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INTRODUÇÃO Através do Programa Fome Zero, o governo federal e o governo do Estado do Piauí estão desen- volvendo projetos locais nas comunidades rurais mais carentes do interior. Querendo valorizar a cultura local, o governo manda seus representantes para essas localidades para conversar com os pequenos produtores sobre suas condições de vida e o tipo de projeto que deveria ser implantado na localidade. No entanto, quando esses representantes chegam às localidades e tentam iniciar diálogo nas assem- bléias das associações comunitárias, o povo responde com silêncio. Por quê? O surgimento de associações comunitárias de desenvolvimento rural no interior do Nordeste du- rante a última década é uma das transformações mais importantes no que diz respeito ao processo de desenvolvimento sustentável da região. Esse surgimento decorre de vários fatores: a mobilização da Igreja Católica nos anos oitenta, a municipalização do aparelho do Estado que se institucionalizou na Constituição de 1988, e uma mudança paradigmática no modelo de investimento do Banco Mundial a par- tir de 1994. O último fator merece destaque porque é altamente relevante ao material tratado neste arti- go. Segundo representantes do Banco Mundial no Nordeste, a ineficiência burocrática do órgão fede- ral, SUDENE, nos anos setenta e oitenta reduzia a eficiência com que os recursos do Banco chegavam às suas populações-alvo no interior dos estados. Em 1994, a gerência da SUDENE decidiu que não ia mais conduzir tais verbas do Banco, e as Se- cretarias do Planejamento de cada Estado ficaram com essa responsabilidade. Essa mudança foi acom- panhada por uma outra. Até os anos noventa os pró-

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INTRODUÇÃO

Através do Programa Fome Zero, o governofederal e o governo do Estado do Piauí estão desen-volvendo projetos locais nas comunidades rurais maiscarentes do interior. Querendo valorizar a culturalocal, o governo manda seus representantes paraessas localidades para conversar com os pequenosprodutores sobre suas condições de vida e o tipo deprojeto que deveria ser implantado na localidade.No entanto, quando esses representantes chegamàs localidades e tentam iniciar diálogo nas assem-bléias das associações comunitárias, o povo respondecom silêncio. Por quê?

O surgimento de associações comunitárias dedesenvolvimento rural no interior do Nordeste du-rante a última década é uma das transformaçõesmais importantes no que diz respeito ao processo de

desenvolvimento sustentável da região. Essesurgimento decorre de vários fatores: a mobilizaçãoda Igreja Católica nos anos oitenta, a municipalizaçãodo aparelho do Estado que se institucionalizou naConstituição de 1988, e uma mudança paradigmáticano modelo de investimento do Banco Mundial a par-tir de 1994. O último fator merece destaque porqueé altamente relevante ao material tratado neste arti-go. Segundo representantes do Banco Mundial noNordeste, a ineficiência burocrática do órgão fede-ral, SUDENE, nos anos setenta e oitenta reduzia aeficiência com que os recursos do Banco chegavamàs suas populações-alvo no interior dos estados.

Em 1994, a gerência da SUDENE decidiu quenão ia mais conduzir tais verbas do Banco, e as Se-cretarias do Planejamento de cada Estado ficaramcom essa responsabilidade. Essa mudança foi acom-panhada por uma outra. Até os anos noventa os pró-

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prios beneficiários eram contemplados de forma indi-vidual, visando o crescimento regional do capital, enão a melhoria das condições de vida dos habitantesdessas regiões. As críticas dos movimentos sociais,cujos protagonistas eram as pessoas mais pobres doNordeste (e outros lugares), empurravam o BancoMundial a veicular suas verbas para as populaçõesmais carentes e fazer com que tais populações setornassem sujeitos ativos (e não meramente objetospassivos) nos projetos de desenvolvimento.

Como resultado, o Banco adotou o que hoje sechama de Community Driven Development (de-senvolvimento impulsionado pela comunidade). Estemodelo pressupõe que os agentes executores deprojetos locais de infra-estrutura ou de produçãoagropecuária sejam os membros das próprias co-munidades, o que requereria instituições locais destatus de “pessoa jurídica” para gerenciar tais pro-jetos.

Essa mudança do sistema criou a oportunida-de para os atores municipais da sociedade civil or-ganizada (das igrejas, dos partidos da esquerda edos sindicatos rurais) a estimularem a formação deassociações de desenvolvimento rural. Junto comessa onda de mobilizadores de consciência vierampessoas (principalmente figuras políticas do nívelmunicipal) que aproveitaram desse momento histó-rico. Elas também estimulavam a formação de as-sociações, mas faziam de tal forma que os sócios sesentiam com obrigações políticas que prevenia arealização da associação como uma instituição au-tônoma e não-partidária.

No governo atual, representantes da SEPLANe do Programa Fome Zero assumem uma posturacrítica em relação à dinâmica clientelista que certasassociações mantêm com políticos locais. Para essegoverno, “desenvolvimento sustentável” inclui a li-beração do povo rural das relações de troca política(clientelismo), além da melhoria das condições fi-nanceiras ou alimentares.

