do anti-turismo ao turismo: a relação de um viajante com veneza_adson cristiano bozzi ramatis lima

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Do Anti-turismo Ao Turismo: A Relação de Um Viajante Com VenezaAdson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

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    vitruvius | arquitextos 177.00 literatura vitruvius.com.br

    como citar

    LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Do anti-turismo ao turismo. A relao de um viajante com Veneza. , So Paulo, ano 15, n. 177.00, Vitruvius, fev. 2015Arquitextos

    .

    Toda a terra um arquiplago em uma gua morta, e o homem salta de ilha em ilha como uma pulgaJean-Paul Sartre. La reine Albermale ou le dernier touriste

    O escritor francs Jean-Paul Sartre era um confesso de cidades: Paris, Roma, Npoles eamateurVeneza. Mas, entre uma viagem e outra, Sartre trabalhava com rigor e extremo afinco, e a veracidadedessa afirmao atestada pela sua vastssima obra (1). O objeto de estudo desse artigo, todavia,no paixo desse escritor pelo trabalho intelectual, mas um texto pstumo intitulado La reine

    , e, em especial, o sub-captulo que apresenta o mesmo ttulo doAlbermale ou le dernier touristesupracitado romance. Nesse texto, a personagem criada por Sartre, um turista francs em viagem a Itlia,descreve a cidade de Veneza, a qual, sabemos pelos seus bigrafos, era assim como Roma uma dassuas cidades italianas preferidas. No entanto, nesse caso, amar no significa necessariamente escrevertextos laudatrios, apologticos ou condescendentes, mas, implica, sobretudo, a demonstrao patentede um interesse afetivo. Com a anlise desse subcaptulo pretendemos demonstrar o que afirmamosacima, isto , a relao ntima que o intelectual francs possua com as cidades, e, em especial, com acidade de Veneza, e como nesse texto a personagem oscilaria entre um sentimento de mal estar emrelao ao turismo, para, logo aps, entregar-se com certo deleite a esta atividade. Porm, antes derealizar a anlise que nos propusemos, seria mister esclarecer um pouco mais o carter desse romanceinacabado, e, para tanto, recorreremos a uma das suas mais renomadas bigrafas, Annie Cohen-Solal:

    O trabalho mais desconhecido desses anos de impasse [1951-52], e tambm o trabalho no qual ele maisinvestiu e cujo abandono ainda permanece um enigma (2) , talvez seja o manuscrito conhecido sob onome de , esse romance indito e inacabado, o qual Simone deLa reine Albermale ou le dernier touristeBeauvoir dizia ser a da sua idade madura (3).La nause

    Trata-se de uma narrativa vitica, mas com um carter um pouco ambguo, uma vez que consistia emuma espcie de anti-guia de viagens, no qual uma personagem deambula pela Itlia enquantodescreve as cidades e tece algumas consideraes de ordem filosfica. Afirmamos que se trata de umprojeto ambguo porque em uma narrativa vitica clssica o escritor no descreve a angstia deestar em solo estrangeiro e nem faz da sua posio de turista um motivo de reflexo (como o fez apersonagem de Sartre). O viajante-escritor pode perfeitamente narrar o seu espanto em face depaisagens, costumes e hbitos desconhecidos, assim como pode ressentir certo dpayment(desorientao) por estar longe do seu pas natal, mas no comum que este coloque entre

    parnteses a sua condio de turista. Veremos, porm, que em determinados momentos da narrativa apersonagem se rende a sua prpria condio de turista, e, em Veneza, se entrega a uma atividade antesrenegada.

