do cotidiano ao absurdo: um flanar por são paulo
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A construção imagética de realidades se dá dos mais variados modos: através do cinema, de fotografias presentes na mídia impressa ou compartilhadas em redes sociais, da transmissão de jornais televisivos, etc. Aqui, o foco vem sendo o da produção de realidades através da fotografia. Esta pesquisa propõe a produção de um ensaio fotográfico com a intenção de questionar as imagens criadas por nossa sociedade e que acabam por cristalizar a nossa realidade. O que se vem buscando fazer é justamente desconstruir o significado que se atribui a situações cotidianas, e isto se dará por meio da reflexão acerca do processo de produção do ensaio fotográfico, bem como de sua análise. Essa desconstrução pretende deixar claro que o cotidiano em que vivemos é extraordinário e pode ser encarado como estranhado – mas que nossa naturalização o faz parecer banal. A maior inspiração para a realização deste trabalho é de cunho surrealista. Com seu grande esforço na direção de questionar a “razão” ocidental – e mais especificamente europeia – no período entre-guerras, bem como sua empreitada no sentido de tornar o familiar algo estranho (refiro-me aqui a CLIFFORD, 1998), os surrealistas são de grande valia metodológica para a elaboração desta pesquisa. O ensaio fotográfico, por seu interesse no cotidiano, seguirá um pouco o que Walter Benjamin (1987) fez em Rua de mão única; ou seja, ao flanar pela cidade, venho procurando mostrar o extraordinário onde o comum aparece de maneira muito acentuada. O presente relatório atualiza as atividades elaboradas no período que vai de 01/01/2015 até 10/06/2015. Tais atividades consistem, resumidamente, na leitura da bibliografia indicada no projeto original, bem como sua análise e incorporação à metodologia aplicada na pesquisa de campo, a saber, na execução dos ensaios fotográficos. Outro resultado parcial se manifesta na forma de um primeiro ensaio fotográfico, que buscou trazer o debate teórico-metodológico para a linguagem imagética.TRANSCRIPT
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Do cotidiano ao absurdo: um flanar por São Paulo
Relatório Científico final (10/06/2015 – 10/01/2016)
Bolsista: Gabriel Loureiro Magalhães Restiffe
Orientação: Sylvia Caiuby Novaes
Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas – Departamento de Antropologia
Processo 2014/21299-7 – 01/01/2015 – 31/12/2015
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1) Resumo
A construção imagética de realidades se dá dos mais variados modos: através do
cinema, de fotografias presentes na mídia impressa ou compartilhadas em redes sociais,
da transmissão de jornais televisivos, etc. Aqui, o foco foi o da produção de realidades
através da fotografia. Esta pesquisa realizou a produção de um ensaio fotográfico com a
intenção de questionar as imagens criadas por nossa sociedade e que acabam por
cristalizar a nossa realidade. O que se buscou fazer foi justamente desconstruir o
significado que se atribui a situações cotidianas, e isto se deu por meio da reflexão
acerca do processo de produção do ensaio fotográfico, bem como de sua análise. Essa
desconstrução pretende deixar claro que o cotidiano em que vivemos é extraordinário e
pode ser encarado como estranhado – mas que nossa naturalização o faz parecer banal.
A maior inspiração para a realização deste trabalho é de cunho surrealista. Com seu
grande esforço na direção de questionar a “razão” ocidental – e mais especificamente
europeia – no período entre-guerras, bem como sua empreitada no sentido de tornar o
familiar algo estranho (refiro-me aqui a CLIFFORD, 1998), os surrealistas são de
grande valia metodológica para a elaboração desta pesquisa. O ensaio fotográfico, por
seu interesse no cotidiano, seguiu um pouco a metodologia adotada por Walter
Benjamin (1987) em Rua de mão única; a saber, o flanar pela cidade. Com isso,
procurei mostrar o extraordinário onde o comum aparece de maneira muito acentuada.
O presente relatório atualiza as atividades elaboradas no período que vai de 10/06/2015
até 10/01/2016. Tais atividades consistem, resumidamente, na leitura da bibliografia
indicada no relatório parcial, bem como sua análise e incorporação à metodologia
aplicada na pesquisa de campo, a saber, na produção dos ensaios fotográficos. Este
relatório encerra um ciclo de dois anos de pesquisa acerca do presente tema, sendo o
primeiro ano de pesquisa financiado pelo CNPq. Este encerramento fez com que se
mostrasse necessária uma sistematização (mesmo que sintética) destes dois anos de
pesquisa, que se fará presente neste relatório.
