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  • 8/8/2019 divindadesfemininasdobrasil

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    Divindades Femininas do Brasil* Lucy Coelho Penna

    (Revista Hermes - Publicao do Instituto Sedes Sapientiae, So Paulo. N 1 1996, p. 66 94.)

    As divindades femininas da nao brasileira merecem respeito e pesquisaporque esto na base da identidade nacional. So manifestaes do princpiofeminino sempre mencionadas no folclore e nas lendas, embora ainda poucocompreendidas sob a perspectiva psicolgica.

    Escolhi comentar quatro poderosas manifestaes dentre as imagens divinaspresentes na cultura do Brasil. O motivo da escolha simples. Elas estoassociadas pela simbologia de um elemento natural de grande importncia na vidaprtica: gua.

    A falta de gua afeta 230 milhes de pessoas hoje no mundo. So 26 pasessofrendo o descontrole dos recursos hdricos do planeta, segundo documento daorganizao das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO). Qual a

    condio psicolgica coletiva que permite tamanho desequilbrio? O Brasil temuma das maiores reservas hdricas da terra: rios quilomtricos, lagos e infinitoscrregos umedecem o nosso territrio. Nem todos permanecem limpos porque acontaminao cresce rapidamente. As autoridades e a populao geralmentepensam que os rios so escoadouros do lixo que as cidades produzem. Para elesmandam suas fezes, latas, detritos alimentares e industriais. Entretanto, as guasdos oceanos e rios so o bero da vida no planeta!

    As divindades associadas aos mananciais hdricos so foras de cura e deregenerao, inclusive por sua ao transformadora atravs das chuvas e dasenchentes. Muitos cultos religiosos antigos foram dispensados s entidadesmantenedoras das fontes de gua. A Igreja Catlica a tomou como smbolo de

    purificao da alma no Batismo. Jesus Cristo se apresentou como a gua vivaque elimina a sde dos homens.

    A sde tanto quanto as terras ridas e secas simbolizam a alma que noresponde ao chamado divino. O terreno onde no brota nenhuma semente e apalavra divina desperdiada. Como est a receptividade da alma brasileira aoapelo dos espritos da natureza? Certamente, nada consciente. Mas houve umaespcie de estampagem coletiva observvel em vrias regies do Brasilproduzindo aceitao, respeito e culto a poderodas entidades femininas ouriundasdas guas.

    Sem entrar na questo de credos religiosos, a deusa do Maraj, NossaSenhora de Nazar, Nossa Senhora Aparecida e Yemanj so manifestaes de

    um nico processo psicolgico na alma do povo brasileiro. Tantas variaes deregio para regio, tantas influencias dos imigrantes e temos uma presenaindelvel de norte a sul do pas. a poderosa Senhora que sob nomes locais, comorigens e caractersticas particulares configuram o culto ao princpio femininoassociado gua. Proponho que as vejamos em conjunto, como uma autnticaSenhora das guas brasileira.

    A seguir, abordarei sucintamente o padro arquetpico que acompanha cadadivindade. Poderes, cultos, mitos de origem e costumes associados a essas

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    deusas vo ser comentados. Um outro ponto importante a ser analisado est naformao de atitudes para com o ambiente e na influncia sobre a adoo depapis femininos.

    A Senhora das guas no Maraj Na grande ilha do Maraj foz do rio Amazonas, havia um povo que cultivou a

    terra, respeitou os elementos naturais e esculpiu com fora e beleza a deusa quevemos pgina 67.

    Foram chamados Marajoara, por causa do nome da ilha onde provavelmenteestavam h mais de mil anos quando chegaram os europeus. O apogeu dessacultura, cerca do ano 700 da nossa era, deixou o testemunho de um espritocoletivo criador e conhecedor de smbolos arquetpicos. O que hoje sabemossobre os Marajoara est na grande variedade de peas de cermica queenterraram nos tsos artificiais que construram. Essa rica produo oleira ficouguardada at recentemente. Sua descoberta aumenta a perspectiva da presenado culto aos elementos naturais no passado, em terras brasileiras.

    Tendo de enfrentar as demoradas enchentes dos lagos e dos rios, alm dasmars ocenicas, os Marajoara criaram uma tecnologia de elevaes, movendotoneladas de terra e mato. A ilha toda, na verdade, uma barreira natural queimpede o Oceano Atlntico de invadir as terras baixas que margeiam a boca do rioAmazonas. Maraj em lngua tupi indica exatamente isto: barreira do mar. Aindahoje, moradores e seu gado fogem para as terras altas raras na ilha algumas dasquais podem ser aterros artificiais dos Marajoara. Segundo a arquelogaamericana Anna Roosevelt, (1) os tesos atuais, apesar da eroso do tempo,permanecem cerca de 3 a 20 metros acima das enchentes. O que retrata bem oesfro admirvel do povo que as construiu. Alm das enchentes, o lado norte dailha est sujeito ao fenmeno das pororocas, imensas ondas que devastam asmargens, engolindo tudo sua frente.

    As pororocas, as chuvas e as enchentes so fenmenos peridicos que osMarajoara procuraram compreender atravs de uma viso cosmognica cujoponto fundamental parece ter sido a presena da Senhora das guas. A figuramencionada uma das imagens criadas para expressar a sua crena na presenade uma deusa rainha dos lagos, dos rios e da fertilidade. Certamente umadivindade forte, projetada pela psicologia de um povo combativo e empreendedorque no sucumbiu s opresses naturais do ambiente. As mulheres podiam seespelhar na sua fora instintiva, tanto para amar e procriar, quanto para matar asferas dos arredores e pegar no pesado, fazendo cermica, plantando ecozinhando.

    Essa deusa foi encontrada dentro de uma das cmaras subterrneas quecompunham os cemitrios Marajoara. Outras figuras humanas, quase semprefemininas, tambm foram encontradas esculpidas e pintadas em quatro ou cincocores, vivas ao tempo de sua descoberta, apesar da umidade intensa. Soimagens que irradiam uma certa fora mgica.

    O corpo pintado da deusa sugere a energia matricial das guas da vida etambm o poder sombrio das guas destruidoras. As espirais nos do a impresso

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    de que ela prpria foi criada pelo redemoinho das guas. O simbolismo do beroda vida e do abismo da morte se juntam nessa imagem.

    A deusa do Maraj no est grvida, como era comum nas representaesanlogas, do perodo Neoltico. Ela parece mais com as deusas dos mistrios davida-morte-vida(2), como Inanna, em que a funo maternal no predomina sobre

    os outros papis femininos.Vnus nativa, essa deusa tem as caractersticas do seu ambiente. Seu formatolembra uma cobra, talvez um peixe. Provavelmente os peixes, as cobras, os

    jacars, assim como os sapos e insetos, as aves que fazem ninhais na beira doslagos da ilha fssem todos seus animais sagrados. Quando a inteligncia humanapercebeu que o ciclo vital se iniciava dentro do ambiente lquido, criou imagensdivinas para representar esses conceitos.(3) E os animais aquticos tornaram-seuma hierofania para a Me das guas.