    Sabemos que Sartre era um viajante notrio (ele conheceu, por exemplo, quase todas as repblicas daantiga Unio Sovitica), ento, caberia perguntar por que ele tomou a deciso de dedicar um projetoliterrio a esse pas em especial, e no a qualquer outro que ele por ventura tenha visitado. Para

    responder tal pergunta novamente recorremos a sua bigrafa: O pas no qual ele residiu com mais

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    responder tal pergunta novamente recorremos a sua bigrafa: O pas no qual ele residiu com maisfrequncia e com mais prazer foi a Itlia. Npoles, Veneza, Milo, Turim e, sobretudo, Roma (4).Portanto, para Sartre talvez tenha parecido natural escrever um romance sobre uma viagem a Itliaquando se vai, com frequncia, a esse pas. De qualquer sorte, o romance jamais foi concludo, e asrazes desse abandono, como vimos, esto por ser elucidadas, e, sobre essa questo, como jescrevemos, ainda estamos no domnio da especulao. Aps os anos de redao de ,La reine AlbermaleSartre deu por encerrada a sua carreira literria ao menos no que se refere fico e passou aservir-se da escritura com fins polticos. Esse romance inacabado, ento, talvez tenha sido a ltima obrade um escritor que se tornaria um militante e marxista, que mesmo quando escrevia sobregauchisteliteratura procurava denunciar a explorao do homem pelo homem (5).

    Sartre e Veneza

    Muitas cidades italianas so conhecidas por atrair turistas: Roma, a sua capital, a pequena cidademedieval de Siena, a cidade de Florena, com a qual aquela disputou a hegemonia da regio durantealguns sculos, Gnova, e, ainda, Veneza. No entanto, muitas cidades so consideradas tursticas aindaque tenham conseguido guardar ou desenvolver outras formas de economia. Veneza pareceu, para apersonagem de Sartre, uma cidade cuja economia estava baseada unicamente no turismo, e, emdeterminado momento, ela se pergunta: Quem mora em Veneza? Trata-se, certamente, uma perguntaretrica, e ela mesma a respondeu:

    "Artesos, restauradores e fabricantes de mveis, marceneiros, fabricantes de objetos de vidro. Pequenocomrcio. Trabalhadores temporrios. Fabricantes de sapatos: eles os fazem sob medida. Camisas sobmedida. Roupas e alfaiates: trazidos pelos turistas" (6).

    De fato, pensando sob o prisma elptico desse turista, Veneza no parece ser muito prspera e nempossuir uma economia diversificada, sobretudo se evocarmos a riqueza que essa cidade j conheceu ecujos smbolos podiam ainda ser vistos, em meados do sculo 20, no reflexo dos seus palcios nas guasturvas dos seus canais. Uma cidade de armadores e de grandes comerciantes e ocupada por arteso ecomrcio de luxo (7). A constatao melanclica, e o turista continua: Havia as formas mais altas docapitalismo comercial. Veneza devia causar espanto como Nova York. O luxo que a personagem percebe, agora, destinada aos turistas, e Veneza seguia espantando com a ostentao do seu luxo pretrito. Ora,a riqueza que ele constata em Veneza a partir dos turistas a riqueza internacional, e no a riqueza daItlia ou da prpria cidade. E a aluso cidade de Nova York no , certamente, gratuita, pois quandoSartre escrevia o seu texto a metrpole norte-americana era a encarnao em pedra e ao da imensariqueza e prosperidade do pas que havia vencido a guerra contra o fascismo.

    Mas a prosperidade da cidade italiana no existia mais quando a personagem deambulava peloscanais em gndola uma verdadeira (8) para um turista francs e observava: De vezimage dpinalem quando um palcio deslizava vergonhosamente (9). Em outro momento da narrativa, apersonagem, navegando em um bairro descrito como popular, afirmou: Havia os dos pobres,riosmais sujos que os outros. Barcas ali apodreciam. [...] Casas que descascavam, o gesso se fendiacomo uma pele seca, a rosa da derme, tijolos rosas apareciam como estigmas (10). O nosso autor fezreferncia tanto a Veneza dos ricos quanto a Veneza dos pobres, e um nico conceito as rene emum amlgama: a decadncia. Ora, a personagem notou que, naqueles palcios, as janelas estavam

    sempre fechadas e que no se habitava seno o trreo, e que as casas populares se abriam mostrando aderme rosada dos tijolos. Com essas imagens a decadncia da cidade era exibida, e, finalmente,terminavam por servir de cenrio para a curiosidade vida de pitoresco dos turistas.