Palavras-chave:
Antropologia visual; antropologia urbana; fotografia; surrealismo; flanar
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2) Realizações no período
Um convite ao leitor
Faço ao leitor a seguinte proposta, que pode ou não ser aceita: inicie a leitura
destes escritos justamente por outro tipo de grafia que não a alfabética. Caso o convite
tenha sido aceito, peço ao leitor que se dirija à página 15, onde reside o ensaio
fotográfico. Feito isto, o leitor deve voltar a este ponto e continuar a leitura deste
relatório como qualquer outro texto. Caso a resposta tenha sido negativa, simplesmente
desconsidere este pequeno parêntese e siga a leitura do texto a partir deste ponto.
Introdução
O presente relatório encerra um ciclo pessoal de dois anos de Iniciação
Científica, no qual pesquisei o tema da construção imagética do real, bem como sua
naturalização por parte do público que diariamente consome este tipo de imagem. O
primeiro ano de pesquisa se deu entre agosto de 2013 e julho de 2014, com bolsa
concedida pelo CNPq. A atual pesquisa teve seu início em janeiro de 2015 e seu fim em
dezembro do mesmo ano. Creio ser importante ressaltar que a última não seria viável
sem a existência da primeira, e isto criou um cenário no qual a retomada do que se
pesquisou entre 2013 e 2014 se faça imperativa para o fechamento deste ciclo de
pesquisa. Mesmo que sintética, esta sistematização pretende melhor situar o leitor nos
principais eixos que nortearam minha pesquisa e que serviram de base para o que
atualmente foca minhas atenções. Depois desta breve contextualização, a discussão
passará a ser feita acerca da atual pesquisa e, mais detidamente, nos resultados do
segundo semestre de 2015. Ao final deste item (2) do relatório, situa-se o ensaio
fotográfico final, produzido ao longo destes últimos anos de pesquisa, bem como
algumas considerações pessoais acerca de temas que buscaram ser tratados
imageticamente no decorrer das saídas a campo e da produção do ensaio fotográfico.
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Imagens em (des)construção: observação Sur-realista
Este foi o título da pesquisa realizada de 2013 a 2014, da qual trataremos agora.
O referido primeiro ano de pesquisa se norteou a partir de alguns eixos, a saber, o
estranhamento do cotidiano; o surrealismo; a noção de etnografia de nós mesmos; e, por
fim, a construção imagética do real. Durante a sua realização, contudo, foi possível
perceber que eles acabavam por se inter-relacionar. Deste modo, alguns destes temas
foram privilegiados no primeiro ano de pesquisa, de modo que outros foram abordados
apenas nas entrelinhas do debate geral. Farei algumas breves considerações acerca de
cada um destes eixos, exceto o da noção de etnografia de nós mesmos, dado que este
tema não foi abordado na pesquisa atual.
A construção imagética do real
Sobre este tema, pode-se dizer que foi tratado mais superficialmente no primeiro
ano de pesquisa, de modo que uma das propostas para a atual pesquisa foi o
aprofundamento nesta discussão. A construção imagética de realidades foi dada como
um pressuposto, um ponto de partida para a pesquisa inicial, e senti que seria
interessante explicitar com uma profundidade maior a maneira através da qual isto se dá
em nossa sociedade. Isto foi realizado em parte no relatório parcial e será retomado
adiante. Contudo, vale a pena ressaltar que no primeiro ano de pesquisa foi o texto de
Sylvia Caiuby Novaes (2009), intitulado Entre a harmonia e a tensão: as relações entre
Antropologia e imagem, que serviu como base para a breve discussão que fiz acerca do
tema. Nele, percebemos que o cinema – bem como a fotografia – possui função
(re)construtiva do real. Desse modo, ambas as formas expressivas constituem “imagens
que nos penetram em várias dimensões e que alteram o nosso modo de ser e de perceber
a realidade em que nos encontramos” (CAIUBY NOVAES, 2009: 18). Este ponto foi
retomado e atualizado no relatório passado, utilizando como exemplo a fotografia
publicitária da Benetton dos anos 1990, produzidas por Oliviero Toscani, conforme
discutido no texto de Mauricius Martins Farina (2000).
