sua quase infinita pacincia e

    empolgao constante me incentivaram a persistir mesmo nos insucessos, sou eternamente grato

    a isto e espero que o mesmo continue a me orientar pelos anos que viro.

    Agradeo ao carinho dos meus familiares, principalmente tranquilidade e serenidade

    que se misturam s jocosidades de meu pai; f inabalvel de minha me, cuja confiana em

    mim fez com que eu realizasse aquilo que jamais imaginaria possvel; e ao alvio cmico

    sintetizado na simples presena de meu irmo, mesmo sem querer este no deixa de ser uma

    figura.

    Aos companheiros de faculdade. Ao Estvo pelas conversas descontradas, ao Allan por

    me ajudar mais do que eu mereo, Brina por sempre achar solues simples a problemas

    complicados, Barbara cujo gosto para sries irreparvel e rendeu discusses acaloradas, ao

    Lucas por seu entusiasmo e suas indicaes que me fizeram perceber que o futebol era um timo

    objeto ao estudo antropolgico. Tambm ao Andr, cuja distncia mais nos aproximou do que

    separou, transformando-o em um grande confidente.

    Aos amigos que me acompanham desde a infncia. Ao Gabriel, que vi crescer, sempreapto a ouvir meus problemas e a compartilhar momentos de alegria e de dificuldade. Ao

    Guilherme por ser nico em sua descontrao e empenho, lealdade e carisma.

    Agradeo Flaviane, minha namorada, que entrou na minha vida de forma avassaladora

    e cujos carinhos e afetos me acalmaram em momentos de dificuldade; seu apoio foi crucial na

    produo deste trabalho.

    Por fim, agradeo aso vrios jogadores que permitiram que eu os estudasse,

    principalmente aqueles que me acolherem como mais um dos que participam da peleja, ainda que

    minhas qualidades tcnicas no trato com a bola sejam, no mnimo, questionveis.

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    Resumo

    Ao observar distintas formas de se praticar o futebol no contexto de uma cidade

    mdia do interior paulista, esta pesquisa tem como principal inteno apresentar novas

    formulaes futebolsticas a uma bibliografia quase estritamente focada no estudo do

    futebol profissional. Com o uso de uma metodologia que combina a clssica observao

    participante com a participao observante de Wacquant, buscou-se acessar futebis

    destitudos dos enlaces simblicos atrelados pratica midiatizada, alm de trabalhar em

    uma dimenso mais prxima ao nativo, cuja convivncia conjunta engendrou relaes

    particulares e apresentou novos aspectos de um esporte to amplamente abordado.

    Mostrar as potencialidades discursivas e simblicas de futebis perifricos tambm passa

    por um dilogo direto com autores cannicos no tema, culminando no rearranjo e na

    dinamizao de conceitos importantes antropologia das praticas esportivas que emana

    do campo e da bola. O olhar voltado para os atores que manejam a pelota, no os que

    assistem, apresentou certo entrelaamento especfico, por meio de categorias tanto

    nativas quanto da literatura, dos modos particulares com que o esporte jogado,

    permitindo a composio de uma ferramenta analtica, capaz de posicionar os futebis,

    que emerge das clivagens propostas por Arlei Damo.

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    Abstract

    By observing different ways of practicing footbal in the context of an average

    countryside city, this research aims to present new football compositions to a

    bibliography almost strictly focused on the study of professional football. Using a

    methodology that combines the classic participant observation with the Wacquants

    "observant participation", we tried to access footballs devoid of all symbolic links tied to

    the mediatic practice, also working on a closer dimension to the native, where the

    collective coexistence engendered private relations and introduced new aspects of a sport

    so widely discussed. To present the discursive and symbolic potential of peripheral

    footballs also goes through a direct dialogue with canonical authors on the subject,

    culminating in the rearrangement and promotion of important concepts to the sports

    practice anthropology that emanate from the field and the ball. The view of the actors

    who handle the ball, not those who attend at the field, presented some specific

    interweaving through both native categories and the literature ones, allowing the

    composition of an analytical tool capable of positioning footballs, emerged from the

    divisions proposed by Arlei Damo.

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    Introduo

    Juninho passou pelo seu marcador e foi derrubado na rea. No foi exatamente uma faltaviolenta, Alam no teve a inteno de acertar o p esquerdo de Juninho, apenas errou o

    tempo de bola, foi muito lento. Alguns diriam que a regra clara: falta na rea pnalti;

    mas no aqui. Na escola estadual Jandyra Nery Gatti, lar de um dos diversos grupos de

    peladeiros da cidade de Araraquara, o que se sucedeu foi uma deliberao livre entre as

    partes envolvidas no lance, assim como entre os demais jogadores de ambas as equipes

    discusso regada, inclusive, por comentrios daqueles que estavam de fora. No estava

    em questo, como muitas vezes ocorrera no mesmo contexto etnogrfico, se houve ou

    no falta, nem mesmo se fora dentro da rea, buscou-se entender a intencionalidade do

    ato. Diferentemente do que se poderia esperar, optou-se por cobrar a falta fora da rea,

    pois a ideia geral era de que um pnalti poderia alterar em demasia a dinmica de uma

    partida cuja durao curta. A deciso de forma alguma gerou o que se poderia chamar

    de jurisprudncia, as resolues foram escolhidas para aquele ato especfico, no

    podendo ser irrestritamente utilizadas nas demais situaes de jogo: no mesmo dia, outro

    jogador foi derrubado na rea, o pnalti foi cobrado e nenhum dos peladeiros se sentiu

    prejudicado.

    O relato acima d a tnica de um futebol caracterizado por sua espontaneidade

    (DOS SANTOS, 2007) e dinamismo, pela ressignificao constante dos elementos

    constitutivos de uma partida de futebol e tambm pela volatilidade dos grupos formados,

    cujas amarras que unem os jogadores passam mais pela prtica em si do que por

    elementos externos ainda que presentes. Em parte, por causa desta ltima

    caracterstica que a pelada no encontra paralelo da sua popularidade emprica na

    literatura referente ao tema (GIGLIO&SPAGGIARI, 2010). Por mais que o futebol seja

    hegemnico na produo da Antropologia das Prticas Esportivas1no pas, ainda existem

    formas de pratic-lo, como a prpria pelada, que escapam da bibliografia. Por muito

    tempo o futebol foi estudado apenas pela sua vertente profissional, quando se percebeu a

    necessidade de buscar compreender a dimenso que o esporte tem na vida cotidiana dos

    brasileiros, foram os campeonatos amadores de futebol vistos como a nica alternativa

    1Termo cunhado por Luiz Henrique de Toledo (2001).

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    prtica mais midiatizada. A pelada, assim como futebis similares, fora deixada de

    lado, a despeito da contribuio significativa que ela pode trazer literatura.

    O futebol chamado pelos seus participantes de contra passa pela mesma

    situao. Esta forma, caracterizada pelo encontro agendado de times para partidas sem

    qualquer relao com algum tipo de campeonato, foge da literatura no apenas por estar

    longe da mobilizao simblica e de pessoas (torcedores) que tanto o futebol profissional

    quanto o amadorde vrzea, com campeonatos relativamente midiatizadospossuem; o

    contra um futebol que se perde dentro da diversidade de possibilidades de se praticar

    o esporte apresentadas aos antroplogos. O que o torna importante a maneira peculiar

    pela qual os times montados em um perodo anterior realizao das partidas ao longo

    do ano constituem um elemento crucial de sociabilidade, em um contexto destitudo de

    todo aparato que faz a mediao entre jogadores e torcedores.

    A inteno aqui passa por apresentar futebis muito distintos daqueles que se

    pensa quando se escuta o termo, mostrar que os futebis perifricos bibliografia so

    capazes de apresentar ressignificaes do esporte ligadas a contextos especficos, por um

    lado, mas que mostram formas mais gerais de se vivenciar uma prtica que, na sua

    instancia principal, engessada por associaes internacionais e regulamentos bem

    delimitados, por outro. Tambm se almeja articula-los com a literatura referente ao tema,uma vez que tais futebis apresentam elementos desconhecidos e que, portanto, podem

    mobilizar distintas reaes a determinados modelos tericos bem estabelecidos, criados a

    partir do futebol hegemnico e que funcionam pelos seus termos.

    A pelada e o contra servem perfeitamente de contraponto um para o outro. O

    fato dos dois serem jogados (muitas vezes) pelos mesmos jogadores, a ausncia de um

    campeonato e o modo muito similar pelo qual escapam dos projetos pblicos para o

    esporte na cidade so caractersticas que permitem uma anlise mais profunda dasdiferenas entre estes mesmos futebis, principalmente no que tange existncia do

    elemento time, dentro da prtica. Porm, compara-los no seria o bastante para evidenciar

    a distncia que se encontram dos temas hegemnicos da antropologia preocupada com o

    futebol; assim como as peculiaridades desses futebis, at ento no abordadas, poderiam

    inviabilizar o dilogo. Portanto, buscou-se no mesmo contexto formas capazes de

    mobilizar com maior preciso a bibliografia, sem perder a capacidade de comparao,

    assim como tambm se buscou certo modo de praticar o esporte situado entre a liberdade

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    e o dinamismo da pelada e as restries regulamentares prprias do futebol profissional

    e dos grandes campeonatos amadores.

    Enquanto no contra so os times os grandes propulsores da dinmicaprpria da

    prtica, o futebol jogado no Melusa Clube entra nesta relao por ter nos diversos

    campeonatos sediados semestralmente o centro de mobilizao e interesse daqueles que

    disputam o futebol em tal localidade. Longe do futebol profissionalpor mais que possa

    gerar interesse em ex-jogadores profissionais, uma vez que vrios disputam os

    campeonatos do clube , o futebol do Melusa tem regulamento muito bem definido e

    inalterado por anos, assim como um quadro de responsveis pelo andamento do

    campeonato (sejam eles os mesrios ou os prprios dirigentes dos clubes); tambm

    apresenta disputas singulares pela artilharia e a esperada premiao, em caso de vitria.

    Por outro lado, nenhum dos jogadores ali presentes recebe por estar ali, quando

    perguntados do motivo de participarem, utilizam o conceito de lazer para explicar o

    porqu do interesse no campeonato; assim como no possuem timeno sentido utilizado

    para o futebol profissional e, em outro nvel, com o futebol cunhado de contra.