No discurso do governo atual, da SEPLAN,da Coordenadoria do Fome Zero, do Emater, e deoutras instituições, o associativismo traz a promes-sa de uma modernidade alternativa, o que se funda-menta na criação de um espaço comunitário de dis-cussão racional e imparcial, visando à realização do

interesse público da localidade. É através dessefórum discursivo que a associação focaliza a ambi-ção humana de avanço social na comunidade comoum todo, em vez do indivíduo ou da família.

O gênero de discurso comunitário é necessáriotanto nas reuniões internas da associação, como nasque incluem representantes do governo, organiza-ções não-governamentais, técnicos e outros. Noentanto, confrontados com a realidade, as reuniõesdas associações do Município de Acauã são tensas,caladas, e sujeitas à briga pessoal. A seguir, quaisos fatores culturais das localidades rurais quedificultam a realização do gênero de discursoassociativista em que as ações de desenvolvimen-to comunitário dependem?

Este ensaio tenta esclarecer a natureza de prá-ticas comunicativas, ou seja, discursivas, em peque-nas comunidades rurais no interior do Piauí atravésde uma pesquisa feita no Município de Acauã. Es-pecificamente, trata-se aqui do uso de interrogativas(perguntas e respostas) como um dos meios de man-ter a sociabilidade em um contexto de produção in-dividualista de bens agropecuários, e no universo sim-bólico em que a inveja e a suspeição organizammuitas práticas sociais. Logo esta análise de práti-cas de interrogativas intra-comunitárias vai se mos-trar relevante para uma análise dos problemas decomunicação nos encontros entre a comunidade eos representantes do Estado.

Esta análise é fruto de uma pesquisa etnográficados Projetos Produtivos do Programa Fome Zero noEstado do Piauí. Em janeiro de 2003, o governo fe-deral de Luís Inácio Lula da Silva, junto com o go-verno estadual de José Wellington Barroso de Araú-jo Dias, lançou o Programa Fome Zero no Estadodo Piauí. Além das ações “emergenciais”, tais comoa distribuição de cestas básicas e programas deredistribuição de renda (ex.: Bolsa Família), e asações “estruturantes”, tais como reforma agrária ea compra direta de safras, o Fome Zero contém“ações locais” que visam atuar em povoados rurais,tomando a localidade como a unidade-alvo de de-senvolvimento.

Sob a administração do Governador WellingtonDias, o departamento da SEPLAN responsável pe-los investimentos do Banco Mundial, o Projeto de

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Combate à Pobreza Rural (PCPR) decidiu canali-zar verbas para a infra-estrutura e pequena produ-ção agropecuária de uma maneira que se desse pri-oridade aos municípios mais carentes. No ano 2003-04, quarenta (40) municípios foram contempladospara receber projetos produtivos, além de outros pro-jetos de infra-estrutura (cisternas, eletrificação, es-tradas, etc.). Sessenta e um (61) projetos produti-vos, incluindo os de apicultura, avicultura, caprino-ovinocultura, fruticultura, entre outros, foram implan-tados, beneficiando um total de 1.128 famílias comum gasto de R$1.649.472,10. Cada projeto tem umvalor entre R$15.000,00 e R$60.000,00, do qual 10%são usados para subsidiar a assistência técnica dadapelo Instituto de Assistência Técnica e ExtensãoRural (EMATER) estadual.

O Município de Acauã, sendo um piloto do Pro-grama Fome Zero, recebeu três projetos produtivoslogo no primeiro ano da administração do Governa-dor. As comunidades de Tanque de Cima eMafrense1 receberam projetos de criação de gali-nha caipira, e a comunidade de Angical de Cima re-cebeu um projeto de criação de caprinos e ovinos.

A seleção dessas comunidades para ser bene-ficiadas pelos projetos produtivos do Fome Zero foifeita pelo voto do Comitê Gestor de Acauã, um ór-gão composto por 2/3 da sociedade civil e 1/3 go-vernamental que foi criado para contemplar as açõesdo Fome Zero. A seleção do tipo de projeto que cadacomunidade receberia foi feita na assembléia de cadaassociação em um encontro com pessoal do PCPR,da Coordenadoria Estadual do Fome Zero, e doMinistério Extraordinário de SegurançaAlimentar.

Todos esses projetos visam o desenvolvimentode agricultura familiar auto-sustentável como umforte componente de segurança alimentar. A filoso-fia dos projetos é de usufruir de simples técnicasagropecuárias já conhecidas pelas populações-alvo,profissionalizando a forma em que os produtoresaplicam essas técnicas. Dessa forma o governo pre-tende valorizar a “cultura local”, aproveitando do seu

conhecimento, em vez de introduzir tecnologias deprodução que vêm de outros contextos produtivos.Isto inclui os seguintes objetivos: 1) a seleção de ra-ças de criatório e grãos de insumos de mais alta qua-lidade e produtividade; 2) o fornecimento de vacinase meios sanitários de criação; 3) a coletivização davenda no nível comunitário para livrar as comunida-des da exploração dos atravessadores, e 4) a socia-lização de conhecimento local sobre os mercadoslocais (e às vezes internacionais) para facilitar avenda de tais animais.