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O estranhamento do cotidiano e o Surrealismo
Estes dois eixos foram abordados de maneira entrelaçada no primeiro ano de
pesquisa, de modo que busquei ressaltar como a vanguarda modernista parisiense
conseguia produzir o que chamei de “efeito de estranhamento”. Vejamos como isso se
deu. Sobre o surrealismo, dois textos foram cruciais para discussão, um livro de Fiona
Bradley (1999), e um texto de James Clifford (1998). Neles, foi resgatado o contexto de
surgimento desta vanguarda modernista, a saber, as novas proporções que tomaram as
forças destrutivas da guerra, sintetizadas na Primeira Guerra Mundial. A descrença com
a qual os futuros integrantes do Surrealismo viam o mundo serviu de inspiração política
e artística para que Breton e seu seleto clube de amigos fundassem a vanguarda.
Ressaltei, naquele momento, que um dos métodos surrealistas mais eficientes e
interessantes, na minha opinião, eram os que chocavam os espectadores. Para além de
tentar romper com qualquer coisa que se vinculasse à suposta racionalidade ocidental
que culminou no primeiro conflito militar generalizado de nossa história, essa ruptura se
fazia com o choque. Choque este que tinha como função fazer com que o observador
parasse e pensasse a respeito de temas e situações que poderiam ser caracterizadas como
banais, rotineiras ou cotidianas, mas que eram tratadas por eles de maneiras exagerada
ou mesmo grotesca. Assim, ao extrapolar os limites do tolerável em algo que se via
como ordinário, criava-se o espaço de reflexão para o (extra)ordinário no que antes era
tido como naturalizado.
É precisamente neste ponto que reside a possibilidade de intercambio desta
vanguarda com o que caracterizei por “estranhamento do cotidiano”. Utilizei textos de
Walter Benjamin (2012a; 2012b), bem como livros de Franz Kafka (2011; 2013). No
caso benjaminiano, a ênfase foi dada em análises que o autor faz do próprio surrealismo,
bem como da maneira como Benjamin entende a fragmentação do sentido com o qual o
mundo ocidental se depara no período do entre-guerras. Os escritos de Kafka, por outro
lado, foram pensados como manifestações artísticas que não eram vinculadas ao
Surrealismo propriamente dito, mas que produziam um efeito semelhante ao de uma
obra surrealista, a saber, um estranhamento do que antes se via com naturalidade. Para a
presente pesquisa, me propus à reflexão sobre até que ponto é exclusivamente
surrealista o “efeito de estranhamento”, o que me instigou a buscar em outras
manifestações artísticas características semelhantes. Isto será retomado adiante.
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Creio, com isto, ter sintetizado o que se buscou no primeiro ano de pesquisa,
bem como os desdobramentos que a própria pesquisa sofreu, de modo a me instigar a
continuar pesquisando, de maneira mais detida e aprofundada, o mesmo tema.
Do cotidiano ao absurdo: um flanar por São Paulo
O Relatório Parcial contou com a reflexão mais detida acerca do tema da
construção imagética do real, especificamente tratando do exemplo da Benetton. Outro
exemplo desta construção se deu através do diálogo entre os escritos de José de Souza
Martins (2008) e Roland Barthes. Sinteticamente, levou-se em consideração aspectos
subjetivos da fotografia, como exemplificados pelo punctum e a conotação de imagens;
mas também foram dados exemplos práticos, como as fotografias de Oliviero Toscani
para a Benetton e, em um exemplo mais recente, da apropriação de uma fotografia já
tornada clássica pelos meios de comunicação, a saber, a imagem na qual há dois
soldados americanos nos cantos esquerdo e direito da foto, com um indivíduo que
carrega o estereótipo do “árabe”. A veiculação desta foto foi múltipla, cada uma
passando uma mensagem distinta (e até mesmo oposta) para uma mesma imagem. Isto
serviu como exemplo de construção de realidades a partir de fotografias tanto no
processo de sua produção, como também na pós-produção, evidenciando a volatilidade
que uma imagem possui em todos os momentos de sua existência (e mesmo anteriores a
ela), podendo se metamorfosear com enorme facilidade.
Com isto, gostaria de ressaltar as considerações que encerram este ciclo de
pesquisa e que contribuíram para a elaboração do ensaio fotográfico – tanto em termos
teórico-metodológicos quanto práticos – ao longo dos últimos dois anos.