    Portanto, este futebol por si s dialoga com outras vertentes do esporte, produzido com

    elementos ora associados ao lazer, ora seriedade, e assim fundamental para colocar

    em contato literatura e contexto emprico; conecta-se com vrios futebis e os relacionaao jogar com as caractersticas das distintas prticas.

    Digna de breve destaque, a Taa EPTV de Futsal apresenta-se como um

    campeonato amador que perpassa a cidade, tendo em vista que praticada em diversos

    municpios pela regio. A grande vantagem deste campeonato, considerando-se o escopo

    aqui observado e as intenes deste trabalho, que ele dialoga diretamente com outros

    campeonatos amadores espalhados pelo Brasil, e estudados por antroplogos. Guardadas

    as devidas propores, ele nutre certos paralelos com a Copa Kaiser de Futebol Amador,estudada por Enrico Spaggiari (2014), o Pelado manauara, pesquisado por Rodrigo

    Valentim Chiquetto (2014) e a Suburbana, como descrita por Allan de Paula Oliveira

    (2013); porm no deixa de manter laos estreitos com o contexto da cidade.

    Ainda que seja apenas um referencial, por estar longe da realidade de grande parte

    dos praticantes (enquanto praticantes), o futebol profissional ainda ogrande referencial

    para todos eles. Muito se comenta dos grandes campeonatos de futebol profissional entre

    os jogadores, assim como comum ver os mesmos comprarem o equipamento para a

    prtica pensando nos jogadores internacionalmente conhecidos e, quando possvel, os

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    peladeiros de final de semana encontram-se para prestigiar o nico clube de futebol

    profissional da cidade, a saber, a Associao Ferroviria de Esportes. Os futebis at aqui

    abordados no ocorrem apesar de funcionarem por outros padres revelia da

    vertente profissional, nem se posicionam como resistncia a ele, portanto irremedivel

    que ele aparece como mais um elemento de destaque em uma gama relacional que

    conecta todos os futebis.

    Os distintos futebis aqui apresentados s so comparveis por fazerem parte de

    um mesmo locus: a cidade de Araraquara, no interior paulista. Por mais que seja uma

    cidade de mdio porte, Araraquara apresenta uma multiplicidade de arranjos para o

    esporte, permite que um mesmo ator vivencie o futebol por vrios ngulos, jogando no

    mesmo dia formas distintas, em locais distantes um do outro e ainda assistir ao time

    da cidade. Araraquara permite comparar empiricamente pelada, contra, os

    campeonatos no Melusa Clube, o campeonato amador de futsal e o futebol profissional;

    respalda o dilogo com a bibliografia por no precisar relacionar desamparadamente

    contextos distintos, que por ter suas prprias peculiaridades poderiam dificultar a relao.

    Serve ao objetivo maior de demonstrar como as vertentes do futebol apreendem e

    ressignificam uma prtica com mais de cem anos de histria.

    Quanto metodologia, a inteno de privilegiar o jogador em detrimento dotorcedor, tendo em vista que a pelada, assim como a maioria dos futebis aqui

    observados, formada pelos que jogam, no pelos que torcem (CHIQUETTO, 2014: 21).

    Observando contextos distintos, uns mais permeveis que outros, fez-se necessrio a

    utilizao de mtodos complementares; este trabalho foi majoritariamente produzido por

    meio do mtodo clssico de observao participante, com entrevistas frequentes e

    informais com os jogadores, assim como com a observao das suas prticas e modos

    especficos de apreender o esporte. Tambm foi feito uso da participao observante(WACQUANT, 2002), entendida como a forma mais acurada de explorar a corporalidade

    intrnseca ao esporte, por proporcionar maior interao e compreenso dos observados,

    assim como por submeter o pesquisador s mesmas condies fsicas e psicolgicas que a

    prtica propicia aos demais. A articulao de tais mtodos culmina na concepo de uma

    antropologia que no faz do objeto alteridade, ao contrrio, as relaes que imanam das

    prticas s puderam ser aqui observadas pelo fato do autor ser dotado de todo um

    referencial quanto ao esporte anlogo ao dos nativos.

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    A primeira parte deste trabalho se encarrega de atender a um dos objetivos aqui expostos:

    o de apresentar, com a introduo de um contexto novo bibliografia, formas

    particulares de praticar o esporte que escapam da literatura sobre o tema, ainda que

    amplamente praticadas. Para isto, se faz necessrio uma discrio que passe pelas formas

    mais gerais que tais futebis so praticados, porm que no deixa de mostras as

    especificidades do contexto estudado, tal como a forma pela qual a etnografia foi

    conduzida. Irei tambm apresentar a cidade de Araraquara como municpio que possui e

    fomenta distintos futebis, assim como se faz necessrio uma breve abordagem do

    futebol profissional da cidade.

    A segunda parte ter discusses mais conceituais em que os futebis sero

    colocados em dilogo com uma determinada bibliografia que estuda o futebol pelo vis

    antropolgico, para mostrar como a dinmica especfica pela qual so produzidos capaz

    de questionar alguns preceitos tericos. A inteno colocar novos contextos empricos

    em dilogo com autores consagrados, assim como demonstrar novos olhares sobre temas

    extensamente discutidos e problematizar categorias antes vistas como precedentes. Por

    fim, as categorias nativas sero apresentadas frente ao seu referencial terico, e certas

    dicotomias ora advindas do campo, ora da literatura iro demonstrar o potencial

    simblico das diversas prticas abordadas na cidade de Araraquara.

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    Parte 1Distintas faces do mesmo esporte

    1.1Pelada

    Por se distanciar dos futebis tratados na literatura antropolgica referente ao

    esporte, a pelada ganha aqui grande destaque. Suas formas mais fluidas apresentaram a

    necessidade de se estudar diversos contextos, pois s assim seria possvel averiguar com

    preciso o que era prprio da forma pelada e o que era apenas mais uma adaptao que

    uma particularidade proporcionou. Os diferentes contextos aqui observados possuem

    uma maneira de ser explicada apenas nas suas formaes, porm existem certos aspectosque perpassam os locais estudados. So aspectos criados de pela adaptao e suscetveis

    adaptao,quando necessrio; so elementos comuns, mas no irremediveis, menos

    ainda padres pr-estabelecidos. Usando o futebol profissional como analogia, este s

    pode ser praticado quando as traves possuem as dimenses designadas pelos rgos

    responsveis, porm no h indicaes de quantos zagueiros devem existir em cada time,

    ainda assim s se entra em campo com dois ou trs jogadores da posio; de mesmo

    modo, as caractersticas a seguir citadas no constituem uma obrigao para toda a

    pelada, no existe tal coisa, so apenas a maneira pelo qual os atores perceberam ser a

    melhor forma de abordar um problema emprico.

    Nas peladas as equipes que iro se enfrentar no chegam prontas para o local da

    prtica do futebol, antes de toda partida existe um processo quase ldico, chamado de

    tirar time, onde dois ou mais jogadores escolhem quais sero os demais membros da

    sua equipe. Os responsveis por escolher as equipes so pessoas de destaque, ora por

    conhecer grande parte do grupo ali disposto, ora por serem considerados jogadores

    tecnicamente acima dos demais. Por mais que o jogador queira escolher os melhores

    peladeiros para o seu time, os responsveis por produzir as clivagens iro se suceder na

    escolha dos membros, fazendo com que as opes passem a ser limitadas e que um

    jogador preterido seja escolhido por outrem. Uma vez formadas as equipes, no certo

    que elas iro se manter assim, ao contrrio, raro que uma equipe acabe ofutebol2com a

    mesma configurao que comeou. Como no existem substitutos na pelada, uma das

    premissas do processo de escolha que todos devem jogar; muitas vezes o nmero de

    2O termo utilizado pelos nativos para designar um local e horrio especficos aonde praticam o esporte.

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    jogadores presentes no encaixa perfeitamente com a clivagem necessria para a

    produo das equipes, o que faz com que o(s) jogador(es) que no compem uma equipe

    simplesmente produzam uma a partir daqueles de fora3, alterando toda a configurao

    outrora criada. Outro fator que altera as equipes o desequilbrio evidente entre aquela

    que est vencendo e as demais; depois de alguma discusso o grupo decide se os times

    precisam ou no ser rearranjados. O equilbrio um conceito fundamental, pois sempre

    mobilizado para destacar que as pelejas devem ser sempre justas, com chance similar

    para todos; por outro lado, desejo de todo peladeiro que o seu time seja tecnicamente

    superior aos demais, mas este s pode conseguir que o seja explorando as lacunas do

    mesmo processo, a desateno de seu adversrio e a sorte, pois a escolha de quem

    comea a escolher sempre decidida por sorteio.

    O tempo despedido para a prtica do esporte no contm apenas uma partida,

    como comum observar nas demais vertentes. Como a pelada comporta mais de duas

    equipesno cenrio comum e ideal , ocorrem vrias partidas sucessivamente onde as

    equipes se alternam para disputa-las. Tal alternncia ocorre de acordo com o resultado da

    ltima partida: a equipe que se sagrou vencedora permanece em campo para a disputa da

    prxima peleja, a equipe derrotada torna-se a ltima na fila por uma nova chance de

    disputa. As partidas so geralmente estruturadas por um padro conhecido entre ospraticantes como dez ou dois, ou a partida acaba depois de dez minutos de durao, ou

    quando uma das equipes pontuar (fazer o gol) duas vezes. Este geralmente a maneira

    pelo qual as disputas do dia se iniciam, porm alteraes podem ocorrer tendo como base

    o nmero de equipes (ou pessoas) que esperam sua vez de jogar, chamados de

    prximos: caso apenas uma equipe aguarde sua vez para jogar geralmente se mantm o

    tempo mximo, mas no se restringe o nmero de golso que chamado de dez direto

    ; quando so duas equipes de prximo, segue-se o padro; caso o nmero aumentepara trs ou mais, o tempo diminudo para sete ou oito minutos e o limite continua de

    dois gols. Altera-se entre um modo e outro no decorrer da partida, com a chegada de

    mais jogadores, entretanto extremamente importante que haja algum aviso antes de se

    comear a partida na qual a nova regra ser aplicada. A mudana de uma forma para

    outra, por mais que seja realizada no meio de uma partida, s vlida na prxima partida.