Portanto, um objetivo importante do governoatual – um objetivo explicado pela propaganda doPrograma Fome Zero – é que se estabeleça um di-álogo mais direto entre o Estado e essas comunida-des para que elas se empoderem 2 socialmente epoliticamente, além do fortalecimento econômico. Setiverem êxito, os projetos poderão se tornar um pre-cedente de uma chamada “empresa solidária” eco-nomicamente viável, o que seria uma conquista enor-me tanto do ponto de vista da eficiência de investi-mento público, como da eficácia de uma políticaautogestionária (veja GAIGER org., 2004;MOREIRA e COSTA orgs., 2002;CAMPANHOLA e SILVA orgs., 2000; SINGER eMACHADO, 1996).

O que segue não é uma avaliação da viabilida-de dos projetos produtivos em si, mas sim uma aná-lise de por que e como as práticas locais da falainterrogativa (questionamentos) têm se tornado umabarreira nas interações entre os representantes doEstado e as comunidades.

Além de conversas e observações cotidianas,o autor compareceu a várias reuniões das associa-ções em que representantes de diversos órgãos dogoverno estadual interagiram com os membros dascomunidades. Finalmente, um estudo específico foirealizado em que o autor visitou dez das outras co-munidades rurais em Acauã para preencher coleti-vamente um questionário sobre a história e as ativi-dades das associações de desenvolvimento rural.

1 - O autor morou três meses na comunidade de Tanque de Cima, dois meses em Mafrense e três meses na sede do Município deAcauã, Piauí.2 - Empoderar” é uma tradução da palavra inglesa “empower”, o que quer dizer dar poder a um sujeito que antes era excluído desistemas de poder econômico, governamental, controle sexual e outros.

ACAUÃ E O PROJETOPRODUTIVO DO FOME ZERO

O Município de Acauã fica no sudeste do Piauí,na microrregião do Alto Médio Canindé. Faz partedo famoso polígono semi-árido. O município tem5.147 habitantes, 4.472 dos quais residem na zonarural, espalhados através de 24 comunidades, cadauma tendo sua própria associação (IBGE, CENSODemográfico – 2000). A maioria dos que moram nazona rural tem entre dez (10) e cinqüenta (50) hec-tares de terra e vivem da agricultura familiar basea-da em milho e feijão. Segundo o mesmo Censo, nomunicípio, 1.511,58 hectares são destinados ao fei-jão, e 2.340,90 hectares ao milho.

A produção de algodão, mandioca e mel de canaainda existe, mas vem diminuindo cada vez mais, fatoque o povo atribui à dificuldade de competição co-mercial entre o açúcar e farinha fabricados fora domunicípio.A preparação de solos – classificados como“latossolos” e “pedregosos” – é feita de forma ma-nual, queimando a caatinga, e usando bichos de carga(cavalo, jumento, burro) para arar as terras. Técnicasde armazenamento tais como o feno e a silagem difi-cilmente se encontram em Acauã, e poucas pessoastêm a renda suficiente para alugar tratores, máquinasde forrageira e outros insumos caros.

A organização social desse trabalho é princi-palmente individualista, sendo a família imediata aunidade de produção e consumo, e não gruposinterfamiliares. O trabalho da roça é feito pelos ho-mens de uma família ou por diaristas pagos com tro-cas de serviço entre homens de famílias diferentessendo a curto prazo. Portanto, o sistema de produ-ção não se fundamenta em laços permanentes deapoio mútuo entre famílias. Segundo o relato dosprodutores, a venda da safra do milho e feijão é ra-ramente suficiente para custear as necessidadesbásicas da casa, tornando o povo dependente dasaposentadorias dos idosos e dos programas deredistribuição de renda do governo.

Rebanho de caprinos, ovinos, suínos, e galinhasse encontram entre os pequenos produtos e são cri-ados soltos nas roças ou nos terrenos ao lado dascasas, diminuindo a alimentação dos bichos e o con-trole de higiene. Segundo o Plano de Desenvolvi-

mento Rural Sustentável de Acauã (2001-2004), amaior renda de rebanho vem do gado de corte(R$1.634.000/ano em 2000), mas essa renda é con-centrada nas mãos dos grandes fazendeiros que pou-co representam a maioria dos habitantes de Acauã.A venda de ovinos (R$162.000,) a do caprino(R$32.000,) e a do suíno (R$31.000,) no ano 2000compunham a maior renda através do rebanho pelamaioria dos habitantes. A alimentação em si dos ani-mais consiste apenas em caatinga, milho e feijão (emais recentemente milho sorgo), o que não aprovei-ta de outras espécies de vegetação (lealcena,algaroba, etc.) que poderia melhorar a dieta de vita-minas dos animais.