    A pequena Senhora das guas do Maraj est sentada com as pernasabertas. Entre elas, dois prticos em vermelho circundam a vulva sutilmente emrelvo. Cor do sangue e da vitalidade, o vermelho est sugerindo o portal da vida.Por ele tanto se chega luz do dia quanto se pode ir para o escuro da morte.Reinando sobre os cemitrios do Maraj, essa concepo da Grande-Me testemunha quase certa da crena na vida ps-morte. Protegidos por ela, osguerreiros estavam preparados para entrar sem medo nos territrios da outradimenso.

    Corpo consagrado

    Os smbolos presentes na Senhora do Maraj so compensatrios a certosvalores tradicionais da cultura crist porque mostram uma outra percepo da vidaalm da morte, do alcance sagrado do corpo feminino e do respeito s forasnaturais, especialmente a terra e a gua. As concepes dos nativos da ilhalembram ensinamentos muito antigos, provenientes de culturas remotas, como aegpcia, a sumria e a dravdica. O poder curador e espiritual da serpente, porexemplo, est sugerido de vrios modos na forma da deusa e nas espiraispintadas sobre o seu corpo. Ela tem um corpo nu, natural e consagrado. Umaaceitao desses valores psicolgicos hoje implicaria em desenvolver novasatitudes para com o prprio corpo e para com a viso assptica do cristianismotratar as coisas relativas ao corpo humano. Seu aproveitamento poderia minimizaro efeito da negatividade unilateral que marca a figura da cobra na iconografiacist.

    Temos ainda muito que aprender com nossos antepassados nativos. Para osMarajoara, certamente, essa Senhora das guas foi uma deusa reinando sobresuas vises espirituais. Dominou as chamas da fogueira funerria, os alimentossagrados, as ervas alucingenas nos rituais. Presidiu as danas em que mulherese guerreiros escolhidos, usando tangas e falos de cermica, interpretaram o podere a energia da criao, repetindo os gestos sagrados dos deuses na criao domundo.

    Sculos depois, outra fortssima devoo Senhora das guas reapareceu nacidade de Belm, defronte ilha do Maraj.

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    Nossa Senhora de NazarQuem encontrou essa imagem vamos dizer assim mais moderna da Senhora

    das guas foi um caboclo. Sabemos at o nome dele: Plcido Jos de Souza. E adata quase completa: outubro de 1700. Filho de portugus com ndia, Plcido era

    um caador. Morava num casebre perto da sada da cidadezinha que era Belmdo Gro-Par naqueles tempos. (4)Vamos imaginar como isso pode ter acontecido. Plcido quis refrescar-se e

    desceu at o igarap. Muitos viajantes andavam pelas bandas do igarap doMurucutu, na estradinha que ia para o Maranho. H uns bons mil e tantosquilmetros dali, bom que se diga. Passava da hora quente. O calor estava jamaciando e Plcido molhava os ps na gua fresquinha. De repente deparoucom uma imagem pequena enroscada nas pedras lodosas.

    Ser que algum romeiro esqueceu ela aqui?, pode ter pensado o assustadoviajante.

    Pegou a santinha de madeira, toda sujinha e lavou-a bem antes de carreg-lapara sua casa. Mostrou para todos e fizeram um altar. Puseram vela e puxaramreza de tero. Dia seguinte, mistrio! A santinha no estava mais l.

    Comeava a srie de fugidas dessa imagem romeira. Foram tantas e toinexplicveis que s quando o governador e o bispo deixaram os caboclosfazerem uma choupana ali mesmo nas pedras e na lama, a santinha sossegou.Era onde ela tinha escolhido ficar. Entronizou-se por si mesma, pronto.

    Com apenas 28 centmetros de altura, essa santa sujinha ficou moreninhamesmo. No conseguiram branque-la para ficar parecida com a suacorrespondente portugusa. Por que logo os jesutas da localidade de Vigia, a uns130 quilmetros de Belm, onde havia uma antiga tradio da santa, aidentificaram como sendo a mesma Nossa Senhora de Nazar, santa portugsaque tantssimos milagres j havia promovido em terras lusas espanholas.Conhecida de reis e bispos que at na frica j a tinham levado. E por sua fora,ganharam-se batalhas...

    A humilde e misteriosa santinha do igarap ganhou fro histrico, vestiu-secom manto de linho bordado em fios de ouro. Mas o povo no a abandonou. Ouela o escolhera primeiro, ao deixar-se apanhar num igarap de beira de estradapelas mos grossas de Plcido, um mateiro caador?

    Passando a ficar cada vez mais conhecida pelos milagres que operava nopovo, nos padres, curando governantes e comovendo os bispos, a Nossa Senhorade Nazar de Belm ganhou at uma bonita baslica inaugurada em 30 de outubrode 1941. Uma imagem rplica retirada da baslica anualmente, no segundodomingo de outubro, percorrendo as ruas das partes velha e nova de Belm sobos fogos e as rezas de uma multido. o Crio de Nazar.

    A cada ano que passa os jornais falam em mais de um milho e meio depessoas na procisso da Virgem de Nazar. Este foi o clculo estimado em 1995e o nmero de fiis s aumenta, h 203 anos.

    Como se explica um fenmeno assim? Essa manifestao da Senhora dasguas tem uma fora extraordinria na alma dos caboclos da Amaznia. No sna alma deles, mas na de todas as pessoas que moram l ou que chegam paraver a procisso do Crio. No h quem no se arrepie ao ver a inacreditvel

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    multido que enche as ruas da cidade. Pesada, langorosa, a procisso se arrastasob o calor tropical feito imensa cobra colorida.

    No meio daquela turba, passa carregada numa berlinda de flores uma NossaSenhora linda em seu manto branco e dourado. Uma coisinha de menos de 30cmcom o poder tremendo de atrair tanta gente.

    H poucos anos introduziu-se uma procisso fluvial nos festejos da Santa. uma outra glria. Ela vem adiante de um cortejo infindvel de barcos de todos ostamanhos. Mostra-se ento, clara e vivamente, a sua natureza de Senhora dasguas. Nenhuma fora arbitrria conseguiria produzir o efeito psicolgico dessame viajando pela mar. Mas Ela pode. Atrai todos para si, essa doce e topequenina Senhora dos verdes lenis amaznicos.