    O que se encontra aqui um manejo deliberativo do tempo, tanto de uma partida quanto

    da durao do futebol em si, pois qualquer alternncia deve ser, como j dito,

    3Jogadores que perderam seus jogos e aguardam a sua vez de jogar.

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    previamente comunicada e possvel que haja uma breve discusso em que os pontos de

    cada um dos argumentadores observado e a maioria concorda com um ou com outro,

    sem nunca tirar totalmente a ateno para o futebol em disputa.

    Por ser praticada sem as amarras a que esto sujeitos principalmente o futebol

    profissional, mas tambm os demais aqui observados, o dinamismo da pelada

    inviabiliza a existncia de um rbitro; alm de que, evidentemente, tal figura

    representaria um dispndio monetrio pelo qual os praticantes no estariam interessados

    em fazer parte. Pode-se dizer, tambm, que o mesmo no necessrio pelo fato jogadores

    no verem na pelada algo srio, mas sim uma brincadeira entre amigos, porm

    inegvel que a ausncia de um juiz transforma o modo pelo qual os jogadores praticam

    o esporte, especialmente ao tornar maleveis as regras do futebol como um todo,

    incluindo as infraes. A responsabilidade por decidir sobre determinados eventos da

    partida atribuda aos jogadores mais prximos do ocorrido, queles que esto no

    lance; assim, em caso de sada de bola ou ainda averiguar se a bola ultrapassou a marca

    do gol deve ser assinalado, geralmente em benefcio de seu time, pelos prprios

    jogadores. O mesmo vlido para a falta, sendo que o praticante que a sofre aquele que

    tem mais autoridade para destacar o ocorrido; ele deve pedir falta. Porm, isto no

    necessariamente significa que o pedido acatado sem mais problemas, ao contrrio, comum ver discordncias e protestos entre os membros das duas equipes e, por mais que

    os jogadores que esto no lance tenham suas opinies mais respeitadas, existem casos

    em que todo time entre na discusso, e mesmo os jogadores que esto fora do jogo do

    suas opinies. Os peladeiros partem da premissa de que os demais jogadores podem

    mentir para tentar se beneficiar, a falta ser questionada quando acreditarem que no

    houve determinada infrao, porm tambm pode acontecer dos jogadores simplesmente

    discordarem se o ato configura ao no uma falta, neste caso os argumentadoresmobilizam os conhecimentos do esporte adquiridos em diferentes contextos, seja na

    prtica ou mesmo assistindo, inclusive misturando elementos de modalidades diferentes

    (como o futsal, o futebol e osocietyou minicampo). A maleabilidade proporcionada pela

    pelada no se aplica apenas s faltas, mas tambm s marcaes de campo; como est

    claro no exemplo que abre este texto, os prprios contornos que delimitam a rea so

    variveis para se adequar s demandas dos jogadores, inclusive quando os mesmo se

    preocupam mais com a vitria do que com a harmonia do grupo.

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    Dentro de um contexto onde as regras so lquidas e se conformam aos formatos a

    elas atribudos, era de se esperar que dentro de campo no houvesse qualquer rigidez

    ttica, nem atribuies fixas quando ao posicionamento. Em parte pela maneira

    especfica com que as equipes so criadas, os jogadores decidem quando o fazemna

    hora que posio cada um vai assumir em campo; como comum no existir goleiros de

    ofcio, pode ocorrer uma rotatividade entre os jogadores para assumir tal funo, sendo

    que a posio aceita a contragosto, uma vez que parte significativa dos jogadores

    preferem jogar na linha. Contudo, isto no significa uma completa desorganizao, ao

    contrrio, existem lderes no escolhidos dentro de campo que organizam o time,

    incentivam os jogadores e atentam para a marcao. Dentro de um contexto que poderia

    parecer catico, os jogadores esto naturalmente acostumados a seguir certas obrigaes,

    assim como mudam o comportamento e posicionamento de acordo com as necessidades

    da partida.

    Tendo em vista que so esses os preceitos gerais da pelada (lembrando que no

    so obrigatrios, mas utilizados de acordo com a disposio dos jogadores e com o

    ambiente), o que resta, a nvel descritivo, mostrar quais foram os contextos estudados,

    assim como certas peculiaridades que cada um deles possa apresentar.

    1.1.1O futebol do Imperador4

    Este grupo fora formado inicialmente com integrantes da Comunidade Crist da

    Colheita, sendo posteriormente aberto para a entrada de amigos ou colegas de faculdade

    dos participantes, assim como os amigos destes (vale ressaltar que os praticantes da

    pelada sempre tentam aliciar jogadores para o seu futebol, uma vez que o nmero de

    desistentes muito alto, tornando comum a rotatividade dos participantes). Ainda hoje amaioria dos integrantes do futebol faz parte da Comunidade, porm existe um nmero

    cada vez mais significativo de jogadores que no pertencem a tal igreja.

    O responsvel pelo grupo sempre fora o Juninho, hoje nem to ativo uma

    contuso o afastou do futebolele continua sendo uma figura respeitada pelos jogadores.

    4Tambm referido como futebol docuriosamente utilizando o masculinoJandyra, este denominao se

    enquadra dentro de uma caracterstica comum do futebol de associar o campo da partida ao bairro que estese localiza, como o caso dos estdios do Morumbi (Estdio Ccero Pompeu de Toledo) e do Pacaembu(Estdio Municipal Paulo Machado de Carvalho).

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    Quando este futebol comeou, ele era responsvel pelo local onde as partidas ocorriam,

    assim como ficava a encargo dele coletar o dinheiro para o pagamento da quadra.

    Tambm foi ele o responsvel pela mudana de local, causada pelo desconforto, por parte

    da maioria dos jogadores, de se jogar em uma quadra paga. Foi mais uma vez ele que

    mobilizou os contatos propiciados pela igreja e conseguiu um horrio em uma escola

    prxima Comunidade Crist da Colheita, sem a necessidade de pagar a locao. Alm

    disso, sempre que se precisa fazer a arrecadao para a aquisio de uma nova bola, por

    causa da deteriorao da antiga, ele pressiona os integrantes do grupo para cada um dar a

    sua contribuio. Por muito tempo tambm fora Juninho aquele que controlava quem

    participava da pelada. Apesar de ser um jogador de um futebol especfico, Juninho

    mostra como tal futebol pode ser voltil, como demanda certo empenho dos praticantes

    para que perdure e tambm como produzido em um processo dinmico que s pode ser

    observado diacronicamente: tanto o grupo de jogadores quanto a prpria quadra so,

    hoje, distintas do que eram no seu comeo.

    Como pode ser percebido, a modalidade de futebol aqui praticada o futsal, pois

    as partidas acontecem em uma superfcie lisa. Por mais que as dimenses da quadra e das

    metas sejam significativamente menores s estipuladas pelos rgos que controlam o

    esporte profissional, os jogadores organizam-se em cinco praticantes para cada time,assim como no futsal profissional, sendo um deles o goleiro. Enquanto a antiga quadra

    era feita de taco e totalmente coberta, inclusive nas laterais, a quadra da Escola Estadual

    Professora Jandyra Nery Gatti, localizada no bairro Jardim Imperador, s tem cobertura

    na parte de cima e tem como superfcie o concreto coberto com tinta das marcaes

    referentes aos diversos esportes que podem ser ali praticados. Por mais que a superfcie

    da quadra torne-se lisa com facilidade, pois recoberta por uma fina camada de poeira, a

    reclamao dos jogadores quanto a tal fato geralmente rebatida com a possibilidade dejogar futebol em uma quadra coberta (configurao muito valorizada pelos peladeiros)

    sem pagar nada.

    Quanto ao tempo despendido pela realizao das partidas, o grupo se rene todo

    sbado, com horrio de jogo marcado entre 13 horas e 15 horas. Raramente este escopo

    respeitado: os jogadores tendem a chegar mais tarde, conversam uns com os outros antes

    do incio da partida e ainda existe o processo de tirar time, o que faz com que o jogo s

    se inicie de fato por volta das 13 horas e 35 minutos. A partir dai a pratica dura por volta

    de 2 horas, no existindo um limite definido, mas o futebol encerrado pela disposio

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    dos praticantes ou pela influencia de alguns elementos externos, como outro grupo de

    peladeiros ou mesmo as crianas e jovens que frequentam a escola aos sbados

    reivindicarem o uso da quadra. Por mais que a faixa etria varie significativamente

    entre 14 e aproximadamente 47 anos , a disposio dos jogadores para continuar

    jogando independe deste fator, muito comum ver jogadores j exaustos que

    permanecem jogando simplesmente para que o futebol no se encerre naquele momento,

    para no prejudicar os demais.

    A comunicao crucial para a existncia deste futebol, existe uma preocupao

    constante se o nmero de jogadores que comparecero quadra ser suficiente para a

    prtica do esporte; a questo se vai ou no dar time. Assim, um aplicativo de

    mensagens instantneas via internet a saber, o WhatsApp uma ferramenta

    significativa de mediao entre os jogadores; por meio dele que se contabiliza quantos

    e quem sero os jogadores presentes em certa data, tambm possvel marcar futebol em

    horrios distintos do padro do grupo (como em feriados) e por ele que parte da

    cobrana pelas contribuies eventuais seja pela aquisio da bola, ou para ajudar em

    alguma atividade da escola feita. Se foi com a preocupao da prtica do futebol que

    o grupo de mensagens instantneas foi criado, atualmente as conversas passam por

    diversos assuntos: oportunidades de emprego, mensagens religiosas e piadas so comuns,mas no se comparam quantidade de mensagens referentes ao futebol profissional. A

    preferncia clubstica abordada de forma jocosa seja com apontamentos que se referem

    histria do clube (como o fato do Palmeiras no ter mundial) ou ainda problematizam

    eventos recentes (a atual m fase do So Paulo5); o futebol internacional tambm

    abordado, inclusive os comentrios podem ser simultneos s partidas.