Novos impulsos à reflexão
Complementando a conclusão por nós oferecida no Relatório Parcial, o texto
Construção e desmontagem do signo fotográfico de Boris Kossoy (1999) tem muito a
oferecer. Nas palavras do autor,
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Desde seu surgimento e ao longo de sua trajetória, até os nossos dias, a fotografia
tem sido aceita e utilizada como prova definitiva, “testemunho da verdade” do fato
ou dos fatos. Graças a sua natureza físico-química – e hoje eletrônica – de registrar
aspectos (selecionados) do real, tal como esses de fato se parecem, a fotografia
ganhou elevado status de credibilidade (KOSSOY, 1999: 19).
É nisto que reside, para o autor, a autoridade que as imagens possuem para se mostrar e
veicular como realidades absolutas, o que possibilita sua divulgação com base nos
interesses ideológicos, bem como a manipulação da formação de opinião. Menos do que
realidades absolutas, a fotografia contém em si uma realidade própria, uma espécie de
“segunda realidade, construída, codificada” (idem, p. 22).
Para aprofundar o tema da construção imagética de realidades, o panorama
histórico traçado por Philippe Dubois (1992) se mostra importantíssimo, na medida em
que situa o debate na questão de como a fotografia é pensada por fotógrafos e
especialistas no tema.
Como em Kossoy, o ponto de partida é o mesmo, de modo que a primeira etapa
do panorama traçado por Dubois é considerar a fotografia como “espelho do real”. A
etapa seguinte tratará a fotografia como “transformação do real”, para finalmente
classificar a fotografia como “vestígio de um real” nos dias de hoje. Vale ressaltar que
este panorama é o reflexo das opiniões de críticos e teóricos do tema, o que não
significa que o debate tenha sido totalmente popularizado e absorvido pela população
como um todo. Por se tratar de um capítulo extenso e que não nos interessa aqui
diretamente, vou sintetizar alguns pontos que se mostram importantes para a discussão
atual. Se, na primeira etapa, temos a fotografia como um analogon/espelho do real, a
segunda etapa rompe com esta noção, afirmando que se a fotografia é um espelho, este
não é plano e portanto é passível de distorção. A segunda etapa visa ressaltar o caráter
construído das imagens, assim, esta construção pode ser ideológica e não pode ser
considerada como o real em si, mas um “efeito do real”. A última etapa, por fim,
reconhece a importância da ruptura realizada pela noção de construção que residem nas
imagens, mas ressalta que talvez ela tenha ido longe de mais, de modo que deixou de
considerar o sentimento de realidade que a fotografia transmite.
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Outro levantamento proposto para esta pesquisa foi entender até que ponto é
exclusividade do próprio surrealismo a noção do que chamei de “efeito de
estranhamento”. A análise tanto de A metamorfose quanto de O processo de Kafka
despertaram uma curiosidade que impulsionaram a reflexão tanto para uma ampliação
do conceito, no sentido de atribuir a ele mais do que apenas o surrealismo, quanto para
sua precisão, no que diz respeito a definir bem o que se quer expressar pelo “efeito”
deste estranhamento. Günther Anders em seu Kafka: pró e contra (2007) reforça o que
já havia percebido no Surrealismo, mas que se mostrou não ser exclusivo deste
movimento artístico. Nas palavras do autor,
Em Kafka, o inquietante não são os objetos nem as ocorrências como tais, mas o
fato de que seus personagens reagem a eles descontraidamente, como se estivessem
diante de objetos e acontecimentos normais. Não é a circunstância de Gregor Samsa
acordar de manhã transformado em inseto, mas o fato de não ver nada de
surpreendente nisso – a trivialidade do grotesco – que torna a leitura aterrorizante
(ANDERS, 2007: 20).
Kafka assumidamente tem como proposta fazer com que seu leitor sinta-se “mareado
em terra firme” (CARONE, 2013: 328), e, afinal, o que faz é exatamente isso tanto nas
linhas iniciais de A metamorfose quanto nas de O processo. “Quando certa manhã
Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama
metamorfoseado num inseto monstruoso” (KAFKA, 2011: 227). “Alguém certamente
havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”
(KAFKA, 2013: 9). Ambos os livros começam, se desenrolam e terminam com eventos
absurdos, o inquietante, contudo, é a forma como a história é narrada, que faz com que o
absurdo possa ser visto como algo completamente possível. Creio ser a isso que se
refere Anders. E é precisamente este tipo de efeito que os surrealistas, à sua própria
maneira, causam em suas obras. Por mais que os métodos sejam variados, o efeito de
gerar novos impulsos à reflexão acerca da própria (ir)realidade das coisas é o que
tangencia a todas estas facetas.