    Assim, v-se que Veneza percebida como um belo objeto que teria resistido mal ao fluxo inexorvel do

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    Assim, v-se que Veneza percebida como um belo objeto que teria resistido mal ao fluxo inexorvel dotempo: as janelas permanentemente fechadas so as marcas de que aqueles espaos um dia j foramhabitados, que eram animados por ricos comerciantes, cpidos aristocratas e dezenas de domsticos. Emesmo as casas dos pequenos comerciantes e artesos j no existem seno como uma lrica e belaimagem, em que paredes que se abrem mostram os seus estimas de tijolos. Restaram a essa cidade osturistas internacionais e os pequenos comerciantes que deveriam servir-lhes. esta, ao menos, amelanclica imagem desse pessimista turista francs.

    Avivam as reflexes da personagem o carter particular da sua malha urbana cortada por inmeroscanais, e essa uma das razes pelas quais essa cidade to procurada pelos turistas. Certamente queisso no , de fato, to particular assim a essa cidade italiana; ora, Amsterdam, Bruges e Gend, apenaspara nos restringirmos aos exemplos mais conhecidos, tambm so cortadas por canais. Mas, para umturista, Veneza , sobretudo, a cidade dos canais, e a personagem faz a seguinte constatao: Perto daponte da Academia, h rvores que saem do solo de pedra ondulado, mas elas saem da pedra, o soloest escondido. o nico mistrio de Veneza que j foi to misteriosa essa terra rara e negra (eu aimagino assim) e que escondem (11). Ou seja, para o turista e at para esse turista to empenhado emfazer um exerccio de anti-turismo essa cidade no uma cidade de terra, mas de gua: o materialde construo por excelncia dessa cidade que se dobra nos seus canais.

    A terra escondida e os seus jardins, por sua vez, so prisioneiros: Os jardins esto na priso. Entre doiscanais, no cruzamento, uma cadeia flutuante. Trs muros de tijolos so os lados visveis (12). A imagemcriada por Sartre evoca o fato de que nessa cidade, o nico elemento natural que tem a liberdade deexistir a gua, o resto escondido ou aprisionado: Percebe-se, entre as grades, mida, fechada,misteriosa e melanclica, a vegetao cativa que s vezes pende sobre um muro, calamitosa, com umalonga cabeleira vermelha ou verde (13). Pode-se perceber que a imagem de Veneza criada pelo turistafrancs procura fugir de alguns dos habituais: cidade apinhada de turistas, alegre e festiva, com osclichsgondoleiros nos seus trajes tpicos a conduzir turistas de um lado a outro nos canais.

    Alis, nessa narrativa nem mesmo os gondoleiros escaparam ao pessimismo da personagem.Conduzido em uma gndola, o turista observou com surpresa que o seu condutor tinha sido honesto:Ele no me roubou, o que uma prova de resignao (14). E ficou imaginando qual seria a naturezada amargura que teria levado o gondoleiro ao fracasso de pedir apenas a tarifa regulamentar. E, aoobservar com certa admirao a suposta habilidade do gondoleiro em manobrar o seu barco emalguns poucos metros disponveis, ele logo percebe que estava quase cometendo um dos tiqueshabituais do turista em Veneza: o espanto secular do turista que no ter satisfao se no pensarque o gondoleiro um virtuose da gndola (15). O evento que o turista narra em seguida vem

    confirmar o tique e contradizer o espanto secular:

    No mesmo instante o meu virtuose mergulha o remo at o fundo tentando frear a nossa gndola, e foi,ento, que aconteceu esse milagre que talvez cem mil turistas tenham esperado, cansados de seremroubados e desprezados, mas que jamais puderam ver, esse milagre que foi a minha rao diria deanti-turista, esse acontecimento que acabou com um dos meus ltimos respeitos pelo turismo: o remo separte e o gondoleiro mergulha na gua (16).