    1.1.2O futebol da Fonte6

    Neste caso, um jogador foi o grande responsvel por articular todos os demais e,

    assim, produzir a pelada. Luciano mobilizou uma extensa rede de contatos adquiridos

    em contexto de sociabilidade escolar para poder unir um grupo numeroso o bastaste para

    dar time; interessante notar que o grupo possua colegas que ele adquiriu no ensino

    fundamental, no mdio e na faculdade, o que deu certa abrangncia e diversificao ao

    5Considerando o segundo semestre de 2015.6O nome no se refere particularmente ao bairro onde a quadra se localiza, mas sim regio.

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    grupo, pois muitos deles eram, at ento, desconhecidos entre si. Porm, com as comuns

    desistncias, o que manteve o grupo praticando o esporte foi a capacidade que ele teve de

    atrair os contatos dos jogadores de talfutebol, os amigos dos amigos de Luciano.

    Assim como aconteceu com os peladeiros do Imperador, tambm este grupo se

    viu obrigado a mudar de quadra. A pelada era situada no bairro Vila Xavier, mais

    precisamente no Palmeiras Esporte Clube de Araraquara, popularmente conhecido como

    palmeirinha,porm o aluguel da quadra comeou a se tornar um fator de preocupao

    para o organizador do futebol, em parte pela baixa assiduidade de grande parte dos

    praticantes, mas principalmente por ter que arcar com as despesas quando os jogadores

    no contribuam. Optou-se por frequentar a quadra pblica, portanto sem despesas, do

    complexo esportivo da Praa Scalamandr Sobrinho, localizada no bairro Jardim

    Primavera, em frente Arena da Fonte (Estdio Doutor Adhemar de Barros). O horrio

    se manteve iniciando s 15 horas, porm sem limite para acabar.

    Neste caso o grupo tem disposio duas quadras para a prtica desportiva,

    entretanto no comum que transitem de uma a outra sem haver dilogo prvio

    mudana. Por ser coberta, os integrantes do grupo normalmente preferem jogar na

    quadra de cima, que onde eles se encontram. Porm, a praa no apenas um espao

    pblico como completamente aberto, sendo que para jogar no necessrio marcar umadata, basta se apresentar na quadra e gritar (avisar) que est de prximo, sendo assim o

    ltimo na fila para jogar. Pelo fato da praa se situar em uma regio central da cidade de

    Araraquara, muitos homens (com idades variadas, mas geralmente entre 15 e 35 anos) se

    deslocam para jogar l, fazendo com que, nas tardes de sbado, existam muitas equipes

    esperando sua vez, acarretando num tempo grande de espera caso ocorra uma eventual

    derrota. Assim, as vantagens da quadra coberta, apesar do grupo sempre comear

    jogando nela, rapidamente diminuem frente possibilidade de jogar sem esperar tantotempo na quadra descoberta, por mais que existam reclamaes quanto a jogar sem a

    cobertura e tambm se problematize a dificuldade em destacar o contingente necessrio

    para jogar na quadra, pelo fato desta ser maior7. A recusa em ir direto para a quadra de

    baixo ocorre pelo fato dos jogadores se preocuparem muito com o cansao: para no

    cansar tanto que existe uma preferncia por jogar na quadra coberta, pelo mesmo

    motivo eles reclamam do sol forte do horrio diretamente sobre eles. Apesar de sarem

    7

    Por mais que as dimenses da quadra sejam mais prximas do futsal profissional, praticado com 5jogadores de cada lado, sua extenso faz com que os peladeiros sintam a necessidade de jogar com maisum jogador de linha; o futsal praticado sem esse elemento a mais serie difcil e cansativo.

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    todo o sbado, da quadra coberta para a descoberta por causa do nmero de prximos,

    importante que exista ao menos um time de prximona quadra descoberta, tanto pela

    rotatividade dos times, o que diminui o cansao, tanto pelo fato de tornar o jogo mais

    competitivo.

    A abertura caracterstica da praa para todos aqueles que quiserem jogar

    propiciou relaes muitos distintas dos outros contextos. O grupo que observei era

    apenas mais um dentro de diversos outros que se reuniam no mesmo local com o intuito

    de praticar o esporte; existiam pessoas vindas dos mais diversos bairros de Araraquara,

    em grupo ou solitrios, conhecedores de alguns dos participantes ou mesmo sem falar

    com ningum. Pedir falta, por catico que possa parecer, geralmente encerrado

    dentro de certos moldes restringido pela relao entre as pessoas do grupo, inclusive

    evitando maiores divergncias; porm, neste contexto, destitudo de camaradagem entre

    os peladeiros, foi onde pude perceber como a falta de rbitro e a volatilidade das regras

    podem resultar em consequncias extremamente temerrias, sendo este o local de maior

    periculosidade apresentado aqui. As discusses comuns concernentes s faltas tornam-se

    rspidas muito rapidamente, com uso de palavras consideradas ofensivas pelos jogadores

    e certa impresso de que a contenta poderia extrapolar as acusaes proferidas 8. Essa

    agressividade latente se traduz no modo em que os jogadores entram nas disputas pelabola: com fora desproporcional e deslealdade (visando atingir o corpo do adversrio,

    no apenas a bola).

    1.1.3O futebol do Cecap

    Entre o grupo de peladeiros que se encontra todo o sbado s 15 horas e 30

    minutos na Escola Estadual Professora Angelina Lia Rofstein, no Jardim Altos do Cecap,

    no existe uma pessoa que exera qualquer tipo de liderana quanto organizao do

    futsal ali disputado. Por se conhecerem desde a infncia, j que muitos deles so amigos

    de longa data e moram no mesmo bairro9, o grupo o mais conciso entre todos os

    observados. As brincadeiras aqui efetuadas podem ser consideradas de outra ordem das

    demais peladas: enquanto a jocosidade nas demais passa pelo desempenho esportivo,

    8Segundo um interlocutor no identificado, em mais de uma ocasio um dos jogadores que se agrediram

    verbalmente retornou para a praa momentos depois portando arma de fogo. No houve disparo emnenhuma das ocasio relatadas.9Inclusive passaram a infncia jogando futebol de rua juntos.

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    aqui a sexualidade dos praticantes sempre contestada. Fazendo uma breve comparao

    com o contexto explorado por Chiquetto (2014), enquanto os jogadores do Pelado

    manauara se consideram cornos, mas se ofendem ao serem chamadosde viado; os

    peladeiros aqui observados nem sequer mobilizam a primeira categoria, mas acusaes

    de homossexualidade no so apenas comuns como muitas vezes confirmadas em tom

    jocoso.

    A quadra escolhida para a prtica do esporte tambm faz parte de um complexo

    educacional, como ocorre no futebol do Imperador, e, assim como este, tem no fato de

    ser coberta grande atrativo para os jogadores. O que permitiu a utilizao da quadra,

    apesar da escola no abrir para a comunidade aos sbados, o fato de um dos jogadores

    ser professor da mesma, possuindo chave para poder usufruir da estrutura, o que torna

    este futebol, como os outros dois abordados at aqui, gratuito. Talvez este fator

    compense o grande deslocamento que os jogadores devem fazer at chegar no endereo

    da escola, pois enquanto a escola se situa na regio sul da cidade, aproximadamente 70 %

    dos jogadores ali reunidos residem no Parque Residencial Vale do Sol, bairro da regio

    noroeste da cidade, obrigando os peladeiros a um deslocamento de cerca de 10

    quilmetros, em percurso que envolve, inclusive, a utilizao da rodovia que passa a

    oeste da cidade de Araraquara. A questo aqui parece ser menos de custo-benefcio, umavez que os jogadores se preocupam muito com o preo da gasolina e o subsequente

    aumento do dinheiro para se locomover at o Cecap, e mais de comodidade; tambm nem

    sempre possvel encontrar uma quadra em bom estado que possa ser utilizada

    exclusivamente por um grupo.

    Tendo em vista o que os integrantes acreditam serem maneiras mais eficazes de

    organizar e gerir as partidas, este grupo de peladeiros possuem duas diferenas

    significativas frente s demais formas. Primeiramente, eles no utilizam a regra comuma vrias peladas de organizar as partidas, e principalmente o seu tempo, pelo j

    explicado dez ou dois: em qualquer situao, independentemente do nmero de

    pessoas esperando para jogar, o jogo terminar em dez minutos sem considerar o nmero

    de tentos marcados na alcunha dos peladeiros, dez direto. Tambm so singulares

    no mtodo utilizado para separar os jogadores em equipes de cinco, ao invs de

    permitirem que dois ou mais jogadores escolham alternadamente os jogadores do seu

    time, como de praxe, eles se valem de um baralho para que, utilizando os diferentes

    naipes, os times sejam escolhidos aleatoriamente, pela sorte. No existe, portanto, a

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    comum busca pelo equilbrio, aqui o time deve jogar da melhor forma possvel e aceitar

    as derrotas sucessivas, caso isso ocorra. Na prtica, no existe uma lacuna to grande

    entre uma equipe e outra, os jogadores de prximo escolhem os melhores jogadores do

    time perdedor para ter uma chance a mais de vencer a peleja.

    1.1.4O futebol do Camisa 10

    O Camisa 10 uma chcara construda especialmente para o aluguel de campos

    de futebol. Localizado nos limites da cidade de Araraquara com o distrito de Bueno de

    Andrade, a chcara possui cinco campos de qualidades distintas e ainda uma rea onde

    so vendidos alimentos e bebidas. Outrora muito valorizado na cidade por possuir amesma espcie de grama utilizada no Morumbi (estdio do So Paulo Futebol Clube) ,

    atualmente recebe crticas dos peladeiros por no manter a qualidade de seus campos,

    agora com a grama dividindo espao com ervas daninhas e cada vez mais cedendo para a

    terra, e permanecer um valor muito alto.

    em um dos campos da Camisa 10 que jogam os peladeiros mobilizados por

    Drio. Este grupo tem uma faixa etria mais estreita, variando de 20 a 25 anos, e so

    reunidos tambm com o auxlio do aplicativo de mensagens instantneas. A grande

    maioria dos que jogam com o Dario so membros da mesma igreja que ele frequenta, a

    Congregao Crist do Brasil, e por causa disto circulam conjuntamente em diversos

    ambientes: o culto, as festas mobilizadas pelo circulo de amigos, os ensaios musicais

    pois a congregao possuiu uma orquestra em que quase todo o jovem da igreja faz parte.

    Os poucos indivduos que fogem desta regra so alguns companheiros de trabalho e os

    colegas do ensino mdio, todos reunidos s 10 horas nos sbados espordicos que o

    organizador marca o futebol.