Mas não foi apenas em Kafka que encontrei esta alternativa ao Surrealismo.
Artistas mais contemporâneos também se mostraram importantes nesse sentido. Refiro-
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me inclusive a David Lynch, em seu filme intitulado Eraserhead, no qual o desconforto
criado pelo cineasta é constante, por criar situações em que o que se observa é absurdo,
mas que como em Kafka, a reação do protagonista é de naturalidade para com o
grotesco. Um exemplo é a cena extremamente perturbadora, na qual o filho do
protagonista é uma espécie de feto enrolado em gazes e esparadrapos, seu rosto é
constituído de uma boca distorcida, sem a forma humana do nariz e dois olhos. Sabe-se
que é um bebê pelo choro incessante de criança, que se une em uma cacofonia ainda
mais perturbadora com os ruídos que permeiam todo o filme. A ambientação escura e
pouco definida auxilia a produzir tensão e desconforto que são marcas constantes do
primeiro ao último instante do filme. Sua narrativa é desenrolada de maneira bastante
abstrata e, diria, onírica. Mesmo com fortes diálogos com o surrealismo e com Kafka,
Lynch evidencia sua identidade particular em seu filme.
Se o fato de Kafka rir de maneira incessante ao ler seus livros para amigos e
colegas, foi tornado público por Modesto Carone, David Lynch possivelmente se
apropria do kafkiano humor às avessas e o exacerba, em uma hipérbole que transforma
o desconforto no novo cenário da normalidade. Há, em Lynch, a inversão do que se vê
em nosso cotidiano, provocando um choque extremamente intenso a seu espectador, que
o faz se perguntar, no mínimo, o que foi que se passou no filme que acabara de assistir.
Gostaria de citar brevemente o trabalho de mais dois artistas que julgo
produzirem efeitos semelhantes de questionamento acerca da naturalização do real
através de obras que, cada uma a seu modo, provocam no espectador a indagação. O
primeiro é o desenhista e pintor polonês Pawel Kuczynski. Suas ilustrações colocam em
uma mesma imagem contradições diretas que mostram diversas maneiras de se lidar
com situações cotidianas de modo a evidenciar os males e problemas que são
esquecidos, naturalizados ou deixados às margens nessas ações. Os exemplos são
diversos: Chaminés de fábricas espalham sua poluição pelo céu, que de azul se torna
acinzentado, até se enegrecer completamente. Nesta imagem, um pintor em uma escada
flutuante pinta os tímidos contornos do sol em meio à poluição. Outra ilustração mostra
padrinhos e damas de honra de um casamento atirando grãos arroz no casal recém-
formado. Observam-se, abaixo, crianças aparentemente pobres recolhendo os grãos de
arroz para guardar para si. Um último exemplo a cena em que há um pintor caído no
canto esquerdo da rua, com uma poça de sangue ao redor de sua cabeça. Na
extremidade direita, há sua lata de tinta, que acabou por esparramar seu líquido azul no
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asfalto, manchando-o. Há, no centro, um transeunte que se mostra inconformado com a
tinta que caiu ao chão, ao mesmo tempo em que se mostra indiferente perante o pintor
ferido.
Por fim, gostaria de citar a valsa La Valse, de Ravel. Composta em 1919, logo
após o regresso do músico com o fim da Primeira Guerra Mundial. A influência da
guerra é evidente na música, com as fortes batidas percussivas, que quase fazem o
ouvinte esquecer o arranjo de cordas que está o acompanhando ao fundo. Cria-se uma
valsa completamente explosiva e assustadora, em contraste com o estilo musical
predominantemente suave e dançante. Talvez Ravel esteja nos dizendo que nenhuma
valsa poderia ser a mesma após os horrores que testemunhou durante a Guerra.