Acauã era um município que produzia algodãoaté os anos oitenta, quando uma peste chamadabicudo e o fluxo do mercado internacionalinviabilizaram tanto a produção como a venda. Comoresultado Acauã perdeu sua feira no povoado, o quetornou impossível a venda direta de produtosagropecuários, levando os moradores do interior aser cada vez mais dependentes dos atravessadores.Hoje em dia, os habitantes de Acauã relatam que omunicípio se encontra numa fase de transformação,tornando-se mais importante a pecuária devido à in-trodução de capim-bufel depois da época do algo-dão. No entanto, ainda não existem dados publica-dos para averiguar esses relatos locais. O crescentenúmero de animais não tem resultado numa melhoriaproporcional para a maioria da população, sendo queos atravessadores que compram o criatório pagamaproximadamente metade do valor do que se ganhana revenda dos bichos em Paulistana e Jaicós.

Um Problema no EncontroQuando os representantes do governo foram

para as associações em julho de 2003, queriam queos próprios moradores selecionassem os projetos.Perguntaram sobre as formas de cultivo, de criaçãode bichos, e pediram às assembléias que revelas-sem os seus “sonhos”. Nas três comunidades(Mafrense, Tanque de Cima e Angical de Cima) asassembléias ficaram caladas. Os representantes ten-taram iniciar as conversas, usando humor e levezapara criar um clima em que os produtores se sentis-sem à vontade para conversar sobre as condições

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da localidade. No entanto, as horas se passaram eos representantes do governo tinham que sugerir aspróprias idéias. Portanto, em lugar de uma interaçãobaseada na auto-avaliação da comunidade, estaaprovava as idéias oferecidas pelo governo. Apesardas suas tentativas de estabelecer uma relação dediálogo igualitário com as comunidades, essas reuni-ões reproduziram a submissão do povo rural às idéi-as dos agentes urbanos do desenvolvimento.

Até Setembro de 2004, as três comunidadesde Acauã encontravam-se atrasadas no calendáriodo projeto, o que dá um prazo de um ano para cons-truir toda a infra-estrutura e completar o primeirociclo de reprodução. Agentes da SEPLAN,EMATER e outros órgãos governamentais continu-am se reunindo com as comunidades para identifi-car as raízes dessa demora na construção da infra-estrutura. Mas, nessas reuniões, continua a tendên-cia do silêncio. Quando os agentes do EMATER vãoàs associações para verificar a implementação dedeterminados passos do projeto, freqüentemente osparticipantes mostram reserva na resposta, o quecausa demora e complicações nos projetos.

Resumindo o problema, a pretensão do Gover-no atual de engajar os produtores de forma igualitária,solicitando as idéias deles para incluí-las na gerênciados projetos produtivos da SEPLAN e nas outras açõesdo Fome Zero nos encontros reais nas associações,não é obtida com facilidade, passa um pouco por umprocesso de indução dos representantes do governo.Diálogo racional baseado na análise coletiva de fatose aspirações locais é dificultado pela cultura do pe-queno produtor no semi-árido, uma cultura em que aspessoas não expõe com facilidade os fatos econômi-cos e sociais das suas localidades. Isso surge comouma das maiores barreiras tanto às investigações “ob-jetivas” de finalidade de políticas públicas bem comoà realização de auto-gestão coletiva.

Hierarquia e Solidariedade:Interrogativas na Zona Rural de AcauãA tentação analítica que se sugere nesta situa-

ção é de atribuir o silêncio do povo rural nas assem-bléias descritas a uma certa timidez, xenofobia, medode ser enganado por técnicos desconhecidos que seaparentam como “mais sabidos”, ou a preocupação

com um potencial envolvimento político que os re-presentantes “de fora” possam exigir. No entanto,as entrevistas conduzidas pelo autor revelam que asreuniões das associações de Acauã oscilam entresilêncio e briga mesmo na ausência de pessoas defora. Na medida em que isto seja verdade, exige-seuma análise da cultura comunicativa interna dascomunidades rurais. Na seguinte seção, o autor pro-cura fornecer uma leitura de tal cultura através deum estudo do uso, proibição e significância de per-guntas e respostas (interrogativas) no discurso coti-diano das comunidades rurais.

Quando pessoas de Acauã fazem perguntasentre eles usam muita delicadeza. Freqüentementeelas introduzem essas perguntas com a frase “mapergunta”, reconhecendo sua quebra de etiqueta, ebem atentas ao estilo de respostas além dos conteú-dos. Duração de resposta, contato de olho, tom devoz, linguagem corporal, gesticulação e outros tiposde prosódia são estudados pelo perguntador enquantoele ou ela determina como a resposta deve ser en-tendida e como se deve proceder. Dificilmente oacauense pergunta mais de uma questão seguida,tais como se formaria o que advogados chamam deuma “linha de interrogação”.

A lógica de aquisição de informação em Acauã,portanto, não é baseada na interrogação investigativa,mas sim na interpretação das interações humanasque envolvem apenas uma ou duas perguntas. Talinterpretação exige observação cautelosa e a capa-cidade de lembrar e descrever os detalhes notadospara reportá-los a um terceiro numa outra conversadepois. Como resultado, a informação viaja rápidonessas comunidades, mas é distribuída de formadesnivelada, sendo que as interpretações variem.