    Por mais que exista certo modus operandi na pelada, ela no deixa de ser

    permevel por elementos externos, por eles transformada. Dentro os futebis estudados,

    este o nico onde os jogadores devem pagar (aproximadamente dez reais por pessoa)

    para jogar, por isto apenas aqui que o tempo estritamente limitado, o que muda a

    dinmica das partidas. Ainda que as equipes sejam escolhidas da mesma forma

    caracterizada pelo equilbrio que o processo deveria proporcionar contrastar diretamente

    com as disparidades residuais , assim como o tempo segue o padro dez ou dois,

    existe a mudana crtica de permitir que a equipe vencedora permanea em campo at

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    que seja eventualmente derrotado, apesar do risco disto no acontecer, para o modelo

    onde a equipe que jogou duas partidas consecutivas deve sair de campo. Portanto,

    independentemente do resultado a equipe que entrou em campo ir jogar duas partidas.

    1.2Contra

    Modo relativamente popular de praticar o futebol na cidade de Araraquara, o contra

    pode ser sucintamente definido como um futebol com times pensado menos como

    lados de uma partida e mais como uma categoria que condiciona e conecta outros

    elementos, porm sem a disputa de um campeonato. Para a melhor compreenso destaprtica, um grupo em especial foi observado com mais afinco. Se, por um lado, pode

    parecer que isto limitaria as percepes mais gerais que esta forma poderia apresentar por

    se tratar apenas de um grupo, o fato do contra, diferentemente da pelada, demandar

    mais de uma coletividade de amigos e colegas para acontecer faz com que a prpria

    dinmica das partidas seja baseada no contato com certa alteridade. Portanto, os

    diferentes locais que o time visitou e os vrios adversrios que enfrentou representam

    situaes diversas, mas enclausurada por certos padres adotados por todos e

    apresentados aqui.

    Formado para disputar o Campeonato Interbairro10da cidade de Araraquara em 2011, os

    integrantes do time ainda denominado Vale do Sol, bairro que eles representaram e onde

    vivem at hoje, tm idade entre 18 e por volta dos 35 anos. Diferentemente de outros

    contextos, aqui a performance um fator importante, limitando a idade dos participantes

    em busca de um maior desempenho na peleja. Existem membros do grupo que

    ultrapassam este limite flutuante, porm eles no praticam o esporte, so torcedores

    no no sentido que a palavra assume quando referida ao futebol profissional, mas mais

    por serem assduos e incentivarem o time quando necessrio e tambm o tcnico. A

    relao com o local onde praticam o esporte assemelha-se ao modo pelo qual times

    amadores com grande enraizamento na comunidade o fazem (SPAGGIARI, 2014), ainda

    que em outro nvel. A chcara onde se encontram no bairro Parque Tropical chamada

    pelos envolvidos de casa, especialmente se referindo s partidas: jogaremos em casa.

    10

    Maior torneio amador do municpio. Possui significativo destaque na mdia local (seja no rdio ou emperidicos), torcida associada aos times e estes ainda tem a oportunidade de disputar a final na Arena daFonte.

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    O grupo tem no tcnico uma figura de relevncia impar para a resoluo de

    problemas anteriores partida e mesmo os que ocorrem dentro dela. o tcnico o

    responsvel por conversar com os times adversrios para conseguir marcar um dia e

    horrio para que se possa ser efetuada a partida geralmente ocorrendo s 16 horas do

    sbado , inclusive existem times cujo tcnico foi capaz de agendar encontros todos os

    sbados pelos prximos seis meses. Dentro da partida, Paulo, tcnico do time do Vale do

    Sol, diferencia-se dos demais por portar todos os trejeitos de um tcnico de futebol em

    um clube profissional, inclusive possui uma prancheta magntica, onde marca as

    posies que cada um dos sete jogadores de linha deveria cobrir dentro do campo. O

    tcnico de um time de contra no pode apenas gritar instrues da lateral de campo,

    apesar desta ser sua principal funo, ele tambm repreende os jogadores por eventos que

    extrapolam o futebol e responsvel por deixar os adversrios familiarizados com as

    estruturas11que permeiam o campo. Completando a metfora da casa ao se referir ao

    local que um time manda seus jogos, o tcnico deve ser o anfitrio dos times que recebe.

    crucial para o dispndio da partida que os times estejam devidamente

    uniformizados. Espelhando-se no design e nas cores das camisas de grandes times do

    futebol profissional, no incomum que os times do contra possuam patrocnio em

    seus uniformes, inclusive podem ter mais de um patrocinador, cujas logomarcasaparecem em locais distintos das camisas, cada local tendo um valor especfico. Quando

    fora de uma competio de destaque, da qual eventualmente podem vir a participar, os

    jogadores mobilizam certa rede de contatos dentro da cidade, mais especificamente

    dentro da comunidade, para conseguir o valor necessrio para a confeco de camisas.

    Qualquer outro valor que seja necessrio levantar, por causa do aluguel do campo ou

    pelos equipamentos, coletado com relativa igualdade entre os jogadores.

    Outra despesa que demanda a colaborao dos jogadores, neste caso das duasequipes, com o pagamento do rbitro. Este uma figura central na dinmica da partida,

    chega como quase mais um dos jogadores, devido proximidade com que conversa com

    os tcnicos e expectadores intimidade explicada pelo fato dele tambm percorrer

    caminhos similares pela cidade, arbitra vrias partidas e eventualmente cruza com o time

    do Vale do Sol ; recebido com a cordialidade que o tcnico do time da casa acolhe o

    time adversrio. Esse coleguismo que beira a jocosidade acaba rapidamente quando o

    11

    No caso do time do Vale do Sol, que jogava em um campo bem conservado no que tange qualidade dagrama, tais estruturas so um humilde banheiro construdo de maneira improvisadalonge de ser umvestirioe uma torneira cuja gua no potvel.

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    juiz inicia a partida, a partir da as brincadeiras do lugar a reclamaes constantes por

    parte dos jogadores que rapidamente podem evoluir para insultos mais graves. A

    performance do rbitro ainda mais analisada que a de qualquer outro jogador, seus

    erros so tratados de forma muito rspida e, na melhor das hipteses ele no desagrada

    ningum; entretanto no raro ver os dois times incomodados com as atitudes e decises

    que ele toma ao longo da partida.

    O contra segue regras muito similares s praticadas no society: possuiu rbitro,

    times preestabelecidos, praticado em dois tempos de 30 minutos, e consegue mobilizar

    certo nmero de torcedores so familiares e amigos, mas que se deslocam sem a

    inteno de jogar e isto j diz muito. Por outro lado, uma comparao negligente com o

    futebol profissional o faria parecer precrio, existe um nmero significativo de elementos

    variantes que demandam adaptao, por exemplo, carros transformam-se em vestirios e

    torcedores assumem o papel de gandulas. Este futebol flerta com prticas mais

    organizadas, mas incapaz ou desinteressado de assumir tais formas, esta

    confluncia que o torna especial.

    1.3Os campeonatos do Melusa Clube

    O Melusa Clube foi fundado em 1941 pela Fbrica de Meias Lupo, atual Lupo

    S/A, sendo o quadro de scios praticamente todo formado por funcionrios da Lupo12.

    Outrora prestigiado pelos seus bailes, a constante decadncia do clube segundo os

    prprios scios foi barrada apenas pelas reformas, encerradas no ano de 2015, que

    revitalizaram a sede social do clube. Ainda assim, os eventos musicais que o clube

    oferece no so muito movimentados, o forte do Melusa so os esporte majoritariamente

    praticados por homens13: a bocha do clube famosa em toda cidade, assim como suas

    quadras de tnis esto sempre sendo utilizadas, mas o futebolsocietyque reuni o maior

    nmero de praticantes e observadores.

    No Melusa Clube at existem momentos onde se disputam partidas sucessivas em

    um mesmo dia cujos resultados s so validos naquele dia, o chamado Vale

    12Muito pelo fato de que os mais de 4 mil colaboradores ganham desconto significativo no clube portrabalharem na fbrica.13

    vlido notar que cresce o nmero de mulheres que utilizam a academia do clube, ou que praticamZumbano mesmo. O futebol adulto ainda completamente inacessvel a elas, no tem uma categoriaprpria, nem jogam nos torneios organizados pelo Melusa.

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    Cerveja14, mas tais competies s ocorrem no breve hiato entre os campeonatos, so

    estes que despertam maior interesse nos scios do Melusa, assim como ocorre em

    diversos outros clubes15. Todos os campeonatos disputados tm como base o mesmo

    regulamento, altera-se apenas os elementos que delimitam as categorias, assim como

    todos apresentam rbitro e tempo precisamente delimitado. A organizao meticulosa,

    conta-se com mesrio para marcar o nmero de faltas e os gols marcados (que definem a

    disputa paralela e valorizada pela artilharia do campeonato), produzido um

    calendrio com todos os confrontos da fase inicial e, ao termino da disputa, os

    vencedores so premiados com medalhas e trofus.

    As categorias que determinam aqueles que esto aptos para participar de um

    determinado campeonato so clivadas de acordo com faixa etria e modo de organizar o

    time. A categoria Livre praticada nas tarde de sbado e composta por scios do

    clube com mais de 16 anos. Extremamente valorizada por ser praticada no horrio em

    que o maior nmero de scios est de folga, tal categoria atrai praticamente todos os

    praticantes de futebol do clube, por mais que muitos deles se limitem a apenas observar a

    partida. Os jogadores da categoria Veterano devem ter mais de 35 anos e jogam nas

    quartas noite. A idade mnima regulada no seguida sem excees, o prprio

    regulamento permite a entrada de um nmero limitado de jogadores que estejamprximos de tal idade, ainda que abaixo dela. A categoria P-na-Cova, em outros

    lugares chamada de Master16, rene associados com teoricamente 45 anos ou mais,

    porm sofre com a mesma situao da categoria Veterano, jogadores mais jovens

    infiltram-se no campeonato de maneira legitima, j que est pressuposto no regulamento.