    Experincia profu ndaA manifestao da deusa como Nossa Senhora de Nazar produz uma

    experincia moderna do numinoso. (5) Poucas ocasies ainda temos, nos diasconturbados que atravessamos, de viver um contato psicolgico com otranscendente. Mas isso pode acontecer frequentemente na Amaznia, quando aSenhora mostra sua face protetora aos que a procuram. Nas margens daquelemar doce, s portas do Oceano Atlntico, todos sabem. Bichos e gente, todossabem que o planeta das guas. Elas trazem a vida terra, ma tambm matame destrem. Ainda bem que a Virgem de Nazar est a para nos proteger.

    Seria bom que a fora da Virgem de Nazar fosse usada para aumentar aconscincia das pessoas sobre os recursos da regio, mas no . No tenhoconhecimento de processo algum relacionando a santa com os deveres docaboclo proteger os rios, impedir as queimadas ou algo do gnero. No, essadivina presena no foi associada com os ciclos da natureza, nem est ajudando aproteg-la. Pelo menos de forma direta e consciente.

    A Senhora das guas, em sua manifestao como Virgem de Nazar, temfora como protetora dos barqueiros e dos viajantes. Dos mateiros e pees, dopessoal simples que lida com os bfalos no Maraj, os cavalos, o gado nasfazendas da regio. invocada como Me de Todos. Aquele que no temmoradia pede a ela que ajude. Carregar uma casinha de madeira no Crio, empagamento promessa feita. Quem j possui casa coloca um quadro com aimagem da Virgem atrs da porta de entrada. um aviso de que a famlia estsob a proteo da Nossa Senhora de Nazar. Ela tambm salva os barcos e aspessoas de se afogarem. Salva dos perigos das matas e dos troves, dastempestades e das enchentes.

    Por suas caractersticas, a Senhora de Nazar simboliza a Grande Me emseu aspecto clssico de abrigo seguro. Ela a casa , o ventre materno, o abrao eo colo da me. No est em seus domnios a regncia da vida afetiva-ertica dehomens e mulheres. A sensualidade natural da cabocla, por exemplo, precisabuscar outro modelo de identificao.

    Outra qualidade importante na mulher da regio permanece fora do mbito daNossa Senhora: a agressividade. A cabocla precisa ser forte e valente no seu dia-a-dia para sobreviver em condies muito difceis. Precisa ser resistente, no Termedo de cobras, bichos e enchentes. Atrair o seu caboclo, parir, manter a roa e a

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    casa. Essas e outras atividades normais na vida das mulheres amaznicas estofora do mbito de proteo da Virgem catlica. Ainda que batizada, a mulher daAmaznia completa seu processo de identificao atravs dos modelos indgenas.Os modelos cristos tradicionais so insuficientes para proporcionar a integraopsicolgica das tendncias agressiva e amorosa que dependem dos modelos

    arquetpicos de origem indgena para serem equilibradas na personalidade.Os mitos indgenas cultuam a fora e a coragem diria. As pessoas simplesescapam dos papis tradicionais da sociedade e vivem experincias intensasatravs dos recursos simblicos nativos. Elas enfrentam os elementos naturais eos animais, como tambm as energias instintivas interiores. A vida afetiva-sexualdas caboclas, por exemplo, nunca pde ser totalmente administrada segundo ospreceitos da moral crist.

    Um bom exemplo disso est no mito do encontro amoroso com o peixe-homem, o boto. Sem compromisso, sem definio, a cabocla entrega-se ao bototransformado em belo rapaz, vivendo uma experincia emocional que temprofundo sentido para ela. Seu ato significa comungar com as foras da vida e suaentrega natureza, fora e dentro de si mesma. Uma rendio psicolgicanecessria para quem vive em um ambiente onde os elementos naturais, como asguas, decidem a sobrevida de todos.(6)

    A manifestao da Senhora das guas em Belm, deixa lacunas, emboratrazendo vrios aspectos positivos do arqutipo feminino. Ela simboliza o ladodoce e materno, mas nada sensual. Seu manto triangular, entretanto, pode serimaginado como involuntria aluso forma de corpo das deusas pr-histricas.Quando a cabea nem parecia humana, esculturas com largos quadris, sembraos e com pernas atrofiadas, lembravam s pessoas que a fecundidade estavana Terra, assim como nas mulheres. Por isso a arte pr-histrica criou figurinosque tiveram a forma de tringulos com base para baixo. Bem semelhantes imagem da Senhora das guas dos ndios Marajoara.

    Alm disso, a cor morena da Virgem de Nazar tambm um atributo dasantigas deusas que receberam a fora telrica dos vales midos, das escurascavernas, das noites estreladas. Para fazer recordar que a fecundidade do tero,assim como a da terra molhada, obscura, misteriosa. E que a gerao da vida sepassa longe dos olhos humanos. A semente dentro da terra. O ser humano notero. O morto, de novo, regenerando-se na obscura proteo da Grande-Me.No foi a hebria Maria uma morena em vez de clarinha como a pintam oseuropeus?

    O sinal da pele escura nas divindades femininas do Brasil fica ainda maisevidente em Nossa Senhora Aparecida, a Santa Padroeira do Brasil.

    Nossa Senhora AparecidaComo foi aparecer esta Senhora toda pretinha em meio aos alvos fidalgos

    portugueses? E to milagrosa.Nasceu das guas. Nasceu sem cabea, a pobre. Pescada por partes, a santa

    impressionou desde o primeiro momento.Conta o seu mito que trs pescadores batalhavam no rio Paraba, sem obter

    nenhum sucesso. Seu problema era que o governador de So Paulo e Minas

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    Gerais ia visitar Guaratinguet e eles estavam incumbidos de providenciar acomida da comitiva toda.

    Mas, peixe que bom, nada. Ento Joo Alves pescou em sua rede umasantinha de madeira mutilada. Mais adiante, a tarrafa trouxe a cabea que faltava.Foi encostar a cabea no corpo da santa, os peixes comearam a aparecer dentro

    das redes dos trs. Milagre.Quem guardou a imagem e mandou seu filho fazer ermida foi Filipe Pedroso.Chegava gente de todas as cidades para ver a santa pret inha de 38 centmetros.Ficou famosa e fez tantos devotos que em 16 de julho de 1930, a pedido do clerobrasileiro, o Papa Pio XI declara Nossa Senhora Aparecida Padroeira Principal doBrasil.

    No foi associada com outra santa, no precisou. Era aparecida mesmo e comeste nome ela ficou. Mas quanto poder! Corria o ano de 1717. Hoje, a imagemest na portentosa baslica na cidade que se formou no local, chamada Aparecidano Norte. Deve ter uma Aparecida do sul ou do leste, no sei.

    Como costume catlico, ganhou manto triangular e coroa de ouro. NossaSenhora Aparecida e Nossa Senhora de Nazar de semelhantes ficaramidnticas. A primeira, porm, decididamente preta.