    A narrao desse evento, sem condescendncia nem piedade e talvez com um detout petit peusarcasmo cobre de ridculo a profisso mais conhecida o pobre gondoleiro descrito como chefe defamlia (17) e a mais famosa imagem da cidade, e, a partir da reao do turista francs, poder-se-iadizer que ele pareceu ter se vingado do prprio turismo; ora, nesse caso, no foi um simples gondoleiroque caiu nas guas, mas foi um ancestral veneziano que tombou por terra (na terra escondida declich

    Veneza...). Poder-se-ia afirmar que, nesse caso, o autor faz um acerto de contas com o turismo de massa,

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    Veneza...). Poder-se-ia afirmar que, nesse caso, o autor faz um acerto de contas com o turismo de massa,e que o seu amor por Veneza est mais no passado que no presente.

    Ora, depois do incidente, face pequena multido que observava o gondoleiro molhado, alguns turistasnorte-americanos perguntaram personagem se, pelo fato de ter despertado tanta ateno, ele eraalgum conhecido. um sinal dos tempos: a estrita ricos comerciantes e aristocratas foietiquette dossubstituda pela vulgaridade atvica dos turistas internacionais. essa, justamente, a marca de um guiade anti-turismo de que se reveste essa narrativa: os palcios arruinados no so um mero cenrio para osentimento do pitoresco dos turistas, mas a marca da inelutvel decadncia econmica e cultural deuma cidade; os gondoleiros, por sua vez, no so a tradio ainda viva dessa nao de marinheiros e decomerciantes, um verdadeiro virtuose do seu ofcio, mas um simples pai de famlia pouco honesto e aservio do turismo de massa.

    Pelo episdio criado e narrado, v-se que Sartre estava disposto a ir s ltimas consequncias noacerto de contas da sua personagem com o turismo. Mas mesmo um turista empenhado em fazeranti-turismo pode se permitir um momento de trgua, e apreciar os ditos momentos felizes doturismo: gua verde, mar cheia na laguna, exuberante; uma poeira de sol apura tudo: Lorrain. Eis afelicidade do turismo: esses pequenos momentos eternos que fazem o mundo parecer uma antigapintura (18). E a paisagem veneziana passa a ser descrita como uma pintura de Watteau,tornando-se, na verve do escritor francs, uma espcie de universo pr-romntico sem uma dataprecisa: Normalmente, Veneza plana e sbia. V-se as fachadas ou as belas linhas de um canal

    cortado por pontes divergentes. Mas em uma narrativa vitica cabe ao autor o inevitvel da procedimentocomparao, e a cidade italiana torna-se, pela confuso das suas perspectivas, uma cidade industrial novale do Reno ou do Marne (19). E no deixa de ser curioso que o momento feliz em Veneza estejaassociado as suas lembranas de um solo mais conhecido.

    Mas, subitamente, esse turista retorna a Veneza, e passa a refletir sobre o carter, talvez nico, dosespaos dessa cidade. Segundo a personagem, em muitas cidades, como Roma e Nova York, possveldiscernir claramente o comeo e o fim de uma rua, que no , finalmente, seno uma sequncia defachadas que est diante de uma outra sequncia de fachadas; essas cidades so chamadas de cidadesde lucidez, e talvez nesse aspecto resida o seu charme. Mas em Veneza -se o homem do ebricolagedo artesanato, porque se obrigado a viver e se vive , minuto a minuto (20). Eis uma belaau jour le jourimagem para Veneza, uma cidade que no se entrega ao observador seno aos poucos, e jamais de umanica vez em uma grande e larga perspectiva; ou, como afirmou o turista francs: uma cidade paramopes(21). Veneza, cidade italiana da proximidade e das curtas distncias.