Para entender como o povo de Acauã trata deperguntas, dois aspectos devem ser estudados. Oprimeiro se relaciona à natureza da pergunta; o se-gundo, à relação social entre o perguntador e orespondente. No que diz respeito ao primeiro, asperguntas sobre coisas que não são de relevânciapessoal do respondente não são sujeitos de sanção.Provavelmente se pode perguntar a um comercian-te local “Você tem sardinhas em lata?” sem medode insulto, embora a questão da aceitabilidade deuma pergunta deve ser examinada em contexto. Por

exemplo, perguntando a um vizinho que horas elevai chegar da feira pode ser aceitável se já foi mar-cado algo com ele. Fazendo a mesma pergunta semter marcado nada, e se há fofoca que essa pessoatem uma amante que trabalha na feira, corre maisrisco de ser recebido como uma ofensa. Para serpreciso, as perguntas que correm o risco de quebraras normas sociais serão referidas como “perguntascarregadas”. Entende-se aqui como “pergunta car-regada” uma pergunta que coloca o respondente emrisco, exigindo que ele revele informação que possaprejudicar a si mesmo ou a uma outra pessoa.3

O segundo aspecto refere-se à relação socialentre o falante e o ouvinte. A estratificação socialde comunidades rurais em Acauã é organizada porvárias dimensões: gênero, idade, raça, riqueza, éticatrabalhista, conexões políticas, apelo sexual, etc.Porém, os princípios que guiam o uso de perguntascarregadas reduzem essas dimensões a uma hierar-quia simples em que uma pessoa trata da outra oucomo “mais alta” ou como “mais baixa” ou como deigual com respeito. Para entender como isso funcio-na, considera uma analogia lingüística, o uso clássi-co de pronomes pessoais nas línguas românicas.

As regras implícitas de perguntas em Acauãseguem o mesmo princípio que organiza o uso dife-rencial das formas pronominais “T” (Tu, Teu, Tua) e“V” (Você, Seu, Sua) que se encontram com poucavariação em todas as línguas românicas. Qualquerfalante competente da língua padrão4 sabe que asformas T são usadas para se dirigir aos iguais, ínti-mos, e subordinados, enquanto as formas V são usa-das para se dirigir aos superiores (íntimos ou não) eestrangeiros. Para saber a significância de uma ins-tância de uso de uma forma T ou V, é necessáriosaber como o ouvidor se dirige ao falante. Em umarelação clientelista, o patrão dá a forma T ao cliente,e o cliente dá a forma V ao patrão, o que indica queos dois reconhecem a assimetria da relação T-V.

Esta prática discursiva funciona como um microritualque codifica o status grupal diferenciando os parti-dos. Uma interação T-T codificaria uma relação entrepessoas que pertencem ao mesmo grupo social. Issonão implica amizade entre os dois sujeitos, mas, apenaso potencial de uma certa solidariedade que relaçãode T-V não tem. Considera agora uma interação V-V em que os dois partidos usam a forma respeitosa.Parece uma contradição, pois o uso da forma Vindica que o ouvidor tem um status mais alto, mas seos dois usam esta forma, eles estão jogando paraver quem pode abaixar mais a cabeça. A interaçãoV-V implica, portanto, que os dois partidos estãoempurrando o outro para “cima” e para “fora” dogrupo social do falante. A interação comum entreadultos desconhecidos é a distância respeitosa.

Quando se trata de perguntas carregadas emAcauã, o ato de perguntar é análogo de se dirigircom a forma T, e o ato de se abster de perguntar ésemelhante ao de se dirigir com a forma V. Portan-to, são os mais poderosos que têm o direito de per-guntar aos mais fracos e estes têm a responsabilida-de de responder às perguntas dadas a eles. Isso nãosignifica que hierarquia pode ser mapeada em pe-quenas comunidades através da observação do usode perguntas. Quer dizer que se pode examinar comoas pessoas nessas comunidades representam o statusrelativo dos seus próximos. Mostra mais a normaideal do que a verdade da suas experiências.

Adultos normalmente optam para não fazer per-guntas carregadas a seus próximos. Homens adul-tos e casados quase nunca fazem perguntas um aooutro, especialmente não em espaços comuns.Mulheres adultas tendem a não perguntar aos ho-mens adultos, bem como à maioria das mulheresadultas, mas elas têm um círculo de amigas em quealgumas perguntas são mais permitidas. Normalmen-te essas perguntas acontecem no espaço domésti-co, onde a dona de casa (num instante de superiori-

3 - Aqui se usa o termo “pergunta carregada”em vez de termos mais coloquiais (por exemplo: “pergunta indiscreta”ou “pergunta co msegundas intenções”) para o distinguir como um conceito analítico, aplicado pelo autor e não de uso comum pelos membros dascomunidades aqui estudadas.4 - No português do Nordeste, a distinção clássica entre as formas pronominais T e V não se aplica de acordo com o padrão descr itoacima. As formas T e V são intercambiáveis, sendo as duas formas íntimas (T) em contraste a mais respeitosa forma “o senhor/a s enhora”.Por tanto, essa analogia entre interrogação e os pronomes não implica que falantes de Acauã sigam o padrão.

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dade hierárquica definida pelo local da interação) setorna a perguntadora. Em casa, o homem tem direi-to de perguntar o que quiser a todos os membros dafamília. A mulher faz perguntas ao marido, mas nor-malmente espera até os dois se encontrarem.