Metodologia da produção do ensaio fotográfico
A metodologia empregada na produção do ensaio fotográfico consistiu no uso
dos escritos de Walter Benjamin, em Rua de mão única (1987), ao nos narrar suas
impressões sobre a cidade ao flanar por ela (para evocar a figura de Baudelaire),
Benjamin nos mostra o extraordinário no que se confunde com o comum de nossa
rotina. Foi esse processo que levei em mente ao executar meu ensaio fotográfico. Um
flanar pela cidade, buscando mostrar sua estranheza onde cotidianamente se vê o
normal. Benjamin, em Passagens (2006), faz algo semelhante ao que realizou em Rua
de mão única; referindo-se, porém, mais especificamente às passagens de Paris – que
nada mais eram, grossíssimo modo, do que corredores estreitos nos quais se
aglomeravam diversos comércios. Alguns deles disponibilizavam, em suas vitrines,
manequins trajando mercadorias à venda. Este simples cenário cotidiano despertou no
autor inquietações que o fizeram refletir acerca dessas figuras “banais”. Creio que tal
imersão na cidade e no que nela há de mais ordinário – vitrines e manequins, por
exemplo – possibilitou a Benjamin observar estranhezas onde só se via o “comum”. Foi
desse modo que o filósofo encontrou, em objetos simples como manequins dispostos em
suas vitrines, um fetichismo que personifica e enaltece tais figuras em detrimento de
seus próprios criadores – para exemplificar o que foi tratado.
Sobre este tema, creio que o artigo de Fernando de Tacca chamado Adarilhagens
parisienses, after Atget e Benjamin foi essencial para a produção de meu ensaio. Tacca
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se inspirou tanto nas fotografias de Eugène Atget quanto no método acima discutido de
Benjamin nas Passagens (TACCA, 2013:14). No que diz respeito a Atget, o autor
afirma que
Talvez por situar (...) uma tênue linha limiar entre o banal e o sublime, algumas das
imagens de Atget ainda perduram na sua banalidade de lugares (in)comuns. O
banal, como princípio do olhar fotográfico de Atget, é uma forma de desbanalizá-lo
no sentido filosófico; é dar visibilidade e captar luzes para aquilo que não tinha
importância, mas fazia parte do todo e de seu ambiente. Atget indaga sobre o banal
e sobre filosofia com fotografias (TACCA, 2013:18).
Creio poder afirmar que esta passagem consegue sintetizar o que pretendo fazer neste
projeto, através da desnaturalização filosófica de um cotidiano que passa a ser
extraordinário.
Dito isso, creio que as fotografias de Atget, em conjunto com as de Fernando de
Tacca foram fonte de inspiração, na medida em que suas séries fotográficas versam
justamente sobre essa desbanalização do corriqueiro, em um flanar por Paris e que, ao
modo benjaminiano, permitem tais reflexões. É precisamente neste sentido que Atget,
em sua relação com Benjamin e Fernando de Tacca, foi a maior inspiração para o
processo de produção do ensaio fotográfico.
Uma observação atenta de suas fotografias e temas abordados deixa claro como
o autor antecede temas que depois seriam trabalhados pelos surrealistas, como por
exemplo um caráter sombrio da cidade, ou mesmo uma abordagem mais
fantasmagórica. Suas famosas fotografias em vitrines e manequins, no jogo de reflexos
cria esta atmosfera fantasmagórica que depois seria apropriada pelos fotógrafos
surrealistas e, até mesmo, por Henri Cartier-Bresson. Não seria exagero dizer que Atget
também influenciou Benjamin em seus escritos, na medida em que o autor cita Atget
algumas vezes em textos célebres, como a Pequena história da fotografia e A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica, bem como dialoga com temas de suas
fotografias.
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Este foi o embasamento geral que inspirou e influenciou a produção do meu
ensaio fotográfico, com forte diálogo com temas abordados por Eugène Atget, como a
fantasmagoria. Metodologicamente, Benjamin e Tacca foram pilares de sustentação, em
termos mais práticos, Atget foi o artista com quem busquei estabelecer um diálogo.