    A santa negraComo explicar uma santa de provvel origem portuguesa feita em madeira to

    escura? Fcil, os padres juram que foi o longo tempo de contato com a gua do rioParaba que escureceu a cor da santa. Uma negao que traz consequnciasimporantes na psicologia das pessoas. Primeiro, rejeitou-se o sentido espiritualque trouxe a santa tona dentro de certas condies bastante peculiares.Segundo, banalizou-se o simbolismo do seu aparecimento de dentro do rio.

    Uma imagem de santa negra num pas onde ainda havia escravidoautorizada pelo governo est nascendo do prprio inconsciente nacional! Aparecede dentro de cada um, do mais escuro da alma de todos. Da nossa sombra noadmitida, vergonhosa, triste e at, criminosa. E vem como uma figurinha ... semcabea. Quantos smbolos que ainda precisam de releitura, fora dos padres emque colocaram o mito. Porque foi tudo datado e o acontecimento estranho recebeucrditos de historicidade.

    A religio catlica sempre procura aumentar o crdito provando que seusprofetas e santos tiveram existncia histrica. A atitude abrange mesmo Jesus, OCristo. Nem todas as religies tm o mesmo procedimento. O resultadopsicolgico comum de atitude historicista a perda de alcance do significadoprofundo do smbolo. Ele se reduz a nada mais que... um fato localizado em talespao e tempo. Cria-se uma abordagem externalizada, desvalorizando-se aimpresso subjetiva e o alcance simblico do mito. Por isso, o devoto perde aexperincia numinosa que teria, caso se aproximasse da imagem santa aceitandoos elementos inconscientes mobilizados pelo mito.

    Ele chega na Baslica de Aparecida com a cabea cheia de informaesexternas, pensa de acordo com aquilo que as convenes religiosas lhe dizem.No para, no sente por si mesmo. Fica sem vivenciar o que aquela santinhapreta ali, entronizada, adorada como poucos santos no mundo. O que tudo

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    aquilo? Por que ela preta e veio das guas? Seu encontro com a santa no tema alegria da vida. Parece mais melanclico, desanimado porque lhe est interditoo ato de viver o mito da divindade. Tudo j foi prescrito e o devoto fica afastado doencontro sagrado da pele escura na sua vida.(7)

    Nossa Senhora apareceu acfala e s colando a sua cabea os pescadores

    tiveram abundncia. Ela a Me do rio. Senhora das guas da vida. Senhora dospeixes. Os peixes no somos todos ns, j que Jesus Cristo era o maior pescadorde homens? Ela pois nossa me. E tambm a Me da fartura, como as mes-pretas deste Brasil inteiro sempre simbolizaram. Com os seios fartos quealeitavam o pretinho e o filho da sinh. A me preta de mil estrias na imaginaode todos os brasileiros. Ainda hoje cantada e venerada na morena gostosa,generosa, que sabe dos dengos da cozinha e da cama. A mulher preta semreinvejada pelas donas bem-educadas que no podiam gozar com seus maridosporue, afinal, o que eles iam pensar delas? Eles iam atrs das pretas e mulatas.

    No Egito, onde se aceitava o mito como criao psicolgica, com significadosvitais, sem procurar a historicidade como justificativa, os deuses evoluiam.Mudavam, segundo tambm mudasse a mentalidade dos grupos culturais, ossculos, os povos. Isis, por exemplo, a mais duradoura expresso do arqutipodivino feminino, segundo o psiquiatra Erich Neumann, (8) perdeu a cabea. Foidecepada pelo filho Hrus que, em troca, deu-lhe a cabea de uma vaca.

    Imagine fazer disso um fato histrico. Nem se cogita que Isis possa ter sidohumana. Um acontecimento mtico que pertence ao espao psicolgico, norealista. Assim, com o respeito devido aos smbolos emanados de foras alm dacompreenso dos humanos, os egpcios aceitaram que Isis ficou sem cabea.Ainda hoje esse detalhe tem interesse para acompanharmos o processo deindividuao feminina.(9)

    No caso da imagem preta de Nossa Senhora sem cabea, temos que aceitar oelemento inesperado como sendo a expresso de um fator transcendente. Umbelo sinal da necessidade de mudana do modo de raciocinar e de controlar oprocesso da vida. Perder a cabea indicaria tanto a confuso, at a loucura,quanto um processo de profunda estruturao interior. Em se tratando de umadivindade, o smbolo aponta a direo superior onde do sentido seria indicar anecessidade de contato consciente com os dinamismos emocional e instintivo dapsique. Sugere que os seus devotos precisariam rever e, quem sabe, renunciar aalgumas idias para aceitao de novos paradigmas.

    O mito de Nossa Senhora Aparecida sugere que a fora psicolgica que elasimboliza estava sob a ao do poder regenerador das guas. Podemos suporque a santa estava sob o trnsito de elementos regeneradores do princpiofeminino. Ela nasceu de novo pela tarrafa do pescador. Veio luz pela ao dosseus filhos, ela que a prpria Me da Luz. Ser que ns vamos atualizar essemito e recriar a verdadeira Senhora da sabedoria, a Sofia dos alquimistas? A Mepreta indica a possibilidade de unio dos elementos mais instintivos e profundosda psique aos elevados e espirituais. Ser esse um trao no destino da naobrasileira?

    A divindade que foi chamada Aparecida no poderia ser vista de maneira toconservadora como rezavam as tradies crists dos antepassados lusos. Foi, etalvez tenhamos perdido algo da fora desse acontecimento singular, sincronstico

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    para a hora do pas. A deusa que renasceu do escuro fundo do rio Paraba,trazendo no corpo a cor da matria-prima (materia nigris), no era mais apenasuma santa catlica. Ela foi e uma poderosa manifestao da psique coletiva queprojetou sobre a imagem de madeira o tremendum numinoso da Virgem preta.Como tambm Cybele, Afrodite e Diana de feso. E a santa da Polnia que o

    Papa reverencia. E Nossa Senhora de Reims, Nossa Senhora de Guadalupe etantas outras. Santas ou divindades que incorporam, justamente, o lado maisctnico da Grande Me. Uma presena constante na psique dos povos, a me damatria, a prpria Me de Todas as Coisas.

    A sincronicidadeQual a representao oculta no fato da vinda de Nossa Senhora Aparecida no

    Brasil da poca? Entre muitas interpretaes possveis, escolho uma: asincronicidade do aparecimento da imagem aponta para uma uno. O Brasil abenoado pela Me Negra. A poderosa Senhora das guas, da abundncia.Aquela que tem na pele a cor do tero fecundado, da terra quando fica mida. Acor da noite de muitos mistrios. Da substncia perigosa porque desconhecida. Asombria face do lado oculto que no se explica racionalmente. Esse lado quesempre fica mais prximo da mulher, o Yin dos chineses taostas. O escuro dofundo das guas primordiais, de onde tudo o que existe nasceu. E continuanascendo dentro de ns.