Essa forma de sociabilidade é especialmenteproeminente em espaços comuns (estradas, nas ro-ças, terrenos ligando domicílios, etc.) onde homense mulheres se tornam representantes do grupo do-méstico, e portanto são tratados com distância res-peitosa. No outro lado, dentro do grupo doméstico,diferenças de idade e gênero organizam pessoas emrelações hierárquicas (T-V) e relações entre íntimasiguais (T-T). Aqui deve ser salientado que a varia-ção no uso de interrogativos entre homens e mulhe-res é muito mais complexo do que se pode tratarneste ensaio, e que uma análise mais profunda dediscurso local e participação na associação teria quelevar em conta essas variações.

Quando questionados por que não fazer pergun-tas carregadas ou por que usam expressões como“mal-pergunte”, acauenses respondem dizendo quenão desejam que a pessoa creia que o perguntadoresteja tentando qualquer espécie de ganho pessoal.Pode-se observar essa atitude na educação das cri-anças, que são disciplinadas quando elas perguntamaos adultos. “Pára de procurar, menino!”, o pai dizcastigando o filho. O uso do verbo “procurar” em vezde “perguntar” ou “questionar” implica que a criançafez um ato investigatório com a intenção de acharalguma coisa. O termo sugere que o questionadorsujeita o interrogado a fins não-revelados.

A noção de “ganho pessoal” não é precisa. Nãoimplica que aquele que perguntou deseje adquirirum bem material da outra pessoa. Mas há um medogeral que os “perguntadores” nunca “deixamtransparecer as suas intenções” porque qualquerganho – mesmo se for apenas informação – inevita-velmente vem ao custo de quem reponde à pergun-ta. Pois do mesmo jeito que o indagador presta aten-ção ao estilo da resposta para interpretar a mesma,quem respondeu precisa interpretar a pergunta paraadivinhar as “segundas intenções” do perguntador.

Muitas vezes, a pergunta é a fonte de ganhopessoal através de um truque. Em um caso reporta-do, um homem chegou a um vizinho perguntando

sobre a saúde da filha que tinha parido há poucotempo. Quando o vizinho respondeu que ela estavabem, o homem manifestou alívio e começou a des-crever o caso lamentável da doença da filha dele.Ele terminou a história com um pedido de emprésti-mo para comprar o combustível e levar a menina aohospital. O vizinho deu o empréstimo, o qual nuncafoi pago. Dessa maneira, o vizinho foi preso. Já queele tinha aceitado o inquérito do homem – expondoum detalhe íntimo da vida familiar – ele implicita-mente deixou surgir um momento de solidariedadeentre os dois. Isso deu ao perguntador a oportunida-de para solicitar o empréstimo. Se ele não tivessedado o empréstimo, ele estaria correndo o risco deofender aquele que pediu por ter desfeito de formadrástica a solidariedade que acabou de criar.

A imagem do mundo social dos acauenses épintada pelas regras de interrogação. É um mundoem que os indivíduos têm agendas, motivos, e casosescondidos que não deixam transparecer aos outrosna prática comunicativa cotidiana. É um mundo emque pessoas são suspeitas e suspeitosas deenganação. Estas regras de interrogação manifes-tam o que o antropólogo George Foster chamou daideologia do limited good (bem limitado), na sua te-oria de sociedades camponesas. Quando osacauenses fazem e respondem a perguntas, elesestão jogando como concorrentes em um jogo emque “tudo que é bom... (existe em) quantidadesfinitas... e está em curta provisão” (FOSTER, 1965).Portanto, a norma é uma pessoa nem se revelar enem solicitar a revelação do seu próximo. Comoconseqüência, acauenses rurais constroem comuni-dades compostas por indivíduos e unidades de famí-lias que são ligados por laços de distância respeitosae não de intimidade interpessoal.

São essas regras locais do uso de perguntas,junto às ansiedades concomitantes sobre enganação,que faz com que a fala nas assembléias das associ-ações seja uma aventura arriscada. Quando pergun-tado se gostava mais das reuniões assistidas porpessoas de fora, um sócio respondeu:

Sim. A gente não sabe fazer reuniões. O presidente tentaperguntar alguma coisa e ninguém abre a boca porquenão sabe o que dizer. Se alguém tenta falar alguma coisa,só acaba em briga pessoal.

Em determinada ocasião, a deliberação sobreo local de uma placa indicando uma obra governa-mental criou uma briga quando a sugestão de umhomem foi respondida por um outro que o acusou:“Tu só quer que ela fique perto da sua casa para segabar ao pessoal do governo”.

A associação, como uma instituição moderna,se fundamenta nas formas liberais de interaçãodiscursiva, tais como as noções de debate e delibe-ração franca, exploratória, racional e separável dosinteresses pessoais e o status social dos falantes. Oideal liberal pressupõe a existência de um bem-estarcoletivo como a precondição de um discurso “públi-co”, mas nessas comunidades, os bens são divididose não compartilhados. A noção de interesse comuni-tário existe como um ideal. Pessoas falam “aqui so-mos todos duma família só. Somos unidos”. Mas éapenas num contexto em que os moradores de umalocalidade concorrem para recursos com os de umaoutra localidade que esse interesse comunitário as-sume uma existência definitiva. Dentro da localida-de, a idéia de que a “comunidade” existe acima dosinteresses dos indivíduos é precária. Em qualquermomento, debates sobre o bem-estar da comunida-de caem em argumentos sobre quem quer o que epor qual motivo.