    Para os praticantes das duas ltimas categorias, voltadas aos jogadores mais experientes,

    permitir que jogadores mais jovens participem do campeonato muda completamente a

    dinmica da partida, alm de desvirtuar o sentido principal de tais categorias: permitirque os jogadores sejam pareados por terem um desempenho fsico similar, caracterstica

    irremediavelmente atrelada idade. A agilidade e resistncia dos mais jovens vista

    como prejudicial aos demais, por isto que cada time possui um nmero limitado e bem

    distribudo de jogadores mais jovens; o que diminui, mas no encerra as reclamaes.

    14Obviamente pelo fato da premiao da pequena competio ser de um nmero, determinadopreviamente, de latas de cerveja (podendo ser trocadas por refrigerante).15Todos os clubes da cidade que tenham alguma estrutura para a realizao do mesmo fazem campeonatos

    internos.16Pode ocorrer da categoria Master e Veterano se inverterem, com esta sendo a que possui osjogadores mais velhos.

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    As equipes que disputam tais categorias no so times preestabelecidos, mas

    esquadras definidas por sorteio, respeitando a posio de cada participante e tentando

    evitar que uma equipe venha a ser muito mais forte que as demais; portanto um sorteio

    cheio de amarras. Depois de decididas as escalaes das equipes a cada uma ser

    atribudo um patrocinador que tem o pode de escolher que time ira representar , a

    contribuio deste responsvel por pagar os uniformes e a premiao, diminuindo os

    gastos do clube. Dentro do campeonato iro se referir equipe pelo nome do

    patrocinador17 e com base neste nome que sero produzidas as tabelas do mesmo. A

    nica categoria cujos praticantes no so clivados em tais termos a Panela.

    Praticada nas manhs de domingo, a Panela se caracteriza pelo fato das esquadras no

    serem definidas por sorteio, mas so os prprios scios que montam suas equipes de

    forma independente do clube, sendo os mesmos responsveis pela confeco das camisas

    e pela obteno de patrocnio, quando presente. Enquanto os demais campeonatos so

    disputados por equipes, formadas para a disputa e aps ela desfeitas, os agrupamentos de

    domingo podem ser definidos como times, tendo patrocinadores especficos, nome e

    braso que perpassam um campeonato. Na Panela comum ver um dos jogadores,

    geralmente aquele que mobilizou os demais, agindo como tcnico, pois instrui e substitui

    quando necessrio. Tambm tem contornos mais fluidos quanto ao nmero de jogadores,passando de quatorze por time; no caso das demais categorias as equipes so limitadas a

    aproximadamente dez jogadores: o goleiro, seis jogadores de linhaque o nmero que

    as dimenses do campo sinttico do clube permiteme mais trs substitutos.

    comum que jogadores de futebol amador18 se encontrem em um bar aps as

    partidas, porm no sempre que bar e campo sejam praticamente contguos, fazendo

    parte do mesmo ambiente, como ocorre no Melusa Clube. Se no Pelado manauara os

    bares fazem parte do circuito futebolstico que os jogadores desenham na cidade(CHIQUETTO, 2014), aqui ele aparece como catalisador das jocosidades, uma vez que

    os lances das partidas j que o campo visvel em toda sua extenso do bar so

    imediatamente problematizados e transformados em chacotas. A passagem de um

    contexto para o outro fluida19, o que faz com que a atmosfera do bar contagie os

    participantes da peleja, transformando o futebol ora em uma disputa mais amistosa,

    17Quando o nome do patrocinador de uma equipe desconhecido, utiliza-se como referencia o jogador da

    equipe de maior destaque, seja dentro ou fora de campo.18Enquanto no profissional19No raro ver um jogador sair do bar apenas quando seu jogo se inicia e voltar para ele assim que acaba.

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    quando os jogadores passam a brincar entre si, ora em um prlio mais acirrado, pois os

    jogadores so passveis de se irritarem com as interpelaes vindas de fora20do campo,

    muitas vezes se esforando para desmentir em campo o que est sendo falado no bar.

    Dentro do contexto do clube possvel observar como formas distintas se

    encontram e so rearranjas para atender demandas especficas. A particularidade deste

    contexto se d exatamente por aproximar caractersticas geralmente encontradas em

    lugares distintos, mas que aqui se relacionam de forma contigua. No clube, o espectador

    que interpela os jogadores de forma jocosa torna-se, com um apito, um jogador alvo das

    chacotas, com alguns apitos depois o mesmo volta posio de corneteiro. Algo

    impensvel no futebol profissional, aqui corneteiro e jogador so faces de um mesmo

    papel, manifestaes de uma performance ininterrupta, ora condicionadae localizada

    pelo bar, ora pelo campo. com a fluncia similar que os jogadores encontram nas

    categorias no encerramentos e abismos intransponveis, mas formas distintas que se

    pode acessar para praticar o esporte21.

    1.4Taa EPTV de Futsal

    A Taa EPTV de futsal comeou em 1985, em Ribeiro Preto, seis anos aps a

    fundao da Emissoras Pioneiras de Televiso, fundadora e difusora do evento. O

    regulamento da competio foi desenvolvido em conjunto com a Federao Paulista de

    Futebol de Salo, contando, em sua diviso central, com 39 municpios, cada um com

    apenas uma equipe dentro da competio, o que, segundo os organizadores, faz com que

    a cidade se preocupe mais com a equipe e tambm chame a ateno de patrocinadores a

    questo comercial de grande importncia para a entidade que promove o evento. A

    competio dura dois meses, todos os jogos tm cobertura jornalstica e a grande final exibida pela emissora local. A taa EPTV um campeonato de futebol amador, no

    sendo aceitas inscries de atletas federados; o vnculo com a federao classifica, aqui,

    o profissionalismo.

    20Aqueles que opinam rispidamente sobre o jogo sem fazer parte do mesmo so aqui, como em outroscontextos, chamados de corneteiros.21

    muito comum ver jogadores que pratiquem os campeonatos do Melusa Clube em mais de umacategoria. Inclusive totalmente possvel, ainda que raro, que o mesmo jogador dispute campeonatospor todas as categorias. Aqueles que jogam por vrias categorias so chamados de tarados.

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    Todo o campeonato permeado por ideais de organizao e por elementos

    burocrticos. Fora de campo isto se traduz no complicado processo pelo qual um time

    deve passar para poder representar a cidade, entre tantos outros times presentes no

    municpio; alm da necessidade da documentao de todos os seus membros. Dentro de

    campo o time no possui apenas uniforme e patrocinadores, elementos presentes em

    outros futebis, mas a busca pela melhora no desempenho dos atletas visando o ttulo

    (como trofu e conquista, mas tambm pela premiao e destaque) manifesta-se na

    utilizao por parte do time de conhecimentos muitas vezes atrelados vertente

    profissional, como fisioterapeutas e treinadores. Os atletas aqui estudados so muito mais

    cobrados pelo sua performance no futebol que os at ento abordados, foi com base na

    qualidade tcnica que o time foi montado, ainda que no seja este o nico fator.

    tambm pensando no desempenho no prlio que eles passam por treinamentos

    especficos, sendo estes jogadores familiarizados com uma separao entre cotidiano do

    treinamento e o aspecto ritualstico dos jogos midiatizados (TOLEDO, 2000).

    De fato, existe certo deslocamento dos moradores da cidade para assistir aos

    jogos da competio, principalmente quando o time representante do municpio faz parte

    do confronto, mas impossvel dizer que a Taa EPTV de Futsal produz torcedores nos

    moldes similares da Copa Kaiser, como observada por Spaggiari (2014). Grande partedos presentes no Giganto (Ginsio Municipal de Esportes Castelo Branco) de

    Araraquara eram familiares dos jogadores, ou ainda espectadores buscando um forma de

    entretenimento interessante e que continha o atrativo de no haver custo para a entrada. A

    torcida do time de Leme, dentre aquelas que pude observar, foi a que fugiu desse padro.

    Trazidos cidade de Araraquara por nibus da prpria prefeitura, os torcedores portavam

    grandes faixas e uniformes prprios, inclusive entoavam cnticos para incentivar seus

    jogadores. Porm tal torcida, chamada de Os Persistentes no foi formada paraacompanha o time na Taa EPTV de Futsal, mas a torcida do Clube Atltico Lemense,

    o clube de futebol profissional da cidade. So estas questes que tornam este futebol apto

    ao dilogo, um futebol amador que toma para si diversos aspectos do futebol

    profissional como tantos outros (OLIVEIRA, 2013).

    1.5Associao Ferroviria de Esportes

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    nico time de futebol profissional da cidade de Araraquara, a Ferroviria foi

    fundada em 1950 por funcionrios da Estrada de Ferro de Araraquara voltada para o lazer

    dos mesmos, mas desde o incio a preocupao fora ter um time de futebol. Vestindo a

    camisa grenpor causa do sucesso poca do Clube Atltico Juventos e mandando

    seus jogos na antiga Fonte Luminosa, a Ferroviria ganhou certo destaque no futebol

    paulista por participar por muitos anos da primeira diviso deste futebol, com destaque

    para as campanhas do incio dos anos 90 que levaram grande pblico ao estdio. Em

    2003, a saudosa Ferroviria vinha de resultados ruins e do rebaixamento para a terceira

    diviso do futebol paulista, quando o ento prefeito da cidade, associado a um grupo de

    investidores, transformou o clube em uma empresa, sob a alcunha de Ferroviria Futebol

    S/A. Este novo perodo marcado por algumas conquistas importantes (como a Copa

    Federao Paulista de Futebol, que garantiu ao clube a participao na Copa do Brasil),

    pelo acordo firmado com o Clube Atltico Paranaense22, mas principalmente pela

    reforma da Fonte Luminosa, culminando em um estdio praticamente novo chamado de

    Arena da Fonte.