    O sculo do aparecimento da Virgem do rio Paraba foi o mesmo daRevoluo Francesa. Como aconteceu com ela, muitas cabeas pensantesliteralmente foram decepadas. Rolaram na guilhotina. A cultura ocidentaltransformava-se aceleradamente e precisou incluir cada vez mais novoselementos, vindos, sobretudo, dos inferiores conhecimentos marginais, da facesombria da sociedade. Foras que estiveram reprimidas e negadas pelosgovernos e pelas religies da poca.

    Que energias estariam sendo estimuladas na psique coletiva brasileira emcorrespondncia ao aparecimento dessa figura divina? Teria relao com aabolio da escravatura que foi assinada por D. Isabel sculo e meio depois? Asmulheres em geral foram mais valorizadas nas cincias e nas artes, ganharamdireito a falar e a pleitear cargos pblicos.

    Mesmo que os smbolos da pele preta e da separao da cabea no tenhamsido devidamente valorizados pela religio, algum contato inconsciente pode termobilizado a psique brasileira. Mesmo que no completamente compreendido, omito de Nossa Senhora Aparecida teve ressonncias que no podemosacompanhar. O evento sincronstico evidente por si mesmo. Ainda que oprocesso de torn-lo consciente leve dcadas. No caso, melhor falarmos emsculos. Ouso dizer que a poro desse mito que foi escondida pelos religiosos,tornada marginal e portanto inconsciente nos devotos e neles mesmo, reapareceusob outras denominaes. Yemanj uma dessas manifestaes. Ela seapresenta devoo popular no Brasil com muito mais fora que jamais teve nafrica. Que sede o povo daqui tem de uma Me poderosa!

    No contexto amplo, o mito de Nossa Senhora Aparecida mostra como no setem controle sobre como e quando tais manifestaes vo surgir. O impondervel

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    taz o numinoso transcendente. A figura feminina divina de Nossa SenhoraAparecida corresponde a uma especial mobilizao do arqutipo da Grande-Mena psicologia da nao. O possvel encaminhamento para o resgate do ladoctnico, regenerador da vida, emocional e amante da alegria de viver. tambm ocontato com as bases da abundncia e a plenitude. Essa dimenso psicolgica

    estava em desequilbrio na nossa psique coletiva. E talvez ainda esteja. Mesmoque o culto Yemanj tenha abrandado o conflito presente na alma do brasileiro:um conflito entre o lado apolneo, claro e racional eo lado dionisaco dasexpresses msticas, do transe, do xtase, das orgias sensuais.

    Permanece para todos que se debruam sobre o modo de viver brasileiro asensao de que temos um conflito subterrneo, onipresente. Tudo parece ser tograndioso, mas vivemos na pequenez e na misria. Falta clareza e alinhamento depropsitos em direo a um objetivo realmente unnime. Conscientementeassumido. A alma brasileira parece estar fragmentada em mil partes que se opesentre si. Nossa cabea ainda foi colada. Logo, os peixes ainda no abundam nasnossas tarrafas.

    Mas a intensidade das devoes s divindades femininas neste pas estariamostrando que essas deusas tm uma funo muito importante paradesencandear o processo de regenao da alma brasileira. De modo maisespecfico, na relao com as figuras femininas arquetpicas mostra-se bem oconflito ntimo dos brasileiros.

    Para exemplificar, as relaes entre os homens e as mulheres sofrequentemente dominadas por duas tendncias contrrias. De um lado esto asatitudes conscientemente assumidas, um lado moralmente aceitvel pelasreligies crists. O poderoso carter apolneo, claro e politicamente correto peloqual as mulheres da me esposa, filha e irm, so santas. E oextravasamente dionisaco com as outras mulheres, geralmente as que esto forada famlia. O mesmo lado dionisaco que se esbalda na orgia do carnaval. A facebrasileira presente no carter trambiqueiro do nosso heri-sem-senhum-carter:Macunama.

    Do ponto de vista feminino, fica difcil integrar o aspecto sedutor e ertico navida matrimonial e maternal. Porque os modelos apolneos da nossa cultura no opermitem. Nossa Senhora, sob qualquer nome, uma me santa que no dormecom o seu marido. E agora? A pessoa simples no alcana os altos cumes dodogma mariano. Resta o impasse.

    Os aspectos mais sublimes da figura divina de Maria e o que ela representacomo integrao dos sentimentos elevados de amor humano ficam longe da vidaprtica da maioria das pessoas, justamente porque nos falta a interiorizao dosmbolo.

    Vou dar um exemplo simples. A procisso de Nossa Senhora de Nazar leva aVirgem at a sua baslica. Quando ela chega sua casa, quem a recebe?Homens. Padres da Igreja. Embora vestidos com longas saias, so homens etodos sabem disso. Nenhuma freira, mulher crist ou me de filhos tem o direitode estar ali, naquela hora sagrada, recepcionando a doce Senhora. Uma famliacrist composta de pai, me e filhos. Os motivos pelos quais as mes nopodem ascender ao palco sagrado para receber a Me de Todos nunca foramdevidamente declarados pelas autoridades religiosas. Torna-se difcil esperar que

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    as mulheres se identifiquem completamente com aquela imagem da santa,enquanto o seu poder estiver restrito banda masculina da humanidade. Sinal dacomum inaceitao do princpio feminino que regularia os costumesexcessivamente patriarcais da sociedade brasileira. Fato j bastante estudado.Falta perceber como o processo de transformao dos smbolos das divindades

    femininas atua na psique coletiva. Motivo pelo qual Yemanj precisa sermencionada.A Senhora dos Peixes, YemanjDoce, bonita, dona de uma presena divinamente elegante e sensual,

    Yemanj vinha com o seu squito pela estrada. Quando foi vista por Orunmil, oadvinho, deus poderoso na tradio yorub, da frica.

    Mande ver quem aquela mulher to sedutora, ordenou ele.Ela se apresentou. Era Yemanj, rainha e mulher de Oxal.Ouviu o convite para ir conversar com Orunmil. No foi, continuou o seutrajeto. Como as mulheres gostam de fazer, foi quando teve vontade.E tanto conversaram que Yemanj ficou grvida.

    Temos aqui uma imagem diferente do carter feminino que inclui a dimensoamorosa e sexual. Compilada por Cmara Cascudo, (10) essa lenda retrata bem adivindade nag (yorub) trazida pelos escravos africanos cujo culto e devoo seespalharam pelo Brasil.

    O mito original de Yemanj, deusa da regio africana de If e Ibadan, atualNigria, se perdeu no tempo. O antroplogo Verger(11) diz que depois de seucasamento com Orunmil, Yemanj casou-se com Olofin, rei de If, com quemteve dez filhos que correspondem aos orixs do panteo yorub.