ASSOCIAÇÕES COMUNITÁRIAS ERELAÇÕES COM O ESTADO

Além da fragilidade das próprias associaçõescomunitárias, as dificuldades que os representantesdo governo passam quando lidam com tais associa-ções decorrem de uma tradição de exploração entreo Estado e as comunidades.

A forma de contato mais direta e mais íntimaentre os habitantes da zona rural e o Estado temsido a interação com figuras políticas. A relação his-tórica entre as pessoas rurais e esses políticos secaracteriza por enganação, decepção e dependên-cia de algum favor pessoal. Essa enganação é reali-zada através de uma interação interrogativa entre opoderoso perguntador e o mais fraco respondente.Membros das comunidades reclamam dizendo, “agente só tem valor na época da política” ou “só na

época da campanha, não tem estrada ruim”. Duran-te a “época da política” os ricos, ambiciosos e ospoderosos saem das suas casas confortáveis e ele-trificadas e vão à zona rural trocar promessas porvotos. Tradicionalmente, o político pergunta ao che-fe da família o que está acontecendo na sua vida eno que o político pode ajudar, como favor pessoal. Ochefe da família responde, e um negócio é feito. Emtroca dos votos da família, o candidato oferece coi-sas, tais como: um emprego na Prefeitura (ou Esta-do), um barreiro na propriedade do dono, uma bolade arame, ou pagamento da validação de veículos.No entanto, na maioria das vezes os políticos nãofazem sua parte, mesmo sendo eleitos (às vezes afamília não faz sua parte e vota em um outro candi-dato). “Eles só têm promessa”, reclama o povo.

Portanto, o sistema social descrito tem umacerta ironia: os camponeses aceitam mais as per-guntas que vêm das pessoas mais prováveis aenganá-las. Isso se explica considerando dois fatos:1) a promessa envolvendo os chefes de família epolíticos, sendo normalmente feita com privacidade,o que minimiza o risco dos vizinhos aprenderem osdetalhes pessoais, e 2) os políticos nem sempre ne-gam de honrar as suas promessas – especialmentequando eles ganham – o que torna a divulgação detais detalhes um meio importante para melhores con-dições de vida e status social dos pequenos produto-res. No entanto, a experiência dos representantesdo governo evidencia que esses fatos nem semprefornecem o incentivo necessário para os membrosdas comunidades responderem às perguntas.

Por mais que o povo de Acauã saiba a diferen-ça entre políticos locais e representantes do gover-no estadual e federal, ele trata dos dois como sepertencessem à mesma categoria social: estrangei-ro sabido, potencialmente prestativo, mas poten-cialmente explorador. Diferente das sessões se-cretas com os políticos, o cenário aberto da assem-bléia da associação ameaça expor o auto-interesseatrás de qualquer comentário feito com esses repre-sentantes. Ademais, esses representantes são sus-peitos de ter motivos escondidos quando procuramsaber as dificuldades que as associações encontramna implementação de projetos, nesse caso os Proje-tos Produtivos do Fome Zero. A suspeita mais co-

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mum é que esses representantes legais realmentequerem identificar as comunidades cujas associa-ções são as mais (e menos) unidas para que elespossam canalizar futuros projetos apenas às locali-dades onde têm a maior probabilidade de sucesso.

Na pesquisa sobre as reuniões da implementaçãodo projeto produtivo, a pergunta que provocava maissilêncio era – Quais são as dificuldades que vocêstêm com o Projeto? Considerando os tipos de dificul-dade que as comunidades realmente enfrentam, a es-colha de se manter silencioso parece lógica. Essas difi-culdades incluem: 1) falta de motivação de construir ainfra-estrutura (ex.: galinheiros) o que decorre da faltade fé que o governo dará as verbas prometidas; 2) umadisputa paralisadora dentro da associação sobre quemvai ceder a terra privada para construir um edifíco daassociação (ex.: a chamada “Central Administrativode Produção”); 3) o desfalque de verbas do projetopelo presidente ou tesoureiro que impossibilita a com-pra de qualquer item; 4) o agente do EMATER res-ponsável pela assistência técnica e acompanhamentodo projeto não está cumprindo efetivamente seu papel.No entanto, a primeira pessoa da comunidade que re-vela uma dificuldade dessa se torna o inimigo do sócioimplicado. Qualquer um que concorra uma disputa in-terna está entregando um segredo: “nossa comuni-dade não é unida”. Qualquer um que implica com oagente do EMATER (ou de qualquer outro órgão) porachar que não está fazendo bem o trabalho corre orisco – ou pensa que corre o risco – de dificultar aviabilidade de projetos para a comunidade como umtodo. É por isso que, fora da análise de discurso intra-comunitário, esses encontros com pessoas de fora sãorepletos de apreensões.