    No nos cabe aqui adentrar cada aspecto que tange Associao Ferroviria de

    Esportes, a inteno precisamente observar futebis perifricos bibliografia pelo vis

    dos seus jogadores, de como estes apreendem o esporte; portanto, descrever uma prticaextensamente conhecida no acrescentaria nada aos objetivos deste trabalho, menos ainda

    tratar dos jogadores profissionais, cujos estudos referentes ao tema envolvem no apenas

    a sua carreira, mas o modo pelo qual atingiram a profissionalizao. O futebol

    profissional importante por estar muito fortemente presente no imaginrio dos

    jogadores das demais vertentes do esporte, o que ficou muito claro ao acompanhar

    grupos de torcedores da ferrinha na campanha que garantiu o acesso do clube srie

    A1 do campeonato paulista, em 2015.Nos anos anteriores foi por muito pouco que a Ferroviria no ingressou na Srie

    A123 do Campeonato Paulista; fazia boas campanhas, mas quando chegavam na parte

    decisiva do campeonato o time perdia os jogos que a levariam para a elite do futebol

    paulista. Por causa disto, quando o campeonato de 2015 comeou os torcedores estavam

    divididos entre aqueles que acreditavam no acesso Agora vai! e os que

    22Acordo este que prev o intercambio de jogadores entre as equipes, onde o Atltico empresta jogadores

    profissionais que no esto sendo utilizados na equipe principal e tem certos direitos sobre a categoria debase da Ferroviria.23Comparvel Srie B do Campeonato Brasileiro de Futebol, organizado pela C.B.F.

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    permaneciam incrdulos. Tal situao mudou rapidamente, a Ferroviria fez bons jogos

    logo no incio da competio e a cidade inteira estava eufrica com a chance no apenas

    do sonhado retorno elite paulista, mas tambm com um importante ttulo para a

    associao esportiva. Os futebis estudados foram contagiados por grande apreo pela

    ferrinha: camisas grens eram vistas com uma frequncia impar24; antes das partidas o

    desempenho do time profissional era sempre comentado parcialmente com orgulho, mas

    tambm com um linguajar tpico dos especialistas25, averiguando os problemas e pontos

    fortes da equipe; jogadores outrora quase annimos passaram a ser conhecidos e os

    peladeiros mais jovens espelhavam-se na performance dos profissionais.

    No final do campeonato, com a iminente confirmao do ttulo, os locais das

    peladas passaram a extrapolar o futebol praticado ali; no era apenas uma reunio de

    colegas para praticar o esporte, tornou-se uma reunio de torcedores, preocupados no s

    com as partidas, mas aonde iriam se sentar no estdio e como chegariam ao mesmo. Aps

    a confirmao do ttulo com antecedncia e coroando uma grande campanha , o

    prestgio da Ferroviria s aumentou: se os torcedores se interessavam por assistir a

    campanha que levaria ao acesso, ainda mais interessados estavam em ver o time j

    campeo. O ltimo jogo da temporada26, momento da entrega do trofu, foi marcado por

    um grande pblico na Arena da Fonte (provocando filas literalmente quilomtricas),formado por diversos tipos de torcedores, dos mais fanticos aos que mal sabiam a

    escalao do time, e por uma grande festa com direito a fogos de artifcio. A partir do

    jogo, os comentrios sobre o time profissional foram gradativamente diminuindo, seja

    nas peladas ou nos campeonatos do Melusa Clube, as conversas se voltaram

    novamente para os feitos de jogadores internacionais, assim como o desempenho dos

    times paulistas de maior torcida nos campeonatos que disputavam. Enquanto times como

    Palmeiras e Corinthians so lembrados praticamente o ano todo, a Ferrinha vive asazonalidade do futebol profissional das divises menores tambm no interesse dos

    atores dentro da cidade, ora sendo grande referencial para os jogadores de final de

    semana, ora caindo em um esquecimento; entretanto, ressurge com a disputa de um novo

    campeonato paulista.

    24Na escola Jandyra Nery Gatti, onde os peladeiros tm disposio coletes de diversas cores, o gren

    tornou-se o preferido.25Termo utilizado por Toledo (2000) para designar a mdia em geral.26Confronto com o Guarani Futebol Clube de Campinas, que terminou com um empate sem gols.

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    Parte 2Articulaes e propostas: dilogo entre a bola e a teoria

    Arlei Damo dedicou parte significativa de seus estudos compreenso dos

    processos pelos quais um aspirante deve passar para poder se tornar um jogador de

    futebol profissional. Estudou categorias de base no Brasil e na Frana, acompanhou os

    jovens, tomou cincia de suas dificuldades e ainda os ajudou, quando seus

    conhecimentos especficos foram requisitados. Damo encontrou, com sua pesquisa,

    aspectos do futebol profissional que se escondiam frente a histrias de sucesso; os

    problemas enfrentados cotidianamente, as rotinas maantes de treinamento, mesmo os

    complicados relacionamentos interpessoais e todas as trajetrias que ficaram pelo

    caminho tornam-se narrativas silenciadas e esquecidas em um estdio lotado para uma

    final de campeonato. Se este futebol espetacularizado suprime e esconde aspectos

    importantes que o envolvee o produz, de certa forma, mais ainda capaz de ofuscar

    outras formas de se praticar o esporte, formas que no tiveram o respaldo da mdia desde

    o seu nascimento (LEITE LOPES, 1994), cuja relao entre atores e esporte distingue-se

    das intermediaes existentes entre jogador profissional e o futebol de grandes arenas.

    Existem histrias relacionadas ao esporte que vo alm daquelas contadas em

    programas no horrio de almoo, assim como existe [...] futebol fora das narrativas

    hegemnicas (DAMO, 2003: 132); se em um momento Damo observa os entornos do

    futebol profissional, em outro ele destaca a necessidade de estudar o esporte cuja

    capilaridade com que este se inseriu na sociedade brasileira fez com que se produzissem

    diversas formas de pratica-lo. Como alternativa dicotomia profissionalismo-

    amadorismo (DAMO, 2003: 136), que no apenas limita o escopo de anlise como

    tambm define os termos em positivoos clubes devem buscar o profissionalismo e

    negativoamadorismo como sinnimo de incompetncia e desordem , o autor criouclivagens, chamadas de matrizes, moldadas em tipos-ideais que dividem o futebol

    brasileiro em diversas maneiras de pratica-lo:

    A diversidade futebolstica pode, ento, ser agrupada nasconfiguraes denominadas de: futebol profissional, tambm referido

    por alguns autores como futebol-espetculo ou futebol de altorendimento/performance; futebol de bricolagem, conhecido como fute,

    pelada, baba, racha e outras designaes locais; futebol comunitrio,em certos contextos nomeado de futebol de vrzea e em outros comofutebol de bairro ou amador; e o futebol escolar, vinculado instituioescolar desde o sculo XIX, como dispositivo pedaggico de usoalargado e transformado em contedo da EFI [educao fsica] aolongo do sculo XX. (DAMO, 2003: 136).

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    Indo alm da nomenclatura que delimita cada clivagem, o futebol profissional tem

    como caracterstica principal o fato de estar atrelado a uma associao internacional a

    famosa Federation Internationale de Football Association (FIFA) que regulapraticamente todas as suas manifestaes e determina, por meio de processos demorados

    que envolvem outra instituio a ela ligada aInternational Board, a manuteno ou

    alterao das regras referentes a uma partida de futebol profissional. Tambm apresenta

    grande apelo miditico, mobilizando uma parte significativa da impressa que se tornou

    responsvel apenas pela cobertura de eventos deste esporte; envolve diversos veculos de

    comunicao cuja abrangncia determinada pela capacidade do campeonato de atrair

    pblico. Por fim, dotada de alta diviso das funes dentro e fora de campo (DAMO,2003: 142-3), onde no apenas os jogadores se especializam de tal modo em uma posio

    no esporte, o que faz com que pratica-lo em qualquer outro local do campo se torne uma

    atividade consideravelmente problemtica, mas tambm envolve profissionais

    especializados, como massagistas, fisioterapeutas, tcnicos, treinadores e at roupeiros;

    como mostra Toledo (2002), responsveis pelo futebol assim como os jogadores,

    estando, como estes, ligados a conhecimentos especficos.

    Todos os atributos apresentados acima esto presentes na Associao Ferroviria

    de Esporte, porm evidente que eles se manifestam de formas distintas de acordo com o

    prestgio que um determinado clube possui, assim como com o nmero de torcedores que

    tal time pode mobilizar. O tratamento dos jogadores da Ferrinha distinto daquele

    assegurado aos jogadores dos grandes clubes do Brasil; enquanto estes lutam por 30 dias

    de frias, jogadores de Araraquara destacam que passam mais de quatro meses esperando

    pelos campeonatos comearem. Apesar da preocupao da mdia com a cobertura dos

    jogos e eventos relacionados AFE, as noticiais desta normalmente perdem espao nos

    jornais para as informaes a cerca dos grandes times de futebol do estado de So

    Paulo27; nos programas de rdio, s vezes ganha mesmo destaque dos clubes da capital,

    outras nem citada. Porm, inegvel que a clivagem produzida por Damo consegue

    conter o futebol profissional perfeitamente, uma vez que os elementos de que se utiliza

    para defini-lo so estveis, como o retorno econmico que os praticantes esperam com o

    27 A saber, Sociedade Esportiva Palmeiras, Sport Club Corinthians Paulista, Santos Futebol Clube e So

    Paulo Futebol Clube. A capital paulista apresenta outros times outrora considerados grandes equipes, mascujos fracassos mais recentes impedem os mesmos de mobilizarem grande numero de torcedores, menosainda no interior paulista.

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    esporte (DAMO, 2002: 02), e os [...] valores aos quais ele est associadoao mercado,

    racionalidade, burocracia e tecnocracia, ao centralismo poltico [...] (DAMO, 2002:

    15); mas a Ferroviria tambm permite perceber que este breve destaque dado ao campo

    poltico no preo para a gigantesca interferncia poltica presente no futebol

    profissional.

    Em entrevista28, o Secretrio de Esporte e Lazer de Araraquara, Aluisio Braz

    (conhecido e eleito pelo nome de Boi), deixou muito evidente todos os esforos por

    parte da prefeitura para com o esporte profissional da cidade. A relao entre Ferroviria

    e poder pblico longnqua, seu estdio s pde ser construdo aps liberao de verba

    do governador do estado poca29, porm em 2003, como j descrito aqui, tal relao se

    estreitou na medida em que a Prefeitura de Araraquara se tornou responsvel por gerir o

    clube profissional de futebol. Trs anos aps o acordo firmado entre clube e prefeitura, a

    casa da Ferrinha antiga Fonte Luminosatambm se converteu em propriedade do

    municpio, que pouco tempo depois tratou de reformar30o estdio, o reinaugurando em

    2009. Como atesta Boi, em 2015 a prefeitura preocupou-se quase exclusivamente com

    o acesso do time srie A1 elite do futebol paulista , e neste sentido no mediu

    esforos para ajudar o time da cidade: permitiu a utilizao da Arena para a equipe

    principal da Ferroviria treinar, o que no era permitido antes; tambm concedeu ocomplexo esportivo do Jardim Pinheiros (chamado de Parque Ecolgico do Pinheirinho)

    para que as equipes de base pudessem treinar naquela estrutura que conta com cinco

    campos para a prtica do futebol nos seus moldes definidos pelo International Board.