Por fim, Michel de Certeau (1998) faz uma reflexão interessante acerca do andar
pela cidade. Para ele, é possível se traçar um paralelo entre o caminhar e a enunciação
(speech act), de modo que essa linguagem do andar poderia ter duas figuras de estilo: a
sinédoque e o assíndeto (CERTEAU, 1998: 177-181). A primeira “consiste em
‘empregar a palavra num sentido que é uma parte de um outro sentido da mesma
palavra’”, ou seja, tomar uma parte pelo todo. O assíndeto seria a “supressão dos termos
de ligação, conjunções e advérbios, numa frase ou entre frases”. Assim, ao passo em
que a primeira tomaria, por exemplo uma “cabana de alvenaria ou a pequena elevação
de terreno (...) como o parque na narrativa de uma trajetória”, a segunda “seleciona e
fragmenta [na caminhada] o espaço percorrido: ela salta suas ligações e partes inteiras
que omite” (CERTEAU, 1998: 181). Do mesmo modo,
Uma [sinédoque] dilata um elemento de espaço para lhe fazer representar o papel de
um “mais” (uma totalidade) e substituí-lo (...). A outra [assíndeto], por elisão, cria
um “menos”, abre ausências no continuum espacial e dele só retém pedaços
escolhidos, até restos. (...) O espaço assim tratado e alterado pelas práticas se
transforma em singularidades aumentadas e em ilhotas separadas (CERTEAU,
1998: 181).
Ora, o que Certeau mostra como efeito do caminhar – uma ampliação da parte do
espaço, tornando-se todo, ao mesmo tempo que a narrativa é fragmentada pela ruptura
com o continuum espacial – é exatamente o que busquei fazer ao fotografar enquanto
flanava (ou caminhava) pela cidade. Ao congelar um instante no tempo e no espaço sob
a forma de fotografia, procurei ampliar a “banalidade” do cotidiano para, em sequência,
o desconstruir. Analogamente, a narrativa visual não seguiu um continuum espacial, de
modo a criar um espaço fragmentário, ou até mesmo “um relato bricolado” (CERTEAU,
1998: 182, grifos meus) em minha análise. Assim, a linguagem do andar teve seus
efeitos duplicados pela fotografia.
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Considerações acerca do ensaio fotográfico
Antes de partir para a análise, gostaria de ressaltar que o ensaio fotográfico final
será o produto compilado dos meus dois anos de pesquisa, que surpreendentemente
mantém um forte diálogo e, a meu ver, coerência ao decorrer do tempo. Creio que,
assim como o relatório deveria retomar toda a pesquisa para que se fizesse entender de
maneira satisfatória, também o ensaio fotográfico deve passar por esta experiência.
Assim, o ensaio final contará com fotografias tanto do primeiro ano de pesquisa, como
algumas do primeiro Relatório deste ano e, por fim, fotografias inéditas para este
relatório.
O exercício proposto ao início deste trabalho poderá ser mais bem explicado
agora. Os que aceitaram o convite e pularam diretamente ao ensaio fotográfico poderão
ter uma experiência completamente distinta dos que o recusaram. Com este processo,
creio que as fotos observadas antes mesmo da discussão ser iniciada tomaram novas
proporções. Peço tanto aos leitores que recusaram quanto aos que aceitaram o convite,
que se voltem ao ensaio fotográfico. Se a impressão inicial do leitor que aceitou a
proposta tenha sido a de que as fotos nada mais eram do que fotos de um observador no
meio da cidade e, que após tanto a leitura quanto à minha interpretação das fotos – que
seguirá adiante – seu sentido conseguiu ser transformado em algo inquietante, posso
afirmar que consegui atingir meu objetivo. Se o leitor que recusou o convite tiver a
mesma impressão do que o aceitou, também me direi satisfeito, a diferença é que o
segundo terá passado por um processo de imersão dialética no cotidiano – como nos
diria Benjamin –; bem como terá percebido o processo de uma construção imagética da
realidade sobre a qual nos debruçamos durante o trabalho. Creio que o leitor que aceitou
o convite também terá uma participação mais ativa no ciclo hermenêutico que se deu
neste trabalho, a saber, de se partir do contexto da cidade, para depois se debruçar no
contexto teórico e poder, finalmente, (re)emergir no contexto da cidade, agora
transformada e, possivelmente, estranhada. Se, em uma última, porém improvável,
possibilidade, o leitor que aceitou o convite conseguiu absorver do ensaio fotográfico
uma inquietação para com o cotidiano e encontrou nas imagens figuras que o fizessem
refletir acerca de nosso próprio modo de viver, creio que meu trabalho terá tido de fato
um “efeito de estranhamento” além do que foi por mim imaginado.
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Antes, porém, de começar a análise, gostaria de ressaltar que, tal qual os
surrealistas, gostaria que cada leitor pudesse ter sua própria interpretação acerca dos
possíveis estranhamentos causados pelas fotos a cenas cotidianas. Contudo, tratando-se
de um trabalho acadêmico, sinto-me no papel de fazer certas explicações. Para conciliar
este impasse, farei uma análise que buscará ainda deixar algumas margens para
interpretação e questionamentos acerca das fotografias do ensaio.