Portanto, acauenses encaram um paradoxo.Representantes do governo têm “o direito” de per-guntar à comunidade e esta tem a obrigação deresponder. Os representantes e a assembléia assu-mem uma relação hierárquica (T-V). Isso leva aum momento de solidariedade igualitária entre ossócios na assembléia (T-T). São todas partes domesmo grupo que responde e que se sente amea-çado. A primeira solução é para se manter calado,mas se ninguém fala, o grupo não está cumprindocom sua obrigação de responder. A segunda solu-ção: desvio de assunto.

Em lugar de silêncio ou de expor seu próximo(ou o agente do EMATER), os sócios empregamqualquer tática retórica que possuem para desviar oinquérito. O jeito mais fácil para responder é lou-vando o Projeto Produtivo e as pessoas que oimplementam, mas eles têm outros meios também.Por exemplo, o respondente de uma associação fa-lou que:

agente demorou para construir os galinheiros porquetinha que ir para roça depois da chuva. Mas confiandoem Deus, vamos enfrentar esse serviço para o bem dacomunidade.

Nota-se o uso de três táticas retóricas. Primei-ro, a demora na construção dos galinheiros éexplicada como um resultado de circunstâncias ex-ternas que forçaram os sócios ir às roças. Aqui, ofalante estabelece que os membros da comunidadesão trabalhadores bons. Depois o falante evocaDeus numa frase que implica que a construção dosgalinheiros deve acontecer porque é a vontade deDeus, denotando também uma dimensão espiritual àprimeira circunstância citada: a chuva se torna von-tade de Deus. Finalmente, depois de ter prometidofazer os galinheiros (enfrentar esse serviço) o fa-lante ventríloqua a própria linguagem deassociativismo (para o bem da comunidade) que eletem ouvido das bocas dos representantes do gover-no Wellington Dias. Assim, o falante cria a impres-são que todos os problemas são inevitáveis e nãotêm nada a ver com fatores internos da comunida-de, que o Projeto Produtivo seja perfeito e que asintervenções dos oficiais do governo sejam bem re-cebidas. Os representantes do governo não são en-ganados, mas há muito pouco a fazer, a não ser cha-mar o falante de mentiroso, que consegue fechar ocaminho a outras perguntas, mesmo tratando os re-presentantes de forma respeitosa.

CONCLUSÃO

O Programa Fome Zero faz parte de um movi-mento desta década que quer enfatizar o desenvol-vimento, fazendo com que o programa desenvolvameios produtivos de grande capital nos pequenos

produtores. Junto a esse desejo vêm os ideais deempoderamento político do pequeno produtor e avalorização da sua cultura local. Não obstante a no-breza destes objetivos, cabe aos analistas estudar oscontextos em que eles se tornam contraditórios. Oassociativismo no sertão piauiense está longe aindado ideal desejado pelo governo atual e movimentospopulares, pois a própria cultura do produtor – aquianalisada em termos de práticas de pergunta – sefundamenta em respeito mútuo entre unidades fa-miliares, o que não se pode confundir com a solida-riedade. Práticas discursivas refletem e reprodu-zem relações de distância respeitosa, formando umasociologia intrinsecamente ligada ao sistema indivi-dualista de produção econômica.

Portanto, é errado o argumento popular o qualdiz que, nas localidades rurais do semi-árido brasilei-ro, já existem as relações de parentesco, residência eamizades necessárias para implementar projetos deautogestão coletiva (veja Pedrini, Prim e Santos emGaiger 2004). Tais análises negam a forma de que osistema de dominação política, clientelismo, alimenta-se na cultura do individualismo. Clientelismo se fun-damenta em relações particulares de troca política,deixando de lado identidades coletivas (a comunida-de) associadas à democracia universalista. Portanto,não se deve confundir políticas de fortalecimento deassociativismo e empoderamento político com a valo-rização de cultura local. O associativismo se contra-põe com a cultura do sertão piauiense, oferecendoum outro jeito de conceber relações econômicas epessoais nas localidades do interior.

Em janeiro de 2005, o Programa Fome Zerocomeçou uma série de ações de “associativismo ecooperativismo” visando o fortalecimento deautogestão, o que incorpora ideais liberais de trans-parência e discurso público além de ideais. De certaforma, o Programa está reconhecendo que a não-realização da associação, como um gênero de dis-curso público, é um problema-chave que impede osucesso de ações de desenvolvimento baseadas naautogestão local. O Programa Fome Zero deveriacontinuar nesse sentido e deveria também ir alémde uma pedagogia focalizada na “transparência econtabilidade”. Para estimular um gênero discursivode debate racional que contemple o bem-estar co-

munitário, pressupõe que os pequenos produtores dosemi-árido abrangem um modelo de comunicaçãocompletamente contraditório do discurso cotidianoque eles usam para orientar o próprio comportamentonum universo social de tensões entre as unidadesfamiliares. Portanto, a pedagogia de associativismodeveria tratar explicitamente as resistências cultu-rais locais que dificultam a realização doassociativismo e o sonho de desenvolvimento sus-tentável baseado nos ideais de associativismo.

REFERÊNCIAS

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