    Objetivo alcanado, no possvel desconsiderar o esforo da prefeitura da cidade, seja

    com homens, campos ou recursos, no acesso da Ferroviria, entretanto, tal relao no

    exclusiva da cidade de Araraquara. Muitos, se no todos, os grandes clubes do pas, que

    ocupam posio de destaque na mdia e no campeonato nacional, tm dvidasconstantemente perdoadas ou renegociadas por empresas ligadas ao Estado; tambm

    comum vermos terrenos sendo doados aos clubes, algo muito similar ocorre com

    estdios, alm de no ser raro que grandes clubes de futebol profissional tenham certos

    privilgios fiscais. Deve-se averiguar se o mesmo ocorre com clubes de pequeno e mdio

    28Produzida s 9 horas do dia 29 de setembro de 2015, no Ginsio de Esporte Castelo Branco (Giganto),cede da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer da cidade de Araraquara.29O nome do estdio Doutor Adhemar de Barros e uma homenagem pela colaborao do mesmo.30

    Enquanto ocorria a reforma da Fonte Luminosa, a Ferroviria mandou seu jogos no recm criado Estdiodo Botnico, um estdio modesto feito especialmente para que o clube tivesse onde jogar enquanto suacasa estava sendo alterada.

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    porte, clubes distantes das capitais de seus estados e que contam com nmero reduzido de

    torcedores. No se trata de certo e errado, a questo aqui que aparenta ser bastante

    provvel que, no contexto nacional, o relacionamento do clube com o poder pblico seja

    quase to importante para sua sobrevivncia quanto sua torcida; laos mais ou menos

    estreitos entre clube e municpio podem ser to determinantes para indicar o que o

    futebol profissional no Brasil quanto a mdia que o produziu (LEITE LOPES, 1994).

    Dentro da alcunha Futebol Comunitrio Damo encerra o futebol de vrzea e o

    amador em geral; ambos tm caractersticas em comum, de fato possvel que um

    mesmo futebol seja chamado pelos dois termos. O futebol comunitrio definido pelo

    autor como aquele que possui uma diviso do trabalho fora de campo precria (DAMO,

    2002: 8), assim como pode ser melhor entendido como possuidor de grande parte dos

    componentes do futebol profissional, porm em escala reduzida (DAMO, 2002: 8).

    Contm rbitros, uniformes definidos para cada time, grande diviso do trabalho dentro

    de campo (pois as posies so bem delimitadas), mas sem dvida as propriedades que o

    tornam singular so o fato do futebol se organizarem forma de associaes clubsticas e

    estas a constituio de associaes mais amplas denominadas de ligas (DAMO, 2003:

    143). Tais associaes clubsticas, ainda que populares, diferem dos clubes

    profissionais por estarem completamente arraigadas em uma determinada comunidade31 daqui que se deriva o nome de tal clivagem. Por ser uma das poucas opes de

    entretenimento em regies distantes do centro da cidade e pelo fato de seus habitantes

    serem restringidos de frequentar grandes centros culturais (SPAGGIARI, 2014), o bairro

    abraa o clube ali fundado de vrias formas: provem o contingente necessrio para a

    prtica do esporte, permite o apoio de patrocinadores (preocupados com o mercado

    local), fornece torcida e verba (advinda do consumo no bar do clube e em outros tipos de

    arrecadao).Se a princpio a diferena entre futebol profissional e o amador (da matriz

    comunitria, nos termos de Damo) vista pela existncia ou no de transaes

    monetrias envolvendo os atores, campeonatos como a Suburbanamostram que no

    pode ser nesse aspecto que a clivagem se baseie. Assim como outros campeonatos

    amadores, a Suburbana de Curitiba praticada com fluxo constante de capital dos

    clubes para os jogadores (OLIVEIRA, 2013: 126); a maioria dos praticantes recebe por

    31No necessariamente pelos valores envolvendo as duas prticas. O futebol de vrzea capaz demobilizar grande quantidade de recursos monetrios (OLIVEIRA, 2013).

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    estar ali e apenas o dinheiro pago em cada partida que os motiva a jogar por um ou

    outro clube, tambm podem no morar prximos ao clube em alguns casos moram em

    outras cidades. A monetarizao das relaes envolvidas no futebol praticado em tal

    campeonato curiosamente concomitante preocupao constante de afasta-lo do

    profissionalismo, sendo o termo uma categoria acusatria entre os dirigentes dos clubes,

    uma vez que a competio s pode ser disputada por clubes amadores (OLIVEIRA,

    2013: 127).

    Uma diferena mais acentuada portanto com maior capacidade de distinguir os

    dois entre futebol profissional e amador o condicionamento fsico dos jogadores de

    final de semana em comparao com os atletas; apesar de no acreditarem em distines

    de tcnica, os prprios amadores percebem uma diferena significativa entre seus corpos

    e os dos profissionais, estes tm um capital corporal que aqueles no possuem ou no

    possuem mais, no caso dos ex-jogadores (OLIVEIRA, 2013; 118). Tambm vlido

    ressaltar que no existe, a nvel simblico, a dicotomia exclusiva do futebol profissional

    entre ritual e cotidiano (TOLEDO, 2002); mesmo que haja treino entre os amadores, ele

    no assume as dimenses do profissional, e o pouco apelo miditico que os campeonatos

    amadores produzem so reduzidos exclusivamente ao momento da competio, s

    partidas.Em Araraquara, esta matriz futebolstica bem representada pela Taa EPTV de

    Futsal. Nesta existe certa presena de torcida ainda que formada majoritariamente por

    parentes e amigos , assim como um regulamento previamente estipulado e que abrange

    todos os elementos envolvidos tanto na partida quanto no campeonato, rbitros oficiais

    so designados para fazer valer tais normas e os times que disputam o torneio so

    dotados de diversos aparatos na busca de uma maior competitividade e preparo tcnico,

    como massagistas, fisioterapeutas e treinadores, mostrando uma diviso social dotrabalho extra campo talvez um pouco maior do que a prevista por Damo. Entretanto, por

    se tratar de um campeonato regional, onde os times representam cidades, perde-se um

    pouco da ligao que tal futebol engendra entre o time e uma determinada localidade;

    ligao mais evidente no campeonato amador interbairros da cidade. Neste caso, o maior

    responsvel pelo evento a prefeitura pois busca patrocinadores, assume as dispensas

    dos campos das partidas, paga a arbitragem e ainda se responsabiliza pela premiao.

    Tudo pelo esforo de proteger os clubes amadores, considerados pelo Secretrio do

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    Esporte e Lazer da cidade como carentes, desprovidos da infraestrutura encontrada em

    outras competies amadoras.

    Interessante notar que o que fomenta grandes campeonatos amadores,

    diferentemente do campeonato interbairros de Araraquara, so as empresas privadas. o

    caso do Pelado de Manaus, estudado por Rodrigo Valentim Chiquetto (2014), capaz

    de mobilizar grande nmero de times da capital amazonense e dos arredores, sendo

    criado e at hoje gerido por uma empresa difusora de mdia local. Locus de diversas

    particularidades, o Pelado no se destaca apenas porque nele ocorrem,

    concomitantemente, um campeonato de futebol e um concurso de beleza, mas

    principalmente pela participao indgena em uma categoria prpria dentro da disputa, o

    que mostra como a competitividade caracterstica de uma competio em tais moldes

    altera toda uma dinmica de grupo e brinca com questes de pertencimento e mesmo

    com a ligao entre indivduo e etnia. (CHIQUETTO, 2014: 59). So Paulo tambm traz

    um exemplo de competio gerenciada por uma empresa privada: a Copa Kaiser de

    Futebol. Dotada de grande importncia dentro do futebol praticado na maior cidade do

    pas, a Copa Kaiser apresenta associaes clubsticas completamente atreladas ao bairro

    de fundao e onde mandam seus jogos, como o caso do Grmio Botafogo de

    Guaianases (SPAGGIARI, 2014). So clubes que flertam com elementos do futebolprofissionalcomo diretoria, renda, patrocinadores, apelo miditico , mas que deixam

    muito evidente a ligao que tm como sua comunidade, sendo a partir dela que

    angariada a verba para a organizao da equipe e os prprios jogadores que dela faro

    parte.

    Prtica atrelada ao lazer ou recreao, os futebis encerrados na matriz bricoleur

    so jogados no tempo do no-trabalho (DAMO, 2002: 07). Da pelada ao futebol de rua,

    a prtica aqui caracterizada por sua grande espontaneidade, no estando atrelada sdelimitaes do International Board, mas rearranjando os termos necessrios para a

    disputa da peleja (DAMO, 2003: 140). De fato, pode-se dizer que o futebol de

    bricolagem aquele que se deixa inundar por fenmenos externos, ao invs de controla-

    los; no encerra em um escopo circunscrito o que se entende por futebol, mas produz

    futebol com os elementos a sua disposio. Aqui no h diviso social do trabalho, seja

    dentro ou fora de campo: o piv vira fixo em uma jogada, assim como o goleiro se torna

    massagista quando necessrio. Tambm no existe patrocinador ou torcida, os envolvidos

    nas pelejas so aqueles que esto jogando e os que vo jogar, logo em seguida: So,

  • 7/24/2019 Do Espontneo ao Restritivo

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    portanto, pessoas que tecem outra relao com o jogo em si: uma relao baseada numa

    atividade corporal, mediada pela bola, e no por causa dela (CHIQUETTO, 2014: 21);

    no que os outros futebis apresentados aqui eram destitudos de jogadores, mas sim que

    este formado exclusivamente por eles.

    O termo amadorismo pode estar dotado de valores positivos, principalmente em

    campeonatos amadores como o caso da Suburbana (OLIVEIRA, 2013: 127) ,

    porm dentro do contexto pr