    Mas h, alm da admirao, o estranhamento do turista que, em determinado momento, movido pelo , imagina-se em outro lugar que no simplesmente, em uma cidade italiana. E, finalmente, sedpaysement

    no se est na sua cidade, no se est, talvez, em lugar algum: Est-se cortado do mundo. Eu no sintonem um pouco o mundo efervescente em torno dela [Veneza], ao contrrio, eu imagino uma camadainfinita e lunar de gua morta. E conclui: Aqui se est um pouco como na lua (22) E assim, com umacomparao extica, o turista francs d por encerrada a sua jornada em Veneza.

    ltimas consideraes

    Afirmamos no desse artigo que Sartre era um aficionado por cidades, e que estas nunca lhecaputdeixavam indiferente. Embora no fosse um profundo conhecedor de arquitetura e de urbanismo asartes nas quais ele era especialista eram a msica e a pintura ele escreveu sobre as cidades

    italianas com inegveis discernimento e poesia. Sobre essa questo, pode-se ler em outro subcaptulo

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    italianas com inegveis discernimento e poesia. Sobre essa questo, pode-se ler em outro subcaptulodo mesmo romance: A mais bela rua da Europa a Rua Rochechouart, quando ela vista doBoulevard Barbs (23). Estas so, certamente, as frases de algum que se encontra claramente

    enamorado, e, nesse caso, o objeto de amor o urbano. E, se no fosse certa cidade situada no norte daEuropa, poderamos afirmar que as cidades que ele mais amou foram as cidades italianas, e,principalmente Roma e Veneza. Mas qual seria essa outra cidade por quem ele nutria uma especialafeio? Deixemos a resposta para o prprio autor:

    S me interessam as pessoas e quando penso em rev-las nesta Paris de guerra que imagino nossosencontros. Minha licena consumou a ruptura com o meu passado. Eu recuo e poderei dizer um dia amanh talvez o que Paris foi para mim. Sinto que, se no fui patriota, pelo menos fui comunalista eregionalista. Paris era a minha aldeia, como diz a cano. Cidado de Paris, se tivesse sido chauvinista(24).

    Sartre e Beauvoir costumavam dizer que tinham um amor mtuo que era necessrio, e que saiam, ento,a procura de amores contingentes; Paris, cidade com a rua mais bela da Europa, talvez fosse para ofilsofo francs esse amor necessrio. No entanto, no ocupavam um lugar em nada desprezvel nessarelao s cidades de Roma e de Veneza, como nos assevera Cohen-Solal: Pois Sartre foi loucamenteenamorado pela cidade de Roma, um amante , um romntico, um apaixonado (25). Quanto agourmetVeneza, aprendemos com outro conhecido bigrafo, Bernard-Henry Lvi, que o filsofo francs, nos seusltimos dias de vida, j bastante debilitado e quase cego, pediu que o levassem a Veneza, para ver eouvir, pela ltima vez, as cores e os sons da cidade pela qual nutria tanta paixo (26).

    Mas para alm da cidade, Sartre nos escreveu e no sem certa amargura sobre as experincias desseeterno passageiro que o turista, condenado a errar de cidade em cidade, sem jamais compreendercompletamente o que observa e narra, e a quem no restaria seno a redao de um anti-guia deviagem irnico e amargurado. Mas justamente nessa incompreenso parcial que se d o procedimentode analogia to caro s narrativas viticas: as cidades do outro devem ser comparadas com as minhascidades, para que possam ser re-conhecidas. E poder-se-ia dizer que, nesse texto de Sartre, Veneza ,capesar da pretensa vulgaridade do turismo de massa, e o nosso autor faz uma dialtica improvvel entre oturismo e anti-turismo.

    notas

    1A esse respeito, ver: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Paris, Gallimard,Les crits de Sartre.1970.

    2Tal projeto ambicioso, contudo, como pudemos ler, foi abandonado, e das suas provveis quinhentas

    pginas de manuscrito, apenas cerca de cem foram encontradas e publicadas pela sua filha adotiva noano de 1990; temos, ento, apenas a parte visvel do Ainda que o abandono seja um enigma,iceberg.pode-se, contudo, aventar algumas possibilidades, como o fizeram, alis, alguns dos seus bigrafos:talvez tenha sido a ambio do prprio projeto literrio, um misto de dirio ntimo, narrativa vitica, ensaiosobre pintura e romance; ou talvez porque um projeto considerado to literrio acabasse por se chocarcom o ativista poltico de carter marxista que Sartre teria se tornado j a partir do final dos anos 1940. Aesse respeito, ler: CONTAT, Michel. Autopsie d'un livre inexistant : La Reine Albemarle ou le Dernier

    . In: [On line] Disponvel em .touriste Item http://www.item.ens.fr/index.php?id=172593

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    3COHEN-SOLAL, Annie. Paris, Gallimard, 1999, p. 541. Traduo nossa do francsSartre 1905-1980.para o portugus.