    Sua posio como Me dos Santos confirmada por Iwashita,(12) telogobrasileiro que recuperou numerosas referncias aos costumes e tradies ligadas Yemanj. Nele encontro a verso mais correntemente aceita em que a deusa filha do Cu com a Terra. Sua funo cosmognica e ambiental bastantesignificativa porque a tradio a considera a me do peixe (yeye: me e eja:peixe), portanto senhora dos alimentos. Sendo a divindade preservadora dos riose mares, Yemanj tambm defende os seres humanos dos perigos das guas.

    Uma das muitas verses do mito de Yemanj conta que ela se casou com umirmo, Aganju (tera firme, floresta, plancie) gerando Orugan (o alto do cu).Quando adulto, Orugan apaixonou-se por sua me. Certo dia, aproveitando-se daausncia do pai, perseguiu-a e a forou aceit-lo sexualmente. Depois disso, adeusa fugiu desesperada para esconder-se. Orugan, arrependido, quis consol-la,mas ela reagiu com uma transformao assombrosa: comeou a inchardesmesuradamente. Dos seios enormes brotaram torrentes de gua queformaram os rios da terra. Seu ventre aberto deu nascimento a todos os orixs.Tornou-se a Me dos Deuses.

    Levado ao p da letra, o incesto confunde uma conscincia feminina sensvel.Sabe-se, entretanto, que algumas deusas da antiguidade foram mes e amantesde seus filhos. O detalhe do incesto simblico, no exatamente religioso,trazendo implicaes psicolgicas que no daria para aprofundar no espao desteartigo. A fecundao de Yemanj por seu filho, chamado o alto do cu,

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    entretanto, revela um elemento psicolgico fundamental para compreender-se arelao com a energia da Grande-Me. Embora o detalhe do incesto tenhapassado por uma maquiagem crist depois de chegar ao Brasil, sendo disfaradoe omitido, j tempo de suspender o vu da falsa interpretao moralista dosmitos. Quando o mito de Yemanj foi criado, a dicotomia entre o bem e o mal

    no existia do mesmo modo como para ns hoje.O sentido do mito diz que a senhora dos mares uniu-se ao senhor da terrafirme, dando nascimento ao senhor do alto do cu. Simples lio para aprenderque o amor leva criao do cu aqui no planeta. Os orixs, que esto presentesdentro de cada ser humano, so intermedirios das foras elementais do meioambiente. Na conceituao nag, o coito de Yemanj com Orungan, emboraproibido, funciona como propiciador de uma transformao fundamental para ahumanidade: fazendo-a senhora das foras da natureza, atravs dos orixs,ancestrais divinizados dos prprios homens.

    Desde os tempos mticos, os orixs garantem aos seres humanos o controlesobre certos elementos naturais, como o vento, o trovo, as guas doces ousalgadas. Foram eles que asseguraram a possibilidade de exercer atividadesnecessrias cultura, como a caa, pesca, cermica, conhecimento de plantas ede animais, metalurgia, marcenaria e outras. A fecundao pelo alto do cu,tornou a deusa capaz de por filhos dinmicos no mundo, os verdadeirosgerminadores da civilizao humana. Modelos de uma relao dialtica com osrecursos naturais do planeta, os orixs, filhos de Yemanj, podem inspirar atitudesecolgicas equilibradas nas pessoas orientadas para fazer o bem comum.

    Por essas condies, a apresena de Yemanj entre as divindades femininasno Brasil contribue com as caractersticas primitivas das deusas antigas paracomplementar os modelos de identificao feminina de origem europia eindgena.

    Um mito vivoO mito de Yemanj ainda est bem vivo e no foi colocado como fato histrico.

    Ela jamais foi reduzida a uma personalidade que tenha vivido na frica. Os seusdevotos reconhecem o seu domnio interiormente e ela reina no nvel imaginrioque alimenta com sentimentos, experincias, rituais e xtase. Qualquer um podetornar-se filho de Yemanj, passando pelo ritual de iniciao da deusa. Basta serchamado por ela. E quando ela chama, no o faz apenas com idias abstratas,mas atravs da dana.

    Os afilhados da deusa danam balanando como as ondas do mar, porque asua presena acende as emoes e o erotismo, solta a alegria de viver, afinalquem pode controlar as ondas? Sentindo a mar baixa e a mar alta, assim osfilhos dessa deusa aprendem a equilibrar-se com seus estados emocionais. Sob oritmo do fluxo das guas interiores aceito e vivenciado, reequilibrando-se quando amar interior muda. Sem expicaes excessivas, interiorizando os smbolos.

    No Brasil o culto de Yemanj sofreu uma verdadeira metamorfose. Deprotetora dos rios na frica, tornou-se conhecida como rainha do mar e de todasas guas. Quando por vcio histrico a Igreja obrigou os escravos a umacristianizao, o resultado foi uma associao de muitas santas catlicas

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    divindade africana. Constata-se, entretanto, que a esttica do cristianismo noconseguiu contaminar as virtudes e a dignidade que fizeram do terreiro um polo deresistncia e de conhecimento cultural do africano no Brasil, testemunha oetnlogo Raul Lody.(13)

    A tendncia geral da psique dessa terra em venerar uma Grande-Me ampliou

    as funes de Yemanj tornando-a a grandiosa Senhora das guas. Outroaspecto da metamorfose brasileira a sua apresentao como Iara, ou Me-dgua, entidades do panteo indgena anterior chegada dos africanos. Yemanjcomo Iara convida seus apaixonados a mergulharem para fazer amor com ela nofundo das correntes, cachoeiras, rios ou mares profundos. Nem sempre osamantes retornam.

    Quem no se lembra da fatalidade com que Jorge amado fala dos chamadosde Dona Janana aos pescadores da Bahia, em Mar Morto? Janana ou DonaJanana, Dona Maria, Ian, Iemanj, Princesa de Aioc so outros nomes para adeusa yorub. Mas tambm pode ser chamada coo Minha Madrinha, MinhaMezinha, Princesa do Mar, Rainha das guas, Sereia do Mar.

    Yemanj representada por conchas, smbolo da acolhedora concavidade docorpo feminino, assim como as Vnus antigas. Ela vaidosa, recebe presentes deespelhos e perfumes e no desfaz de sua beleza em nome da maternidade. Assuas filhas parecem ganhar um tipo fsico arredondado, com seios grandes e umcerto olhar calmo.

    O arqutipo de Yemanj leva a mulher a ser tima me, uma fera na defesados filhos, grande amiga que pode perdoar as ofensas mas jamais esquece.Geralmente passa a vida com um mesmo companheiro, desde que tenha conforto.Gosta do luxo, dos prazeres da mesa e da cama. voluntariosa, sujeita a doresde cabea e com alguma tendncia s fantasias.(14)

    Yemanj uma divindade que permite s duas filhas desenvolverem amorertico, como fizeram as deusas Inana da Sumria, a egpcia Hathor, Afrodite daGrcia e Vnus em Roma. Yemanj da nao dos yorubs, hoje tambm dosbrasileiros, simboliza a inteireza do amor feminino. Um modelo da amante, cheiade alegria de viver, mulher bonita, vigorosa, sedutora. tambm me venervel esevera, protetora dos perigos das tramas sentimentais. Uma revelao azul eprateada da fora da emocionalidade, tpica na alma coletiva da maioria daspessoas deste pas.