Busquei, em algumas fotos, ressaltar certas figuras que destoassem das
multidões, mas que ainda assim fossem passíveis de ser engolidas por elas, maquiando-
se na massa amorfa das grandes cidades. Seja no paciente indivíduo apoiado na mureta
próxima ao vagão do trem que acabara de chegar, em contraste a todos os outros,
eufóricos para rapidamente embarcar no vagão e conseguir um assento livre na longa
viagem que os espera; seja no indivíduo que, aparentemente sozinho em uma grande
cidade que o faz parecer minúsculo, se movimenta em direção oposta à saída da Estação
da Luz, indo, possivelmente, a lugar algum.
Em outras fotografias busquei um tipo distinto de contraste, como o observado
pela quantidade de carros enfileirados no trânsito caótico a que estamos muito
acostumados, em oposição aos poucos pedestres que atravessam uma passarela; ou
mesmo a enorme massa de pedestres que caminham sobre uma pequena rua de
paralelepípedos, da qual emergem estranhamente duas árvores, que, no entanto, não são
altas o suficiente para receber o sol, que parece reservado apenas aos grandes prédios
que engolem ambos os pedestres e as árvores. Por fim, conforme já indiquei acima, o
tema da fantasmagoria, de influência de Atget também serviu de inspiração e também
forma de diálogo com minhas imagens.
De todo modo, com contrastes e composições como essas, busquei – e espero ter
conseguido – levantar questões acerca de nossos próprios modos de vida, dos quais nem
temos tempo de pensar, por se tornarem naturalizados no ritmo frenético do cotidiano
das grandes cidades, do qual o paciente indivíduo apoiado na mureta parece conseguir
escapar.
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Ensaio Fotográfico
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3) Descrição e avaliação do apoio institucional recebido no período
Assim como no Relatório Parcial, creio que o apoio fornecido pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e mais especificamente, o
Departamento de Antropologia, personificado pela orientação da professora Sylvia
Caiuby Novaes é de excelente qualidade. No que diz respeito à infraestrutura, a
biblioteca Florestan Fernandes possui um rico acerco para consulta que facilitou em
muito os estudos para a elaboração desta pesquisa. No que diz respeito à orientação,
gostaria de dizer se tratar de excelente qualidade. A professora Sylvia Caiuby Novaes
sempre se mostrou aberta para o diálogo e para a discussão do projeto, bem como
acompanhou os resultados da pesquisa sempre que estes eram produzidos – dando sua
opinião sobre eles.
4) Recursos de Reserva Técnica e Benefícios Complementares
Eu, Gabriel Loureiro Magalhães Restiffe, declaro para os devidos fins não ter
utilizado qualquer recurso de Reserva Técnica ou Benefício Complementar durante o
período que vai do início da vigência da bolsa até o instante da redação deste Relatório.
5) Bibliografia geral
ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra – os autos do processo. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
BARTHES, Roland. A mensagem fotográfica.
Disponível em http://veele.files.wordpress.com/2011/11/roland-barthes-a-
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técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012a, p. 21-36.
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BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012b, p. 213-240.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas II: rua de
mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify, 1999.
CAIUBY NOVAES, Sylvia. Entre a harmonia e a tensão: as relações entre Antropologia e
imagem. Revista Anthropológicas, v.20, 2009.
CARONE, Modesto. Um dos maiores romances do século. In: KAFKA, F. O processo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013, ps. 317-329.
CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade (capítulo VII). In: CERTEAU, M. A
invenção do cotidiano – 1a. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.
CLIFFORD, James. Sobre o surrealismo etnográfico. In: CLIFFORD, J. A Experiência
Etnográfica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
DUBOIS, Philippe. Da verosimilitude ao índice. In: DUBOIS, P. O acto fotográfico.
Lisboa: Ed. Vega, 1992.
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KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
KAFKA, Franz. A metamorfose. In: KAFKA, F. Essencial: Franz Kafka. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, ps. 227-291.
KOSSOY, Boris. Construção e desmontagem do signo fotográfico. In: KOSSOY, B.
Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
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Disponível em http://www.studium.iar.unicamp.br/34/studium_34.pdf, último acesso
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