    4Idem, ibidem, p. 541. Traduo nossa do francs para o portugus.

    5Referirmo-nos ao ensaio publicado pela primeira vez em 1947 na coletnea O que a literatura?,

    De fato, nesse texto j se percebe, de mais ou menos velada, certas inflexes marxistas eSituaes II.polticas. Nesse ensaio, por exemplo, ele j deplora o que ele chama de negrofobia americana, pas queat ento, quase sempre fora abordado de maneira positiva.

    6SARTRE, Jean-Paul. Paris, Gallimard, 1991, p. 123. TraduoLa reine Albermale ou le dernier touriste.nossa do francs para o portugus.

    7Idem, ibidem, p. 123. Traduo nossa do francs para o portugus.

    8Na cultura francesa este termo significa uma gravura popular de tema ingnuo, e, com o tempo, passou asignificar algo ingnuo e estereotipado, uma espcie de clich.

    10SARTRE, Jean-Paul. (op. cit.), p. 119. Traduo nossa do francs para o portugus.La reine Albermale

    11Idem, ibidem, p. 119. Traduo nossa do francs para o portugus.

    12Idem, ibidem, p. 119. Traduo nossa do francs para o portugus.

    13Idem, ibidem, p. 118. Traduo nossa do francs para o portugus.

    14Idem, ibidem, p. 118. Traduo nossa do francs para o portugus.

    15Idem, ibidem, p. 122. Traduo nossa do francs para o portugus.

    16Idem, ibidem, p. 122. Traduo nossa do francs para o portugus. O espanto diante do desconhecido um clssico da literatura vitica, e justamente por isso que Sartre alude ao espanto secular dotoposturista.

    17Idem, ibidem, p. 122. Traduo nossa do francs para o portugus.

    18Ningum vai acreditar no que eu vou escrever. Eu tenho preguia de comear. Pouco importa. Pois bem,

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    Ningum vai acreditar no que eu vou escrever. Eu tenho preguia de comear. Pouco importa. Pois bem,eu estava em uma gndola, conduzida por um pai de famlia. Pai de famlia, mas ainda assim mesmo umgondoleiro. SARTRE, Jean-Paul. (op. cit.), p. 119. Traduo nossa do francs para oLa reine Albermaleportugus.

    19Idem, ibidem, p. 133. Traduo nossa do francs para o portugus.

    20A comparao um procedimento clssico nas narrativas de viagem, no qual o desconhecido perde essecarter em uma analogia com aquilo que j conhecido: Pensar por antecipao o Selvagem era erigi-loem prottipo, ou, mais exatamente, em um arqutipo suscetvel de permitir uma avaliao visual (mental)procedente de um julgamento de conformidade ou de no conformidade, com o modelo fabricado aquimesmo, em todo caso antes do encontro. LECRUD, Grard. Quand voir, cest reconnaitre: les rcit de

    In: , n. 1, Marselha, Editions Parenthses.Voyage et le regard antropologique. Terrains de lenquteTraduo nossa do francs para o portugus.

    21SARTRE, Jean-Paul. (op. cit.), p. 139. Traduo nossa do francs para o portugus.La reine Albermale

    22Idem, ibidem, p. 139. Traduo nossa do francs para o portugus.

    23Idem, ibidem, p. 140. Traduo nossa do francs para o portugus.

    24Idem, ibidem, p. 56. Traduo nossa do francs para o portugus.

    25SARTRE, Jean-Paul. Dirio de uma guerra estranha: a drle de guerre, novembro de 1939 maro de

    . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 143.1940

    26COHEN-SOLAL, Annie. Op. cit., p. 543. Traduo nossa do francs para o portugus.

    27LVY, Bernard-Henri. Traduo Jorge Bastos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000,O sculo de Sartre.p. 398.