    Vamos mais longe e comparemos Yemanj com Nossa Senhora de Naar eNossa Senhora Aparecida e todas elas com a deusa dos Marajoara. Em outrostermos, pode a Virgem Maria ser a mesma que Afrodite-Vnus, ou Yemanj seruma outra Inana ou Isis?

    As Faces da DeusaCampbell criou os terms de comparao entre as dinvindades femininas e

    masculinas em sua magnfica srie As Mscaras de Deus. Aplicando as basestericas de Jung aos modernos achados arqueolgicos, Campbell evidencia aunidade do arqutipo divino que se manifestou na psique como sendo de naturezaora feminina, ora masculina e tambm andrgina. No volume Mitologia

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    Primitiva(15)encontro as palavras de sis ao seu iniciado Apuleio, cerca de 150d.C.

    Sou aquela que a me natural de todas as coisas, senhora e governante detodos os elementos, a primeira prognie dos mundos, o mais importante dos

    poderes divinos, rainha de todos que esto no inferno, a mais importante dos que

    vivem no cu, manifesta apenas sob uma nica forma em todos os deuses edeusas. (...) Minha divindade adorada por todo do mundo, de diferentesmaneiras, em diferentes costumes e por muitos nomes.

    Que mistrio este que parece durar milnios?O culto de Yemanj, por exemplo, est vivssimo e tende a aumentar, confirma

    Iwashita,(16) seja na Amrica do Norte, em Cuba ou na America do Sul, tendo oBrasil uma importante influncia neste crescimento.

    O contato dos africanos com o catolicismo favoreceu o sincretismo religioso eaproximou Yemanj de Nossa Senhora da Conceio, festejada em 8 dedezembro. Ligou-a com Nossa Senhora das Candeias, festejada em 2 defevereiro. Nessas datas sagradas, uma deusa magnfica venerada em rituais beira mar que se estendem da Bahia ao Rio Grande do Sul. Lembremos queConceio vem de concepo:conceber, que tanto significa pensar como ter umacriana. A Senhora das guas na imagem de Nossa Senhora da Conceio estassociada com a lua em quarto crescente, mais uma analogia com as poderosasdeusas neolticas. A funo psicolgica do crescente lunar muito ampla. Ominimo que se pode dizer sobre este smbolo que est pontuando a correlaocom o princpio feminino presente nos ciclos naturais do tempo, das plantas, dacolheita e as condies vitais da mulher.

    Em Cuba, o 8 de Dezembro uma festa alegre consagrada Nossa Senhora,Virgem de Regla, padroeira dos pescadores. Lydia Cabrera(17) relata que com opassar do tempo a Virgem de Regla e Yemanj tornaram-se uma nica entidadena mentalidade dos cubanos.

    Segundo Roger Bastide,(18) o culto de Yemanj se identifica com NossaSenhra da Praia, sobretudo na Bahia. Enquanto no Rio Grande do Sul, com NossaSenhora dos Navegantes, levada em procisso por marinheiros e pescadores. Demaneira geral, as pesquisas indicam o processo de integrao das imagens deYemanj em diferentes locais do pas com a Virgem Maria, Nossa Senhora daImaculada Conceio, Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora de Lurdes.E tambm, Nossa Senhora da Candelria (Rio) Nossa Senhora das Dores, NossaSenhora da Boa Viagem (em Recife) Nossa Senhora dos Navegantes (PortoAlegre), Nossa Senhora do Bom Parto (Maranho).

    Em todas essas manifestaes, a Senhora das guas proteo contra osperigos das guas. uma divindade que traz a luz (candeia) das guas. Ela a Stella Maris, a magnfica estrela do mar.

    Uma outra face da deusa manifesta-se em Nossa Senhora Aparecida, a medos peixes, tanto quanto em Nossa Senhora de Nazar, a morena protetora dosnavegantes amaznicos. Ambas, modernas transformaes da pr-histrica deusaconhecida dos artistas Marajoara que possivelmente reinava sobre todos osanimais aquticos. Por ter encontrado a face da deusa na pequenina imagem dosMarajoara, eu compreendi como antiga sua presena nos povos que habitaramesse territrio.

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    O diplomata J. de Meira Penna(19) exps no livro Em Bero Explndido atendncia nacional para viver eternamente no colo da grande-me. Esse pensador

    junguiano brasileiro percebeu, com clareza, os traos filiais no carter da nossaalma. Porm, a ambgua posio do incesto no foi clarificada pelo autor.

    O colo da MeSob a fora desse arqutipo, uma pessoa sente-se nutrida, protegida, mas ao

    mesmo tempo atrada pelos seus impulsos, sem tica nem ponderao. H o riscode ser devorada pela dinmica impessoal do inconsciente coletivo, perdendo osenso de identidade. O colo da Grande-Me atrai para a emocionalidadedescontrolada que pode tornar-se fixao no passado, uma priso nosentimentalismo adocicado e piegas. Um estado psicolgico que destri aautonomia do indivduo, sugando suas energias.

    Essa face da Grande-Me representa uma morte simblica na qual os filhosservem sua vaidade e nunca atingem a verdadeira luz do conhecimento.Continuar em bero esplndido ficar infantilizado. Por outro lado, negar o detalhedo incesto, tal como negar a cor preta da Padroeira do Brasil continuar sematender aos smbolos do inconsciente. No ver o que est diante dos olhos. Ematitude reducionista, antroplogos afirmam que a imagem da divindade Marajoara uma simples bonequinha. Reduzindo o alcance psicolgico dos smbolos daalma nacional, permaneceremos pequenos diante da grandeza dos desafiosculturais que nos afrigem.

    importante ir alm das fronteiras desgastadas dos pontos de vistatradicionais quanto aos modelos de identidade femininos. A separao entrematernidade e vida amorosa-ertica no tem mais sustentao e o simbolismo doincesto pe essa questo em relevo.

    Paul Diel(20) indica uma nova maneira de perceber o incesto de dipo, porexemplo. Sua interpretao identifica a extrema vaidade do heri e a arrogncia,associada insegurana postural (dipo era manco), como base do seudesequilbrio. Traz, em consequncia, um estado interior agitado e nervoso quebanaliza a vida sexual e ertica, vendo-a como mera utilidade para aumentar suasposses. Um casamento por interesse leva-o desgraa. Visto por este autor, oincesto de dipo um smbolo da atitude consumista do ser humano diante dosrecursos da grande-me. Imagem clara da atitude infantil, misto de vaidade, medode envelhecer e de morrer que dominam o comportamento de muitas pessoasdiante dos ciclos do tempo. Gerando desrespeito para com o bem comum e faltade verdadeira conscincia tica na relao com as foras da natureza.

    Pois a grande-me representa a matria e a relao com ela mostra o modocomo respeitamos ou abusamos dos recursos do planeta e das energias do nossocorpo. Ir ao encontro da grande-me sem violncia significa amar a terra, cuidardos seus recursos, estudar e respeitar os ciclos naturais. A percepo dasdivindades femininas predominantes no Brasil pode ajudar a levantar meios deeducar e manter uma atitude consciente voltada para uma dinmica dialticacriativa frente aos elementos naturais que esto na psique e no ambiente.

    Ns precisamos criar a saga do heri que no age como dipo, inflado porimaginar-se filho de deuses. Ao invs, levanta cedo e planeja sua vida. Luta co

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    os aspectos inferiores que o aprisionam, liberta-se da preguia e da improvisao,to caras ao temperamento brasileiro.

    No desgraamos o solo desse pas e polumos as fontes de gua porinteresses vaidosos e gananciosos durante os ltimos sculos? No intoxicamos ocorpo com cigarros, lcool e comidas inadequadas, sem pensar? Uma devoo

    apenas sentimentalista s divindades maternais no tem fora para evitar osmales causados pelo descontrolado desejo de possuir e de gozar. A Senhora dasguas no pode ser possuda pelos homens e mulheres, assim como a terra e agua no so propriedade de ningum. Em s conscincia quem pode afirmar que

    possui verdadeiramente, um metro de cho deste planeta? Ele que nos tem enosso corpo fsico volta a fazer parte dele, na transformao da matria quechamamos morte. Algumas doses de humildade fariam bem aos governantes quelegislam sobre a reforma agrria no pas.

    Interesse clnicoA pesquisa dos mitos tem grande interesse clnico. Mas, o estudo dos deuses

    s tem significado quando for integrado com a realidade vivenciada e atual.Corremos o risco de alienar ainda mais os nossos pacientes se os alimentarmoscom fantasias hindus, gregas, rabes ou egpcias, africanas ou indgenas. Esta uma advertncia particularmente voltada para a frtil imaginao das mulheresbrasileiras. Precisamos de experincias vividas para suturar os rasges na nossaidentidade feminina, no de fantasias.

    Longe de esgotar um campo to vasto, os aspectos aqui apontados trazemapenas algumas consideraes que julguei teis para as pessoas que estodinamicamente em busca dos modelos internos de superao prpria. Que nomais abordam a Me como refgio e fuga da vida. Tambm no se afastam delacom medo e raiva, identificando-se com os excessos do princpio masculino.Talvez vamos conseguir reagir de maneira nova. Vamos trocar o apego e a raivapela compreenso e acolher a Me em nossos braos. Isso, praticamente,significa aceitar a natureza dentro e fora de ns. Entender os ritmos naturais docorpo e do entorno. E conviver harmoniosamente com os recursos naturais doplaneta porque senti-lo-emos como o corpo da Grande-Me. O prprio ventre deonde nascemos, todos ns.

    Lua cheia em Leo / Aqurio. 1996Referncias1. Rosevelt, Anna Moundbuilders of the Amazon, Geophysical Archaeology

    on the Maraj Island. Brazil, Academ. Press Inc. San Diego, 1990.2. Ests, Clarissa P. Mulheres que Correm com os Lobos. Rocco, Rio deJaneiro, 1995.3. Gimbutas, Marisa The Language of the Goddess. Harper, San Francisco,1989.4. Revista do Crio publicao da diretoria da festa de N. S. de Nazar,1989 p.20 e segts.

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    5. Numinoso Termo empregado por Jung em suas observaes sobre asimagens arquetpicas para descrever uma experincia profunda e espiritual dedifcil transcrio em palavras.6. Penna, Lucy C. O Mito do Boto: Boletim de Psicologia vol 38:88-89, 1988p. 21-26.

    7. Diversos mitos sobre a virgem negra foram analisados por Ean Begg: TheCult of the Black Virgin. Arkana Ed., London, 1985, sem meno Nossa SenhoraAparecida.8. Neumann, Erich The Great Mother. An analysis of the archetype.Bollingen Series XLVII, Princeton Univ. Press, Princeton, 1963.9. Penna, Lucy C. Dance e Recrie o Mundo. Summus, S. Paulo, 1993.10. Cmara Cascudo, Luiz Dicionrio do Folclore Brasileiro. 5 ed. Ed.Itatiaia, B. Horizonte, 1984.11. Verger, Pierre Orixs. Deuses Iorubs na frica e no Novo Mundo. S.Paulo, 1981.12. Iwashita, Pedro Maria e Iemanj Anlise de um Sincretismo. Ed.Paulinas, S. Paulo, 1991.13. Lody, Raul Candombl Religio e resistncia cultural. tica, So Paulo,1987 p.5214. Aflalo, Fred Candombl Uma viso do mundo. Mandarim, So Paulo,1996.15. Campbell, Joseph As Mscaras de Deus: v. 1 Mitologia Primitiva. Ed.Palas Athena, S. Paulo, 1992.16. Iwashita, Pedro op. Cit. p.31.17. Cabrera, Lydia Iemanj em Cuba. Rio de Janeiro, 1967, cit. Por Iwashita.18. Bastide, Roger As Religies Africanas no Brasil 2v. S.Paulo, 1971, cit.P/Iwashita.19. Meira Penna, J. - Em Bero Esplndido. Jos Olympio Ed., Rio deJaneiro, 1974.20. Diel, Paul Le Symbolisme dans la Mythologie Grecque. Payot, Paris,1966.*Lucy Coelho Penna - Psicloga e psicoterapeuta, doutora em psicologia clnicapelo Instituto de Psicologia da USP. Ps doutorada pela Universidade de Toronto,Canad. Ex-professora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.Professora Adjunta da Universidade Catlica de Gois ( convidada) e daUniversidade Salgado de Oliveira. Professora de Ps graduao e especializaoem psicoterapia junguiana. Escritora, pesquisadora, estuda os mitos e os smbolosda alma brasileira, e a conscincia feminina. Escreveu diversos artigos em revistasespecializadas, alm de trs livros: "Corpo Sofrido e Mal Amado" e "Dance eRecrie o Mundo " ( Summus Ed. ). " Sade e Qualidade de Vida" ( co-autoria,Editora Peirpolis). No prelo, Pauaxipuna , sobre a espiritualidade indgena daAmaznia, combina o estudo dos smbolos arquetpicos com a mitologiaevidenciando a presena pr histrica de um culto a divindades femininas.Para outras consultas, favor acessarhttp://geocities.yahoo.com.br/lucypenna